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Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônicos, nº 5, 2014, p. 121-138. HISTÓRIA E MEMÓRIA: OS TRABALHADORES DO AÇAÍ _______________________________________________________ * FABRÍCIO RIBEIRO Antes de iniciarmos a reconstrução de uma história social dos trabalhadores do açaí, vale-se destacar pontos importantes no que concerne a discussão metodológica deste trabalho. Primeiro nossa divida extrema com as ideias E. P. Thompson, que são fundamentais na reflexão e entendimento deste trabalho, de uma interpretação da história vista de baixo, que ressalte os sujeitos que são negligenciados pela historiografia tradicional, onde percebemos os pífios trabalhos que tentam destacar as experiências vividas pelos trabalhadores do açaí. Dessa forma procuramos entender as transformações culturais pelas quais esses sujeitos estão passando, um processo de transformação em suas relações de trabalho, tanto com outros sujeitos, como com seu espaço de trabalho, sendo ocasionada sobre maneira, mediante a introdução de um novo sujeito nessas relações, a exportação. Que provocou mudanças nos modos de produção, comercialização do fruto do Açaizeiro. 1 * Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará. 1 Restringimo-nos nesta apresentação a discutir algumas mudanças em torno do modo de produção e comercialização desenvolvida pelos trabalhadores do açaí. Sabemos que o próprio modo de consumo tem mudado, porém não abordaremos aqui. E-mail: [email protected]

Fronteiras de Sentido e os Sentidos da Fronteirafiles.fronteirasdotempo.webnode.com.br/200000225-3083932776/09.pdf · no processo de produção do açaí. O PLANTAR E O COLHER DO

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Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônicos, nº 5, 2014, p. 121-138.

HISTÓRIA E MEMÓRIA: OS TRABALHADORES DO AÇAÍ

_______________________________________________________

* FABRÍCIO RIBEIRO

Antes de iniciarmos a reconstrução de uma história social dos trabalhadores do açaí,

vale-se destacar pontos importantes no que concerne a discussão metodológica deste

trabalho. Primeiro nossa divida extrema com as ideias E. P. Thompson, que são fundamentais

na reflexão e entendimento deste trabalho, de uma interpretação da história vista de baixo,

que ressalte os sujeitos que são negligenciados pela historiografia tradicional, onde

percebemos os pífios trabalhos que tentam destacar as experiências vividas pelos

trabalhadores do açaí. Dessa forma procuramos entender as transformações culturais pelas

quais esses sujeitos estão passando, um processo de transformação em suas relações de

trabalho, tanto com outros sujeitos, como com seu espaço de trabalho, sendo ocasionada

sobre maneira, mediante a introdução de um novo sujeito nessas relações, a exportação. Que

provocou mudanças nos modos de produção, comercialização do fruto do Açaizeiro. 1

* Discente do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará. 1 Restringimo-nos nesta apresentação a discutir algumas mudanças em torno do modo de produção e comercialização desenvolvida pelos trabalhadores do açaí. Sabemos que o próprio modo de consumo tem mudado, porém não abordaremos aqui. E-mail: [email protected]

Fabrício Ribeiro

Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.

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Nesse sentido, a experiência vivida pelos trabalhadores, em uma dimensão histórica,

seria então, uma espécie de solução prática para que se possa analisar os comportamentos,

os valores, as condutas, os costumes, enfim, a cultura do trabalho desses sujeitos.

Outro ponto que destacamos neste trabalho, gira em tono das fontes - fontes orais-

as quais são as bases de reconstrução do cotidiano e de uma memória dos sujeitos

envolvidos nesta pesquisa. Fontes essas que são consideradas por nós as mais informativas

possíveis, no que diz respeito à percepção destes trabalhadores ao longo do tempo, sujeitos

que vivem e participam de uma história do tempo presente. Sendo nesse sentido o objetivo

de estudar e utilizar as fontes orais na pesquisa sobre os trabalhadores, e, da atividade de

comercialização do açaí destacamos: Não utilizamos as fontes orais para preencher as lacunas das fontes, ou para confirmar ou negar evidências, e sim como uma fonte possível de construir uma história, onde a memória social de um grupo expresse a relação de sua experiência de vida e localizada no presente. Ou seja, a história oral na nossa pesquisa se constitui em objeto de analise, sendo, em certo sentido, a própria pesquisa (FONTES, 2012, p.23)

A história oral refere-se a uma história que se dá no tempo presente trazendo

informações sobre as vivências do cotidiano dos sujeitos. Assim sendo afasta-se de uma visão

positivista, onde somente considera-se história as discussões que se deram em um passado

distante, afastadas do tempo presente. Deste modo, Hobsbawm (1998) afirma que o tempo

presente é o período durante o qual se produzem eventos que pressionam o historiador a

revisar a significação que ele dá ao passado, a rever as perspectivas, a redefinir as

periodizações, isto é, a olhar, em função do resultado de hoje, para um passado que somente

sob essa luz adquire significação.

Sabemos que o açaí faz parte da cultura alimentar do povo paraense, constituindo-se

em uma rica fonte de renda para os trabalhadores que se relacionam com sua produção e

consumo. O processo de produção do açaí, o ato de plantar, de extrair, vem se tornando cada

vez menos “artesanal” ou tradicional2. Atualmente o açaí faz parte de um processo de

industrialização, sendo em muitos casos pasteurizado, embalado e exportado para fora do

Estado do Pará, ou até mesmo para outros países. Nesse cenário observamos que o açaí

ganhou espaço nos supermercados, adquirindo uma nova lógica destinada à comercialização

do produto que historicamente fez e faz parte da cultura alimentar de populações

ribeirinhas3, indígena e de grande parte da população de Belém4.

2 Utilizamos o termo tradicional para retratar os trabalhadores do açaí que culturalmente desenvolvem suas atividades com o fruto antes do aparecimento de um novo mercado, a exportação. 3 De acordo com FRAXE; PEREIRA; WITKOSKI, (2007) População ribeirinha constitui as comunidades ou grupo que há séculos moldam seus estilos de vida e culturas às margens dos grandes e pequenos rios da região Amazônica. 4 Conforme cartilha do Governo do Estado do Pará, de 2006 – “Pará, terra do açaí oportunidade de investimento”, elaborado pela Sec. da indústria, comércio e mineração do estado – a produção dobrou na ultima década (2000 – 2010), chegando a arrecadar mais de 121.7 milhões de dólares no ano de 2010 com a exportação do fruto.

