Upload
jakeline-pereira-nunes
View
225
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Translation theory
Citation preview
lvaro Kasuaki Fujihara
Equivalncia Tradutria e Significao
CURITIBA
2010
1
lvaro Kasuaki Fujihara
Equivalncia Tradutria e Significao
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Letras da Universidade
Federal do Paran como requisito parcial
para obteno do ttulo de Mestre em
Letras.
Orientador: Jos Borges Neto
Co-orientador: Mauricio Mendona Cardozo
CURITIBA
2010
2
Agradecimentos
Aos professores Jos Borges Neto e Mauricio Mendona Cardozo, por
terem aceitado me orientar ao longo deste trabalho.
Livy, pela ajuda com a reviso do texto final.
Aos amigos, pelo apoio (ou cobrana) durante o desenvolvimento algo
tortuoso do trabalho.
3
Resumo: Embora figure no quadro terico de diversos trabalhos, que por vezes
partem dela para definir traduo, a noo de equivalncia costuma receber
formulaes notadamente vagas. Alm disso, por vezes encontramos a noo
relacionada a uma postura normativa dentro dos estudos da traduo, tornando sua
produtividade no mbito dos Estudos da Traduo algo duvidosa. A despeito da falta
de clareza nos termos em que o conceito definido, dadas vertentes tericas (como o
Funcionalismo ou a Desconstruo) so categricos ao afirmar que no possvel
caracterizar a traduo em termos de relaes de equivalncia de qualquer tipo,
questionando a possibilidade de se estabelecer uma tal relao entre dois textos ou
pores de texto. Partindo de uma perspectiva essencialmente descritiva e de um
instrumental terico da Semntica da Teoria de Modelos, o presente trabalho pretende
analisar a possibilidade e a produtividade heurstica de um possvel entendimento da
noo de equivalncia, tratada em termos estritamente semnticos e verificar inclusive
as eventuais contribuies que o conceito pode dar ao entendimento do que significa
traduzir.
Palavras-chave: equivalncia; teoria da traduo, semntica, teoria de modelos, significao.
Abstract: Although used in the theoretical framework of many works - which often
start from it to define what translation is, the notion of equivalence commonly receive
very vague definitions. Moreover, we usually find the notion related to a normative
perspective on translation, making its productivity in the field somewhat doubtful. In
spite of the lack of clarity in the terms in which the concept is usually defined, some
theoretical frameworks (such as Functionalism or Deconstruction) are categorical in
stating that it is not possible to characterize translation in terms of relations of
equivalence of any kind, questioning the very possibility of establishing such a relation
between two texts or portions of text. Starting from an essentially descriptive
perspective and from a theoretical framework of Model-Theoretic Semantics, the
present work intends to analyze the possibility and the heuristic productivity of one
possible understanding of the notion of equivalence, treated in strictly semantic terms
and to verify the possible contributions the concept may give to the understanding of
what it means to translate.
Key-words: equivalence; translation theory; semantics; model theory; meaning.
4
5
Sumrio
Introduo...........................................................................................................6
1. Preliminares para um conceito de equivalncia tradutria............................17
1.1 Abordagens noo de equivalncia.....................................................17
1.1.1 Equivalncia formal versus equivalncia dinmica: duas orientaes
bsicas para o tradutor no modelo Nida...................................................18
1.1.2. Equivalncia textual e Correspondncia formal: equivalncia no modelo Catford.........................................................................................22 1.1.3. Uma abordagem descritiva da noo de equivalncia: o modelo Toury.........................................................................................................26
1.1.4. Traduzibilidade e equivalncia: o modelo Koller.............................33 1.1.4.1. Tipos e graus de equivalncia em Koller.................................38
1.2. Algumas crticas noo de equivalncia.............................................44
1.3 Tipos de Equivalncia.............................................................................49
2. Equivalncia Tradutria.................................................................................53
2.1 Equivalncia e Significao....................................................................53
2.2. Modelos de interpretao......................................................................72
2.3 Semntica e Pragmtica.........................................................................84
3. Semntica, Referncia e Condies de Verdade.......................................102
3.1. Mundos possveis e intensionalidade..................................................109
3.2 Traduo, Indeterminao e Significado..............................................114
4. Equivalncia Semntica..............................................................................126
4.1 Equivalncia semntica e pragmtica como relaes tradutrias........139
Concluso........................................................................................................144
Referncias Bibliogrficas...............................................................................147
6
Introduo
A discusso sobre equivalncia em traduo certamente uma das mais
longas e controversas na rea dos Estudos da Traduo. Utilizada como ponto
de partida de vrias teorias da traduo (notadamente teorias de base
lingstica, ainda que no exclusivamente, como veremos), a noo de
equivalncia foi objeto de crticas severas de vrios estudiosos da rea,
especialmente tericos de formao desconstrucionista e funcionalista. No
centro da discusso est a possibilidade de caracterizar traduo em termos de
relaes de equivalncia, bem como a possibilidade de dois termos possurem
o mesmo significado em lnguas diferentes. Enquanto os defensores da noo
de equivalncia a consideram a relao constitutiva da traduo, seus
opositores se apiam em um relativismo lingstico que afirma que a lngua
desempenha um papel crucial na construo de interpretaes da realidade e,
portanto, lnguas diferentes segmentariam a realidade de maneiras diferentes
(i.e. construiriam modelos diferentes dela), sendo impossvel haver o mesmo
significado em lnguas diferentes. Mais do que isso, a interpretao, entendida
como um processo de construo de significados, no poderia jamais encontrar
um mesmo resultado, nem mesmo quando comparadas as interpretaes de
indivduos falantes de uma mesma lngua, nem mesmo quando comparadas as
interpretaes de um mesmo indivduo em dois momentos diferentes. Alm
disso, a noo de equivalncia assume comumente um carter fortemente
normativo nas propostas em que ela figura, tornando-a alvo de repetidas
crticas nas ltimas dcadas.
Embora se inclua aqui um comentrio de algumas das propostas mais
conhecidas sobre a noo de equivalncia, um trabalho que procurasse
abordar de forma exaustiva a bibliografia sobre o tema deveria
necessariamente ser muito maior do que o espao aqui dedicado a esse
comentrio. Uma empreitada como essa certamente demandaria um trabalho
de muito mais flego e tomaria muito mais espao do que a extenso total
deste trabalho. Contudo, o objetivo da presente reflexo no uma anlise
exaustiva da bibliografia sobre o tema, nem uma anlise detalhada das crticas
feitas a cada um dos trabalhos que emprega uma ou outra noo de
7
equivalncia. Ainda que tratemos de todas essas abordagens sob o mesmo
rtulo, ela evidentemente assume um carter diferente em cada um dos
quadros tericos em que ela figura. Alm disso, uma das crticas mais
recorrentes s diversas formulaes do conceito de equivalncia seu carter
evasivo, muito mais pressuposto do que propriamente definido. Somem-se a
isso as diversas crticas de vertentes tericas mais recentes, que
declaradamente procuram romper com qualquer noo de equivalncia em
traduo, e o quadro resultante bastante desanimador para se abordar a
questo da equivalncia, seno como um tema para ser tratado em um
trabalho de muito mais flego do que este e talvez numa etapa acadmica
posterior.
A situao em que apresento este trabalho no poderia ser mais diferente,
e a proposta apresentada certamente dever soar como extremamente
pretensiosa. Pretendo aqui apresentar uma proposta de definio para o
conceito de equivalncia em traduo, partindo de um instrumental terico da
Semntica da Teoria de Modelos, bem como analisar algumas das
conseqncias tericas dessa proposta. A noo de equivalncia dever ser
apresentada como uma noo essencialmente descritiva e heuristicamente
produtiva. No faremos longas resenhas de outros trabalhos sobre
equivalncia, e certamente as leituras apresentadas aqui esto muito aqum
de abarcar o todo ou mesmo a maior parte das consideraes feitas sobre a
questo. Para agravar mais ainda a situao, essa discusso, alm de
extremamente longa (e cansativa, talvez alguns desejassem acrescentar), j foi
acusada de ser extremamente infrutfera, paralisando e consumindo esforos
de pesquisadores da rea, no devolvendo nada ou quase nada de til em
troca. Para uma parte razovel das vertentes tericas contemporneas, a
busca por equivalncias na traduo uma tarefa fadada ao fracasso, uma
impossibilidade. Por que ento insistir em retomar essa discusso,
especialmente quando o panorama to pouco convidativo?
A aposta na produtividade terica da noo de equivalncia parte da
intuio de que deve haver algo comum entre um original e uma traduo,
capaz de caracterizar a relao entre os dois textos como uma relao
tradutria. E talvez a produtividade da noo de equivalncia esteja justamente
na tentativa de encontrar esse algo. No se trata, claro, de procurar reafirmar
8
uma lgica que entende que a traduo o original em outra lngua, uma
mera troca de cdigos e nada mais, nem tampouco de desconsiderar as
inmeras diferenas entre original e traduo, necessariamente implicadas no
processo tradutrio. Mas, ainda que consideremos a traduo como um outro
texto, escrito em outra lngua e distante tanto temporal quanto culturalmente do
original, deve haver necessariamente algo partilhado entre original e traduo,
algo que permita identificar dado texto como traduo deste ou daquele texto.
No se trata de um postulado normativo, uma tentativa de afirmao de um
modo ou modos corretos ou ideais de traduo, ou de promover o apagamento
das diferenas entre original e traduo. Trata-se antes de entender que, ainda
que o tradutor disponha de uma quantidade virtualmente ilimitada de possveis
solues para qualquer problema de traduo, algumas opes no esto
disponveis. Ainda que o tradutor seja o autor do texto traduzido e como tal
desfrute de total liberdade para colocar o que quiser no papel, a depender das
suas escolhas, aquilo que ele faz pode no ser mais considerado traduo. Em
algum ponto num continuum de diferenas entre dois textos, ultrapassamos o
limite daquilo que consideramos como traduo e aquilo que consideramos
como intertextualidade, adaptao e demais tipos de produo textual. claro
que esse limite no facilmente travel, devendo certamente haver uma
penumbra entre aquilo que claramente traduo e aquilo que claramente no
o , um espao em que no claro se estamos no domnio da traduo ou no.
