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5/11/2018 Fundamentos Direito Publico 2010 2011 Armando Rocha - slidepdf.com
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PARTE I
Conceitos introdutórios. Formação e evolução do poder político e do direito público
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I
Introdução
1. O homem e a sociedade.
1.1 A vida em sociedade.
- Os seres humanos vivem em sociedade. São animais gregários. Vivem em
relação.
No início de uma obra célebre – A Política –, ARISTÓTELES deixou escrito: «o
homem é, naturalmente, um animal político» querendo com isso significar que o homem é«feito para viver em sociedade»1. E acrescenta: mais do que as abelhas ou qualquer outra
espécie animal que viva em estado gregário, o homem tem uma aptidão natural para viver
integrado em sociedade. Nesta linha de pensamento, ARISTÓTELES chegou a afirmar que
aquele que não vive em sociedade ou é uma criatura degradada ou um ente superior ao
homem, melhor: «um bruto ou um deus». Não é um ser humano.
A «polis», para os gregos da Antiguidade Clássica a «cidade»2, não era uma
qualquer comunidade, mas aquela onde podiam ser satisfeitos os fins vitais do homem. Em
ARISTÓTELES, corresponde à sociedade perfeita e, naturalmente, para ela tende a vida dohomem. A « polis» e o Estado ou comunidade política por excelência3.
Donde: há, em ARISTÓTELES, uma tendência natural do homem para a vida em
sociedade política, por isso se afirma que este Autor defende uma concepção naturalística
da sociedade política e do poder político. Os homens nascem para viver em sociedade e,
logo, para exercer o poder.
Esta concepção naturalística virá, mais tarde, na Idade Média, a ser retomada por S.
TOMÁS DE AQUINO.
- A vida dos ascetas, a vida em completo isolamento, é uma situação conhecida mas
pontual. Corresponde a uma excepção e não à regra.
- Nos tempos que correm, aliás, com a facilidade de comunicação, mesmo por
meios que não exigem fios, torna todos participantes de formas outras de vida em
1 Política, vol I, 1, 9.2 Política significa, pois, tudo o que se refere à cidade e, logo, «o que é urbano, civil, público, e até mesmosociável e social». NORBERTO BOBBIO, «Política» in Dicionário de Política, Ed. NORBERTO BOBBIO, NICOLA
MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, Editora Universidade de Brasília, 2ª edição, p. 954 e p 960.3 MARIA LÚCIA AMARAL, A forma da República. Uma introdução ao estudo do direito constitucional,Coimbra Editora, 2005, pp. 14 e ss.
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sociedade. A era da comunicação e a vivência em rede em moldes não fisicamente
presentes mas virtualmente participantes de uma vida em sociedade. Exemplificação. As
comunidades virtuais.
- A rede e o «self».4 A existência de um novo sistema de comunicação entre os
homens e a linguagem digital universal. As mudanças daí decorrentes para o nosso estarem sociedade. Globalização e identidade pessoal. A formação de uma identidade pessoal.
As redes aumentam a capacidade de cada pessoa humana se organizar mas pode pôr em
causa a pessoa e a sua personalidade, a sua identidade.
- As tecnologias da informação, a sociedade e a pessoa humana. A construção das
identidades pessoais ou colectivas. A ausência de referências a uma sociedade global.
Interpretar a nova sociedade em formação, sabido que as redes são estruturas abertas mas
sabido também que a pessoa humana é um fim em si mesmo, com dignidade própria.
4 MANUEL CASTELLS, A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em rede, FundaçãoCalouste Gulbenkian, Lisboa, 2002, pp. 26 e ss e 605 e ss.
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1.2. Diferentes formas de sociedade: família, empresa, clube desportivo,
município, Estado, Organização das Nações Unidas, sociedade internacional...
- A sociedade política (polis) não é a única sociedade que congrega as pessoas.Estas dão origem a diversos tipos de sociedade. Umas são racionalmente construídas, de
acordo com um conjunto de regras pré-determinadas. É o caso de uma sociedade anónima,
como o Banco Espírito Santo, ou de uma associação pública, como a Ordem dos
Arquitectos, ou de uma associação de voluntariado como o Banco Alimentar contra a
Fome. Outras são de formação espontânea ou acidental, como o caso do grupo que sobe
num elevador, do conjunto de turistas que sofre um acidente de barco ou de um grupo de
pessoas que ficou sob os escombros numa derrocada ou, tão simplesmente, amigos que
resolvem ir ao cinema e são envolvidos num tumulto de rua. Há, em suma, organizaçõessocietárias institucionalizadas, como é desde logo, também, o Estado, e outras inorgânicas,
como um grupo que ocasionalmente se encontra dentro de uma carruagem no comboio de
Lisboa para Sintra5.
- Por outro lado, há sociedades simples, como a família, outras complexas, como
um município, um Estado Federal (EUA) ou a Organização das Nações Unidas (ONU)6.
1.3. A necessidade de poder ou autoridade social.
- A necessidade, no âmbito de um grupo, de tomar decisões que a todos respeitem e
a todos afectem (decisões colectivas). Ex. se um grupo de amigos quer ir ao futebol em
conjunto, é necessário deliberar se vão de metro, de carro ou a pé... Se alguém pertence a
uma academia, e há necessidade de tomar a decisão de convocar os confrades para as
reuniões...e reconhecer a quem convoca o poder de a convocar. Está em causa determinar
onde está o poder, localizá-lo, identificá-lo; está em causa a legitimação do poder.
-A necessidade de um estatuto organizacional, definidor dos interesses ou fins a
realizar através da organização e do âmbito das tarefas e competências dos órgãos que
integram essa organização – um grupo que acidentalmente se constitui numa ilha cheia de
perigos e que precisa de uma organização para sobreviver, precisa de designar alguém que
5 Sobre o assunto, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Manual de Introdução ao Estudo de Direito, vol I, com acolaboração de RAVI AFONSO PEREIRA, Almedina, pp. 28-29.6 Em especial sobre as organizações internacionais e a sua complexidade, Organizações Internacionais.Teoria geral. Estudo monográfico sobre as organizações internacionais de que Portugal é membro, coordenação de JOÃO MOTA DE CAMPOS e outros, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
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fique de vigília durante a noite, de designar substitutos para essa tarefa de vigília, de
hierarquizar tarefas... Está em causa a criação de uma organização, em razão dos interesses
a satisfazer ou dos fins a realizar, e, no âmbito dessa organização, estabelecer centros de
poder ou órgãos a quem são definidas competências.
- A necessidade de criar expectativas que permitam a cada membro da sociedade
contar com os resultados das suas acções e com as acções dos outros – se, num grupo que
joga futebol, só se sabe que há uma bola e que se lhe pode dar pontapés, ninguém quer
participar porque não são previsíveis resultados... Não é possível programar actos com
vista a alcançar os objectivos que cada um se propõe7. Está em causa a necessidade de
fixar regras de actuação.
1.4. A vida em sociedade sem poder ou autoridade social.
- Se não existisse poder, o que seria? Imagine-se um jogo de hóquei sem árbitro ou
a utilização de uma auto-estrada que não está sujeita a regras de trânsito, às normas do
Código da Estrada. Como irá proceder cada um dos que utiliza essa auto-estrada ou cada
um dos jogadores de hóquei?
- O natural será que os potenciais jogadores receiem ir a jogo e os potenciais
utilizadores tenham medo de utilizar a auto-estrada... Ninguém pode prever as actuaçõesdos outros e adequar as suas próprias actuações às deles. A capacidade de prever e agir
livremente em função da previsão feita decorre da existência de normas, de uma regulação
do conjunto.
1.4.1. A vida em «estado de natureza» e a passagem para o «estado de
sociedade»
- A distinção entre «estado de natureza» e «estado de sociedade». Concepções
antropológicas sobre o ser do homem: o pessimismo de THOMAS HOBBES, o optimismo de
JEAN JACQUES ROUSSEAU e o realismo de JOHN LOCKE8.
- O pessimismo de THOMAS HOBBES – Autor inglês, nascido em 1588 e falecido em
1679, escreve duas obras políticas fundamentais «De Cive» (1642) e « Leviathan» (1647) e
7 Sobre o fenómeno político e o Estado, JORGE MIRANDA , Manual de Direito Constitucional, 5ª edição,Coimbra Editora, 1996, pp. 11-13.8 Uma breve referência do pensamento destes autores pode seguir-se em D IOGO FREITAS DO AMARAL, Manual de Introdução ao Direito, vol. I, com a colaboração de RAVI AFONSO PEREIRA, Almedina, 2004, pp.30-35.
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as suas concepções fundamentam a teoria moderna do Estado, a passagem da «anarchia»
para a «archia» do Estado, do estado de natureza ao estado civil.
- Influenciado pelas desordens do tempo em que viveu – «o medo e eu nascemos
irmãos gémeos», disse um dia –, THOMAS HOBBES vê o homem como um ser egoísta,
egocêntrico, que procura a felicidade a todo o custo e procura aumentá-la crescentemente;como todos pensam o mesmo, o conflito vai de imediato nascer e, com ele, a guerra
permanente, caracterizada pela expressão conhecida «homem lobo do homem». Esta é a
imagem do «estado de natureza», um estado em que não há poder político. Como todos
são iguais e têm o direito de usar por igual a própria força, a anarquia é o resultado.
- Sempre que os homens vivem sem poder que os mantenha em respeito, a guerra
de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) nasce. E nasce pela competição
desenfreada, pela desconfiança de uns em relação aos outros, porque todos querem o
mesmo e vão fazer tudo para o alcançar. Não é necessário que todos andem de armas namão; basta a desconfiança permanente – todos desconfiam de todos – e a sensação
constante de insegurança9.
- Apesar de, no estado de natureza, não ser conhecida a distinção entre o justo e o
injusto, o certo e o errado (não há lei nem há justiça), T HOMAS HOBBES vive obcecado pela
insegurança e a sua preocupação central está em criar um poder que assegure a paz e a
segurança e, por seu intermédio, a justiça. Isso acontecerá quando os indivíduos
renunciarem ao direito de usar cada um a própria força e a entregarem a alguém que a
usará contra eles. O poder político é caracterizado pela exclusividade do uso da força.- A passagem do estado de natureza ao estado de sociedade é feita através de um
contrato ou pacto através do qual os homens alienam (transferem de forma definitiva e
irrevogável) os seus poderes para que surja um único poder na sociedade, o poder político.
O poder fica nas mãos do Estado, um Estado forte, um Estado monstro (Leviathan) no qual
não há direitos nem liberdades que se lhe possam opor (todos lhe foram alienados). O
Estado tem o monopólio do poder, um poder que não tem paralelo na Terra pois foi feito
para não ter medo (Leviathan é um monstro bíblico que tanto é caracterizado como uma
serpente, como um hipopótamo, como um crocodilo, como uma baleia, como um monstro
de várias cabeças)10.
- A concepção de THOMAS HOBBES sobre a sociedade e o poder político faz dele
um contratualista.
9 Num quadro que é de direito penal, leiam-se as reflexões estimulantes sobre o poder, tendo como ponto departida THOMAS HOBBES, em JOSÉ DE FARIA COSTA, «Poder e Direito Penal (atribulações em torno daliberdade e da segurança)», in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 136º, nº 3942, Jan-Fev. 2007, pp.
151 e ss..10 Sobre a concepção de THOMAS HOBBES, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, História da Ideias Políticas, vol.I, Almedina, 1998, pp. 351 e ss..
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- O optimismo de JEAN JACQUES ROUSSEAU – Autor suíço, nascido em Genebra
(daí seja conhecido como «o genebrino»), em 1712, e falecido em 1778. Foi um
autodidacta. Escreve «O contrato social ou princípios de direito político»11
- Para JEAN JACQUES ROUSSEAU há também um estado de natureza e um estado de
sociedade e a passagem de um estado para outro estado faz-se por força de um contrato oupacto, o que faz dele um Autor com uma concepção contratualista sobre a sociedade
política e o modo de lhe dar origem.
- O estado de natureza corresponde, em razão da natureza boa do homem, ao
paraíso. Aí o homem é livre e feliz; faz o que lhe apetece e tudo corre bem. É a concepção
do «bom selvagem». A questão está agora em saber porque não pode o homem continuar
sempre a viver feliz e contente no estado de natureza? A razão está no progresso
civilizacional que o leva a sedentarizar-se.
- Ao começar a dedicar-se ao cultivo das terras, o homem constrói instrumentosagrícolas. Quando tal acontece, nasce a propriedade privada (este instrumento é meu,
aquele é teu; esta terra é minha, aquela é tua) e, simultaneamente, em virtude do mérito
pessoal, de acasos climáticos ou da localização e composição das terras, começam a
evidenciar-se diferenças entre os homens: uns têm colheitas fartas, outros têm exíguas.
Com as diferenças entre eles, de haveres e saberes que se reflectem nos haveres, nascem os
conflitos, as paixões.
- Os homens tornam-se egoístas, ambiciosos e a vida quotidiana em sociedade
torna-se difícil, feita de lutas e desavenças. Em suma, do paraíso evolui-se para o inferno.- Mas os homens são racionais e, ao fazerem uso da razão, resolvem juntar-se em
sociedade, em vez de continuarem a guerrear-se. Celebram, então, um contrato ou pacto.
Mas esse pacto que entre si celebram tem um objectivo: preservar a liberdade primitiva,
aquela liberdade que tornava os homens felizes no estado de natureza, isto é, cada um não
depender de outrem e sim somente de si próprio. Como conseguir isso através de um pacto
ou contrato?
- Pois construindo um contrato em que todos e cada um alienam por igual a sua
liberdade a todos e cada um dos demais. Se todos fizerem o mesmo e em igual medida, o
que cada um dá aos outros corresponde ao que os outros lhe dão a si. A reciprocidade entre
o que se dá e o que se recebe é total. Se assim acontecer, então o homem que é livre no
momento em que celebra o contrato, mantém-se livre depois do contrato. Mais. Quando, na
sociedade política que nasce com o contrato, obedece ao poder que nela se forma, o
homem não obedece a ordens de outrem; continua a obedecer a si próprio.
- Daí que, no estado de sociedade, apesar de existir um poder político, os homens
que fazem parte dessa sociedade mantêm intocada a sua liberdade. Através do contrato,
11 Sobre o pensamento político de JEAN JACQUES ROUSSEAU, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL , História das Ideias Políticas II (apontamentos), Lisboa, 1998, pp. 450 e ss..
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cada homem passa a obedecer a todos e, obedecendo a todos, não obedece a ninguém, a
não ser a si próprio.
- A defesa da democracia directa.
- A democracia totalitária.
- O realismo de JOHN LOCKE12. Autor inglês nascido em 1632 e falecido em 1704.
A sua obra fundamental no âmbito da análise da vida em sociedade tem o seguinte título:
«Ensaio sobre a verdadeira origem, extensão e fim do governo civil».
- Para JOHN LOCKE, a sociedade política e o poder político que nela se desenvolve e
a organiza tem também natureza contratual. Resulta de um contrato ou pacto entre os
homens, pelo que estamos também perante um Autor que defende uma concepção
contratualista sobre o poder político.
- No estado de natureza, os homens vivem entregues a si próprios, sem poderpolítico que os organize e comande. Porém, este estado de natureza não é, à partida, mau
nem é, à partida, bom, porque os homens que o formam não são, por natureza, maus nem,
por natureza, bons. O estado de natureza será, por isso, o que os homens dele fizerem.
-Os homens – diz JOHN LOCKE – nascem livres e iguais, todos exercem, no estado
de natureza, livremente e em igualdade de condições, os poderes que possuem. No entanto,
no estado de natureza, não há regras institucionalizadas; não há leis formais; não há uma
ordem pré-estabelecida. Cada um age de acordo com a interpretação que faz das leis da
Natureza, uma interpretação subjectiva, que segue embora os critérios da razão.- Como não há um poder que discipline o exercício das diferentes liberdades e as
faculdades que decorrem do direito de propriedade privada e como não há tribunais que
controlem o cumprimento das leis naturais, os homens fazem justiça por suas mãos –
justiça privada – sempre que consideram que os outros os afectam.
- Quando cada um se torna juiz em causa própria, os problemas surgem. As
injustiças começam a disseminar-se. A propriedade privada e a liberdade não são
garantidas. A situação que então se cria não é conforme à razão e os homens, sendo
racionais, querem pôr-lhe termo.
- A passagem do estado de natureza para o estado de sociedade torna-se urgente e
faz-se por intermédio de um contrato ou pacto entre os homens. Nesse contrato, todos e
cada um renunciam ao seu direito de reprimir a transgressão às leis naturais em favor de
algo que vai nascer com esse pacto: o poder político.
- O contrato que marca a transição para a sociedade política não integra, porém,
uma alienação de poderes, como em THOMAS HOBBES (alienação a uma entidade) ou em
JEAN JACQUES ROUSSEAU (alienação a todos os homens que celebram o contrato), antes
12 Sobre o pensamento político de JOHN LOCKE, DIOGO FREITAS DO AMARAL, História das Ideias Políticas, Almedina, p.
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uma delegação de poderes. Diferencia a alienação da delegação o facto de, no primeiro
caso, não haver a possibilidade, para quem aliena, de reaver o que alienou, ao passo que,
no segundo caso, quem delega mantém o controlo do bem que delega de tal modo que o
pode reaver se entender que o uso que está a ser dado ao bem não é aquele que o
determinou a celebrar o contrato.- O poder político que nasce de uma delegação de poderes é um poder sujeito
permanentemente a controlo; está constantemente a ser fiscalizado. À faculdade de os
homens, em sociedade política, poderem reaver os bens (poderes) que delegaram chamou
JOHN LOCKE o «direito de apelar aos céus».
- Acresce ao que vem de ser dito o facto de, através do contrato social, os homens
não delegarem todos os seus poderes. Delegam somente aqueles que dizem respeito ao
bem público, aos interesses do todo. Os poderes relacionados com a intimidade privada e
com a família, por exemplo, ficam fora do contrato social, porque não pertencem à esferapública e, pelo contrário, integram a esfera privada.
- JOHN LOCKE defende um poder político moderado que, desde logo, respeita a
liberdade e a propriedade privada. A sua concepção influenciou a Constituição dos Estados
Unidos da América.
- O liberalismo político.
1.4.2. Sociedade e poder. A construção da «polis».
- Os autores contratualistas dos séculos XVII e XVIII deixaram em herança aos
estudiosos do Estado (sociedade política) um legado inestimável sobre diferentes formas
de compreender a necessidade de poder na sociedade, sobre a origem desse poder e sobre o
modo de ele se exercer, em razão da sua origem. Mas deixaram-nos também um legado
não menos inestimável sobre a compreensão da liberdade que subjaz à existência mesma
de poder em sociedade, porque o contrato que dá origem ao poder é celebrado por homens
livres e iguais.
- O poder em sociedade exige um fundamento (contrato). O seu uso tem de assentar
numa justificação objectiva (decorrente do conteúdo do próprio contrato). A liberdade das
pessoas que compõem essa sociedade, porém, não tem de se justificar para ser. Emana da
dignidade da pessoa humana.
2. Sociedade, poder ou autoridade social e direito.
- O homem é um animal gregário, vive em sociedade, e, em sociedade, necessita de
poder. A construção do poder em sociedade é, pois, uma necessidade.
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- O poder em sociedade engloba, de um lado, a faculdade de mandar, dar ordens ou
definir condutas ou comportamentos alheios e, de outro, a capacidade de se fazer obedecer,
isto é, de conseguir que essas ordens ou comandos sejam acatadas.
- Mas o poder pode confundir-se com a força (poder a que se obedece por medo das
consequências) se não for acompanhada de autoridade.
- A autoridade significa que o comando é definido por quem tem carisma ou
aptidão natural para se fazer obedecer (capacidade de liderança) ou por quem integra uma
instituição hierárquica ou uma cadeia de comando livremente aceite pelos membros do
grupo social a que pertence essa cadeia de mando (institucionalização do poder no direito).
A capacidade de se dar ao respeito resulta, neste caso, de um exercício do poder legitimadono direito.
- Na sociedade política ou em qualquer outro grupo social, o exercício do poder
exige a junção de três realidades:
a) constituição do grupo no sentido da sua identificação, em razão dos interesses
comuns a satisfazer ou dos fins a prosseguir;
b) valores que emanam do grupo e que se reflectem em regras que a todos
vinculam;c) órgãos ou sistema de órgãos que fazem aplicar as supra-referidas regras.
- O poder consubstancia-se em decisões que respeitam ao grupo como um todo.
- Quando a capacidade de impor comandos aos outros permite criar expectativas de
comportamentos futuros, isto é, quando essa capacidade se funda e desenvolve de acordo
com regras que todos conhecem, não há arbítrio no exercício do poder. Diz-se, neste caso,
que o poder está, na sociedade, legitimada no direito. As condições de validade do
exercício do poder encontram-se no direito. A validade do exercício do poder é aferida
pelo direito.
- O direito é o «colete de forças» do poder, mas é, ao mesmo tempo, a «força
expansiva» desse mesmo poder. Para a sociedade, o direito é, simultaneamente, garantia de
uma continuidade passada e intenção de concretização do futuro, em qualquer caso através
do poder.
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- A sociedade política «constitui-se» através da institucionalização de um poder, o
poder político. Na Antiguidade Clássica, já se falava em constituição. Esta era a ordem
fundamental de toda e qualquer comunidade política. Depois do século XVIII,
Constituição passa a ter um conteúdo mais rigoroso, juridicizando-se. Ela é a lei
fundamental de um Estado13.
- O exemplo constitucional português. Breve referência às diferentes leis
constitucionais e referência às sucessivas sociedades políticas que, por seu intermédio, se
«constituíram»14.
- Primeira aproximação a um conceito de direito. Direito como ordem de valores
que identifica a sociedade e a sua compreensão da justiça e confere validade à acção do
poder político; como conjunto de regras que legitimam o exercício do poder e traduzem, aomesmo tempo que sedimentam, a ordem de valores que identifica a sociedade e a sua
compreensão de justiça.
13 MARIA LÚCIA AMARAL, A forma da República..., p. 13.14 JORGE MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Rio de Janeiro, 2007, pp. 139 e ss. MARCELLO
CAETANO , Constituições Portuguesas, Verbo, 1981.
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3. Em jeito de conclusão.
- Quando os homens se «constituem» em sociedade e nela institucionalizam um
poder cujo exercício se funda em normas, se desenvolve em ordem à satisfação dosinteresses comuns, isto é, a fins ou valores em que todos se reflectem, e permite criar,
através de normas, expectativas legítimas de comportamentos sociais, sobre as quais se
podem edificar projectos pessoais, estamos perante uma sociedade politicamente
organizada, dotada de uma constituição.
- A constituição de uma sociedade política funda o poder político, orienta a sua
acção e garante um desenvolvimento social organizado.
- Constituição e Estado de Direito.
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II
Homem, sociedade e poder político
4. A civilização grega e a invenção da política.
- Na civilização ocidental, é por todos reconhecido ser a Grécia Antiga o berço da
reflexão teórica sobre a sociedade política e sobre o poder que nela evolui. Não pode, pois,
quem queira bem compreender estes fenómenos, de aí regressar.
- O génio grego não chega até nós, neste dealbar do século XXI, só através da arte,
nomeadamente da escultura e do teatro. Chega-nos também por intermédio da filosofia, daoratória e porventura mais ainda pela forma como deram vida à política, a «inventaram». É
costume dizer-se que os gregos pensaram a política; os romanos fizeram dela acção.
4.1. O «século de Péricles»
- PÉRICLES (495-430 a.C.) viveu num período particularmente feliz de Atenas e
contribuiu para isso, de tal modo que, tendo somente governado 15 anos (foi
sucessivamente eleito), o seu nome passou a ficar ligado ao século em que governou:«Século de Péricles» (século V antes de Cristo).
- Estadista sábio e maduro (governou desde os 52 anos de idade aos 66 anos, tendo
morrido vítima de peste), consolidou em Atenas o regime democrático e engrandeceu a
cidade nos seus mais diferentes quadrantes, desde o artístico ao militar e económico.
- Não deixou obra escrita mas o seu pensamento é hoje bem conhecido e glosado
em virtude dos relatos de TUCÍDEDES, um historiador grego que reproduziu, em especial,
uma peça de oratória notável, proferida por PÉRICLES por ocasião da cerimónia fúnebre aos
mortos na Guerra do Peloponeso15, onde este tece considerações sobre Atenas e a sua
democracia, defendendo a superioridade desta relativamente aos outros regimes,
concretamente o regime político de Esparta.
15 Ver uma análise do dever/direito de defesa da pátria através de uma análise da oração fúnebre de Périclesem MARIA DA GLÓRIA GARCIA, «A defesa nacional como dever e como direito fundamentais do cidadão e doEstado», in Revista Nação e Defesa, nº 77, 1996, pp. 65 e ss.
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14
- Trata-se de uma oração fúnebre, mas o seu objectivo transcende a homenagem aos
que pereceram e ali se choram, porquanto PÉRICLES procura levantar o moral dos vivos,
mostrando-lhes a nobreza da razão pela qual aqueles morreram: a defesa da democracia.
- Em democracia, governa-se para o interesse de todos e não só de alguns; as leis
são iguais para todos e todos podem participar na «coisa pública», não sendo ninguémafastado pela pobreza ou condição social. A liberdade é a regra do governo e todos podem
livremente defender as suas opiniões na ágora.
- Sendo a democracia um regime tão bom, que infunde respeito a quem nele
diariamente se integra, não surpreende que se queira defendê-lo: a defesa da pátria é, por
isso, entendida como um dever, que se cumpre mesmo com a morte e que redime eventuais
erros que se possam ter cometido ao longo da vida.
- O discurso de PÉRICLES tem mais de 25 séculos mas é permanentemente
revisitado pelos estudiosos e pelos estadistas, quer pela profundeza da análise dademocracia quer pelo poder de convencimento que encerra sobre a bondade do regime
político democrático.
- Para efeitos de compreensão dos «Fundamentos de Direito Público» importa
realçar ter PÉRICLES levado a cabo a defesa de dois valores fundamentais sobre os quais se
«constitui» a sociedade política – a liberdade e a igualdade – bem como a defesa do todo
social que os identifica – Atenas e a sua Constituição. Embora Atenas se estruture sobre a
escravatura, repouse sobre a desigualdade entre o homem e a mulher e esteja longe de
defender o acesso generalizado à cultura, a verdade é que, por força de PÉRICLES e do seudiscurso, temos acesso a uma forma de compreender e viver o poder político de acordo
com valores, sujeito a regras de acção.
4.2. XENOFONTE e a defesa da ditadura
- XENOFONTE (430-347 a.C.) nasce no ano em que Péricles morre. Deixou o seu
pensamento por escrito – «A Retirada dos Dez Mil», «O Príncipe Perfeito», «A República
dos Lacedemónios» são algumas das suas obras. Nestas obras elogia a sociedade fechada,
disciplinada, com regime ditatorial, que vigora em Esparta. Para XENOFONTE a obediência
é um bem de enorme valia para a cidade, a sociedade política do seu tempo. Mas não só
para a cidade, já que a obediência se apresenta igualmente como um bem inestimável no
exército ou em grupos sociais restritos, como a família.
- A defesa do bom chefe e das qualidades inerentes a uma boa liderança (o poder da
oratória, a capacidade de persuadir): o dever do chefe é mandar e o dos súbditos obedecer.
- Para XENOFONTE, o poder político deve ser exercido por bons chefes e, se estes
estiverem no poder, devem manter-se, o que significa que este Autor não coloca o
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15
problema da legitimidade do acesso ao poder nem o problema do exercício do poder de
acordo com valores (legitimidade do exercício)16.
4.3. Platão e o rei filósofo.
-- O diálogo político-filosófico entre PLATÃO e ARISTÓTELES, dois autores de quem
já se disse que tinham «esgotado» a inteligência da humanidade.
- PLATÃO (429-347 a.C.) nasce um ano depois da morte de PÉRICLES e, com 29
anos, presencia a morte de SÓCRATES. Escreve «A República», «O Político», «As leis».
- Foi o primeiro pensador político a delinear um projecto de sociedade política, um
modelo de sociedade onde os homens podem viver com justiça. Depois de olhar para a
história e analisar as experiências políticas suas contemporâneas, concluiu que nenhumacorrespondia ao que se pretendia de uma boa sociedade política e, por isso, esforçou-se por
idealizar, através da reflexão, a boa sociedade política, aquela que é capaz de concretizar a
justiça17.
- A sua reflexão leva-o a concluir que a justiça não coincide com um valor humano,
não coincide com uma virtude nem coincide com «dizer a verdade» ou «restituir o que
recebeu de outrem». Justiça é a boa ordem da cidade, e esta boa ordem obtém-se quando
cada um dos seus membros só faz aquilo para que está vocacionado, aquilo para que tem
aptidão.- PLATÃO dá a conhecer a sua cidade através da fábula dos metais. Tal como há três
metais – ouro, prata e bronze –, há três tipos de homens, em razão das suas aptidões
pessoais – governantes, guardas e artesãos. Se os governantes só chefiarem a cidade, os
guardas só a defenderem e os artesãos e agricultores só trabalharem para o sustento dos
membros da cidade, esta será una, agirá em uníssono e atingirá a justiça. Para isso, é ainda
necessário que nem os governantes nem os guardas tenham propriedade privada – só assim
cada um se poderá dedicar integralmente à tarefa para que está predestinado e, claro, à
cidade. Além disso, é preciso que o casamento e a família sejam abolidos, porque só assim
poderá ser feita a correcta selecção dos jovens para as actividades que vão desenvolver na
cidade, de acordo com as suas aptidões naturais. A educação das crianças e dos jovens é
deixada a cargo da cidade e a igualdade entre os homens e as mulheres deverá ser
realizada.
- A defesa da sofiocracia ou do rei-filósofo. A sucessão cíclica das formas de
governo: sofiocracia/timocracia/oligarquia/democracia/tirania/sofiocracia, de novo.
16 Sobre o pensamento de Xenofonte, DIOGO FREITAS DO AMARAL, História das Ideias Políticas, Almedina,
vol. I, pp. 73 e ss..17 Para uma análise da concepção de Platão, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, O lugar do direito na protecção doambiente, Almedina, 2007, pp. 21 e ss..
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16
- A defesa de uma sociedade fechada e de um regime totalitário, que não conhece a
liberdade.
4.4. Aristóteles e a defesa da cidade plural
- ARISTÓTELES (384-322 a. C.) nasce quando Platão tem 43 anos. Escreve «A ética
a Nicómaco» e «Política».
- ARISTÓTELES é um estudioso da realidade. Analisa-a e classifica os fenómenos
que analisa com espírito cientista. Foi o primeiro cientista da política.
- Defende uma sociedade plural e democrática. A cidade é, para ARISTÓTELES, uma
associação com uma específica finalidade: a realização de uma vida boa para quem nela
vive ou, sob outro ângulo de análise, tem por finalidade a prossecução da felicidade
daqueles que a integram, uma felicidade não entendida como prazer mas como virtude, nosentido ético.
- A pergunta que se coloca é, então, a seguinte: como fazer para que os homens
tenham uma vida boa e sejam felizes? A resposta apresenta-se simples: é preciso que o
governo da cidade se oriente para o bem e as suas leis sejam boas. A virtude do bom
cidadão atinge-se com o bom governo e as boas leis. É através de leis boas que a virtude do
cidadão se alcança.
- Mas quais são as boas leis? Para responder a esta questão, ARISTÓTELES analisa a
obra de PLATÃO e critica-a com veemência. Não aceita a unicidade da cidade de PLATÃO,porque a cidade é formada por homens diferentes, não pode responder a uma só voz. A
cidade é formada por homens diferentes e deve mostrá-lo: defesa do pluralismo político.
Além disso, tem de ter propriedade privada e tem de reconhecer a família porque estas são
instituições que fazem os homens felizes. Quanto às classes sociais, entende que a cidade
mostra uma divisão em três classes mas estas não coincidem com aquelas de que PLATÃO
fala. São antes classes que se diferenciam do ponto de vista económico: classe dos pobres,
classe média e classe dos ricos. A melhor cidade do ponto de vista político é aquela que
tem uma classe média alargada, porque os que pertencem a esta classe são os que se
integram mais harmoniosamente na cidade. Além disso, uma cidade com uma classe média
alargada não está tão exposta a perturbações sociais e tem, por isso, maior longevidade.
- ARISTÓTELES distingue entre regimes sãos (monarquia/aristocracia/república) e
regimes degenerados (tirania/oligarquia/democracia); os primeiros caracterizam-se pelo
facto de o governo ser exercido para utilidade de toda cidade e os segundos pelo facto de o
governo ser exercido para utilidade de quem governa. Defende a república mista (de
oligarquia e democracia) com predomínio das classes médias.
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17
- O espírito científico com que ARISTÓTELES analisa o poder da cidade leva-o a
distinguir três actividades no exercício desse poder: a deliberativa, a executiva (organizar
as funções públicas) e a judiciária.
- Apesar de ser um defensor da sociedade pluralista e de um governo limitado, de
advogar a virtude do bom cidadão e de se mostrar preocupado com a felicidade do cidadão,que tornam ARISTÓTELES o primeiro humanista da História das Ideias Políticas, a verdade é
que na sua obra não se põe em causa a escravatura, sobre a qual a cidade da Grécia Antiga
se constrói.
- O salto qualitativo permitido pela descoberta da dignidade da pessoa humana,
estruturante da ideia da igualdade, só será dado com a mensagem de Cristo de que todos
somos filhos de Deus. Com esta mensagem começa a desenhar-se o fim do mundo antigo.
Tenha-se bem presente S. Paulo quando afirma: «Não há grego nem judeu, nem circunciso
nem incircunciso, nem bárbaro nem cita, nem escravo nem livre, mas Cristo, que é tudoem Deus»18.
5. Em jeito de conclusão.
A Grécia Antiga deixou uma inestimável herança à civilização ocidental: a
«invenção» da política.
Esta «invenção» da política é, porém, enriquecida com o facto de, como objecto
«inventado», a política ter logo sido encarada em três perspectivas possíveis: na
perspectiva do estadista (político) que vive a política na cidade e exerce o poder político,compreendendo-o nos seus mais ínfimos meandros, na perspectiva do pensador que
procura reflectir sobre a melhor forma de exercer o poder político, na perspectiva do
filósofo, que idealiza a cidade onde o político vive e exerce o poder político da melhor
forma e na perspectiva do cientista, que estuda a realidade que é a política, em especial, a
cidade e o poder político que nela se exerce e classifica, com objectividade, os fenómenos
que nela evoluem.
Com a Grécia Antiga, o poder político distingue-se dos outros poderes sociais e é
objecto de análise autónoma.
18 Epístola de S. Paulo aos Colossenses, 3, 11. Sobre o assunto ver MARIA LÚCIA AMARAL, A forma..., p. 17.
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18
III
Homem, sociedade e direito
6. A descoberta do direito pelos romanos19
6.1. «Ubi societas ibi ius»
A Roma Antiga descobriu o direito e associou-o ao poder político, ao poder que se
desenvolve na sociedade política. Por outras palavras, os romanos descobriram que a
existência mesma de uma sociedade política implica a existência do direito (ubi societas
ibi ius).
Mas mais. Os romanos distinguiram o direito de outras regras que também podem
existir na sociedade. Autonomizaram-no e passaram a analisá-lo de uma análise específica.
Além disso, a Roma Antiga não se limitou a descobriu a realidade do direito na
sociedade e, em especial, na cidade. Construiu a ideia de Império e consolidou o Império
através do direito.
6.2. O império romano e o direito
Na verdade, através das normas emanadas do poder – o poder de Roma e dos seus
órgãos institucionalizados – foi construída uma unidade de obediência, porquanto as
normas devem ser obedecidas por todos os povos conquistados. A obediência ao mesmo
conjunto de normas juntou povos muito diversos e permitiu consolidar a ideia de Império.
Por outras palavras, o direito, enquanto realidade cultural, ao exigir o seu cumprimento
uniforme, criou a coesão entre povos com culturas muito distintas e sedimentou o Império.
6.3. A transformação do poder em autoridade através do direito.
A autoridade é um «plus» que acresce ao poder e, como a palavra expressa, o
«aumenta» (aumentar vem do latim augere). A autoridade que aumenta o poder pode
derivar, como já se viu, do direito. Neste caso, os destinatários aceitam e obedecem aos
comandos emanados do poder porque esses comandos estão legitimados no direito, o que
19 Sobre a descoberta do direito pelos romanos, JOHN GILISSEN, Introdução Histórica ao Direito, Ed.Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 80 e ss.
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significa que se pode aferir a validade desses comandos através do direito. As ordens e
comandos têm no direito as condições da sua validade. Por isso, os destinatários não só as
podem legitimamente esperar, como podem controlar o seu cumprimento, i.e., se aqueles
que as devem cumprir efectivamente as cumprem.
Em suma, se aos gregos se deve a ligação necessária entre o homem, a sociedade e
o poder que se exerce na sociedade, inventando a política e estudando o exercício do poder
político, aos romanos se deve a não menos necessária ligação entre o homem, a sociedade,
o poder que nela se exerce e o direito. Os romanos descobriram que, através do direito, o
poder aumenta, torna-se autoridade e permite a uniformização dos diferentes povos
conquistados, através do cumprimento das mesmas normas.
A convicção generalizada de que as normas devem ser cumpridas conduz ao uso dacoerção, do constrangimento físico, o meio mais enérgico de obter a obediência à lei, o
cumprimento da norma. Os romanos compreenderam que, para garantir a disciplina na
sociedade, é, por vezes, necessário usar meios físicos de coacção.
Além disso, os romanos compreenderam que a organização jurídica de uma
sociedade, isto é, a ligação na sociedade entre o poder e o direito, se deve fazer por apelo a
dois elementos: um material, coincidente com os fins a atingir em sociedade (justiça,
felicidade...) e a que poderemos designar por elemento grego (elemento político), e outro formal, traduzido no conjunto de normas de todos conhecidas, que indicam, em cada
momento, as condutas a tomar para atingir os fins. Estas, se não forem tomadas
voluntariamente pelos seus destinatários, podem dar origem ao uso da coacção («ultima
ratio») ou constrangimento físico por parte do poder institucionalizado, um
constrangimento que as imponha. O elemento formal de que se fala abrange não só as
normas que definem condutas como as que criam o sistema de órgãos de poder que elabora
as referidas normas de conduta, bem como o sistema de órgãos que as tutela e, em qualquer
dos casos, os procedimentos que têm de adoptar.
6.4. De Roma ao Império Romano. O direito romano.
Segundo a lenda, a cidade de Roma foi fundada em 753 a.C.. Dez séculos mais
tarde, nos séculos II e III da era de Cristo, Roma cobria um vasto Império, da Inglaterra à
Gália, da Ibéria a África. No Ocidente, o Império romano desmorona-se no século V e a
sua queda dá-se no século VI (o imperador Justiniano morre em 566) e, no Oriente
(império bizantino), vai até ao século XV.
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20
Nos três períodos que caracterizam a história de Roma ligada ao Ocidente (realeza,
república e império), interessa, em particular, mencionar a divisão que começa a ser central
na república entre o «ius civile» ou direito dos cidadãos romanos e o «ius gentium» ou o
direito comum aos estrangeiros, bem como referir a ideia, divulgada no império, de que o
imperador não está vinculado pela lei, porque está «a legibus solutus».
6.5. Cícero e a defesa do direito natural
- Tenha-se presente o pensamento de CÍCERO (viveu de 106 a. C. a 43 a. C.)20, não
por acaso um jurista (advogado), um político (chegou a ser cônsul), um filósofo. O
magistrado é, para CÍCERO, a lei que fala e a lei é o magistrado mudo. Numa outra
perspectiva, o magistrado deve obediência à lei mas os governados devem-lhe obediência,
porque é o magistrado quem os governa.
CÍCERO defende a existência do direito natural. Para ele, há uma lei natural, eterna e
imutável. Todos os povos em todos os tempos lhe devem obediência. Corresponde a uma
ordem superior que rege todos os homens e que é descoberta pela razão. Os magistrados
devem-lhe obediência quando elaboram a lei positiva.
A defesa da lei natural implica a defesa de meios de luta contra a tirania. Luta-se
contra o tirano por apelo à lei natural.
6.6. As grandes compilações de leis. A autonomização no direito de duas áreas
fundamentais: o direito público e o direito privado. Critérios de distinção.
- A dispersão das normas e a dificuldade de conhecer o seu conteúdo leva à
organização de grandes compilações de leis. A primeira, compilada a pedido dos plebeus,
deu origem ao Código das XII Tábuas (+- 450 a. C.). Mais tarde, da iniciativa do poder,
surge o Código de Teodósio, publicado em 438 d. C. O objectivo era ambicioso – coligir
todo o direito – mas ficou-se pela compilação das constituições, tendo, por isso, uma
componente eminentemente juspublicista.
A compilação mais importante é, porém, o Código do Imperador Justiniano,
conhecido mais tarde como «Corpus Iuris Civiles», publicado em 534. A compilação foi
elaborada por razões políticas: permitir que todos conheçam as normas e lhes possam, por
isso, obedecer.
20 Sobre o pensamento de Cícero, DIOGO FREITAS DO AMARAL, História das Ideias Políticas, vol I,Almedina, pp. 134 e ss. PAULO OTERO, Instituições Políticas e constitucionais, vol I, Almedina, 2007, pp.90-94.
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21
- Nos textos jurídicos romanos fazia-se já uma distinção entre o direito público e o
direito privado, usando-se, para tal um de três critérios: o critério das fontes, o critério dos
interesses e o critério da derrogação. De acordo com o critério das fontes, o direito público
é o direito emanado do Estado, porque afecta a «coisa pública» (res publica), o povo como
um todo (ius publicum, populi), enquanto que o direito privado tem a sua fonte na acçãodos particulares (contratos, testamentos...). De acordo com o critério dos interesses, o
direito público respeita ao interesse geral, do todo, enquanto o direito privado diz respeito
aos interesses particulares, de cada um. Finalmente, de acordo com o critério da
derrogação, o direito público é o direito que não pode ser alterado por pactos entre os
particulares. É imperativo, inderrogável. O direito privado, pelo contrário, está na livre
disposição dos particulares.
- Interessante verificar que a dualidade público/privado tem um sentido preciso:não distingue o que é de todos conhecido e o que ninguém conhece. Distingue o que
pertence à «coisa pública» (res publica), isto é, ao Estado, implicando uma intervenção do
seu poder e, logo, uma limitação à liberdade das pessoas, e o que pertence à esfera dos
particulares, isto é, a áreas onde cada um pode agir livremente, sem intervenção do poder
do Estado.
- «Ius» provém de «iustitia». O direito é o bom e equitativo para a sociedade. Por
sua vez, a «iurisprudentia» é a ciência do justo e do injusto.
- «Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuere». «Iuris
precepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere»21.
7. Em jeito de conclusão.
O percurso que fizemos pela história de Roma até à queda do império22 permite-nos
concluir, num primeiro momento, pela necessidade do direito na sociedade (onde há
sociedade há direito) e, num segundo momento, pela importância do direito na sociedade
(o direito consolida o império).
Além disso, o referido percurso abre caminho à reflexão sobre a fundamental
diferença entre direito natural e direito positivo, bem como sobre a distinção importante
entre direito público e direito privado.
Mas os romanos não se limitaram a descobrir o direito e a evidenciar a sua
importância na sociedade. Tornaram-no objecto de uma ciência (ciência jurídica), criaram
21 Sobre o direito romano e a simbologia do direito, SEBASTIÃO CRUZ, Ius. Derectum, Coimbra, 1974.22 Ver BARTOLOMÉ CLAVERO, Institucion Histórica del Derecho, Marcial Pons, Madrid 1992, pp. 19-30.
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22
uma técnica específica para o interpretar (técnica jurídica) e moldaram uma profissão a
partir da tarefa de o interpretar e aplicar (pretor, juiz).
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23
IV
Sociedade, poder e justiça
8. A sociedade de poder disperso. A estratificação da sociedade.
No século V, os povos do Norte da Europa – vândalos, suevos, visigodos...–
invadem o Império Romano do Ocidente. Roma cai às mãos do rei Alarico, em 410.
Com a queda de Roma, o poder político dispersa-se e a Europa, até aí unificada
pelo império, dá origem a um vasto mosaico de poderes sociais23.
A vivência social passa a alicerçar-se em especiais relações de poder, globalmente
designada relação feudal. A relação feudal é caracterizada por uma específica relação entre
pessoas – é decisivo o momento pessoal (não institucional) –, particularmente patente na
área militar (os serviços militares são pagos com protecção pessoal, familiar, com sustento,
abrigo..., diferentes consoante a posição pessoal de cada membro do exército).
A sociedade está dividida em grupos sociais bem determinados, isto é, estáordenada em classes ou estamentos (clero, nobreza e povo) – Estado Estamental.
Além disso, a sociedade está fundada numa ideia de conservação e não de
mudança. Cada membro da sociedade recebe dos antepassados uma vivência social que
transmite aos vindouros nos seus exactos termos, isto é, sem os alterar.
Quanto ao poder, é compreendido como uma «coisa» ou um bem, que pertence a
quem o detém e que pode ser doado ou dividido em resultado de uma herança, aliado ao
património. É um dado de facto que se recebe e transmite aliado a um património – Estado
patrimonial. O nascimento de Portugal, no século XII é disso prova.
23 Sobre a dispersão do poder neste período, MARIA DA GLÓRIA F. P. D. GARCIA, Da justiça Administrativa.Sua origem e evolução, UCP, 1994, pp. 29 e ss..
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24
9. A sociedade política medieval.
9.1. A ambivalência régia.
A vivência jurídico-política do período medieval pode analisar-se a partir de duaslinhas de força: uma de raiz germânica e outra de raiz cristã, à qual, a partir do século XII
se juntou uma outra de raiz romana, coincidente com a difusão do direito romano nas
universidades, que entretanto nascem na Europa.
A linha de força germânica, correspondente à cultura dos invasores, do Norte da
Europa, tem no costume a fonte de revelação por excelência do direito. As normas que
disciplinam a sociedade resultam de comportamentos assumidos como coactivos ao longo
dos tempos. Deste facto resultam, de um lado, a proliferação de direitos de âmbito local, de
outro, uma grande dificuldade de formação de um direito geral uniforme e, de outro ainda,a manutenção intacta, no corpo social, do poder de autodeterminação política da sociedade
(não há delegação de poderes). Neste contexto, compreende-se que não haja necessidade
de juristas, técnicos do direito, seja para elaborar normas escritas seja para as interpretar e
aplicar aos casos concretos.
Acresce, no que ao poder político respeita, que esta forma de agir não coloca o
poder no monarca, mas no direito. O monarca tem de manter o direito e conservá-lo intacto
para as gerações seguintes. Não tem o poder de autonomamente o alterar. Por isso se fala
também numa ideia de partilha do poder entre o rei e o reino (rei/reino, em conjunto, fazemo direito).
A linha de força cristã, correspondente à cultura disseminada nos povos
conquistados, de origem romana, parte da ideia da existência de um direito natural de
origem divina. O direito tem origem divina e as normas que disciplinam os homens em
sociedade têm de com aquele direito se compatibilizar.
Além disso, o poder tem também origem divina. Entende-se que é um dado natural.
Deus criou o poder como necessidade social, tendo por fim a pacificação, a ordenação e a
conservação da sociedade. Esta ideia está bem patente no pensamento de S. Tomás de
Aquino (1225-1274)24.
De outro lado, entende-se que o poder político deve ser exercido para o bem
comum. E, ao ser exercido, tem de coincidir com o direito. A acção régia só é legítima se
coincidir com o direito.
24 Sobre o pensamento político deste Autor, DIOGO FREITAS DO AMARAL , História das Ideias Políticas, pp.169 e ss.
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25
A coincidência do poder com o direito, traço essencial quer da linha de força
germânica quer da linha de força cristã, obtém tradução no juramento de fidelidade (raiz
germânica) e na consagração régia (cerimonial eclesiástico da coroação)25.
Do juramento de fidelidade resulta um poder limitado, em razão da sua natureza
pactuada. A obediência do povo ao rei não é unilateral (devo-te obediência porque tucumpres o teu juramento – «só o rei fiel tem súbditos fiéis»). Por isso se entende que, se o
rei não cumprir o juramento, há uma quebra da paz e, logo, a obediência do povo ao rei
rompe-se.
Da consagração régia, resultante do cerimonial eclesiástico da coroação, decorre
também um poder limitado. O monarca recebe o poder de Deus por mediação papal, com
isso significando que o seu exercício deve obedecer ao direito natural.
Qualquer que seja a via seguida, o poder apresenta-se como limitado mas é
exercido no quadro de uma grande indeterminação. O monarca vive e actua sob umagrande indeterminação jurídica e de acordo com uma grande liberdade na prática.
A ambivalência do poder régio: limitado pelo direito (vinculação estrita) e
independente no exercício do poder de promover o bem comum (isto é, acompanha o
evoluir dos tempos e altera o que está). O monarca governa pela graça de Deus com o
consenso da comunidade26.
9.2. Rex a recte judicando. A importância da função de juiz no exercício dopoder. O Estado de Justiça.
O monarca medieval é o terceiro imparcial, o árbitro que traz a paz ao litígio que
emerge da sociedade. É o instrumento de concórdia e paz na sociedade. Por isso se fala na
paz do rei (Königsfriede).
É sua função dizer o direito e cumpri-lo (não ficando fora dele), sob pena de perder
a razão de reinar (se não cumpre a lei, se não julga bem, deixa de ter o fundamento para
continuar a ser rei). É rei o que julga rectamente (rex a recte judicando)27 .
O poder está, por isso, estreitamente ligado ao direito e à função de julgar. «Fazer
justiça» é a missão por excelência do monarca (traduz a recusa da vindicta privata). O
Estado medieval é, neste quadro, entendido como um Estado de Justiça.
25 Sobre estas duas linhas de força, ver MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da justiça administrativa. Sua origem eevolução, UCP, 1994, pp. 30 e ss.26 Sobre a ambivalência régia, FRITZ KERN, Gottesgnadentum und Widerspruchrecht im früheren Mittelalter.
Zur Entwicklungsgeschichte der Monarchie, Darmstadt, 1962, 3. Auf, pp. 122 e 226 e ss..27 Sobre o Estado de Justiça, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da justiça administrativa. Sua origem eevolução..., pp. 37 e ss.
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26
«Fazer justiça» significa também a função primeira de alguém que era o terceiro
imparcial no litígio. O rei como «primus inter pares».
O monarca, para além de «fazer justiça», concede «graças» (p. ex. concede títulos
nobiliárquicos ou concede o perdão a quem foi condenado).
9.3. A unidade do direito do direito medieval.
A ordem jurídica medieval está construída sobre as posições jurídicas individuais
dos membros da comunidade, sobre os direitos e deveres dos membros da comunidade. A
violação da ordem jurídica corresponde à lesão desses direitos e corresponde a um acto de
força, um acto arbitrário.
Os direitos e deveres do rei e os direitos e deveres do reino. O monarca não pode
unilateralmente (arbitrariamente) afectar direitos adquiridos dos membros da comunidade
(direitos do reino), porque, no juramento de fidelidade, se obrigou a cumpri-los (tradição
germânica) e porque, além disso, é contra o direito natural (tradição cristã). O exemplo da
fórmula do reino de Aragão: os súbditos obedeciam ao rei enquanto este cumprisse o seu
dever de não afectar os direitos dos súbditos, «se não, não!».
A unidade do direito, isto é, a ausência de distinção entre direito público e direitoprivado (os critérios das fontes, do interesse e da inderrogabilidade não são aplicáveis no
enquadramento social e jurídico medieval) é consequência da fonte por excelência do
direito ser o costume. Sendo o costume fonte de direito, isto é, emanando o direito da
acção da comunidade como um todo com o sentido de convencimento de que, em cada
situação, há uma específica actuação que deve ser tomada, compreende-se que não seja
possível distinguir as medidas de poder da parte de quem vela pela «coisa pública» (res
publica) das demais medidas. Não há, pois, diferenças materiais no âmbito do direito28. A
dimensão política, intencional, do direito está abafada.