História e Memória: Os trabalhadores do Açaí

Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.

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Esta apresentação5 busca compreender um cenário de permanências e mudanças

percebidas pelos variados grupos de trabalhadores do açaí referente a uma nova

configuração sobre o processo de produção e consumo do fruto.

Mourão (1999) aponta que na Amazônia, os produtos de origem vegetal sempre

tiveram um papel de destaque para a sociedade local. Essa importância remonta aos povos

indígenas, ou seja, a tradição em retirar da natureza o necessário à sobrevivência confere ao

meio ambiente uma relevância significativa ao modo de vida dos amazônidas. É a partir deste

hábito que percebemos que em vários bairros da região metropolitana de Belém ainda é

expressivo o consumo de produtos regionais, como o açaí, que está relacionado a uma

atividade tradicional da economia.

Duarte (2005) aponta para relevância de estudos que mesclem a relação do homem

com a natureza: “vimos que os historiadores têm se dedicado intensamente ao tema da natureza, fundando mesmo um novo campo de conhecimento ao qual denominaram história ambiental. Com isso, mostram-se afinados ao seu tempo e sensíveis ao diálogo com os seus contemporâneos. Mas é muito importante destacar que – apesar da “febre” da história ambiental – o tema da natureza não é uma completa novidade, mas marcou as análises de vários e importantes estudiosos da história do Brasil e de vários outros países, como França e Inglaterra.” (p. 88)

O fruto do açaizeiro antes atrelado a uma lógica mais tradicional de extrativismo,

produção e comercialização, passa a ter interferências do grande capital, empresas nacionais

e internacionais, comércio ligado à exportação de um fruto regional para outros estados e

países, que desencadeou uma remodelação e reconfiguração na lógica de trabalho dos

trabalhadores do açaí e sua relação com a natureza como é apontado pelo marreteiro

Antônio Serrão: Mudou muito, por que na época que não tinha a exportação sobrava muito açaí e ficava muito barato. Hoje não, é um comercio que cresceu muito, expandiu muito, antigamente nesta época, por exemplo, no mês de setembro, que é o mês que dá muito açaí, tava baratíssimo o açaí, agora não. Hoje o Açaí lá no interior tá (15) quinze reais. Isso ainda não tinha acontecido na história do tempo que eu trabalho todinho aqui com açaí, essa época ainda não tinha acontecido isso. Nessa época o açaí era sete (7) ou oito (8) reais e até menos. 6

Essas transformações no comercio e na produção do açaí ocasionou mudanças

significativas no modo de vida dos trabalhadores, nos proporcionando um campo amplo e

significativo de pesquisa. O comércio do açaí na cidade de Belém durante boa parte do tempo

5 Esta pesquisa é um desdobramento de minha monografia da graduação, defendida em 2012: “os trabalhadores de açaí na Amazônia”, que perseguiu o mesmo problema proposto para a dissertação de Mestrado. Porem, esse mesmo trabalho evidenciou a necessidade de maior aprofundamento numa serie de aspectos daquela problemática, impossíveis de se explorar num tempo dispensado para aquele tipo de estudo, sendo necessário que busquemos aprofundar a discussão sobre a introdução de um novo mercado relacionado à exportação do fruto, ocasionando mudanças no modo e na vida desses trabalhadores com seu espaço de trabalho, buscando perceber as mudanças e permanências no comercio do açaí no bairro da sacramenta e a construção de um espaço próprio de comercialização em 1985, a feira do açaí. Portanto, nosso objetivo é ampliar e dimensionar a problemática iniciada na monografia de graduação. 6 Antônio Serrão, marreteiro, 48 anos. Entrevista 18/08/11.

Fabrício Ribeiro

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esteve associada a um mercado regional, cujos batedores de açaí da região metropolitana

eram considerados os principais sujeitos, porém é importante destacar, que além desses

trabalhadores espalhados em seus pontos pela cidade, existe um universo ainda mais

desconhecido para maioria, um universo que tem seu entreposto comercial na feira do açaí,

na cidade velha, cartão postal da cidade. Esta feira recebe dezenas de trabalhadores que se

relacionam com o fruto, e que fazem parte dessa história dos trabalhadores, que é pouco

analisada pela historiografia paraense. Nós fica com um pouco de medo de nós não ter como trabalhar futuramente, mas nós que trabalha já a um tempinho com o açaí a gente vai dando o nosso jeito de continuar, chega mais cedo e vai se virando. Fácil não é, e o jeito é a gente ir se virando, negociando aqui mesmo.7

A negociação e as estratégias de comercialização citada pelo trabalhador nos

levantam o questionamento sobre quais as práticas esses trabalhadores têm que desenvolver

em seu cotidiano, de maneira que possam continuar exercendo suas atividades? Esse medo

de que a exportação possa causar a perda de seu trabalho é real para todos os trabalhadores?

Qual é a relação dos trabalhadores com o seu espaço de trabalho? Esses são alguns

questionamentos preliminares que dão rumos a este trabalho.

Conforme FONTES & RIBEIRO (2012) O cotidiano da atividade dos plantadores, dos

donos de terrenos e das famílias que estão envolvidas diretamente no processo de produção

do açaí não é homogêneo, pois envolve formas distintas de realizar o plantio. Percebemos

que coexistem, junto às formas sistematizadas de plantio para exportação, formas

tradicionais, caracterizadas pelo extrativismo dos açaizais espalhados pela floresta. Uma

produção tradicional do açaizeiro continua sendo exercida pelo interior do estado, sendo

estreitamente ligada a uma cultura familiar, em que os membros da família desempenham as

funções necessárias para o desenvolvimento de suas atividades. Essa é uma tradição em que

o conhecimento empírico é passado de pais para filhos, para manutenção da agricultura

extrativista, que ainda significa a base de sobrevivência de inúmeras famílias que trabalham

no processo de produção do açaí.

O PLANTAR E O COLHER DO DIA A DIA.

O cotidiano das atividades dos plantadores e dos donos de terrenos que estão

envolvidos diretamente no processo de produção do açaí, não é homogêneo, pois envolve

formas distintas de realizar o plantio. Primeiro percebemos que coexiste junto a formas

sistematizadas de plantio do açaí para a exportação, formas tradicionais que há séculos vem

sendo realizadas pela população local, caracterizadas pelo extrativismo dos açaizeiros

espalhados pela floresta.