Mas, a despeito disso, em dados casos temos intuies bastante claras e
podemos afirmar com segurana que determinado texto ou no uma
traduo. Assim, embora possamos discutir se O Santo e a Porca de Ariano
Suassuna uma traduo da Aulularia plautina, dificilmente teramos dvidas
em afirmar que A Comdia da Marmita, traduo de Walter Medeiros da
comdia de Plauto, certamente uma traduo. De modo similar, dificilmente
pensaramos em considerar o catlogo da programao da TV a cabo como
uma traduo da comdia plautina. E talvez seja possvel caracterizar o que h
de comum entre dois textos e que permite identific-los como tradues em
termos de relaes de equivalncia.
Um risco inicial que se apresenta que uma tal caracterizao possa ser
muito estreita, acabando por deixar de fora determinados textos que, ainda que
no sejam prototipicamente tradues, ainda assim sejam amplamente
9
considerados como tradues. A noo de equivalncia neste trabalho no
deve ser entendida como um postulado de igualdade absoluta entre original e
traduo. Em princpio, considerar uma traduo como um texto autnomo (no
sentido de que ela lida muitas vezes sem nenhuma referncia ao original)
no exclui a possibilidade de abordar a traduo por meio de um instrumental
terico que inclua noes de equivalncia. Considerar a traduo como
recriao ou reescritura no necessariamente incompatvel com o conceito
de equivalncia em traduo, desde que no usemos um conceito muito
restrito de equivalncia. Se obtivermos sucesso nessa tarefa, talvez a noo de
equivalncia possa nos ajudar a evitar um outro risco, oposto a um conceito de
traduo muito estreito o de um conceito de traduo inclusivo demais.
necessrio distinguir entre o que de fato entendemos por traduo e outros
tipos de prticas textuais de reescritura ou recriao, como resumos, resenhas,
comentrios, etc.
Esse parece ser um risco a que se presta consideravelmente menos
ateno na rea dos Estudos da Traduo, e por vezes apenas o fato de um
dado objeto de estudo ser passvel de ser abordado por um referencial terico
da traduo parece ser o suficiente para que se considere um dado fenmeno
como tradutrio. H mesmo um movimento declarado de expanso do objeto
de estudo da rea nos ltimos anos. Mas, a despeito da produtividade de se
abordar um dado fenmeno por uma perspectiva terica calcada na traduo,
isso por si s no basta para que consideremos um fenmeno como tradutrio.
O fato de podermos explicar virtualmente qualquer comportamento por meio de
uma perspectiva astrolgica no garantia de que de fato os fatores
determinantes no comportamento em questo sejam de fato astrolgicos. No
h, claro, um meio mecnico e completamente objetivo de determinar quais
os fatores determinantes em um dado fenmeno ou que tipo de textos so de
fato tradues. Nem desejo advogar aqui uma forma inconteste e
completamente objetiva de caracterizao do que seja traduo. Mas me
parece desejvel que uma teoria, modelo ou reflexo sobre a natureza da
traduo, alm de no ser por demais exclusiva, tambm inclua um critrio que
exclua ao menos os casos que so claramente no tradutrios. Divergncias
sobre o limite entre o que deve ou no ser considerado como traduo so no
apenas esperadas, mas tambm absolutamente naturais, e fazem parte dos
10
desafios com que o pesquisador da rea tem de lidar. No obstante, uma boa
teoria ou modelo deve procurar caracterizar da forma mais precisa possvel o
fenmeno tradutrio, e isso significa, ao menos em alguma medida, identificar o
que h de caracterstico na traduo e que nos permite distinguir entre uma
relao tradutria e um outro tipo qualquer de relao intertextual. aqui onde
a noo de equivalncia tradutria pode fazer sua contribuio. Uma definio
suficientemente ampla e que ao mesmo tempo no seja inclusiva demais pode
nos ajudar a esclarecer com mais preciso o que significa traduzir.
Contudo, essa problemtica de demarcao entre fenmenos tradutrios
e no-tradutrios no chega a ser uma questo para a prtica ou a crtica de
traduo, e provavelmente nem mesmo para muitos tericos da rea. Afinal,
no temos nenhum problema em reconhecer uma traduo quando vemos uma,
e talvez essa discusso possa contribuir muito pouco para o desenvolvimento
da rea. No entanto, essa problemtica se coloca em decorrncia da
perspectiva adotada: uma perspectiva essencialmente terica, que procura
abordar a traduo enquanto fenmeno a ser explicado. Entender a traduo
dessa forma significa, dentre outras coisas, tambm explicitar esse tipo de
conhecimento intuitivo que temos a respeito da traduo. Embora de um ponto
de visto intuitivo no tenhamos problemas para identificar uma traduo, essas
intuies devem ser incorporadas e explicadas dentro de um quadro terico. O
presente trabalho parte do desejo de analisar e sistematizar esse tipo de
conhecimento implcito, e no parece de todo descabido entender que esse
tipo de abordagem se interessa por uma parte legtima do explanandum dos
Estudos da Traduo. As reflexes que como esta partem dessa perspectiva
podem no ser as mais produtivas para a prtica da traduo, a crtica ou o
modo como as tradues so recebidas, mas nem por isso so menos
legtimas.
Portanto, a perspectiva adotada ser uma perspectiva exclusivamente
terica da traduo. Isso significa que muito pouco, provavelmente nada, do
que possa ser dito neste trabalho v ter qualquer relevncia para o modo como
os tradutores traduzem, ou o modo como as tradues so recebidas por seu
pblico. A tarefa que nos colocamos analisar em que medida a proposta
particular para conceito de equivalncia semntica aqui esboada pode ser
produtiva como um dispositivo para esclarecer determinados aspectos do
11
fenmeno tradutrio. Assumiremos, ao longo deste trabalho, uma diviso entre
teoria e prtica tradutria, tratando as duas como coisas diferentes, ainda que
relacionadas. Essa diviso vai algo na contramo das tendncias
contemporneas na rea, e certamente est longe de ser ponto pacfico.
Contudo, apresentar uma justificativa para essa diviso demandaria, por si s,
um trabalho para isso, o que certamente no seria cabvel nos limites da
presente proposta. Assumiremos, ento, como pressuposto essa diviso,
principalmente por acreditar que ela poder ajudar a tornar mais claro o ponto
que desejamos analisar.
Ainda que aposte na produtividade da noo de equivalncia e na
possibilidade de caracterizao do fenmeno tradutrio em termos de relaes
de equivalncia, a proposta deste trabalho consideravelmente mais restrita e
ficar certamente muito longe de uma caracterizao completa das relaes de
equivalncia possveis e, portanto, no ser suficiente para separar de forma
eficiente fenmenos tradutrios de fenmenos no tradutrios. Embora possa
soar completamente pretensiosa (e talvez o seja), a proposta deste trabalho
consideravelmente mais modesta. Antes de enveredar por todas as intricadas
discusses sobre a noo de equivalncia em todos os mbitos possveis nos
Estudos da Traduo, ou de propor um modelo que pretenda dar conta de
explicar os diversos aspectos envolvidos no processo de traduo, nos
restringiremos a sondar os aspectos semnticos envolvidos na significao e
seu papel na traduo. Acreditamos que do instrumental terico escolhido
que se pode esperar alguma originalidade da contribuio oferecida, se que
se pode esperar alguma. Partindo de um referencial terico baseado na
Semntica da Teoria de Modelos, este trabalho se dedica a esboar uma
resposta para a pergunta sobre se possvel que duas palavras, frases ou
textos tenham o mesmo significado em lnguas diferentes, uma pergunta que
dever ser relativizada no decorrer da reflexo desenvolvida. Embora a rea
dos Estudos da Traduo tenha eventualmente recebido algumas contribuies
de algumas subreas da Lingstica, como a Lingstica Contrastiva e a
Lingstica Textual, e alguns autores tenham assimilado reflexes de autores
da rea (como Saussure, por exemplo) desconhecemos qualquer tentativa de
focar a questo da traduo partindo desse referencial terico (o que, claro,
pode sempre apontar mais para a ignorncia do autor do que propriamente
12
para um nicho inexplorado). Tomando como ponto de partida um referencial
semntico, teremos muito pouco a dizer sobre outros aspectos do fenmeno
tradutrio afora a significao, alm de restringir significativamente o espectro
dessa ltima: ainda que arrisquemos alguns comentrios procurando um
dilogo com a pragmtica, esses comentrios procuram muito mais delinear o
lugar da semntica no processo de interpretao do que propriamente abordar
a questo da possibilidade ou impossibilidade de haver equivalncia no nvel
pragmtico. Isso significa que, diferena de propostas como as de Nida e
Catford, que se propem um modelo terico que explique a traduo ou que
possa auxiliar o tradutor em sua tarefa, os objetivos deste trabalho so mais
modestos. No pretendemos propor aqui um modelo ou uma teoria que vise
explicar os diferentes aspectos do fenmeno tradutrio, ou mesmo servir de
guia para auxiliar o tradutor em seu processo de deciso.
Contudo, talvez se possa considerar que os aspectos deixados de fora
desta reflexo, aspectos histricos, culturais e sociais, so de longe os mais
interessantes e relevantes para a traduo, tanto enquanto prtica quanto
enquanto campo de investigao. Os aspectos da significao escolhidos
podem significar muito pouco, se vierem a significar alguma coisa, para o
quadro mais geral. Embora ns no desejemos aqui negar a importncia
desses aspectos para os Estudos da Traduo de modo geral, certamente a
crena na produtividade (terica) da abordagem e do recorte escolhido que
move a reflexo desenvolvida ao longo deste trabalho. No necessrio,
contudo, entrar em acordo sobre quais aspectos so mais ou menos
importantes, mais ou menos interessantes para se compreender as diversas
facetas do fenmeno tradutrio para seguir adiante. Basta assumir que h um
aspecto que diz respeito ao significado semntico das expresses, das frases e
das palavras, e que esse aspecto desempenha um papel, por menor que seja,
para a compreenso da traduo enquanto fenmeno. Esses aspectos podem
no ser os mais centrais, nem os mais interessantes, mas nem por isso, em
nosso entendimento, devem ser deixados de lado. Uma vez que mesmo
assumir a existncia desse aspecto algo controverso, procuraremos
argumentar ao longo do trabalho em favor de se considerar sua existncia.