10. Em jeito de conclusão
A vivência jurídico-política medieval é extraordinariamente rica e diversificada.
Mostra, desde logo, como se pode agir sob uma permanente ideia de limitação do agir pelo
direito – seja o direito natural seja o direito que emana do costume –, sem que se possa
elencar, de modo expresso, os concretos limites de cada acção. O que se torna um desafio
28 Sobre a unidade do direito medieval, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da justiça administrativa. Sua origem eevolução..., pp. 43 e ss..
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27
para o actuar de acordo com o direito mas, em simultâneo, responsabiliza de modo
particular cada pessoa pela sua acção, seja o monarca, seja um membro do clero, seja um
membro da nobreza, seja um membro do povo. O que constrange é a ideia de limitação
mais do que um específico e concreto limite.
Além disso, a ideia de partilha do poder entre o rei e o reino, não deixando ninguémde fora, a contribuição dada por todos para a construção do direito através do costume,
permite construir uma ideia de poder e de direito a partir da pessoa humana e da inclusão
de todos na comunidade. Ninguém fica ou pode ficar de fora da responsabilidade pelo
poder e pelo direito no âmbito da comunidade.
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28
V
Sociedade, poder e soberania
11. Do poder disperso ao poder unificado e centralizado.
Sobretudo a partir do século XII o pensamento jurídico-político é «sacudido» pelo
conhecimento do direito romano, difundido a partir das universidades, particularmente a
Universidade de Bolonha e dos estudos aí realizados sobre o Corpus Iuris Civiles.
O estudo do direito romano nas universidades, onde se formam os juristas quepassam a integrar a corte régia, permite um aconselhamento técnico da acção do
monarca29. Esses juristas passam a aconselhar o rei a modificar os «maus costumes», dar
mais segurança a uma sociedade dela carente, fazer política, isto é, realizar projectos
políticos expansionistas. Tudo através da lei formal, resultante da vontade do monarca
(emana dele próprio) e não de uma fonte que lhe é alheia (costume enquanto normas de
comportamento assumidas pela comunidade ao longo dos tempos). Formados em Bolonha,
Paris, Heidelberg, Coimbra..., os juristas começam a proliferar nas cortes, auxiliando o
monarca a elaborar a lei e, depois, a interpretá-la, aplicando-a aos casos concretos,impondo sanções a quem as incumpre.
A lei, fonte do direito, contribui para a centralização e o fortalecimento do poder.
Por intermédio da lei, o monarca deixa de ser um «primus inter pares» e passa a ser um
«imperador do seu reino».
A máxima romana «princeps a legibus solutus» não confere ao monarca um poder
pleno («plenitudo potestatis»). É antes um princípio de acção régia ligado ao direito. Na
prática, porém, contribuiu para o fortalecimento do poder régio, a unificação dos poderes
dispersos na comunidade.
A partir do século XV, a história da Europa entre numa nova fase – Renascimento –
iniciando o período da Idade Moderna.
29 Sobre este período, MARIA DA GLÓRIA F.P.D.GARCIA, Da justiça administrativa. Sua origem e evolução, pp. 141 e ss..
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29
O Renascimento é o símbolo de uma nova mentalidade: o retorno aos clássicos, a
institucionalização do poder político, a atenuação do espírito religioso e a acentuação do
profano, a teorização do Estado e da soberania contra o poder disperso são algumas das
suas características30.
Nascem as grandes monarquias – em Inglaterra, em Espanha, em França... – e as
ciências têm um grande incremento, em especial na sequência dos descobrimentos
(cartografia, astronomia, ciências naturais...). Os descobrimentos trazem consigo uma
marca de abertura cultural, de confiança no homem, de universalidade (correspondem a
uma primeira ideia de globalização)31.
O conceito de soberania em JEAN BODIN.
De origem francesa, JEAN BODIN nasce em 1530 e morre em 1596.32 Vive numa
França dividida por conflitos e guerras. Na sua obra principal, «Os seis livros da
República», JEAN BODIN desenvolve uma tese que permite, através da concentração do
poder no monarca, pôr termo aos conflitos. A ideia em que se funda é esta: todo o poder
pertence ao rei e este não o pode partilhar nem com o clero, nem com a nobreza nem com o
povo. O monarca não está, por isso, sujeito a condições impostas por quem quer que seja.
A ideia força da obra de JEAN BODIN é a soberania, um conceito que teoriza a partirdo poder da República (aquilo a que chamamos hoje Estado). Define república como «o
governo recto de diferentes famílias e do que lhes é comum com poder soberano»,
caracterizando de seguida cada um dos elementos em que se decompõe a república.
A soberania é um conceito novo. Por seu intermédio nasce o Estado soberano, o
Estado moderno. «Soberania é o poder absoluto e perpétua de uma república». O conceito
de soberania tem três elementos: é um poder (faculdade de se impor aos outros; é um
comando que se deve obediência), é um poder perpétuo (não é limitado no tempo; o poder
do Estado tem continuidade, independentemente das mudanças dos governantes) e é
absoluto (não está sujeita a condições ou encargos postos por outrem; não recebe ordens
nem instruções de ninguém; não é responsável perante o outro).
30 Sobre o renascimento e a nova ordem política, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da Justiça Administrativa. Suaorigem e evolução, pp. 143 e ss..31 A palavra «risco» que caracteriza a sociedade em que hoje vivemos – sociedade de risco, risk society ou Risikogesellschaft (ULRICH BECK) – tem origem na língua portuguesa (risco) ou castelhana (riesgo), e nasceprecisamente nos descobrimentos, ligada à incerteza inerente às viagens marítimas. ULRICH BECK,
Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne, edition suhrkamp, nº 365, p.28.32 Sobre o pensamento político do Autor, DIOGO FREITAS DO AMARAL , História das Ideias políticas, pp. 317e ss.
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30
Mas que atributos tem a soberania? A soberania é una e indivisível (não pode ser
dividida por dois ou mais órgãos); é própria e não delegada (pertence por direito próprio
ao rei porque não provém de eleição pelo povo ou por nomeação pelo papa); é irrevogável
(traduz uma ideia de estabilidade política; o poder não pode ser retirado pelo povo ao rei);
é suprema (na ordem interna, i.e., não admite outro poder com quem tenha de partilhar); éindependente (na ordem internacional, não depende de poder supranacional). A «soberania
é um bloco de mármore que não pode ser fragmentado».
Que faculdades se inscrevem neste poder? Pois, em primeiro lugar, a faculdade de
fazer leis e as revogar, e, em segundo lugar, a faculdade de declarar guerra e fazer a paz, a
faculdade de instituir cargos públicos e provê-los, a faculdade de julgar em última
instância, a faculdade de agraciar os condenados, a faculdade de cunhar moedas e emitir
moeda, faculdade de criar impostos e taxas.
12. A concentração de poderes no monarca. O Estado e a personificação
jurídica do Estado.
A palavra Estado (stato), com um conteúdo próximo daquele que hoje lhe damos
(comunidade política soberana na ordem interna e na ordem internacional), é introduzida
na terminologia política por NICOLAU MAQUIAVEL (1469-1527)33. A palavra aparece, pois,
no preciso momento em que se começam a formar-se os Estados nacionais. O poder régiomonopoliza o emprego da força pública e coloca esse poder ao serviço do bem comum. A
«razão de Estado» ou «salus publica» como justificação para o agir do monarca.
O Estado começa a personificar o poder político unificado e este é personificado no
rei34.
Por outro lado, para a personificação jurídica do Estado contribuiu THOMAS
HOBBES (1588-1679)35. Fundando o poder do Estado na vontade dos homens e não na
vontade divina, ele é o primeiro autor da Idade Moderna. Embora seja um contratualista,
como defende que a comunidade não pode reaver o poder, abre caminho para o
absolutismo do poder, o seu monopólio no monarca. Porque não há na Terra poder que se
compare ao poder político. Caracteriza o poder político a faculdade de fazer leis, a
faculdade de fazer justiça através dos tribunais, a faculdade de fazer a guerra e a paz, a
faculdade de atribuir honrarias, escolher conselheiros, etc.
33 Sobre o pensamento político deste Autor, DIOGO FREITAS DO AMARAL, História das Ideias Políticas, pp.197 e ss.34 «L’état c’est moi» dirá mais tarde Luis XIV de França.35 Sobre o pensamento político deste Autor, DIOGO FREITAS DO AMARAL, História das Ideias políticas, pp.351 e ss.
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31
Para THOMAS HOBBES, quando o rei fala, os súbditos obedecem, quando o rei cala,
os homens são livres. Está aberta a distinção entre a esfera pública de acção (p. ex., fazer a
guerra e garantir a paz) e a esfera privada ou das liberdades privadas (os homens são livres
de cultivar ou não cultivar as suas terras, vender ou não vender os seus bens, educar osseus filhos....)36.
12.1. A lei como emanação da vontade régia e os tribunais régios.
A acção régia primária identifica-se com a lei. Esta coincide com a vontade do rei.
Nela se concentra o sentido principal da acção pública.
Mas a última palavra sobre o sentido da lei, na sua ligação ao caso concreto, fica a
cargo dos tribunais, os tribunais régios.
12.2. A acção política e administrativa do monarca. O Estado de Polícia.
Os conselheiros políticos do monarca incentivam-no a desenvolver grandes
projectos políticos e a concretizá-los através de uma máquina organizatória hierarquizada,
racionalizando esforços, disciplinando tarefas. Os grandes empreendimentos políticos para
engrandecimento do Estado (personificado no monarca) nascem, ligados à «salus publica».
Com eles nasce o Estado de Polícia e a separação clara entre o interesse público, doEstado, e o interesse privado, da sociedade37.
13. Em jeito de conclusão.
É no período que acabámos de tratar (Idade Moderna) que as ideias básicas
relativas à sociedade política, tal como hoje a conhecemos (não a polis, não o império, não
a sociedade política fragmentada, mas o Estado), e mesmo a palavra com que o
designamos (Estado) se configuraram e ganharam força.
O poder político adquire soberania. E adquirindo soberania, distingue-se dos
demais poderes sociais. Essa distinção decorre do conteúdo mesmo da soberania: a
capacidade de fazer leis, mas também a capacidade de declarar a guerra e fazer a paz,
cunhar moeda, criar impostos (nenhum outro poder dentro da sociedade política o poderá
fazer). E decorre também dos atributos da soberania, desde logo os que se revelam no
36 Ver PAULO OTERO, Instituições Políticas e Constitucionais, vol. I, pp. 164-170.37 ANTÓNIO MANUEL HESPANHA, «Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime», in Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 29-30. e As Vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal Sec. XVII, Lisboa, 1986, vol. I.
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32
plano interno (poder supremo) e no internacional (poder independente). A formação das
nacionalidades, ligadas ao poder soberano, dá-se neste período.
É também neste período e, em especial, por força do pensamento de THOMAS
HOBBES, que a personalidade jurídica do Estado, tão importante para a teorização da sua
actuação, ganha sentido.Mas não pode também esquecer-se que, na prática, é na Idade Moderna que os
chefes políticos (monarcas, príncipes) adquirem os instrumentos para o desenvolvimento,
em termos absolutos, do poder que possuem. A centralização e a concentração do poder
régio e consequente eliminação de poderes concorrentes, a utilização da intencionalidade
do agir (salus publica) ao serviço de grandes projectos para os quais a comunidade não era
ouvida, a criação de uma máquina administrativa hierarquizada, que replicava a estrutura
de comando militar, tudo contribuiu para a formação de poderes políticos abusivos e
arbitrários – absolutismo régio.
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33
VI
Liberdade, igualdade e poder político
14. A conquista política da liberdade e da igualdade. A democracia e o
direito.
Os extremos a que o absolutismo régio conduziu a sociedade, patente no uso
arbitrário do poder – monarca atribui benesses, isenções e privilégios a pessoas e grupos e
sanciona, retira direitos e impõe deveres de acordo com a sua vontade – e o ambiente
cultural propício à difusão de novas formas de conceber o poder político – os textos dos
contratualistas, especialmente JOHN LOCKE e JEAN JACQUES ROUSSEAU, eram lidos ecomentados – prepararam o caminho das revoluções liberais.
A Glorious Revolution (1688), a Revolução Americana (1776) e a Revolução
Francesa (1789). Breve referência38.
A Constituição inglesa é o resultado de vários documentos políticos decisivos que
se somam ao longo da evolução histórica inglesa: a Magna Carta (1215), feita jurar a João
sem Terra, a Petition of Rights, que Carlos I teve de assinar (1628), o Habeas Corpus, queCarlos II teve de assinar (1679) e o Bill of Rights , subscrito por Guilherme d’Orange
(1689).
Da dependência da Coroa Britânica à Declaração de Independência das 13 colónias,
em 4 de Julho de 1776. A experiência da obediência a dois poderes (governo da coroa
britânica e governo das colónias). Os 13 novos Estados e a elaboração das respectivas
constituições (a partir de 1777). A aliança entre os 13 Estados independentes e soberanos
para fazer face às lutas com Londres, que continuam. A reunião de Filadélfia e a aprovação
da Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787.
A Constituição dos Estados Unidos da América é a primeira Constituição
republicana, a primeira Constituição escrita e a primeira que institui um Estado Federal e
um sistema de governo presidencialista, fundado na separação de poderes.
38Para mais desenvolvimentos, EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA, La lengua de los derechos. La formación del Derecho Público europeo trás la Revolución Francesa, Civitas, 2001 e MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da Justiça Administrativa..., pp. 271 e ss..
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34
A Revolução Francesa foi influenciada pela independência dos Estados Unidos da
América, sendo nela visíveis duas correntes: uma liberal, defensora da liberdade e
aceitando a monarquia (influência de JOHN LOCKE e MONTESQUIEU) e outra jacobina,
privilegiando a igualdade e defendendo a república (influência de JEAN JACQUES
ROUSSEAU). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a suaimportância cultural, política e jurídica39.
A Revolução Liberal em Portugal (24 de Agosto de 1820) e a Constituição de 1822.
O grito do Ipiranga no Brasil (7 de Setembro de 1822) e a Constituição Brasileira de 1824,
que irá influenciar a Carta Constitucional Portuguesa de 182640.
Com as revoluções liberais, os povos põem fim ao poder absoluto dos monarcas
(não mais um governo do homens mas um governo de leis), conquistam a liberdade (desdelogo, a liberdade de participar na elaboração e aprovação das leis) e a igualdade (fim aos
privilégios e sanções arbitrárias), dois baluartes do movimento racionalista que considera a
razão humana a fonte natural destes valores.
O Estado Liberal de Direito, construído em reacção ao Estado de Polícia, alicerça-
se em três pilares: reacção em nome da liberdade individual (contra o arbítrio, a opressão,
o governo do homem sobre o homem); reacção em nome da liberdade social (contra o
excesso de intervencionismo do monarca absoluto) e reacção em nome da democracia(contra o poder de um só, o monarca, nasce o poder do povo, da comunidade em geral).
Como garantia de que a conquista da liberdade e da igualdade será duradoura, os
povos exigem compromissos escritos. Todos querem uma Constituição. A Constituição
passa a ser a chave da nova vivência jurídico-política. A Constituição traduz a instituição
do Estado por vontade livre e igual da comunidade (democracia) e assume-se como
garantia contra abusos do poder (direito).
O direito deixa de ser compreendido como a expressão da vontade do monarca e
meio de engrandecimento do poder deste, como no Estado de Polícia, para ser expressão da
vontade da comunidade, uma garantia de liberdade e de igualdade. Os súbditos passam a
cidadãos, a sujeitos de direitos, que se podem voltar contra o Estado quando este os lesa. O
direito defende e garante os direitos dos cidadãos.
39 Sobre as Revoluções Liberais, em especial as revoluções americana e francesa, DIOGO FREITAS DOAMARAL, História das Ideias Políticas, vol. II.40 Ver MARCELLO CAETANO, Constituições Portuguesas, Verbo,1981, pp.9 e ss..
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35
A democracia representativa e o direito. O Estado Liberal de Direito como um
Estado que garante, em especial, a segurança e a liberdade e a propriedade.
15. O reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais. Os direitos
pessoais e os direitos políticos.
A Constituição não se limita, por isso, a ser o documento que funda o Estado,
aquele que o institui, fruto da vontade dos cidadãos. Estes passam a ter na Constituição a
defesa por excelência dos direitos que esta consagra. A Constituição protege os cidadãos
face ao poder, já que os direitos reconhecidos na Constituição, os direitos fundamentais,
são compreendidos como limites às intervenções do poder, são direitos contra o poder do
Estado41. Os direitos fundamentais da 1ª geração: os direitos a abstenções do Estado. Os
direitos pessoais. A liberdade e a propriedade.
Mais. Diferentemente da linha humanista defensora dos direitos humanos, com
raízes na Antiguidade Clássica e densificada com o Cristianismo, segundo a qual os
homens «beneficiam» de uma ordem natural, que impõe deveres aos titulares do poder
político e, inclusivamente, lhes reconhece o direito de resistência aos abusos do poder, a
linha constitucionalista dos direitos humanos torna os homens verdadeiros «sujeitos» de
direitos42. O direito passa a ser analisado a partir de direitos e o indivíduo passa a ser
compreendido como «o ponto de partida “autónomo” da ordem social e política»43
. Porque todos os homens «nascem e permanecem livres e iguais» (artigo 1º da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e só deles pode surgir um poder que os
afecte.
A limitação do poder político através dos direitos fundamentais (direitos pessoais) e
a consciência de que «o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas
causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos» (Declaração Universal dos
Direitos do Homem de 1789). A linha constitucionalista dos direitos fundamentais: os
direitos fundamentais impõem-se à própria lei parlamentar.
16. A separação de poderes e o direito. A garantia da Constituição.
41 É da articulação entre a lei e os direitos que nasce o direito público. EDUARDO G ARCIA DE ENTERRIA, La lengua de los derechos ..., pp. 114 e ss.42 Para mais desenvolvimentos, JOSÉ C ARLOS V IEIRA DE ANDRADE, Direitos Fundamentais da Constituição Portuguesa de 1976 , 3ª edição, Almedina, pp. 17-19.43 JOSÉ C ARLOS V IEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p. 18.
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36
A Constituição consagra o «estatuto jurídico do político». Nessa medida, contém
um compromisso jurídico de vida em comunidade com poder limitado, um compromisso
que assenta sobre o princípio da separação de poderes, cuja ideia assenta, em especial, no
pensamento de JOHN LOCKE e MONTESQUIEU.
A separação de poderes em JOHN LOCKE (1632-1704): poder legislativo
(Parlamento), poder executivo (monarca e seu governo) e poder federativo (monarca e seu
governo). A separação de poderes em MONTESQUIEU (1689-1755): poder legislativo
(Parlamento), executivo (monarca e seu governo) e judicial (tribunais). Cada poder tem
ainda duas faculdades: a faculdade de estatuir (agir desenvolvendo a sua tarefa) e a
faculdade de impedir (travar o exercício do poder por parte dos demais poderes). O poder
moderador de BENJAMIN CONSTANT (1767-1830). A distinção entre poder constituinte e
poderes constituídos e a distinção entre o poder legislativo e o poder governamental, feitaspelo ABADE SIÈYES (1748-1836)44.
O Estado Liberal de Direito constrói-se, pois, a partir da Constituição – Estado
Constitucional – e sobre o princípio da separação de poderes, entendido, em particular, de
acordo com uma ideia política (dividir para enfraquecer), organizatória (aos três poderes
correspondem três conjuntos de órgãos distintos) e funcional (aos três poderes
correspondem três modalidades distintas de funções). A evolução irá conduzir à
predominância do poder legislativo por sobre os demais poderes45
.
16.1. A lei como expressão da racionalidade jurídica, como manifestação do
poder do povo, representado no Parlamento, e como imagem da justiça. A
importância da função legislativa. O Estado-Legislação. Os direitos políticos.
A sociedade política é organizada de acordo com a Razão que une todos os homens
e institucionaliza-se na norma legal, geral e abstracta. O direito, formalizado na norma
legal, geral e abstracta, torna-se a imagem mesma da Razão e factor de racionalização da
sociedade (norma organiza a sociedade), e factor de estabilização da sociedade, porque a
norma geral e abstracta não pode ser facilmente alterada, só de acordo com um
procedimento próprio e segundo condições pré-fixadas e, ao repetir-se na execução,
mantém comportamentos para o futuro.
44 Sobre o pensamento dos autores mencionados neste parágrafo, ver DIOGO FREITAS DO AMARAL, Históriadas Ideias Políticas..., policopiado, 1984, pp. 113 e ss..45 STEPHAN RIALS fala em legicentrismo, o que supõe uma ideia nova e criadora de felicidade. Sobre oassunto, EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA, La lengua de los derechos..., p. 80. MARIA LÚCIA AMARAL, .refere-se, em particular, ao legicentrismo da tradição francesa, A forma da Constituição..., p. 63 e ss..
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A norma legal, geral e abstracta, é a expressão da racionalidade; é a imagem da
justiça (porque exprime a ultrapassagem de um governo de homens por um governo de
leis) e traduz uma auto-definição de interesses (porque é o resultado da vontade do povo
representado no Parlamento). Através da lei está afirmada a primazia do homem em
relação ao Estado.
De tudo decorre a ideia de a lei é a mais importante expressão do poder político:
porque materialmente se confunde com a justiça, porque é a expressão mesma da Razão
que une todos os homens e porque é emanada dos representantes do povo. Daí que o poder
legislativo, um dos desdobramentos do poder político, passe a adquirir supremacia sobre os
demais e se possibilite o endeusamento da lei dentro do Estado Liberal de Direito46.
Por isso, é costume referir o Estado Liberal, pós-revolucionário, como Estado Legislação. A polícia (=política) do Estado de Polícia foi «dominada» pela lei. O Estado
Liberal nasce como Estado Legislação.
Mas o Estado Liberal é também o Estado que não intervém na sociedade. Esta
autoregula-se, em liberdade, num quadro de igualdade. E é um Estado que, acreditando
embora na igualdade e na liberdade, tinha destes valores uma ideia incipiente pois, desde
logo, não era reconhecido a todos o direito de votar e, logo, nem todos podiam participar
politicamente (o voto em eleições era atribuído a quem sabia ler e escrever – votocapacitário – ou a quem pagava o censo – voto censitário; o voto não era reconhecido às
mulheres nem aos que, por exemplo, pertenciam à raça negra).
Ao longo do século XIX e, de certo modo, acompanhando o processo de
democratização, vão-se sedimentando os direitos políticos ou de participação política –
direitos da 2ª geração –, ao mesmo tempo que a igualdade se impõe como princípio
regulador – alarga-se o direito de sufrágio, a liberdade de expressão e a liberdade de
manifestação são amplamente reconhecidas47. Ao mesmo tempo, os partidos políticos,
enquanto associações de pessoas que têm por fim elaborar um programa de acção política,
canalizando para ele votos no período eleitoral, vão nascendo. Por seu intermédio se
concorre democraticamente para a formação da vontade popular e a organização do poder
político.
46 Em bom rigor, os revolucionários colocaram no lugar da lei emanada do monarca absoluto a lei emanadada vontade dos seus representantes: «A nação substitui o rei como titular do poder», observa EDUARDO
GARCIA DE ENTERRIA, La lengua de los derechos..., pp. 102 e ss..47 JOSÉ C ARLOS V IEIRA DE ANDRADE, Direitos Fundamentais da Constituição Portuguesa de 1976 , 3ª edição, Almedina,pp. 54-56.
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38
16.2. A função administrativa ou de mera execução da lei. O princípio da
legalidade.
A impossibilidade de o poder executivo, particularmente a máquina administrativa
do Estado, agir sem ser na base de uma lei votada no Parlamento, única forma de legitimara sua acção, conduziu à criação de um conjunto de normas especiais, regulando a acção do
Estado no seu relacionamento com os particulares, na base de um princípio geral de direito,
o princípio da legalidade da Administração ou princípio da subordinação da
Administração à lei.
O Conseil d’État , órgão criado por Napoleão, em França, em 1999, foi, através da
sua acção consultiva em matéria da acção administrativa, dando origem ao Direito
Administrativo, qual «glândula segregando a sua hormona»48 , entrelaçando o princípio daprossecução do interesse público com o princípio da legalidade da Administração.
Expansão do Direito Administrativo para os ordenamentos jurídicos que receberam
a influência da filosofia da revolução francesa.
Por intermédio dos princípios da prossecução do interesse público e da legalidade
da Administração, os particulares (cidadãos) podem sentir-se protegidos contra as
autoridades administrativas quando estas actuam, já que só o interesse público e não umqualquer interesse privado faz mover a Administração Pública, e se sabe que esta só age se
uma lei a autorizar a agir. Por outras palavras, os particulares confiam em que qualquer
agressão aos seus direitos ou interesses legítimos tem de ter por base uma lei votada no
Parlamento, uma lei votada pelos seus representantes eleitos. Porque a lei é, para a
Administração, o critério, o fundamento e o limite da sua acção.
Acrescente-se, no entanto, que a lógica do Estado Liberal é a de não intervir ou
intervir o mínimo possível na sociedade, uma intervenção por isso mesmo circunscrita à
administração militar, à administração da polícia de segurança, à administração dos
tribunais, à administração fiscal e à administração dos negócios estrangeiros – Estado
Mínimo, também Estado Guarda-Nocturno ou Estado de Segurança. As tarefas do Estado
Liberal são limitadas pela lei, são materialmente circunscritas e têm por fim garantir a
segurança na sociedade – Estado de Direito Liberal49.
48 PROSPER WEIL, Direito Administrativo, trad. de Maria da Glória Ferreira Pinto, Coimbra, 1976.49 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo
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16.3. A função judicial. Os juízes como «bocas que dizem a lei».
Entendida a lei como a expressão da racionalidade da vida social e a imagem
mesma da justiça, votada pelos representantes do povo no Parlamento, não admira que se
tenha aceite como correcto, em especial em França e nos Estados que receberam a suainfluência, o pensamento de MONTESQUIEU, segundo o qual os juízes, quando chamados a
pôr termo aos litígios jurídicos através da aplicação da lei, geral e abstracta, se deviam
limitar a ser «as bocas que dizem as palavras da lei» sem lhes acrescentar o que quer que
seja50.
A tradição francesa, por razões históricas que se prendem com o papel dos antigos
tribunais do período do Estado de Polícia que nunca se colocaram ao lado dos direitos da
comunidade contra o monarca e as únicas lutas que travaram com o rei foram lutas pormais poder dos tribunais, tudo à margem dos direitos dos membros da comunidade 51, tem
impedido que os tribunais tenham o prestígio que têm noutros Estados, nomeadamente os
Estados anglo-saxónicos e, em especial, os Estados Unidos da América.
Nos Estados Unidos da América, concretamente a partir do caso Marbury versus
Madison (1801), o Supreme Court norte-americano, depois de interpretar a norma que lhe
atribui os poderes para julgar, concluiu que podia (devia) também fiscalizar a
constitucionalidade das leis. A partir daí, o Supreme Court tornou-se o guardião daConstituição52, a lei fundamental do Estado, «travando» abusos do poder legislativo,
enquanto violadores da Constituição, para além de fiscalizar as violações da lei ordinária
por parte do poder executivo.
Em Portugal, a Constituição republicana de 1911 é a primeira Constituição
europeia a prever a fiscalização da constitucionalidade das leis (artigo 63º)53.
17. Do Estado Liberal ao Estado Social de Direito.
As revoluções liberais marcam a entrada no período contemporâneo e,
simultaneamente, introduzem uma linguagem jurídica e política nova (Constituição, Estado
50 Lembre-se o que, a propósito, dizia dos juízes MONTESQUIEU: estes eram «seres inanimados que nãomoderar nem a força nem o conteúdo da lei» , porque o poder mais terrível que o príncipe tem e os juízes é ode castigar. Ver EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA , La lengua de los derechos..., p. 112.51 Ver MARIA DA GLÓRIA GARCIA , Da Justiça Administrativa..., p. 303, notas 163 e 166.52 Ver MARIA LÚCIA AMARAL , A forma da república..., p. 63. Entendemos, com JOÃO MARIA TELLO DE
MAGALHÃES COLLAÇO que, em Portugal, a competência para o Tribunal Constitucional, fiscalizar a
constitucionalidade das leis tem raízes antigas. MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da Justiça Administrativa...,pp.354-358.53Ver MARIA DA GLÓRIA GARCIA , Da Justiça Administrativa..., p. 353-354.
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Constitucional, poder constituinte, Direito Constitucional, liberdade, igualdade, direitos
fundamentais, sujeitos de direitos em face do Estado, separação de poderes, lei como
emanação dos representantes da comunidade, lei geral e abstracta, princípio da legalidade
da Administração, Direito Administrativo, Estado de Direito...) ao mesmo tempo que dão
origem e permitem o desenvolvimento do direito público moderno. O EstadoConstitucional caracteriza-se por ter uma Constituição e um Direito Constitucional; o
Estado Legislação caracteriza-se também por dar origem a um Executivo com uma
Administração que tem na lei o fundamento, o critério e a finalidade da acção. Essa lei dá
origem a um complexo normativo, o Direito Administrativo.
Acresce que acreditar no igual poder negocial das partes num contrato laboral
conduziu às maiores injustiças sociais. Por outro lado, em especial depois da
industrialização e da explosão demográfica, acreditar que o mercado resolvia por si todosos problemas que surgissem conduziu também às maiores injustiças sociais. As ideias
socialistas nascem, diversificam-se, e dão origem a partidos políticos socialistas; de outro
lado, vai ganhando força a doutrina social da Igreja, dando origem aos partidos da
democracia cristã. A Encíclica Rerum Novarum (1891).
O agravamento das tensões sociais com a Primeira Grande Guerra (1914-1918).
A Revolução russa (1917) e o aparecimento dos Estados comunistas. O papel doEstado e do Direito na teoria de MARX e ENGELS e o papel do Estado na realidade dos
factos: o reforço do papel do Estado para a construção do comunismo (Lenine).
Hitler, chefe do partido nacional socialista alemão, é eleito e torna-se chanceler em
1933. Mussolini funda, em 1919, o partido nacional fascista, e toma o poder em 1922. O
movimento nazi e o movimento fascista nascem em oposição quer ao liberalismo quer ao
socialismo e estão na origem da Segunda Grande Guerra (1939-1945).
Destruídas social e economicamente, as sociedades políticas europeias do pós-
Segunda Grande Guerra voltam-se para o Estado, única entidade com poder bastante para
ajudar a recuperar a esperança.
Exige-se a presença do Estado na sociedade, a sua intervenção, auxiliando na
reconstrução das cidades destruídas, ajudando na doença, promovendo o ensino, em todos
os seus níveis, apoiando e incentivando a iniciativa privada, criando infra-estruturas
sociais... Ao lado dos direitos fundamentais de cariz liberal – direitos pessoais – e de cariz
político – direitos políticos –, aparecem os de cariz social, os direitos sociais, económicos e
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culturais, os direitos da 3ª geração de direitos fundamentais54. São direitos a prestações do
Estado, a acções de realização dos direitos. Do Estado Liberal de Direito evolui-se para o
Estado Social de Direito.
Particularmente depois da Segunda Grande Guerra, e por força de umacompreensão mais densificada da dignidade da pessoa humana (o objectivo é impedir que
situações como a dos campos de concentração, do genocídio dos judeus... voltem a
acontecer), as novas Constituições acentuam a natureza «intocável» (unantastbar ) da
dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição Alemã). Fundada na mesma ideia, e
tendo presente a vivência de um longo período de autoritarismo político55, a Constituição
da República Portuguesa de 1976 reconhece, no artigo 1º, ser Portugal: «...uma República
soberana, baseada na dignidade da pessoa humana....».
E é a partir desta densificação da dignidade da pessoa humana que se reconhecem
constitucionalmente os direitos a prestações, a acções positivas do Estado (já não direitos
que limitam o Estado mas direitos que se concretizam por intermédio do Estado): direito à
educação, direito à saúde, direito à segurança social, direito à habitação..., desde logo
procurando que as prestações estaduais criem as condições de um igual exercício da
liberdade (liberdade igual ou igual liberdade)56.
Para corresponder às exigências sociais, compreendidas como interesses públicos aque importa dar resposta, o Estado, em especial a sua Administração, desmultiplica-se em
tarefas – Estado Providência: cria escolas, hospitais, lança auto-estradas, pontes...,
desenvolvendo uma ampla actividade em obras públicas, quer em administração directa
quer contratando com os particulares (contratos públicos, administrativos). Por outro lado,
o Estado torna-se produtor, criando uma adequada organização, as empresas públicas, que
exploram a distribuição da água, a distribuição do gás, da electricidade, os correios... O
Estado deixa de estar à margem da sociedade. Intervém, misturando as suas actividades
com as actividades da sociedade. O Estado Legislação evolui e torna-se um Estado-
Administração (o Estado em que o Governo e a sua Administração tem grande dimensão
dentro do Estado). A organização administrativa estadual multiplica-se e torna-se pesada e
tentacular57.
54 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., pp. 182 e ss.55 O Estado português, sob a Constituição de 1933, desenvolveu-se segundo um modelo de Estado de DireitoFormal, na base de um regime não democrático.56 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., pp. 57 e ss57 Sobre este período, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 2ª edição, vol. I,.Almedina, 1994, pp. 81 e ss..
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O princípio da legalidade da Administração continua a exigir que a actuação da
Administração se faça através da lei, mas a multiplicação de tarefas administrativas e a
exigência da pré-determinação legal dessas tarefas foi exigindo que, ao lado do
Parlamento, um outro órgão, com capacidade de intervenção mais célere, passasse a
legislar, sabido que os procedimentos de criação de consensos a nível do Parlamento sãomorosos. Esse órgão é o Governo. Passa a existir uma área de intervenção legislativa
concorrente (Parlamento/Governo), mas fica claro que as matérias politicamente mais
sensíveis ou importantes pertencem em exclusivo ao Parlamento.
Entretanto, a legislação em matéria de segurança social, a legislação em matéria da
saúde, a legislação em matéria da educação, a legislação em matéria do urbanismo e da
construção... vão-se desenvolvendo, dando origem a especializações do Direito
Administrativo — Direito da Segurança Social, Direito da Saúde, Direito da Educação,Direito do Urbanismo...
Num outro quadrante, o Estado Social de Direito desenvolveu, em defesa dos
direitos dos trabalhadores, uma ampla legislação em matéria laboral, permitindo o
aparecimento do Direito do Trabalho ou Direito Laboral, um ramo de direito novo que
disciplina as relações entre privados no âmbito da prestação de trabalho subordinado.
18. A dimensão internacionalista dos direitos fundamentais.
Depois da Primeira Grande Guerra, foi criada, em 1919, com sede em Genebra, a
Sociedade das Nações, com o Tratado de Versalhes (extinta em 1939, com o eclodir da
Segunda Grande Guerra, embora só dissolvida de direito em 1946). Esta é uma
Organização Internacional de vocação universal (na realidade euro-americana) e
finalidades políticas gerais, desde a cooperação entre Estados à segurança colectiva,
passando pela defesa do direito. A Sociedade das Nações mostrou, entre outras, a
necessidade de assegurar, através de documentos internacionais, direitos fundamentais,
desde logo os direitos humanitários da guerra. Porém, foi preciso conhecer a experiência
de horror da Segunda Grande Guerra para essa necessidade ganhar corpo e consolidar-se,
em documentos internacionais de garantia de direitos58. O direito internacional público59 e
o direito das organizações internacionais.
58 Para uma perspectiva internacionalista da garantia dos direitos fundamentais, RUI MACHETE, Os Direitosdo Homem no Mundo, Cadernos da Fundação Oliveira Martins, 1978.59 O embrião do direito internacional público pode ver-se em HUGO GRÓCIO (1583-1645), autor holandês de« De iure bellum ac pacis» e « Mare liberum». Defensor do direito natural, defende também um direito entreas nações, um direito da guerra
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A via universalista ou internacionalista dos direitos fundamentais.
Em 1945 nasce a Organização das Nações Unidas (ONU)60. A Carta das Nações
Unidas já se refere a direitos fundamentais, mas desde o início se entendeu que o papel da
ONU na consagração dos direitos fundamentais tinha de ser ancilar. Daí que tenha deimediato promovido a elaboração da que ficou designada como Declaração Universal dos
Direitos do Homem, assinada em Paris, em 10 de Dezembro de 1948. A esta seguiram-se o
Pacto Internacional dos Direitos Cívicos e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos
Económicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, e muitas outras convenções,
nomeadamente na área da discriminação racial, da protecção das crianças, da igualdade das
mulheres...
Os direitos fundamentais como matéria constitucional dos Estados, como questãointerna dos Estados, na qual se não pode entrar a não ser pela via diplomática (princípio
dos direitos fundamentais como domestic affair), e a preocupação em estreitar laços
internacionais que conduzam à garantia dos direitos fundamentais ao nível dos Estados
( princípio dos direitos fundamentais como international concern). Uma coisa parece ir
sendo adquirida: os direitos fundamentais deixam de ser só matéria dos Estados; tornam-se
matéria internacional. Fala-se mesmo num novo esperanto, uma linguagem comum entre
os povos a partir dos direitos fundamentais61 – a língua dos direitos62 ou o discurso dos
direitos63
.
No que à experiência político-constitucional portuguesa respeita, o nº 2 do artigo
16º da Constituição de 1976 consagra o princípio de que a interpretação e a integração dos
preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais deve ser feita em
harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Finalmente, tenha-se presente que mais do que reconhecer e consagrar os direitos
do homem, importa garantir a sua efectivação, isto é, tornar os direitos uma vivência
60 A Carta das Nações Unidas é de 26.06.1945 e nestes mais de sessenta nos de vida foi alterada várias vezes.Os órgãos principais da Organização das Nações Unidas (ONU) são a Assembleia-Geral, o Conselho deSegurança e o Secretariado, no qual pontua o Secretário-Geral. Para além destes, há órgãos de apoio,concretamente o Conselho Económico e Social e o Tribunal Internacional de Justiça. Ver Organizações Internacionais. Teoria Geral, estudo monográfico das organizações internacionais de que Portugal é membro, Co-autores, JOÃO MOTA DE CAMPOS, MANUEL CARLOS LOPES PORTO e outros, ed. FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1999, pp. 260 e ss.61 Sobre o assunto, ver JORGE MIRANDA, Curso de Direito Internacional Público, 2ª ed., 2004, pp. 275 e ss..Em posição crítica, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, «Bypass social e o núcleo essencial de prestaçõessociais», in Estudos sobre Direitos Fundamentais, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pp. 243 e ss..62 EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA, La lengua de los derechos...63 MARIA DA GLÓRIA GARCIA, «O discurso dos direitos no discurso do Direito», in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXIX, nº 2, 1998, pp. 511 e ss..
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quotidiana, garantias que, além do mais, dependem da aceitação plena do regime
democrático. Por outras palavras, torna-se necessário saber, de um lado, como se efectiva a
responsabilidade internacional dos Estados; de outro, se os indivíduos podem ser sujeitos
imediatos de direito internacional ou até que ponto os seus direitos têm protecção jurídica
internacional64.
18.1. Em especial, a dimensão europeia dos direitos fundamentais.
No plano europeu, WINSTON CHURCHILL vem, desde 1943, defendendo a
necessidade de criar, na Europa, uma estrutura idêntica à que, em 1945, dá lugar à ONU65.
Com a assinatura, em Londres, em 5 de Maio de 1949, do Estatuto do Conselho da
Europa66 , o projecto torna-se realidade e hoje mais de 4 dezenas de Estados pertencem ao
Conselho da Europa.
Por impulso do Conselho da Europa, com sede em Estrasburgo, foi aprovada a
Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, assinada em Roma em 1950, em vigor desde 1953, garantindo os direitos
civis e políticos com um mecanismo inovador no plano internacional. Com efeito, foram
criados uma Comissão e um Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, com a
incumbência de vigiarem o respeito pelas partes contratantes dos direitos protegidos pela
Convenção. Por outras palavras, os Estados garantem, na ordem interna respectiva, osdireitos dos cidadãos, sob pena de responsabilidade internacional.
A convenção possui inúmeros protocolos. A reforma introduzida pelo 11º Protocolo
é porventura a mais importante. Suprimiu a Comissão e reestruturou o Tribunal, tornando
64 Ver JOSÉ ANTÓNIO PASTOR RIDRUEJO, citado por Márcia Mieko Morikawa, quando afirma: «Se o direitointernacional se edificou no passado sobre uma sociedade de Estados soberanos e tinha um carácter marcadamente interestadual, hoje aspira a cimentar-se numa sociedade de seres humanos por cujo bem-estar se interessa. É a preocupação pelo respeito universal dos direitos humanos e, em última análise, o
processo de humanização e moralização do Direito Internacional», in Deslocados internos: entre asoberania do Estado e a protecção internacional dos Direitos do Homem. Uma crítica ao sitemainternacional de protecção dos refugiados, Coimbra Editora, 2006, p.9.65 Tenha-se ainda presente a criação através do Tratado do Atlântico Norte, assinado em Washington, 4 deAbril de 1949, de uma organização militar de defesa, compreendida como uma organização internacional decooperação. Os Estados associam-se para, de acordo com os princípios definidos na Carta das NaçõesUnidas, garantir a segurança através de criação de confianças mútuas e da garantia da legítima defesacolectiva. Portugal é membro fundador da organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Para maisdesenvolvimentos , JOÃO MOTA DE CAMPOS, MANUEL CARLOS LOPES PORTO e outros, Organizações Internacionais..., pp. 651 e ss.66 Dez Estados assinaram o Estatuto (Bélgica, França, Holanda, Luxemburgo e Reino Unido formam umprimeiro grupo em 1948, através da celebração do Tratado de Bruxelas que previa a criação de um ConselhoConsultivo; a este grupo se juntaram mais 5 países: Dinamarca, Irlanda, Itália, Noruega e Suécia. Portugal foi
o 19º membro do Conselho de Europa, depositando o seu instrumento de adesão em 22 de Setembro de 1976.Ver IRENEU BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2ª ed. Coimbra Editora,1999, pp. 27 e ss..
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obrigatória a jurisdição deste. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pode receber
petições individuais, de organizações não governamentais e de grupos de particulares,
desde que invoquem a violação, pelos Estados vinculados à Convenção, de direitos nesta
consagrados67. O Tribunal verifica se houve ou não violação e, em caso afirmativo, pode
fixar uma indemnização à vítima, a pagar pelo Estado infractor.
Em 1961, a Convenção Europeia foi completada com a Carta Social Europeia, em
vigor desde 1965, ficando assim assegurados também os direitos económicos e sociais68.
Esta viria a ser alterada, tendo sido substituída pela Carta Revista de 1996.
18.2. O desenvolvimento do direito internacional.
Entretanto, e com a proliferação de convenções internacionais, além do mais paragarantia dos direitos humanos – Convenção Americana dos Direitos do Homem (assinada
em 1969 em S. José da Costa Rica), Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos
(assinada em 1981, em Nairobi) –, a Declaração Universal dos Direitos do Homem vai
adquirindo o valor de costume internacional, considerando-se que as suas normas se
impõem aos diferentes Estados69. O continente asiático, em razão das suas concepções
próprias, tem oferecido reticências a este movimento de universalização dos direitos
fundamentais.
O princípio da responsabilidade internacional e a juridicidade do Direito
Internacional.
19. A construção da Europa, a formação do Direito Comunitário e o
Direito da União Europeia.
O movimento económico e político europeu, tal como o conhecemos, inicia-se no
final da Segunda Grande Guerra. Parte do Plano Schumann (ROBERT SCHUMANN, Ministro
dos Negócios Estrangeiros francês), proposto em 9 de Maio de 1950 (9 de Maio é, por isso,
o dia da Europa), considerado a Carta fundadora da Europa Comunitária. O Plano visava
«colocar o conjunto da produção franco-alemã do carvão e do aço sob uma Alta
Autoridade comum, numa organização aberta à participação dos outros Estados
Europeus». Assim se procurava aproximar a França da Alemanha, aliança indispensável à
67 Ver JORGE MIRANDA, Curso de Direito Internacional Público..., pp. 302 e 316-7.68 Ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE , Os direitos fundamentais..., pp.26 e ss..69 Ver JORGE MIRANDA, Curso de Direito Internacional público..., pp. 290 e ss.
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paz na Europa, através do carvão e do aço, dois materiais emblemáticos para o esforço de
guerra, que assim adquiriram o efeito simbólico de contribuir para a paz70.
Em 18 de Abril de 1951, é assinado o Tratado que instituiu a Comunidade
Europeia do Carvão e do Aço (França, Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo).O Reino Unido opõe-se porque não quer uma organização supra-nacional). Mais tarde, em
25 de Março de 1957, é assinado o Tratado de Roma, a Comunidade Económica da
Energia Atómica e a Convenção relativa a certos órgãos comuns às comunidades
europeias (uma Assembleia, um Comité Económico e Social e um Tribunal).
Em 1973, o Reino Unido, a Dinamarca e a Irlanda aderem às três Comunidades.
Em 1981, a Grécia torna-se o 10º membro e, em 1985, Portugal e Espanha aderem
também. Forma-se a Europa dos 12 com 320 milhões de cidadãos.
Com a Europa dos 12 começa a falar-se numa «Europa a duas velocidades». E
começa a falar-se também na necessidade de uma reforma institucional dos órgãos da
Comunidade Económica Europeia. O Acto Único Europeu é aprovado no Luxemburgo em
Dezembro de 1985, prevendo uma extensão da comunidade às matérias ambientais e de
qualidade de vida e um «espaço sem fronteiras internas», «um Mercado Interno
Comunitário», mas a grande revisão dos tratados comunitários vem só em 1992, com o
Tratado da União Europeia, assinado em Maastricht em 7 de Fevereiro71
. Os objectivos daUnião Europeia deixam de ser só económicos e passam a ser também sociais e culturais.
Institui-se a política externa e de segurança comum (PESC), embora só num plano
intergovernamental, prevendo-se, a prazo, uma política comum de defesa72.
Em 1995, a Áustria, a Finlândia e a Suécia aderem à União Europeia e, com a
queda do Muro de Berlim (1989) e o desmoronamento da União Soviética (1991), vários
Estados do Leste Europeu, em processo de democratização, solicitam a adesão à União
Europeia.
70 Sobre a construção da União Europeia, FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia, Almedina,2004, pp. 36 e ss.71 Entretanto, nasce, na Europa, o «espaço Schengen» (o primeiro acordo de Schengen é de 14.6.1985),aplicado hoje em 13 Estados da União (Reino Unido e Irlanda não entraram e os Estados dos dois últimosalargamentos também não) e em Estados que não integram a União, como é o caso da Suiça, da Islândia e daNoruega. No «espaço Schengen» estão abolidas as fronteiras internas e uniformizados os regimes de controlodas fronteiras externas. Envolve, desde 1999, o sistema de informações Schengen (SIS) que implica maiscooperação policial e judicial em matéria penal, mais intensa luta contra estupefacientes e uma mais rigorosa
política de vistos.72 Os textos básicos dos tratados da União Europeia podem ser consultados em MARIA JOSÉ RANGEL DE
MESQUITA, Direito da União Europeia. Textos Básicos, aafdl, 2006.
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Assinado em 29 de Março de 1999, o Tratado de Amesterdão veio criar um
«espaço de liberdade, segurança e justiça», ao mesmo tempo que simplificou o modo de
funcionamento da União Europeia. Entretanto, assinale-se, em 1 de Janeiro de 1999, o
estabelecimento da moeda única (euro), sendo as notas e moedas de euro introduzidas a
partir de Janeiro de 2002 (Reino Unido, Dinamarca e Suécia não aderem, porém, ao euro).Em Fevereiro de 2001, o Tratado de Nice traz consigo uma nova revisão dos tratados e, à
margem dos tratados, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia aprovam em
2000 a Carta dos Direitos Fundamentais73.
Cria-se, então, a Convenção sobre o Futuro da Europa, presidida por GISCARD
D’ÉSTAING com o objectivo de preparar o passo seguinte, de integração política, o Tratado
Constitucional para a Europa. Mas, em referendo, em 2005, a França e a Holanda, dois
Estados fundadores, disseram não ao Tratado, e o movimento da Europa tem de recuar.
Em Abril de 2003, dá-se o quinto alargamento e 10 novos Estados entram (Chipre,
Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, República Checa, Eslováquia e
Eslovénia) – Europa dos 25.
E, desde 1 de Janeiro de 2007, a Europa conta com mais dois membros, a Bulgária
e a Roménia – Europa dos 27 –, sabendo-se ainda que a Turquia, a Croácia e a Macedónia
já manifestaram interesse em entrar74
...
Entretanto, os problemas de organização e funcionamento institucional de uma
Europa a 27 pressionam os Estados a uma solução de reforma dos Tratados. Fracassada a
solução de um tratado com natureza constitucional – Tratado Constitucional –, que
substituiria em bloco os tratados anteriores, era necessário encontrar uma outra solução. O
consenso chegou em Outubro de 2007, durante a presidência portuguesa da União
Europeia: o Tratado Reformador (não um tratado de natureza constitucional mas um
tratado que reforma os já existentes), assinado dia 13 de Dezembro de 2007, no Mosteiro
dos Jerónimos, depois de as maiores objecções, vindas da Itália e da Polónia, terem sido
ultrapassadas.
Sujeito a aprovação pelos diferentes Estados-membros, o Tratado Reformador, que
definiu os principais órgãos da União Europeia como sendo o Parlamento Europeu, o
73 Sobre a Carta dos Direitos Fundamentais, JORGE MIRANDA, Curso de Direito Internacional..., pp. 322 e ss.RUI DE MOURA RAMOS, «A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a Protecção dos DireitosFundamentais» in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, Studia Iuridica, 2001, pp. 963 e ss..74 Sobre o futuro da União Europeia e os seus desafios, FAUSTO DE QUADROS , Direito da União..., pp. 563 ess..
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Conselho Europeu, o Conselho, a Comissão Europeia, o Tribunal de Justiça da União
Europeia, o Banco Central Europeu e o Tribunal de Contas, cuja composição e
funcionamento são gizados de forma a corresponder às sensibilidades dos Estados, em
razão das diferenças que os identificam, não foi aprovado pela Irlanda. Um novo período
de incerteza se iniciou, então, quanto às reformas institucionais da União Europeia.
A cidadania da União e o artigo 17º do Tratado da União Europeia 75. O direito de
eleger e o direito a ser eleito. Do Direito Comunitário ao Direito da União Europeia76. O
primado do Direito da União sobre o Direito Estadual resulta da natureza do Direito da
União, porquanto este tem natureza «comunitária», integrado como está no sistema
jurídico dos Estados membros, impondo-se aos respectivos tribunais77
20. Em jeito de conclusão.
A Constituição como lei fundamental do Estado tornou-se um dado adquirido da
sociedade política. Com a Constituição, o Estado passa a ser um Estado de Direito, um
Estado que se pauta pelo Direito e legitima quotidianamente no Direito (Estado de
Direito). Pode ser um Estado Mínimo (Estado Liberal) ou um Estado-Providência (Estado
Social), mas em qualquer dos casos é um Estado de Direito.
Os direitos fundamentais, fundados numa compreensão cada vez mais densificadada dignidade da pessoa humana, são reconhecidos nos textos constitucionais e em
Declarações Internacionais, estreitando os povos e os Estados em redor do que entendem
ser um património comum, apesar das diferenças culturais que dão origem a diversos
entendimentos desses direitos. Quanto à garantia de concretização desses direitos,
considera-se que decorre desde logo da existência de um regime democrático.
A lógica de permanente resposta às solicitações sociais de maior justiça e bem-
estar, solicitações compreendidas como interesses públicos que ao Estado urge satisfazer,
vai tornando o Estado Social cada vez mais um «Estado de Justiça Total» (ANTÓNIO
CASTANHEIRA NEVES). O Estado resolve os problemas económicos, sociais, de segurança,
para tal criando uma máquina administrativa pesada e cada vez mais burocratizada, ao
mesmo tempo que gera em redor a convicção de que soluciona todas as questões que
75 Diz o nº 1 deste artigo «... É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado- Membro. A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui». Veja-se também o
disposto no artigo 15º da Constituição portuguesa.76 Sobre estas matérias, FAUSTO DE QUADROS, Direito da União..., pp.114 e ss e 398 e ss..77 FAUSTO DE QUADROS, Direito da União..., pp. 400 e ss..