Uma produção tradicional do açaizeiro continua sendo exercida pelo interior do

Estado, sendo estreitamente ligada a uma cultura familiar, onde os membros da família

7 Antônio José, 58 anos, marreteiro. Entrevista: 18/08/11, na feira do açaí.

História e Memória: Os trabalhadores do Açaí

Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.

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desempenham as funções necessárias para o desenvolvimento de suas atividades. Uma

tradição que incorpora e é passada de pais para filhos no desempenho destas e para

manutenção da agricultura extrativista que ainda significa a base de produção de inúmeras

famílias que trabalham no processo de produção e manejo do açaí. “tem o açaí que ficava espalhado no mato lá no nosso terreno, que era necessário entrar pra apanhar. E quando ainda tava um pouco escurinho a gente sai pra apanhar, ai ficava até meio dia e uma hora, ai eu com a mamãe apanhava 30 paneiro, só eu com ela. Eu subiu e ela ajeitava lá em baixo.”...“só era no mato, tinha muito. A gente começava em agosto, ia setembro, outubro, novembro, dezembro e janeiro. Ai terminava, ai ia lá por safra dava dois mil, dois mil e duzentos, ai no menos que dava era mil e oitocentos, quando tirava pouco açaí. Ai quando acabava a safra a gente ia trabalhar na roça, ia tirar milho e mandioca. Ai quando era safra trabalhava nos dois.”8

O trabalho no interior consiste em uma relação de conhecimento da natureza, tanto

de atividades ligadas ao açaí, como de outras possam subsidiam o sustento das populações

ribeirinhas da Amazônia. A interação com atividades complementares se desenvolve pelo

fato do período da safra, das peculiaridades da natureza, em que o período de coleta do fruto

é determinado pela natureza, cujos hábitos e serviços dessas populações estão intimamente

ligados. É necessário conhecer os períodos de abundancia e de falta do açaí. É o período no

qual “a gente tirava açaí mais em julho, quando era a safra forte, é o período que dá muito

açaí” 9

Com o aparecimento da exportação do açaí, novos agentes se estabelecem nessa

profissão, ocasionando mudanças na relação com natureza, introduzindo e aperfeiçoando o

plantio do fruto, e o aparecimento de novos sujeitos. Hoje tem muitas associações e empresas que já têm seus terrenos de plantio do açaí, com sua plantação certinha, plantando os açaizeiros todos em ordem né? Dando uma distância de um açaizeiro para o outro. Mas também existem por ai nus interiores muitos açaizeiros que é dentro do mato, que não é uma plantação padrão. 10

A Embrapa em seu relatório, “Sistema de Produção” (2005) coloca que a maior

concentração natural do fruto do açaizeiro ocorre em áreas de várzeas e igapós do estuário

amazônico, sendo estimada em 1 milhão de hectares e, de forma mais rara, em florestas de

terra firme. A produção de frutos, que provinha quase que exclusivamente do extrativismo, a

partir da década de 1990, passou a ser obtida também de açaizais nativos manejados e de

cultivos realizados em áreas de várzea e de terra firme, em sistemas solteiros e consorciados.

Entretanto, essa expansão ocorreu com uso de sementes de origem genética desconhecida,

resultando em plantios heterogêneos.

Não podemos esquecer que tais transformações para aumentar a qualidade e a

produtividade do açaí, alia-se ao fato do mercado está se ampliando, fazendo-se necessário

uma produção intensiva, independente do período do ano, a partir da utilização de

8 João Ribeiro, 74 anos, plantador ou dono do terreno. Entrevista: 30/10/11. 9 Idem. 10 Idem.

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tecnologias que são inseridas para atender ao grande capital, em que empresas perceberam

no açaí, um produto lucrativo, não só no para o mercado local, mas também para a

exportação nacional e internacional. Modificando os modos de produção e as relações dos

diversos sujeitos que relacionam com as atividades ligadas ao açaí.

De trabalho familiar a indústria de exportação

A coleta de frutos e raízes constitui uma das mais primitivas maneiras de extração

dos meios de subsistência do homem. No entanto, essa atividade, chamada de extrativismo

ainda é praticada em nosso Estado. O Extrativismo corresponde à coleta de produtos

retirados da natureza, uma atividade que por muito tempo foi à única fonte de renda de

famílias inteiras pelo interior do Estado do Pará

Devemos compreender que o trabalho familiar extrativista, principalmente

relacionado à atividade do açaí, se constitui como parte fundamental da cultura das

populações locais, que exercem relação íntima com a natureza. Não podemos esquecer que

além de comercializar seus produtos, essas populações fazem uso, do consumo, deste

produto que é retirado da natureza, fazendo parte do hábito alimentar deste povo.

O trabalho com açaí, pelas ilhas no interior, envolve a participação de toda a família.

São eles os responsáveis pela plantação, coleta, comercialização e o preparo do suco para o

consumo familiar. Um trabalho que começa cedo, nas primeiras horas da manhã, onde os

homens, pais e filhos, têm o papel primordial de coleta dos frutos; são eles que saem em

busca do fruto “ia só eu e o papai pro mato apanhar o açaí. Quando ainda tava um pouco

escurinho, a gente sai pra apanhar e ai ficava até meio dia e uma hora, ai eu com ele

apanhava 30 paneiros. Eu subia e ele ajeitava lá em baixo”.11 Um trabalho que começa cedo, e

normalmente só termina no fim da manhã, como é rememorado “Os pequenos (filhos) que

me ajudavam. Ai a gente ia de manhã cedinho apanhar, e quando era umas 11 horas

terminava de apanhar. Ai depois a gente tirava e colocava tudo no paneiro pra botar o açaí

pra embarcar”.12

A matéria do Jornal Diário do Pará do dia 09/06/2004, “Crianças trabalham na

colheita”, apresenta essa característica peculiar do trabalho familiar com Açaí no interior,

apontando a participação freqüente das crianças na produção das famílias ribeirinhas, uma

característica fundamental deste trabalho. Na Ilha do Marajó é comum os filhos de

produtores da população ribeirinha ajudar os pais na pesca e na colheita de Açaí, entre

outras tarefas consideradas por eles familiares13. Os filhos participam neste meio, onde

muitos são responsáveis por subirem e coletarem os frutos, que servirão tanto para o

consumo, como para a comercialização. Para desenvolver tal função é necessário conhecer os

frutos adequados a serem retirados e saber se eles estão suficientemente maduros. Mas não

é qualquer pessoa que consegue alcançar o topo das árvores e retirar o açaí. “Tem que saber

subir na árvore, também escolher o açaí bom que vai tirar. Ai a gente sobe com a peçonha

11 João Serrão Carneiro, 69 anos, dono de terreno. Entrevista: 14 /09/11. 12 João Ribeiro, 74 anos, plantador ou dono do terreno. Entrevista: 30/10/11. 13 “Crianças trabalham na colheita”. Diário do Pará. Caderno Belém, p. 8, 09/06/04.