Alm disso, excluir outros aspectos que no os lingsticos da presente
reflexo no significa negar sua existncia, nem sua importncia, e isso deve
13
ficar claro. A abordagem adotada neste trabalho se pretende claramente
cientfica, e isso significa assumir certas divises epistemolgicas. Teremos
muito pouco a dizer sobre aspectos histricos, sociais e culturais ao longo
deste trabalho basicamente porque a ferramenta escolhida para tratar do tema
no uma ferramenta adequada para tratar dessas questes. Mas de modo
algum a abordagem proposta incompatvel com o estudo desses aspectos
(ou ao menos assim nos parece) da mesma forma que assumir a existncia
de um nvel lingstico abstrato, composto por regras, e analis-lo sem
referncia ao contexto no implica negar a existncia da histria, das culturas e
das ideologias, tambm a abordagem proposta para a questo da equivalncia
semntica aqui esboada no pretende negar a existncia desses aspectos ou
seu papel na compreenso do fenmeno tradutrio. No parece de todo
absurdo assumir que nem tudo que h para ser explicado nos Estudos da
Traduo deva ser feito com referncia ao contexto histrico-cultural. Mais do
que isso, sendo capazes de distinguir em que pontos o contexto desempenha
um papel e em que pontos ele no desempenha, talvez possamos ser capazes
de entender melhor que tipo de contribuio o contexto faz em cada situao e
evitar um possvel risco de acabar por banalizar a noo de contexto.
No entanto, mesmo a possibilidade de estudar um nvel lingstico em
abstrao dos demais aspectos pode ser questionada. Afinal, deixar de lado
todos esses outros aspectos significa operar uma reduo em nosso objeto de
estudos, e talvez estejamos tentando separar aspectos que ao fim e ao cabo
sejam indissociveis, sendo qualquer tentativa de separ-los uma mera
abstrao, um construto terico enviesado por nossa perspectiva e nossos
pressupostos. Inegavelmente adotar uma perspectiva que procure ater-se
exclusivamente a um dado aspecto necessariamente operar uma reduo, um
recorte sobre o objeto de estudos a ser analisado. O resultado desse recorte
ser tambm uma abstrao construda a partir de determinados aspectos do
fenmeno, e uma abordagem desse tipo claramente ser incapaz de dar conta
do fenmeno analisado em toda a sua complexidade. Contudo, esses so
problemas que qualquer teoria, modelo ou perspectiva tem de enfrentar
qualquer reflexo terica precisa necessariamente enfrentar a impossibilidade
de abarcar cabalmente seu objeto de estudos e a necessidade de operar um
recorte sobre ele. Nesse sentido, no h diferena essencial entre uma
14
perspectiva cientfica e uma no-cientfica, ainda que cada abordagem
apresente um modo particular de lidar com essas questes. Mas,
independentemente da estratgia adotada para lidar com essa problemtica, o
produto final ser igualmente um objeto abstrato, construdo a partir de uma
determinada perspectiva e de determinados pressupostos tericos. Popper
(1981 [1963]) chama a ateno para essa situao no que diz respeito a
abordagens cientficas no h um mtodo mecnico, infalvel, que nos
permita verificar a veracidade de uma teoria, no h um mtodo para saber se
nossa construo terica a partir de um dado fenmeno idntica ao
fenmeno real. certo que toda teoria ou reflexo busca se aproximar o
mximo possvel de uma caracterizao adequada de seu objeto de estudos,
mas no h nenhuma garantia de que isso venha a acontecer. No que diz
respeito a todas essas questes, no h diferena entre uma perspectiva
cientfica e uma perspectiva no-cientfica.
Mas h, claro, caractersticas bastante especficas de uma abordagem
que se pretenda cientfica. De modo geral, os recortes operados sobre o objeto
de estudos so marcadamente mais especficos, uma estratgia que traz
consigo determinadas vantagens e determinadas desvantagens. No do
nosso interesse aqui por na balana vantagens e desvantagens dessa
estratgia, nem do nosso interesse apresentar uma perspectiva cientfica
como mais adequada ou produtiva. Antes disso, parece ser mais interessante
chamar a ateno para o fato de que, independente da perspectiva adotada,
sempre possvel acrescentar algo s discusses em andamento, por menor
que seja o acrscimo feito, ou, se isso no for possvel, ao menos reformular
algumas questes j conhecidas e talvez apresentar algumas novas. Seja
como for, parece muito mais interessante empreender um esforo no sentido
de tentar apresentar a perspectiva adotada neste trabalho, com seu recorte
bastante especfico e suas pretenses cientificidade, como uma perspectiva
que tambm pode acrescentar algo s discusses no mbito dos Estudos da
Traduo, a despeito de um certo receio que parece haver na rea no que diz
respeito a um af cientfico que marcou a dcada de 70, com os primeiros
15
trabalhos oriundos da lingstica que se debruaram sobre a questo da
traduo.1
A proposta apresentada dever privilegiar os aspectos semnticos
envolvidos no fenmeno tradutrio, mas dever tambm apontar para outras
questes (i.e. possibilidades de equivalncia em outros nveis), na medida em
que procura considerar a possibilidade de definir traduo em termos de
relaes de equivalncia, que nem sempre se do em um nvel semntico.
Entendendo a traduo nem como igualdade absoluta de valores, nem como
completa diferena, a proposta a ser apresentada trata a equivalncia como
uma noo gradual. Isso significa que no se trata de julgar se um termo
equivalente a outro ou no, mas de ser capaz de julgar em que grau esses
termos so equivalentes. A caracterizao da noo de equivalncia como
predicado gradual se beneficiar da discusso do tema da vagueza, na forma
como ele vem sendo desenvolvido na filosofia da linguagem e na semntica,
procurando um tratamento formal na fuzzy set theory.
No captulo 1 consideraremos o trabalho de alguns autores que utilizam a
noo de equivalncia em seus quadros tericos, analisando a forma como a
questo tratada, considerando problemas e vantagens dessas abordagens.
Os autores a serem analisados sero Eugene Nida, John Catford, Gideon
Toury e Werner Koller. Apresentaremos tambm alguns requisitos que o
conceito de equivalncia delineado neste trabalho deve cumprir, tendo em vista
os problemas levantados nas outras propostas, bem como algumas crticas
feitas noo na literatura sobre o tema.
O captulo 2 apresentar uma discusso sobre diferentes formas de se
entender a interpretao e sua relao com a possibilidade ou impossibilidade
de se postular uma noo de equivalncia. Procuraremos estabelecer uma
compreenso sobre a natureza da significao que sirva de base para a
proposta da noo de equivalncia a ser defendida neste trabalho. Num
primeiro momento, discutiremos a maneira como a significao entendida por
tericos de formao desconstrucionista, apresentando algumas crticas a ela.
Passaremos, ento, a uma apresentao do modelo de interpretao proposto
por Dascal (2006). Consideraremos, a seguir, diferentes propostas para a
1 Ver os comentrios sobre os modelos de Nida e Catford, adiante (itens 1.1.1 e 1.1.2).
16
separao entre semntica e pragmtica (incluindo a de Dascal), a fim de
procurar esclarecer de modo mais preciso qual o lugar da semntica no
processo de interpretao.
O captulo 3 introduzir brevemente alguns conceitos da Semntica da
Teoria de Modelos, o modelo semntico que adotaremos ao longo deste
trabalho. Discutiremos tambm a questo da indeterminao do significado,
elaborada por Quine (1960) e discutida por Davidson (1984), e suas
conseqncias para a interpretao e para a noo de equivalncia em
traduo.
O captulo 4 abordar a questo da equivalncia propriamente dita,
procurando apresentar uma definio formal para o conceito e buscando uma
caracterizao que permita tratar a equivalncia como uma noo gradual.
Apresentaremos uma proposta de construo de um critrio formal para a
noo de equivalncia partindo de um critrio extensional, e procurando
expandi-lo atravs de uma contraparte intensional para esse critrio.
Consideraremos, para essa discusso, uma teoria fuzzy de conjuntos, a fim de
dar conta da possibilidade de diferentes graus de equivalncia entre dois
termos. Por fim, discutiremos brevemente a forma como poderamos utilizar a
noo de equivalncia para clarificar os limites do que entendemos por
traduo.
17
1. Preliminares para um conceito de equivalncia tradutria
1.1. Abordagens noo de equivalncia
Embora a noo de equivalncia em traduo eventualmente figure no
quadro terico de algumas abordagens dos Estudos da Traduo, o conceito
permanece bastante vago, ainda carecendo de critrios mais claros e
definies mais precisas. Como aponta Rodrigues (2000), mesmo abordagens
que partem da noo de equivalncia para definir o que se entende por
traduo padecem dessa falta de clareza quando se trata de apresentar
critrios para definir o conceito de equivalncia. So exemplos desse caso os
modelos de Eugene Nida (1964; 1969) e John Catford (1980), ambos modelos
calcados na lingstica: para Nida, traduzir a produo de mensagens
equivalentes (1969, p.12), enquanto para Catford a substituio de material
textual numa lngua (LF [lngua fonte]) por material textual equivalente em outra
lngua (LM [lngua meta]) (p. 22).
De uma outra perspectiva, de base semitica, tambm Gideon Toury
(1980; 1995) inclui a noo de equivalncia no quadro terico de seu modelo -
em um primeiro momento, partindo da noo para definir traduo, uma
posio revista em sua obra posterior. Em seu trabalho posterior, Toury
considera que qualquer texto apresentado como traduo, tenha ele sido
escrito a partir de um original ou no, deve ser considerado como objeto dos
Estudos da Traduo. 2 A despeito disso, Toury demonstra um interesse
explcito em manter o conceito de equivalncia em seu modelo.