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surjam entre os indivíduos e os grupos na comunidade, sendo, consequentemente, fonte de
justiça.
A situação descrita conduz a uma perda de sentido do humano na sociedade.
Porquê? Pois porque a tradicional interajuda social e a solidariedade entre os indivíduostendem a ser substituídas pelas prestações do Estado, essa entidade sem rosto que fornece
linhas de crédito para aquisição de empresas, dá abrigo às famílias desalojadas por
inundações, incêndios, desmoronamentos e outras calamidades, apoia os agricultores,
auxilia quem nasce com deficiências ou tem doenças incuráveis... A omnipresença do
Estado e das suas prestações sociais retiram espaço à acção humana, deixam «amolecer» a
força anímica que leva os homens e as mulheres a resolverem os seus próprios problemas
com iniciativas pessoais, com a ajuda dos amigos... e a ter o prazer e satisfação pessoais de
concluir que foram capazes de ultrapassar a adversidade, e os amigos a alegria de saber quecontribuíram para essa ultrapassagem. E isto porque o Estado tudo providencia, tudo
promove, a tudo acode, eliminando injustiças e criando bem-estar.
Em suma, a sociedade torna-se menos solidária. Não admira que, em particular nas
grandes cidades, os fenómenos de solipsismo e de exclusão social tendam a proliferar78 e
as underground cultures procurem espaços para se desenvolverem.
Seguindo uma outra linha de pensamento, os direitos a prestações sociais doEstado, ao multiplicarem-se em solicitações, vão mostrando que o Estado tem limites
financeiros. Tais direitos tornam-se, por isso, «direitos sob reserva do possível», ou, sob
outra perspectiva, contêm «fins políticos de realização gradual». Isto significa que o
Estado começa a não ser capaz de dar resposta a todas as solicitações contidas nos direitos
a prestações, tão simplesmente porque isso depende de meios financeiros disponíveis e
recursos que são cada vez mais escassos79.
A questão pode colocar-se deste modo: o direito a «uma habitação de dimensão
adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a
privacidade familiar», consagrado no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa,
autoriza todos os portugueses a exigir do Estado uma habitação com estas características?
Parece que tudo dependerá das condições económicas e sociais e da teia de prestações a
que os poderes constituídos em cada momento têm de dar resposta, na complexidade com
que quotidianamente as questões se apresentam.
78 Sobre a ideia de sonho de um mundo melhor que a Constituição deve transmitir, MARIA DA GLÓRIA
GARCIA, «A Constituição e a construção da democracia» in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 anos daConstituição de 1976 , vol. II, Coimbra Editora, 1997, pp. 569 e ss..79 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., pp. 190 e ss..
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Há, no entanto, um dado adquirido: a escassez de meios financeiros e o paulatino
esgotamento de recursos naturais impedem respostas prontas às necessidades sociais,
criando frustrações na sociedade, que continua a confiar no Estado Social e a ter a
expectativa de que este tem recursos e estruturas de poder para resolver as injustiçassociais e dar satisfação às necessidades colectivas tornadas interesses públicos a
prosseguir.
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VII
Segurança, poder e direito
21. Segurança e sociedade global. Em particular, o fenómeno do
terrorismo e a «questão ambiental».
Politicamente, o século XX, que conheceu duas Grandes Guerras e a revolução
russa, a formação da União Soviética e a guerra fria, termina com a queda do Muro de
Berlim (1989) e o desmembramento da União Soviética (1991) e os pensadores políticos a
declararem o «fim da história» (FRANCIS DE FUKUYAMA) ou a assumirem que «acabou anossa era» (SAMUEL HUNTINGTON).
Por sua vez, o século XXI anuncia-se com o ataque às Torres Gémeas no coração
de Nova Iorque com aviões comerciais desviados por bombistas suicidas, em 11 de
Setembro de 2001, a que se seguiram ataques bombistas em Madrid e em Londres,
mostrando a vulnerabilidade do poder estadual e respectivos sistemas policiais de defesa e
segurança. O conceito clássico de guerra, desenvolvida Estado a Estado, é abalado. A
ameaça deixa de ser estadual. Provém de grupos terroristas espalhados pelos diferentesEstados que utilizam os meios de comunicação em rede, proporcionados pela civilização
de bem-estar, para organizar os ataques que ferem a própria civilização de bem-estar80. A
insegurança das sociedades é agora compreendida em termos globais – insegurança global.
Mas se o terrorismo não se insere no conceito clássico de guerra, a resposta dada
pelos Estados Unidos, decorrente de uma doutrina que se passou a designar de «prevenção
pelo ataque», uma resposta contra o voto do Conselho de Segurança da NATO, tão pouco
se compreende como uma via clássica de reacção81.
Uma coisa parece certa: o terrorismo evidenciou a perda de poder dos Estados
soberanos para fazer face aos problemas em que cada um se vê envolvido. O Estado sente
80 Para a análise do fenómeno do terrorismo sob as suas mais diferentes perspectivas, ver a obra Terrorismo,coordenado por ADRIANO MOREIRA, Almedina, 2004. Em especial o texto de ADRIANO MOREIRA,«Insegurança sem fronteiras: o martírio dos inocentes», pp. 123 e ss.81 Tenha-se presente que a Carta das Nações Unidas, no artigo 2º, nº 4, proíbe a guerra (dispõe este nº 4: «Osmembros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra integridade territorial ou a independência política de um Estado quer seja de qualquer outro
modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas»), pelo que o direito de fazer a guerra setransformou ou passou a ser interpretado no quadro do direito de legítima defesa, individual ou colectiva(artigo 51º da mesma Carta das Nações Unidas).
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o seu poder a esboroar-se e sente necessidade de se recentrar e ao seu poder político, ao
mesmo tempo que tende a mergulhar num quadro de incerteza.
Mas a questão da segurança das sociedades políticas, estaduais, ou melhor, a
ausência dessa segurança, pode resultar de outro fenómeno, concretamente de problemasambientais, caracteristicamente globais, o que tudo traduz o adensamento da que, desde
1986, é chamada «sociedade de risco»82, e que, ultimamente, tende a evoluir para uma
«sociedade de incerteza».
Com efeito, o sentido holístico do ambiente, descoberto na segunda metade do
século XX, patente nas chuvas ácidas, nos derrames de crude no mar provocados por
rombos no casco de grandes petroleiros, ou no rebentamento nuclear em Chernobyl, na
antiga União Soviética, em 1986, mostraram, de um lado, a existência de uma «questãoambiental» e, de outro, a ausência de fronteiras do ambiente. Fica claro, por isso, que a
protecção ambiental não é (não pode ser) tarefa a empreender por cada Estado, considerado
na sua singularidade. É, pelo contrário, tarefa de todos os Estados.
A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, de Estocolmo (1972) é
o primeiro alerta da comunidade internacional para os problemas ecológicos. Seguiu-se-lhe
a Conferência do Rio de Janeiro (1992), conhecida como a Cimeira da Terra, chamando a
atenção para a perda de biodiversidade, para as alterações climáticas, para a necessidade deconciliar o desenvolvimento económico com a sustentabilidade ambiental83. O princípio do
desenvolvimento sustentável passou a fazer parte do ideário político dos diferentes Estados
que procuram agora conferir-lhe dimensão jurídica84. Por sua vez, a Conferência de
Joanesburgo (2002), conhecida como Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento
Sustentável, veio alertar, em especial, para o problema da escassez de água, problema
determinante do século XXI85.
82 ULRICH BECK, Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne, Suhrkamp,198683 A Comissão Mundial do Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas define o «desenvolvimentosustentável» como «uma política e estratégia de desenvolvimento económico e social contínuo, sem prejuízodo ambiente e dos recursos naturais, de cuja qualidade depende a continuidade da actividade humana e dodesenvolvimento». 84 O princípio do desenvolvimento sustentável encontra-se presente não só no corpo do nº 2 do artigo 66º daConstituição Portuguesa como na al. a) do artigo 81º da mesma Constituição. Na sequência do disposto na leifundamental, foi recentemente aprovada a Estratégia Nacional do Desenvolvimento Sustentável (ENDS), uminstrumento de orientação estratégica que procura traçar os grandes objectivos, os caminhos e as metas aatingir nas diferentes políticas até 2015, no quadro de um desenvolvimento sustentável — Resolução doConselho de Ministros nº 109/2007, publicada no Diário da República de 20 de Agosto de 2007.85 A ideia da escassez dos bens naturais ficou muito clara com a metáfora criada por KENNETH BOULDING, da«nave espacial da Terra». Ver The economics of the coming spaceship earth-environmental quality in agrowing economy, Ed. John Hopkins Press, 1996.
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A incerteza quanto ao futuro, agora pela via do ambiente, está na ordem do dia. A
diminuição da biodiversidade, a destruição de eco-sistemas, o estreitamento da camada de
ozono, o aumento do nível das águas do mar... inquietam a sociedade pela imagem de
catástrofe que lhe anda associada, obrigam a alterar comportamentos e a ter perante a
acção uma atitude de precaução a fim de proteger as gerações futuras – princípio da
solidariedade intergeracional86 . Com isso, o direito vê-se forçado a pensar na eventual
criação de um novo sujeito jurídico: o sujeito geração87 .
Mas a tarefa de protecção dos eco-sistemas, bem como a resolução da questão das
alterações climáticas não se resolve com a acção deste ou daquele Estado, considerado
isoladamente. É tarefa que convoca a globalidade dos Estados e, ainda, todos e cada um
dos cidadãos88.
O Direito do Ambiente, ramo de direito que disciplina a acção de defesa do
ambiente, nasce. E nasce como um direito com vocação global89, sem fronteiras, que
convoca os Estados para a concertação de esforços em defesa do que se chama
«património comum da humanidade»90. Acresce que com o Direito do Ambiente se
acentua uma realidade que, com o aparecimento dos direitos fundamentais, foi deixada na
penumbra: os deveres fundamentais. Em especial, o dever fundamental de todos os
cidadãos defenderem o ambiente – dever fundamental ecológico91.
Paralelamente, consolidam-se os direitos fundamentais da 4ª geração, os
direitos/deveres, direitos circulares ou direitos de solidariedade – o direito/ dever de
protecção ambiental, o direito/dever de protecção do património cultural, o direito/dever da
protecção da saúde. A estrutura dos direitos fundamentais altera-se, na medida em que os
direitos se ligam a deveres, cujo conteúdo é definido em função do interesse comum92.
Por outro lado, acentuam-se os deveres fundamentais autónomos como o dever
fundamental de pagar impostos.
86 Este princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 66º, nº 2, al. g) da Constituição Portuguesa.87 Ver JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, «O direito ao ambiente como direito subjectivo» in A tutela jurídica do meio ambiente: presente e futuro, Studia juridica, 81, Coimbra Editora, 2005, p. 47.88 Tenha-se presente o disposto no artigo 66º, nº 1, da Constituição Portuguesa.89 Para uma análise das dificuldades de protecção ambiental, em especial através do direito, M ARIA DA
GLÓRIA GARCIA , O lugar do direito na protecção do ambiente, Almedina, 2007.90 Expressão introduzida no discurso ambiental, em Portugal, por JOSÉ MANUEL PUREZA, Património Comumda Humanidade: rumo a um direito internacional da solidariedade? Edições Afrontamento, 1998.91 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, «O direito ao ambiente como direito subjectivo» in A tutela jurídica do
meio ambiente: presente e futuro, Studia juridica, 81, Coimbra Editora, 2005, p. 48.92 Ver, em especial, os artigos 64º, nº 1 (direito à protecção da saúde e dever de a defender) da Constituiçãoportuguesa.
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Ao lado dos direitos fundamentais, vão-se moldando, assim, deveres fundamentais
dos cidadãos93, no quadro de uma mais ampla responsabilidade social, cada vez mais
entendida como partilhada (shared responsability) e voltada para o futuro
(responsabilidade pelo futuro).
22. A globalização económica, as inovações tecnológicas e a sociedade da
informação e do conhecimento.
Se, até há alguns anos, as economias se encontravam fechadas nas fronteiras dos
Estados e as exportações e importações de bens resumiam os contactos económicos entre
eles, actualmente os contactos entre Estados estão completamente alterados.
Os mercados financeiros, onde o dinheiro é virtual, respondem a estímulos ecatástrofes em tempo real. Um discurso do Presidente dos Estados Unidos faz baixar ou
subir o preço do petróleo, uma avioneta embate num edifício em Nova Iorque e há uma
reacção imediata no mercado de capitais, alterando a fisionomia económica dos Estados,
nomeadamente o peso da sua dívida pública.
A deslocalização de empresas de um Estado para outro Estado cria desemprego no
primeiro e as novas tecnologias permitem às empresas actuar de forma policentrada,
simultaneamente em vários Estados, em função de mão-de-obra qualificada ou mais barata(por exemplo, os phone-calls de empresas nacionais podem estar localizados na Guiné ou
em Cabo Verde...), o que, de um lado, cria desemprego e, de outro, introduz alterações no
desenvolvimento económico dos Estados.
Por outro lado, os movimentos migratórios, a nível global, para além de originarem
desequilíbrios no mercado de trabalho em Estados economicamente estáveis e consistentes,
criam problemas de inserção cultural e levantam o problema dos deslocados e da protecção
dos refugiados.
Num outro quadrante, fundações milionárias substituem-se aos Estados nas tarefas
culturais e sociais, através do mecenato cultural e social. Pense-se na Fundação Bill Gates,
que recentemente recebeu avultadas verbas de Warren Buffett, e no mecenato que esta
Fundação vem desenvolvendo em Estados africanos como Moçambique, Etiópia, Sudão.
93 Para uma análise dos deveres fundamentais, JOSÉ CASALTA NABAIS, Por uma liberdade comresponsabilidade. Estudos sobre direitos e deveres fundamentais, Coimbra Editora, 2007, em especial, pp.220 e ss..
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Em suma, também pela via económica e financeira chegamos à conclusão de que o
poder político dos Estados já não tem, como antes tinha, possibilidade de alterar situações
e influenciar decisivamente o desenvolvimento político e social. Confronta-se hoje com
inúmeros outros poderes sociais, dentro e fora das suas fronteiras, que interferem com as
suas tarefas e responsabilidades.
Os fenómenos de comunicação em rede têm também posto a nu as debilidades do
poder estadual, bem como mostrado a dificuldade que os Estados têm em lidar com eles.
Adquirido está, porém, o facto de os cidadãos usarem a comunicação em rede para resolver
problemas que antes sentiam que o Estado lhes podia resolver. A Consumer’s International
é um exemplo.
A Consumer’s International é uma organização não governamental (ONG), umaassociação de consumidores, cujo papel se desenvolve a nível global, em defesa dos
direitos dos consumidores, nos mais diferentes domínios. Começou com um pequeno
grupo de indivíduos e tem vindo a crescer ao longo dos tempos de tal modo que hoje
engloba, para além de associações privadas, instituições públicas estaduais. Com efeito, em
Portugal, são membros da Consumer’s International não só o Estado, através da Direcção-
Geral de Defesa do Consumidor (antigo Instituto do Consumidor)94, como a DECO, para
além de consumidores individuais.
A sociedade da comunicação e a rede que a suporta dá ainda origem a grandes
movimentos internacionais de solidariedade, como aconteceu com o movimento de apoio
humanitário às vítimas do tsunami, em Dezembro de 2004, nas costas asiática e africana,
em razão da imagem forte que a todos chegou pelos meios de comunicação social... São
movimentos de solidariedade intrageracional cujos resultados podem ser bem mais
eficientes do que os produzidos pelos poderes políticos dos Estados afectados.
A mesma sociedade da comunicação e a opinião pública mundial a que esta dá
origem podem ainda ter justificado a alteração do sentido de voto das eleições espanholas,
no período eleitoral que precedeu as eleições políticas de 2004, sendo Aznar ainda
Primeiro-Ministro, depois dos ataques bombistas em Madrid, em 11 de Março desse
mesmo ano. A ter acontecido, não há dúvida de que os Estados já não decidem sozinhos,
sendo influenciados por forças politicamente estranhas.
94 Ver a missão e as tarefas da Direcção Geral do Consumidor no Decreto-Regulamentar nº 57/2007, de 27 deAbril.
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Aos poucos, sente-se que, em planos distintos, a soberania do poder estadual vai
perdendo força, ao mesmo tempo que uma ideia vaga de cidadania mundial vai crescendo,
também em diferentes níveis (multilevel citizenship), associada à necessidade de os
Estados se juntarem para resolução de matérias que a todos interessam e, bem assim, à
uniformização da informação veiculada pela sociedade da comunicação.
23. Afloramentos de globalização política.
Neste enquadramento, recorde-se que o Estado Português se viu obrigado, antes de
se comprometer com a construção da união europeia (na sequência do Tratado de
Maastricht), a aditar o nº 6 ao artigo 7º e o nº 5 ao artigo 15º da Constituição95, a alterar o
artigo 102º, relativo às funções do Banco de Portugal, que deixa de emitir moeda96, e os
artigos 161, al. n), 163º, al. f), e 197º, al. i), sobre o acompanhamento parlamentar doprocesso de construção da união europeia97.
Num outro quadrante, o Tratado Constitutivo do Tribunal Penal Internacional
(Tratado de Roma, de 17.07.1998), que entrou em vigor em 1 de Julho de 200298, e foi
ratificado por 120 Estados99, criou um tribunal com sede em Haia, um tribunal de natureza
permanente com competência para julgar crimes de genocídio, crimes contra a
humanidade, crimes de guerra. Tem jurisdição para o futuro100 e promove o respeito pelos
direitos da pessoa humana, mesmo contra os chefes políticos e militares. A suaconstituição limita a soberania dos Estados, na medida em que estes aceitem
expressamente a jurisdição deste Tribunal. Compreende-se, por isso, a alteração que foi
introduzida na ordem constitucional portuguesa, em 2001101, a fim de permitir a ratificação
do referido Tratado de Roma pelo Estado português.
95 O nº 6 do artigo 7º da Constituição passou, em 1992, a ter o seguinte teor: «Portugal pode, em condiçõesde reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização do princípioda coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção daunião europeia». Por sua vez, o artigo 15º, nº 5, do diploma fundamental passou a consagrar o seguinte: «A
lei pode ainda atribuir, em condições de reciprocidade, aos cidadãos dos Estados-membros da UniãoEuropeia residentes em Portugal o direito de elegerem e serem eleitos Deputados ao Parlamento Europeu». 96 Dispõe agora o artigo 102º da Constituição: «O Banco de Portugal é o banco central nacional e exerce assuas funções nos termos da lei e das normas internacionais a que o Estado Português se vincule». 97 Ver anotações às diferentes disposições constitucionais em JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS,Constituição Portuguesa Anotada, vol. I e vol. II.98 Sobre a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, ver os textos apresentados no Colóquio internacionalrealizado na UCP em 24 e 25 de Março de 2006, subordinado ao tema «O Tribunal Penal Internacional e aTransformação do Direito Internacional», no volume especial da Revista Direito e Justiça, 2006. 99 O Estado Português ratificou o Tratado em 18 de Janeiro de 2002.100 Diferentemente dos tribunais «ad hoc», como o Tribunal de Nuremberga, criado no fim da SegundaGrande Guerra para punir os crimes cometidos contra a humanidade.101 A 5ª revisão constitucional (2001) teve por fundamento permitir ao Estado português ratificar o Tratado
Constitutivo do Tribunal Penal Internacional. O artigo 7º, nº 7 da Constituição passou a ter a seguinteformulação: «Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova orespeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional,
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Ainda num outro quadrante, veja-se o modo como as universidades hoje se
relacionam em rede, nacional e internacionalmente, a nível europeu e mundial, criando
standards pelos quais se mede a qualidade do seu ensino, num quadro alargado de
construção do direito a que se sujeitam102.
24. A policentralidade dos poderes políticos e o poder estadual.
O esboroamento do poder dos Estados não se faz só sentir no plano externo. Vem-
se evidenciando também a nível interno.
Com efeito, as comunidades públicas territoriais, no caso português as Regiões
Autónomas e as autarquias locais, pela força democrática que as sustenta, têm vindo aganhar cada vez mais peso no plano político, até pela proximidade às populações,
obrigando o Estado e o seu Governo a negociar, a entrar em concertação, a alterar posições
inicialmente consideradas «inegociáveis».
Por sua vez, as Ordens profissionais (associações de direito público), ligadas a
profissões liberais, e as associações sindicais de grupos profissionais com grande poder de
mobilização, como é o caso dos professores ou dos juízes, têm vindo a mostrar uma grande
capacidade de influenciar decisões políticas do governo ou, pelo menos, a tornar difícil atomada de decisões políticas.
Acresce que a sociedade civil tem-se vindo a organizar e a criar associações de
voluntariado, de defesa de interesses culturais, de protecção ambiental, de defesa do
consumidor – Banco Alimentar contra a Fome, Associação dos Amigos de Monserrate,
QUERCUS, DECO... –, empreendendo tarefas tradicionalmente pertencentes ao Estado
Social de Direito.
Sob outra perspectiva, o próprio Estado Social resolve empreender um processo de
privatização de empresas públicas – caso da GALP, EDP, Portugal Telecom – ou de
tarefas públicas – notários –, faz parcerias com os particulares – parcerias público-
privadas –, encomenda trabalhos a privados (outsourcing) – encomenda projectos de
diplomas a escritórios de advocacia, estudos de mercado a universidades privadas –, o que
nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma». Sobre osproblemas jurídico-constitucionais que o Tratado que institui o Tribunal Penal Internacional acarreta, verJORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, vol. I, 2005, pp. 84-
85.102 Sobre o assunto, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Autonomia Universitária e Avaliação da Qualidade doEnsino Superior, UCP Editora, 2008.
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se, de um lado, mostra a vitalidade da sociedade civil e permite o desenvolvimento de
múltiplos pólos de poder social, de outro não deixa de responsabilizar o poder político
estadual (Estado Social de Direito) pelos resultados da acção, assim empreendida
indirectamente.
Não admira que UDO DI FABIO, juspublicista, juiz do Tribunal Constitucional
alemão, fale da «despedida do Estado nacional», que o juspublicista alemão W. REINHARD
afirme «o Estado soberano, moderno, já não existe» e que o juspublicista alemão PETER
SALADIN interrogue: «para quê falar ainda de Estados?».
As afirmações e a interrogação acabadas de fazer obrigam, porém, à reflexão e,
desde logo, a consciencializar o momento de crise que o Estado e o seu poder estão a
atravessar. A reinvenção do Estado, a reforma do Estado, a mudança de paradigma ou demodelo de Estado são expressões que, de diferentes quadrantes políticos, se fazem hoje
ouvir. Mas o que ninguém contesta ou parece contestar é a necessidade de um poder que,
na comunidade política, garanta o direito e nele se legitime ou, sob outro ângulo de análise,
garanta a realização dos direitos que emanam da dignidade da pessoa humana.
O Estado pós-moderno ou, sob outra perspectiva, o Estado neo-moderno, em
gestação, não pode, pois, prescindir do direito, nele se sustentando. As novas tarefas
incitativas (Estado Incitativo), isto é, que incitam os cidadãos a agir em determinadosentido, as novas tarefas de promoção da qualidade dos comportamentos sociais (Estado-
Propulsor ), as novas tarefas de garantia de realização, em igualdade, das liberdades
individuais, mais do que tarefas de desenvolvimento de prestações sociais, económicas e
culturais (Estado de garantia da realização de direitos) obrigam o poder estadual a
recentrar-se e a renovar-se na sua interligação ao direito.103 E, desde logo, a abrir caminho
à definição de políticas públicas em estreita conexão com os destinatários dessas políticas,
nos mais diferentes quadrantes de actividades, para tanto usando de um refrescado poder
de governança104.
25. A redobrada importância do direito na sociedade do conhecimento.
Os novos problemas sociais, políticos, criados, além do mais, pelos fenómenos do
terrorismo e da degradação ambiental, pela sociedade da comunicação em rede e da
informação, fácil e massificada, têm aberto caminho à necessidade de aprofundar e alargar
conhecimentos para diminuir o espaço de ignorância sobre a evolução comunitária, dando
103 Ver, sobre o assunto, CHARLES-ALBERT MORAND, Le droit neo-moderne des politiques publiques, LGDJ,nº 26, 1999.104 MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Direito das Políticas Públicas- Relatório, 2008, em curso de publicação.
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origem ao que se vem chamando sociedade do conhecimento, como forma de lidar com a
crescente incerteza da vida social, que também permite apelidar a sociedade em que
vivemos de sociedade da incerteza.
O incitamento à formação superior, de qualidade, ao desenvolvimento de aptidões(lifelong learning) e à excelência da participação social têm em vista a competitividade a
nível mundial e uma consequente recompreensão do poder político dos Estados, com vista
à configuração de um novo paradigma de Estado (Estado de Direito pós-moderno ou, sob
outra perspectiva, neo-moderno).
Por outro lado, o que se acaba de afirmar reflecte-se no direito que rege o Estado.
Pergunta-se: como vai o direito lidar com a incerteza e as consequências imprevisíveis das
acções humanas sobre o ambiente? Como pode o Estado agir, através do seu poder, demodo a proteger as sociedades abertas, democráticas, dos fenómenos do terrorismo? Como
pode o Estado agir, através do seu poder, de modo a proteger as sociedades abertas,
democráticas, dos fenómenos financeiros globais? Como se defende o ambiente através do
direito num mundo sem fronteiras?
O apelo aos princípios gerais de direito, mais do que à lei positiva, estadual. O
poder do Estado e a sua acção em conjugação com o poder dos outros Estados e o
princípio da cooperação entre os Estados.
Além disso, a sociedade do conhecimento tende a dar origem a uma cidadania mais
consciente e responsável, que parte do local mas que tem o pensamento no global, e que
partilha, em rede, e em múltiplos níveis, responsabilidades na sociedade e com o Estado (e,
logo, o exige), num quadro de juridicidade – princípio da cidadania.
Por outro lado, os cidadãos cada vez mais informados e conhecedores, são levados
a participar para não ficarem nas mãos de quem diz que sabe o que ninguém ainda sabe
(perigo de uma ecoditadura) – princípio da responsabilidade partilhada.
Por seu turno, a maior intervenção dos cidadãos exige uma permanente intervenção
do Estado com vista a introduzir coerência na acção – princípio da coerência.
Acresce que tende a difundir-se nos cidadãos e no Estado uma atitude de
precaução, colocando permanentemente em questão a acção e as suas consequências, numa
quotidiana atenção aos prováveis ou potenciais danos resultantes da acção, com vista a
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minimizá-los ou a eliminá-los por antecipação – princípio da precaução (better safe than
sorry).
Por outro lado, ainda, o direito tem vindo a incorporar o critério, de base
económica,do custo/benefício e da avaliação jurídica dos resultados, já que estes sãoessenciais à continuidade da vida e do que, consequentemente, justifica o direito na
sociedade política.
O que tudo aponta para uma releitura dos direitos fundamentais à luz do próprio
direito, recriando, a partir da dignidade da pessoa humana, sobre a qual assenta o poder da
sociedade política, um discurso do direito dentro do discurso dos direitos, um discurso no
âmbito do qual os deveres ganham cada vez maior peso, na teia em que se encontram com
os direitos, responsabilizando todos pela acção, o que implica redobrada atenção aosdetalhes, aos pormenores – direito da atenção – já que nos detalhes, nos pormenores, se
escondem não só sinais de perigo mas também sinais de salvação.
Tenha-se, também, presente que, por melhores que sejam as razões invocadas, o
Estado e o seu poder, entendidos nos moldes tradicionais do Estado Moderno, não podem
ter a pretensão de viver num permanente «estado de necessidade», fora da normalidade,
com restrição ou suspensão dos direitos fundamentais, como, por vezes, em virtude da
magnitude dos problemas que se lhe colocam para resolver, há a tentação de aceitar.Enveredar por esse caminho é abrir espaço a indesejáveis processos ditatoriais de actuação
do poder estadual, em que tudo é permitido, «em razão da necessidade»105.
Finalmente, não se esqueça que o pensamento global, a convivência com a
incerteza e a acção em rede são realidades determinadas por valores que partem do homem
e a ele se reconduzem, concretamente a defesa da vida e inerente dignidade, a sua
continuidade futura, em comunidade. Ora estes valores – sabe-se hoje – exigem, para
serem concretizados, a acção conjunta dos Estados e a acção interna de cada Estado, para
além da acção dos cidadãos, nos múltiplos níveis em que estes se desdobram.
105 Chamando a atenção para os perigos da instalação de uma ecoditadura, CHRISTIAN CALLIESS, Rechtstaat und Umweltstaat. Zugleich ein Beitrag zur Grundrechtsdogmatik im Rahmen mehrpoliger Verfassungsrechtsverhältnisse, Jus Publicum, 71, Mohr Siebeck, 2001.
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VIII
Estado, direito e cultura
26. Estado e direito como realidades culturais.
O Estado e o direito são o resultado da sedimentação de valores ao longo dos
séculos. Não são realidades petrificadas no tempo, impassíveis à evolução social. São
realidades culturais.
A Declaração de Herrenchiemsee, que iria dar origem à Constituição de Bona,afirmou, de forma emblemática: «O Estado nasce para a pessoa e não a pessoa para o
Estado». Ora, nascendo para a pessoa, em razão da dignidade que a caracteriza, o Estado
tem um momento em que se «constitui». A Constituição é o acto político-jurídico
instituidor que lhe dá vida e lhe mantém a vida. Sem direito, o Estado não sobrevive. É o
direito que sustenta o Estado.
Constituir um Estado significa, assim, dar ao Estado uma constituição. Traduz a
ideia de transformação de uma comunidade em comunidade política, num povo. Mesmoque nasça de um acto revolucionário, este acto revolucionário é portador de uma ideia
originária de juridicidade, de «constituição»106 .
Sob outra perspectiva, diremos que o Estado não existe por si ou em si; existe para
resolver problemas e para resolver específicos problemas: os problemas das pessoas em
sociedade. E, em particular, para garantir direitos das pessoas, a paz, a justiça, o bem-estar
e a sua continuidade futura, para difundir a confiança possível na incerteza. Por isso é parte
da comunidade de Estados, de uma comunidade internacional de Estados, vivendo em
coordenação com os outros Estados. Por isso celebra tratados com os outros Estados e
integra organizações internacionais com faculdades normativas (por exemplo, a ONU e a
ordem onusiana).
O Estado realiza o direito. Os seus órgãos decidem ou deliberam segundo os
processos determinados na Constituição; são obrigados a cumprir a Constituição e a lei.
106 ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, «Revolução e Direito», in Digesta. Escritos acerca do Direito, doPensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros, volume 1º, Coimbra Editora, 1995, pp. 51-239.
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27. Quem vela pelo cumprimento do direito que disciplina ou rege o
Estado.
Respondida afirmativamente a questão de os órgãos do poder político serem
obrigados a cumprir a Constituição e a lei, por sentença judicial, seja dos tribunais comuns,seja dos tribunais de natureza constitucional, seja dos tribunais administrativos, seja,
mesmo, dos tribunais internacionais, fica ainda uma questão por resolver: e se os órgãos
estaduais resistem à execução da sentença?
Esta é a questão última que toda a sociedade política deve ter presente – quis
custodiet custodes? (quem guarda o guarda?) –, uma questão cuja resposta passa pelo
cidadão e pelo controlo que faça do exercício do poder pelos seus representantes.
Com efeito, mesmo sabendo que os tribunais controlam a acção dos titulares dos
órgãos do pode político, como se executa uma sanção desfavorável ao Estado? Como é
possível «obrigá-lo» e aos seus órgãos, a prestar acatamento à sentença condenatória?
Como lutar «contra quem tem a espada à cintura» (MAURICE HAURIOU)?
A questão agora apresentada remete-nos para outras duas: a primeira diz respeito a
um problema clássico do conceito de direito: será a coacção física, ou a possibilidade do
seu exercício, um elemento essencial ao direito?107
A segunda respeita à construção dopróprio Estado.
Quanto ao problema clássico do conceito de direito, duas concepções lhe
respondem: uma estatista e outra pluralista. Para a concepção estatista, que tende a
identificar o direito com o direito estadual, a possibilidade do uso da força física é
essencial ao direito; para a concepção pluralista, o recurso à coacção física não pertence
ao conceito de direito, porquanto quer no direito internacional quer, por exemplo, em
regulações infra-estaduais, como a regulação de uma Ordem Profissional, a coação física
inexiste. Entendemos que o direito não coincide com o direito estadual e o uso da força não
integra o conceito de direito, já que este inexiste nos direitos supraestaduais e
infraestaduais. O que é essencial ao direito é a determinação de uma sanção para o caso de
incumprimento. Sem sanção ou a ameaça de sanção não há direito108.
Quanto ao problema da própria construção do Estado, há que ter presente que, nos
estados democráticos, a sanção para o momento último da inobservância do direito pelos
107 Sobre o assunto, DIOGO FREITAS DO AMARAL , Introdução ao Estudo do Direito..., pp. 84 e ss..108 Sobre o assunto, ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, Introdução ao Estudo do Direito, I - O sentido dodireito, policopiado, pp. 28 e ss..
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titulares do poder político se expressa no momento das eleições políticas. A resposta à
questão: «quem guarda os guardas?» parece só poder ser uma: quem guarda os guardas é
quem os institui como guardas.
28. Os diferentes desdobramentos do direito público.
Tomando por exemplo o caso do Estado Português, o exercício das competências
do Presidente da República (artigos 133º e seguintes da Constituição) e o exercício das
competências da Assembleia da República (artigos 161º e seguintes da Constituição)
desenrolam-se de acordo com um procedimento próprio, jurídico, previsto também na
Constituição, fixado em razão das respectivas competências.
Quanto ao Governo e sua Administração, actuam de acordo, desde logo, com aConstituição (respectivamente, artigos 197º e ss e 266º e ss) os respectivos estatutos
orgânicos109, seguindo o seu modo de agir o disposto no Código do Procedimento
Administrativo, aprovado por imposição constitucional (artigo 267º, nº 5, da Constituição)
em 1992 e revisto em 1996.
A definição de impostos e taxas e a respectiva cobrança pela Administração fiscal
estão sujeitas a legislação especial, globalmente designada legislação fiscal ou tributária,
devendo os impostos ser definidos por lei nos termos da Constituição (artigo 103º).
Os tribunais, nas suas diferentes categorias, estão enunciados na Constituição
(artigo 209º e ss), estruturando-se de acordo com os respectivos estatutos e decidindo
seguindo o processo definido nas respectivas leis processuais, concretamente a Lei
Orgânica do Tribunal Constitucional, o Código de Processo Penal, o Código de Processo
Civil, o Código do Processo Executivo, o Código de Processo de Trabalho, o Código do
Processo nos Tribunais Administrativos, o Código de Processo Tributário, o Código de
Processo Militar.
O Estado português dispõe de duas regiões autónomas: a região autónoma da
Madeira e a região autónoma dos Açores. Estas regiões dispõem de um regime político-
administrativo próprio que não afecta a integridade da soberania do Estado e se exerce no
quadro da Constituição (artigos 225 e ss). Esse regime consta do estatuto político-
109 Lei Orgânica do actual Governo, o XVII Governo Constitucional, consta do Decreto-Lei nº 79/2005, de 15de Abril, alterada pelos Decretos-Lei nºs 11/2006, de 19 de Janeiro, 16/2006, de 26 de Janeiro, 135/2006, de 26
de Julho e 201/2006, de 27 de Outubro. A lei orgânica da Presidência do Conselho de Ministros e as leisorgânicas dos diferentes ministérios foram publicadas no dia da 4ª revisão da lei orgânica do Governo,concretamente no dia 27 de Outubro de 2006.
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administrativo para a Região Autónoma da Madeira e do estatuto político-administrativo
para a Região Autónoma dos Açores, ambos aprovados, nos termos da Constituição, pela
Assembleia da República (artigo 161º, al. b))110.
Por sua vez, a organização democrática do Estado português compreende aexistência de autarquias locais (artigo 235º e ss da Constituição). Estas dispõem de um
estatuto administrativo, que rege a sua organização e o funcionamento dos respectivos
órgãos – Lei nº 169/99, de 18 de Setembro111.
Sendo Portugal um Estado-Membro da União Europeia, não só participa dos seus
órgãos, nos termos do Tratado da União, como se encontra vinculado ao ordenamento
jurídico europeu, nos termos do mesmo Tratado112.
Por seu turno, como membro da sociedade internacional, o Estado português está
não só vinculado aos princípios gerais de direito internacional como aos tratados
internacionais que ratificou e, bem assim, às decisões das organizações internacionais de
que faz parte113.
110 Para mais desenvolvimentos, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo III, pp. 305 e ss..111 Para mais desenvolvimentos, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I...112 Para mais desenvolvimentos, FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia...113 Para mais desenvolvimentos, JORGE MIRANDA, Curso de Direito Internacional Público...
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PARTE II
Para uma compreensão do Estado de Direito, hoje.
Visão panorâmica
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I
Os elementos, os fins e as tarefas do Estado de Direito
29. O conceito de Estado.
A palavra Estado aparece nas línguas europeias nos séculos XV, XVI (na língua
italiana, Stato, na língua alemã, Staat, na língua inglesa, State, na língua francesa, État, na
língua espanhola, Estado). Antes, usavam-se outras palavras ou expressões para designar a
mesma realidade, como polis, civitas, res publica, regnum, communitas perfecta. A ideia
de estabilidade do poder, um poder que está para além dos que em cada momento o
exercem, pertence ao núcleo significante da palavra Estado. Primeiro, na literatura políticae, a partir do século XIX, na linguagem comum, a palavra Estado impôs-se.
A palavra Estado cobre hoje diferentes realidades. Daí que se diga que a palavra é
polissémica, tem vários sentidos. A Constituição portuguesa usa-o no sentido de entidade
de direito internacional (artigo 8º, nº 2), entidade de direito interno (artigo 6º, nº 1),
entidade que engloba todas as entidades públicas, territoriais e não territoriais (artigo 9º),
entidade com personalidade jurídica diferente e independente de toda e qualquer pessoa
colectiva de direito público, territorial ou institucional (artigo 65º, nº 4).
São muitas as concepções filosóficas sobre a essência do Estado. Para a escola
realista francesa, Estado é um puro facto. Para a concepção marxista, Estado é uma
consequência de uma sociedade de classes e expressa o domínio de uma classe sobre outra.
Para a concepção hegeliana, Estado é a realidade em acto da ideia moral objectiva. Para as
concepções contratualistas, Estado é o resultado de um contrato social. Para as concepções
naturalistas, o Estado é um dado natural, decorrente da natureza gregária do homem. Para
as concepções organicistas, Estado é um organismo, uma específica entidade...114
Para nós, o Estado é uma realidade situada historicamente, com um conteúdo
cultural fruto da sedimentação de valores que emanam do homem e sua dignidade,
traduzido no modo de existência de um povo que se dá a si próprio um sentido de direito
pelo qual se rege, um sentido que se expressa em princípios jurídicos e em normas legais.
114 Breve análise em REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ªedição, pp. 35 e ss. e 139 e ss..
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29.1. GEORG IELLINEK e os elementos do Estado: povo, território e poder
político.
Pela sua simplicidade, apesar de criticada, a análise dos elementos do Estado,
apresentada por GEORG IELLINEK, é ainda hoje usada. Para este Autor, o Estado é umfenómeno histórico em que um povo exerce sobre um território um poder próprio. Daqui
resultam os três clássicos elementos do Estado: povo, território e poder115.
29.1.1. O povo.
O povo é o substrato humano do Estado, o sujeito do poder (sentido activo) e o
destinatário desse poder, das suas normas e actos (sentido passivo). É a comunidade de
pessoas, de homens e mulheres livres, a comunidade política116. Se não existir um povo
não pode falar-se em organização política.Ao conceito de povo anda normalmente ligado o conceito de cidadania, enquanto
qualidade de ser cidadão, membro do Estado, sujeito do seu poder e destinatário das suas
normas. Cidadania traduz a capacidade de participação no poder do Estado. A
determinação da cidadania equivale à determinação do povo a que cada um se vincula.
De acordo com o artigo 4º da Constituição, «são cidadãos portugueses todos
aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional»117 . O
disposto neste artigo é completado pelo disposto no artigo 12º, nº 1, do mesmo diploma,
quando consagra: «Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveresconsignados na Constituição». Todos têm todos os direitos e deveres (princípio da
universalidade) e todos têm os mesmos direitos e deveres (princípio da igualdade)
O direito à cidadania118 e os critérios de aquisição de cidadania: o ius sanguini
(filiação) e o ius soli (local de nascimento). A aquisição da cidadania pela residência e a
aquisição da cidadania pelo casamento.
A globalização e a mobilidade fácil das pessoas. O direito a escolher a cidadania.
As convenções de dupla nacionalidade.
A existência de situações de apatridia119. Por força da Constituição portuguesa,
concretamente do disposto no seu artigo 15º, nº 1, «os estrangeiros e os apátridas que se
115 Ver JORGE MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Rio de Janeiro, 2007, pp. 181 e ss..116 Ver REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria..., pp. 92 e ss..117 Ver Comentário a este artigo em JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada,tomo I, Coimbra Editora, 2005, pp. 70-71 e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, CRP Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 2007, pp. 221-224.118 O artigo 15º nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, consagra o seguinte: «Todo oindivíduo tem direito a uma nacionalidade». E o nº 2 dispõe: «Ninguém pode arbitrariamente ser privado da
sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade».119 Em 1961 foi aprovada uma Convenção internacional para redução das situações de apatridia, isto é, asituação de alguém que é estrangeiro em todos os Estados em que se encontra.
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encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do
cidadão português».
Da cidadania decorre, para os Estados, a obrigação de atribuírem a cidadania e não
privarem arbitrariamente dela quem com eles tenha ligação efectiva e, para a pessoa, o
direito de optar por uma cidadania120.Qual, porém, a condição jurídica dos estrangeiros e dos apátridas? Pois depende do
ordenamento jurídico dos Estados – os estrangeiros estão vinculados transitoriamente ao
direito do Estado em que se encontram (aliás como os apátridas) – e o seu estatuto é
recortado a partir do direito internacional (o estatuto dos estrangeiros retira-se da
Declaração Universal dos Direitos do Homem – condição jurídica desde logo compatível
com a dignidade da pessoa humana –, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e
de tratados internacionais e bilaterais, fundados na laços culturais, que procuram promover
tratamento mais favorável, com ou sem reciprocidade, em áreas como a segurança social, aigualdade de direitos...)121. Tenha-se, em especial, presente a referência constitucional
expressa aos cidadãos de Estados de língua portuguesa com residência permanente em
Portugal que, em condições de reciprocidade, gozam, nos termos da lei, de direitos não
conferidos a estrangeiros (artigo 15º, nº 3). Tenha-se ainda presente a possibilidade
constitucional de, por lei, se atribuir, em condições de reciprocidade, aos cidadãos dos
Estados-membros da União Europeia residentes em Portugal o direito de elegerem e de
serem eleitos Deputados ao Parlamento Europeu (artigo 15º, nº 5).
Confunde-se, por vezes, cidadania com nacionalidade, decorrendo a nacionalidadeda acentuação da ideia de nação e não tanto de Estado. Mas não são realidades sobrepostas
pois, ao contrário da cidadania, que só pode ser reconhecida a pessoas físicas, a
nacionalidade pode ser atribuída a pessoas colectivas e a coisas, como navios ou
aeronaves.
Há, em muitos Estados, grupos de pessoas pertencentes a minorias nacionais,
étnicas, linguísticas ou religiosas. Para além de se dever evitar toda e qualquer
discriminação do grupo, a sua identidade deve ser respeitada, bem como preservado o seu
desenvolvimento em liberdade, como impõe a dignidade da pessoa humana. A
Assembleia-Geral das Nações Unidas aprovou uma Declaração sobre os Direitos das
Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas ou Linguísticas, em
1992122, e várias Constituições europeias referem-se-lhe expressamente (artigo 6º da
Constituição italiana, artigo 8º da Constituição austríaca, artigo 6º da Constituição
romena...).
120 Ver JORGE PEREIRA DA SILVA, Direitos de cidadania e direito à cidadania, Lisboa, 2004.121 Analise-se, em especial, o disposto no artigo 15º da Constituição da República Portuguesa e a anotaçãoque do mesmo é feita em JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição....122 Na sequência do que dispõe o artigo 27º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966.
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29.1. 2. O poder político.
O poder político é a manifestação do Estado que mais o caracteriza, porque o
Estado institui-se através do poder de uma comunidade política que se dá a si própria uma
Constituição e se volve em povo. 123O poder político está normalmente ligado à soberaniae, na modernidade, traduz não só a organização da sociedade civil como o centro de onde
emana a ordem jurídica formal que rege a sociedade, sem que essa ordem esgote, contudo,
o direito124.
É através do poder político que o Estado, de um lado, assume a sua vocação de
unidade identificadora de uma sociedade e, de outro, torna «inteligível» a «coisa pública»,
transmutando as exigências colectivas em interesses públicos a satisfazer pelo Estado.
No plano internacional, o poder político (soberano) permite ao Estado ter acesso à
comunidade de Estados, em igualdade, assumir perante estes um poder independente eaceitar as normas reguladoras das relações entre Estados125.
Os Estados não soberanos (Estados federados) e os Estados semi-soberanos ou de
soberania reduzida (Estados exíguos)126.
29.1.3. O território.
O território é o espaço sobre o qual o Estado exerce a sua jurisdição. Está
normalmente delimitado por fronteiras127. «Portugal abrange o território historicamente
definido no continente europeu e os Arquipélagos dos Açores e da Madeira» (artigo 5º, nº1, da Constituição). É a lei que define a extensão e os limites das águas territoriais, a zona
económica exclusiva e os direitos de Portugal aos fundos marinhos contíguos (artigo 5º, nº
2, da Constituição).
As normas do Estado português podem aplicar-se fora do território nacional (ver o
disposto no artigo 14º).
O direito do Estado sobre o seu território ou senhorio territorial pode ser analisado
sob vários ângulos, isto é, como integrando um direito de propriedade internacional (o
direito que coloca o território, enquanto bem, ao serviço do Estado); como espaço de
vigência do ordenamento jurídico do Estado; e como reflexo da jurisdição do Estado sobre
a comunidade de pessoas abrangidas pelo território. O direito à integridade do território
corresponde ao direito pelo senhorio desse território. A indivisibilidade, a inalienabilidade
e a exclusividade do território128. O disposto no artigo 5º, nº 3, da Constituição.
123 Ver JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo III, 5ª edição, 2004, pp. 165 e ss..124 «A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas naConstituição», consagra o nº 1 do artigo 3º da Constituição da República Portuguesa.125 Ver o artigo 8º da Constituição da República Portuguesa.126 Para mais desenvolvimentos sobre estes tipos de Estados, JORGE MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, Tomo III, 4ª edição, 1998, p. 172 e ss.127 Ver REINHOLD ZIPPELIUS, Teoria..., pp. 108 e ss.128 Ver JORGE MIRANDA , Teoria do Estado..., pp. 424-427.
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Há que distinguir a titularidade do poder político soberano sobre o território da
efectiva posse do território. Embora a maior parte das vezes estas realidades coincidam,
por vezes tal não acontece. O caso das bases militares em território estrangeiro é exemplo
dessa não coincidência.
Deve ainda ter-se presente o caso dos poderes territoriais sem soberania: a zona
contígua e a zona económica exclusiva (artigo 5º, nº 2, da Constituição). A Convenção
Internacional de Montego Bay (1982)129.
30. A personalidade jurídica do Estado.
O Estado é uma entidade jurídica, isto é, é uma pessoa colectiva, com direitos e
deveres distintos dos direitos e deveres das pessoas físicas que integram a sociedade
política e distintos também dos direitos e deveres dos titulares dos cargos políticos.A personalidade jurídica do Estado permite acentuar a subordinação do Estado ao
Direito. Projecta-se quer no plano internacional, através da possibilidade de celebrar
contratos ou praticar outros actos jurídicos e da possibilidade de defender em juízo a
propriedade dos seus bens, quer no plano interno, através da prática de actos que vinculam
o Estado perante outras entidades, públicas ou privadas ou pessoas físicas, e da
possibilidade de ir a juízo, em defesa dos seus direitos ou para assumir os seus deveres ou
obrigações.
31. Os fins do Estado.
Os fins do Estado são resultado da sedimentação de valores ao longo dos séculos.
A justiça foi a finalidade por excelência da sociedade política da Antiguidade
Clássica e, também, da Idade Média. Na Idade Moderna, eleva-se a segurança como
finalidade ao lado da justiça e, na Idade Contemporânea, os direitos humanos, os direitos
que emanam da dignidade da pessoa humana (direitos pessoais, direitos políticos, direitos
económicos, sociais e culturais, direitos de qualidade) têm vindo a engrossar as finalidades
do Estado. A partir dos finais do século XX, a sustentabilidade ambiental do
desenvolvimento, fundada numa «solidariedade radical» das gerações presentes para com
as gerações futuras, numa justiça, funda e alargada, intra- e intergeracional, tem-se vindo a
consolidar também como finalidade do Estado130.
129 Ver JORGE MIRANDA , Teoria do Estado..., pp. 428-429.130 Falando pela primeira vez, em Portugal, no Estado de Direito Ambiental, em razão de uma nova tarefa doEstado de Direito, J. J. GOMES CANOTILHO, Estado de Direito, Edições Gradiva, 1999.
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32. Visão panorâmica da actuação múltipla do Estado de Direito.
O Estado de Direito, a política e o direito. Desenvolvimento de uma acção com
uma intencionalidade política que tem no direito o seu fundamento, limite e critério.
32. 1. O político, a política, as políticas públicas e o direito.
O político (aquele que luta pelo poder ou exerce o poder e quer manter esse poder),
a política (luta por aceder ao poder e, uma vez obtido, exercê-lo e mantê-lo) e as políticas
públicas (programas de acção ordenados estrategicamente a finalidades e objectivos que se
cumprem através do poder, em permanente diálogo com os cidadãos, em razão da
realidade mutante a que se dirigem e à qual se vão adaptando).
No âmbito do Estado desenvolve-se, particularmente por intermédio dos partidos
políticos131, uma actividade política de luta pelo poder que tem a sua expressão máxima
nas eleições dos órgãos do poder político132 (Presidente da República, deputados da
Assembleia da República e do Parlamento europeu...), nas intervenções parlamentares dos
deputados, em referendos133...
Por sua vez, os titulares do poder político, no exercício do poder, desenvolvem umaactividade na qual está presente o desejo de manutenção desse mesmo poder . Tomam
posições, a nível internacional (apoio ou não apoio à política americana quanto à
declaração de guerra ao Iraque?...) e a nível interno (mostrar publicamente posição sobre a
regionalização administrativa...), que traduzem linhas de rumo que, sendo consideradas
pela comunidade política como correctas, provam a aceitação do poder por parte desta
mas, se forem repudiadas pela opinião pública, podem levar à perda do poder daqueles que
as defendem...134
A acção política do Estado está presente em actos específicos, como o envio de
tropas para o Afeganistão, o recebimento de um chefe de um Estado, num momento
político crítico... Está presente também na escolha do momento oportuno para anunciar
uma descida de impostos, a nacionalização de um banco, um aumento de pensões, a
131 A Constituição da República Portuguesa garante a liberdade de associação e a existência de partidospolíticos (artigo 51º).132 «Têm direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos, ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral» (artigo 49º, nº 1 da CRP). «O exercício do direito de sufrágio é pessoal e constitui umdever cívico» (artigo 49º, nº 2, da CRP).133 Sobre a iniciativa da lei e do referendo ver o artigo 167º da CRP.134 Sobre a liberdade de imprensa e de meios de comunicação social, neste particular, ver a garantiaconsagrada no artigo 37º da CRP.