História e Memória: Os trabalhadores do Açaí

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para ajudar, depois chega lá em cima a gente corta e desce escorregando, e depois põem no

paneiro”. 14

Os apanhadores são principalmente as crianças e jovens, que têm a habilidade de

subir até o topo dos açaizeiros, são eles que detêm as condições ideais para fazer a coleta dos

frutos. “Se eu não subir ai, o açaí vai ficar ai em cima, os açaizais são altos e finos pra alguém

mais gordo subir, e ninguém vai querer ficar entrando ai no mato para apanhar, então se não

é agente não vai ter outro. Tudo começa aqui, no plantar e no tirar o açaí”. 15

O porte físico, tamanho e o peso; são algumas das características necessárias para

auxiliar um bom apanhador na coleta dos frutos. Por isso as crianças e adolescente são os

principais responsáveis por exercer estas funções.

MUDANÇAS NO MUNDO DO TRABALHO: MODERNIZAÇÃO DAS ESTRUTURAS

Padronização das plantações de Açaí vem ocorrendo como um mecanismo de

melhor aproveitamento e facilitação para coleta dos frutos, possibilitando uma dinâmica e o

aumento da produção. Um plantio com um padrão de organização desenvolvido passa a fazer

parte do universo dos trabalhadores de Açaí. Associações e Empresas se fortalecem na busca

de alcançarem maior lucratividade, permitindo uma otimização dos recursos da natureza,

neste caso, o Açaí.

Percebe-se através de nossas fontes, o aumento das plantações organizadas, onde

terrenos são adquiridos e utilizados como plantações de açaizeiros, facilitando o manejo do

fruto “Hoje tem muitas associações e empresas que já tem seus terrenos de plantio do açaí,

com sua plantação certinha, plantando os açaizeiros todos em ordem né? Dando uma

distancia de um açaizeiro para o outro” 16.

Com a modernização da produção, foi possibilitada uma nova forma de exploração,

em que uma indústria passa a controlar o processo extrativista, se apropriando de uma

atividade caracterizada por um trabalho familiar. A exportação assume papel relevante para

que a atividade do açaí se modernize, alguns procedimentos são modificados e

aperfeiçoados, beneficiando os novos agentes na exploração do açaí.

A safra que determina o período de falta ou não do açaí na feira, passa a ser

controlada pela tecnologia, mesmo que limitada a alguns grupos, como coloca a matéria do

Jornal Diário do Pará, “Tecnologia permite duas safras ao ano”, do dia (01/03/00), que chama

atenção para modernização da produção com a introdução de tecnologia, em que duas safras

do açaí são estabelecidas, mostrando um aperfeiçoamento das técnicas de manejo,

provocando uma verdadeira revolução no processo de produção do fruto do açaí. A

tecnologia passa a interferir neste processo de produção do fruto, cuja natureza era fator

determinante para o provento deste. As tecnologias possibilitaram a alguns grupos,

14 Adriano Gaspar Vieira (Chico), 20 anos, apanhador. Entrevista 30/10/11. 15 Idem. 16 João Ribeiro, 74 anos, plantador ou dono do terreno. Entrevista 30/10/11.

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empresários, associações e empresas de exportação, que investem em tecnologia e pesquisa,

dobrarem sua produção.

Esse processo de mudança, no qual esses trabalhadores identificam um sentimento

de perda de seu espaço social e de seu trabalho, por uma nova lógica de mercado que se

coloca. Keith Tomaz (2000) através de seu trabalho, nos ajuda a compreender essas

mudanças, afirmando que há um sentimento de perda do homem sobre o meio natural,

através de um olhar atento sobre o processo de exploração da natureza e da relação dos

homens com seu espaço. Aponta que a natureza simboliza a existência continua da

comunidade, seu habitat de trabalho e socialização, é nesse espaço que expressa o modo de

vida e as especificidades de seu trabalho que é posto em pratica.

Muitas mudanças também são percebidas em relação aos procedimentos de pós-

colheita, onde os peconheiros faziam a debulha dos frutos quase que exclusivamente em

paneiros. Passa a ser introduzidos neste processo as razas ou basquetas de plásticos para

fazer o acondicionamento dos frutos, caixas que facilitam a higienização, sendo mais

duráveis, além de proteger os frutos contra danos mecânicos, tão comuns nos frutos do

açaizeiro quando acondicionados em cestos ou paneiros, causado pelo empilhamento desses

durante o transporte aos centros consumidores. Possibilita a maximização do tempo e

facilitação no transporte, como percebemos nas imagens acima.

Imagem 1:

Imagem 2:

Mudança na própria logística de retirada da produção do açaí dos terrenos pelo

interior tem apresentado mudanças significativas, os espaços têm sido desenvolvidos para

retirada em grande escala do fruto, viabilizar o tempo e o modo de retirada ganha destaque,

História e Memória: Os trabalhadores do Açaí

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fotos da Empresa Expresso-açaí17, nos ajuda a perceber a significativa estrutura destinada a

facilitar a comercialização do açaí.

Imagem 3:

Imagem 4:

O açaí deixa de ser uma atividade ligada exclusivamente em área de várzea, onde o

extrativismo se desenrolava e passa, com a introdução de modernidade, a ser cultivável em

área de terra firme, como coloca matéria do jornal Diário do Pará de 19/11/04 “Açaí

cultivável em terra firme”, sendo um dos pontos preponderante para estas mudanças, o fato

do crescimento da bebida para outros Estados.