Tambm de uma perspectiva lingstica, a noo de equivalncia ocupa
um lugar central no modelo de Werner Koller (1995). O autor se debrua
longamente sobre a questo da equivalncia, por ele caracterizada como a
relao constitutiva da traduo (p.189). No que se segue, apresentaremos
2 O conceito bastante amplo (talvez amplo demais), incluindo tambm pseudo-tradues, o que talvez acabe inchando demais o objeto de estudo da rea. Se levarmos o critrio a srio, virtualmente qualquer texto pode ser considerado objeto de estudo da rea, bastando para isso que ele seja apresentado como traduo por seu autor. Essa opo metodolgica, embora possa ter como vantagem uma ampliao dos horizontes da rea, ela pode ter como conseqncia uma perda do foco nas relaes especificamente tradutrias, i.e. daquilo que caracteriza um dado texto como um traduo e o distinge de um outro tipo qualquer de produo textual.
18
brevemente as propostas desses quatro autores, considerando a produtividade
de suas abordagens em relao ao conceito de equivalncia em traduo. 3
1.1.1. Equivalncia formal versus equivalncia dinmica: duas orientaes bsicas para o tradutor no modelo Nida
Nida (1964; 1969) distingue entre dois tipos fundamentais de equivalncia
em traduo: a equivalncia formal e a equivalncia dinmica, que, segundo o
autor, so as duas orientaes bsicas que podem ser seguidas por um
tradutor (ainda que haja diferentes graus de adeso a uma orientao ou outra).
Nida no apresenta nenhuma definio mais ampla de equivalncia uma
definio que seja comum tanto orientao formal quanto dinmica -, com
exceo de uma meno em um glossrio de termos tcnicos, em que o autor
define o termo como uma similaridade muito prxima em significado, oposta
similaridade em forma (NIDA & TABER, 1969, p. 200). Contudo, essa
definio mais ampla de equivalncia entra em conflito com sua definio de
equivalncia dinmica, parecendo ser mais uma definio de equivalncia
formal do que qualquer outra coisa, como veremos adiante. Ao invs disso, o
autor apresenta definies distintas de equivalncia formal e equivalncia
dinmica, tratando os dois conceitos como duas coisas separadas. Mesmo
esses dois tipos de equivalncia no so explicados muito detalhadamente,
sendo apresentados como duas orientaes que o tradutor pode adotar.4
Segundo Nida,
a equivalncia formal foca a ateno sobre a mensagem em si,
tanto em forma quanto em contedo. Em uma tal traduo
est-se interessado em correspondncias como poesia-poesia,
sentena-sentena e conceito-conceito. Vista dessa orientao
formal, a preocupao que a mensagem na lngua receptora
deva coincidir tanto quanto possvel com os diferentes
elementos na lngua fonte. (1964, p. 159)
3 No apresentaremos, contudo, uma discusso detalhada dos modelos propostos por cada um desses autores. Ao invs disso, focaremos nossa ateno centralmente na questo do modo como os autores trabalham a noo de equivalncia e, desse modo, os comentrios que se seguem no se pretendem uma apresentao completa dos modelos abordados. 4 Cf. Rodrigues (2000, p. 65).
19
Ao procurar assumir essa orientao, um tradutor procuraria reproduzir
alguns elementos formais, como unidades gramaticais, consistncia no uso de
termos e significado em termos de contexto de origem. Algumas estratgias
para buscar a equivalncia formal incluiriam traduzir substantivos por
substantivos, verbos por verbos, etc., manter a estrutura das frases (i.e. no
agrupar duas frases diferentes ou segmentar uma mesma frase) e preservar os
indicadores formais como pontuao, pargrafos, etc. Alm disso, uma vez que
esse tipo de estratgia pode acabar gerando uma traduo em diversos
aspectos pouco inteligvel, o tradutor normalmente faria uso de notas
explicativas para esclarecer essas dificuldades.
No que diz respeito ao significado, o autor prope uma estratgia baseada
em uma gramtica transformacional, em que o tradutor reduziria uma frase a
seu ncleo para ento transferi-lo para outra lngua. De acordo com Nida,
mais eficiente cientificamente e na prtica: (1) reduzir o texto-
fonte em seus ncleos estruturalmente mais simples e mais
evidentes semanticamente. (2) transferir o significado da
lngua-fonte para a lngua receptora em um nvel
estruturalmente mais simples; e (3) gerar a expresso
estilstica e semanticamente equivalente na lngua receptora.
(1964, p. 68)
Contudo, o autor no apresenta nenhuma definio clara do que sejam os
ncleos - no se trata de uma estrutura profunda nos moldes da gramtica
gerativa (ainda que o autor se baseie no modelo chomskiano de gramtica
gerativo-transformacional), nem nenhuma espcie de forma lgica. O uso que o
autor faz do conceito de ncleo mostra que ele est meramente interessado em
produzir parfrase das sentenas usadas como exemplo, reduzindo-as a trs
classes de formas estruturais mais simples: palavras-objeto (normalmente
representadas por substantivos), palavras-evento (em geral representadas por
verbos), palavras-entidades-abstratas (adjetivos, advrbios ou verbos
especiais, de acordo com o esprito da lngua).
20
A classificao nas trs categorias , contudo, bastante arbitrria,
sobretudo no que diz respeito ao que o autor entende por uma forma
estruturalmente mais simples. Um exemplo analisado pelo autor a reduo
do sintagma sons of disobedience forma sons who disobey, em que o
autor reduz um sintagma nominal a uma orao relativa, sem apresentar
nenhuma justificativa para que se considere a segunda como mais simples que
a primeira.
Alm disso, mesmo dentro dos limites da equivalncia formal parece
haver opes conflitantes para um tradutor, em especial no que diz respeito a
manter o significado de uma expresso em termos de seu contexto de origem.
Estratgias como manter a estrutura sinttica de uma orao, ou mesmo
traduzir sistematicamente uma determinada palavra por outra na lngua de
chegada podem ser opes inviveis, se o tradutor tem em vista manter o
sentido da expresso de origem - todos os casos de polissemia ou
homomorfismo seriam problemticos, sem mencionar a situao da poesia, em
que escolher entre o contedo e a adequao a um determinado esquema
mtrico uma questo freqente para o tradutor.
A equivalncia dinmica, por sua vez, seria baseada numa tentativa de
reproduzir no leitor do texto de chegada um efeito semelhante ao produzido no
leitor do texto de partida. De acordo com Nida, nesse tipo de traduo o
interesse no fazer coincidir a mensagem da lngua do receptor com a
mensagem da lngua fonte, mas a relao dinmica, que a relao entre
receptor e mensagem seja substancialmente a mesma que a que existiu entre
os receptores originais e a mensagem (1964, p. 129). Uma traduo orientada
equivalncia dinmica procuraria a completa naturalidade de expresso,
procurando provocar no pblico da traduo efeitos semelhantes aos
provocados no pblico do texto de partida. Segundo o autor, esse tipo de
traduo tambm pode ser definido como uma busca pelo equivalente natural
mais prximo da mensagem da lngua-fonte. Esse tipo de orientao
claramente favorecido por Nida, que parece consider-lo como de longe o mais
adequado. 5 Nida aparentemente est preocupado no em descrever a
5 Nida faz questo de ressaltar que uma traduo orientada equivalncia formal pode ser perfeitamente adequada, mas em The Theory and Practice of Translation (1969) sua preferncia pela equivalncia dinmica fica clara. Ver, por exemplo, a hierarquia de
21
traduo enquanto fenmeno, mas em estabelecer princpios que orientem a
prtica tradutria adequada. Parece sintomtico que em um item intitulado
Definies de Traduo Nida se questione apenas a respeito das definies
acerca do que uma traduo adequada (1964, p. 131). Esse parece ser o problema central no modelo Nida: o autor parece no
estar interessado em abordar questes de traduo de modo geral, mas sim
em advogar um certo modo de traduo, apontado por ele como o mais
adequado. Como conseqncia, o potencial explicativo do modelo do autor
bastante limitado. claro, no queremos dizer com isso que h um problema
em apresentar um interesse normativo na abordagem traduo. Mas esse
tipo de trabalho tem um alcance bastante especfico, e isso deve ficar claro.
Alm disso, mesmo como um trabalho com interesses normativos, o modelo
Nida parece falhar na medida em que aponta apenas um mtodo de traduo
como mais adequado, quando bastante evidente que esse no
necessariamente o mtodo mais interessante para todo e qualquer tipo de
traduo (ainda que o autor procure fazer a ressalva de que uma estratga
baseada na equivalncia formal possa ter validade em determinadas situaes).
Em termos da produtividade terica do conceito de equivalncia
encontrado em Nida (nosso foco central neste trabalho), o que encontramos a
partir da caracterizao de Nida bastante restrito. O nico procedimento para
identificar equivalentes fornecidos pelo autor o recurso intuio do tradutor
ou de falantes bilnges o que em si no constitui um problema como forma
de identificar equivalentes, mas no chega a constituir uma explicao sobre o
que est em jogo nesse tipo de intuio.6 O modo como Nida apresenta as
noes de equivalncia formal e dinmica padece principalmente de um
problema de falta de explicitao dos critrios utilizados para julgar duas
expresses como equivalentes ao invs de explicitar esses critrios, o autor
apresenta as duas noes de equivalncia meramente como orientaes que
um tradutor pode seguir. Nida apresenta o tipo de preocupao que um
tradutor deve ter ao adotar uma ou outra estratgia, mas no discute que tipo
preocupaes do tradutor, em que o autor afirma que a equivalncia dinmica tem precedncia sobre a equivalncia formal (p. 14). 6 Voltaremos a essa questo no prximo item, quando tratarmos do modelo Catford.
22
de relao estaria em jogo entre duas expresses para que elas sejam
consideradas como equivalentes.
1.1.2. Equivalncia textual e Correspondncia formal: equivalncia no modelo Catford
Catford 7 (1980) tambm prope uma bipartio do conceito de
equivalncia, distinguindo de forma similar entre equivalncia textual e
correspondncia formal. Em contraste com a proposta de Nida, no entanto,
para Catford equivalncia textual no est relacionada ao significado de
expresses no texto de partida e sua transferncia no texto de chegada.