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abertura de uma linha de crédito especial para os estudantes poderem pagar os seus
estudos, a nacionalização de um banco...
Quanto à definição, acompanhamento e concretização de políticas públicas, gerais
ou sectoriais, estas traduzem, em grande medida, o desenvolvimento do conteúdo dedireitos fundamentais (direito à saúde, direito à educação... – política pública da saúde, da
educação...). A fixação de metas e de linhas de acção estratégicas estão sujeitas a
permanentes correcções em razão da evolução da realidade social e de monitorizações e
avaliações constantes que se façam sobre o cumprimento das metas, em qualquer caso
sempre no quadro constitucional, fazendo apelo à democracia participativa (artigo 2º da
Constituição). As políticas públicas compreendem-se através da ideia de programas de
actividades dirigidos a alcançar objectivos, uma actividades que se desenrolam no tempo e
se vai avaliando e corrigindo em virtude das consequências das acções realizadas e deeventuais alterações de objectivos. Os actos (resolução de abrir uma maternidade num
determinado local, a publicidade dirigida a aceitação de medicamentos genéricos,
instruções no sentido de as farmácias fazerem a recolha de medicamentos fora do prazo, as
recomendações no sentido de uma alimentação saudável, que previna doenças dentárias...)
em que as políticas públicas se vão concretizando são importantes, porventura não tanto
em si mas na medida em que, articulando-se e encadeando-se ao longo do tempo, numa
actividade que se faz fazendo, vão permitindo que os fins ou objectivos das políticas sejam
alcançados135
. É um agir estratégico, fundado em alternativas de acção.
No desenvolvimento das políticas públicas, o Estado utiliza cada vez mais a
informalidade da acção e não tanto o estrito cumprimento de normas. A complexidade que
hoje caracteriza a realidade social bem como a dinâmica que a move são tão grandes que as
normas legais, particularmente as procedimentais, não conseguem prever todas as situações
que se apresentam exigindo uma intervenção do Estado. O uso da informalidade na
actuação não traduz, no entanto, uma acção não jurídica, mas uma forma diferente de
realizar o direito: realizar o direito não tanto através da aplicação de leis mas do
cumprimento de princípios jurídicos136.
No âmbito das políticas públicas, têm vindo a sobressair, pela natureza escassa do
território e capacidade de os recursos naturais se esgotarem, bem como pelo carácter
transversal das múltiplas acções a que dão origem, a política ambiental e a política de
135 Para uma análise desenvolvida das políticas públicas, B. GUY PETERS, American Public Policy. Promiseand performance, CQ Press, 2006.136 Sobre a informalidade no procedimento estadual, em especial, a privatização do procedimento, SUZANATAVARES DA SILVA, Actuações informais da Administração: verdade ou mito?, dissertação de mestrado,1998, policopiada.
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ordenamento do território. Estas políticas públicas, enquanto definem finalidades e traçam
orientações para se terem em conta na acção estadual, constam de documentos
programáticos que conformam o futuro do Estado para os próximos anos e, no seu
desenrolar, fazem constantemente apelo ao empenhamento e responsabilidade dos
cidadãos137.
Ao desenrolarem-se no tempo, as políticas públicas estão sujeitas à lei e ao direito,
porque num Estado de Direito, não podem existir actividades do Estado, nos seus
diferentes desdobramentos, nomeadamente de prossecução de interesses públicos, que no
direito não tenham o seu fundamento. Para abarcar esta nova realidade, o tradicional
«sistema de comando e controlo», fundado num direito «hard» ou, se se preferir a língua
francesa, fundado num direito «dur», que rigidamente impõe e proíbe acções, teve de se
abrir a um outro sistema de acção estadual, fundado no que já se designa por «soft law» (ou«droit mou»), em tradução portuguesa direito flexível, no qual pontuam as recomendações,
avisos, conselhos, advertências, que caracterizam o modo de agir do Estado Incitativo ou
Estado Propulsor.
A evolução descrita não põe em causa, no entanto, as intervenções «musculadas»
do poder do Estado, de acordo com uma autoridade que o direito sustenta – por exemplo, a
nacionalização de um banco, a aplicação de coimas... –, já que o conflito na sociedade é
questão «irredutível», exigindo a «incontornável» presença da «polícia» que vigia ocumprimento da lei e do direito e impõe a ordem, garantindo a legalidade democrática.
O que vem de ser dito tem o sentido de situar o conteúdo da expressão «Estado
Incitativo» ou «Estado Propulsor» como expressão que não tem a pretensão de abarcar
toda a realidade da acção estadual e sim só uma parte dessa realidade, aquela que
recentemente está a tomar corpo, no quadro do desenvolvimento das políticas públicas138,
fazendo apelo ao exercício de um poder do Estado diferente dos poderes tradicionais, o
poder de governança, que se traduz no poder de pilotagem dos movimentos sociais, no
poder de introduzir coerência na evolução social, o poder de conduzir juridicamente a
definição, acompanhamento e execução das políticas públicas (da saúde, da educação...) ou
uma variedade de políticas cruzadas (política de habitação, política dos transporte, política
urbana...).
137 Veja-se o Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território, aprovado pela Lei nº 58/2007,de 4 de Setembro de 2007 e a sua articulação necessária, além do mais, com a Estratégia Nacional do Desenvolvimento Sustentável, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 109/2007, de 20 de
Agosto, com o Plano Nacional da Água, a Estratégia Nacional para o Mar , a Estratégia Nacional para aEnergia... (cf. artigo 1º, nº 5, da citada Lei nº 58/2007).138 Ver, em especial, JACQUES CHEVALLIER, l’État Post-moderne, LGDJ, 2003.
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O direito das políticas públicas e o permanente apelo aos princípios gerais de
direito.
32. 2. O direito e a sua definição, desenvolvimento e garantia de cumprimento.
A maior parte da acção do Estado manifesta-se formalmente através de actos de
definição do direito, desenvolvimento do direito e garantia do seu cumprimento.
Em regra, essa definição e desenvolvimento do direito têm lugar através de actos
jurídicos formais, normativos ou não normativos.
O primeiro de todos é o acto normativo que institui o Estado, por outras palavras, é
a Constituição ou lei constitucional, a lei fundamental do Estado, que emana do poderpolítico originário. A Constituição da República Portuguesa foi aprovada por uma
Assembleia Constituinte, uma Assembleia eleita para elaborar e aprovar a Constituição139.
Depois da entrada em vigor, a Constituição foi alterada 7 vezes, a última das quais em
2005140. As alterações à Constituição foram introduzidas pela Assembleia da República
que, por força da própria Constituição, tem competência para a alterar (artigo 161º, al. a)),
nos termos do que dispõem os artigos 284º a 289º da Constituição.
Instituído pela Constituição, o Estado, dotado de poder soberano, passa a poder, noplano internacional, celebrar tratados, que são actos normativos de direito internacional. A
Convenção de Viena de 1969 define o tratado como «acordo internacional concluído por
escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional quer conste de um instrumento
único quer de dois ou vários instrumentos conexos, seja qual seja a sua designação»
(artigo 2º, nº 1, al. a)). Os tratados internacionais têm várias designações: carta,
constituição ou estatuto é a designação que se dá a tratados constitutivos de uma
organização internacional ou que regem um órgão internacional; pacto é a designação que,
em regra, se dá a um tratado de aliança militar ou tratado de grande relevo político;
concordata é a designação dada aos tratados com a Santa Sé; protocolo adicional é a
designação de um tratado complementar ou modificativo de outro; convenção técnica é o
tratado sobre matérias muito especializadas e compromisso é a designação regra geral dada
à resolução arbitral de um conflito internacional. Para além dos tratados, o Estado pode
ainda fazer acordos ou gentlemen’s agreements com outros Estados, caracterizados pela
informalidade.
139 A Constituição foi aprovada em 2 de Abril de 1976, no final de 10 meses de trabalho intenso na criação de
consensos, tendo sido aprovados por unanimidade mais de 60% dos preceitos constitucionais.140 A Lei Constitucional nº 1/2005, de 12 de Agosto, acrescentou o artigo 295º com a epígrafe «Referendosobre o Tratado Europeu».
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A competência para negociar e ajustar convenções internacionais, bem como
aprovar acordos internacionais pertence ao Governo (artigo 197º, nº 1, al. b) e c) da CRP),
a competência para aprovar tratados internacionais pertence à Assembleia da República
(artigo 163º, al. i) da CRP), tratados que serão ratificados depois pelo Presidente daRepública (artigo 135º, b) da CRP).
No plano interno, a actividade normativa empreendida pelo Estado – realização do
direito através de normas jurídicas, que são regras gerais e abstractas141 – pode ser
primária ou secundária.
A actividade normativa primária, que traduz o exercício da função legislativa,
directamente enformada pela Constituição, concretiza-se em leis da Assembleia daRepública (a actividade legislativa da Assembleia da República encontra-se prevista nos
artigos 164º e 165º da CRP)) e em decretos-lei do Governo (a actividade legislativa do
Governo encontra-se prevista no artigo 198º da CRP).
Por sua vez, a actividade normativa secundária, traduz o exercício da função
administrativa, um exercício que se desenrola no quadro da lei e do decreto-lei. Os
regulamentos são a forma que tomam os actos normativos emanados desta função. Podem
assumir diferentes designações: decretos-regulamentares, da competência do Governo, portarias e despachos normativos, em qualquer caso com eficácia externa. Regulamentos
com eficácia interna podem assumir a designação de regimentos orgânicos, regulamentos
internos dos serviços ou instruções sobre a boa aplicação das leis142.
Para além da actuação unilateral, o Estado pode agir celebrando contratos (acordos
de vontades entre sujeitos de direitos) com outras entidades públicas ou com entidades
privadas (contratos bilaterais ou multilaterais), contratos que podem ser regidos pelo
direito público, administrativo – contratos administrativos (por exemplo, contrato de
empreitada de obras públicas, contrato de fornecimento por empresas privadas) –, ou que
podem ser disciplinados pelo direito privado. Neste caso, falamos de contratos de direito
privado (contrato de compra de um livro, de uma pintura da Vieira da Silva, de um
imóvel...)143.
141 A generalidade da norma caracteriza-se por ter destinatários indefinidos, indeterminados eindetermináveis; a abstracção da norma caracteriza-se por se dirigir a situações definidas sem acepção depessoas, situações que, em regra, se repetem uniformemente.142 Sobre a actividade regulamentar do Estado, DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LINO
TORGAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2001, pp. 151 e ss..143 Sobre a actividade contratual do Estado, DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LINO
TORGAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2001, pp. 495 e ss..
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O Estado pratica também inúmeros actos jurídicos unilaterais, de conteúdo não
normativo. Estes traduzem a manifestação de vontade dos órgãos políticos ou
administrativos e definem juridicamente uma situação individual e concreta. Podem ser
actos políticos ou actos administrativos.
Os actos políticos correspondem a uma actividade primária, paralela à legislativa, e
estão directamente regulados na Constituição. O acto do Presidente da República que
marca a data das eleições é um acto político, praticado de acordo com o disposto na
Constituição (artigo 133º, al. b), da CRP). A designação do Provedor de Justiça pela
Assembleia da República é também um acto político (artigos 23º, nº 3, e 163º, al. h) da
CRP).
Os actos administrativos, por sua vez, correspondem a uma actividade secundária,
porquanto são conformados pela lei administrativa, infra-constitucional, e não
directamente pela Constituição. Para os efeitos do Código do Procedimento
Administrativo, «consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da
Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos
num caso individual e concreto» (artigo 120.º do Código do Procedimento
Administrativo)144. São exemplos de actos administrativos o acto de nomeação de um
director geral, o acto que defere uma licença de construção de edifícios, o acto que recusa anão concessão de um subsídio, o acto que indefere um pedido de bolsa de estudo, o acto
que instaura um procedimento de ilícito de mera ordenação social, o acto que aplica uma
sanção disciplinar, o actos que declara a utilidade pública de um imóvel para efeitos de o
expropriar, o acto de concessão de um prémio escolar, os actos de cobrança de impostos145.
O Estado pode também praticar actos unilaterais de direito privado como acontece
com o acto de constituição de propriedade horizontal de um edifício que lhe pertence em
propriedade privada... e pode ainda o Estado desenvolver actuações unilaterais de direito
privado, como acontece com o embargo de obra nova146.
A complexidade da realidade social obriga a reconhecer o fenómeno das leis-
medida (Massnahmegesetze ou leggi-provvedimenti), um fenómeno que traduz a
administrativização da função legislativa. Com efeito, as leis-medida caracterizam-se por
144 Aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, alterado e republicado pela Decreto-lei nº6/96, de 31 de Janeiro.145 DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LINO TORGAL, Curso de Direito Administrativo, vol.II, Almedina, 2001, pp. 203 e ss..146 Ver o disposto no nº 2 do artigo 412º do Código do Processo Civil.
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concretizarem opções políticas fundamentais (por isso decorrem da função legislativa),
para terem efeitos precisos numa situação individual e concreta (por isso se aproximam da
actuação administrativa). Será, por exemplo, o caso de um decreto-lei que transforma uma
empresa pública numa sociedade anónima de capitais públicos ou o caso de um decreto-lei
que demite um funcionário público.
O Estado actua ainda através dos tribunais que administram a justiça em nome do
povo (artigo 202º da CRP).
As decisões dos tribunais são actos jurisdicionais. Os actos jurisdicionais podem
ter conteúdo normativo, como é o caso da declaração de inconstitucionalidade de uma lei
pelo Tribunal Constitucional (artigos 281º, nº 1, e 282º da CRP) ou da declaração de
ilegalidade de normas regulamentares, pelos tribunais administrativos (artigos 72º e ss doCódigo de Processo nos Tribunais Administrativos). Em regra, porém, os actos ou decisões
jurisdicionais não têm conteúdo normativo. São, pelo contrário, actos ou decisões que
põem termo a litígios ou declaram o direito num caso individual e concreto. Os actos ou
decisões jurisdicionais tomam o nome de sentenças e de acórdãos (neste último caso, a
designação cobre as decisões jurisdicionais dos tribunais superiores).
Em suma, a Assembleia da República, o Governo e os tribunais podem praticar
actos normativos (a Assembleia da República aprova leis, o Governo aprova decretos-leiou decretos-regulamentares, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral,
a inconstitucionalidade de normas legais) e actos não normativos (ao designar o Provedor
de Justiça, a Assembleia da República pratica um acto político, não normativo, ao nomear
o director-geral dos impostos, o Ministro das Finanças pratica um acto administrativo, não
normativo, e, ao porem termo a litígios jurídicos, desde logo através de sentenças, os
tribunais praticam actos não normativos).
Mas, para que se esteja perante um Estado de Direito, não basta afirmar que este se
caracteriza por definir o direito através de leis, regulamentos, actos e sentenças. Torna-se
ainda necessário afirmar que o Estado de Direito dispõe de mecanismos de defesa do
direito e da lei democraticamente aprovada contra quem a incumpre ou se prevê que vá
incumprir. Falamos, em particular, do eventual incumprimento resultante da actuação do
próprio Estado.
Ora o Estado de Direito dispõe de vários mecanismos jurídicos de defesa da lei e do
direito. Assim, o eventual incumprimento de normas constitucionais por uma norma
constante de tratado internacional que tenha sido submetido a ratificação do Presidente da
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República, de decreto que lhe tenha sido enviado para promulgação como lei da
Assembleia da República ou como decreto-lei do Governo ou de acordo internacional cujo
decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura pode levar o Presidente da
República a requerer ao Tribunal Constitucional a sua fiscalização preventiva (artigo 278º
da CPR).
Por outro lado, depois de entrarem em vigor, as normas constantes de lei, decreto-
lei, tratado... podem ainda ser objecto de fiscalização sucessiva pelo Tribunal
Constitucional. São vários os órgãos que podem solicitar ao Tribunal Constitucional a
declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de normas,
nomeadamente, o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o
Primeiro-Ministro, o Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República (artigo 281º, nº
2, da CPR). A fiscalização da constitucionalidade de uma norma legal pode, no entanto, sersuscitada em concreto, no âmbito de um processo que corre em tribunal, em que a norma a
fiscalizar tenha sido ou esteja para ser aplicada (artigo 280º da CPR).
Além disso, contra a acção dos poderes públicos os cidadãos podem queixar-se ao
Provedor de Justiça147, um órgão independente designado pela Assembleia da República
que exerce um magistério de autoridade, porquanto não tem poder decisório mas pode
dirigir aos órgãos competentes recomendações tendentes a prevenir ou reparar injustiças.
Os cidadãos têm ainda o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos
órgãos de soberania, aos órgãos do poder de governo próprio das regiões autónomas ou a
quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos
seus direitos, da Constituição ou das leis (artigo 52º, nº 2, da Constituição).
A defesa da legalidade democrática é, por sua vez, empreendida pelo Ministério
Público (artigo 219º, nº 1 da CRP).
A tarefa de defesa da legalidade democrática édesenvolvida pelo Ministério
Público, além do mais, através da acção pública, no âmbito do processo administrativo
(artigo 55º, nº 1, al. b) do Código do Processo nos Tribunais Administrativos). Com efeito,
o Ministério Público tem, nos termos da lei, legitimidade para impugnar normas
regulamentares, bem como actos administrativos junto dos tribunais administrativos,
beneficiando, neste caso, de um prazo maior do que o fixado para os particulares
interessados em empreender essa tarefa de impugnação de actos administrativos inválidos,
quando anuláveis (artigo 58º, nº 2, al. a), do Código do Processo nos Tribunais
147 Sobre o Provedor de Justiça, ver o artigo 23º da CRP.
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Administrativos). O Ministério Público tem ainda o dever, em certas circunstâncias, de
pedir a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade de uma norma regulamentar
(artigo 73º, nº 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
Mas o Ministério Público tem outras tarefas, concretamente representa, em juízo, oEstado, entendido este em sentido amplo, isto é, abrangendo as Regiões Autónomas e as
autarquias locais, e, por isso, se costuma dizer que o Ministério Público é um serviço
constituído por advogados do Estado.
O Ministério Público tem ainda um papel importante na descoberta da verdade
material, no processo penal (acção penal), e na defesa de interesses particulares específicos
(os interesses dos incapazes, dos incertos) no processo comum148.
Apesar de actuar estruturalmente ligado aos tribunais, o Ministério Público não
integra os tribunais, antes pertence à Administração Pública.
A Administração Pública é desenvolvida por múltiplas entidades públicas, seja no
âmbito central (Estado), seja no âmbito das regiões autónomas, seja das autarquias locais.
No âmbito da actividade da Administração Pública, destaca-se uma específica actividade
que traduz a ideia de que a força pode (deve) ser colocada ao serviço da ordem jurídica e
da prevenção de perigos. Falamos das tarefas administrativas de polícia. As tarefas depolícia são uma actividade caracterizada pelo fim de prevenção de danos ilegais e pela
restrição da liberdade de condutas individuais que envolvam o perigo de dar origem a esses
danos (controlo de condutas perigosas). São exemplo de tarefas de polícia a actividade
empreendida pela Inspecção-Geral do Ambiente (IGA) na fiscalização do cumprimento das
normas ambientais e a actividade da Autoridade da Segurança Alimentar e Económica
(ASAE) enquanto autoridade administrativa com poderes policiais em defesa dos direitos
do consumidor (polícia administrativa especial), com poderes para, em concreto, apreender
bens alimentares deteriorados, brinquedos perigosos... A actividade desenvolvida pela
polícia de segurança pública (PSP), enquanto defende a ordem e segurança públicas
148 O Estatuto do Ministério Público consta da Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, várias vezes alterada, sendo aúltima alteração introduzida pela Lei 60/98, de 27 de Agosto, que a republicou. O Ministério Público,composto por magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados (agentes do Ministério Público),sendo a Procuradoria-Geral da República, presidida pelo Procurador-Geral da República, o órgão superior doMinistério Público. As tarefas que este desenvolve são múltiplas. Para além das já enunciadas, participa naexecução da política criminal definida pelos órgãos de soberania; exerce a acção penal orientado peloprincípio da igualdade; exerce o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seusdireitos de carácter social; assume, nos casos previstos na lei, a defesa dos interesses colectivos e difusos;defende a independência dos tribunais nas suas atribuições e vela para que a função jurisdicional se exerça
conforme à conforme à Constituição; intervém em processo de falência e insolvência; exerce funçõesconsultivas; fiscaliza a actividade processual dos órgãos de polícia criminal (artigo 3º, nº 1, do Estatuto doMinistério Público).
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(polícia administrativa geral), e a actividade das polícias municipais, desenvolvendo uma
tarefa de polícia de proximidade, para defesa dos munícipes (polícia administrativa de
competência territorialmente delimitada), são ainda exemplos de tarefas administrativas de
polícia.
As funções de polícia estão expressamente consagradas na Constituição (artigo
272º). São funções de polícia a defesa da legalidade democrática e a garantia da segurança
interna e dos direitos dos cidadãos. Compete às autoridades administrativas policiais a
defesa de interesses gerais garantidos na lei, que possam ser sujeitos a um risco de dano
por condutas individuais cuja perigosidade seja controlável pelas autoridades
administrativas149. Os actos de polícia caracterizam-se por serem actos de controlo ou
fiscalização de condutas perigosas dos cidadãos – a ideia de controlo está ligada à ideia de
perigo em toda a actuação de polícia. Procura-se, por intermédio da actuação de naturezapolicial, evitar a lesão de bens cuja defesa preventiva seja consentida pela ordem jurídica.
A polícia administrativa especial ou sectorial, diversificada em múltiplos serviços
da Administração Pública – polícia económica (ASAE), polícia da saúde, polícia do
ambiente (IGA)... –, distingue-se das chamadas «forças de segurança», isto é, das polícias
com funções de segurança interna150. Estas incluem, para além da polícia de segurança
pública – PSP – , a guarda nacional republicana – GNR – , a Guarda Fiscal, a Polícia
Judiciária, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, os órgãos de sistemas de autoridadesmarítimas e aeronáuticas e o Sistema de Informações de Segurança – SIS151.
As acções da polícia de segurança pública (PSP) pertencem materialmente à polícia
administrativa, e estão na dependência do Ministério da Administração Interna. Não
devem, por isso, confundir-se com as acções da polícia judiciária (PJ), na dependência do
Ministério da Justiça.
Com efeito, a polícia judiciária é definida por lei como o «corpo superior de
polícia criminal auxiliar da administração da justiça». Desempenha, assim, uma
actividade auxiliar da justiça penal e não admira que dependa hierarquicamente do
149 Sobre as tarefas de polícia e o direito policial, SÉRVULO CORREIA, «Polícia» in Dicionário Jurídico de Administração Pública, VI, Lisboa, 1994, JOÃO RAPOSO , Direito Policial, Almedina, tomo I, 2006, PEDRO
MACHETE, «A polícia na Constituição da República Portuguesa», in separata ao Livro de Homenagem daFaculdade de Direito da Universidade de Lisboa ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos,Almedina, 2007.150 A segurança interna é definida como a actividade que o Estado desenvolve com vista à garantia da ordeme tranquilidade públicas, à protecção de pessoas e bens, à prevenção da criminalidade, e a contribuir paraassegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos e liberdades
fundamentais e, em geral, o respeito pela legalidade democrática (ver artigo 1º, nº 1, da Lei de SegurançaInterna, aprovada pela Lei nº 20/87, de 12 de Junho, alterada pela Lei nº 8/91, de 1 de Abril).151 Ver artigo 14º, nº 2, da Lei de Segurança Interna.
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Ministro da Justiça, sendo fiscalizada pelo Ministério Público. Em regra, obedece a normas
de processo penal (ao passo que a polícia administrativa obedece a normas
administrativas).
Exemplificativamente, pode dizer-se que pertence à actividade da polícia judiciáriaprender os malfeitores preparados para executar um rapto152, enquanto que à polícia
administrativa (PSP) compete mandar dispersar uma manifestação na via pública que não
preenche os requisitos legais153. Estas actividades são, porém, intercomunicáveis. O acto
de controlo alfandegário de bagagens pode evoluir para uma operação de polícia de
apreensão de droga e detenção do seu portador e o acto de perseguição e detenção de um
criminoso numa estrada, quando se afasta do local do crime, pode evoluir para uma
actuação de promoção da fluidez do tráfego entretanto bloqueado...
As actividades de polícia, desenvolvidos no «terreno das operações», devem
caracterizar-se como operações materiais. Para além destas, o Estado realiza diariamente
inúmeras operações materiais, nos mais variados domínios em que a sua actividade se
desdobra.
Com efeito, no desenvolvimento da sua actividade de prossecução do interesse
público (artigo 266º, nº 1 da CRP), o Estado, através da Administração Pública, não age só
através de actos jurídicos formais. Ao actuar na área da saúde, realiza cirurgias, tratadoentes crónicos, assiste sinistrados nas urgências através dos serviços médicos de
hospitais públicos. Ao agir na área da educação, lecciona, através de professores, em
escolas e universidades públicas. Agindo na área da cultura, protege, através de guardas, as
obras de arte expostas nos museus. Actuando na área social, constrói bairros económicos.
E, todos os dias, a recolha de toneladas de lixo é, em geral, feita nas cidades através de
serviços administrativos. Todas estas actividades, desenvolvendo-se embora de acordo
com normas jurídicas, são, em si, operações materiais diversificadas, mais ou menos
especializadas, que se desenrolam segundo técnicas próprias, adequadas a cada
actividade154. Se de tais actividades resultarem danos ou prejuízos e se verificarem os
152 A privação da liberdade encontra-se sujeita a limites constitucionais. Ver artigo 27º, nºs 2, 3, 4 e 5 daCPR.153 O direito de manifestação está garantido constitucionalmente (artigo 45º, nº 2) mas as condições para oseu exercício encontram-se previstas em lei. Sobre o assunto, JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, O direito de
manifestação. Âmbito de protecção e restrições, Almedina, 2006.154 Sobre as operações materiais, CARLA AMADO GOMES, Contributo para o Estudo das Operações Materiaisda Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra Editora, 1999, em especial, pp. 197 e ss.
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pressupostos da responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas, há
lugar ao pagamento da competente indemnização155.
32.3. Em especial, o «government by contract».
Os desenvolvimentos da acção estadual, em especial nos finais do século XX,
inícios do XXI, têm vindo a mostrar a particular atractividade da figura jurídica do
contrato.
Vinda dos países anglo-saxónicos, a expressão «negotiate, don’t dictate», que em si
significa o afastamento do tradicional sistema de actuação do Estado caracterizado pelo
«command and control», traz consigo a abertura para novas formas de agir, entre elas a da
«regulação pela negociação». Em vez de impor comportamentos, o Estado negoceiasoluções com as partes interessadas e mesmo actos administrativos, típicos actos da
autoridade unilateral do Estado, tendem a ser substituídos por contratos.
32.3.1. Breve excurso histórico.
A evolução descrita não deixa de parecer paradoxal, se tivermos presente o facto
de, no início da construção do Direito Administrativo, em especial na Alemanha, pela mão
de OTTO MAYER, a figura do contrato ter sido considerada incompatível com a acçãosoberana do Estado. A soberania do Estado inviabilizava que as partes – Estado e
particulares – pudessem ser vistas no mesmo plano de igualdade. Ora, como a igualdade é
característica do contrato, este seria uma figura típica do direito privado mas não do direito
público. No âmbito do direito público, seriam as actuações unilaterais de poder, normativas
e não normativas, que imperariam.
A admissão da figura do contrato no direito público, administrativo, veio a fazer-se
ao longo dos tempos por apelo a várias linhas de força. De um lado, entendia-se que, para
além do Estado, havia inúmeras entidades administrativas, públicas, não soberanas, pelo
que o anterior argumento não valia para elas. De outro, acrescentava-se que o próprio
Estado, quando age como Administração Pública, se despe da sua soberania e interage com
os particulares. De outro ainda, lembrava-se que, no âmbito do direito privado, nem todos
os contratos colocam as partes no mesmo plano de igualdade, sendo o contrato de adesão
155 Ver a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei nº 31/2008, de 17 de Julho. Em especial,CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado edemais entidades públicas anotado, Coimbra Editora, 2008.
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paradigmático. Finalmente, afirmava-se que a igualdade das partes diz respeito às
prestações do contrato e não aos contraentes que o celebram156.
Em resultado do que se afirma, a figura do contrato começou a ser aceite no âmbito
do direito público, administrativo. Mas a entrada neste âmbito do direito fez-setimidamente.
Em Portugal, o Código Administrativo de 1936-40 só reconhecia um conjunto de
contratos administrativos. «Consideram-se contratos administrativos unicamente os
contratos de empreitada e de concessão de obras públicas, os de concessão de serviços
públicos, e os de fornecimento contínuo e de prestação de serviços celebrados entre a
Administração e os particulares para fins de utilidade pública» (artigo 815º). E
MARCELLO CAETANO durante muito tempo interpretou este preceito como contendo umaenumeração taxativa de contratos administrativos157.
Porém, aos poucos, outros administrativistas procuraram novas interpretações.
DIOGO FREITAS DO AMARAL foi um deles. Na dissertação de mestrado, nos anos
sessenta158, este Autor defendeu que o elenco de contratos enumerados no artigo 185º do
Código Administrativo devia ser interpretado só no plano do contencioso, da abertura para
a análise e julgamento em tribunais administrativos. Aí funcionava a taxatividade. No
plano substantivo ou material, porém, podiam configurar-se outros contratosadministrativos, nomeadamente o contrato de concessão de uso privativo do domínio
público.
Esta concepção foi recebida no ordenamento jurídico que começou a aceitar novas
modalidades de contratos administrativos, concretamente os contratos de concessão de
exploração de casinos de jogo.
Com o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 1984, foi posto termo à
taxatividade dos contratos administrativos, mesmo em matéria contenciosa.
Mais tarde, o artigo 178º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei nº
6/96, de 31 de Janeiro, consagrou um conceito material de contrato administrativo
(cláusula aberta para o contrato administrativo). De acordo com este normativo, «diz-se
156 Sobre esta evolução, DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LINO TORGAL, Curso de Direito
Administrativo, vol. II, Almedina, pp. 504 e ss.157 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra Editora, 1973, pp. 569 e ss.158 A tese de mestrado foi publicada em 1965, sob o título A utilização do domínio público pelos particulares.
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contrato administrativo o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou
extinta uma relação jurídica administrativa». E o nº 2 do mesmo artigo elenca, a título
exemplificativo, um conjunto de contratos administrativos.
Por sua vez, o contrato administrativo fica subordinado a um regime jurídico dedireito público159, justificando-se esse regime pelo interesse público que determinou a
celebração desse tipo de contrato160.
Recentemente, a fim de aproximar os ordenamentos jurídicos nacionais em matéria
de contratos públicos e tendo em vista não permitir que o funcionamento do mercado único
da União Europeia seja afectado por práticas restritivas prejudiciais à concorrência, foi-se
formando um regime jurídico próprio, a que se vem chamando Direito Comunitário da
Contratação Pública161 ou Direito Europeu dos Contratos Públicos162. Este tem as suasbases no Tratado da União Europeia e tem-se vindo a concretizar em inúmeras directivas
comunitárias, hoje transpostas para o ordenamento jurídico português através do Decreto-
Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos.
O Código dos Contratos Públicos que, além do mais revogou as normas do Código
do Procedimento Administrativo que regulavam os contratos administrativos, tem 473
artigos e abre uma nova era da acção pública. Esta tende a caracterizar-se por ser uma
acção não tanto desenvolvida directamente pelo Estado e demais entidades públicas maspor entidades privadas, embora a responsabilidade última pelas tarefas a desenvolver, na
sua definição e controlo de execução, pertença ao Estado, a quem compete, em primeira
linha, configurar o que se entende por interesse público a prosseguir através da via
contratual.
Por sua vez, o apelo às comunicações electrónicas, amplamente feito ao longo do
Código dos Contratos Públicos, tende não só a conferir maior eficácia ou eficiência ao
procedimento pré-contratual como a tornar-se um banco de ensaios a expandir pela
Administração Pública163.
159 Em geral, sobre esse regime, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Contratos Públicos. Subsídios para adogmática administrativa, com o exemplo no princípio do equilíbrio financeiro, Almedina, 2007.160 Tenham-se ainda presentes as normas do actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos, queatribuem aos tribunais administrativos o conhecimento dos litígios em matéria contratual (artigo 19º),reconhecendo, embora, a possibilidade de as partes convencionarem que os litígios sejam conhecidos portribunais arbitrais (artigos 180º e 187º).161 DIOGO FREITAS DO AMARAL com a colaboração de LINO TORGAL, Curso de Direito Administrativo..., p.566 e ss162 MARIA JOÃO ESTORNINHO, Direito Europeu dos Contratos Públicos. Um olhar português, Almedina,
2006.163 Sobre os contratos públicos, MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, ContratosPúblicos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, 2008.
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Uma coisa parece certa: a actuação estadual através da negociação e do contrato
tornou-se hoje normal e dá inclusivamente corpo a uma faceta caracterizante e fundamental
do Estado, entendido em sentido amplo, um Estado por isso mesmo mais controlador da
acção de satisfação de interesses públicos por entidades privadas do que empreendedordessa acção.
32.3.2. Amplitude da fórmula contratual.
No quadro enunciado, a promoção de soluções negociadas desdobra-se em
múltiplas áreas – contratação de empresas privadas para fiscalização de obras, contratação
de empresas privadas para tratamento de lixos, contratação de empresas privadas para a
realização de inspecções e vistorias, para a realização de obras de urbanização ou para acertificação de edifícios amigos do ambiente...
E integra, para além da contratação entre entidades públicas e particulares ou
empresas privada, a contratação entre entidades públicas, nomeadamente entre o Estado e
as autarquias – contratos de transferência de competências não universais – e a contratação
entre autarquias locais – contratos de delegação de competências municipais em
freguesias164.
Finalmente, integra contratos decisórios, em substituição de actos administrativos, e
contratos obrigacionais através dos quais um órgão de uma entidade pública assume o
dever de praticar ou não praticar um acto administrativo com certo conteúdo165.
32.3.3. Em especial as parcerias público-privadas.
É neste quadro de uma filosofia jurídica e política favorável à negociação e a
fórmulas consensuais de acção, que recentemente começaram a fazer carreira as parcerias
público-privadas, resultantes da aliança de uma fórmula contratual antiga – concessão –
com uma realidade jurídica dos primórdios do direito administrativo – serviço público. Por
intermédio de parcerias público-privadas nasceram já a Ponte Vasco da Gama e as auto-
estradas do Oeste e da Beira Interior. Por sua vez, os Hospitais de Loures, de Cascais e de
Braga foram anunciados como tendo na sua génese parcerias público-privadas, e a
Parpública, Sociedade Gestora de Participações Sociais (SGPS), SA, tem vindo a apoiar o
164 Ver exemplos de contratos inter-administrativos nos artigos 6º, 8º e 15º da Lei nº 159/99, de 14 de
Setembro, e artigos 37º, e 66º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro.165 Para mais desenvolvimentos, em especial relacionados com a acção das autarquias locais, BARBOSA DE
MELO, ANA RAQUEL MONIZ, PEDRO GONÇALVES, Contratação pública autárquica, Almedina, 2005.
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Ministério das Finanças nas negociações conducentes a estas parcerias, extremamente
complexas de configurar na prática, tendo elaborado mesmo um modelo de programa de
procedimento para permitir a melhor aferição dos preços, da qualidade da obra a realizar e
do serviço a prestar, bem como da avaliação do risco de funcionamento ou da gestão.
As parcerias público-privadas contratuais166 têm por objectivo integrar os
particulares ou empresas privadas no desempenho de tarefas públicas, seja do Estado
(Administração Pública Central), seja das regiões autónomas (Administração Pública
Regional), seja das autarquias locais (Administração Pública Autárquica). São, por isso,
uma forma de agir alternativa quer à gestão directa – acção empreendida pelo próprio
Estado, região autónoma ou autarquia – quer à gestão indirecta pública – acção
empreendida por entidades públicas criadas pelo Estado, região autónoma ou autarquia.
Através das parcerias público-privadas contratuais, procura-se aproveitar a
inventiva ou criatividade dos particulares, colocando-a ao serviço do bem público. Ao
mesmo tempo, fomenta-se a cooperação entre o Estado e a comunidade, a fim de obter
ganhos de eficiência e mais qualidade do serviço ou da obra pública a realizar. Finalmente,
procura-se ultrapassar as dificuldades financeiras do sector público com uma fórmula que
apela ao financiamento privado das obras e serviços públicos – poupança de recursos
financeiros públicos.
O regime das parcerias público-privadas consta do Decreto-Lei nº 86/2003, de 26
de Abril, alterado pelo Decreto-lei nº 141/2006, de 27 de Julho. Dele decorre uma ideia
generalizada de partilha e gestão do risco entre o Estado em sentido amplo e os
particulares167. Os particulares assumem contratualmente uma responsabilidade social,
transferindo o Estado em sentido amplo para esses particulares o risco de funcionamento
do serviço. Não admira, por tudo quanto se disse, que as parcerias público-privadas
impliquem deslocar uma actividade, até aí empreendida pelo Estado, para uma entidade
que lhe é exterior (a exemplo das velhas concessões de serviços públicos ou das
concessões de obras públicas), sendo a concepção, o financiamento, o modo de
organização, a construção de infra-estuturas e a gestão das tarefas objecto do contrato. As
parcerias público-privadas dão, em regra, lugar a uma relação de longa duração entre o
166 Não confundir as parcerias públicos-privadas com as parcerias público-privadas institucionais. De acordocom o artigo 2º do Decreto-lei nº 86/2003, de 26 de Abril, entende-se por parceria público-privada «ocontrato ou união de contratos por via dos quais entidades privadas, designadas por parceiros privados, seobrigam, de forma duradoura, perante terceiro público, a assegurar o desenvolvimento de uma actividade
tendente à satisfação de uma necessidade colectiva e em que o financiamento e a responsabilidade peloinvestimento e pela exploração incumbem, no todo ou em parte, ao parceiro privado».167 Ver, em especial, o artigo 7º do Decreto-Lei nº 86/2003, de 26 de Abril.
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Estado (entidades públicas) e os particulares (entidades privadas), porquanto respeitam à
prestação de um serviço público, cuja continuidade se espera manter.
32.3.4. Princípios jurídicos da contratação pública.
Em face da amplitude que a figura contratual tem vindo a assumir no âmbito da
acção estadual administrativa, a importância da obediência dessa acção a princípios
jurídicos tem-se vindo a acentuar. Como a amplitude de movimentos nos procedimentos
negociais é desejavelmente maior, e é difícil à lei tudo prever e fixar por antecipação, a
obediência do Estado ao direito deve fazer-se permanentemente por apelo a princípios
jurídicos, neste caso princípios jurídicos da contratação.
Assim, os princípios gerais da contratação pública são os seguintes:-princípio da prossecução do interesse público (só o interesse público justifica a
elaboração de um contrato);
-princípio da legalidade (todos os contratos têm de possuir base legal);
-princípio da autonomia contratual (as entidades públicas têm poder de conformar
os contratos, sem sujeição a um elenco taxativo de contratos);
-princípio da boa fé168 (as partes, públicas e privadas, estão obrigadas a uma
conduta ética, seguindo padrões de rectidão que garantam a confiança na estipulação das
condições do contrato).
Quanto aos princípios relativos à formação dos contratos públicos:
-princípio da procedimentalização da actividade administrativa (forma de
racionalizar a acção administrativa por recurso ao contrato administrativo);
-princípio da igualdade (impõe, simultaneamente, a proibição do arbítrio, a
proibição de discriminações infundadas e a obrigação de diferenciar o que é diferente);
-princípio da proporcionalidade (implica uma ideia de adequação, de necessidade e
de proporcionalidade em sentido estrito);
-princípio da imparcialidade (implica que não se favoreça nem prejudique um
qualquer concorrente e que se identifiquem, no concreto, todos os interesses, com vista a
alcançar a melhor solução);
-princípio da concorrência (implica que, no decurso do procedimento concursal, se
não alterem as condições do concurso);
-princípio da participação (determina a abertura do procedimento à colaboração dos
particulares);
168 Ver, em especial, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO , Contratos públicos..., pp. 91 e ss..
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-princípio da transparência (implica a disponibilização, por parte da Administração
Pública, de toda a informação que possui, uma informação que, ademais, deve ser acessível
e não manipulada);
-princípio da economia (implica a racionalização dos recursos, em razão da sua
escassez);-princípio da eficácia (implica que os fins sejam atingidos no tempo determinado
para os alcançar);
-princípio da eficiência (implica que os fins sejam atingidos usando o mínimo de
custos e não dando azo a efeitos prejudiciais).
Quanto aos princípios relativos à execução dos contratos:
-princípio da estabilidade dos contratos (o objecto do contrato deve ser
pontualmente mantido; só se tal não for possível há alteração do objecto do contrato);-princípio do equilíbrio financeiro (a Administração Pública é obrigada a repor o
equilíbrio financeiro quando o objecto do contrato é alterado);
-princípio do cumprimento pontual (todas as condições do contrato devem
cumpridas nos prazos, sob pena de sanção);
-princípio da responsabilidade (a Administração Pública deve fiscalizar a
observância do contrato, detectando situações de ilegalidade e responsabilizando as partes
pelo incumprimento)169.
32.2.5. Balanço.
A Administração Pública do Estado tem vindo, aos poucos, na sua acção, a
abandonar a centralidade dos actos administrativos unilaterais, ao mesmo tempo que
desenvolve cada vez mais formas de acção negociadas, contratualizadas. A busca de uma
nova centralidade da actuação administrativa não significa, porém, que o Estado se afaste
do direito. Pelo contrário. Mas, também aqui, a exemplo do que se viu a propósito da
definição e acompanhamento das políticas públicas, do princípio da obediência à lei formal
vai-se passando à obediência ao direito material, em concreto através da obediência aos
princípios gerais de direito.
169 Para uma análise alargada dos princípios do contrato de direito público, DIOGO FREITAS DO AMARAL, coma colaboração de LINO TORGAL, Curso de Direito Administrativo..., pp. 574 e ss..
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II
As formas de Estado
Estados unitários e Estados compostos.
Estados unitários: Estados com regiões autónomas e sem regiões autónomas e
Estados unitários com e sem descentralização administrativa.
Estados compostos: Estados federados e uniões reais.
Em especial, a complexidade dos Estados federados.
(Leituras recomendadas:
JORGE MIRANDA, Teoria do Estado e da Constituição, Rio de Janeiro, 2007, pp.
298 e ss.
JORGE MIRANDA, Manual de Direito constitucional, tomo III, 5ª edição, 2004, pp.
271 e ss)
III
Regimes políticos e sistemas de governo
(Leituras recomendadas:
JORGE MIRANDA, Manual de Direito constitucional, tomo III, 5ª edição, 2004, pp.
322 e ss)
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AS FORMAS DE ESTADO
(texto complementar )
§ 1.ESTADOS UNITÁRIOS E ESTADOS COMPOSTOS.
1. O conceito de forma de Estado tem por base a relação que se podeestabelecer entre o Estado e outros poderes públicos que possam existir no seu
interior e que com ele vão estabelecer relações de coordenação e de subordinação.Desta modalidade de relação entre Estado e outros poderes de igual natureza
(mormente, que possam ser titulares de poderes políticos stricto sensu e
legislativos) resultará, num segundo momento, a vinculação de um grupo humanoa um ou a mais poderes políticos.
Neste contexto, a principal dicotomia que historicamente se estabelece é aque existe entre Estados unitários e Estados compostos.
Em geral, pode-se dizer que um Estado unitário é aquele que é dotado de umúnico ordenamento jurídico, produto de um único momento constituinte e, por
conseguinte, detentor de uma só Constituição, enquanto elemento normativocimeiro e conformador de todo o ordenamento jurídico. É esta a única fonte de
legitimidade e de autoridade de todos os poderes públicos no interior do Estado edo Direito que nele vigora.
Pelo contrário, o Estado composto caracteriza-se por ser dotado de mais de
um ordenamento jurídico, fruto da existência de mais de um momentoconstituinte na formação, conformação e legitimação dos seus poderes públicos e
do seu Direito.
§ 2.
OS
ESTADOS
UNITÁRIOS
.
2. Os Estados unitários caracterizam-se, pois, pela unidade jurídico-constituinte num determinado território, geralmente fruto de uma especial
unidade na estrutura humana que forma o Estado e que justifica a existência deuma única comunidade política.
Dentro de um mesmo Estado unitário, podem os poderes políticos elegislativos170 ser atribuídos ao próprio Estado ou a outras entidades públicas,
170 A descentralização meramente administrativa é, para este efeito, destituída de relevância.
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desde que também estas entidades exerçam os seus poderes no quadro daConstituição estadual e no interior do mesmo ordenamento jurídico estadual.
Assim, podemos falar em Estado unitário centralizado quando os poderespolíticos stricto sensu e legislativos estão exclusivamente entregues ao Estado.
Por oposição, estaremos em face de um Estado unitário descentralizado ou
regional quando — no interior do mesmo ordenamento jurídico — a Constituiçãodo Estado atribuir poderes políticos e legislativos a outras entidades públicas
territoriais menores, tendo em vista aproximar o exercício dos poderes públicos dacomunidade objecto da sua actuação. À entidade pública territorial que recebe da
Constituição estes poderes dá-se usualmente a denominação de “região” ou “região
autónoma”.
3. Aqui chegados, é importante ter presente que a existência de regiões nãopõe em causa a natureza unitária do Estado a que pertence, porquantocontinuamos na presença de um único ordenamento jurídico, dirigido econformado por uma única Constituição.
Com efeito, nos Estados unitários descentralizados os poderes atribuídos àsregiões autónomas não são originários (como sucede nos Estados compostos),
antes resultando de uma expressa atribuição ou delegação efectuada pela própriaConstituição do Estado (ou, raramente, através de outro acto jurídico171), não
resultando em caso algum de um momento constituinte da própria entidadepolítica territorial.
Assim, bem se veja que:a) Nestes Estados a Constituição pode ser elaborada e modificada sem que
se preveja uma participação específica das regiões;b) Os estatutos destas regiões têm de ser conformes com a Constituição do
Estado e são exclusivamente aprovados pelos órgãos do Estado — razão por que
não são fruto de um momento constituinte próprio, mas antes de um acto
imputável ao próprio Estado; ec) Na estrutura constitucional do Estado, não se prevê qualquer câmaraparlamentar de representação das regiões junto do Estado.
4. No âmbito dos Estados regionais, podemos ainda efectuar algumasdistinções. Desde logo, pode o Estado regional ser integral ou parcial, conforme
todo o seu território se divida em regiões autónomas (v.g., a Espanha) ou apenasuma parcela desse território conheça a estrutura regional (e.g., Portugal).
171 Designadamente, por acto legislativo (v.g., a Gronelândia face à Dinamarca) ou por acto deDireito Internacional (e.g., a Alândia face à Finlândia).
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Por outro lado, o Estado regional pode ser homogéneo ou heterogéneo,conforme os poderes políticos atribuídos às regiões sejam similares (v.g., Portugal)
ou existam regiões com um estatuto especial (e.g., Espanha).
5. Como facilmente se antolha, estes Estados regionais pressupõem que asregiões dotadas de autonomia se integram no seu interior, de tal sorte que fazemparte de um mesmo ordenamento jurídico. Diferentes destes Estados regionais são
aqueles Estados que possuem territórios autónomos, mas sem que haja umaverdadeira integração destes territórios no seu ordenamento. Nestes casos, nem o
povo e o território destas regiões não se integra no Estado a que a região estáassociada.
Tenha-se, todavia, presente que se trata de situações excepcionais, que
podem ter por base diversas razões, nomeadamente:a) Antigos laços feudais (v.g., ilhas de Man e ilhas Anglo-Normandas ou
ilhas do Canal em relação à Coroa britânica);b) Vínculos coloniais ou semicoloniais (e.g., Bermudas e Gibraltar em
relação ao Reino Unido, ou a Nova Caledónia e a Polinésia Francesa em relação aFrança);
c) A mera associação a outros Estados (v.g., Antilhas Holandesas e Arubaem relação à Holanda ou Porto Rico em relação aos EUA);
d) Situações internacionais muito específicas (e.g., Macau entre 1976 e 1999ou Berlim entre 1949 e 1990).
§ 3.OS ESTADOS COMPOSTOS.
6. No que respeita aos Estados compostos, vimos que nestes se podiam
identificar vários momentos constituintes: assim, um primeiro momento
constituinte dos Estados que serão integrados no Estado composto; depois, outromomento constituinte de criação de um novo Estado (composto).Ora, também neste tipo de Estados podemos encontrar duas formas típicas:
em concreto, a federação e a união real — figuras estas que, por sua vez, têm de
ser diferenciadas da confederação e da união pessoal, respectivamente, com asquais apenas aparentemente são próximas.
7. No que em concreto respeita à federação, esta forma de Estado composto
assenta numa estrutura de sobreposição: a da estrutura do novo Estado (federal)
sobre os poderes políticos dos Estados federados. Desta forma, vão existir vários
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poderes políticos próprios a interagir: de um lado, o poder político soberano doEstado federal; de outro lado, os poderes políticos dependentes dos Estados
federados.Normalmente, as federações estão associadas a repúblicas, sendo exemplos
paradigmáticos dessa situação os EUA, o Brasil, a Suiça ou a Argentina. Porém,também se conhecem fenómenos de federações de Estados monárquicos, como é ocaso do Canadá, da Austrália ou da Bélgica.
Marcadamente distintas são as confederações, que se reportam a uma meraassociação de Estados (que conservam a sua soberania), pela qual se procede à
criação de uma nova entidade, dotada de órgãos próprios, mas sem se erigir umnovo Estado. A intenção específica de uma confederação é a de se submeter todos
os Estados confederados à prossecução em comum de determinados fins.
8. A união real assenta numa estrutura de aglutinação ou de fusão. Nestamodalidade de Estado composto, dois ou mais Estados (sem perderem a suaautonomia) adoptam uma única Constituição, na qual se prevê a existência de
órgãos comuns, designadamente o Chefe de Estado, o Governo e o Parlamento, apar de órgãos próprios dos Estados.
Historicamente, as uniões reais assentam na fusão de dois Estados com umaestrutura monárquica (v.g., a união real entre Portugal e Brasil, entre 1815 e 1822).
Todavia, pode-se admitir também a fusão de dois Estados de estruturarepublicana (e.g., a Tanzânia, fruto da fusão entre Tanganica e Zanzibar).
Por sua vez, a união pessoal é o produto de uma coincidência na titularidade
de órgãos: em concreto, existe uma união pessoal quando o titular do órgão deChefe de Estado é comum a dois ou mais Estados, os quais permanecem
totalmente independentes entre si. Foi o caso histórico de Portugal e Espanha,entre 1580 e 1640, e é o caso actual da Rainha Isabel II que é simultaneamente
rainha do Reino Unido, do Canadá, da Austrália, da Nova Zelândia, da Jamaica,
das Bahamas, do Belize e de outros Estados.
§ 3.1.EM ESPECIAL, OS ESTADOS FEDERADOS.
9. Os Estados federados — forma por excelência do Estado composto —
constituem a mais complexa forma de Estado, dadas as relações que seestabelecem entre os Estados federados e o Estado federal.
Aqui, através da criação de uma federação procede-se à sobreposição de
um ordenamento jurídico (o ordenamento federal) sobre outros ordenamentos
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jurídicos (os ordenamentos dos Estados federados), sem que estes percam a suaexistência; terão, isso sim, de se conformar com o ordenamento jurídico federal.
Destarte, numa federação os cidadãos dos Estados federados ficam sujeitosa duas Constituições (a federal e a dos Estados federados) e a dois aparelhos de
poderes políticos (o do Estado federal e o dos Estados federados), ficando por issosujeitos a actos políticos, legislativos, jurisdicionais e administrativos provenientesdo Estado federal ou dos Estados federados a que pertençam.