A produção passa a ser exercida em padrões de grande escala, voltadas para atender

principalmente um mercado externo, eixos sul-sudeste e o exterior, ganhando significados de

indústria, cujos novos agentes passam a padronizar suas plantações, buscam através da

modernização de técnicas de plantio aumentar sua lucratividade. Assim o processo de

exploração de uma atividade que estava intimamente ligada à subsistência dos povos

ameríndios, sofre mudanças intensas. Pois, passaram a ser exercidos pelas indústrias de

exportação do fruto, por mais que ainda coexistam as duas técnicas de exploração do açaí,

extrativista e padronizada, o comércio do fruto do açaí ultrapassa as barreiras geográficas e

regionais, ganhando espaços em prateleiras de supermercados.

Para melhor compreendermos a comercialização do fruto, vale à pena adentrarmos no

espaço de sociabilização, de comercialização e de conhecimento, a feira do açaí. É lá onde boa

parte das trocas e dos saberes é posto em prática.

O COTIDIANO NA FEIRA: A FEIRA DESPERTA QUANDO A CIDADE ADORMECE:

Enquanto a maioria da cidade dorme, os trabalhadores da Feira do açaí, no ver-o-peso, estão em plena atividade, à

17 Esta empresa faz parte de um pequeno levantamento feito durante o desenrolar da monografia 2011-2012.

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movimentação diária começa por volta das 21h, enquanto chegam os barcos cheios de paneiros de açaí trazidos das ilhas próximas a Belém. As 8h, quando a maioria das pessoas está indo para emprego, os trabalhadores da feira voltam pra casa. 18

Essa descrição do cotidiano da feira do açaí, publicada em nota proporciona

atentarmos para uma feira incomum em relação às demais feiras de nossa cidade, uma feira

que funciona na penumbra, simplesmente com as luzes dos poucos postes com seus

refletores, que não dão conta de iluminar a totalidade dos pontos onde a comercialização do

açaí se desenvolve, sendo necessária ajuda da lua para alcançar esses pontos remotos cuja

iluminação não chega, e que vai se finalizando aos primeiros raios de sol. Porém é

importante destacarmos e problematizarmos, apontando a diversidade de sujeitos históricos

que fazem parte dessa história dos trabalhadores, que se relacionam com atividade do açaí,

desenvolvida no cotidiano da cidade de Belém.

A comercialização do açaí se faz por diferentes agentes nesta feira, passando pelas

mãos dos produtores, peconheiros, atravessadores, marreteiros, compradores, carregadores,

freteiros, maquineiros. Sendo os maquineiros os responsáveis por vender em seus “pontos

de açaí” espalhados pela cidade, mais conhecidas como “barracas”, com suas bandeiras

vermelhas que fazem parte da paisagem da cidade, até chegar às mãos dos consumidores, em

suas casas, tantos pelos inúmeros pontos de açaí espalhados pelas periferias de Belém, como

supermercados e pontos modernizados em bairros nobres em que se estabelecem

atualmente a venda do fruto.

A feira para maior parte dos trabalhadores, como já foi dito, começa nas primeiras

horas do dia, de madrugada, ou na noite anterior, e só irá terminar nos primeiros raios

solares do dia seguinte. Onde vários trabalhadores fazem o percurso, casa – feira - casa,

cotidianamente, desenvolvendo suas profissões ao longo do ano, neste grande e complexo

entreposto comercial.

É na feira do açaí que o fruto é descarregado e vendido, chegando pelos rios,

abastecendo o comércio local da cidade, um ambiente onde todos os trabalhadores

envolvidos na comercialização do produto vivem o “corre-corre” na busca de estabelecerem

as melhores estratégias para efetuação da venda e compra do açaí.. Nós chega quase sempre umas 10h da noite e só vai embora pra casa lá pelas 9h da manhã. É um trabalho duro, não é fácil, tem que vim cedo e esperar pra comprar o melhor açaí e depois pra revender pro pessoal (maquineiros) aqui na feira. Passo a noite inteira por aqui, não tem feriado, é sete dias na semana, todos os meses do ano. 19

É nesse ambiente atípico das demais feiras, que os trabalhadores se reúnem para

estabelecer um dos primeiros pontos de comercialização do fruto na cidade, um ambiente

que faz parte da identidade cultural e social desses trabalhadores, por mais que existam

outros portos na cidade de Belém onde as embarcações atracam para fazer o comércio do

18 “Feira Desperta quando a cidade adormece”. Diário do Pará. Caderno cidade, 22/03/04. 19 Antônio Serrão, 48 anos, marreteiro. Entrevista em 18/08/11.

História e Memória: Os trabalhadores do Açaí

Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.

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fruto20. É na feira do açaí, localizada no complexo do Ver-o-Peso, que este comércio é mais

intenso, onde dezenas de trabalhadores desenvolvem as especificidades de suas profissões.

COMERCIALIZAÇÃO NA FEIRA DO AÇAÍ: OS MARRETEIROS. 21 A profissão de marreteiro22 na feira do açaí, mais uma das inúmeras profissões que interage

na comercialização do fruto do açaí, desenvolvida e desenrolada no dia a dia, na pedra,

comumente conhecida entre os trabalhadores que se relacionam com esta atividade,

caracterizada pelo ato de “virar” e comercializar o fruto do açaizeiro nas calçadas e

paralelepípedos chão da feira, é uma profissão que necessita de extremo conhecimento, de

prática, de uma saber que não é institucionalizado, que não se aprende nas salas de aula, mas

nas trocas de experiências de quem já desenvolve ou conhece os caminhos, as peculiaridades

das relações que são necessárias para o estabelecimento do comércio do açaí, desde a

relação com os donos de terreno, atravessadores, carregadores e batedores. Um universo de

trabalho cercado por suas particularidades, cuja memória destes trabalhadores serve de

base para o entendimento desta pesquisa, uma historia social do trabalho, que busca

entender e compreender as particularidades de uma profissão onde um novo agente se fez

presente, a exportação do açaí, interferindo em uma lógica de comércio e possibilitando

novas relações e estratégias entre os trabalhadores.

Entender e conhecer a complexidade do cotidiano dos trabalhadores que se

relacionam com a comercialização do fruto do açaí só se faz possível graças a uma pesquisa

de campo, com contato direto, com a aproximação das fontes, buscando compreender como

se desenvolve tais profissões e os mecanismos utilizados por seus agentes no cotidiano.

DESENVOLVENDO O TRABALHO NA PEDRA COMO MARRETEIRO.