Segundo o autor, o significado uma propriedade da lngua e, portanto, no
pode ser transferido para um outro contexto lingstico. Catford afirma que
insustentvel a opinio de que textos da LF [lngua fonte] e da LM [lngua meta]
tm o mesmo significado ou que ocorre transferncia de significado na
traduo (p. 38). O autor prossegue afirmando que o significado uma
propriedade da lngua. Um texto que da LF tem um significado que da LF, e
um texto da LM tem um significado que da LM (p. 38).
Catford apresenta dois mtodos para avaliar se duas pores textuais so
equivalentes ou no8: o primeiro mtodo diz respeito ao recurso a um falante
bilnge assim, confiando no julgamento de um tradutor ou falante bilnge
competente, estaramos aptos a identificar equivalentes de traduo; o autor
reconhece que o procedimento pouco formal e apresenta um segundo critrio,
baseado numa prova de comutao. De acordo com esse mtodo, introduzindo
mudanas no texto de partida observaramos que tipo se mudana ocorre (se
7 Catford prope um conceito de traduo fonolgica e traduo grafolgica que no discutiremos neste trabalho. A traduo fonolgica se limitaria fonologia das lnguas em questo, e como exemplo dessa prtica o autor menciona o sotaque de alunos aprendendo uma lngua estrangeira, ou atores imitando um sotaque. O conceito de traduo grafolgica (que leva em conta os aspectos grficos das letras, e no sua pronncia) um tanto quanto curioso, mas ambos os conceitos parecem pouco produtivos para este trabalho, razo por que eles no sero aqui analisados. 8 O autor define equivalncia textual somente atravs dos mtodos de descoberta de equivalentes. Nas palavras do autor, um equivalente textual qualquer texto ou poro de texto da LM que, pelos mtodos abaixo descritos, se observe ser numa ocasio especfica o equivalente de determinado texto ou poro de texto da LF. A despeito disso, o autor apresenta uma discusso algo mais detalhada sobre a natureza dos equivalentes de traduo em seu captulo 7, Condies de equivalncia de traduo, que apresentaremos na seqncia.
23
ocorrer alguma) no texto de chegada. Por exemplo, se substitussemos a
palavra daughter na frase My daughter is six por son, esperaramos uma
mudana na traduo. Se no primeiro caso a traduo fosse Minha filha tem
seis anos, no segundo caso deveria haver uma mudana na traduo (e.g. meu
filho tem seis anos). Desse modo, poderamos identificar filha como equivalente
de daughter. Por meio desse mtodo, um equivalente de traduo seria
definido como a poro de texto da LM que se modifica quando, e somente
quando, se modifica determinada poro do texto da LF.
O autor afirma que, partindo da observao de equivalncias reais de
traduo, seria possvel formular regras e mesmo algoritmos de traduo,
baseando-se em regras de probabilidade (incondicionada, tomando-se as
ocorrncias isoladas de contexto e suplementadas por regras de probabilidade
condicionada, que levariam em conta o contexto lingstico). Catford demonstra
certo interesse na possibilidade de implementao computacional do modelo,
embora as regras propostas no sejam explcitas o suficiente para sabermos
como esse modelo seria implementado.9 O autor tambm sugere que essas
extrapolaes probabilsticas poderiam ser utilizadas como regras para
tradutores humanos. Contudo, em relao a essa possibilidade, o autor apenas
afirma que as regras para tradutores humanos poderiam ser mais vagas e
mais contextualmente baseadas. No fica claro, novamente, o que um
tradutor poderia fazer com uma informao, por exemplo, de que a
probabilidade incondicionada de se traduzir a preposio francesa dans por
into em ingls de 0,19 (numa escala de 0 a 1) e que a probabilidade
condicionada de 0,99 quando a preposio aparece com um verbo de
movimento e um substantivo que se refere a lugar. Enquanto regras de
traduo, esses dados simplesmente no servem como orientao para um
tradutor humano, uma vez que eles no ajudam a decidir se o caso em questo
se refere a um dos casos que fazem parte dos 99 % que devem ser traduzidos
por into ou do 1% que devem ser traduzidos de alguma outra forma. Parece
claro que a opo por uma ou outra forma regulada por outros fatores que
no so considerados pela regra de traduo em sua forma probabilstica.
claro, um modelo que procure explicar a traduo no precisa ter uma
9 Como a traduo computacional no nosso interesse central neste trabalho, deixaremos de lado a discusso desse aspecto.
24
aplicao prtica10, mas, uma vez que o autor se prope a apresentar um
modelo que fornea contribuies significativas para a prtica da traduo, os
problemas apontados passam a ser problemas de fato para a proposta
apresentada pelo autor.
Alm disso, as formas indicadas para se identificar equivalentes em
traduo parecem vagas demais. Trabalhar com o julgamento de informantes
bilnges envolveria necessariamente lidar com divergncias de julgamento, e
o modelo no apresenta ferramentas para isso. Lidar com unanimidades ou
graus prximos unanimidade pode ser fcil (se pudermos encontrar tais
casos), mas no h nada que nos diga como proceder em relao a
divergncias mais drsticas. Quanto ao critrio da comutabilidade,
encontramos problemas semelhantes se tentarmos aplic-lo. Se em um dado
texto de partida figura o termo waterfall, poderamos ter diferentes termos no
texto meta, como cascata ou cachoeira ou queda dgua. Poderamos ter
alteraes no texto de chegada sem que houvesse qualquer alterao no
texto de partida. Isso excluiria todos os trs termos como equivalentes de
waterfall, uma vez que, para satisfazer o critrio da comutabilidade s pode
haver alterao no texto de chegada quando h alterao no texto de partida.
Na prtica, qualquer palavra que possusse sinnimos apresentaria problemas
para o critrio, o que significaria uma parte considervel da lngua. Mesmo os
exemplos dados por Catford de equivalentes no satisfariam o critrio da
comutabilidade: o exemplo dado your daughter, cujo equivalente em francs
seria votre fille, poderia ser traduzido por ta fille em outros contextos. claro,
poderamos argumentar que de fato os termos no so equivalentes, uma vez
que o francs faz uma distino formal/informal com o pronome de tratamento
e o ingls no. Mas o que fazer se, por exemplo, encontramos como tradues
efetivas de uma frase como Do you know John? His son is six, did you know?
duas possibilidades, Sabe o Joo? O seu filho tem seis anos, sabia? e Sabe
o Joo? O filho dele tem seis anos, sabia?
Embora esses problemas apontem para uma inconsistncia nas
definies dadas, bastante possvel que eles possam ser solucionados com
eventuais refinamentos da teoria. Entretanto, as definies dadas parecem
10 Ver introduo.
25
sofrer de um problema mais srio e talvez no to facilmente solvel: os
critrios apresentados apresentam um poder de predio extremamente
limitado (em especial o recurso a informantes bilnges), bem como um poder
de explanao restrito. No caso do recurso a informantes bilnges, s
poderamos dizer se duas pores textuais so equivalentes a posteriori e
ambos os mtodos no deixam claro quais as propriedades comuns e
necessrias a duas pores de texto para que eles sejam considerados
equivalentes. Ainda que possamos fazer uso das intuies de falantes, tal uso
ainda no constitui uma explicao propriamente dita i.e., ainda falta explicar
o que est por trs dessas intuies.
Catford procura apresentar quais so as propriedades compartilhadas que
tornam duas pores de texto quaisquer equivalentes, o que, no entanto, vai
resultar em uma reformulao da definio de equivalncia. Uma vez que o
autor rejeita a possibilidade de duas expresses em duas lnguas diferentes
possurem o mesmo significado, o critrio empregado ser funcional: dois itens
sero equivalentes se eles funcionarem na mesma situao. No entanto,
apesar de sua recusa em basear sua anlise da equivalncia em termos de
sentido, ao tratar das condies para equivalncia em traduo, o autor
emprega a noo de significado contextual, que parece ser tratado como uma
espcie de feixe de traos de situao. Desse modo, haveria equivalncia de
traduo quando textos ou itens da LF e da LM podem relacionar-se com os
mesmo traos de substncia (ou ao menos com alguns deles)11 (p. 56).
Como aponta Rodrigues (2000), a noo de substncia de situao
pouca clara. Apesar disso, ela parece ser algo como um conjunto de traos
semnticos relevantes para a situao (exemplos dados so perfectividade e a
explicitao do gnero do falante). Alm do problema da falta de critrios para
se determinar a relevncia de dados traos de situao (um problema
reconhecido pelo autor), temos uma clara discrepncia entre a afirmao do
autor sobre a impossibilidade de existncia de dois significados iguais em
lnguas diferentes e um mtodo que se pauta pela comparao de traos
semnticos.
11 Os traos de substncia aqui referidos podem dizer respeito tambm a substncia fnica ou grfica, para dar conta da distino que o autor faz de traduo fonolgica e grafolgica.
26
Alm da noo de equivalncia textual, Catford emprega tambm uma
noo de correspondncia formal. No entanto, diferentemente da noo de
equivalncia textual, o recurso a falantes bilnges e a provas de comutao
no funcionam para o estabelecimento de correspondentes formais. O autor
define correspondente formal como qualquer categoria da LM (unidade, classe,
estrutura, elemento de estrutura, etc.) que se possa dizer que ocupa, na
economia da LM o mesmo lugar que determinada categoria da LF ocupa na
LF (p. 29). O autor faz a ressalva de que, uma vez que cada lngua sui
generis, as correspondncias formais so sempre aproximadas. Catford
considera como possvel o que ele chama de traduo gramatical, em que
apenas a gramtica da lngua fonte seria substituda, mantendo todos os itens
lexicais. Parece difcil, contudo, aceitar que se considere esse tipo de
procedimento como traduo, ainda que eventualmente a busca por
correspondncias formais possa influenciar as decises de um tradutor. Alm
disso, a prpria definio apresentada pelo autor entra em contradio com os
conceitos de traduo gramatical e correspondncia formal, uma vez que trata
de traduo enquanto substituio de material textual (grifo nosso).