Claro está que uma federação não consegue sobreviver se os poderespolíticos que a compõem forem divergentes. Por esta razão, exige-se que os
ordenamentos jurídicos que compõem a federação estejam interligados e,sobretudo, harmonizados. Pois bem, esta tarefa de integração e harmonização
entre ordem jurídica federal e ordens jurídicas federadas é feita por meio da
Constituição federal, que contém o fundamento de validade, eficácia elegitimidade de todo o ordenamento federativo. É o que a doutrina alemã designapor “competência das competências”.
10. De todo o exposto resulta claro que os Estados federados são marcadospor diversas características peculiares, entre as quais há que assinalar:
a) Como primeira grande característica cumpre assinalar a pluralidade de
soberanias, mormente a soberania do Estado federal e a soberania de cada um dos
Estados federados. Com efeito, cada um destes Estados possui a sua própriaConstituição, resultado de um momento constituinte próprio, e o seu sistema deórgãos políticos, legislativos, administrativos e jurisdicionais;
b) Paralela à pluralidade de soberanias pode encontrar-se a pluralidade decidadanias, nomeadamente do Estado federal e dos Estados federados, sendo certo
que a cidadania federal prevalece sobre a de cada Estado federado;c) Por outro lado, e como consequência da soberania de cada um dos
Estados federados, há que realçar o facto de a Constituição federal ter o dever de
garantir a existência dos Estados federados e, bem assim, dos seus direitos departicipação política na vida da federação;d) Com efeito, cumpre ainda assinalar os direitos e participação dos Estados
federados na formação da vontade política e legislativa do Estado federal, através
de meios institucionalizados. Em concreto, no sistema de órgãos do Estado federalexiste uma segunda câmara de representação paritária dos Estados federados, por
norma designada de senado;e) Como quinta grande característica, é mister referir-se a participação de
cada um dos Estados federados na formação e na modificação da própria
Constituição federal;
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f) Noutro plano, cumpre assinalar a igualdade jurídica de todos os Estadosfederados no seio da federação, que se consubstancia na igualdade de direitos
entre os seus cidadãos, no reconhecimento recíproco dos actos jurídicos celebradosem cada Estado federado e na participação paritária nos órgãos federais de
representação dos Estados e nos processos de formação e modificação daConstituição federal;
g) Em resultado da supremacia da Constituição federal, aos tribunais
federais incumbe a tarefa de controlar a conformidade das Constituições e leisfederais em relação à Constituição federal;
h) Ao Estado federal incumbe exclusivamente estabelecer relaçõesinternacionais e definir e executar a política de defesa da federação, dado que é a
única entidade com personalidade jurídica internacional;
i) Aos Estados federados não assiste um direito de desvinculação dafederação (ao contrário do que sucede com a confederação);
j) Por fim, assinale-se a designada limitação das atribuições federais, deacordo com a qual todas as matérias não reservadas ao Estado federal incumbem
ou podem incumbir aos Estados federados. A este propósito, pode distinguir-seum federalismo designado de clássico, que assenta na repartição horizontal ou
material de funções — em que o Estado federal e os Estados federados podemaprovar e executar as leis (v.g., os EUA ou a Suiça) — e um federalismo
cooperativo, no qual o Estado federal legisla ou aprova as bases gerais dos regimes jurídicos, cabendo aos Estados federados executar ou desenvolver estes regimes jurídicos (e.g., a Alemanha). Em todo o caso, a distribuição de competências faz-se
sempre pela própria Constituição federal.
11. Atendendo às supra enunciadas características, podemos falar emfederações perfeitas ou imperfeitas, consoante preencham todas as características
apontadas ou apenas alguns daqueles caracteres. No primeiro caso, podemos
encontrar os EUA ou a Suiça; já no segundo caso podemos enunciar o Brasil ou aRússia.Por outro lado, as federações podem ainda ser de grau único, quando abaixo
dos Estados federais exista apenas um nível de Estados federados; ou de duplo
grau, quando entre os Estados federados se encontram também federações (e.g., aantiga U.R.S.S., no seio da qual se integrava a Rússia, também ela uma federação).
Assim, na federação de grau único o Estado é composto apenas por Estadosunitários; na federação de duplo grau o Estado é composto por Estados unitários e
por um ou mais Estados compostos.
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12. As federações criam são responsáveis pela criação de um sistema jurídico muito complexo, em que a coordenação entre os diversos sistemas
jurídicos é feita pela própria Constituição federal.Neste sistema, a principal nota a reter é a da supremacia da Constituição
federal sobre todos os demais actos jurídicos, incluindo, pois, as Constituições dosEstados federados. Desta supremacia, decorrem ainda as seguintes notas:
a) Os princípios fundamentais e estruturantes da Constituição federal
impõem-se a todos os Estados federados, aqui se incluindo a sua própriaConstituição;
b) As Constituições e os demais actos legislativos e administrativos dosEstados federados não podem ser desconformes com a Constituição federal, sob
pena de inconstitucionalidade, com a particularidade de esta envolver mera
ineficácia (e não já invalidade), porquanto a Constituição federal não éfundamento de validade destes actos;
c) As leis do Estado federal gozam de efeito directo e invocabilidade em juízo no território dos Estados federados, dispensando qualquer forma de
transformação ou sequer de recepção;d) Em caso de conflito de competências entre o Estado federal e os Estados
federais, a sua resolução caberá exclusivamente aos órgãos (mormente jurisdicionais) federais;
e) Ao Estado federal é lícita a adopção de medidas coercivas para impor oseu Direito aos Estados federados;
f) A comunicação e a unidade sistémica entre os ordenamentos dos Estados
federados processa-se através das formas previstas pelo Direito federal.
13. Como contraponto a esta supremacia do poder federal, deve assinalar-seque o poder constituinte federal deve respeitar sempre a existência e os direitos
dos Estados federados e, a noutro plano, que as leis dos Estados federados têm
como único parâmetro de validade a Constituição do seu Estado federado.Em concreto, deve ser assegurado aos Estados federados o exercício depoderes legislativos próprios, a possibilidade de disporem de tribunais, forças desegurança e órgãos administrativos próprios e a possibilidade de representação
nas câmaras parlamentares do Estado federal.
§ 4.O ESTADO PORTUGUÊS COMO ESTADO UNITÁRIO REGIONAL.
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14. Historicamente Portugal assumiu a forma de Estado unitário: cfr., artigo2.º da Carta Constitucional de 1826, artigo 2.º da Constituição de 1838, artigo 1.º da
Constituição de 1911 e artigo 5.º da Constituição de 1933172. Esta tradição manteve-se com a Constituição da República Portuguesa (doravante denominada por
“CRP”), em cujo artigo 6.º se define o Estado português como um Estado unitário(cfr. n.º 1), sendo esta unidade um limite material de revisão constitucional [cfr.alínea a) do artigo 288.º da CRP]. Todavia, trata-se de um Estado unitário que
respeita “o regime autonómico insular ” (cfr. n.º 1), que se traduz no facto de “os
arquipélagos dos Açores e da Madeira [constituírem] regiões autónomas dotadas de
estatutos político-administrativos próprios e de órgãos de governo próprio” (cfr. n.º 2).Esta descentralização política não bole com o facto de Portugal ser um
Estado unitário, na medida em que a aludida descentralização política é efectuada
pela própria Constituição de 1976, não existindo qualquer fenómeno semelhante aum poder constituinte próprio das regiões autónomas. Ademais, é a própriaConstituição de 1976 a frisar que a soberania nacional é una e indivisível (cfr. n.º 1do artigo 3.º da CRP) e que os próprios actos regionais têm de respeitar o teor da
Constituição portuguesa (cfr. n.º 3 do artigo 3.º da CRP).Assim, bem se veja que (i) cada região autónoma possui um estatuto
político-administrativo próprio aprovado exclusivamente pela Assembleia daRepública e sujeita a promulgação pelo Presidente da República (inexistindo, pois,
um momento constituinte), (ii) a modificação da Constituição cabe exclusivamenteà Assembleia da República, não se prevendo a participação específica derepresentantes regionais, (iii) não existe uma câmara parlamentar própria de
representação das regiões autónomas no sistema de órgãos do Estado, da mesmaforma, aliás, que os deputados eleitos pelos seus círculos eleitorais representam
todo o país e não o círculo por que foram eleitos (cfr. n.º 2 do artigo 152.º da CRP).Do exposto facilmente se retira, ainda, que Portugal é um Estado unitário
regional homogéneo (mesmo que as regiões possuam estatutos político-
administrativos diferentes), parcial (pois apenas os Açores e a Madeira podem tero estatuto de região autónoma173) e com integração (porquanto os arquipélagosdos Açores e da Madeira são parte integrante do Estado português — cfr. artigos5.º e 6.º da CRP).
15. Antes de avançarmos sobre a caracterização deste regime autonómico
português, cumpre deixar já presente a noção de região autónoma.
172 Apenas a Constituição de 1822 procurou erigir uma união real entre Portugal e o Brasil.173 As regiões administrativas previstas nos artigos 255.º e seguintes são meras autarquias locais,apenas dotadas de poderes administrativos (cfr. n.º 1 do artigo 236.º da CRP).
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Assim, pode-se desde já referir que se entende por região autónoma, nodireito constitucional português, uma pessoa colectiva de direito público, de
população e território, dotada pelo Estado (através da Constituição) de autonomiaadministrativa, política e legislativa, tendo em vista a prossecução de fins próprios
do seu substrato humano, sendo para o efeito dotada de um estatuto e de órgãosde governo próprio.
O estatuto político-administrativo das regiões autónomas.
16. O estatuto político-administrativo das regiões autónomas consiste numa
lei aprovada pela Assembleia da República [cfr. alínea b) do artigo 161.º da CRP],que pretende estabelecer a regulação (i) das atribuições regionais [aspecto
fundamental em face do teor da alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP], (ii) do
sistema de órgãos regionais e (iii) estabelecer a sua delimitação em relação àsdemais pessoas colectivas públicas. A este propósito, pode falar-se numa reservade estatuto, na medida em que estas matérias têm de ser necessariamente tratadaspelo estatuto.
17. Os estatutos político-administrativos das regiões autónomas são
elaborados exclusivamente pelas respectivas Assembleias Legislativas Regionais, eposteriormente enviadas à Assembleia da República [cfr. n.º 1 do artigo 226.º e
alínea e) do n.º 1 do artigo 227.º, ambos da CRP].A sua aprovação cabe exclusivamente à Assembleia da República [cfr.
alínea b) do artigo 161.º e n.º 3 do artigo 226.º, ambos da CRP]. Neste plano, se a
Assembleia da República pretender modificar ou rejeitar o projecto de estatuto,tem de solicitar parecer prévio à Assembleia Legislativa Regional (cfr. n.º 2 do
artigo 226.º da CRP).Por fim, o estatuto carece ainda de promulgação pelo Presidente da
República [cfr. alínea b) do artigo 134.º da CRP] e de referenda ministerial pelo
Governo (cfr. n.º 1 do artigo 140.º da CRP), em ambos os casos sob pena deinexistência jurídica (cfr. artigo 137.º e n.º 2 do artigo 140.º, ambos da CRP,respectivamente).
Estas disposições aplicam-se ainda à modificação dos estatutos (cfr. n.º 4 do
artigo 226.º da CRP).
18. Os estatutos político-administrativos possuem valor jurídico reforçado,que se traduz de este não poder ser contrariado por qualquer norma ordinária, sob
pena de esta padecer de inconstitucionalidade indirecta ou de ilegalidade.
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Assim, o Tribunal Constitucional pode fiscalizar a constitucionalidade ou ailegalidade de qualquer norma que contrarie o estatuto [cfr. alíneas b), c) e d) do n.º
2 do artigo 280.º e alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 280.º, todas da CRP].As normas estatutárias relativas a matérias fora da reserva de estatuto (os
designados cavaleiros de lei reforçada) são válidas, ainda que não tenham aquelevalor reforçado.
Os poderes das regiões autónomas.
I – Poder Político e Legislativo.
18. As regiões autónomas gozam de autonomia legislativa (cfr. artigo 228.ºda CRP), exercida através da forma de decreto legislativo regional.
Neste sentido, as regiões autónomas podem exercer um poder legislativo
originário, designadamente através da legiferação, no âmbito regional, nasmatérias enunciadas no respectivo estatuto, desde que não estejamconstitucionalmente reservadas aos órgãos de soberania [cfr. alínea a) do n.º 1 doartigo 227.º da CRP].
Neste mesmo contexto, o n.º 1 do artigo 227.º da CRP atribui ainda àsregiões autónomas os poderes de adaptação do sistema fiscal nacional às
especificidades regionais [cfr. alínea i)], de criação, modificação geográfica eextinção de autarquias locais [cfr. alínea l)], de elevação de povoações a vilas ou a
cidades [cfr. alínea n)], de aprovação do plano de desenvolvimento económico esocial, do orçamento regional e das contas da região [cfr. alínea p)] e de definiçãode contra-ordenações e respectivas sanções [cfr. alínea q)].
As regiões autónomas podem, ainda exercer um poder legislativo dedesenvolvimento
, nomeadamente no âmbito do desenvolvimento para o âmbito
regional dos princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos contidos em lei que aeles se circunscrevam [cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP].
Noutro plano, as regiões autónomas exercem um poder legislativo
autorizado
, mormente pela possibilidade de legislarem sobre certas matérias dareserva relativa da Assembleia da República (cfr. artigo 165.º da CRP), medianteautorização desta [cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP], sendo certo que aspropostas de lei de autorização devem ser acompanhadas do respectivo
anteprojecto de decreto legislativo regional a autorizar (cfr. n.º 2 do artigo 227.º daCRP).
Por outro lado, as regiões autónomas exercem poderes de iniciativalegislativa perante a Assembleia da República, podendo apresentar-lhe propostas
de lei e propostas de alteração [cfr. alínea f) do n.º 1 do artigo 227.º e artigo 167.º da
CRP].
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As competências legislativas são exercidas exclusivamente pela AssembleiaLegislativa Regional (cfr. n.º 1 do artigo 232.º da CRP).
19. Por fim, no âmbito das funções políticas, o n.º 1 do artigo 227.º da CRP
atribui às regiões autónomas poderes de participação
, nomeadamente na definiçãoe execução das políticas fiscal, monetária, financeira e cambial [cfr. alínea r)], nadefinição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica
exclusiva e aos fundos marinhos contíguos [cfr. alínea s)], nas negociações detratados e acordos internacionais que directamente lhes digam respeito, bem como
nos benefícios deles decorrentes [cfr. alínea t)] e no processo de construçãoeuropeia, mediante representação nas respectivas instituições regionais e nas
delegações envolvidas em processos de decisão da União Europeia [cfr. alínea x)].
Neste contexto, o aludido n.º 1 do artigo 227.º da CRP ainda lhes atribui ospoderes de estabelecer cooperação com outras entidades regionais estrangeiras eparticipar em organizações que tenham por objecto fomentar o diálogo e acooperação inter-regional [cfr. alínea u)] e de pronúncia sobre as questões da
competência dos órgãos de soberania que lhes digam respeito, bem como, emmatérias do seu interesse específico, na definição das posições do Estado
Português no âmbito do processo de construção europeia [cfr. alínea v)].
II – Poder Administrativo.20. As regiões autónomas gozam de uma autonomia administrativa que
lhes permite fixar e prosseguir livremente a satisfação dos fins de interesse
colectivo ao seu substrato humano.Neste contexto, bem se veja que as regiões autónomas gozam de poder
executivo próprio [cfr. alínea g) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP], de tal sorte queescapam ao poder de tutela administrativa (ainda que de mera legalidade)
exercida pelo Estado sobre a Administração autónoma em geral. Esta reserva de
competência administrativa não afasta, todavia, a possibilidade de o Estadoexercer funções administrativas no âmbito regional.Por outro lado, as regiões autónomas gozam ainda do poder de
regulamentar a legislação nacional e as leis emanadas pelos órgãos de soberania
que não reservem para si o poder regulamentar [cfr. alínea d) do n.º 1 do artigo227.º da CRP], sendo certo que esta última regulamentação cabe exclusivamente à
Assembleia Legislativa Regional (cfr. n.º 1 do artigo 232.º). Para além destasmatérias, há ainda a enunciar a regulamentação da organização e funcionamento
do Governo Regional, da competência deste (cfr. n.º 6 do artigo 231.º da CRP), a
regulamentação directamente fundada em norma constitucional, internacional ou
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comunitária — se admissível — e a regulamentação destinada ao bomfuncionamento da Administração regional.
21. Por outro lado, o n.º 1 do artigo 227.º da CRP fala ainda nos poderes de
administração e disposição do respectivo património, e de celebração de contratose de actos em que tenham interesse [cfr. alínea h)], de disposição de receitas [cfr.alínea j)], de exercer o poder de tutela administrativa sobre as suas autarquias
locais [cfr. alínea m)] e de superintender a Administração regional [cfr. alínea o)].
Os órgãos das regiões autónomas.
22. São órgãos de Governo próprio a Assembleia Legislativa Regional e o
Governo Regional (cfr. n.º 1 do artigo 231.º da CRP). Ainda que não seja um órgão
de governo próprio, o Representante da República, que representa a soberania junto da região, é um órgão essencial na compreensão do funcionamento políticoregional.
Os órgãos de governo regional devem cooperar com os órgãos de
soberania, tendo em vista o incremento económico e social (cfr. n.º 1 do artigo 229.ºda CRP).
23. A Assembleia Legislativa Regional é eleita por sufrágio universal,
directo e secreto, de acordo com o princípio da representação proporcional (cfr. n.º2 do artigo 231.º da CRP). Entre as suas competências, assinale-se o exercício dacompetência legislativa, de participação, de apresentação de proposta de
referendo e de elaboração e aprovação do respectivo regimento (cfr. artigo 232.º daCRP).
A Assembleia Legislativa Regional pode ser dissolvida pelo Presidente daRepública, após audição do Conselho de Estado e dos partidos políticos nela
representados (cfr. n.º 1 do artigo 234.º da CRP).
24. No que respeita ao Governo Regional, o seu Presidente é nomeado peloRepresentante da República, tendo em conta os resultados eleitorais para aAssembleia Legislativa Regional, sendo os demais membros nomeados pelo
Representante da República sob proposta do Presidente do Governo Regional (cfr.n.os 3 e 4 do artigo 231.º da CRP).
O Governo Regional é politicamente responsável perante a AssembleiaLegislativa Regional (cfr. n.º 3 do artigo 231.º da CRP), perante a qual, aliás, toma
posse (cfr. n.º 5 do artigo 231.º da CRP).
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Esta relação com o órgão legislativo regional leva a que a dissolução daAssembleia legislativa Regional acarrete a demissão do Governo Regional, que fica
limitado ao exercício dos poderes de gestão até à posse de novo governo após arealização de novas eleições (cfr. n.º 2 do artigo 234.º da CRP).
25. O Representante da República para cada região autónoma é nomeado eexonerado pelo Presidente da República ouvido o Governo (cfr. n.º 1 do artigo
230.º da CRP), possuindo um mandato com a mesma duração do do Presidente daRepública, terminando com a posse do novo Representante da República, salvo
caso de exoneração (cfr. n.º 2 do artigo 230.º da CRP). Em caso de vagatura docargo, bem como nas suas ausências e impedimentos, o Representante da
República é substituído pelo Presidente da Assembleia Legislativa Regional (cfr.
n.º 3 do artigo 230.º da CRP).Entre os seus poderes, contam-se os de assinar e mandar publicar os
decretos legislativos regionais e os decretos regulamentares regionais (cfr. n.º 1 doartigo 233.º da CRP), de veto político de qualquer decreto da Assembleia
Legislativa da região autónoma que lhe haja sido enviado para assinatura (cfr. n.º2 do artigo 233.º da CRP), de veto jurídico dos decretos legislativos regionais (cfr.
n.º 5 do artigo 233.º da CRP), e de assinatura ou recusa de assinatura de qualquerdecreto do Governo Regional que lhe tenha sido enviado para assinatura (cfr. n.º 4
do artigo 233.º da CRP).No caso de veto político de qualquer decreto da Assembleia Legislativa
Regional, esta poderá confirmar o seu voto por maioria absoluta dos seus
membros em efectividade de funções, caso em que o Representante da Repúblicadeve assinar obrigatoriamente o decreto (cfr. n.º 3 do artigo 233.º da CRP).
FORMAS DE GOVERNO OU POLÍTICAS ,
REGIMES POLÍTICOS E SISTEMAS DE GOVERNO
1. A problemática em torno das formas de governo, dos regimes políticos edos sistemas de Governo já remonta à própria Antiguidade Clássica, tendo sidoobjecto de estudo por ARISTÓTELES e POLÍBIO. Ao longo da história, não perdeu a
sua pertinência, tendo sido sempre desenvolvida por diversos autores, tais como JOHN LOCKE ou MONTESQUIEU.
Todavia, e ao contrário do que seria suposto esperar, não se trata de umaquestão que tenha já logrado alcançar uma sedimentação suficiente, sendo o
reflexo mais visível dessa situação a flutuação terminológica que aqui impera. Por
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essa razão, importa começar por distinguir os conceitos, para então nosdebruçarmos sobre estas matérias.
Pois bem, por forma de governo ou forma política deve entender-se o modocomo o poder político se estrutura e se exerce no quadro do Estado, tendo
especialmente em vista a disciplina da actividade dos órgãos de soberania e assuas relações recíprocas.
Dentro deste conceito de formas de governo ou de formas políticas,
podemos dividir a nossa atenção na análise:(i) Da titularidade dos órgãos de soberania e do modo como estes se
organizam, funcionam e relacionam; e(ii) Da relação que se estabelece entre os indivíduos e o poder político.
Pois bem, no primeiro caso, estaremos perante o conceito de sistema de
governo; já no segundo caso, encontramo-nos em face do conceito de regimepolítico.
Assim seno, o sistema de governo reporta-se, por um lado, à organização efuncionamento dos diversos órgãos de soberania e, por outro lado, ao modo como
estes órgãos em concreto se relacionam.Por seu turno, o regime político consiste na forma como todo o sistema
político-constitucional funciona, tendo especialmente em atenção as relações quese estabelecem entre os indivíduos e o poder político.
§ 1.REGIMES POLÍTICOS.
2. A caracterização dos regimes políticos deve assentar em diversas
vertentes de análise, tendo, designadamente, em atenção a titularidade dasoberania, o processo de designação e o estatuto dos titulares dos órgãos de
soberania…
3. Assim, e no que respeita à titularidade do poder soberano, é usualalguma doutrina fazer referências às formas republicanas ou monárquica degoverno. Na sua esteira, a alínea b) do artigo 288.º da CRP estipula como limite
material de revisão constitucional a “ forma republicana de governo”, ainda queutilizando o termo num sentido muito lato.
Ora, em estrito rigor a dicotomia que se estabelece entre república emonarquia não se reporta à forma política ou de governo. Trata-se, antes, de
diferentes formas de titularidade do poder soberano: assim, numa monarquia a
soberania reside no Chefe de Estado (um rei) — assentando a sua designação no
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fenómeno da sucessão —, enquanto na república é o povo o titular da soberaniado Estado, ainda que a sua representação se faça por um órgão do Estado.
4. Mais importante é a análise do regime político tendo por base uma
conjunção de três grandes aspectos:a) A liberdade de os indivíduos adoptarem uma filosofia de Estado própria
ou, por oposição, a imposição de uma ideologia constitucional ou legalmente
consagrada a todos os indivíduos;b) A possibilidade de os indivíduos acederem aos órgãos de soberania ou,
por oposição, a afectação desses órgãos à ideologia política imposta, com sacrifíciodos direitos fundamentais dos indivíduos — mormente, dos seus direitos
políticos;
c) A adopção, ou não, de formas autocráticas de designação dosgovernantes e o controlo do exercício do poder político.
Em conformidade com estes critérios, chegamos à dicotomia entredemocracia e ditadura.
§ 2.
SISTEMAS DE GOVERNO.
5. No que respeita aos sistemas de governo, ou seja, o modo como ascompetências políticas estão dispersas pelos órgãos de soberania e como estes serelacionam entre si, podemos configurar três grandes sistemas: o sistema
parlamentar; o sistema presidencial; e o sistema semipresidencial.
6. Pois bem, no que respeita ao sistema parlamentar , este é caracterizado pelaprevalência do Parlamento sobre os demais órgãos de soberania, de tal sorte que
lhe cabe conformar a escolha e a acção governativa.
Em concreto, este sistema de governo começa por exigir a responsabilidadepolítica do Governo perante o Parlamento, e apenas perante este órgão desoberania.
Assim, a formação do Governo tem por base as indicações formuladas pelo
próprio Parlamento — donde o Chefe de Estado deve nomear o Governo tendopor base as indicações do Parlamento — e, em certos casos, deve ser
exclusivamente formado por deputados com assento no Parlamento.Por outro lado, desta responsabilidade política perante o Parlamento
resulta que os membros do Governo assistem às sessões parlamentares (no caso
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inglês, devem trabalhar no Parlamento), por forma a explicarem com regularidadeas suas acções e a formularem propostas de lei.
Por fim, esta relação do Governo face ao Parlamento determina ainda que asua subsistência fique dependente da confiança parlamentar, sendo dissolvido
pela aprovação de moção de censura ou pela rejeição de moção de confiança.Noutro plano, é mister ter presente que o cargo de Chefe de Estado tem um
marcadamente valor simbólico e necessariamente imparcial, carecendo os seus
actos próprios de referenda ministerial. Esta reduzida dimensão política do Chefede Estado traduz-se, concretamente, no facto de não poder dissolver o Governo,
ou, quando o puder, apenas o poder fazer em casos muito restritos e, por norma,com a concordância do Parlamento.
7. Já nos sistemas presidencialistas, assiste-se ao incremento do poder doChefe de Estado face ao Parlamento, residindo nele os principais poderes dedeterminação da acção governativa.
Assim, nestes sistemas a eleição do Chefe de Estado (id est, o Presidente da
República) faz-se necessariamente por sufrágio universal, seja este directo ouindirecto (nomeadamente, por colégio de eleitores.
Nestes sistemas, o Governo é directamente formado pelo Chefe de Estado e,em certos casos, ele é o próprio Chefe de Governo (presidencialismo perfeito). Em
qualquer dos casos, o Governo é exclusivamente responsável perante si, muitoembora sob fiscalização do Parlamento.
Por esta razão, o Chefe de Estado é quem define a linha de actuação política
e os ministros não assistem às reuniões do Parlamento, nem prestam explicaçõesaos deputados, uma vez que o Governo não responde perante o Parlamento.
Por fim, registe-se que nestes sistemas o Chefe de Estado controla aprodução normativa, nomeadamente porque: (i) só ele pode apresentar propostas
de lei; (ii) o Parlamento pode apresentar projectos de lei, mas o Chefe de Estado
goza de direito de veto político; (iii) ambos podem aprovar leis, mas o Chefe deEstado pode livremente modificar, revogar ou suspender as leis aprovadas peloParlamento.
Apesar disso, e como equilíbrio a esta prevalência do Chefe de Estado, não
lhe assiste o poder de dissolver o Parlamento.
8. Por fim, temos ainda o sistema semipresidencial de governo, que secaracteriza sobretudo pela existência de um terceiro centro autónomo de poder: o
Governo.
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Ora, neste sistema, o Governo é formado por nomeação pelo Chefe deEstado, tendo por base os resultados eleitorais parlamentares e a subsequente
composição do Parlamento.A sua subsistência depende da confiança parlamentar, traduzida na
aprovação de moções de confiança e do programa do governo ou na nãoaprovação de moções de censura. Por outro lado, o Governo é ainda responsávelperante o Chefe de Estado.
Esta dupla responsabilidade do Governo face ao Parlamento e face ao Chefede Estado explica-se pelo facto de estes dois órgãos serem eleitos por sufrágio
universal e directo, ao invés do Governo.Quanto ao Chefe de Estado, ele dispõe de poderes de dissolução do
Parlamento e de veto sobre os diplomas aprovados pelos outros órgãos —
suspensivo em relação aos actos do Parlamento e definitivo em relação aos actosdo Governo.
§ 2.1.
O SISTEMA DE GOVERNO PORTUGUÊS.
9. Não oferece muitas dúvidas a qualificação do sistema de governoportuguês como um sistema semipresidencial, assente no equilíbrio entre
Presidente da República, Assembleia da República e Governo.Assim, o Presidente da República e a Assembleia da República são eleitos
por sufrágio universal directo (cfr., respectivamente, n.º 1 do artigo 121.º e n.º 1 do
artigo 113.º, ambos da CRP), enquanto o Governo é nomeado pelo Presidente daRepública tendo por base os resultados eleitorais e a consequente composição da
Assembleia da República (cfr. n.º 1 do artigo 187.º da CRP).O Governo é politicamente responsável perante o Presidente da República e
perante a Assembleia da República (cfr. artigo 190.º da CRP).
Assim, a subsistência do Governo depende do Presidente da República, quepode demiti-lo, quando tal se torne necessário para assegurar o regularfuncionamento das instituições democráticas (cfr. n.º 2 do artigo 195.º da CRP).
A subsistência do Governo depende, por outro lado, da Assembleia da
República, perante a qual ele é politicamente responsável, nomeadamente atravésda não rejeição do programa do governo, da aprovação de moções de confiança e
da não aprovação de moções de censura [cfr. alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo195.º da CRP].
Por outra banda, há que considerar a hipótese de o Presidente da República
dissolver a Assembleia da República, ouvidos os partidos nela representados e o
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Conselho de Estado [cfr. alínea e) do artigo 133.º e artigo 172.º, ambos da CRP],dissolução esta que acarretará a demissão do Governo quando se iniciar a nova
legislatura [cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 195.º da CRP].Por fim, e atendendo apenas às supra enunciadas características, bem se veja
que o Presidente da República goza do direito de veto dos diplomas legislativosaprovados pela Assembleia da República e pelo Governo (cfr. artigo 136.º da CRP),político ou jurídico (cfr. artigos 278.º e 279.º), veto este que é definitivo se se
reportar a um acto do Governo, mas que pode ser ultrapassado pela Assembleiada República (cfr. n.º 2 do artigo 136.º da CRP).
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PARTE III
Os princípios fundamentais do Estado de Direito. Em especial, os princípios
fundamentais da República Portuguesa
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Vamos analisar agora os princípios fundamentais do Estado de Direito.
A análise que se empreende não será, porém, empreendida numa perspectiva
eminentemente teórica. Vamos, pelo contrário, analisar esses princípios a partir da
Constituição da República Portuguesa de 1976.
Partindo dessa análise, vamos arrumar os princípios em três grandes planos: de um
lado, os princípios estruturantes do Estado de Direito, de outro, os princípios da acção
do poder estadual, de outro também, os princípios da organização administrativa e de
outro, finalmente, os princípios do poder administrativo.
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110
1º
PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO DE DIREITO
I
A dignidade da pessoa humana como fundamento e critério da acção do
Estado.
33. A construção do Estado a partir da dignidade da pessoa humana. O artigo
1º da Constituição174.
A dignidade da pessoa humana é a base ou fundamento do Estado português, da sua
organização política, como claramente resulta do artigo 1º da Constituição, com a epígrafe
“República Portuguesa”:
“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e
na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e
solidária”.
A afirmação contida nesta disposição da lei fundamental é a assunção explícita da
prioridade da pessoa relativamente ao Estado: a vontade política só existe porque a pessoa
existe, pelo que esta não só precede aquela como tem prioridade sobre ela.
33.1.Conceito de dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa não é uma realidade abstracta e a priori nem funciona como
abstracção da realidade, como algo que corresponde a um ideal de homem ou mulher. Pelo
contrário, a dignidade da pessoa humana é uma realidade que só no concreto é perceptível,
porque é na natureza irredutível, insubstituível e irrepetível de cada homem ou mulher que
a dignidade humana ganha sentido.
Não admira, por isso, que a dignidade da pessoa funcione como critério de acção no
concreto e tenda a ampliar o seu conteúdo em razão do aprofundamento cultural do homem
no seu relacionamento em comunidade.
174 Ver anotações ao artigo 1º da Constituição em JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, ConstituiçãoPortuguesa Anotada... e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, CRP Anotada...
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33.2. Conteúdo.
A dignidade da pessoa humana é entendida como o conceito-chave do sistema
político, o fecho da teia de relações que nele se projectam. O que vem de dizer-se tem osentido de conferir a uma multiplicidade de acções uma unidade, que se configura, num
primeiro momento, em redor dos direitos pessoais – direito à vida (art. 24º), direito à
integridade física (art. 25º)... –, num segundo momento, em redor dos direitos políticos –
direito de sufrágio (art. 49º), direito de petição (art. 52º) –, num terceiro momento, em
redor dos direitos sociais, económicos e culturais – direitos dos trabalhadores (art. 59º ),
direito à saúde (art. 64º), direito ao ensino… – , num quarto momento, em redor dos
direitos de qualidade – direito do ambiente (art. 66º), direito à qualidade de vida urbana
(art. 65º)….
Por outras palavras, a dignidade humana não é só, como vimos antes, fundamento
do sistema organizatório do Estado. É também a referência, por excelência, da sua acção e
da acção relacional de toda a comunidade, através dos direitos fundamentais de que é
alimento.
33.3. Concretização
Num outro plano, deve acrescentar-se que a dignidade da pessoa humana se
concretiza nas normas legais que dão corpo ao projecto constitucional.
Assim, as normas legais que prevêem o regime jurídico da segurança social, que
garantem um rendimento mínimo, que garantem a educação básica, que estabelecem
restrições à construção de edifícios para defesa da memória e da identidade do homem –
património nacional –, que defendem a saúde dos consumidores, são a concretização de
disciplinas jurídicas que procuram consagrar e salvaguardar a dignidade da pessoa humana.
33.4. Critério de acção.
Finalmente, na ausência da norma legal, a dignidade da pessoa humana é conceito
orientador da acção pública, moldando princípios de intervenção comunitária e permitindo
o aprofundamento de outros.
No Estado “ponderador” de interesses em que vivemos, a dignidade da pessoa
humana é a referência decisória que fundamenta opções, que estrutura a selecção dos
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interesses que devem ser satisfeitos, que permite o estabelecimento de hierarquias e
prioridades de actuação, que impõe soluções organizatórias.
33.5. Excurso histórico.
A realidade que acabamos de descrever e que pertence à actividade política de hoje
não corresponde à que presidiu ao nascimento das Constituições formais, ao momento
constituinte dos Estados modernos.
Com efeito, no século XVIII (primórdios do Estado-Constitucional) as ideias do
racionalismo e do contratualismo criaram uma ideia de Constituição em redor de uma certa
concepção de homem, o indivíduo racional175. Este é compreendido simultaneamente como
um ser solitário, como ser capaz de construir o seu destino, um destino por isso mesmoindividualmente entendido, e como ser solidário, porquanto é através da sua vontade,
aliada à dos demais, que constrói o Estado.
Mais tarde, ao longo do século XIX (Estado liberal, Estado-Legislação), as ideias
do racionalismo acentuam-se em redor do homem como alguém que se assume,
simultaneamente, como proprietário e como agente de progresso. Para a sua defesa cria-se
a lei que garante a regularidade das actuações, a sua previsibilidade, para além de conferir
a ideia de segurança à vida em sociedade.
O século XX é marcado por duas Grandes-Guerras e pelas consequências
devastadoras conhecidas de todos. O optimismo que, nos períodos anteriores, permitiu a
construção de uma imagem abstracta de homem livre e igual, bem como a de uma imagem
de homem proprietário e agente de progresso, é profundamente abalado. Particularmente
após a 2ª Grande Guerra e os funestos acontecimentos que a estigmatizaram, ficou clara a
necessidade de compreender a construção do Estado não sobre uma ideia abstracta de
homem mas sobre a dignidade da pessoa, na sua realidade concreta. Sobre esta concepção
foi edificada a nossa Constituição de 1976.
O anúncio do século XXI, com os desafios da globalidade e, em especial, da
solidariedade intergeracional e da sustentabilidade ambiental do desenvolvimento, abre
uma nova janela de aprofundamento da dignidade da pessoa humana: a acção estadual nela
fundada deve integrar, para além da pessoa que, em concreto, vive, aquelas pessoas que um
dia viverão por intermédio das que em concreto hoje vivem e pelas quais, por isso mesmo,
175 Para mais desenvolvimentos, LUCIA AMARAL, A forma…, p. 162.
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todos somos responsáveis, porque todos somos elos de uma cadeia que se não quer partir.
Tudo em razão da dignidade da pessoa humana.
33.6. Jurisprudência constitucional portuguesa.
Mas o que deve, hoje, entender-se por «dignidade da pessoa humana», qual o seu
conteúdo no ordenamento jurídico português?
A jurisprudência do Tribunal Constitucional cita abundantemente esta expressão,
mas a verdade é que, com rigor, o seu conteúdo não está determinado. Considera que é o
“valor supremo” no sistema constitucional, identifica-a com o “princípio estruturante” da
República Portuguesa ou, ainda, com o “princípio da actuação do Estado de Direito”, mas
daqui não resulta uma ideia precisa de conteúdo.
Apesar disso, sempre se dirá que decorre da jurisprudência constitucional
portuguesa um conjunto de ideias que se alinham do seguinte modo:
1º A dignidade da pessoa humana é um valor, a concretizar diariamente, que,
tendo raízes culturais longínquas, continua a aprofundar-se e ampliar-se no seu conteúdo;
2º A dignidade da pessoa humana corresponde a uma compreensão material da
acção do Estado, seja no plano das finalidades do Estado, seja no plano do procedimento,
seja ainda no plano dos meios de actuação, organizatórios e materiais;3º É difícil delimitar os contornos da dignidade da pessoa humana mas, pelo
menos, dela pode retirar-se um conteúdo mínimo de homem ou mulher: alguém que se vê,
a si próprio e aos demais, como um fim, à maneira kantiana. Daí que a dignidade humana
se tenha de sentir afectada sempre que um homem ou mulher seja, no concreto, por uma
qualquer actuação, degradado à condição de objecto.
34. Dignidade da pessoa humana, Constituição e direitos fundamentais
Um passo mais no discurso e teremos agora de retirar as consequências da
compreensão da dignidade da pessoa humana sobre o entendimento da Constituição.
Assim, pergunta-se: uma Constituição que se baseia na dignidade da pessoa humana, tal
como hoje a entendemos, e que é construída para proteger essa mesma dignidade, como
deve ser compreendida?
Pois bem. A Constituição, que institui o Estado, nasce como estatuto organizatório
deste, como forma de disciplinar o político e conferir previsibilidade à sua acção. Acto
fundador do Estado, breve se volve em limite à sua acção, defendendo, neste contexto, a
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pessoa conta agressões, abusos e arbítrio do poder estadual. Nos finais do século XVIII, a
Constituição nasce, assim, como realidade à margem da comunidade, como diploma que
impõe regras aos órgãos do poder político, os estrutura internamente e funciona como
barreira ou muro para potenciais agressões aos cidadãos.
Actualmente, porém, em virtude de ter por fundamento a dignidade da pessoa
humana, com o sentido que lhe é reconhecido, a Constituição deixa de ser compreendida só
como lei fundamental do Estado enquanto organização. Amplia-se materialmente e
assume-se também como lei fundamental da própria comunidade política.
Isto significa que, para além de fixar limites à actuação estadual, defendendo o
cidadão de intromissões do Estado, desde logo na sua vida privada, impõe tarefas ao
Estado, reconhecendo ao cidadão específicos direitos de prestações do Estado.Simultaneamente, impõe deveres aos cidadãos, perante o Estado e perante a comunidade
em que se integra, desde logo deveres de participação política176. Finalmente, a
Constituição disciplina directamente as relações entre os próprios cidadãos, como
expressamente decorre do seu artigo 18º, nº 1177.
A densificação do sentido da Constituição, obtida através da densificação do
conceito de dignidade da pessoa humana, permite nela encontrar as bases do
desenvolvimento económico, social e cultural (para além da organização política doEstado), o catálogo dos direitos fundamentais, concretamente os direitos sociais,
económicos e culturais (para além dos direitos pessoais e políticos) e, bem assim, o
catálogo dos deveres políticos do cidadão (para além do antiquíssimo dever de defesa da
pátria), nomeadamente o dever de defender o ambiente e contribuir para a correcta
ordenação do território.
34.1. Dignidade humana, direitos fundamentais e deveres fundamentais.
A dignidade da pessoa humana, como hoje a entendemos, funciona, assim, como
uma fórmula aberta a novos direitos fundamentais ou à intensificação dos já existentes,
mas funciona também como uma fórmula aberta a novos deveres fundamentais ou à
intensificação dos existentes.
176 Ver o disposto no artigo 65º, no 5 da Constituição da República Portuguesa.177 Ver VASCO PEREIRA DA SILVA, «A vinculação de entidades privadas pelos direitos, liberdades e garantias»
in Revista de Direito de Estudos Sociais, 1987, pp. 259-274; JOSÉ JOÃO NUNES ABRANTES, Vinculação dasentidades privadas aos direitos, liberdades e garantias, X, 1990 e JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Osdireitos fundamentais, Coimbra, 2001 pp. 197 e ss.
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A abertura a novos direitos e o aprofundamento dos existentes está patente, de
forma clara, no nº 1 do artigo 16º da Constituição. E o facto de, no nº 2 do mesmo artigo,
se consagrar o princípio de que os direitos constitucionais e legais devem ser interpretados
e integrados à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem, permite situar os
direitos fundamentais num quadro mais vasto do que o do próprio Estado, tornando osdireitos fundamentais uma dimensão essencial da própria ideia de Direito.
Quanto aos deveres fundamentais, também eles emergentes da dignidade humana,
podemos distinguir várias modalidades. A dos deveres que estão ligados a direitos
(direitos/deveres), ocupando o direito o papel principal – caso do direito à protecção de
saúde e dever de a defender (artigo 64º da Constituição) – , a dos deveres fundamentais
autónomos – caso do dever de pagar impostos (artigos 103º e 104º da Constituição) – , a
dos deveres como dimensão essencial do exercício de um direito – caso do exercício dodireito de sufrágio que constitui um dever cívico178 – e, ainda, a dos deveres/direitos, em
que os deveres ocupam o papel principal – caso do dever de defender a pátria e direito à
defesa da pátria (artigo 276º).
34.2. Dignidade humana e estado de sítio e estado de emergência.
A dignidade da pessoa humana é ainda a ideia agregadora a ter presente na
definição do estado de sítio e do estado de emergência (art. 19º da Constituição) bem comona conformação da Constituição do estado de sítio e do estado de emergência, com vista ao
restabelecimento da normalidade constitucional179.
Com efeito, a distinção entre estado de sítio e estado de emergência, em razão da
maior ou menor gravidade dos pressupostos (art. 19º, nº 3 da Constituição) está
directamente relacionada com os direitos, liberdades e garantias susceptíveis de serem
suspensos.
Por outro lado, a própria declaração do estado de sítio, em virtude de agressão
iminente ao Estado ou de calamidade pública grave, não pode ter como consequência a
suspensão de determinados direitos, nomeadamente o direito à vida, à integridade pessoal,
à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania ou o direito à liberdade de
178 O direito de sufrágio tem duas dimensões: uma que se traduz no direito de votar e participar em eleições eoutra, traduzida no direito a ser eleito, que inclui o direito de se candidatar. Sobre o assunto, G OMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA, CRP – Anotada, artigos 1º a 107º , Coimbra Editora, p. 669.179 Sobre a compreensão da legalidade nos estados de excepção, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, «Constituiçãoex machina» in Revista Direito e Justiça, vol. XIII, tomo I, 1999, pp. 177 e ss..
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consciência. O nº 6 do artigo 19º enuncia o conjunto de direitos fundamentais que, em caso
algum, podem ser suspensos, sob pena de agressão à dignidade da pessoa humana.
E é ainda a dignidade humana que proíbe qualquer aprovação de uma alteração
constitucional em período de estado de sítio ou emergência (artigo 289º da Constituição).
Em suma, mesmo em períodos de perturbação da vida comunitária em que se torna
necessário adoptar regimes jurídicos de excepção, a dignidade humana impõe-se como
valor limite a tendências totalitárias, como valor que proíbe o retorno a vivências históricas
degradantes, como o genocídio étnico ou a escravatura, e, ainda, como valor que impede a
pena de morte, a tortura, os maus tratos.
34.3. Dignidade humana e perspectivas de análise.
A densificação do conteúdo da dignidade da pessoa humana permite, hoje, nele
distinguir três dimensões ou perspectivas de análise: dignidade humana como realidade
intrínseca, como realidade relacional e como realidade aberta a prestações.
Assim, é possível identificar a dignidade humana como realidade intrínseca, como
realidade em si. Desta dimensão emerge, de um lado, o direito ao desenvolvimento da
personalidade como liberdade de conformação e de orientação de vida (artigo 26, nº 1, daConstituição)180, de outro, um princípio fundamental de respeito pelos direitos de
personalidade e, de outro ainda, o direito à identidade pessoal, aquilo que a todos e a cada
um caracteriza como pessoa (artigo 26, nº 1, da Constituição) e se exprime na liberdade de
consciência.
Convém, neste momento, lembrar que a biologia e as novas técnicas da medicina
reprodutiva podem introduzir perturbação no domínio da identidade pessoal, já que, ao
interferirem na identidade genética, interferem na identidade pessoal. Daí que, sendo a
identidade genética um elemento integrante da identidade pessoal, por razões que se
prendem com a dignidade humana, a Constituição tenha de proibir a clonagem de pessoas.
É que a clonagem implica uma duplicação de seres que têm rigorosamente as mesmas
características e que, logicamente, não possuem identidade própria181. O direito à
diferença, momento essencial da identidade pessoal, cujo respeito é exigido pela dignidade
humana enquanto realidade intrínseca, ficaria, assim, em causa, se se permitisse a
clonagem de pessoas.
180 Sobre a matéria, ver, em especial, PAULO DA MOTA PINTO, O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Studia Jurídico, 40, 2000.181 Ver JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, p. 285.
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Ao que vem de ser dito acresce a promoção constitucional, fruto da dignidade
humana, do percurso de realização pessoal. Neste quadro, a Constituição não se limita a
garantir o “desenvolvimento integral” das crianças (artigo 69º, nº 1, da Constituição) e a
integração e participação activa dos deficientes na vida da comunidade (artigo 71º).Assegura também o direito à protecção da família “para a realização pessoal dos seus
membros» (artigo 67º, nº 1), o direito à “organização do trabalho em condições
socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal” (artigo 59º, nº 1 b)),
bem como garante aos pais e às mães a realização profissional e de participação na vida
cívica do país (artigo 68º, nº 1).
Uma segunda dimensão da dignidade humana é a que a configura como realidade
relacional, traduzida numa ideia de reciprocidade. Desta dimensão dimana um sentido dedever para com os outros, numa cadeia de responsabilidades ou deveres públicos, que
desde logo se patenteia na ressocialização dos que acabam de cumprir uma pena de prisão.
O mercado de trabalho deve abrir-se-lhes sem entraves, e a comunidade que, através dos
tribunais, sentenciou a pena de privação da liberdade, deve agora, cumprida a pena,
integrá-lo socialmente, não lhe aplicando informalmente uma segunda pena, desta feita
uma pena de marginalização social. Porque a tanto se opõe a dignidade da pessoa humana.
A situação de potencial marginalização social pode igualmente ocorrer com certotipo de doentes, nomeadamente doentes com sida. Estando identificadas as vias de
transmissão da SIDA, entende-se que a dignidade da pessoa humana proíbe
comportamentos que distanciam as relações pessoais ou fujam à normalidade do contacto
pessoa a pessoa, nomeadamente no mercado de trabalho.
E é ainda a mesma ideia de dignidade humana enquanto realidade relacional que
veda a alienação forçada de órgãos, em especial quando os dadores integram estratos
sociais mais desfavorecidos. Ou ainda impede que as universidades, mesmo as privadas,
proíbam o acesso de estudantes com deficiências motoras, ou que as empresas imponham
como condição para a contratação de trabalhadoras o compromisso de estas não
engravidarem nem adoptarem filhos.
Nesta dimensão relacional da dignidade humana se enquadram ainda, em geral, os
direitos dos consumidores (artigo 66º da Constituição), os direitos dos trabalhadores no
trabalho (artigo 59º da Constituição) e, bem assim, o “espírito de tolerância e da
compreensão mútua” que deve ser promovido no âmbito da educação (artigo 73º, nº 2, da
Constituição).
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Em conclusão, a dignidade humana é da pessoa em relação às demais, daí que a
vinculação aos direitos, liberdades e garantias se não dirija somente ao Estado e demais
pessoas colectivas públicas e sim também aos particulares e entidades privadas (artigo 18º,
nº 1 da Constituição).
A terceira realidade que a dignidade humana convoca é a realidade aberta a
prestações que se dirigem ao Estado e a que este deve dar resposta na condição de tal ser
possível. Estamos, em concreto, a pensar, no conteúdo dos direitos sociais, tais como o
direito à saúde ou o direito à habitação.
34.4. Unidade da dignidade humana e pluralidade de direitos a que dá
forma.
O enriquecimento cultural que a dignidade humana foi sedimentando permite
divisar quatro modalidades de direitos a que foi dando forma, embora a ideia de sistema de
direitos fundamentais, se mantenha, por força da unidade conferida pela dignidade
humana: direitos pessoais, de liberdade ou de não agressão do Estado, direitos de
participação política, direitos a prestações do Estado ou direitos económicos, sociais e
culturais e direitos de qualidade.
34.5. Dignidade da pessoa humana, direitos de liberdade e princípio da
igualdade
Ainda como resultado do enriquecimento cultural permitido pela dignidade da
pessoa humana é possível diferenciar, de um lado, o direito geral de liberdade dos direitos
especiais de liberdade e, de outro, o princípio da igualdade dos direitos especiais à
igualdade.
Assim, enquanto o direito geral de liberdade garante o cidadão face a agressões
abusivas e arbitrárias do Estado, os direitos especiais de liberdade traduzem específico
exercício da liberdade – liberdade de expressão (artigo 37º), liberdade de reunião (art. 45º),
liberdade de associação (art. 46º e 55º), liberdade de manifestação (artigo 45º).
Por seu turno, a igualdade como princípio garante, de um lado, a igualdade perante
a lei -- todos são iguais perante a lei (artigo 13º, nº 1) -- e, de outro, proíbe discriminações
e impõe o dever de diferenciar, já que obriga a que se trate o igual igualmente e o desigual,
desigualmente, na exacta medida da diferença.
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Além disso, os direitos especiais à igualdade integram uma dimensão social de
igualdade e são obrigações de diferenciar para atingir a igualdade pelo que integram o que
é usual chamar “discriminações positivas”. É o caso da especial protecção reconhecida
constitucionalmente às crianças órfãs ou abandonadas (artigo 69º, nº 2), bem como aos jovens para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais (artigo 70º, nº 1).
34.6. Dignidade humana e direito de propriedade
O aprofundamento cultural da dignidade da pessoa humana está ainda patente na
diminuição do peso relativo do direito de propriedade, considerado um direito absoluto e
sagrado nas Constituições ao Estado liberal e na acentuação do peso do direito ao livre
desenvolvimento da personalidade. O respeito pelo “ser” da pessoa ganhou ênfase,ampliou-se, e o respeito pelo “ter” diminuiu de intensidade, desde logo porque a liberdade
de “ser” exige.
As limitações ao direito de propriedade em resultado da defesa dos ecossistemas
com vista à sobrevivência do homem na terra são disso prova evidente. A esta luz, ganha
sentido não só a inserção sistemática do direito de propriedade privada na Constituição –
no artigo 62º, entre os direitos, económicos, sociais e culturais – como a leitura integrada
da garantia do direito de propriedade privada “nos termos da Constituição” contida no nº 2do artigo 62º.