Mas como já foi dito “o trabalho na feira não é fácil” 23, pois é dessa maneira que os

inúmeros trabalhadores de açaí se referem ao cotidiano desta atividade. Já que é um trabalho

que envolve a relação com pessoas, pessoas desconhecidas e pessoas íntimas “os parentes”,

que são os fregueses, irmãos e companheiros de profissão conhecidos um dos outros no

cotidiano da feira. Um trabalho que encontra-se enraizado na cultura dos trabalhadores, que

faz parte da vida, do relógio biológico e da relação social que se constrói no dia a dia. “(...) o

20 Em Belém, existem mais três locais onde é comercializado o açaí: Porto da palha, porto de Icoaraci e o porto do açaí. 21 Nesse artigo, escolhemos apenas um grupo de trabalhadores (o dos marreteiros) para esmiuçarmos algumas de suas habilidades, estratégias e conhecimentos existentes nas suas atividades em seu cotidiano da feira. 22 Segundo o Dicionário Bueno (2007), marreteiro refere-se a um mascate; vendedor ambulante, que em algumas regiões é o mesmo que camelôs ou comerciante ambulante. Talvez essa definição possa passar a ideia de um trabalhador ou uma profissão que não necessita de um saber apurado e com pouca precisão ou preocupação estética. 23 Idem.

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cotidiano da feira começa nas primeiras horas da manhã, normalmente quando a maioria das

pessoas ainda dorme a feira levanta para mais um dia de trabalho” 24.

A feira representa um espaço de trabalho, de disputas e acordos. Um local marcado

pela diversidade de sujeitos que trabalham nela, das estratégias que cada um encontra para

melhor se adequar e estabelecer sua comercialização. Conhecer o cotidiano faz parte

integrante de quem necessita vender e comercializar o açaí, são através dessas estratégias

que os marreteiros encontram a maneira mais fácil de interagirem com os compradores de

açaí para revenderem seus produtos na feira, mais especificamente “na pedra” 25.

É no cotidiano da feira que se aprende como se portar e desenvolver sua atividade,

sendo um espaço onde o ser social característico dessa profissão é construído. Nos

ensinamentos do pai, do amigo ou alguém que instruí um marreteiro nesta profissão que se

vai construído o saber e o conhecer da feira. Assim é na experiência do cotidiano que um

bom marreteiro sabe como definir o preço de seu produto, reconhece o açaí bom que os

atravessadores e donos de terrenos têm a lhe oferecerem, distinguir a procedência do açaí

somente no olhar, reconhecendo qual é a origem, se ele tem ou dará um rendimento bom aos

batedores se comprarem seu açaí, que se adapta a feira no inverno ou verão, agüentando as

reclamações criando estratégias para melhor explorar e lucrar na comercialização do açaí.

Os marreteiros acordam cedo para a espera do açaí que vem para ser

comercializado, depois fazem a arrumação do açaí na pedra e ajeitam da melhor forma

possível para ser vendido aos batedores. Todos nessa profissão devem estar atentos para as

peculiaridades de uma feira que não para, em que os marreteiros sempre devem estar

cuidadosos para não serem “trapaceados” nas vendas do fruto, sendo necessário

constantemente criarem suas estratégias na conquista de sua freguesia. Um trabalho que se

modifica conforme a época, período da safra ou do inverno, na falta do açaí. Pois no inverno é

necessário virar a noite para tentar ter o açaí para efetuar o comércio com os batedores,

sendo esse vim cedo para esperá-lo, comprá-lo, escolhe-lo e ser finalmente comercializado

junto aos batedores, um mecanismo em períodos de falta do açaí que os marreteiros

desempenham para efetuarem e desenvolverem sua profissão na pedra.

O labutar de marreteiros está muito relacionado ao período que a natureza

estabelece como safra do Açaí e as peculiaridades do cotidiano da feira. No período do verão,

onde a demanda de açaí é maior, os marreteiros chegam ao início da madrugada, sempre por

volta das 2h, buscando estabelecer as relações com os atravessadores que chegam em seus

barcos e revendem o açaí encomendado ou fechando as novas transações com outros

marreteiros. Criar um laço de amizade é uma das estratégias encontradas entre os

trabalhadores no sentido de garantir o açaí para venda na pedra. São essas relações que

podem possibilitar uma freguesia entre atravessadores e marreteiros, e estes com os

batedores no período do inverno.

No período de falta do açaí na feira, quando a quantidade do fruto é menor os

trabalhadores buscam estabelecer novas estratégias para definição do preço e aquisição do

24 “Feira Desperta quando a cidade adormece”. Diário do Pará. Caderno Cidade, 22/03/04. 25 A citação “na pedra” faz referencia ao local de trabalho onde são comercializados os frutos na feira.

História e Memória: Os trabalhadores do Açaí

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açaí. Para garantir o açaí no inverno, os trabalhadores modificam seu horário de trabalho,

buscam chegar mais cedo, quase sempre “na virada da noite”, isso quer dizer no início da

noite anterior, quase sempre as 21h ou 22h, virando a madrugada até ás 8 ou 9 horas do dia

seguinte. Essa mudança de horário significa a possibilidade de encontrar o açaí na falta,

antecedendo-se a outros que não conhecem direito esse mecanismo, para melhor se

adequarem ao momento e a relação com a natureza, período da safra ou da falta os

marreteiros desenvolvem suas profissões no ambiente da feira.

É necessário conhecer as “artemanhas”, ou seja, as estratégias que cada comprador e

vendedor se utilizam para adquirir ou vender o fruto. Tem que saber lhe dar com as pessoas

e entender de contas, ficarem atentos e não se descuidarem com pessoas que queiram tirar

proveito. Um trabalho que só termina para alguns no fim da manhã, depois que os

pagamentos são feitos. Trata-se de um trabalho que necessita de disposição e conhecimento,

os trabalhadores, trocam o dia pela noite, sempre atentos para variação dos preços na feira,

colocando seus saberes aprova no momento da negociação para aproveitarem a melhor

oportunidade para efetuarem a compra e a venda do açaí.