1.1.3. Uma abordagem descritiva da noo de equivalncia: o modelo Toury
Toury apresenta uma proposta de modelo para os estudos da traduo
orientada para o plo-receptor, desenvolvido de maneira consistente desde
os anos 70, demonstrando uma grande preocupao com o carter descritivo
(em contraposio ao prescritivismo de modelos como os de Nida e Catford) de
seu modelo. Analisaremos aqui duas obras de Toury, In search of a theory of
translation (1980) e Descriptive Translation Studies and Beyond (1995). O autor
apresenta essa ltima obra como uma substituio em vrios aspectos da
primeira. Ainda que o autor manifeste explicitamente o desejo de manter o
conceito de equivalncia no quadro terico do modelo 12 , seu papel em
12 O que essa abordagem acarreta um claro desejo de manter a noo de equivalncia, que vrias abordagens contemporneas (...) tentaram abandonar, introduzindo nela uma mudana essencial: de um conceito a-histrico, largamente prescritivo, para um conceito histrico. (What this approach entails is a clear wish to retain the notion of equivalence, which various contemporary approaches () have tried to do without, while introducing one essential change
27
Descriptive Translation Studies and Beyond visivelmente mais modesto do
que na obra anterior, a comear pelo fato de que, na primeira, a definio de
traduo era subordinada de equivalncia, enquanto que, na segunda, a
definio de traduo passa a ser mais abrangente e independe do conceito de
equivalncia.
Essa definio mais abrangente se d pela adio da noo de traduo
assumida (assumed translation), no sendo propriamente uma definio de
traduo (ao menos no explicitamente), mas sim uma definio do objeto de
estudo da rea dos estudos da traduo. Toury sugere que se considere como
da alada dos Estudos da Traduo qualquer texto que tenha sido apresentado
e aceito como traduo, tenha ele sido escrito com base em outro texto ou no.
A conseqncia imediata disso a incluso de pseudotradues (i.e. textos
apresentados como traduo que na realidade no foram traduzidos) no mbito
do modelo, o que naturalmente promove um certo alargamento dele. A razo
para a incluso das pseudotradues em um modelo de teoria da traduo
seria, segundo Toury, que, de um ponto de vista do sistema cultural que recebe
esses textos, no h diferena significativa entre um texto que seja
considerado traduo e um que seja de fato uma traduo. De fato, as
consideraes sobre a posio do texto e sua recepo pela cultura alvo
parecem no requerer meno ao texto de partida dentro do modelo de Toury.
No entanto, consideraes a respeito da comparao dos textos de partida e
de chegada como forma de determinar as normas auto-impostas pelo tradutor
durante o processo tradutrio, por exemplo, parecem tornar difcil o mesmo
tratamento a tradues de fato e a pseudotradues, dentre outras ferramentas
empregadas por Toury. No nosso interesse debater de forma aprofundada a
noo de traduo assumida, uma vez que estaramos nos desviando dos
objetivos deste trabalho, mas parece claro que dar o mesmo tratamento tanto a
tradues de fato quanto a pseudotradues poderia gerar um alargamento
indesejado do objeto de estudo da rea, uma vez que virtualmente qualquer
texto poderia ser apresentado como traduo e, com sorte (ou os devidos
cuidados) ser considerado como traduo. claro que o fato de o texto ser
apresentado como traduo relevante para o estudo de sua recepo, mas
into it: from an ahistorical, largely prescriptive concept to a historical one) (p. 61, traduo nossa)
28
igualmente relevante o fato de que o texto apenas apresentado como tal e
no uma traduo de fato (especialmente se esse fato vier tona, o que
certamente ocasionar mudanas na forma como o texto analisado). Alm
disso, o prprio desejo de manter a noo de equivalncia no quadro da teoria
parece ser incompatvel com um tratamento uniforme de tradues e
pseudotradues.
Em Descriptive Translation Studies and Beyond, Toury no apresenta uma
definio explcita do que seja equivalncia dentro do seu modelo, mas enfatiza
a relevncia da noo e apresenta alguns comentrios em relao ao termo,
especialmente no sentido de estabelecer algumas diferenas entre a noo
tradicional e o modo como ela entendida no modelo. A ferramenta bsica
para a comparao de originais e tradues proposta pelo autor o
estabelecimento de pares de segmentos substituintes e substitudos. Essa
seria a base para o estabelecimento da posio do tradutor em relao aos
plos de adequao e aceitabilidade.13 O procedimento sugerido o seguinte:
Tendo sido estabelecidas para uma srie de segmentos
pareados, e agrupados tendo por base o resultado das
comparaes em si, as relaes tradutrias seriam remetidas,
ento, ao conceito de traduo subjacente ao texto como um
todo. Isso seria feito atravs da mediao de uma noo de
equivalncia, a saber, a noo que teria emergido como
constituindo a norma para o par de textos em questo. So
esses dois ltimos conceitos que formam o fim ltimo de
estudos em pares individuais de textos. No processo de
estabelecimento da norma de equivalncia tradutria e o
conceito subjacente de traduo, no se pode dar conta de
nada de modo completo sem referncia a esses dois conceitos
(1995, p. 37, traduo nossa)
Apesar da nfase dada importncia da noo de equivalncia,
apresentada no trecho acima como objetivo ltimo dos estudos em pares
13 Toury usa o termo adequao para se referir ao grau de adeso de uma traduo s normas da cultura de partida e o termo aceitabilidade para se referir ao grau de adeso s normas da cultura de chegada. (p. 56-57).
29
individuais de texto, no h uma caracterizao explcita de um conceito geral
de equivalncia. Toury enfatiza em sua abordagem a especificidade cultural
das normas tradutrias, entendendo tambm a noo de equivalncia como
culturalmente determinada. Segundo o autor, equivalncia, ao invs de uma
relao nica, denotando um nico tipo de invariante, refere-se a qualquer
relao que se descubra ter caracterizado traduo sob um conjunto especfico
de circunstncias14 (p. 61, traduo nossa). De fato, a nfase na importncia
da cultura receptora e na especificidade de cada contexto parece em certa
medida impedir um postulado mais geral de equivalncia.
A opo metodolgica parece ser a de manter o nvel de abstrao do
objeto de estudo o mais baixo possvel, bem como uma tentativa de considerar
todos os fatores que possam ser relevantes para o processo tradutrio como
um todo. Se essa preocupao, por um lado, demonstra um interesse em evitar
redues ou simplificaes no objeto de estudo, por outro ela acaba limitando
de maneira bastante severa o poder preditivo do modelo (uma das
caractersticas que Toury aponta como desejvel para uma teoria da
traduo).15 A conseqncia imediata dessa opo um grau razovel de
vagueza em relao ao conceito de equivalncia. Assim, equivalncia passa a
ser qualquer relao que se descubra ter caracterizado traduo sob um
conjunto especfico de circunstncias. Toury relaciona a noo de equivalncia
de invarincia, mas no a um tipo determinado de invarincia. Segundo
autor:
Equivalncia, como usada aqui, no de modo algum uma
relao entre fonte e alvo, passvel de ser estabelecida tendo-
se por base um tipo particular de invariante. Pelo contrrio,
um conceito funcional-relacional, nomeadamente, o conjunto
de relaes que se ter descoberto distinguir modos
apropriados de performance tradutria de modos inapropriados,
14 rather than being a single relationship, denoting a single type of invariant, it comes to refer to any relation which is found to have characterized translation under a specific set of circumstances. 15 De fato, mesmo no ltimo captulo do livro Translation Studies and Beyond, em que o autor enuncia duas leis, a formulao dessas leis vaga e parece ser mais adequado trat-las como tendncias do que propriamente como leis. Uma evidncia disso que as formulaes e reformulaes dessas leis apresentam sempre formulaes como tendem a ser, so freqentemente, etc.
30
para a cultura em questo. (p. 85, grifo do autor, traduo
nossa).16
Contudo, os termos em que Toury apresenta a noo de equivalncia
podem entrar em conflito com a caracterizao da relao de equivalncia
como qualquer relao que se descubra ter caracterizado traduo: em uma
cultura com normas voltadas para o plo da aceitabilidade, uma traduo
voltada para o plo da adequao poderia ser julgada inapropriada de acordo
com as normas vigentes. Apesar disso, membros da cultura em questo
poderiam muito bem identificar o texto em questo como traduo (ainda que
como traduo ruim ou inapropriada), o que colocaria as duas definies em
conflito. Da mesma forma, seria difcil caracterizar equivalncia potencial
nesses termos, definida pelo autor como o todo do conjunto de possveis
relaes. Esse ltimo conceito parece estar relacionado reconstruo
mxima do texto fonte, um conceito apresentado de modo mais detalhado em
seu livro de 1980, In search of a theory of translation, que aborda tambm a
questo da equivalncia de modo mais aprofundado.17
Encontramos nessa obra uma definio semelhante do objeto de estudos
da rea, considerado como o conjunto dos textos encarados como tradues
na configurao de determinados sistemas-alvo (TOURY, 1980, p. 18 apud
RODRIGUES, 2000, p. 133). Contudo, encontramos tambm uma definio
mais explcita de traduo, uma verso modificada da definio de Catford:
Traduo, no sentido estrito, a substituio de uma
mensagem, codificada em uma lngua natural, por uma
mensagem equivalente, codificada em outra lngua. (TOURY,
1980, p. 63 apud RODRIGUES, 2000, p. 142)
16 equivalence as it is used here is not one target-source relationship at all, establishable on the basis of a particular type of invariant. Rather, it is a functional-relational concept; namely, that set of relationships which will have been found to distinguish appropriate from inappropriate modes of translation performance for the culture in question 17 O breve comentrio que se segue baseia-se na anlise de Rodrigues (2000), uma vez que no foi possvel obter acesso ao texto de Toury, h algum tempo j esgotado.