34.7. Dignidade humana e condições mínimas de existência.
Finalmente, a sedimentação cultural de que se fala permite diferenciar, no quadro
dos direitos fundamentais, aqueles que são os pressupostos mínimos de uma forma digna
de estar – direito à vida e à integridade pessoal, bem como o direito à liberdade e à
segurança – e impõe, para o gozo efectivo destes direitos, que sejam mantidas as condições
materiais que permitem o seu gozo (mínimos de subsistência). Falamos, em especial, na
protecção das pessoas com deficiência (artigo 71º, nº 1), no direito das pessoas idosas à
segurança económica (artigo 72º), na definição dos impostos adequados aos encargos
familiares (artigo 67º, nº 2, f)), nas garantias especiais dos salários (artigo 59º, nº 2), no
direito à habitação (art. 65º, nº 1).
34.8. Dignidade humana, pena de morte e extradição.
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Neste contexto, o direito à vida proíbe, de todo em todo, a pena de morte (artigo
24º, nº 2). E o mesmo direito conduz à proibição de extradição por crimes a que
corresponda, segundo a lei do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte
lesão irreversível da integridade física (artigo 33º, nº 6). Com efeito, se a extradição é a
transferência de uma pessoa que se encontra no território de um Estado e sob a autoridadedeste para o território de outro Estado, e a pedido deste último, para aí ser julgada pela
prática de um crime, se não se proibisse a extradição nos casos em que o Estado
requisitante atribui a pena de morte, estar-se-ia, através da extradição, a potencialmente
entregar uma pessoa à morte.
34.9.Dignidade humana e deveres do Estado no plano internacional.
Uma nota final para assinalar o facto de a força propulsora da dignidade da pessoahumana como pilar da construção do Estado determinar para este o dever de tomar
internacionalmente medidas contra a sua violação, ao mesmo tempo que lhe impõe o dever
de contribuir para a formação de um direito internacional fundado neste valor182.
182 Sobre o assunto, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, CRP Anotada, vol. I, p. 200.
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121
II
O princípio do Estado de Direito.
35. A legitimidade da acção estadual e a garantia da realização do direito
pelo Estado. O artigo 2º da Constituição183.
O princípio do Estado de Direito encontra-se consagrado no artigo 2º da
Constituição da República Portuguesa que, por isso mesmo, passou a ser um dos preceitos
constitucionais mais invocados junto do Tribunal Constitucional.
O princípio do Estado de Direito exige que toda a acção do Estado tenha no direitoo fundamento, porque a acção do Estado encontra no Direito o padrão de aferição da sua
validade, o que significa que o Estado se legitima no Direito. O princípio do Estado de
Direito desdobra-se em inúmeros corolários ou subprincípios, nomeadamente:
-princípio da proibição do arbítrio;
-princípio da separação de poderes;
-princípio da tutela da confiança;
-princípio da proporcionalidade;
-princípio da efectivação dos direitos fundamentais.
Tem-se afirmado que a expressão utilizada no artigo 2º da Constituição – “Estado
de direito democrático” – é pleonástica, na medida em que o regime democrático (de uma
democracia representativa plural) corresponde a um Estado de Direito – “o Estado de
direito é democrático e só sendo-o é Estado de direito184. Além disso, afirma-se também
que é uma expressão que pode criar ambiguidades, na medida em que Estado de Direito
democrático parece pretender diferenciar-se de Estado Social de Direito, quando a verdade
é que não é uma realidade distinta. Porquê, então , “Estado de direito democrático”?
Pois a expressão tem raízes históricas – nasce na Assembleia Constituída em 1975
– e só no contexto em que foi criada se justifica. Nessa altura, no período que sucedeu à
Revolução de 25 de Abril de 1974, era importante dar ênfase à democracia política, na
medida em que evidenciava a diferença relativamente ao período anterior. Por outro lado, a
referência à democracia permitia consagrar constitucionalmente como ideia-chave a
garantia de direitos económicos, sociais e culturais, o que, só por si, a expressão “Estado
183 Ver anotações ao artigo 2º da Constituição em JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, ConstituiçãoPortuguesa Anotada... e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, CRP Anotada... 184 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, p. 204.
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de Direito” não abarcava. Finalmente, havia o desejo de afastar do conceito-chave do
Estado o adjectivo “social”, em virtude das conotações ideológicas que, à época, o
marcavam, e que, por isso mesmo, era fracturante no âmbito da comunidade política.
35.1. A proibição do arbítrio como momento integrante do princípio do Estadode Direito. As três matrizes evolutivas do princípio do Estado de Direito.
Na sua vertente de princípio que proíbe o arbítrio e o abuso do poder, o princípio
do Estado de Direito é hoje compreendido num quadro de síntese de três matrizes
evolutivas: a histórica, de raiz anglo-saxónica, conhecida como a matriz da “rule of law”;
a revolucionária, de raiz francesa, suportada pelo princípio da legalidade, e a filosófica, de
raiz alemã, no seio da qual a própria expressão foi gerada (Rechtsstaat).
35.1.1. A raiz anglo-saxónica
Embora muitas vezes se confunda a “rule of law” com o princípio do Estado de
Direito, a verdade é que a expressão “rule of law” é tendencialmente mais ampla, quer
pela capacidade demonstrada em se adaptar à evolução e às diferentes vicissitudes
históricas, quer por significar não só a necessidade de a acção estadual se legitimar no
direito como ainda o meio de acção judicial a utilizar em caso de transgressão – se o
Estado não cumpre o direito, a sua acção pode ser levada a um tribunal, como acontececom a acção violadora da lei de qualquer cidadão.
O princípio da “rule of law” foi forjado ao longo dos tempos, na Inglaterra,
percorrendo a Idade Média, a Moderna e a Contemporânea. Ampliou-se depois aos Estados
que receberam a sua influência, particularmente aos Estados Unidos da América.
Encarna uma evolução sem grandes rupturas sociais e tem expressão em
documentos de respostas a específicos momentos de alargamento desmesurado do poder
régio que o povo soube suster adequadamente – Magna Carta (1215) como resposta à
actuação abusiva de JOÃO S / TERRA e Bill of Rights (1689) como resposta à actuação
abusiva de CARLOS I –, demonstrando saber dosear bem a sua liberdade com a necessidade
de autoridade. A ideia de poder limitado pelo direito fez assim, carreira, sedimentando em
redor das instituições políticas uma confiança que ainda hoje é motivo de admiração para
muitas comunidades políticas.
JOHN LOCKE é, porventura, o Autor que melhor soube compreender e teorizar esta
forma de agir política, vertendo-a numa tese de base contratualista, assente na separação de
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poderes e na defesa, de um lado, de uma “prerrogativa régia” capaz de permitir ao rei agir
em resposta a situações não predeterminadas em lei, em razão do bem comum e, de outro,
no direito do povo “apelar ao céu” para afastar a tirania, sempre que o rei ultrapasse os
seus poderes e se torne um tirano185.
35.1.2.A raiz francesa
Os ideais revolucionários franceses, encarnados na Constituição escrita,
formalizada em lei, podem sintetizar-se em duas realidades distintas: de um lado, a
compreensão da Constituição e, logo, da lei, como garantia – garantia contra o arbítrio do
poder, em razão da consagração dos direitos dos cidadãos, garantia de fins limitados do
Estado, concretamente à administração da justiça e à segurança, interna e externa, e
garantia da actuação limitada do Estado, desde logo em virtude da separação de poderes –e, de outro, o endeusamento da lei, considerada a imagem da racionalidade e da justiça, e
do Parlamento, órgão representativo dos cidadãos186.
Neste ambiente jurídico e político se forma o princípio da legalidade da
Administração Pública. Para tal contribuiu a acção sábia do CONSEIL D’ÉTAT, órgão criado
por Napoleão, em 1799, para aconselhar o Chefe de Estado, e que breve se assume como
órgão de controlo da acção administrativa e conformador da lei administrativa, dando mais
tarde origem a uma justiça administrativa (organização de tribunais administrativos).
Os direitos dos cidadãos formalizados na Constituição apresentam-se, neste
enquadramento de raiz revolucionária francesa, como elementos fundantes de um Estado
que acredita ser possível descansar nessa formalização, na medida em que o Estado se
torna um Estado constitucionalmente limitado. O Estado que tem uma Constituição escrita
é, só por si, um Estado garantido contra o arbítrio187.
Dependente do Governo, a máquina administrativa do Estado só pode agir na base
da lei. Ora, como, no quotidiano da acção administrativa, a Constituição não pode prever
todas as actuações, torna-se necessário criar uma legislação infraconstitucional que
determine previamente os modos de acção da Administração. O Direito Administrativo
nasce em França, por força de uma acção, consultiva e de controlo, do CONSEIL D’ÉTAT, e
nasce como legislação subordinada ao Direito Constitucional, em redor da ideia de que a
185 Para mais desenvolvimentos, MARIA DA GLÓRIA GARCIA, Da justiça…., pp. 328 e ss.186 Tenha-se presente o pensamento rousseauniano, subjacente ao endeusamento da lei: “a lei não é injusta porque ninguém é injusto consigo próprio”.187 No preâmbulo da Declaração de Direitos do Homem pode ler-se “a ignorância, o esquecimento ou odesprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e das corrupções dosgovernos…”
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prossecução do interesse público pelo Estado tem de ter sempre fundamento numa lei
anterior (princípio da legalidade).
O Estado de Direito edifica-se, pois, por sobre a ideia da lei formal – lei
fundamental ou Constituição, num primeiro momento, a lei administrativa, num segundomomento, em qualquer dos casos leis da actuação do poder estadual (direito público). A
impossibilidade de o Estado agir, em qualquer das suas vertentes, sem a predeterminação
da actuação em lei, é uma consequência. Outra consequência será a possibilidade de os
particulares, lesados por acções do poder administrativo nos seus direitos ou interesses
protegidos na lei, poderem dirigir-se a tribunais, solicitando o julgamento do caso. Estes
tribunais, ao aferirem a validade das actuações do poder administrativo, pertencem a uma
hierarquia de tribunais diferente da hierarquia dos tribunais comuns. São tribunais
administrativos.
A institucionalização dos direitos dos cidadãos na Constituição, patente nesta forma
de compreender o Estado de Direito, está longe da compreensão reivindicativa inglesa de
liberdades que impedem o poder político do Estado de se expandir abusivamente e,
logicamente, está longe de uma fórmula tendencialmente igualizadora dos direitos dos
cidadãos aos poderes do Estado, vertida no acesso a uma organização única de tribunais
(não há distinção entre tribunais judiciais e tribunais administrativos), patente na fórmula
inglesa.
35.1.3.A raiz alemã
A Alemanha, pela mão de ROBERT VON MOHL, é o berço da expressão «Estado de
Direito» (Rechtsstaat).
A expressão «Estado de Direito» nasce ligada a um conjunto de doutrinas políticas
para cobrir aquele tipo de Estado que se funda, directa ou indirectamente, no homem;
aquele tipo de Estado em que o homem é ponto de partida e simultaneamente limite da sua
acção; aquele tipo de Estado que é, por isso mesmo, movido e limitado por valores
humanos. O Estado de Direito nasce, assim, como realidade valorativa. Por outras
palavras, não nasce ligado a uma instituição (Constituição), nem nasce ligado à forma que
reveste (forma jurídica), mas nasce ligado a um conteúdo valorativo, aquilo que o faz
projectar-se na acção. Nasce, pois, como Estado de Direito Material.
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Mais tarde, a expressão Rechtsstaat vê evoluir o seu conteúdo, tornando-se uma
ideia força de um certo modelo de Estado, um Estado concreto, nascido com a Revolução
liberal.
Mas a expressão Rechtsstaat só cria raízes quando o seu conteúdo passa a aliar trêsrealidades – homem, sociedade, Estado – e quando acrescenta a estas três realidades a ideia
de que o Estado só intervêm quando a sociedade sozinha não tem forças para desenvolve
as actividades que respeitam ao todo -- acção subsidiária ou supletiva – e, por isso, se tem
de sujeitar ao direito. A expressão traduz, então a ideia de que a sociedade exige do Estado
uma actividade subsidiária da que ela própria desenvolve e que essa actividade tem de
obedecer, por isso de ser uma acção que supre a acção dos homens, a um direito fundado
nos valores humanos.
A partir daqui, a expressão Estado de Direito (Rechtsstaat) evolui ligada aos meios
que permitem concretizar a harmonização entre homem/sociedade/ /Estado (poder
estadual), isto é, evolui em conexão com os meios que tornam jurídica a acção estadual.
Ora esses meios que tornam jurídica a acção estadual são, de um lado, o Direito
Administrativo, enquanto conjunto de normas que definem as relações entre a
Administração estadual e os particulares e, em concreto, a actividade administrativa,
dirigida a fins públicos, e, de outro, os tribunais ou justiça administrativa, enquanto
específicos órgãos a quem os particulares se dirigem solicitando a defesa dos seus direitose interesses fundados na lei, sempre que esta é incumprida pela Administração Pública. O
Estado de Direito Material tende agora a evoluir para um Estado de Direito Formal.
Com a evolução descrita o Direito Administrativo torna-se uma componente
essencial do Estado de Direito. Não basta existir uma Constituição para garantir o cidadão
contra abusos do poder estadual. É necessário um direito de proximidade, que regula o
concreto agir do Estado e sua Administração. Esse direito é o Direito Administrativo.
Por sua vez, a subordinação necessária do Direito Administrativo à Constituição
permitiu a formulação, por FRITZ WERNER, da muito comentada afirmação: “O Direito
Administrativo é Direito Constitucional concretizado”.
35.2. A separação de poderes como momento integrante do princípio do
Estado de Direito. O artigo 111º da Constituição.
A vinculação do Estado à lei e ao direito bem como a ideia de que o incumprimento
da lei e do direito permite o recurso aos tribunais está subjacente às três matrizes
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evolutivas enunciadas, o que significa, sob outro enfoque, que às referidas três matrizes
subjaz a compreensão separada dos poderes do Estado.
Na verdade, em qualquer das linhas evolutivas encontramos uma referência mais ou
menos directa à separação orgânica de poderes (Parlamento/Governo e suaAdministração/Tribunais)188, à separação material de poderes (legislativo/
/administrativo/judicial) 189, a separação funcional de poder es (legislar/
/administrar/julgar)190, à separação institucional de poderes (lei/acto
administrativo/sentença).
A separação de poderes dos órgãos de soberania encontra-se consagrada na
Constituição da República Portuguesa, no artigo 111º, sob a epígrafe “Separação e
interdependência de poderes”:«1. Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência
estabelecida na Constituição.
2. .....»
A consagração constitucional do princípio organizatório básico do poder político,
trave mestra do Estado de Direito, tem hoje o sentido de separar funções entendidas como
diferentes, ordenar essas funções equilibradamente, e distribuí-las por órgãos distintos,
com vista a optimizar as tarefas do Estado e tornar o Estado mais eficiente na acção de
alcançar as finalidades inscritas na Constituição. Não interessa tanto evidenciar a facetareivindicativa de “dividir para enfraquecer” nem tão-pouco enfatizar a fonte única do
poder (povo), no seu desdobramento funcional, mas muito mais modelar uma fórmula que
equilibre adequadamente a actividade de diferentes órgãos, enquanto se exigem para se
completarem, sem que daí decorram sobreposições ou vazios de poder ou actuação.
A separação de poderes permite individualizar funções pelos órgãos de soberania e,
em concreto, distribuir competências. Assim, a competência do Presidente da República
está prevista nos artigos 133º e ss. da Constituição, a competência da Assembleia da
República está enunciada nos artigos 161º e ss. da Constituição, a competência do Governo
encontra-se definida nos artigos 197º e ss. e a dos tribunais nos artigos 202 e ss..
188 Falamos aqui em separação dos órgãos de soberania instituídos pela Constituição, uma estruturaçãoorgânica que implica que as principais funções de soberania são separadas pelos diferentes órgãosconstitucionais. No caso português, esses órgãos de soberania são o Presidente da República a Assembleia daRepública, o Governo e os Tribunais. A soberania é definida pela referência orgânica.189 Falamos aqui nos diferentes poderes que integram o poder soberano e que, no caso português, são o poderpolítico-moderador do Presidente da República, o poder legislativo da Assembleia da República e do
Governo, o poder administrativo do Governo e sua Administração e o poder judicial dos tribunais.190 Neste caso, está em causa a individualização das funções fundamentais do poder político. A competênciados órgãos de soberania é definida pela sua referência funcional.
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Mas a Constituição não garante só a separação de poderes. Consagra, ainda, a
interdependência de poderes (artigo 111º da Constituição).
A interdependência de poderes está patente em três momentos distintos. Em
primeiro lugar, no sistema de governo – semi-presidencialismo –, no âmbito do qual areferida interdependência se projecta através de uma rede de relações recíprocas dos órgãos
de soberania. Em segundo lugar, está patente na distribuição da função legislativa por dois
órgãos de soberania distintos, concretamente a Assembleia da República e o Governo191.
Finalmente, está patente na necessidade de intervenção de vários órgãos de soberania no
exercício de certas competências, como é o caso da declaração do estado de sítio e do
estado de emergência192 e o caso da nomeação e demissão dos titulares de certos órgãos 193.
A separação e interdependência dos poderes através dos critérios orgânicos efuncional, consagrada na Constituição e tornada elemento essencial do princípio do Estado
de Direito, permite a construção da teoria do núcleo essencial. De acordo com esta teoria,
um qualquer órgão de soberania não pode esvaziar as funções materiais específicas que
foram atribuídas constitucionalmente aos outros órgãos de soberania. Por outro lado,
nenhum órgão de soberania pode transferir para outro órgão de soberania as competências
que lhe foram constitucionalmente atribuídas194. Em qualquer dos casos, se fosse possível
o referido esvaziamento ou a referida transferência o resultado seria a subversão do
princípio da separação de poderes e, logo, a violação do princípio do Estado de Direito.
35.3. A proporcionalidade como momento integrante do princípio do Estado
de Direito
Outro dos elementos estruturantes da ideia de Estado de Direito é a
proporcionalidade, pelo que o princípio da proporcionalidade, também designado princípio
da proibição do excesso, se pode afirmar como sendo um dos corolários em que se
desdobra o princípio do Estado de Direito195. A dimensão material do princípio da
proporcionalidade está estritamente ligada ao regime dos direitos, liberdades e garantias
(ver o disposto no artigo 18º, nº2, da Constituição196).
191 Ver, em especial, o disposto no artigo 165º e no art. 198º da Constituição.192 Ver, em especial, artigos 19º, 134º d), 138º, 161º l) e 197 f) da Constituição.193 Ver, em especial, o artigo 133º da Constituição.194 Ver o disposto no artigo 11º, nº 2 da Constituição.195 Sobre o assunto, JORGE REIS NOVAIS, Os princípios constitucionais estruturantes da República
Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, p. 161.196 Sobre o assunto, JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, anotaçãoaos artigos 2º e 18º.
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O princípio da proporcionalidade pode ser encarado sob uma de três vertentes:
necessidade ou exigibilidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.
De acordo com a vertente necessidade, quaisquer limitações aos direitos, liberdades
e garantias, para serem correctamente determinadas, devem apresentar-se como necessárias
em razão dos fins a alcançar (fins que têm de coincidir com valores constitucionalmenteconsagrados, pois só esses permitem a limitação de direitos, de tal modo que não é
possível alcançar tais fins por outros meios menos onerosos.
Já a vertente adequação expressa a ideia de que as referidas limitações aos direitos
liberdades ou garantias devem revelar-se como formas ou meios adequados à prossecução
dos fins ou valores constitucionalmente protegidos.
Finalmente, a vertente proporcionalidade em sentido estrito aponta para a
proporcionalidade entre meios e fins, por outras palavras, as medidas da restrição a
direitos, liberdades e garantias não podem ser excessivas, antes proporcionais aos fins aatingir.
Tenha-se, porém, presente que, por sobre ou para além do princípio da
proporcionalidade, e em virtude do disposto na Constituição (artigo 18º, nº3), nenhuma
restrição a um direito, liberdade ou garantia pode afectar o respectivo núcleo essencial.
35.4. A tutela de confiança como momento integrante do princípio do Estado
de Direito.
Um outro elemento essencial do princípio do Estado de Direito é a tutela da
confiança. Pode mesmo afirmar-se que a confiança é o fecho do Estado de Direito. Sem a
garantia da confiança, o Estado de Direito não se cumpre.
Num certo sentido, o Estado de Direito é aquele em que o tecido social se entretece
na confiança de que todos cumpram o direito – Estado e cidadãos –, na confiança de que há
meios jurídicos capazes de evitar abusos e arbítrios, provenientes quer da actuação do
poder estadual quer de um qualquer membro da comunidade e, ainda, na confiança de que,
se não for possível evitar esses abusos e violações, há meios jurídicos de os combater.
A confiança como momento integrante do Estado de Direito traz à memória o
compromisso medieval assumido entre o monarca e os súbditos no momento do juramento
de fidelidade – “só o rei fiel tem súbditos fiéis”. E, tal como nessa época, se, hoje, se
rompe a confiança, a consequência é a ruptura da própria Constituição e do Estado de
Direito que nela se funda.
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35. 5. A efectivação dos direitos fundamentais como momento integrante do
princípio do Estado de Direito (artigo 2º, in fine, da Constituição)
A consagração do Estado de Direito que nasce ligado à garantia de direitos
pessoais, viu esse elenco ampliado aos direitos políticos, aos direitos sociais, económicos eculturais e, recentemente, aos direitos de qualidade. Essa ampliação implicou, como se viu
já, um alargamento de finalidades do Estado, decorrentes de uma forma aprofundada de
compreender a democracia. O Estado de Direito não visa só garantir os direitos pessoais e
os direitos de participação política, visa também, e desde logo, a realização da democracia
social, económica e cultural (artigo 2º, in fine, da Constituição).
Se o princípio do Estado de Direito, enfatiza a sujeição do poder estadual a
princípios e regras jurídicas e a garantia de acesso a tribunal quando tais princípios ouregras são violadas, transmitindo aos cidadãos a confiança na actuação das instituições
estaduais, enquanto os defende contra o arbítrio, a prepotência, o abuso; se o princípio do
Estado de Direito democrático evidencia a soberania popular (artigos 2º e 3º, nº 1, da
Constituição) e a vontade popular (artigo 1º da Constituição), como fonte do poder político
– os titulares do poder político são eleitos por sufrágio universal, igual, directo e secreto
(artigo 10º da Constituição) e o referendo é uma forma de exercício do poder político
(artigos 10º, 115º e 240º da Constituição) –, o mesmo Estado de Direito acentua hoje
também a promoção do desenvolvimento económico, social e cultural, procurando corrigirdesigualdades sociais e satisfazer prestações sociais, bem como permitindo uma melhor
qualidade de vida aos cidadãos.
Em suma, a realização do princípio do Estado de Direito implica a ideia de um
caminho a percorrer, um caminho no sentido de uma crescente justiça social, o que se
alcança através da efectivação dos direitos fundamentais. A garantia de concretização, em
especial, dos direitos económicos, sociais e culturais leva a que se fale num Estado Social
de Direito.
35.5. 1. Em especial, a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais
A análise, em particular, do artigo 9º, al. d) e, depois, dos artigos 58º e ss, todos da
Constituição, mostra estar o Estado, por força da Constituição, sujeito ao cumprimento de
inúmeras tarefas, em razão de pretensões jurídicas que expressamente reconhece aos
cidadãos. Por outras palavras, as normas que consagram direitos a prestações são normas
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impositivas de legislação197. A assunção de uma especial responsabilidade política e
jurídica de definir o que deve ser feito – actividade legislativa de definição das condutas
que traduzem a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais corresponde a um
dever de legislar – é depois desenvolvida na actividade administrativa “prestativa” –, mas
deve desde já realçar-se que a definição dessas tarefas não obedece a uma só forma. Pelocontrário. No quadro da Constituição, são várias as alternativas de realização possíveis, o
que significa que o legislador tem, no exercício da sua competência e sempre nos limites
constitucionais, liberdade de conformação. Isto sem prejuízo de, no concreto, se poder
extrair do conteúdo do direito constitucionalmente consagrado um mínimo imposto pela
dignidade da pessoa humana. Neste caso, deixa de haver liberdade de conformação do
legislador. O legislador passa a ser obrigado a definir condutas de preenchimento do
conteúdo mínimo do direito. Salvaguardada, porém, esta situação, a opção que, em cada
momento, o legislador toma no sentido de definir a conduta prestativa do Estado, é oresultado de uma decisão democrática, inserida num programa político aprovado na eleição
para a Assembleia da República.
Sendo as normas constitucionais consagradoras de direitos sociais normas
impositivas de legislação, se o legislador nada fizer no sentido da sua concretização, dentro
da liberdade de conformação que lhe assiste, é possível delimitar uma situação de omissão
legislativa inconstitucional, a fiscalizar pelo Tribunal Constitucional (artigo 283º da
Constituição).
As alternativas que, em cada momento, se colocam ao legislador com capacidade
de concretização são temporalmente adaptadas às condições humanas, técnicas e
financeiras disponíveis, e à hierarquização que delas se faz – a satisfação de cuidados de
saúde, a definição de estratégias de protecção em caso de desemprego, a concretização de
programas de elevação de pensões de reforma e de invalidez não podem, porventura,
realizar-se simultaneamente. Têm de se estabelecer prioridades, hierarquias..., tudo em
razão da verificação das condições que permitem a realização dos direitos, no
enquadramento que lhes é dado pelos programas políticos que mereceram o voto
maioritário em eleições.
Os direitos sociais são, assim, entendidos como «direitos sob condição do
possível», isto é, direitos cuja integral efectivação demanda condições financeiras, recursos
humanos e meios técnicos capazes de responder às solicitações que neles se integram.
Exemplo do que se afirma está presente no nº 1 do artigo 65º da Constituição enquanto
197 Sobre a matéria, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais..., Almedina, 2004, pp. 387e ss..
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garante o direito a “uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e
conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
Regra geral, os direitos da socialidade têm natureza universal, mas há casos em que
tais direitos se dirigem só a certos grupos. Pretende-se, desta forma, ir ao encontro dasnecessidades do homem concreto, inserido socialmente, como trabalhador (artigo 59º da
Constituição), como jovem (artigo 70º da Constituição), como deficiente (artigo 71º da
Constituição), ou, mais amplamente, como consumidor (artigo 60º da Constituição).
35.5.2. A garantia do princípio do Estado de Direito na sua dimensão Social
Garantir um Estado de Direito aberto à “socialidade” significa ter presente, de um
lado, a garantia de liberdade individual, patenteada na democracia política e inerentevontade popular, e, de outro, a garantia de uma actuação prestacional do poder político em
direcção a fins – democracia social, económica e cultural.
A garantia do princípio do Estado de Direito na sua dimensão social renova-se
permanentemente no quotidiano do Estado mas evidencia-se de um modo particular nos
momentos eleitorais, quando os partidos apresentam os seus programas de acção ao voto
popular. As escolhas políticas, feitas em liberdade, reconhecem prioridades à acção, às
quais os titulares do poder político se devem manter fiéis, sendo julgados pelo que tiveremrealizado nas eleições subsequentes. Isto sem prejuízo da responsabilidade jurídica
decorrente de eventual omissão legislativa inconstitucional, detectada na sequência de
fiscalização feita pelo Tribunal Constitucional, ou de omissão de actuação administrativa,
detectada na sequência de fiscalização feita por um tribunal administrativo.
35.5.3. O princípio do Estado de Direito, na sua vertente Social, hoje:
privatização de funções públicas, crescente apelo a parcerias público-privadas, auto-
regulação social e realização do Estado de Direito.
O recente movimento no sentido de transferir para os privados o exercício de
funções públicas, até agora empreendidas pelo Estado – caso da privatização das funções
notariais –, bem como no sentido de permitir que as prestações sociais possam ser
desenvolvidas por empresas privadas – caso das escolas e universidades privadas e dos
hospitais privados –, ou ainda de reconhecer aos privados a capacidade de conceber,
desenvolver e financiar projectos de obras públicas (parcerias público-privadas) – caso da
Ponte Vasco da Gama ou da auto-estrada do Oeste – coloca, de forma premente, a questão
de saber como é que o Estado Social de Direito hoje se compreende.
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O gigantismo da máquina organizatória administrativa de um Estado Prestador de
Serviços, característico da segunda metade do século XX198, tem vindo a ser substituído
por um Estado cada vez mais organizatoriamente exíguo, o que coloca a questão de saber
se a Constituição Social de Direito se está a cumprir ou se, pelo contrário, se impõe umarenovação da questão constitucional enquanto questão social.
Esta a questão a que urge responder, desde logo interrogando se a força expansiva
da interpretação da Constituição permite absorver as diferenças que a realidade dos factos
nos apresenta, sem se subverter.
Neste particular, uma via de resposta pode estar na reinvenção de um conceito
velho, o conceito de «serviço público», a que o direito comunitário tem vindo a dar vidanova, quer definindo o conceito de serviços públicos essenciais, traçando para eles um
regime jurídico particular, quer definindo aquilo a que chama “obrigação de serviço
público”, em qualquer dos casos reconhecendo aos Estados a responsabilidade última pela
correcta efectivação dos direitos fundamentais na área económica, social e cultural. O que
vem de dizer-se permite compreender o movimento de desestruturação organizacional e
funcional do Estado, na sua vertente administrativa, no sentido da privatização de funções
públicas ou tarefas de prestação social, económica e social, como um movimento que
mantém no Estado a responsabilidade última pela função ou pelas concretas prestações.
Mas se esta é uma reinterpretação e uma reinvenção do Estado de Direito na sua
vertente de Estado Social, então isso significa, de um lado, o aumento das tarefas de
controlo, policiais, do Estado sobre a actuação dos privados e, de outro, a abertura para
uma permanente acção de monitorização da própria comunidade sobre a sua acção e sobre
a avaliação das tarefas desenvolvidas, tendo em vista os objectivos pré-fixados e que se
responsabilizaram a alcançar eficientemente e com elevada qualidade de serviço final.
198 Sobre a organização administrativa e a sua ligação à compreensão do Estado e dos direitos fundamentais,MARIA DA GLÓRIA F.P.D. Garcia, «Organização Administrativa», in Dicionário Jurídico de AdministraçãoPública, vol. VI, Lisboa, 1994, pp. 235 e ss..
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133
III
O princípio do acesso ao direito.
36. A garantia do acesso ao direito, a tutela jurisdicional efectiva e o apoio
judiciário (artigo 20º, nº 1 da Constituição).
Preceitua o artigo 20º, nº 1, da Constituição:
«A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus
direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de
meios económicos.
Decorre deste preceito a consagração, na lei fundamental, do princípio do acesso ao
direito. Este desdobra-se em três vertentes fundamentais: garantia de acesso ao direito
(“direito ao direito” como sugestivamente afirmou a filósofa HANNAH ARENDT), direito de
acesso aos tribunais ou tutela jurisdicional efectiva e apoio judiciário, em caso de a
insuficiência de meios económicos poder impedir o acesso aos tribunais e a uma tutela
jurisdicional efectiva.
36.1. O direito de aceder ao direito ou à protecção jurídica.
36.1.1. O direito de aceder ao direito. A defesa de direitos subjectivos perante
o Estado
Se o Estado incumpre um contrato de fornecimento de material de escritório que
celebrou com uma empresa privada ou interrompe, sem justificação legal, a atribuição de
uma pensão de reforma ou, ainda, se ordena o embargo ou a paralisação de obras de
reconstrução de um edifício invocando a ausência de uma licença que a lei não exigia, os
destinatários da acção do Estado são afectados nos seus direitos. A inércia ou a actuação do
Estado agridem ilegitimamente os direitos de terceiros.
A primeira questão que se coloca é a da identificação do direito lesado ou a
caracterização da situação como violadora do direito. Isto porque só depois da
identificação da lesão ou da caracterização da violação da lei é possível configurar a
reacção adequada à lesão ou conformar uma defesa específica do direito, junto das
entidades ou órgãos com competência para resolver o problema jurídico tal como se
apresentou na realidade dos factos. Se quem é afectado na sua esfera jurídica não sabe que
o foi, isto é, desconhece que tem o direito e que este foi afectado, de que lhe vale ter o
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direito? Não vai reagir juridicamente nem sequer procurar ajuda para a reacção. Tudo por
desconhecimento da existência mesma do direito.
A questão do conhecimento do direito é, assim, uma questão prévia à específica
reacção a uma sua eventual lesão.
Mais. Só se todos conhecerem os seus direitos se pode dizer que a igualdade está
garantida na ordem jurídica. Se uns conhecem e outros não, os primeiros terão vantagens
sobre os segundos, serão, em razão da informação, privilegiados.
Além disso, aqueles que conhecem os seus direitos podem usar a sua liberdade,
desde logo escolhendo, em razão da lesão ao direito, se reagem ou não reagem à lesão. Ora
esta escolha entre reagir ou não reagir é impossível para quem desconhece a existência dodireito e a possibilidade que tem em reagir à lesão. São por isso menos livres, dado que a
inércia, para eles não é fruto de uma opção, antes o resultado da ignorância sobre os seus
direitos.
Em suma, o direito de aceder ao direito não é um direito instrumental em relação ao
direito eventualmente lesado. Inere a esse direito, pertence-lhe, já que sem ele o conteúdo
mesmo do direito não pode ser exercido. É um direito que todos devem possuir em
igualdade, independentemente da existência ou não da lesão. É o direito de conhecer odireito, já que o conhecimento deste é, independentemente da lesão, uma garantia de
igualdade e de liberdade, e, em si, confere segurança a quem o possui.
36.1.2. O direito de aceder ao direito. Os interesses legalmente protegidos.
Mas o direito de aceder ao direito ou o direito à protecção jurídica (direito ao
direito) não abrange somente a esfera dos direitos subjectivos – direito a uma pensão de
reforma, direito do contraente privado ao cumprimento pelo Estado do que está estipulado
no contrato, direito do proprietário de um bem não ser dele confiscado pelo Estado....
Abrange também os interesses objectivamente protegidos por lei em benefício específico
de um grupo (interesses legalmente protegidos).
Tenham-se presentes as normas procedimentais num concurso público. A violação
de uma dessas normas pela Administração estadual não envolve a afectação dos direitos
subjectivos dos candidatos ganharem o concurso. Porém, como essas normas
procedimentais foram definidas com o objectivo de garantir a correcção da escolha do
melhor candidato, em todos os concursos que se pautarem por essas regras, reconhece-se a
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todos os candidatos o direito de exigir, em tribunal, o cumprimento dessas normas legais.
Os concorrentes ou candidatos têm um interesse, protegido por lei, ao cumprimento dessas
normas legais, um interesse que, se a norma for violada, é afectado, e, sendo afectado, lhes
permite ir a tribunal e obter deste a protecção desse seu interesse.
36.1.3. O direito de aceder ao direito. Os interesses difusos.
Há bens jurídicos que não têm titulares pré-definidos. É o caso do ambiente e o
caso do património cultural. No entanto, a sua defesa é obtida através da definição de
inúmeras normas que impõem comportamentos aos seus destinatários, todos em defesa dos
bens em causa. Se tais normas forem violadas sem que, em concreto, uma pessoa tenha
sido lesada num seu direito ou num interesse legalmente protegido, quem defende o
cumprimento da lei e os interesses difusos por seu intermédio protegidos?
Há autoridades públicas, como é o caso do Ministério Público, que têm por tarefa a
defesa da legalidade democrática (artigo 219º, nº 1, da Constituição). Mas o legislador
constituinte quis ir e foi mais longe na defesa da lei que protege determinados valores
constitucionais, como o ambiente e o património cultural. Criou, por isso, o direito de
acção popular (artigo 52º, nº3, da Constituição), tornando cada cidadão garante desses
valores jurídicos constitucionais.
Ora, também aqui, o conhecimento do direito (o acesso ao direito) fortalece a
cidadania, cria coesão na comunidade e torna todos os cidadãos participantes da construção
do Estado. O conhecimento do direito é fundamental para a defesa da lei e dos interesses
difusos e, logo, também, do bem jurídico que aquela visa proteger.
Em suma, a garantia de defesa da legalidade, em razão de certos bens de valia
superlativa, implicou a consagração constitucional do direito de acção popular199. Mas,
também aqui, é importante ter informação e conhecimento jurídico para poder identificar
as situações que envolvem lesão do ordenamento jurídico e permitir aos cidadãos (a todos,
em igualdade e em liberdade) o exercício do direito de acção popular.
36.1.4. O direito de aceder ao direito. A defesa dos direitos subjectivos perante
os outros particulares.
199 Ver artigo 52º, nº 3 da Constituição que garante o direito de acção popular para, além do mais, promover
a prevenção, cessação ou perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dosconsumidores, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e o patrimóniocultural.
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O direito de acesso ao direito para protecção dos direitos ou interesses defendidos
por lei não se circunscreve à actuação do Estado nas diferentes modalidades em que o seu
poder se desdobra – legislativo, administrativo, judicial. Abrange, ainda, a actuação dos
outros particulares, sempre que o relacionamento intersubjectivo é juridicamente fundado.
Com efeito, o relacionamento intersubjectivo é muitas vezes fundado no direito. O
âmbito das relações contratuais é paradigmático, mas o das relações de vizinhança, o das
relações familiares ou das relações sucessórias, o das relações comerciais e o das relações
de trabalho, etc., são outros onde o direito está presente. O direito de aceder ao direito
revela-se aqui, também, fundamental, para garantir a igualdade entre os cidadãos e a sua
liberdade de exercer ou não os direitos de que são titulares.
36.1.5. O direito de aceder ao direito (conclusão)
O direito de aceder ao direito está constitucionalmente garantido no artigo 20º e,
por seu intermédio, como se viu, garante-se a igualdade dos cidadãos e a sua liberdade,
através do exercício efectivo desses direitos.
O direito de acesso ao direito consiste, em conclusão, no direito a estar informado
sobre a existência do direito, o direito de o conhecer e ao ordenamento jurídico, de modo a
permitir que cada um exerça, em liberdade, os seus direitos e possa reagir juridicamente, seassim o entender.
Para que se torne efectivo num plano de igualdade, sem que a condição social ou
cultural dificulte ou impeça o respectivo gozo, é necessário promover, junto dos cidadãos,
um conjunto de acções traduzidas na facilitação de informação jurídica e no
aconselhamento jurídico por técnicos do direito (serviços de consulta jurídica). Porque só
depois de conhecer o direito, de estar informado sobre a sua existência, se pode falar na
existência da liberdade de decidir se pretende fazer valer o direito e da liberdade de
escolher a defesa desse direito entre os meios que o ordenamento jurídico disponibilizar200.
Se não há informação sobre a existência do direito, de pouco vale possui-lo, porque
inexiste a liberdade de decidir sobre a possibilidade de o defender.
36.2. O direito de acesso aos tribunais ou tutela jurisdicional efectiva.
Conhecida a existência do direito ou da norma legal e verificada a violação da
norma ou a afectação do direito, é garantido o direito de acesso aos tribunais ou tutela
jurisdicional efectiva.
200 Ver, para mais desenvolvimentos, a Lei nº 3/2004, de 29 de Julho, designada Lei de Apoio Jurídico.
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O direito de acesso aos tribunais desdobra-se, por sua vez, em vários outros
direitos, nomeadamente o direito de acção, o direito ao processo, o direito a um processo
equitativo, o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, o direito a
providências cautelares, o direito de execução da sentença judicial e, em certos casos, o
direito de recurso.
36.2.1. O direito de acção.
O direito de acção está ligado ao direito subjectivo lesado – a todo o direito
corresponde uma acção em tribunal201. O direito de acção consiste no direito de levar uma
pretensão ao conhecimento dos tribunais e determina a abertura de um processo.
No âmbito das acções contra o Estado, o Código de Processo nos Tribunais
Administrativos define, desde logo, a acção comum e a acção especial, para cada uma
delas definindo várias modalidades de pedidos. Em processo administrativo podem dirigir-se ao tribunal pedidos de declaração de ilegalidade de normas regulamentares, pedidos de
declaração de nulidade de actos administrativos, pedidos de reconhecimento de direitos
emergentes de contratos, pedidos de condenação à prática de actos administrativos ou ao
pagamento de quantias202...
36.2.2. Direito ao processo.
Exercido o direito de acção, este gera o diálogo. Os tribunais têm o dever de
resposta à pretensão que lhes foi dirigida. Não podem invocar o desconhecimento da lei, oexcesso de trabalho nem a ausência de conhecimentos técnicos para delinear ou configurar
uma resposta203. Não podem proferir um non liquet. São obrigados a responder, dando por
isso origem a um processo. Quem propõe uma acção em tribunal tem, pois, direito ao
processo – direito ao processo.
36.2.3. Direito a um processo equitativo.
Ter direito ao processo não significa, porém, ter direito a um qualquer processo.
Significa ainda ter direito a um processo equitativo204.
201 Ver o artigo 2º, nº 2, do Código de Processo Civil: «A todo o direito, excepto quando a lei determine ocontrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo...». Também o artigo 2º, nº 2 doCódigo de Processo nos Tribunais Administrativos: «A todo o direito ou interesse legalmente protegidocorresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos...»202 Cfr. artigo 2º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA eCARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos,2ª edição revista, 2007, p.27 e ss.203 Os crimes informáticos, por exemplo, envolvem graus elevados de complexidade técnica mas nem porisso os tribunais se podem eximir a dar origem a um processo e a proferir, no final, uma sentença. Ver, emespecial, a Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro, conhecida como a Lei do Cibercrime, que estabelece as
normas penais, materiais e processuais, bem como as relativas à cooperação internacional em matéria penal,relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico.204 Para mais desenvolvimentos, ver GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, p. 415.
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O processo equitativo obedece a requisitos especiais, nomeadamente a garantia de
acesso ao processo, a garantia do contraditório, a garantida de igualdade de armas das
partes envolvidas..., tudo com vista à obtenção da decisão justa.
36.2.4. Direito à obtenção de uma decisão judicial dentro de prazos razoáveis.A resposta a dar pelo tribunal à pretensão formulada, consubstanciada numa
decisão judicial, não pode demorar mais tempo do que o que se entende ser, em razão da
complexidade do caso, o tempo razoável. Significa isto que o direito de acesso aos
tribunais determina a obtenção de uma decisão dentro de prazos razoáveis, já que uma
justiça que chega tarde não pode considerar-se justa. Porque o tempo justo da decisão
judicial integra a materialidade da decisão. Faz parte da sua justiça intrínseca.
36.2.5. Direito à definição de providências cautelares.
Acresce-se que há, muitas vezes, necessidade de solicitar ao tribunal que adopte
providências cautelares, de modo a assegurar a utilidade da decisão final do processo. As
providências cautelares são medidas decretadas pelo juiz para, em regra, regular
provisoriamente o litígio presente ao tribunal, permitindo que a decisão judicial tenha
utilidade.
Na verdade, em certas situações, se não forem definidas judicialmente medidascautelares (seja a suspensão da eficácia de um acto administrativo em recurso seja a
admissão provisória de um concorrente a um concurso ou de um candidato a um exame,
cuja legalidade se contesta) a garantia do direito que, a final, seja obtida, através do
processo, de pouco servirá205.
Suponha-se que foi ilegalmente recusada a matrícula na universidade a um
estudante. Proposta a acção em tribunal com vista à anulação do acto de recusa, se não se
adoptar uma providência cautelar que permita ao aluno frequentar, como ouvinte, as aulas,
no final do processo judicial, se obtiver provimento, esta de pouco lhe servirá porque
entretanto perdeu o ano escolar. Daí que o tribunal, a pedido do proponente da acção, possa
proferir uma providência cautelar para garantia do direito em litígio, permitindo a
frequência das aulas ao estudante. Suponha-se também o caso da interrupção ilegal de uma
pensão de reforma, único meio de subsistência de quem a recebe. Não basta ao titular do
direito à pensão recorrer ao tribunal e solicitar o reconhecimento do seu direito à pensão.
Torna-se também necessário solicitar uma providência cautelar no sentido de o visado
205 Ver MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código deProcesso nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista, 2007, pp.645 e ss., anotação ao artigo 112º.
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continuar a receber uma pensão que lhe garanta a subsistência, até ser proferida a decisão
judicial.
O direito a providências que acautelam o direito que se pretende fazer valer em
juízo integra, por isso, o direito a uma tutela judicial efectiva.
36.2.6. Direito à execução da sentença.
Por sua vez, o direito de acesso aos tribunais ou o direito à tutela jurisdicional
efectiva implica que, obtida a sentença, esta seja executada, a fim de concretizar o direito
nela definido, o que significa que deve ser desenvolvida a actividade dirigida à execução
da sentença proferida pelo tribunal.
Com efeito, se a execução da decisão judicial não for assegurada, esta pouco
préstimo terá. O que se afirma tem especial importância quando quem tem de executar a
sentença é o próprio Estado, já que do seu lado tem a força policial. Mas se não forpossível forçar o Estado a cumprir a sentença que contra ele foi proferida não se pode falar
em direito a uma tutela jurisdicional efectiva. Daí ser tão importante o direito à execução
da sentença.
O exercício do direito à execução da sentença pode, inclusivamente, exigir um
novo processo em tribunal, o processo de execução de sentença206.
36.2.7. Direito a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer
autoridade.Previsto expressamente no nº 2 do artigo 20º da Constituição, o direito a fazer-se
acompanhar por advogado perante qualquer autoridade representa a garantia de uma
melhor defesa (porque técnica) dos direitos. O direito «a não estar só na defesa dos
direitos»207.
36.2.8. Em certos caso, o direito ao recurso ou ao duplo grau de jurisdição.
Não estando expressamente consagrado na Constituição, parece que deve entender-
se que, em matéria de direitos, liberdades e garantias, o duplo grau de jurisdição integra o
direito da tutela jurisdicional efectiva.
Em certos casos, está igualmente garantido o direito de recurso, isto é, o direito a
um duplo grau de jurisdição.
206 Ver, em particular, sobre a execução das sentenças dos tribunais administrativos, DIOGO FREITAS DO
AMARAL, A execução das sentenças dos tribunais administrativos, Almedina, 1997, e MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição, Almedina, 2007, comentários aos artigos 157º e ss., e, em geral, MÁRIO ESTEVES
DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos e
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Anotados, vol. I, Almedina, 2004, anotação ao artigo 2º,pp. 107º e ss.207 JJ GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, p. 412.
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36.3. O direito de apoio judiciário ou a impossibilidade de denegação de
justiça por insuficiência de meios económicos.
O direito de acesso aos tribunais pode, porém, ser meramente teórico se não estiver
garantido um sistema de apoio em caso de insuficiência de meios económicos. É que, ao
contrário de outros serviços públicos208, a Constituição não garante o acesso gratuito aostribunais nem, mesmo, um acesso tendencialmente gratuito. Daí que, em caso de falta ou
insuficiência de meios económicos para defesa dos seus direitos, a Constituição tenha
garantido aos cidadãos209 o apoio judiciário, a fim de permitir a efectivação do direito de
acesso aos tribunais.
O apoio judiciário tem diferentes modalidades. Pode traduzir-se na dispensa, total
ou parcial, de taxas de justiça210 e de outros encargos com o processo211. Pode consistir no
pagamento de honorários do patrono ou advogado, no pagamento de honorários ao
defensor oficioso e no pagamento de remuneração do solicitador de execução nomeado.O conceito de “insuficiência de meios económicos” é considerado um conceito
relativo, porquanto indissociável do valor das custas e demais encargos com o processo e,
bem assim, do pagamento ao advogado (patrocínio judiciário)212. O requerimento de apoio
judiciário é apresentado nos serviços da segurança social pessoalmente, por telecópia, por
via postal ou por via electrónica213.
37. A organização dos tribunais. Os artigos 209º e seguintes da Constituição
O princípio do acesso ao direito, nas diferentes dimensões em que se desdobra,conduz sempre à defesa dos direitos subjectivos ou do ordenamento jurídico através dos
tribunais.
Com efeito, os tribunais têm por função, constitucionalmente definida, administrar
a justiça em nome do povo, sendo esta função desdobrada na defesa dos direitos e
208 O ensino básico universal é constitucionalmente obrigatório e “gratuito” – artigo 74º, nº 2 a) – e o serviçonacional de saúde é consagrado na Constituição como “tendencialmente gratuito” – artigo 64º, nº 2, a).209 Para além dos cidadãos nacionais e da União Europeia, podem beneficiar de apoio judiciário os
estrangeiros e apátridas com título de residência válido num Estado membro da União Europeia e osestrangeiros que, não tendo este título, no entanto os respectivos Estados, através das suas leis, atribuam aosportugueses idêntico direito ao apoio judiciário (caso de reciprocidade). As pessoas colectivas têm tambémdireito ao apoio judiciário.210 Estas taxas pretendem cobrir o serviço público de administração da justiça. São fixadas em função de umatabela legal cuja base é o valor económico da acção.211 Fala-se em encargos com o processo quando estão em causa, por exemplo, o reembolso de despesasadiantadas para pagamento de pareceres a peritos ou para pagamento de plantas topográficas ou outros meiosde informação ou prova que têm de ser elaboradas para o processo, etc..212 Ver, neste particular, o acórdão citado em JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, p. 181. Aí se conclui que o apoio judiciário é “aferido tendo em conta os custos concretosde cada acção e a disponibilidade da parte que a solicita, não estando excluído que seja concebido, em maiorou menor medida, a cidadãos com capacidade económica bem superior à média, se o valor da causa assim o
justificar”.213 Para mais desenvolvimentos, ver o regime jurídico do apoio judiciário, aprovado pela Lei nº 34º/2004, de29 de Julho.
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interesses legalmente protegidos dos cidadãos, na repressão da violação da legalidade
democrática e na resolução do conflito de interesses, públicos e privados (artigo 202º, nºs 1
e 22 da Constituição).
Ora, se assim é, convém ter uma visão panorâmica, ainda que breve, da
organização dos tribunais em Portugal.O fundamental da orgânica dos tribunais está previsto nos artigos 209º e seguintes
da Constituição. Destes dispositivos constitucionais decorre não ser o sistema judicial
português um sistema unitário, porquanto compreende várias categorias de ordens de
tribunais. Além disso, podem retirar-se destes preceitos três princípios fundamentais: o
princípio da pluralidade de tribunais, o princípio da hierarquia dos tribunais e o princípio
da especialização material dos tribunais.
37.1. Princípio da pluralidade de tribunais São várias as categorias de ordens de tribunais, separados de forma mais ou menos
estanque. Assim, para além dos tribunais judiciais, considerados tribunais comuns, a
Constituição prevê tribunais especializados.
Entre os tribunais especializados encontram-se os tribunais administrativos e
fiscais, que aplicam o direito administrativo em geral e os direitos administrativos
especiais – direito de urbanismo, direito da segurança social, direito do ambiente… – e o
direito fiscal214.
O Tribunal de Contas é outro tribunal especial (artigo 214º da Constituição)215
,caracterizado por ter funções híbridas, de tribunal e de órgão de controlo, desde logo das
contas do Estado, sendo o seu Presidente nomeado pelo Presidente da República. É uma
categoria de tribunais só com um tribunal.
O Tribunal Constitucional, também uma categoria de tribunais só com um tribunal,
é outro tribunal especial. Nasce com a revisão constitucional de 1982, sucedendo à
Comissão Constitucional, órgão constitucional sem poder decisório, nascido da versão
originária da Constituição em 1976 – os conselhos da Comissão Constitucional tinham de
ser homologados pelo Conselho da Revolução para produzirem efeitos.
A Constituição prevê ainda, no artigo 209º, nº2, a possibilidade de existirem
tribunais marítimos, com competência em matéria de transporte marítimo e em matéria de
acções de responsabilidade por danos provocados ou sofridos por navios216 , tribunais
214 Sobre estes tribunais, ver MARIA DA GLÓRIA F.P.D. GARCIA, Do Conselho de Estado ao SupremoTribunal Administrativo, 2ª edição, Lisboa, 2006.215 A lei orgânica do Tribunal de Contas consta da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, alterada e republicada pelaLei nº 48/2006, de 29 de Agosto. As raízes do Tribunal de Contas estão na Casa dos Contos que ardeu após oterramoto de 1755. Nasce então o Erário Régio (D. José) que dá lugar ao Tesouro Público no período liberal.O Tribunal de Contas surge em 1849, tendo sido substituído pelo Conselho Superior de Finanças em 1911.