TORNANDO-SE UM MARRETEIRO

Tornar-se um marreteiro e desenvolver essa profissão na feira do açaí, normalmente

se dá por intermédio de um parente, conhecido ou amigo, alguém que já conhece os

caminhos e tem um saber da profissão, uma pessoa que já se encontra no ramo e conhece o

cotidiano das relações que são necessárias para o estabelecimento da profissão na feira. É

alguém que tem a experiência e conhece o universo das relações comerciais, que possibilita o

ingressar através dos ensinamentos para introdução de um novo marreteiro. Eu comecei a trabalhar aqui na feira com meu pai, seu Betinho, desde que me lembro ele trabalhava com a venda de açaí aqui na feira, ele era de ponta de pedra e já trabalhava mexendo com açaí aqui na feira. Mas eu desde garoto vinha pra cá com ele, ai como eu já tava habituado a trabalhar aqui na feira, eu logo também fiquei trabalhando. 26

A pessoa ou trabalhador quando inicia no métier da profissão de marreteiro aprende

as peculiaridades de como se relacionar, de se portar, do cotidiano, possibilitando ao novo

ingressante desta profissão (aprendiz), um entendimento do universo dos trabalhadores na

feira, cheia de especificidades e artimanhas na relação com o público que é necessário para o

bom andamento da efetuação do comércio. Sendo preponderante uma pessoa que já conheça

os caminhos e que possa possibilitar a introdução do aprendiz nessa profissão e ao mundo

da feira. “(...) Comecei a vim com meu sogro e vim aprender com ele e como se desenvolve,

como devemos nos comportar e se dá com o pessoal aqui27”.

Outro ponto que se destaca, além é claro, da introdução por intermédio de um a

pessoa próxima e que já tem uma experiência e conhece os caminhos da feira, é o fato dessa

26 Luís Trindade Matias, 58 anos, marreteiro. Entrevista 18/08/11. 27 João Ribeiro, 74 anos, plantador ou dono do terreno. Entrevista 30/10/11.

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profissão estar enraizada no cotidiano, fazendo parte integral na formação desses agentes ao

longo do tempo, culturalmente e de seu dia a dia. Normalmente a relação com atividade do

açaí é oriunda de famílias do interior, onde estas já exercem uma relação, que facilitam a

introdução neste ramo, muitas das vezes seguindo os passos do pai, uma profissão passada

de pai para filho, onde os familiares aprendem e continuam desenvolvendo as profissões que

seus pais desempenhavam. Eu comecei ajudando meu pai Orlando, acho que eu tinha uns 15 anos nessa época. Ele já fazia esse trabalho ha muito tempo, então como tinha época que dava muito açaí, ai eu vinha para ajudar ele, no começo eu vinha só para reparar o açaí, depois com o tempo eu também já vendia, ele foi me ensinando como comprar um açaí bom do pessoal do interior, pra que a gente possa vender uma coisa boa né? Porque os maquineiros são muito exigentes com o açaí, e temos que fazer a nossa freguesia também. Ai com o tempo eu fui pegando a prática da feira e tô até hoje

aqui. 28

Os filhos de marreteiros, que crescem neste ambiente acabam dando

prosseguimento às profissões do país, a observação e os ensinamentos transmitidos pelo

patriarca da família facilitam e subsidiam os filhos e os aprendizes desta função no

conhecimento do universo da feira.

Observamos através de nossos interlocutores, os testemunhos, que é providencial

e/ou necessário conhecer sobre o que é a feira, as relações que se estabelecem entre os

diferentes sujeitos no dia a dia, sendo necessário para o desempenho desta profissão. O fato

de já ter exercido uma atividade na feira, conhecer os caminho para desempenhar uma boa

atividade, ter os contatos e desenvolver uma boa relação com esse universo, facilitaram para

o Sr. Álvaro Santos, deixar de ser atravessador e tornar-se marreteiro, o saber que carrega

com a experiência do dia a dia ajudou-o a ingressar e desenvolver a profissão de marreteiro

na feira. Eu comecei a trabalhar como marreteiro foi por que a gente trazia nosso açaí e entregava ele pra outro marreteiro daqui da feira, mais o detalhe é que eu achei que não dá, por que a gente já pega o açaí caro lá, ai gente trás de lá e têm despesa com frete, ai traz e entrega pro marreteiro e o dinheiro que a gente gasta fica tudo na mão do marreteiro. Ai a gente vendendo ai se sai melhor, ai um e dois reais que a gente dá na rasa pro marreteiro fica pra gente, ai eu achei de modo de trabalhar eu mesmo na venda do meu açaí. 29

A mudança de uma determinada profissão para a de marreteiro é comum, pois as

pessoas acreditam que desempenhar a função de marreteiro possibilitaria ascender nos

lucros, adquirir maior renda e ser bem sucedido. Mas é necessário já ter experiência, sobre a

feira, para facilitar o desenvolver das relações e das estratégias no jogo da comercialização

do açaí. Bem, eu comecei aqui mesmo foi vindo comprar açaí, só que depois eu também resolvi vender. Como eu vi que dava para ganhar um dinheiro pra melhorar a

28 Álvaro Santos, 47 anos, marreteiro. Entrevista 18/08/11. 29 Idem.

História e Memória: Os trabalhadores do Açaí

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situação lá em casa decidi também entrar nessa. Como eu já tinha um dinheiro e conhecia já o pessoal por aqui eu também comecei a trabalhar. 30

Tanto pelo fato de buscar melhorar na estrutura ou como ser introduzido mediante

alguém que já conhece a profissão, são possibilidades que permitem a introdução de um

novo agente como marreteiro na atividade do açaí, ambas as maneiras de um novo

marreteiro ser introduzido possibilitam averiguar que para o desempenho da função é

necessário conhecer ou ter o saber especifico exigido pela profissão, que possibilite ao

marreteiro comprar o açaí, se adequar a condições do dia a dia na feira, estabelecendo o

preço do açaí para ser comercializado.

OS MARRETEIROS E A DEFINIÇÃO DO PREÇO DO AÇAÍ.