31
Assim como a definio de Catford, tambm a definio apresentada por
Toury dependente do conceito de equivalncia. Similarmente, a definio
para equivalncia de Toury tambm uma verso modificada da de Catford:
a equivalncia de traduo ocorre quando um texto (ou item)
em LF [lngua fonte] e um em LA [lngua alvo] se relacionam
aos mesmos traos relevantes (ou, pelo menos, a alguns
deles). (TOURY, 1980, p. 37 apud RODRIGUES, 2000, p. 142)
diferena de Catford, Toury ressalta que a noo de relevncia uma
propriedade relativa, primeiro porque algo s pode ser relevante para um
determinado propsito ou ponto de vista e, depois, porque textos seriam
compostos de traos em diversos nveis (fonolgicos, morfossintticos, etc.) (p.
38 apud RODRIGUES, p. 143). Ao contrrio dos modelos tradicionais, em
que o grau de relevncia seria determinado pelo texto-fonte e em que a
traduo ideal deveria corresponder reconstruo de todos os aspectos
relevantes do texto, Toury est mais interessado em descrever a equivalncia
real enquanto fenmeno emprico. Nesse sentido, a comparao no
feita para determinar se se atinge a equivalncia entre traduo e original, mas
qual o tipo (e/ou grau) de equivalncia que realmente ocorre entre eles (p.38
apud p.143). Para Toury, a tarefa de reconstruir todas as caractersticas
relevantes do texto no tarefa do tradutor, mas sim do pesquisador. Esse
ltimo procederia anlise das relaes entre os textos fonte e alvo a partir de
um conceito intermedirio, uma base fixa, invariante para comparao.
Esse invariante de comparao (ou construto de traduzibilidade mxima)
seria uma entidade hipottica construda a partir da anlise sistmica
(textmica) do TF (p. 49 apud RODRIGUES, p. 138, grifo do autor), uma
reconstruo total das caractersticas do texto fonte na lngua alvo. A
comparao entre o invariante de traduo (i.e. a base invariante
efetivamente encontrada na traduo real) e o invariante de comparao
revelaria assim se a orientao dada traduo foi ao plo-fonte
(adequao) ou ao plo-meta (aceitabilidade).
Toury distingue duas formas do conceito de equivalncia, uma terica e
outra emprica. A primeira denotaria uma relao ideal, abstrata, com o texto
32
fonte, que o autor identifica com o conceito de equivalncia encontrado nas
abordagens tradicionais; a segunda exprimiria as relaes reais entre as
expresses efetivas em duas lnguas e literaturas diferentes (RODRIGUES, p.
144). O autor ainda considera a possibilidade de dividir o conceito terico em
equivalncia mnima (o limiar da traduo, o mnimo de equivalncia
necessrio para considerar um texto como traduo) e equivalncia mxima (a
traduo ideal ou exemplar) (p. 68 apud p. 146). Essa diviso teria razes
metodolgicas e poderia ser til para se estabelecer a orientao da traduo
entre os plos de adequao e aceitabilidade atravs da comparao com a
equivalncia emprica. Fica bastante evidente a preocupao demonstrada
por Toury com o carter emprico do seu modelo, procurando sempre focar as
relaes reais e no qualquer forma idealizada ou abstrata de traduo.
Essa preocupao fica evidente nas freqentes afirmaes do autor sobre a
relevncia de contextualizar todo e qualquer texto para qualquer estudo.
Entretanto, os conceitos de equivalncia e invarincia dificilmente podem
ser encarados de fato como propriedades reais de um texto. Em primeiro
lugar por serem eles ambos tericos, no sentido de fazerem parte de um
quadro terico, sendo assim ferramentas explicativas. Descrever a realidade
pode ser o propsito de vrias teorias de diversos campos, mas parece claro
que clamar uma sobreposio do modelo e da realidade pode ser pouco mais
do que um argumento especulativo. Em segundo lugar, porque parece
igualmente evidente que a noo de invarincia essencialmente abstrata,
especialmente quando se fala em traduo, um fenmeno que envolve dois
textos escritos em lnguas diferentes, em ocasies diferentes e por autores
diferentes, feitos para serem lidos por pblicos diferentes. Se h a
possibilidade de postular equivalncia ou invarincia, essa possibilidade
parece ser apenas em termos de um conceito abstrato, uma ferramenta terica
para o entendimento da traduo enquanto fenmeno. Isso no significa,
contudo, que postular um conceito de equivalncia torna-se a priori uma tarefa
intil, pelo contrrio. Conceitos que figuram no quadro de alguma teoria sero
sempre abstratos e diro respeito sempre a objetos abstratos, parciais e
recortados, deslocados de seu contexto para estudo. O recorte pode procurar
trazer alguma parte do contexto, mas clamar que a anlise abarca todos os
aspectos do objeto em questo (i.e. que no possui nenhum grau de
33
abstrao) parece ser no mnimo ingnuo. Qualquer coisa que se diga sobre
traduo enquanto fenmeno pertence ao domnio do abstrato, a menos que
se fale sobre uma traduo ou grupo de tradues especficos, o que
obviamente limitaria o alcance de uma teoria. Essa postura no deve ser
entendida como um anti-realismo, nem como uma subestimao de esforos
de carter emprico. Trata-se antes de uma tentativa de reconhecer as
limitaes que qualquer teoria possui, o que no impede que certas teorias
sejam julgadas mais ou menos adequadas, ainda que esses julgamentos
sejam sempre provisrios.
De um ponto de vista mais especfico, a noo de traos, de relevncia,
de invarincia e a noo de equivalncia de modo geral (como uma
conseqncia) parecem permanecer ainda bastante vagas no modelo Toury.
Embora Toury procure relativizar a noo de relevncia, continuamos sem uma
definio clara de como podemos determinar o que e o que no relevante
em um texto (ainda que considerando uma determinada situao ou um
determinado fim). A noo de traos igualmente vaga, uma vez que o autor
no estabelece que tipo de coisas podem ser traos, no fornecendo nenhuma
explicao sobre sua natureza, nmero ou organizao. Embora possamos
reconhecer algum progresso no tratamento dado por Toury questo da
equivalncia, ainda encontramos uma certa vagueza na definio do termo.
1.1.4. Traduzibilidade e equivalncia: o modelo Koller
Em seu livro Einfhrung in die bersetzungswissenschaft (Introduo
aos Estudos da Traduo), Werner Koller apresenta uma breve discusso dos
temas centrais da Teoria da Traduo. O autor dedica boa parte de seu livro
ao tema da equivalncia (o captulo 2 do livro, intitulado quivalenz ocupa
aproximadamente metade da extenso do livro), abordando tambm a questo
da traduzibilidade, para ele atrelada ao conceito de equivalncia.
Koller discute a questo da traduzibilidade tendo como pano de fundo a
discusso das posturas do relativismo e do universalismo lingstico,
contrapondo a postura whorfiana de uma intraduzibilidade por princpio
postura universalista chomskiana, que geraria uma tese de traduzibilidade por
34
princpio.18 De acordo com a primeira postura, a linguagem seria constitutiva
de modelos de interpretao da realidade; para cada lngua haveria um modelo,
e esse modelo no seria compartilhvel com falantes de outras lnguas.
Diferentes lnguas segmentariam a realidade e a interpretariam de formas
diferentes. Desse modo, falantes de lnguas diferentes construiriam modelos
diferentes de interpretao da realidade, resultando na impossibilidade de
transmisso de um mesmo significado em duas lnguas (i.e. duas estruturas
conceituais) diferentes e conseqente impossibilidade de haver traduo (p.
162). J em um quadro terico universalista gerativo, a possibilidade de
expresso de contedos semnticos iguais seria a mera realizao de uma
mesma estrutura profunda em diferentes estruturas superficiais de lnguas
diferentes (p. 180).19 Mesmo o princpio estruturalista de que qualquer coisa
que possa ser dita em uma lngua pode sem dvida ser dita em outra
(BLOOMFIELD, 1935 apud KOLLER, 1995, p. 161, traduo nossa) estaria de
acordo com uma tese de traduzibilidade por princpio (podendo haver
diferenas apenas no que diz respeito conotao do que foi dito). De acordo
com essa hiptese, uma vez que no h limites para a capacidade expressiva
de uma lngua, no haveria por que supor que algo dito em uma lngua no
possa ser dito em outra. Segundo o autor, a tese da traduzibilidade por
princpio tambm teria um vasto lastro na prtica efetiva da traduo, i.e. no
fato de que a traduo existe na prtica.
Koller acaba assumindo uma postura de traduzibilidade relativa. Para
ele, tanto a viso da absoluta traduzibilidade quanto a da absoluta
intraduzilidade sofrem de deficincias graves:
deve-se notar em relao viso racionalista da
traduzibilidade no mbito denotativo, que essa viso subestima
o papel da lngua no processo de aprendizagem: as condies
da relao mtua entre lngua - prtica cotidiana (cultura)
interpretao da realidade realidade, permanece sem ser
consideradas. A viso da lngua relacionada ao contedo e o 18 Para uma anlise dos argumentos do relativismo e do universalismo lingstico, ver Gonalves (2008). 19 Koller parece aplicar diretamente a distino entre estrutura profunda e superficial a uma relao sintaxe-semntica. Deve-se notar, contudo, que a distino como feita pela gramtica gerativa uma distino exclusivamente sinttica (cf. CHOMSKY, 1965).
35
princpio do relativismo, por outro lado, superestimam, i.e.
absolutizam o papel da lngua no processo de aprendizagem.