Em 1930, é de novo substituído pelo Tribunal de Contas.216 Há tribunais marítimos em Lisboa, Leixões, Ponta Delgada, Funchal. São tribunais especializados eintegram os tribunais judiciais.
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arbitrais, que se constituem, em regra, para a resolução de um litígio específico, por
vontade expressa das partes, desmembrando-se de seguida, podendo também constituir-se
como tribunais permanentes (caso dos tribunais de pequenos delitos de consumo) e
julgados de paz. Os julgados de paz são tribunais com características especiais: são
competentes para a resolução rápida e a baixo custo de causas de valor reduzido, denatureza cível, excluindo as questões de Direito de Família, Direito das Sucessões e Direito
do Trabalho217.
Durante a vigência de estado de guerra são constituídos tribunais militares com
competência para julgar crimes de natureza militar (artigo 213º da Constituição).
Uma palavra ainda para os tribunais de conflitos, previstos no artigo 209º, nº 3, da
Constituição. Estes tribunais constituem-se para resolver conflitos de competência,
negativos (p. ex., os tribunais administrativos julgam-se incompetentes para decidir um
caso e, do mesmo modo, os tribunais comuns julgam-se incompetentes para o decidir) oupositivos (p. ex., os tribunais administrativos e os tribunais comuns julgam-se
materialmente competentes para decidir o mesmo caso) e desmembram-se após proferirem
a decisão sobre o conflito que os fez nascer.
37.2. Princípio da hierarquia dos tribunais
De acordo com este princípio, a organização dos tribunais comuns e dos tribunais
administrativos é hierárquica.
Os tribunais judiciais (artigo 209º e 210º da Constituição) são constituídos portribunais de 1ª instância, espalhados pelas comarcas do território nacional – tribunais da
comarca – e, nestes, juízes de direito decidem por intermédio de sentenças –, por tribunais
de 2ª instância – Tribunais da Relação – Lisboa, Porto, Coimbra, Guimarães e Évora –, e,
nestes, juízes desembargadores decidem os processos através de acórdãos e, no topo da
hierarquia, por um Supremo Tribunal de Justiça, onde juízes conselheiros decidem os
processos através de acórdãos (artigo 209º, nº 1 a) da Constituição).
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é eleito pelos respectivos juízes (art.
210º, nº 2, da Constituição).
Os tribunais administrativos e fiscais estão também hierarquizados e em três níveis:
os tribunais administrativos de círculo – são 16 os tribunais administrativos de círculo –,
217 Decidem acções de valor não superior a 3.740,98€, seja de responsabilidade civil contratual e extra-contratual, seja de arrendamento urbano, seja acidentes de viação. Há actualmente 20 julgados de paz emPortugal. Os conflitos levados ao conhecimento dos julgados de paz podem ser resolvidos por mediação (forma simples e participativa de resolver o litígio em que um mediador de conflitos auxilia as partes aalcançar um acordo – acordo de mediação) ou por julgamento, realizado por um juiz de paz. Pode recorrer-se
da sentença do juiz de paz para os tribunais comuns, em concreto para o tribunal da comarca respectiva. Vera Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, a lei sobre a organização, competência e funcionamento dos julgados depaz. Sobre os julgados de paz, JAIME OCTÁVIO CARDONA FERREIRA, Julgados de paz
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Tribunais Centrais Administrativos – Sul (sede em Lisboa) e Norte (sede no Porto) – e um
Supremo Tribunal Administrativo.
O Presidente do Supremo Tribunal Administrativo é eleito de entre e pelos
respectivos juízes (art. 212º, nº 2, da Constituição).
37.3. Princípio da especialização material dos tribunais
Os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria cível (Direito da Família,
Direito das Obrigações, Direito Sucessório...) e criminal e exercem jurisdição em todas as
matérias não atribuídas a outras ordens jurisdicionais – daí serem considerados tribunais
comuns (art. 211º, nº 1, da Constituição). Na primeira instância pode haver tribunais com
competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias
determinadas (art. 211º, nº 2, da Constituição) – tribunais de família, tribunais do
trabalho…Todos os demais tribunais são especializados em razão da matéria.
Assim, os tribunais administrativos e fiscais têm competência para julgar as acções
e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações
jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212º da Constituição).
Por sua vez, o Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade
das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei entender submeter-lhe. Em
especial, compete-lhe dar parecer sobre a Conta do Estado e sobre as contas das Regiões
Autónomas dos Açores e da Madeira, bem como efectivar a responsabilidade porinfracções financeiras (artigo 214º da Constituição).
Quanto ao Tribunal Constitucional, é competente para administrar a justiça em
matéria de natureza jurídico-constitucional e, em especial, apreciar a inconstitucionalidade
e a ilegalidade nos termos dos artigos 277º e seguintes da Constituição. Compete-lhe ainda,
entre outras matérias, verificar a morte e declarar a incapacidade física do Presidente da
República, verificar a perda do cargo deste, julgar, em última instância, a regularidade e a
validade dos actos do processo eleitoral218.
Em estado de guerra, como vimos, são constituídos tribunais militares. Estes têm
competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar (artigo 213º da
Constituição)219.
38. Estatuto constitucional dos tribunais
Enquanto órgãos de soberania, os tribunais têm um estatuto próprio, directamente
definido na Constituição. Esse estatuto integra a independência dos tribunais, o direito dos
tribunais a serem coadjuvados por outras entidades, a obrigatoriedade de fundamentarem
218 Ver elenco de competências definidas no artigo 223º, nº 2, da Constituição.219 Registe-se, porém, que, como regra, são proibidos os tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes (artigo 209º, nº 4).
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as suas decisões que não sejam de mero expediente, a obrigatoriedade das decisões dos
tribunais para todas as entidades, públicas e privadas, a prevalência das decisões dos
tribunais sobre as de quaisquer outras autoridades e o princípio da publicidade.
38.1. A independência dos tribunais De acordo com o disposto na Constituição, os tribunais gozam de independência e
estão apenas sujeitos à lei (artigo 203º da Constituição).
A garantia de independência dos tribunais tem por objectivo defender estes órgãos
de soberania da ingerência dos demais órgãos de soberania do Estado e, assim, melhor
salvaguardar os direitos dos cidadãos perante actuações abusivas e arbitrárias do próprio
Estado. Por isso a independência dos tribunais e dos seus juízes não é só um momento
essencial do princípio do acesso ao direito mas, mais amplamente, uma garantia
fundamental de realização do princípio do Estado de Direito. Não admira que as leis derevisão constitucional não possam deixar de respeitar a independência dos tribunais (artigo
288º, al. m, da Constituição)).
Acresce que a garantia de independência dos tribunais não diz somente respeito à
relação entre os tribunais e os demais poderes do Estado. Diz respeito também a cada
tribunal. Por outras palavras, os tribunais são independentes uns dos outros, pois se entende
que cada tribunal é, em si, um órgão de soberania. Isto significa que, sem prejuízo das
relações de hierarquia dos tribunais e, bem assim, da necessária cooperação entre os
tribunais enquanto órgãos que administram a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1), ostribunais são independentes entre si, não recebendo ordens dos tribunais superiores nem
sendo por estes alvo de influência.
A exclusiva obediência dos tribunais à lei (artigo 203º da Constituição) e, em
especial, à lei fundamental, implica que todo e qualquer tribunal, nos feitos submetidos a
julgamento, não possam aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os
princípios nela consignados (artigo 204º da Constituição). A função jurisdicional
empreendida pelos tribunais integra, assim, o juízo de apreciação da conformidade
constitucional da lei que pretendem aplicar ao caso que lhes foi submetido a julgamento.
38.2. Direito dos tribunais à coadjuvação das outras autoridades.
O direito dos tribunais à coadjuvação das outras autoridades (artigo 202º, nº 3, da
Constituição) implica não só que os tribunais possam pedir ajuda às outras autoridades
públicas, incluindo os demais tribunais, para o exercício das suas funções jurisdicionais,
como o correspectivo dever de estas lhes prestarem o apoio que lhes tenha sido solicitado.
Este direito dos tribunais a serem coadjuvados pelas outras autoridades não engloba
o direito dos tribunais à colaboração dos particulares. Porém, o dever de colaboração dos
particulares relativamente aos tribunais decorre da ideia de Estado de Direito democrático.
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O dever de colaborar com os tribunais é, para os particulares, um dever cívico. Por outras
palavras, os cidadãos devem cooperar com os tribunais – como testemunhas, como
peritos… – na sua função de administração da justiça.
38. 3. A fundamentação das decisões dos tribunais. A fundamentação das decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, é
garantia constitucional (artigo 205º, nº 1). E pode mesmo afirmar-se ser esta garantia
momento essencial do princípio do acesso ao direito e do próprio princípio do Estado de
Direito, porquanto traduz razão de ponderação da decisão, a sua legitimação intrínseca e,
mesmo, garantia do direito ao recurso. Porque só conhecendo a motivação da decisão –
seja através da exposição completa dos factos seja das razões de direito que a justificam –
se avalia a racionalidade da decisão, se compreende a sua bondade e se pode ponderar a
hipótese de exercício do direito de recurso, quando exista.
38.4. A obrigatoriedade das decisões dos tribunais para todas as entidades,
públicas ou privadas
As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades, públicas e
privadas (artigo 205º, nº 2, da Constituição). É uma consequência dos tribunais serem
órgãos de soberania, e pode também dizer-se que é uma garantia do princípio do acesso ao
direito, porquanto se entende que, por seu intermédio, não há autoridades imunes às
decisões dos tribunais. Todas as entidades lhes devem obediência.
38.5. A prevalência das decisões dos tribunais sobre as de quaisquer outras
entidades
Quanto à prevalência das decisões dos tribunais sobre as de quaisquer outras
autoridades (artigo 205º, nº 2, da Constituição), resultante dos tribunais serem órgãos de
soberania, é, de igual modo, uma garantia do princípio do acesso ao direito, uma vez que
desta garantia resulta não poder um qualquer outro poder do Estado, nomeadamente o
legislativo, sobrepor a sua acção à função jurisdicional e, por essa via, esvaziar de sentido a
decisão jurisdicional.
38.6.Princípio da publicidade
O princípio da publicidade das audiências dos tribunais, consagrado no artigo 206º
da Constituição, que se amplia à publicidade das decisões dos tribunais, traduz um reforço
de garantias dos cidadãos, capaz de permitir um acompanhamento pela comunidade do
modo de administrar a justiça, já que os tribunais administram a justiça em nome do povo.
Há, porém, razões que, sendo invocadas perante o tribunal, o podem levar, em face
da realidade concreta dos factos, a decidir a exclusão da publicidade. Estas razões
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encontram-se previstas (garantidas) na Constituição – salvaguarda da dignidade das
pessoas e da moral pública e salvaguarda do normal funcionamento da justiça (artigo
206º). Só essas podem conduzir ao afastamento da publicidade das audiências, pelo que
específicos interesses públicos não possam hoje ser invocados para afastar essa
publicidade.
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IV
Princípio da participação política dos cidadãos
39. Princípio da participação política dos cidadãos
O princípio da participação é o fundamento da democracia política e a chave do
Estado de Direito.
Com efeito, dispõe o nº1 o artigo 48º da Constituição: «Todos os cidadãos têm
direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país,
directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos».
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V
Princípio da transparência
40. Princípio da transparência
Directamente relacionado com o princípio da participação dos cidadãos na vida
pública, o princípio da transparência impõe ao Estado e às demais entidades públicas o
esclarecimento objectivo dos actos que pratiquem, para que as escolhas políticas possam
ser conscientemente feitas. Ao mesmo tempo, obriga o Governo e outras autoridades a
prestar as informações acerca da gestão dos assuntos públicos, tudo para que o controlo
democrático da acção político-administrativa possa ser adequadamente feito pelos cidadãos
e seus legítimos representantes e a formação das suas escolhas democráticas sejaempreendida de modo esclarecido.
O que enunciámos resulta claramente do disposto no nº 2 do artigo 48º da
Constituição, quando dispõe: «Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos
objectivamente sobre os actos do estado e demais entidades públicas e de ser informados
pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos».
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VI
Princípio da responsabilidade
41. Princípio da responsabilidade. Origem.
Da vigência do princípio «The king can do no wrong» à assunção ampla do
princípio da responsabilidade civil do Estado, particularmente nas vertentes de exercício da
função político-legislativa e da função administrativa, nos termos em que se encontra
presente no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa de 1976220 e, em suaconcretização, na Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro221, decorreram anos, décadas,
séculos de vivência da modernidade. Um período longo de transformação da cultura
político-estadual, de crescente maturidade democrática, de contínuo aprofundamento do
sentido do direito.
O que hoje consideramos «natural», concretamente solicitar e obter uma
indemnização do Estado por actuações ilícitas e culposas dos que exercem o poder
estadual, das quais resultam consequências danosas para terceiros, foi durante muito tempoconsiderado uma impossibilidade, tão simplesmente porque se entendia que fazia parte da
ideia mesma de soberania estadual, identificada com a soberania régia, a infalibilidade.
Não era admissível que o rei ou o poder estadual cometesse erros, provocasse danos e
tivesse de compensar quem os sofreu na sua esfera jurídica222. E, mesmo depois das
revoluções liberais, o princípio da irresponsabilidade do Estado se manteve no quadro da
acção administrativa, com EDOUARD LAFFERIÈRE a defender ser «próprio da soberania
impor-se a todos sem compensações»223.
Entre um princípio e o outro está toda uma evolução na forma de conceber o poder
político e o legitimar. Está uma compreensão teórica que vai desconstruindo um conceito
220 O artigo 22º da Constituição dispõe: «O Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades ou garantias ou prejuízo para outrem». 221 O artigo 7º deste diploma já foi alterado pela Lei nº 31/2008, de 17 de Julho.222 No quadro, porém, das relações patrimoniais entre o Estado e os particulares, entendia-se que o Estadopudesse ser responsabilizado, apelando a uma figura especialmente criada para o efeito, o Fisco. Sobre oassunto, MARIA DA GLÓRIA F. P. D. GARCIA, Da justiça administrativa em Portugal. Sua origem e evolução,
1994, pp.
223 Traité de la jurisdiction administrative et des recours contentieux,
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fechado, autocrático, de poder, numa sociedade hierarquizada, para logo o reconstruir num
quadro alargado de poder, aberto e partilhado, um poder democrático fundado na dignidade
da pessoa humana, só por seu intermédio adquirindo sentido.
Daí que, reflectir sobre a génese e o desenvolvimento das ideias jurídico-políticas eo seu reflexo na lei é reflectir sobre o homem, é compreendê-lo na sua vivência
comunitária, no desejo de uma sempre maior qualidade de vida, o que, hoje, sabemo-lo
pela via do cientista António Damásio, não corresponde a algo dependente da sua vontade,
antes à sua natureza. «O custo de uma existência melhor consiste na perda da inocência
acerca da própria existência. O sentir daquilo que acontece é a resposta a uma questão
que nunca colocámos e é também a moeda da transacção faustiana, que nunca
poderíamos ter feito. Foi a natureza que a fez»224.
41.1. Responsabilidade civil do Estado. Aspecto gerais.
Enquanto instituto jurídico, a responsabilidade é passível de vários qualificativos.
Falamos de responsabilidade política dos órgãos estaduais, que procura efectivar o
controlo democrático do exercício do poder; falamos de responsabilidade criminal, de
responsabilidade contra-ordenacional, bem como de responsabilidade disciplinar,
qualquer delas procurando alcançar finalidades de prevenção geral, geral ou especial, e de
repressão de comportamentos violadores da lei e do direito, e falamos de responsabilidadecivil, que busca, fundamentalmente, a reparação de danos causados a outrem no decurso de
actividades desenvolvidas225. O princípio da responsabilidade a que nos referimos diz
respeito à responsabilidade civil do Estado.
Assim, lembramos que, no desenvolvimento das suas múltiplas actividades, o
Estado se projecta de diferentes modos e, desde logo, aqueles que são os seus tradicionais
modos de agir, concretamente, legislando, administrando, julgando. De todos podem
decorrer prejuízos para terceiros e todos podem redundar em responsabilidade do Estado.
41.2. Constituição e responsabilidade civil do Estado pelo exercício das suas
funções
A construção da República Portuguesa sobre a dignidade da pessoa humana, como
vimos, não só fixa o fundamento da acção do Estado como impõe limites a essa acção. A
224 O sentimento de si. O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América,
2000, p. 359.225 MARCELO REBELO DE SOUSA E ANTÓNIO SALGADO MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, D. Quixote, 2008, p. 11.
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dignidade humana, na sua individualidade irredutível, isto é, a dignidade do homem e da
mulher em concreto, sobrepõe-se à própria vontade popular e, ao mesmo tempo, determina
uma particular concepção da soberania.
Não causa, por isso, admiração verificar que, na Parte I da Constituição, dedicadaaos direitos e deveres fundamentais, concretamente no artigo 22º, figure a consagração, em
termos amplos, do princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entidades
públicas226 . Dele decorre estar toda a acção do Estado e, em concreto, a política, a
legislativa, a judicial e a administrativa, sujeita ao princípio227 .
Dele decorre também estar abrangida pelo princípio não só a acção do Estado
como a omissão dessa acção, quando devida. «O Estado e demais pessoas colectivas
públicas são civilmente responsáveis... por acções ou omissões praticadas no exercício dassuas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e
garantias ou prejuízos para outrem».
Dele decorre ainda, em razão da sua inserção sistemática e dos moldes como se
expressa, a configuração de um direito do particular lesado à reparação com uma
dimensão muito ampla228. A responsabilidade civil do Estado não é, assim, formulado
como um mero princípio organizatório, antes como um instituto fundamental à protecção
da pessoa sobre que o Estado assenta..Daí que a norma do artigo 22º da Constituição devaser compreendida como uma norma directamente aplicável por força dos artigos 17º e 18º,
nº 1, da mesma Constituição, assumindo-se como um direito de natureza análoga aos
direitos, liberdades e garantias, beneficiando, por isso, do seu regime.
Finalmente, dele decorre que a responsabilidade civil do Estado e demais entidades
públicas, constitucionalmente garantida, não se circunscreve à gestão pública, abrangendo
ainda a gestão privada.
226 O disposto no actual artigo 22º corresponde, sem mais, ao disposto no nº 1 do artigo 21º da versãooriginária da Constituição227 Não se esquece que o artigo 165º, nº 1, al. s), ao delimitar o âmbito das matérias da reserva decompetência legislativa da Assembleia da República, refere apenas «responsabilidade civil da Administração», mas a verdade é que o artigo 22º não se circunscreve ao «exercício da funçãoadministrativa», antes abrangendo todas as funções do Estado. Aliás, tempos houve em que se pretendeulimitar o princípio às actividades administrativas, como aconteceu com a proposta de Constituição deFrancisco Sá Carneiro, em 1980, tendo tal proposta sido afastada. Por outro lado, tenham-se presentes osartigos 117º, nº 1, 216º, nº 2 e 271º da Constituição, que, ao densificarem o princípio da responsabilidadecivil do Estado, constante do artigo 22º, afastam toda a polémica sobre o âmbito constitucional daresponsabilidade civil do Estado. Sobre a matéria, JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS, Constituição Anotada..., p. 211.228 O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 45/99 já concluiu neste sentido, isto é, no sentido daconfiguração de um direito do particular à reparação a partir do que dispõe o artigo 22º da Constituição.
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Mas controvérsia existe quanto a saber se o normativo constitucional integra a
responsabilidade pelo risco e, bem assim, a indemnização de sacrifício. Entendemos, em
face da leitura cruzada deste normativo com o disposto no artigo 62º, nº 2 da Constituição,
que prevê a expropriação por utilidade pública e impõe o «pagamento de uma justa
indemnização», uma responsabilidade objectiva, por actos lícitos, e, bem assim, com a
referência expressa no artigo 22º ao regime da solidariedade, que a responsabilidade civil
objectiva não está abrangida pelo preceito, o que não significa que o apelo ao princípio da
interpretação conforme à Constituição permita, em caso de omissão legislativa, perante
uma lesão decorrente de lei, invocar a existência de um direito do particular à reparação229.
Registe-se, ainda, neste plano jurídico-constitucional em que nos situamos, a
referência à solidariedade da obrigação de indemnizar.
A Constituição consagra a responsabilidade civil do Estado e demais entidades
públicas «...em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou
agentes», acrescentando que as «acções ou omissões» que envolvem a responsabilidade
são as «praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício...». A
referência à solidariedade traduz, em nosso entender, a vontade de plasmar na Constituição
uma particular concepção do Estado e da sua organização. Por outras palavras, o apelo ao
regime da solidariedade não pretende proteger, de um modo mais efectivo, o direito doparticular à indemnização do dano que sofreu. Pretende-se, sim, apelar à maior diligência
de todos quantos trabalham no Estado, na prossecução das funções que lhes estão
legalmente cometidas. Pretende-se, sim, incutir uma maior responsabilidade aos que
exercem a sua actividade no âmbito do Estado. Por isso se estabelece um paralelo entre a
norma contida no artigo 22º e a do artigo 271º, nº 1, ambos da Constituição. E daí também
que se não deva interpretar o disposto no nº 1 do artigo 157º como afastando dos deputados
o dever de diligência, tornando-os menos responsáveis230, desde logo por os isentar de
responsabilidade civil pelos votos ou opiniões que emitam231.
Mas se o regime da solidariedade da obrigação de indemnizar implica que se
procure individualizar quem, em concreto, agiu ilicitamente ou devia ter agido e não agiu,
isso não significa que o normativo constitucional não garanta o direito à indemnização dos
229 Sobre a matéria, JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS, Constituição Anotada 230 Sobre a responsabilidade política, PEDRO LOMBA, Teoria da responsabilidade política, Coimbra Editora,2008.231 Dispõe o nº 1 do artigo 157º da Constituição o seguinte: «Os Deputados não respondem civil, criminal oudisciplinarmente pelos votos ou opiniões que emitirem no exercício das suas funções». Este artigo vem
reproduzido no artigo 10º do Estatuto dos Deputados, aprovado pela Lei nº 7/93, de 1 de Março, entretantovárias vezes alterada.
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danos resultantes do mau funcionamento dos serviços, das faltas anónimas, dos vícios de
organização. A exigência de protecção do particular e a definição do direito à reparação
estão suficientemente densificados constitucionalmente para não afastarem a conclusão a
que se chegou.
Este o ambiente constitucional em que se inscreve hoje o regime jurídico da
responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas. Foram, porém, necessários
mais de 30 anos para que a legislação ordinária o reflectisse e desenvolvesse o conteúdo
das normas constitucionais. À interrogação sobre a razão deste tão longo silêncio duas
respostas podem ser dadas. A primeira reside no facto de a matéria da responsabilidade
civil do Estado se encontrar definida num diploma inovador à época em que entrou em
vigor, o Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, que, por isso mesmo,
sobreviveu à ruptura revolucionária do Estado e este vigente, democracia, mais de 30anos232. A segunda resposta decorre do que antes referimos sobre a aplicação directa do
disposto no artigo 22º da Constituição, que permitia aos juízes garantir a tutela do direito
fundamental dos particulares à reparação dos danos causados pela acção do Estado e
demais entidades públicas.
O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO
E DEMAIS PESSOAS COLECTIVAS PÚBLICAS
§ 1.
A RESPONSABILIDADE POLÍTICA
DOS TITULARES DOS ÓRGÃOS POLÍTICOS DO ESTADO.
1. Historicamente, a responsabilidade política nasceu com a passagem do poder do
monarca para o Parlamento e foi encarada como uma responsabilidade ministerial ou
governamental, cujo fim último residia na possibilidade de afastamento de um Ministro ou
do Governo. Esta responsabilidade nasceu na Inglaterra do final do séc. XVIII, traduzida
no dever de um ministro se demitir sempre que perdesse a confiança política do
Parlamento — ainda que inicialmente estivesse ligada à ameaça de perseguição penal pela
prática de qualquer ilícito.
232 O Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, tem o seu âmbito de aplicação dirigido ao Estado,sendo complementado, à época, pelo disposto nos artigos 366º e 367º do Código Administrativo e, mais
tarde, pelos artigos 96º e 97º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro, que aprovou o estatuto das autarquiaslocais.
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Hoje em dia, a caracterização da responsabilidade política tem sido debilitada por
uma série de factores, tais como a constitucionalização dos partidos políticos e a
governamentalização dos Parlamentos (dominados pelo partido que forma o Governo).
Desta forma, a responsabilidade política começou a canalizar-se para os actos eleitorais,
nos quais os cidadãos eleitores demonstram a sua confiança num Governo/maioriaparlamentar.
Por fim, assinale-se hoje o fenómeno do aproveitamento político da
responsabilidade jurídica, no qual as sanções jurídicas tendem a ganhar contornos de
responsabilidade política. Em certos casos, aliás, admite-se uma concorrência de
responsabilidade política e jurídica. Este fenómeno acentuou-se sobretudo por força da
crescente importância dos meios de comunicação social.
2. No que se refere à Constituição Portuguesa, a responsabilidade política decorre,desde logo, da dupla dependência do Governo em face do Presidente da República e da
Assembleia da República.
Assim, a subsistência do Governo depende do Presidente da República, que pode
demiti-lo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das
instituições democráticas (cfr. n.º 2 do artigo 195.º da CRP).
Por outro lado, a subsistência do Governo depende ainda da Assembleia da
República, perante a qual ele é politicamente responsável, nomeadamente através da não
rejeição do programa do governo, da aprovação de moções de confiança e da nãoaprovação de moções de censura [cfr. alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 195.º da CRP].
Dentro do Governo, assiste-se também ao fenómeno de responsabilidade política
dos Ministros perante o Primeiro-Ministro, a quem prestam esclarecimentos sobre a sua
acção governativa (cfr. n.º 2 do artigo 191.º da CRP), e de responsabilidade política dos
Secretários e Subsecretários de Estado perante o Primeiro-Ministro e o respectivo Ministro
(cfr. n.º 3 do artigo 191.º da CRP).
Por fim, dentro dos ministérios ainda se assiste a este fenómeno de
responsabilidade política dos titulares de órgãos nomeados politicamente por um Ministro
ou Secretário de Estado, a qual se efectiva perante quem os nomeou.
3. Aspecto fundamental deste regime de responsabilidade política reside no facto de
um sujeito poder ser politicamente responsável por um acto de outro sujeito. É,
designadamente, o que se passa com os ministros: no interior dos seus ministérios, os
Ministros são responsáveis pelos actos de todos os seus subordinados.
Em concreto, do seu poder de direcção e organização do seu ministério retira-se um
dever de zelar pela actuação de todos os seus subordinados, de modo a evitar que estes
adoptem condutas que possam conduzir à sua responsabilidade política (responsabilidade
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in vigilando). Aqui, tem particular importância a responsabilidade pelos actos dos órgãos
cujos titulares o próprio Ministro nomeou (responsabilidade in eligendo).
Por fim, note-se que a responsabilidade dos membros do Governo (Primeiro-
Ministro, Vice-Primeiro-Ministro, Ministros, Secretários e Subsecretários de Estado) é
solidária (cfr. artigo 189.º da CRP).
§ 2.
A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO POR ACTOS DANOSOS
PRATICADOS NO EXERCÍCIO DAS SUAS FUNÇÕES. O ARTIGO 22º DA CRP.
2.1. O reconhecimento da responsabilidade civil extracontratual dos poderes
públicos.4. A responsabilidade civil extracontratual tem em vista reintegrar a esfera jurídica
de um particular, em virtude de um dano que lhe foi causado por uma actuação imputável
ao Estado ou a outra pessoa colectiva pública.
Ora, a construção da ideia de responsabilidade do Estado e demais poderes públicos
foi feita de forma lenta e gradual. Efectivamente, aquando do surgimento do Direito
Público e da construção do Estado, foram aventados dois grandes argumentos contra a
possibilidade de responsabilidade destas entidades:
(i) A um tempo, a ideia de soberania do Estado; e(ii) A outro tempo, a personalidade colectiva do Estado.
Em qualquer dos casos, entendia-se que estas ideias eram incompatíveis com a
responsabilidade civil extracontratual dos poderes públicos.
5. A primeira ideia vinha afirmada na máxima “the king can do no wrong” e tinha
subjacente as ideias da origem divina do poder do monarca. Assim, entendia-se que um
poder soberano, porque supremo na ordem interna, não podia ser limitado por qualquer
forma, incluindo, pois, através de uma acção de responsabilidade civil extracontratual: a
principal característica da soberania residia, por isso, no poder de impor qualquer conteúdo
a todos os cidadãos, sem necessidade de os compensar.
Quanto à segunda ideia, baseando-se a responsabilidade civil extracontratual na
ideia de “culpa”, era conceptualmente difícil enquadrar este fenómeno com a
personalidade colectiva, na medida em que esta, por natureza, não conhecia uma vontade a
que fosse imputável a culpa.
6. Ainda assim, a irresponsabilidade dos poderes públicos não era total, admitindo-
se desde cedo (mormente, a partir do séc. XIX) que pudesse haver possibilidade de o
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Estado-Administração responder pelos designados actos de gestão privada, porquanto
destituídos de qualquer poder de autoridade (logo, sem qualquer veste de soberania).
Na mesma linha de raciocínio, ainda no séc. XIX começou a admitir-se a
possibilidade de se responsabilizarem as autarquias locais pelos seus actos, na medida em
que estas entidades (infra-estatais) não possuíam qualquer poder que se possa designarcomo soberano.
Estas brechas na ideia de irresponsabilidade do Estado tinham como pano de fundo
um Estado Liberal, cuja actividade e intervenção social e económica eram muito limitadas
— tornando, por isso, menor a possibilidade de se gerar um dano na esfera jurídica dos
particulares.
7. Já no final do séc. XIX, dois novos argumentos foram invocados para se admitir
com maior latitude a responsabilidade civil extracontratual dos poderes públicos: de umlado, o advento do princípio do Estado de Direito; de outro lado, o princípio da igualdade,
na sua vertente de igualdade perante os encargos públicos.
Com efeito, o Estado Liberal é já um Estado limitado pelo Direito, no qual os
poderes públicos estão organizados de uma determinada forma e se encontram vinculados
ao Direito, devendo actuar em conformidade com o disposto na Constituição e na lei —
sem que a violação do Direito pudesse ficar impune.
Por outro lado, o princípio da igualdade perante os encargos públicos tinha presente
a asserção de que se o Estado devia promover o interesse público, devia fazê-lo onerandouniformemente os contribuintes. Assim, se se impunha um sacrifício especial a um cidadão
em concreto, devia-se compensá-lo pela desigualdade criada na sua esfera jurídica.
Por fim, saliente-se ainda que por esta altura a jurisprudência e a doutrina
(sobretudo civilista) superaram o dogma da irresponsabilidade das pessoas colectivas,
admitindo genericamente a sua responsabilidade
8. Ora, o primeiro grande momento de consagração da responsabilidade civil dos
poderes públicos deu-se em 1873, no célebre acórdão Blanco, no qual o Tribunal de
Conflitos francês admitiu a existência da responsabilidade civil extracontratual do Estado-
Administração, ainda que com um regime diferente do do Direito Civil. A influência deste
acórdão foi tal que abriu caminho não só à tese da responsabilidade dos poderes públicos,
como consolidou o Direito Administrativo como um ramo de Direito autónomo,
vocacionado para tutelar os poderes de ius imperii detidos pelo Estado-Administração.
No Direito português, a responsabilidade dos poderes públicos é uma conquista do
séc. XX, apenas consolidada já em pleno séc. XXI. Assim, a versão original do Código de
Seabra consagrava a tese de irresponsabilidade dos poderes públicos, com duas excepções:
a responsabilidade pelo exercício da função administrativa no âmbito dos actos de gestão
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privada (configurada, ainda assim, apenas pela doutrina) e pelo exercício da função
jurisdicional, em caso de erro judiciário.
Na década de 1930 ainda se assistirá a um pequeno desenvolvimento deste regime,
mas o momento chave nesta linha evolutiva deu-se em 1967, com a publicação do Decreto-
Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, que consagrou o regime da responsabilidadecivil extracontratual do Estado-Administração, moldado sobre a ideia de actuação dos
titulares dos seus órgãos e dos seus funcionários e agentes.
9. Hodiernamente, os principais documentos que regem este regime jurídico são, a
um tempo, a Constituição da República Portuguesa, de 1976 (cfr. artigo 22.º) e o Decreto-
Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. São estes os documentos que terminaram a longa
evolução do regime português de responsabilidade civil extracontratual dos poderes
públicos, admitindo-a em termos de tal forma latos que abrangem as funções legislativa,administrativa e jurisdicional.
Em face deste diploma, pode afirmar-se hoje que a tese da irresponsabilidade dos
poderes públicos faz parte da história remota do Direito Público, admitindo-se
genericamente a responsabilização dos poderes públicos em nome de dois grandes
princípios norteadores do Direito Público:
a) O princípio do Estado de Direito, mormente nas suas vertentes de:
a.1) Princípio da legalidade ou da jurisdicidade, que exige a subordinação dos
poderes públicos ao Direito, como limite e critério de actuação. Esta asserção, para setornar efectiva, exige ainda a consagração de uma consequência jurídica para o seu
incumprimento.
a.2) Princípio da protecção e respeito pelos direitos fundamentais, que vincula
também as entidades públicas (cfr. n.º 1 do artigo 18.º da CRP). Este princípio postula a
existência de um regime de responsabilidade que permita tutelar adequadamente os direitos
fundamentais dos cidadãos.
b) O princípio da igualdade, na sua vertente de igualdade perante os encargos
públicos, e que postula a necessidade de se compensar os cidadãos pelos sacrifícios que
lhes sejam especialmente impostos, nomeadamente no âmbito da sua prossecução pelo
interesse público. Entende-se, por isso, que devem ser todos os cidadãos (através do erário
público) a suportar os custos inerentes à actividade pública.
Não é de estranhar, pois, que se afirme hoje que o princípio da responsabilidade
civil extracontratual dos poderes públicos ganhou uma dimensão de direito, liberdade e
garantia de natureza análoga (cfr. artigo 17.º da CRP).
2.2. A responsabilidade por actos legislativos.
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10. A responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo exercício da função
legislativa foi o domínio que, historicamente, conheceu mais resistência.
Neste domínio específico, foram desde sempre avançados dois grandes obstáculos à
sua admissibilidade (fora, claro está, as ideias de soberania e personalidade colectiva,
historicamente datados): de um lado, a liberdade de conformação do legislador,constitucionalmente consagrada; de outro lado, os princípios de sustentabilidade financeira
ou de equilíbrio orçamental, que ficariam gravemente lesados com o aumento exponencial
de acções de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado.
Ora, a verdade é que estes obstáculos podem revelar-se meramente aparentes. Com
efeito, e no que directamente diz respeito ao argumento alicerçado na margem de
conformação do legislador, é mister lembrar que esta liberdade não é igual a alvedrio
legiferante, na medida em que esta função do Estado está, também ela, previamente
conformada e limitada pela própria Constituição, que lhe serve de parâmetro de validade(cfr. n.º 3 do artigo 3.º da CRP). Assim, pode facilmente sustentar-se que a
responsabilidade civil extracontratual, quando fundada no “ilícito” legislativo, não afecta a
margem de livre conformação do legislador ordinário.
Por outro lado, o medo com o disparar de acções jurisdicionais contra o Estado não
pode ser um obstáculo sério, pelo menos num Estado de Direito que se preocupa com a
tutela dos direitos fundamentais e o respeito por normas constitucionais.
11. Neste contexto, fez-se um esforço por retirar do artigo 22.º da Constituição umdireito a indemnização em caso de ilícito legislativo. Todavia, a redacção deste preceito e
as dificuldades que ele levanta constituíram um forte entrave às pretensões indemnizatórias
neste campo, nomeadamente em razão da sua (in)exequibilidade.
Actualmente, a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, consagra em termos amplos a
responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos legislativos, concretizando
aquele preceito constitucional (cfr. artigos 15.º e ss.).
Assim, de acordo com o n.º 1 do artigo 15.º desta lei, “o Estado e as regiões
autónomas são civilmente responsáveis pelos danos anormais causados aos direitos ou
interesses legalmente protegidos dos cidadãos por actos que, no exercício da função
político-legislativa, pratiquem, em desconformidade com a Constituição, o direito
internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor reforçado”.
Ao lado desta responsabilidade por acção, consagra-se ainda um modo de
responsabilidade por omissão no exercício da função legislativa, nomeadamente perante os
“danos anormais que, para os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos,
resultem da omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis
normas constitucionais” (cfr. n.º 3 do artigo 15.º).
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Sem expressão directa no texto da lei, a doutrina e a jurisprudência admitem ainda
a responsabilidade do Estado pela não transposição atempada de directivas comunitárias,
quando este atraso cause danos anormais na esfera jurídica dos particulares.
Como se vê, o recorte dos danos ressarcíveis faz-se pelo conceito de anormalidade
do dano, significando com isto que só são relevantes os danos graves que ultrapassem oscustos próprios da vida em sociedade (cfr. artigo 2.º).
Para tutela do equilíbrio orçamental, o n.º 6 deste artigo 15.º admite uma forma de
restrição da pretensão indemnizatória, permitindo a sua fixação num montante inferior ao
do dano verificado.
2.3. A responsabilidade por actuações administrativas.
12. A responsabilidade pelo exercício da função administrativa foi o domínio em
que a batalha pela responsabilidade dos poderes públicos foi mais intensa, em razão da suaespecial propensão para a lesão da esfera jurídica dos particulares. No Estado Liberal,
excluía-se de forma liminar a possibilidade de se responsabilizar os poderes públicos pelo
exercício da função administrativa, o que era compreendido sobretudo num quadro em que
o Estado intervinha muito pouco nas áreas sociais e económicas. Todavia, com o apogeu
do Estado Social, tornou-se premente a consagração de um regime de responsabilidade
civil extracontratual dos poderes públicos pelo exercício da função administrativa.
No direito português, hoje rege a matéria a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro
(mormente nos seus artigos 7.º e seguintes), e os artigos 500.º e 501.º do Código Civil,respeitantes, respectivamente, aos actos de gestão pública e de gestão privada da
Administração Publica.
Com efeito, a determinação no regime jurídico aplicável à pretensão indemnizatória
do particular vai depender em concreto da questão de se saber se a actuação da
Administração Pública se reconduz ao conceito de acto de gestão pública ou ao de acto de
gestão privada. Tendencialmente, a distinção faz-se tendo subjacente o exercício de
poderes de autoridade: sempre que uma actuação consubstancie um acto de autoridade,
será um acto de gestão pública; no caso contrário, será um acto de gestão privada.
Todavia, algumas actuações não são isentas de dúvidas: é o caso, designadamente,
dos actos médicos em hospitais públicos ou dos professores. Nestes casos, tem-se
entendido estarmos perante actos de gestão pública, por se tratar de actuações efectuadas
num enquadramento de direito público, nomeadamente por os seus autores estarem sujeitos
a especiais deveres e a uma hierarquia administrativa.
Em ambos os casos, ainda assim, as acções devem ser propostas nos tribunais
administrativos [cfr. alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais].
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13. Apurado o regime aplicável in casu, haverá que determinar, depois, a
verificação dos pressupostos de que depende a procedência do pedido indemnizatório.
No que em concreto respeita ao regime constante da Lei n.º 67/2007, de 31 de
Dezembro, é necessário verificar o preenchimento dos seguintes pressupostos: (i) facto
imputável à Administração Pública; (ii) ilicitude deste facto; (iii) dano causado na esfera jurídica de um particular; (iv) nexo de causalidade entre o facto e o dano; e (v) culpa.
Ora, no que respeita ao primeiro elemento (o “facto”), é mister ter presente que este
pressuposto se pode relacionar com acções (jurídicas ou materiais) ou omissões imputáveis
à Administração Pública (cfr. n.º 1 do artigo 7.º). Em concreto, estas acções ou omissões
podem ser imputáveis a qualquer órgão, funcionário ou agente da Administração Pública,
sem descurar as situações em que não é possível individualizar a autoria de um acto ou
omissão (cfr. n.º 3 do artigo 7.º).
Neste contexto, é ainda importante recortar o conceito de Administração Pública,tendo presente que aqui se engloba qualquer pessoa colectiva pública (cfr. n.º 1 do artigo
1.º) e, bem assim, qualquer pessoa colectiva privada que exerça funções públicas, tais
como os concessionários (cfr. n.º 5 do artigo 1.º) — ou seja, pessoas colectivas de direito
privado que são chamadas pela Administração Pública ao exercício de uma função
administrativa e que, nessa qualidade, podem exercer poderes de autoridade sobre outros
particulares.
Quanto à ilicitude, esta consiste numa desconformidade entre o acto ou a omissão
registadas e a ordem jurídica globalmente considerada (cfr. artigo 9.º). Todavia, importanão esquecer que pode haver responsabilidade pelo risco e por actos lícitos,
designadamente quando os poderes públicos exerçam uma actividade conforme ao Direito,
mas especialmente perigosa (v.g., exercícios militares ou manutenção de paiol de
munições) e quando imponham (licitamente) um sacrifício especial e anormal a um
cidadão.
O nexo de causalidade consiste no facto de um certo acto ou omissão dar origem ao
dano. Já a culpa é presumida no âmbito dos actos jurídicos ilícitos e da omissão de deveres
de vigilância (cfr. n.os 2 e 3 do artigo 10).
2.4. A responsabilidade por actos do poder judicial.
14. Apesar de não se referir expressamente à responsabilidade por acto
jurisdicional, facilmente se verifica que o conteúdo do artigo 22.º da Constituição é
suficientemente amplo para abranger este tipo de responsabilidade.
15. No que respeita à responsabilidade dos juízes, note-se que o n.º 2 do artigo
216.º da CRP refere que estes são, salvo disposição legal em contrário, irresponsáveis.
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Com isto, pretende-se libertar os juízes da pressão de ponderar nas consequências civis das
suas decisões judiciais.
Tal irresponsabilidade não equivale, todavia, a infalibilidade da decisão judicial.
Com efeito, desde cedo se afirmou a necessidade de se ressarcir os particulares por erros
judiciários. Em concreto, a CRP determina a responsabilidade do Estado por sentençacriminal injusta (cfr. n.º 6 do artigo 29.º) e pela privação da liberdade em condições
contrárias à Constituição ou à lei (cfr. n.º 5 do artigo 27.º).
Tendo presente este quadro, o artigo 225.º do Código de Processo Penal veio
consagrar ainda o direito de ressarcimento aos particulares que sejam objecto de prisão
preventiva injustificada, por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto.
Na sua sequência, o artigo 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, consagra a
responsabilidade do Estado por erro judiciário, designadamente em caso de sentença penal
condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade.
16. Por outro lado, o teor do artigo 22.º da CRP deixava ainda margem para que se
ponderasse a responsabilidade do Estado por atraso na justiça, mormente pela não tomada
de uma decisão judicial num prazo tido por razoável (já consagrado, aliás, no artigo 6.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Neste seguimento, o artigo 14.º da Lei n.º
67/2007, de 31 de Dezembro, consagrou esta modalidade de responsabilidade pelo
funcionamento da justiça.
§ 3.
A RESPONSABILIDADE PESSOAL
DOS TITULARES DOS CARGOS PÚBLICOS.
3.1. A responsabilidade penal.
17. A responsabilidade penal dos titulares dos cargos políticos traduz-se na sua
sujeição a sanções penais, como consequência de actos praticados no exercício das funções
públicas. Este regime tem em vista, desde logo, a garantia da legalidade e da
constitucionalidade da sua actuação, mas, também, assegurar que o exercício das funções
públicas/políticas, no quadro de um Estado de Direito democrático, não se compadece com
a prática de determinados factos, que, pela sua gravidade e censurabilidade, merecem
repressão penal.
A sua efectivação consta da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, mas é mister ter-se
presente o quadro constitucional que rege esta matéria.
Assim, veja-se que o artigo 130.º da CRP determina que a responsabilidade
criminal do Presidente da República é aferida pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. n.º 1),
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após iniciativa da Assembleia da República (cfr. n.º 2); quanto à responsabilidade penal
por outros factos, o n.º 4 deste artigo ainda estipula que o Presidente da República só pode
responder por eles após o término do seu mandato.
Já quanto aos deputados, o n.º 1 do artigo 157.º da CRP determina a sua
irresponsabilidade penal pelos votos e opiniões emitidas no exercício das suas funções.Ademais, os deputados não podem ser ouvidos como arguidos sem autorização da
Assembleia (cfr. n.º 2), e, em regra, não podem ser detidos ou presos sem autorização da
Assembleia (cfr. n.º 3).
Por sua vez, os membros do Governo não podem, em regra, ser detidos ou presos
sem autorização da Assembleia da República (cfr. n.º 1 do artigo 196.º da CRP).
18. Com este pano de fundo, a Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, tem por objecto a
definição do regime penal aplicável aos titulares de cargos políticos por actos ilícitospraticados no exercício das suas funções.
Por um lado, esta lei identifica os cargos políticos por si abrangidos, aqui se
englobando, por exemplo, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, os Ministros ou
os deputados na Assembleia da República e no Parlamento Europeu.
Por outro lado, esta lei tipifica uma série de factos criminosos que, uma vez
praticados pelo titular de um daqueles cargos, dão origem a uma sanção penal (e.g., traição
à Pátria, atentado contra a Constituição, atentado contra o Estado de Direito, prevaricação,
corrupção, entre outros).
3.2. A responsabilidade disciplinar dos funcionários e agentes da
Administração Pública.
19. A responsabilidade consiste na possibilidade de sanção imposta pelas entidades
públicas aos seus próprios trabalhadores (isto é, funcionários e agentes), em virtude da
violação por estes de deveres jurídicos no âmbito da relação de trabalho que os une à
entidade pública.
Ora, de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º do Estatuto Disciplinar da Função Pública
(aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro), entende-se por infracção disciplinar “o
comportamento do trabalhador, por acção ou omissão, ainda que meramente culposo, que
viole deveres gerais ou especiais inerentes à função que exerce”.
Em concreto, integram-se entre os deveres gerais dos trabalhadores os de
prossecução do interesse público, de isenção, de imparcialidade, de informação aos
cidadãos, de zelo, de obediência, de lealdade, de correcção, de assiduidade e de
pontualidade (cfr. n.º 2 do artigo 3.º do Estatuto Disciplinar).
Sujeitos a este regime disciplinar encontram-se “todos os trabalhadores que
exercem funções públicas, independentemente da modalidade de constituição da relação
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jurídica de emprego público ao abrigo da qual exercem as respectivas funções” (cfr. n.º 1
do artigo 1.º do Estatuto Disciplinar), nomeadamente aqueles que exercem funções nos
“serviços da administração directa e indirecta do Estado” e nos “serviços das
administrações regionais e autárquicas” (cfr. n.os 1 e 2 do artigo 2.º do Estatuto
Disciplinar).
20. Esta responsabilidade disciplinar efectiva-se perante o superior hierárquico de
cada funcionário ou agente e conhece uma tramitação própria (o procedimento disciplinar),
que tem em vista a averiguação dos factos que estão na origem da responsabilidade
disciplinar do funcionário ou agente administrativo.
Verificando-se os pressupostos de aplicação de sanção disciplinar, o procedimento
disciplinar desemboca na aplicação aos funcionários ou agentes administrativos de uma
pena, que pode consistir numa repreensão escrita, multa, suspensão ou demissão oudespedimento (cfr. n.º 1 do artigo 9.º do Estatuto Disciplinar).
A decisão de aplicação de sanção disciplinar é um acto administrativo (exercido,
pois, no âmbito da função administrativa dos poderes públicos), que pode ser judicialmente
impugnado (cfr. artigo 59.º do Estatuto Disciplinar).
3.3. A responsabilidade civil dos titulares dos órgãos do Estado.
21. A responsabilidade civil da Administração comporta duas vertentes: uma
externa, relativa a quem pode ser demandado em juízo; e uma vertente interna, que tem emvista a possibilidade de a Administração Pública gozar do direito de regresso, solicitando
ao titular do órgão, agente ou funcionário o que tiver pago ao particular.
A este propósito, importa ter presente o disposto no artigo 22.º e no n.º 4 do artigo
271.º, ambos da CRP: no primeiro preceito, a CRP consagra a responsabilidade solidária
das entidades públicas com os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes; na segunda
norma, consagra o seu direito de regresso perante estes.
Desta forma, a CRP procurou:
a) Proteger os particulares, permitindo-lhes demandar directamente as entidades
públicas, pedindo-lhe a reparação da totalidade da lesão que sofrer na sua esfera jurídica;
b) Garantir a responsabilização dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes da
Administração Pública, obrigando-lhes a afectar à Administração a quantia necessária à
indemnização do particular.
22. Ora, no que à solidariedade do regime de responsabilidade, importa ter presente
que ele permite ao particular intentar a acção contra (i) a pessoa colectiva pública, (ii) o
autor do facto jurídico ou (iii) contra ambos, pedindo, em qualquer dos casos, o
ressarcimento da totalidade da lesão sofrida.
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Todavia, esta solidariedade não é ilimitada: pelo contrário, ela só existe quanto (i)
às acções ou omissões praticadas no exercício das funções do seu autor ou por causa desse
exercício e (ii) quando estas forem praticadas com dolo ou culpa grave (cfr. n.º 1 do artigo
7.º e artigo 8.º, ambos da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro).
De fora, pois, ficam os actos praticados fora do exercício destas funções ou que nãotenham sido praticados ou omitidos por causa do exercício destas funções. Nestas
hipóteses, a responsabilidade é exclusivamente pessoal.
Já no caso de actuação com culpa leve, a responsabilidade é exclusiva da entidade
pública.
23. No que respeita à responsabilidade dos juízes, note-se que o n.º 2 do artigo
216.º da CRP refere que estes são, salvo disposição legal em contrário, irresponsáveis.
Com isto, pretende-se libertar os juízes da pressão de ponderar nas consequências civis dassuas decisões judiciais, ignorando o fundo da questão que lhe é solicitada.
Tendo presente este quadro, o artigo 14.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro,
admite o direito de regresso do Estado contra os juízes e magistrados judiciais, quando
estes actuem com dolo ou culpa grave.
24. Por fim, atente-se no disposto no n.º 1 do artigo 117.º da CRP, segundo o qual
os titulares dos cargos políticos (logo, também de órgãos com competência legislativa) são
responsáveis civilmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suasfunções. Neste âmbito, a única excepção colocada pela própria CRP reside na
irresponsabilidade dos deputados pelos votos e opiniões emitidas no exercício das suas
funções.
Todavia, a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, é absolutamente omissa quanto à
responsabilidade destes no âmbito da responsabilidade pelo exercício da função legislativa,
não prevendo sequer um direito de regresso contra estes titulares de cargos em órgãos
legislativos.
3.4. A responsabilidade financeira dos titulares dos órgãos do Estado.
25. A responsabilidade financeira em sentido estrito ou reintegratória reporta-se
ao dever que se impõe sobre o titular de um cargo público de reposição de quantias ao
erário público, em virtude da prática de um acto ilícito financeiro (ou seja, por violação das
normas que disciplinam a actividade financeira das entidades públicas). O seu fim reside,
pois, na reparação de danos causados ao próprio erário público, tendo subjacente um
princípio de boa administração.
Claro está que esta responsabilidade é meramente pessoal — nunca sendo possível
responsabilizar-se um órgão ou uma entidade pública —, pois o que aqui se pretende é
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responsabilizar os titulares de órgãos, funcionários e agentes pelos ilícitos financeiros por
si causados, quando tenham repercussões negativas sobre o património público (cfr. artigo
61.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto — Lei de Organização e Funcionamento do
Tribunal de Contas).
Em sentido lato, pode ainda integrar-se no conceito de responsabilidade financeiraa responsabilidade sancionatória (de cariz contra-ordenacional), que tem em vista punir
(pela aplicação de coimas) os autores de infracções financeiras.
De acordo com o teor da alínea c) do n.º 1 do artigo 214.º da CRP, cabe
exclusivamente ao Tribunal de Contas a efectivação da responsabilidade por infracções
financeiras.