A definição do preço do açaí que é comercializado faz parte das habilidades que um

marreteiro deve ter em sua profissão. Não existe um preço definido ou pré-estabelecido do

açaí na feira. Ele é defino no cotidiano desta, conforme a oferta e a procura. Se tiver muito

açaí é um preço, se tem pouco é outro. Essa variação sofre a influência e está sujeita a

mudanças conforme o dia, dependendo da quantidade do produto na feira e o período no

qual estão sendo estabelecidas as comercializações, no inverno ou verão, na safra ou na falta

do açaí. O Açaí e que nem bolsa de valores né? Tu vê ai que têm dia que têm pouco açaí, o cara acerta no preço e vende mais caro, ai no dia que tu vê que têm mais açaí, o cara põem pra vender logo cedo pra vê que ganha um pouquinho, por que depois quando amanhecer vai ter muito açaí na pedra e o preço fica baixo, por que tu tens que vender, não têm onde guardar. É assim que funciona aqui no ver-o-peso. 31

Para o estabelecimento deste preço no dia a dia é necessário que o marreteiro tenha

conhecimento do que é a feira, sendo através da observação deste cotidiano que os

trabalhadores estabelecem um preço, podendo variar durante o dia de venda conforme a

quantidade de açaí, sendo necessária sempre atenção para a quantidade, para os barcos que

chegam e de onde chegam, pela quantidade de vendas na feira, demanda de compradores e

por fim, um dos pontos mais importante, a qualidade do açaí ou a produtividade que o açaí

pode oferecer ou render.

Outro ponto que também influencia nesta taxação do preço é a questão do valor pelo

qual é adquirido o açaí dos atravessadores ou donos de terreno, que são acrescentadas pelas

dividas de carreto, pelo frete com os atravessadores, sendo incomum ou improvável, ter um

preço certo para o dia posterior. As estratégias dos trabalhadores para definição do preço do

açaí é constante, necessitando atenção entre esses trabalhadores para quantidade de açaí

que a feira apresenta, haja vista que não existe um preço estabelecido ou estipulado. Os

marreteiros necessitam mudar de preço conforme a quantidade do produto. “Eu vendo

mesmo é para os maquineiro, e só vendo para exportação quando dá “tampa”, quando a

30 Antônio José, 56 anos, marreteiro. Entrevista em 18/08/11. 31 Idem.

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gente é obrigado a vender o açaí, se não o pessoal vai vender, e o meu açaí vai ficando ai até

mais tarde”. 32

Quando ao final do dia de trabalho, e a quantidade de açaí na feira ainda é grande,

existindo sobra de seus produtos, o excedente, depois que grande parte dos compradores já

efetuou sua compra, os marreteiros são obrigados a fazer uso de sua experiência para não

ficarem com prejuízos. Eles começam a baixar o preço do fruto do açaí, objetivando que os

batedores aumentem a quantidade de açaí comprado, levando além do que normalmente é

adquirido em seu dia a dia. Essa baixa no preço, quando a quantidade de açaí ainda é muito

grande para ser comercializado e seus compradores, batedores, já efetuaram suas compras é

conhecido entre os trabalhadores na feira como “tampa”.

Observa-se nesta pesquisa que existe um consenso entre os entrevistados em

relação ao preço, de que é improvável a definição de um preço fixo. Pois ele é inconstante e

está sujeito a variações conforme a procura e oferta do produto na feira. Sendo necessárias

atenção e conhecimento da feira para que possa conforme as variações que acontece nela,

estabelecer um preço que não fique além e nem aquém do preço médio no momento.

Por mais que transparece uma definição simplista, a lei da oferta e da procura é

amplamente exercida na feira, possibilitando uma constante variação do preço conforme a

quantidade de açaí disponível. Variando e dependo conforme o tipo de açaí, a qualidade do

produto e o período do ano que essa comercialização é exercida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos neste breve artigo, que o universo de trabalho dos trabalhadores do

açaí tem suas especificidades. Entender as transformações de nosso tempo nos permite

compreender que a história de trabalho, luta e de labuta desses sujeitos é diversa. Buscamos

através das memórias dos entrevistados desenvolver uma discussão historiográfica que

trabalhe a história do tempo presente, cuja memória nos permite compreender e entender

um passado/presente que se modifica. Dessa forma, principalmente as ideias de E. P.

Thompson e Pollack nos ajudaram a perceber que o campo da memória e do trabalho são

privilegiados para analisarmos os excluídos, dos marginalizados e das minorias, cuja história

oral ressalta a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das

culturas minoritárias e dominadas, se opõe à “memória oficial”. Desta maneira, foi através da

memória dos trabalhadores do açaí, que nos permitiu compreender a diversidade desse

universo de trabalho. A memória pra nós, não é simplesmente algo do passado, é um

fenômeno que traz em si um sentimento de continuidade e de coerência, seja ele processado

individualmente ou em grupo em reconstrução em si, tornando-se fator preponderante para

o entendimento do sentimento de identidade destes sujeitos. Memória está que me faz ser

reflexivo ao ponto de problematizar uma realidade cotidiana, de mudança, aonde meus país,

32 Antônio Serrão, 48 anos, marreteiro. Entrevista 18/08/11.

História e Memória: Os trabalhadores do Açaí

Fronteiras do Tempo, nº 5 – 2014.

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tios, primos e avós vivem um cotidiano de transformação em seus trabalhos diários, cujo

presente não lhes parece ser o mesmo de outrora.

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Resumo: Este trabalho versa sobre a história dos trabalhadores do açaí na Amazônia. Buscamos discutir as leituras que os trabalhadores do açaí fazem de seu espaço de trabalho (floresta, rio e a feira) e de suas relações, antes e depois da penetração de um novo sujeito neste mercado de trabalho, a exportação. Nesta apresentação discutimos o cotidiano, as estratégias e os saberes desenvolvidos por esses trabalhadores em suas relações de trabalho através de suas memórias. É importante destacar que nossa pesquisa visa reconstruir as experiências coletivas e individuais dos trabalhadores do açaí em suas praticas cotidianas. Dessa forma, utilizamos as ideias de E. P. Thompson para compreendermos e reconstruirmos a história da experiência de vida desses sujeitos em seu local de trabalho. Palavras-Chave: Trabalhadores do açaí, cotidiano, experiência. Abstract: This work focuses on the history of the workers of açaí in the Amazon. We discuss the readings that workers acai make your work space (forest, river and the trade) and their relationships before and after the penetration of a new subject in this job market, the export. In this presentation we discuss the everyday, strategies and knowledge developed by these workers in their working relationships through his memories. Importantly, our research aims to reconstruct the individual and collective experiences of açaí workers in their everyday practices. Thus, we use the ideas of E. P. Thompson to understand and reconstruct the story of the life experience of these individuals in your workplace. Keywords: Açaí Workers, daily life, experience