(KOLLER, 1995, p. 186 - grifo do autor)20
Tendo em vista os problemas apontados, Koller procura um caminho do
meio, em que as relaes entre lngua, pensamento e realidade sejam vistas
de forma dinmica (p. 186). Nessa forma intermediria de entendimento da
linguagem
os limites impostos ao conhecimento pela lngua e pela
interpretao da realidade lingisticamente formulada so
igualmente refletidos, transformados e expandidos no processo
de aprendizado; essas mudanas so refletidas novamente na
lngua (no uso da lngua): lnguas ou melhor, os falantes das
lnguas, so criativos (criatividade lingstica). 21 Essa
criatividade encontra expresso, dentre outras coisas, nos
procedimentos tradutrios, com os quais lacunas no sistema
lexical de uma lngua alvo so fechadas. Traduzibilidade ,
assim, no apenas relativa, mas tambm progressiva:
medida que se traduz, aumenta-se igualmente a
traduzibilidade da lngua. (KOLLER, 1995, p. 186 - grifos do
autor)22
Nesse caminho do meio a noo de traduzibilidade uma noo
gradual, porque assim como a compreenso de um texto no pode jamais ser
20 Zusammenfassend ist zur rationalistischen Auffassung der bersetzbarkeit im denotativen Bereich anzumerken, dass sie die Rolle der Sprache im Erkenntnissproze unterbewertet; das wechselseitige Bedingungsverhltnis von Sprache- Lebenpraxis (Kultur) Wirklichkeitsinterpretation Wirklichkeit bleibt unreflektiert. Die inhaltbezogene Sprachauffassung und das linguistische Relativittsprinzip dagegen berbewerten bzw. verabsolutieren die Rolle der Sprache im Erkenntnisproze. Todas as tradues de Koller so nossas. 21 Koller no deixa claro se o conceito de criatividade lingstica por ele empregado o mesmo conceito que encontramos no gerativismo. Ao que tudo indica, parece se tratar de outra coisa. 22 die Grenzen, die die Sprache und die sprachlich gefaten Wirklichkeitsinterpretationen dem Erkennen setzen, werden im Erkenntnisproze zugleich reflektiert, verndert und erweitert; diese Vernderungen wiederum schlagen sich in der Sprache (der Sprachverwendung) nieder: Sprachen bzw. Sprecher von Sprachen sind kreativ (Kreativitt der Sprache). Diese Kreativitt kommt u.a. in den bersetsungsverfahren zum Ausdruck, mit denen Lcken im lexikalischen System einer ZS geschlossen werden. bersetzbarkeit ist damit nicht nur relative, sondern immer auch progressive: indem bersetzt wird, wird die bersetzbarkeit der Sprachen zugleich gesteigert
36
absoluta, mas sempre apenas relativa e mutvel, tambm a traduzibilidade de
um texto sempre relativa23 (p. 178). Para Koller, a linguagem no apenas
molda a percepo da realidade do falante, mas tambm moldada por ele
para preencher eventuais lacunas, e a traduo desempenharia um papel
crucial nesse processo.
O entendimento da traduzibilidade como uma noo gradual tambm ter
seus efeitos sobre o conceito de equivalncia dentro da reflexo de Koller, uma
vez que o autor tambm define traduo utilizando o conceito de equivalncia,
demonstrando um grande interesse em diferenciar precisamente a traduo
propriamente dita (eigentliche bersetzung, de acordo com a terminologia de
Jakobson, translation proper) da adaptao e outros processos textuais
semelhantes (p. 188, 189)24 . Para ele, deve-se considerar como traduo
somente uma produo textual que satisfaa determinadas condies de
equivalncia, considerada pelo autor como a relao constitutiva da traduo25.
De acordo com ele, no h apenas uma ligao entre o texto alvo e o texto
de partida, mas uma relao especfica entre texto alvo e texto de partida (p.
189). O limite entre traduo, adaptao e outros processos de reescritura (e.g.
resumos) no seria, no entanto, facilmente travel: h textos claramente
caracterizveis como tradues, textos claramente caracterizveis como
adaptaes e um espao em que as duas noes se sobrepem, tornando
difcil a classificao de determinados textos como pertencentes a uma ou
outra rea. Nas palavras do autor,
Se tambm difcil de um ponto de vista terico diferenciar
tradues no sentido prprio de adaptaes, uma tal
diferenciao em ltima anlise indispensvel, quando se
trata da descrio de equivalentes potenciais e das condies
de sua atualizao. Isso significa nada menos que admitir que
23 wie das Verstehen eines Textes nie absolut sein kann, sondern immer nur relativ und vernderlich, ist auch die bersetzbarkeit eines Textes immer relativ. 24 Bei einem quivalenzorientierten Ausgangspunkt ist die Unterscheidung zwischen Bearbeitung und bersetzung, zwischen bearbeitenden und bersetzenden, zwischen textproduzierenden und reproduzierenden Elementen in der bersetzung bei aller Relativitt des bersetzungbegriffs von fundamentaler Bedeutung (p. 196, grifo do autor). 25 relao constitutiva da traduo estabelecida entre um texto alvo e um texto de partida eu chamo relao de equivalncia (ou tambm relao tradutria). (Die bersetzungskonstituirende Relation zwischen Zieltext und Ausgangstext bezeiche ich als quivalenzrelation (oder auch als bersetzungsbeziehung)). (p. 189, grifo do autor)
37
tambm os estudos descritivos da traduo possuem um
componente normativo. Haveria assim uma rea central, em
que a determinao da traduo no sentido prprio fcil e
clara; uma rea limtrofe, em que traduo e adaptao se
sobrepem (...); e uma rea clara de adaptao. (KOLLER,
1995, p. 202)26
Chama a ateno na passagem citada a afirmao sobre a necessidade
dos estudos descritivos da traduo tambm possurem um componente
normativo. Aparentemente, para Koller, a dificuldade em separar traduo de
adaptao na zona de sobreposio s pode ser resolvida com um critrio
normativo (e, portanto, relativamente arbitrrio). Embora a discusso a respeito
da necessidade ou da produtividade de um componente normativo em uma
teoria da traduo tenha muito pouco espao nos debates atualmente 27 ,
apenas a incluso de um componente normativo no resolve o problema.
Como o prprio Koller aponta (p. 13), a deciso sobre que tipo de textos deve
ser includo como objeto de uma teoria em si uma questo em certo grau
normativa (embora nunca seja completamente desprovida de motivaes
descritivas). Contudo, o autor no aponta critrios para que se julgue dado
texto como objeto (primrio) dos estudos da traduo ou no, ao invs disso
ele recorre a constantes exemplos, o que prejudica a confiabilidade dos
julgamentos.
Koller chega a afirmar que a especificidade da relao tradutria acima
referida decorreria (ao menos em parte) da situao do tradutor, que deve ser
considerado como um outro tipo de emissor, bem como um outro tipo de
receptor, uma vez que um tradutor recebe um texto e o interpreta com
finalidades especficas e assume uma postura de emissor secundrio, em
26 Wenn es auch schwierig ist, bersetzungen im eingentlichen Sinn von Bearbeitungen abzugrenzen, so ist eine solche Unterscheidung sptestens dann unerllich, wenn es um die Beschreibung von potentielen quivalenten und den Bedingungen ihrer Aktualisierung geht. Das heit nicht anders, als dass auch die beschreibende bersetzungswissenschaft eine normative Komponente hat. Es wird dabei einen zentralen Bereich geben, wo die Bestimmung von bersetzung im eingentlichen Sinne eindeutig und einfach ist; einen Grenzbereich, wo bersetzung und Bearbeitung ineinander bergehen (); und einen Bereich der eindeutigen Bearbeitungen. 27 Talvez fosse interessante discutir a necessidade de um componente normativo para uma teoria voltada para o treinamento de tradutores, por exemplo. O tema, contudo, foge ao escopo deste trabalho.
38
contraposio ao autor do original, o emissor primrio (p. 196). Assim, uma
traduo feita pelo prprio autor deveria ser considerada de um modo diferente
de uma traduo feita por um tradutor comum (p. 197), o que parece ser uma
sugesto de que se considere a autoridade do autor original como fator para se
julgar dado texto como traduo ou no. As opes de Koller para a
delimitao do objeto dos estudos da traduo so, contudo, arbitrrias demais,
ainda que reconheamos que dificilmente poderemos nos livrar de um certo
grau de arbitrariedade.
1.1.4.1. Tipos e graus de equivalncia em Koller
Para Koller a traduzibilidade (e, portanto, a satisfao das condies
especficas de equivalncia) se do sempre tendo por base as semelhanas
entre duas lnguas/culturas. Desse modo, assumir uma traduzibilidade
completa significaria supor uma interpretao da realidade idntica entre o
pblico receptor do texto de partida e do texto de chegada, ao passo que
assumir uma intraduzibilidade absoluta significaria negar a existncia de
qualquer semelhana entre as interpretaes (p. 165). A via adotada por Koller
de uma traduzibilidade parcial acarretaria, ento, em assumir que as
interpretaes da realidade de diferentes culturas no seriam nunca idnticas,
mas que as semelhanas entre elas seriam suficientes para garantir um
mnimo de inteligibilidade. Uma vez que as interpretaes em diferentes
culturais no seriam, de acordo com o autor, nem completamente idnticas,
nem completamente diferentes, o reflexo disso para o conceito de equivalncia
que ela passa a ser tambm uma noo gradual. Para Koller, h trs pontos
principais para esclarecer o conceito de equivalncia:
1. Equivalncia (tradutria) significa primeiramente apenas que
uma relao tradutria se faz presente entre dois textos;
portanto, seria melhor falar em uma relao de equivalncia ao
invs de apenas em equivalncia. 2. A utilizao do termo
equivalncia pressupe a indicao de um quadro de
referncia. 3. Como equivalentes da LA [lngua alvo] so
designadas unidades discursivas/textuais de diferentes tipos,
39
de diferentes nveis e extenses, que correspondem a
elementos da LP [lngua de partida] em uma relao tradutria
especificada atravs da indicao do quadro de referncia.
(KOLLER, p. 215, grifo do autor)28
Em relao a 1, Koller enfatiza o carter relacional do conceito de
equivalncia, que por si s, sem o estabelecimento de um quadro de referncia,
ainda no diz que tipo de relao est em jogo. Nas palavras do autor:
com o termo equivalncia postula-se que h uma relao entre
um texto (ou, mais especificamente, elementos de um texto)
em uma lngua L2 (texto alvo) e um texto (elementos de um
texto) em uma lngua L1 (texto de partida). O termo
equivalncia ainda no diz nada sobre o tipo de relao. (p.
215, grifos do autor).29
Sobre 2., Koller afirma que
o tipo da relao de equivalncia seria ento