26. Mais importante revela-se, pois, a responsabilidade financeira, que obriga à
reparação do erário público em caso de:a) Alcance, ou seja, “quando, independentemente da acção do agente nesse
sentido, haja desaparecimento de dinheiros ou de outros valores do Estado ou de outras
entidades públicas” (cfr. n.º 2 do artigo 59.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto);
b) Desvio de dinheiros ou valores públicos, ou seja, “quando se verifique o seu
desaparecimento por acção voluntária de qualquer agente público que a eles tenha acesso
por causa do exercício das funções públicas que lhe estão cometidas” (cfr. n.º 3 do artigo
59.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto);
c) Pagamentos indevidos, isto é, “os pagamentos ilegais que causarem dano para oerário público” (cfr. n.º 4 do artigo 59.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto); e
d) Reposição por não arrecadação de receitas, “nos casos de prática, autorização
ou sancionamento, com dolo ou culpa grave, que impliquem a não liquidação, cobrança
ou entrega de receitas com violação das normas legais aplicáveis” (cfr. artigo 60.º da Lei
n.º 98/97, de 26 de Agosto).
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166
VII
Princípio da sustentabilidade do desenvolvimento (princípio da
responsabilidade pelo futuro)
42. Princípio da sustentabilidade do desenvolvimento (princípio da
responsabilidade pelo futuro)
De configuração recente, já que só nos anos oitenta começou a ser feita a ligação
entre desenvolvimento económico e social e sustentabilidade ambiental, breve se
consciencializou a necessidade de incorporar nas decisões presentes as consequências que
dessas decisões podem resultar para as gerações futuras.
E de princípio ético, fundado numa ideia de solidariedade entre as gerações
presentes, que gozam os benefícios do desenvolvimento civilizacional, e as gerações
futuras, que poderão sofrer com as consequências dessas acções, foi-se tornando uma
exigência de justiça, uma justiça pensada para um tempo longo, superior ao tempo de vida
do homem concreto, mas nem por isso uma justiça menos humana.
Essa exigência de justiça, mais funda e alargada do que a justiça tradicional, forçou
a sua entrada na Constituição da República Portuguesa e, na revisão de 1997, o princípioda sustentabilidade do desenvolvimento económico e social foi consagrado. E é
interessante verificar não ter sido uma entrada tímida. Pelo contrário.
Com efeito, o princípio da sustentabilidade do desenvolvimento não só é imposto
às tarefas estaduais que garantem o direito ao ambiente (dispõe o artigo 66º, nº 2: «Para
assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe
ao Estado, por meio de organismos próprios...»), como à acção dos cidadãos que devem
envolver-se e participar na garantia daquele direito (o mesmo nº2 do referido artigo 66º
continua: «... com o envolvimento e a participação dos cidadãos».
Por outro lado, o princípio da sustentabilidade do desenvolvimento entrelaça-se, de
modo especial, com o princípio da solidariedade entre gerações na tarefa estadual de
promoção do aproveitamento racional dos recursos naturais, com salvaguarda da sua
capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, sempre com o envolvimento dos
cidadãos e a sua participação (artigo 66º, nº2, al. d)). Compreende-se. Estando aqui em
causa o uso de recursos naturais, muitos deles escassos ou não renováveis, o apelo à
solidariedade intergeracional torna-se particularmente premente, já que o seu
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aproveitamento presente pode fazer perigar o gozo desses recursos pelas futuras gerações.
Digamos que, neste caso, a sustentabilidade ambiental tem valor acrescido, já que o risco
de perda irreparável do recurso natural, por impossibilidade de regeneração, é uma
realidade.
Acresce que uma nova referência à sustentabilidade do desenvolvimento é feita no
artigo 81º, que define as incumbências prioritárias do Estado no âmbito da organização
económica.
Na verdade, dispõe este artigo que incumbe prioritariamente ao Estado, «no âmbito
económico e social: a) Promover o aumento do bem-estar social e económico e da
qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas, no quadro de uma
estratégia de desenvolvimento sustentável».
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#2º
PRINCÍPIOS DO FUNCIONAMENTO DO PODER ESTADUAL
I
Princípio da subsidiariedade
43. Princípio da subsidiariedade
O princípio da subsidiariedade encontra-se consagrado na Constituição em duas
vertentes, uma interna e outra externa.
43.1. O princípio da subsidiariedade como princípio interno do Estado: a
procura do nível óptimo de decisão (artigo 6º, nº 1 da Constituição).
O princípio da subsidiariedade está consagrado na Constituição depois da
afirmação de que o Estado português é unitário. Apresenta-se, por isso, como um princípio
ligado à organização e funcionamento do Estado unitário. Por seu intermédio, procura-se
encontrar o nível óptimo da decisão, em razão da matéria, privilegiando a entidade pública
ou o órgão estadual que, por estar mais próximo do problema a decidir, o conhece melhor epode encontrar a decisão que mais se lhe ajusta.
Numa outra formulação, o princípio da subsidiariedade implica que a definição
jurídica de uma matéria só possa ser empreendida por um órgão da administração central
do Estado se não puder ser empreendida em melhores condições por um órgão mais
próximo das pessoas que vai afectar ou que são as destinatárias da acção – de uma região
autónoma ou de uma autarquia. Assim compreendido, o princípio da subsidiariedade não
determina o esboroamento do poder do Estado nem traduz uma sua demissão. Pelo
contrário. O princípio da subsidiariedade tem subjacente a convicção de que quem está
longe dos problemas não os conhece bem e tem dificuldades maiores em encontrar a
melhor solução.233
Em certo sentido, pode dizer-se que o princípio da subsidiariedade, como princípio
interno do Estado, se encontra ao serviço da descentralização. Aplicações práticas deste
princípio podem ver-se no artigo 225º, nº 2, da Constituição, enquanto garante que a
233 O princípio da subsidiariedade, como o conteúdo acabado de descrever, foi integrado na Constituição narevisão constitucional de 1997.
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autonomia das regiões visa “promoção e defesa dos interesses regionais” e no artigo 235º,
nº 2, da Constituição, enquanto garante às autarquias locais “a prestação dos interesses
próprios das populações respectivas”.
43.2. O princípio da subsidiariedade como princípio director do exercício dospoderes necessários à construção da União Europeia (artigo 7º, nº 6, da Constituição).
Sendo uma associação de Estados de natureza particular, a União Europeia, que
ganha força com o Tratado de Maastricht, determinou uma profunda alteração na
compreensão da estadualidade portuguesa.
Com efeito, após a integração na União Europeia, o Estado português tornou-se
parte de um projecto mais vasto, o projecto de construção da União Europeia. É nestecontexto que o princípio da subsidiariedade, compreendido como princípio externo, deve
ser interpretado. Por intermédio do princípio da subsidiariedade, a União Europeia só pode
intervir nos casos em que o Estado português, isoladamente, não consegue obter os
mesmos resultados que a União, no exercício das suas competências em comum, em
cooperação com o Estado português. Sendo assim, o princípio da subsidiariedade funciona
como uma garantia do Estado português perante a União Europeia ou, sob outra
perspectiva, funciona como uma limitação da acção da União Europeia – um travão à
europeização das tarefas nacionais.
Numa formulação diferente, mais ampla, o princípio da subsidiariedade contém
uma norma de exercício de competências, segundo a qual as medidas destinadas à
construção da União Europeia devem ser por esta tomadas quando não possam ser
concretizadas satisfatoriamente pelos Estados-membros e, logo, pelo Estado português –
limite negativo à competência da União Europeia. O princípio da subsidiariedade contém,
por isso, uma cláusula-barreira que impede que as competências constitucionais dos
órgãos estaduais sejam afectadas pela actuação das autoridades comunitárias234.
234 O princípio da subsidiariedade com o conteúdo enunciado foi integrado na Constituição na revisão de1992.
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II
Princípio da cooperação
44. Princípio da cooperação. Em geral.
O princípio da cooperação interinstitucional pode colocar-se em vários planos ou
níveis.
No plano internacional, o princípio da cooperação apela à cooperação entre
Estados soberanos. No plano europeu, apela à cooperação entre os Estados-membros da
União. No plano das relações transfronteiriças, o princípio apela à cooperação entre osEstados com fronteiras comuns.
No plano estadual, o princípio da cooperação convoca a cooperação entre as
diferentes entidades públicas, seja entre o Estado e as autarquias, seja entre as autarquias,
seja entre institutos públicos ou outras entidades públicas, no âmbito das respectivas
atribuições.
A matéria ambiental é uma das matérias que se tem revelado mais sensível ànecessidade da cooperação, nos mais diferentes planos, bem como a matéria da segurança.
44. 1. Princípio da cooperação entre entidades públicas e privadas.
Simultaneamente, o princípio da cooperação convoca também a cooperação entre
entidades públicas e privadas e, em particular, a colaboração entre as entidades
administrativas e os particulares (artigo 7º do Código do Procedimento Administrativo).
44. 2. Princípio da cooperação interorgânica.
O princípio da cooperação pode também ser analisado no âmbito da mesma
entidade pública, caso em que apela à cooperação entre os seus órgãos. Fala-se, então, em
cooperação interorgânica.
44. 3. Princípio da cooperação. Vertente política e vertente jurídica.
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A cooperação interinstitucional e interorgânica tem uma vertente política e uma
vertente jurídica. A cooperação entre Estados com vista à elaboração e concretização de
um tratado internacional é política. Torna-se, porém, jurídica com a aprovação desse
tratado. Por seu turno, a cooperação entre o Presidente da República e o Primeiro Ministro,
ou entre o Governo e a Assembleia da República, traduzida em pedidos de informação eesclarecimento e na sua prestação é política, mas essa cooperação torna-se jurídica na
declaração do estado de sítio e do estado de emergência (artigos 19º, nº7, 134º, al. d) e
138º, nº1).
A acentuação do princípio da cooperação, na actualidade, decorre do sentido
tendencialmente global dos problemas da sociedade – problemas ligados ao ambiente, ao
consumo, ao terrorismo... –, e, ainda, da cada vez maior complexidade desses problemas, o
que obriga a uma troca permanente de informações e conhecimentos, e implica umconstante trabalho em rede ou teia, com abertura e sentido de cooperação, tendo em vista
construir uma sempre mais correcta e justa decisão final.
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#
3º
PRINCÍPIOS DA ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
I
Princípio da descentralização democrática da Administração Pública
45. Princípio da descentralização (artigo 6º, nº 1, da Constituição).
O princípio da descentralização tem assento constitucional depois da afirmação do
Estado português como Estado unitário, uma afirmação que, por força da al. n) do artigo
288º da Constituição, não pode ser alterada por uma lei de revisão constitucional. Neste
contexto, é um princípio organizatório da Administração Pública, que permite a repartição
do poder de decidir235, mas se encontra ligado à garantia do Estado unitário e só a essa luz
pode e deve ser compreendido.
45.1. Noção.
O princípio da descentralização democrática da Administração Pública significa
que, na medida do possível, a Administração Pública portuguesa se deve organizar através
de pessoas colectivas públicas distintas do Estado, e, logo, dotadas de poder de decisão
( princípio da descentralização), pessoas colectivas públicas que, na sua gestão, devem
apelar à participação dos cidadãos ( princípio democrático da gestão participada).
45.2. Formas de descentralização administrativa
Num quadro de unidade de acção da Administração Pública (ou das administrações
públicas), a descentralização administrativa pode apresentar-se em duas formas ou
modalidades distintas: a descentralização territorial, correspondente à existência de
autarquias locais, isto é, pessoas colectivas públicas de população e território, dotadas de
235 Como afirma JOÃO BAPTISTA MACHADO, «bem vistas as coisas, só na descentralização se verifica umaverdadeira repartição ou difusão do poder de decidir». Ver Participação e Descentralização. Democratização e Neutralidade na Constituição de 1976 , Almedina, 1982, p.77.
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órgãos próprios, representativos, que visam a prossecução dos interesses próprios das
populações – regiões administrativas, municípios e freguesias (artigo 236º, nº 1), sendo que
só os municípios e as freguesias se encontram institucionalizados na realidade dos factos.
A existência de autarquias locais, com atribuições próprias e geridas sob sua
responsabilidade através de órgãos directamente eleitos pelas populações, são uma formade limitar o poder estadual e, simultaneamente, de concretizar a democracia, aproximando
a decisão dos seus destinatários.
Para além da descentralização territorial existe a descentralização institucional, que
corresponde à existência de pessoas colectivas públicas diferentes do Estado mas sem base
territorial. Tais pessoas colectivas públicas tanto podem ser universidades236 (artigo 76º, nº
2, da Constituição) como ordens profissionais237 -- Ordem dos Médicos, Ordem dos
Advogados, Ordem dos Arquitectos… --, como empresas públicas ou institutos públicos.
45.3. Multiplicidade de pessoas colectivas públicas que integram a
Administração Pública.
A criação de entidades distintas do Estado e de outras pessoas colectivas de
população e território, obedece a múltiplas finalidades, concretamente a necessidade de
evitar a burocratização, o desejo de aproximar os serviços das populações ou ainda o
objectivo de proporcionar às populações uma melhor realização do interesse público
(artigo 267º da Constituição). Mas a criação de pessoas colectivas dentro do Estado ou de
outras pessoas colectivas de população e território tem limites constitucionais, impostos
pelo artigo 267º, nº 2, da Constituição, concretamente «a necessária eficácia e unidade da
acção».
45.3.1. Entidades administrativas de base associativa e entidades
administrativas de base fundacional
Em virtude da concretização do princípio da descentralização administrativa, são
múltiplas as entidades com personalidade jurídica que integram a Administração Pública,
236 Ver o disposto no artigo 76º, nº 2, da Constituição.237 Ver o disposto no artigo 267º, nº 4, da Constituição.
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estadual ou autárquica, umas têm base associativa (Ordens Profissionais) e outras base
fundacional (institutos públicos).
45.3.2. Entidades administrativas dependentes, entidades administrativas
independentes e entidades autónomas.
Entre as entidades públicas com personalidade jurídica que integram a
Administração Pública estadual é ainda usual distinguir as entidades dependentes, as
entidades independentes e as entidades autónomas.
As entidades administrativas dependentes são entidades com personalidade jurídica
mas sem autonomia ou com uma autonomia circunscrita à prática de actos com efeitos
externos – os institutos públicos, como o Instituto da Conservação da Natureza e daBiodiversidade, são um exemplo.
As entidades administrativas independentes são entidades com personalidade
jurídica e autonomia administrativa e financeira, em regra desenvolvendo actividades de
regulação. A Autoridade da Concorrência é um exemplo desta modalidade de entidades,
prevista no artigo 267º, nº 3, da Constituição.
As entidades autónomas são, por sua vez, entidades que prosseguem interessespúblicos próprios das pessoas que as constituem e, por isso, se auto-dirigem, se auto-
governam, definindo as próprias actividades que prosseguem. As ordens profissionais são
exemplo desta modalidade de entidades238.
O Estado exerce poderes de superintendência e de tutela, mais ou menos ténues,
consoante os casos, sobre estas entidades.
46. Descentralização democrática da Administração Pública, autarquias locais
e poder local.
A descentralização administrativa territorial pode ser acompanhada de poder local.
A autonomia das autarquias locais não se confunde com o poder local. Podem as
autarquias ter autonomia mas não ter poder local. Para que haja poder local torna-se
necessário o poder de auto-governo ou auto-administração.
238 Ver o disposto nos artigos 235º e seguintes da Constituição.
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As autarquias têm poder local quando decidem com autonomia o seu destino, sem
dependências, seja de natureza humana, financeira ou técnica, relativamente a outras
entidades.
Sendo assim, para que as entidades públicas possuam poder local, não basta que osórgãos dessas entidades sejam democraticamente eleitos pelo povo. É necessário que tais
entidades possuam meios humanos e técnicos, bem como recursos financeiros para
desenvolver as suas atribuições. Além disso, é necessário que, da parte do Estado, não
incida sobre elas um excessivo controlo – a tutela do Estado sobre as autarquias locais
restringe-se hoje, por força da Constituição, à fiscalização da legalidade da actuação dos
órgãos das entidades tuteladas (artigo 242º)239.
A tutela da legalidade, constitucionalmente consagrada (artigo 242º, nº1), é umagarantia das autarquias locais em relação ao Estado240.
Com efeito, a tutela surge para garantir a continuidade de relação
interadministrativa inerente ao interesse público expressamente definido na lei, em defesa
da unidade do ordenamento jurídico. É, por isso, uma tutela de legalidade, circunscrita à
defesa da unidade do ordenamento jurídico. Não pode aferir do mérito das decisões
autárquicas, i.e., não pode aferir o conteúdo político ou a oportunidade política das
decisões autárquicas e, nessa medida, o disposto no nº 1 do artigo 242º da Constituição setem de considerar como garantia das autarquias locais perante o Estado. Isto porque o
controlo do mérito das decisões autárquicas compete às populações, expresso, desde logo,
no momento do voto, em eleições.
239 Sobre os poderes de tutela do Estado sobre as autarquias locais, ANDRÉ FOLQUE, A tutela administrativanas relações entre o Estado e os Municípios (condicionalismos constitucionais), Almedina, 2004. Ver,também, anotação ao artigo 242º da Constituição, JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS, Constituição
Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, vol. III, 2007.240 A tutela sobre as autarquias locais é exercido pelo Governo, como resulta do artigo 199º, al. d), daConstituição.
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II
Princípio da desconcentração de poderes administrativos
47. Princípio da desconcentração
Tal como o princípio da descentralização, o princípio da desconcentração de
poderes administrativos é um princípio da organização administrativa. Diferentemente,
porém, daquele princípio, que diz respeito à existência de uma ou mais pessoas colectivas,
o princípio da desconcentração de poderes administrativos impõe que as entidades
administrativas devem estruturar-se de forma desconcentrada (artigo 267º, nº 2, da
Constituição).
O princípio da desconcentração impõe que os poderes dentro das pessoas colectivas
se não concentrem num só órgão e, pelo contrário, sejam repartidos por múltiplos órgãos.
Por outras palavras, o princípio impõe que as pessoas colectivas se estruturem
internamente de forma a distribuírem verticalmente as competências decisórias, segundo
escalões hierárquicos. Impõe que o poder decisório das pessoas colectivas não esteja
concentrado num só órgão, antes esteja repartido entre órgãos superiores e órgãos
subalternos, ficando estes sujeitos ao poder hierárquico dos primeiros.
Mas, também aqui, a Constituição impõe limites à desconcentração administrativa,
decorrentes da exigência de eficácia e unidade da acção administrativa (artigo 267º, nº
2)241.
241 Sobre o assunto, DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LUÍS FÁBRICA, CARLA AMADOGOMES E JORGE PEREIRA DA SILVA, Curso de Direito Administrativo, 3ª edição, Almedina, vol. I, pp. 833 ess.
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4º
PRINCÍPIOS DO PODER ADMINISTRATIVO
I
Princípio da prossecução do interesse público.
48. Princípio da prossecução do interesse público (artigo 266º, nº 1, da
Constituição)
Como vimos, a Administração Pública desdobra-se num quadro organizatóriodiversificado e alargado, porquanto são múltiplas as entidades com personalidade jurídica
que empreendem a actividade administrativa do Estado. Além disso, e desenvolve-se num
quadro material diversificado e alargado, pois, como o Estado Português é
constitucionalmente um Estado Social de Direito, a administração pública multiplica-se
pela área da saúde, da educação, das obras públicas, dos transportes...
Porém, na sua actuação concreta, o que move a Administração Púbica?
Diferentemente do que acontece com os tribunais, que têm por finalidade a «administraçãoda justiça em nome do povo» (artigo 202º, nº1, da Constituição), sendo essa a sua única
finalidade, o que impulsiona a Administração Pública para a acção é o interesse público
(artigo 266º, nº1, da Constituição). Só o interesse público, enquanto realidade estranha à
Administração, pode ser a finalidade da acção administrativa, porque esta não tem
finalidades próprias242. Além disso, configurado no concreto esse interesse público, a
Administração Pública é forçada a agir para o satisfazer. O princípio da prossecução do
interesse público, envolve, assim, uma ideia de dupla vinculatividade: de um lado, vincula
a Administração Pública a agir só em razão do interesse público e, por outro, impõe-lhe
que actue sempre que o interesse público se apresente na realidade dos factos.
48.1.Noção de interesse público
O interesse público é o elemento teleológico que determina a acção administrativa
e, por isso, corresponde à finalidade dessa acção. Tanto pode estar definido na Constituição
242 O interesse público é o motor do agir da Administração Pública. Diogo Freitas do Amaral, Curso de
Direito Administrativo, com colaboração de LINO TORGAL, vol. II, Almedina, 2001, p.33. O interesse públicoé o norte da Administração Pública, MARCELO REBELO DE SOUSA /ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo, I, p. 201.
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como na lei ordinária, contribuindo a Administração Pública, no concreto, para a sua
determinação.
Num certo sentido, coincide com o interesse geral da comunidade, o bem comum
de que Aristóteles e, mais tarde S. Tomás de Aquino, falavam, e caracteriza-se por não terconteúdo fixo, variando em função da compreensão cultural da comunidade onde se
integra.
O “interesse público” é uma expressão que a Constituição utiliza no artigo 266º, nº
1, para definir o objectivo do agir da Administrativa Pública, e no artigo 269º, nº 1, para
definir a finalidade da actuação dos trabalhadores da Administração Pública, sendo
sinónima de outras que a Constituição também usa. Assim, “interesse público” equivale a
“interesse colectivo” (artigo 47º, nº 1), a “interesse geral” (artigo 65º, nº e c)), a“utilidade pública” (art. 62º, nº 2).
Acresce que o interesse público não emerge de uma realidade contraposta aos
direitos dos cidadãos, particularmente dos direitos que se encontram consagrados na
Constituição. Fundado o Estado de Direito na dignidade humana e estando ao seu serviço,
o interesse público que deve nortear o Estado, por intermédio da Administração Pública,
tem de emanar desses direitos, seja num quadro de defesa da lei e da ordem pública (acção
policial), seja num quadro de realização do conteúdo desses direitos, seja num quadro deregulação da acção privada, seja num quadro de garantia do preenchimento dos direitos,
seja na prestação de informações....
Em consequência do que temos vindo a dizer, a Administração Pública não
prossegue – não pode prosseguir – interesses próprios opostos aos interesses colectivos, da
comunidade. Tão-pouco pode prosseguir interesses privados dos titulares dos órgãos que,
em cada momento, exercem a actividade administrativa. Só o “interesse público” com o
conteúdo que, em cada momento, a Constituição e a lei fixam pode ser prosseguido pela
Administração Pública. Uma vez determinado no concreto, com o contributo interpretativo
da Administração Pública, é de prossecução obrigatória, devendo a Administração Pública
encontrar as melhores soluções possíveis para o realizar243.
48.2. O princípio da prossecução do interesse público e o dever de boa
administração.
243 Sobre a noção de interesse público, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, «Interesse Público» in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pp. 275 e ss..
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Do exposto decorre uma outra ideia: a prossecução do interesse público, para além
de ser obrigatória, exige da Administração, em cada caso ou situação em que se lhe impõe
agir, a adopção das melhores soluções. Ora é costume designar este dever por dever de boa
administração.
O dever de boa administração significa que a Administração Pública tem o dever
de procurar as soluções mais ajustadas ao interesse público, seja na perspectiva de meios
técnicos seja na perspectiva de meios financeiros e não admira que o dever de boa
administração convoque o princípio da eficiência, de acordo com o qual os objectivos ou
finalidades definidos na lei (interesses públicos) devem ser concretizados ao menor custo,
seja no que respeita aos recursos naturais, seja humanos, seja financeiros.
Recentemente, assiste-se a uma abertura do conceito de interesse público. Estedeixa de estar integralmente definido na lei e passa a ser construído a partir da realidade
dos factos, para tal convocando a participação dos particulares. A área do ordenamento do
território tem servido de base experiencial a estas aberturas244.
48.3. O princípio da prossecução do interesse público e o princípio do respeito
pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos
A prossecução do interesse público pela Administração Pública não pode, noentanto, justificar o sacrifício abusivo ou arbitrário dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos. Na verdade, para além dos travões impostos à acção
administrativa pelos direitos, há posições jurídicas dos particulares decorrentes da lei que
são também merecedoras de protecção e funcionam como limite à prossecução do interesse
público (artigo 266º, nº 1 da Constituição). Isto porque o princípio da prossecução do
interesse público só é integralmente realizado num diálogo necessário com esses direitos e
interesses, um diálogo que significa respeito pelos limites dele decorrentes. Como
preceitua o nº 1 do artigo 266º da Constituição: «A Administração Pública visa a
prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos.»
Os direitos fundamentais, particularmente os direitos económicos, sociais e
culturais, que dão corpo ao Estado Social de Direito, impõem-se como tarefas ou intenções
de agir, vertendo-se em inúmeras manifestações de interesses, de intensidade e amplitude
diversas, que importa qualificar juridicamente, desde logo como públicos, devendo depois
244 Sobre o assunto, DANIEL SARMENTO (org.) Interesses públicos versus interesses privados: Desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público, 2ªtiragem, Lumen Iuris Editora, Rio deJaneiro, 2007.
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estes ser satisfeitos pelo Estado e sua Administração. Porém, essa satisfação no concreto
não pode ser feita à custa de direitos subjectivos nem à custa de outros interesses públicos
protegidos por lei, em benefício também de específicos grupos de particulares (caso de
normas procedimentais num concurso publico). Porque a tanto obriga o respeito que, em
razão da Constituição, deve existir pelos direitos e interesses legalmente protegidos.
44.3. Os direitos e os interesses legalmente protegidos dos cidadãos como limite
à acção administrativa
O interesse público não é, assim, considerado constitucionalmente como um valor
absoluto, como um valor que se sobrepõe a todos os outros, o que não admira, já que se
sabe que o fundamento último do Estado de Direito é a dignidade da pessoa humana.
Daí que o princípio da prossecução do prossecução do interesse público se tenhade harmonizar com o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente
protegidos.
Mas, pergunta-se, quando se está perante um direito subjectivo e quando se está
perante um interesse legalmente protegido?
Na esteira da doutrina tradicional, existe um direito subjectivo quando o seu titular
tem um interesse próprio e, para a sua defesa, tem a faculdade de exigir da Administração
um ou vários comportamentos que satisfaçam integralmente esse direito. Já, pelo contrário,
estamos perante um interesse legalmente protegido quando o seu titular tem um interesseindirecto, protegido por lei, não em seu benefício mas do interesse público, pelo que, para
sua defesa, o titular do interesse só pode exigir o cumprimento da lei ou que não
prejudique o seu interesse incumprindo a lei. O titular do interesse legalmente protegido
não pode exigir à Administração Pública que satisfaça integralmente esse interesse porque
a lei não o protegeu directamente, não o protegeu como um interesse desse titular mas
simplesmente como interesse público245.
Pense-se num terreno da propriedade de um particular considerado a localização
adequada à construção de um hospital público. Se o particular não quiser vender o terreno
ao Estado, este deve expropriá-lo no âmbito de um procedimento administrativo próprio,
constante do Código das Expropriações, um procedimento que se inicia com a declaração
de utilidade pública concreta do terreno. Se tal não acontecer, isto é, se não houver a prévia
declaração de utilidade pública do terreno, e se iniciarem as tarefas de terraplanagem do
terreno, o proprietário pode instaurar uma acção em tribunal exigindo que as máquinas
sejam retiradas do seu terreno e este seja colocado na situação em que estava antes.
Porquê? Pois porque apesar do interesse público da construção do hospital ser premente, a
245 Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, com colaboração de LINO TORGAL, vol. II,Almedina, 2001, pp. 65 e ss..
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prossecução desse interesse tem de respeitar o direito subjectivo do proprietário, neste
caso, o direito a ser expropriado num procedimento administrativo legal. Até que isso
aconteça, o proprietário tem a faculdade de exigir a reposição integral do terreno como
estava antes das máquinas nele terem entrado.
Pense-se, agora, num concurso previsto na lei para preenchimento de uma vaga naAdministração Pública. E pense-se que alguém se apresenta a concurso com um
curriculum cheio de qualificações adequadas para o lugar vago. Se o órgão competente
prescindir das fases subsequentes do concurso e nomear esse candidato, os demais
candidatos à vaga podem instaurar uma acção em tribunal invocando a ilegalidade
cometida e exigindo que a lei se cumpra. Não têm direito à vaga mas têm um interesse
protegido por lei a que o concurso siga suas fases com vista à demonstração de quem é o
melhor candidato para o preenchimento da vaga.
No primeiro caso, o proprietário do terreno tem um direito subjectivo, no segundocaso, os candidatos ao lugar vago têm um interesse legalmente protegido.
A Administração Pública não pode desrespeitar o direito subjectivo nem o interesse
legalmente protegido invocando a necessidade que tem em prosseguir o interesse público.
Em suma, se, de um lado, os direitos fundamentais dos cidadãos se desdobram em
interesses públicos que implicam o agir da Administração Pública (são fim ou intenção da
acção), de outro, tais direitos, bem como os interesses protegidos por lei funcionam como
entraves à acção da Administração Pública (são limite da acção).
48.4. A prossecução do interesse público pelos privados. A eficácia e a
eficiência da acção de prossecução do interesse público.
Os interesses públicos, como se viu antes, podem ser prosseguidos por privados.
Aliás, como também se viu, a realização de interesses públicos por privados tende a
generalizar-se através de movimentos do movimento recente de privatização de empresas
públicas ou da privatização de funções públicas e, bem assim, da propagação da figura
jurídica das parcerias público-privadas e de outras fórmulas de contratualização de serviços
públicos. Estes movimentos aparecem ligados à defesa de um maior comprometimento dos
privados na acção administrativa, com o objectivo de permitir, por um lado, que o interesse
público possa usufruir da natural criatividade da gestão económica privada, por outro,
que o mesmo interesse público possa obter ganhos de eficiência, reconhecida como sendo
maior no sector privado do que no tradicional sector público.
Questão que, neste quadro, se vem colocando, diz respeito à potencial
promiscuidade entre entidades públicas e privadas, desde logo em razão dos titulares dos
respectivos órgãos de gestão, e à apetência que decorre de as obras e serviços públicos
desenvolverem interesses económicos de vulto, pressionar no sentido de gerar distorções e
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fugas à lei nos procedimentos administrativos. Por outras palavras, o peso dos interesses
económicos é tão grande e a tendência para que os interesses públicos e privados confluam
é tão acentuada, que a pressão no sentido de desvios à lei e ao direito, por parte dos
gestores, são muito fortes.
Mas o Estado de Direito tem os seus sistemas de controlo, que devem estarparticularmente atentos às situações enunciadas. Falamos do controlo político da
Assembleia da República sobre o Governo (artigo 162º, al. a)), o órgão superior da
Administração Pública (artigo 182º), falamos na defesa da legalidade democrática
empreendida pelo Ministério Público (artigo 219º), falamos da fiscalização da legalidade
das despesas públicas, empreendida pelo Tribunal de Contas (artigo 214º), falamos da
acção da polícia administrativa em geral e da polícia judiciária em particular, no detectar
de situações de ilegalidade, falamos da fiscalização empreendida pelos tribunais nos feitos
que lhes são submetidos a julgamento, sancionando as infracções, criminais ou outras.Na luta pela defesa da lei e do direito, os Estados têm vindo a conferir atenção
particular à transparência dos procedimentos e actuações na prossecução do interesse
público, seja quando é a Administração Pública quem directamente prossegue esse
interesse seja quando a Administração Pública é garante dessa prossecução. O princípio da
transparência, que já vimos ser um princípio estruturante do Estado, adquire, no âmbito da
Administração Pública, papel decisivo, desde logo para sustentar a mudança de paradigma
que, em diversos quadrantes e sob diferentes perspectivas, temos vindo a referenciar.
E não é seguramente por acaso que uma expressa menção é feita ao princípio datransparência no Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008,
de 29 de Janeiro, que transpôs várias directivas comunitárias.
Com efeito, no nº4 do artigo 1º do Código dos Contratos Públicos afirma-se: «À
contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da
igualdade e da concorrência.» A precedência do princípio relativamente, desde logo, ao
princípio da igualdade, é sintomático do relevo que se pretendeu atribuir ao princípio da
transparência precisamente no momento em que se seleccionam os contraentes privados do
Estado246.
246 Sobre este Código dos Contratos Públicos, em especial, MARCELO REBELO DE SOUSA /ANDRÉ SALGADO
MATOS , Contratos Administrativos. Direito Administrativo Geral, vol. III, Edições Dom Quixote, 2008.
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II
O princípio da legalidade administrativa
49. O princípio da legalidade administrativa
A prossecução do interesse público pela Administração Pública não é empreendida
de qualquer maneira. Com efeito, se o interesse público é o motor da acção administrativa -
- princípio da prossecução do interesse público--, o fundamento dessa acção e os limites a
que está sujeita encontram-se na lei -- princípio da legalidade administrativa.
O princípio da legalidade administrativa tem assento constitucional, concretamente
no nº 2 do artigo 266º -- «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados àConstituição e à lei...»
49.1. O princípio da legalidade administrativa. Origem.
O princípio da legalidade administrativa não é de formação recente. Pelo contrário.
Ele estruturou, com o da prossecução do interesse público e desde a origem, o Direito
Administrativo. Num primeiro momento, a lei apresentou-se como limite à acção
administrativa, impedindo-a de agir, o que significa que, onde há lei, a Administração deverespeitá-la, não pode violá-la ( princípio da proibição do agir ); num segundo momento,
começou a entender-se que, para actuar, a Administração precisava de uma lei que previsse
e fundasse o seu actuar, o que significa que, onde não há lei, não pode a Administração
agir ( princípio da competência).
Assim colocada a questão é bem de ver que o princípio da legalidade
administrativa decorre do princípio da separação de poderes, já que a ideia de que a
Administração só pode agir com fundamento na lei tem o sentido de primado do poder
legislativo sobre o poder administrativo247.
49.2. Conteúdo actual do princípio da legalidade administrativa. Em especial,
a obediência da Administração Pública à Constituição.
Na actualidade, o princípio da legalidade não abrange só a vinculação à lei formal,
emanada do poder legislativo. A legalidade a que o princípio apela integra toda a
247 Sobre o assunto, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, com colaboração de LINO
TORGAL, vol. II, Almedina, 2001, pp. 40 e ss..
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normatividade a que, desde MAURICE HAURIOU, é usual designar-se por bloco legal.
Assim, a legalidade integra a Constituição, a lei da Assembleia da República e o decreto-
lei do Governo, os princípios gerais de direito, os regulamentos, os direitos emergentes de
contratos, de actos administrativos, de decisões judiciais e, por isso, tem o sentido de um
princípio de juridicidade mais do que de legalidade248.
A obediência da Administração pública ao princípio da legalidade com esta
amplitude levanta, não raras vezes, problemas complexos de aplicação, já que a lei que se
apresenta à Administração para fundar a sua acção pode ser inconstitucional. E a pergunta
coloca-se de imediato: pode a Administração Pública ajuizar a constitucionalidade da lei e
só se sentir a ela vinculada quando conclui que essa lei é constitucional? Ou o juízo de
constitucionalidade de uma lei pertence, em exclusivo, aos tribunais?
Assim equacionado, o problema levanta complexas e delicadas questões, políticas e
jurídicas, em teoria e na prática, já que, sendo a Constituição quem impõe a vinculação da
Administração Pública à lei (artigo 266º, nº2), aceitar, sem mais, que o juízo de
constitucionalidade feito pela Administração introduz elementos de instabilidade na acção
administrativa (há que uns órgãos podem concluir que a lei é inconstitucional e não se
sujeitam a ela e outros órgãos entenderem que a mesma lei é constitucional, a ela se
sujeitando) e afastar esse juízo, implica desrespeitar a própria Constituição249.
Entendemos que a obediência da Administração Pública à Constituição, consagrada
no artigo 266º, nº 2, tem o sentido de acréscimo de juridicidade da acção administrativa. É
um plus que torna a acção administrativa mais exigente e, em concreto, implica que a
Administração Pública possa recusar, de um lado, a aplicação de normas legais que
contrariem direitos fundamentais directamente aplicáveis por força do artigo 18º, nº1, da
Constituição, isto é, direitos, liberdades e garantias ou direitos de natureza análoga (cfr.
também o disposto no artigo 17º) e, ainda, normas em que a inconstitucionalidade seja, nas
circunstâncias, razoavelmente evidente.
248 Sobre o assunto, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, «O Ordenamento Jurídico Administrativo», in
Contenciosos Administrativo, Braga, 1986, pp. 35-48 e o nosso Justiça administrativa. Sua origem eevolução, pp. 634 e ss.249 Sobre o assunto, RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, UCP Editora, 1999.
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49.3. O princípio da legalidade administrativa e os seus subprincípios: o
princípio da preferência de lei ou da prevalência de lei e o princípio da reserva de lei
ou de precedência de lei.
É costume autonomizar, no âmbito do princípio da legalidade administrativa doissubprincípios: o da preferência ou prevalência de lei e o da reserva de lei ou precedência
de lei.
De acordo com o princípio da preferência ou prevalência de lei, a Administração
está proibida de praticar actos contrários à lei e, se o fizer, os actos são inválidos (nulos ou
anuláveis). De acordo com o princípio da precedência de lei ou da reserva de lei, a
Administração só pode agir se houver uma lei prévia a definir essa actuação; sem uma lei
que defina as atribuições de uma entidade pública e as competências dos respectivosórgãos, bem como os termos dessa actuação, não há acção administrativa válida.
49.4. O princípio da legalidade administrativa e a acção administrativa
Toda a acção administrativa quer consista da elaboração e aprovação de
regulamentos, quer na prática de actos administrativos, quer na celebração de contratos
quer, ainda, na realização de operações materiais, no âmbito da actividade técnica
administrativa, deve obediência à lei, isto é, está a esta submetida.
Acontece, porém, que a lei não disciplina sempre do mesmo modo a actuação das
entidades públicas.
Na verdade, umas vezes a lei entra em detalhes, pormenoriza o procedimento e o
conteúdo da acção administrativa, deixando ao órgão administrativo pouca margem para
decisão própria. Diz-se, então, que a vinculação da Administração à lei é grande. Outras,
porém, atribui à Administração poder para esta usar em razão do conhecimento da
realidade que só ela detém, uma realidade que varia consoante o tempo em que se decide,
as circunstâncias que envolvem a decisão, os destinatários da acção... Diz-se, agora, que a
vinculação da Administração à lei é menor, porque a lei lhe atribuiu um poder
discricionário, mais ou menos amplo, para esta exercer em função da realidade concreta.
A sujeição da Administração à lei convive, assim, com o exercício do poder
discricionário, já que não só é a lei que o atribui ao órgão decisório, como é ela que lhe
define os contornos. O poder discricionário, atribuído por lei à Administração, corresponde
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à margem de decisão própria desta, a fim de que a Administração possa atingir as melhores
soluções para as situações concretas que tem de resolver.
49. 5. O princípio da legalidade administrativa. Em especial, a acção
administrativa em estado de necessidade.
Há, no entanto, situações, previstas no artigo 3º, nº 2, do Código do Procedimento
Administrativo, em que se aceita que a Administração Pública actue com preterição ou
desrespeito de normas procedimentais. São as que integram a figura do estado de
necessidade.
Diz o nº2 do referido artigo 3º: «Os actos administrativos praticados em estado de
necessidade, com preterição das regras estabelecidas neste Código, são válidos, desde queos seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo....» Isto significa que
o legislador entende que, apesar do desrespeito das normas procedimentais, os actos são
válidos porque o estado de necessidade não convoca uma situação de excepção ao
princípio da legalidade. Pelo contrário, o estado de necessidade, uma vez configurado no
plano dos factos, apela a um superior sentido de juridicidade, que afasta, no concreto, o
cumprimento estrito da lei formal250.
O estado de necessidade pressupõe a urgência, a natureza imperiosa do interesse a prosseguir e, bem assim, a excepcionalidade da situação.
49. 6. O princípio da legalidade administrativa. Em especial, as actuações
administrativas informais.
Recentemente, a doutrina vem chamando a atenção para «acções administrativas
informais»251, como actuações da Administração Pública fundadas em atribuições
expressamente previstas na lei que cria uma entidade pública mas em competências
implícitas dos seus órgãos, não expressamente formalizadas em procedimentos.
A Administração Pública age, então, invocando competências implicitamente
previstas na lei que cria a entidade pública e lhe define as atribuições, mas não invocando
250 Sobre o estado de necessidade, DIOGO FREITAS DO AMARAL /MARIA DA GLÓRIA GARCIA, O estado denecessidade e a urgência em Direito Administrativo, in separata da Revista da Ordem dos Advogados,Lisboa, Abril de 1999, pp. 447-517.251 SUSANA MARIA CALVO TAVARES DA SILVA, «Actuações informais e medidas de diversão em matéria de
urbanismo», in Revista do CEDOUA, ano III, nº 1, pp. 55 e ss e PEDRO LOMBA, «Problemas da actividadeadministrativa informal» in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 41, nº 2, pp.817 e ss.
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uma específica lei que lhe defina a modalidade ou tipo de acção usado. Entende-se que esta
é uma forma de corresponder à imensa variedade de situações que se colocam hoje à
Administração para dela obterem resposta, bem como à rápida evolução a que tais
situações estão sujeitas, incapazes, por isso mesmo, de se conterem em leis formais pré-
definidas.
Seja, porém, como for a verdade é que a aceitação das actuações informais da
Administração não significa, aqui também, uma excepção ao princípio da legalidade, antes
o apelo, de novo, a um sentido mais amplo de juridicidade, já que tais actuações devem ser
sempre pautadas por rigorosos critérios jurídicos, desde logo os decorrentes de princípios
gerais de direito.
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III
Princípio da igualdade
Prosseguindo o interesse público no respeito pelos direitos e interesses legalmenteprotegidos dos particulares, a Administração Pública tem de agir, como se viu, na base da
lei, que é também o seu limite. Simplesmente, como também se viu, a lei não disciplina o
agir administrativo sempre de forma totalmente vinculada. Atribui poder discricionário à
Administração, em maior ou menor grau, consoante as situações. Essa margem de
autonomia atribuída por lei à Administração permite-lhe procurar e encontrar as melhores
decisões, de acordo com factores de ponderação ajustados às situações.
Deste modo, no exercício dessa margem de autonomia ou poder discricionário, aAdministração Pública actua obedecendo a princípios jurídicos, como a Constituição
expressamente consagra no nº 2 do artigo 266º. Aí se afirma: «Os órgãos e agentes
administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das
suas funções, com respeita pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da
justiça, da imparcialidade e da boa-fé»252.
50. Princípio da igualdade.
A igualdade é um valor fundamental do Estado de Direito253 e como tal se encontra
reconhecida na Constituição, no artigo 13º (nº1.«Todos os cidadãos têm a mesma
dignidade social e são iguais perante a lei.» nº2. « Ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em
razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções
políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação
sexual» ).
Neste momento, porém, mais do que dissertar sobre o valor igualdade, interessa
focar a atenção sobre o modo como a igualdade conforma o princípio que limita a acção da
Administração no exercício do poder discricionário254.
252 Ver anotação a este artigo em JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, vol. III.253 Sobre o assunto, ver o nosso Estudos sobre o princípio da igualdade, Almedina, 2005.254 Sobre o poder discricionário, DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LINO TORGAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2001, pp. 73 e ss.
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Assim, importa lembrar que é nas suas relações entre a Administração Pública e os
particulares que o princípio ganha sentido. E importa lembrar também que o princípio da
igualdade impõe à Administração, de um lado, uma proibição de discriminar e, de outro,
uma obrigação de diferenciar. Por outras palavras, a Administração deve tratar os
particulares igualmente, não podendo privilegiar uns em detrimento de outros, e, se osparticulares estiverem em situação desigual, tratá-los desigualmente, na exacta medida da
diferença.
O princípio da igualdade funciona como um limite interno da acção administrativa,
no exercício do poder de autonomia que lhe é atribuído por lei, o seu poder discricionário.
É uma vinculação autónoma da Administração Pública, pelo que o acto administrativo que
viole o princípio da igualdade é inválido.
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IV
Princípio da proporcionalidade
51. Princípio da proporcionalidadeO princípio da proporcionalidade é um outro limite interno da Administração
Pública, quando esta age no exercício do poder discricionário. É um princípio que, tal
como o anterior, entra no âmago da decisão administrativa, interferindo no seu poder de
escolha do momento de agir e do quantum desse agir. E também, tal como o anterior,
tornou-se limite constitucional à acção administrativa na revisão constitucional de 1989255.
Impõe este princípio à Administração, na prossecução do interesse público, que a
limitação de bens ou interesses privados só possa ter lugar se tal for considerado
objectivamente necessário, só possa ter lugar através do uso de medidas adequadas àsfinalidades a atingir e só possa ter lugar se as medidas forem proporcionais ou equilibradas
às finalidades a atingir, tendo presente as circunstâncias concretas a que a acção
administrativa se dirige.
Necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito ou equilíbrio entre
meios e fins são as três vertentes em que se decompõe o princípio da proporcionalidade,
um princípio que tem uma especial expressão prática no âmbito da actividade
administrativa de natureza policial.
Encontramos afloramentos do princípio da proporcionalidade no nº 2 do artigo 272ºda Constituição256, a propósito das medidas de polícia, quando estipula: «As medidas de
polícia são as previstas na lei, não podendo ser utilizadas para além do estritamente
necessário»257 .
A violação do princípio da proporcionalidade determina a invalidade do acto
administrativo.
255 Com efeito, a versão originária do nº 2 do artigo 266º da Constituição (correspondente ao então artigo267º), depois de consagrar o princípio da legalidade (Os órgãos e agentes administrativos estão subordinadosà Constituição e à lei), acrescentava somente «e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da justiça e da imparcialidade». Os princípios da igualdade e da proporcionalidadeentraram, assim, na Constituição, com o objectivo de garantir a vinculação expressa da Administração, em1989. Quanto ao princípio da boa fé só viria a ser aditado na revisão constitucional de 1997.256 Ver anotação a este artigo em JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, vol. III.257 Do mesmo modo, veja-se o artigo 19º, nº4,a propósito da opção pela declaração do estado de sítio ou
estado de emergência, bem como as respectivas declaração e execução, que «devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, aoestritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional».
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192
V
Princípio da justiça
52. Princípio da justiça.
Como afirma DIOGO FREITAS DO AMARAL, o princípio da justiça é «um princípio
compósito, ou um 'princípio de princípios'»258 , querendo com isso significar duas
realidades distintas. Em primeiro lugar, que o princípio da justiça está presente ou integra
grande número de outros princípios, nomeadamente, o princípio da igualdade, o princípio
da proporcionalidade, o princípio da boa-fé. Em segundo lugar, que o princípio da justiça
tem força própria, dele podendo surgir novos princípios, à medida que, com a evolução
comunitária, se vão sedimentando valores novos, já que o núcleo da justiça coincide comessa abertura valorativa que acompanha a evolução.
Mas dizer que a acção administrativa deve obediência ao princípio da justiça, como
resulta claramente do nº2 do artigo 266º da Constituição, o que significa na prática? Pois
tem o sentido de obrigar a Administração a ponderar o conjunto de valores que, em cada
momento, emanam da dignidade humana e que dão um acréscimo de juridicidade à decisão
administrativa, tudo para além das vinculações a que a Administração está adstrita em
razão dos outros princípios que também a vinculam. É, no fundo, exigir da Administraçãoque teste a sua acção pelos valores da dignidade humana em que se funda todo o Estado e,
logo, a sua acção administrativa, que a teste por um crivo mais fino e exigente, o crivo dos
critérios de justiça material, sem o que o interesse público não pode ser prosseguido. E,
também aqui, a violação do princípio da justiça acarreta a invalidade do acto
administrativo.
258 DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LINO TORGAL, Curso de Direito Administrativo, vol.II, Almedina, 2001, p. 139.
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VI
Princípio da imparcialidade
53. Princípio da imparcialidade.O princípio da imparcialidade determina que a Administração trate de forma
«imparcial todos quantos com ela entrem em relação» (artigo 6º do Código do
Procedimento administrativo)259.
Procurando densificar o princípio diremos que ele impõe aos titulares dos órgãos da
Administração Pública o dever de actuar de forma isenta, correcta, equidistante, acima dos
interesses em presença (super partes), analisando todos os interesses, ponderando-os
devidamente, tudo vertendo na decisão.
O princípio comporta uma vertente negativa e uma vertente positiva.Na vertente negativa, o princípio introduz a ideia de que os titulares de órgãos e
agentes da Administração estão impedidos de intervir em procedimentos administrativos,
ou em acto ou contrato de direito público ou privado, em que se discutam interesses
pessoais, familiares ou de pessoas com quem tenham relações de proximidade. Pretende-se
com este impedimento evitar que se suspeite da correcção ou isenção da sua conduta no
procedimento que irá ter lugar. Por isso, o Código do Procedimento Administrativo prevê
um conjunto de garantias de imparcialidade (artigos 44º-51º).
O Código distingue situações de impedimento, mais graves, caso em que ostitulares dos órgãos ou os agentes administrativos devem considerar-se impedidos
verificada que for a situação de impedimento (estas situações estão elencadas no artigo
44º) e situações de suspeição, menos graves (situações enunciadas no artigo 48º), em que
os titulares dos órgãos ou agentes administrativos têm o direito de pedir escusa de
intervenção no procedimento e os particulares interessados têm o direito de opor suspeição
e pedir a substituição do titular do órgão ou agente.
Quanto à vertente positiva do princípio da imparcialidade, a mesma impõe aos
titulares dos órgãos ou agentes que ponderem exaustivamente todos os interesses em
presença, isto é, procurem detectar todos os interesses com relevo para a decisão e, de
seguida, os ponderem, um a um, com o mesmo grau de rigor comparativo. Entende-se que
um rigor de ponderação de um interesse e o menosprezo ou menor ponderação relativa de
outro introduz factores de parcialidade na análise procedimental e vicia a decisão
administrativa ou o juízo administrativo que seja feito sobre uma situação.
259 Sobre este princípio, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A imparcialidade da Administração como princípio constitucional, in separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 1978; MARIA
TERESA DE MELO RIBEIRO, O princípio da imparcialidade da Administração Pública, Almedina, 1996;DAVID DUARTE, Procedimentalização, participação e fundamentação: para uma concretização do princípioda imparcialidade administrativa como parâmetro decisório, Almedina, 1996
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VII
Princípio da boa fé
54. Princípio da boa-fé.O princípio da boa-fé é o mais recente princípio constitucional da acção
administrativa, já que foi aditado ao nº2 do artigo 266º na revisão constitucional de
1997260.
Tem a sua origem no direito privado, que lhe dedica especial atenção, e é, nesse
âmbito, alvo de amplo tratamento dogmático261.
A autonomização do princípio da boa fé e a sua consagração constitucional como
princípio da acção administrativa tem um objectivo claro: criar, por seu intermédio, um
clima de confiança e previsibilidade nas condutas administrativas, promovendo, ao mesmotempo, da parte dos particulares, idêntico comportamento junto da Administração.
Por força do princípio da boa fé não poderá haver comportamentos inconsequentes
da parte da Administração, que ora aceitem uma posição, fundadamente, e amanhã,
aceitem o seu contrário, também fundadamente, por outras palavras, a Administração não
pode mudar injustificadamente de critério. Porque o Estado, através da sua Administração,
deve agir como pessoa de bem.262
O princípio da boa fé tem, no âmbito do procedimento pré-contratual e do
procedimento contratual, lugar de eleição para se manifestar, dando origem, havendodanos, a acções de indemnização. Com efeito, em tais procedimentos se gera e consolida a
confiança indispensável quer à correcta selecção do contraente quer à conformação dos
termos do contrato a celebrar.
Não é, porém, qualquer confiança que implica tutela ou protecção jurídica. Para
que se verifique uma situação de tutela é necessário, de um lado, que o lesado esteja de boa
fé (boa fé subjectiva); de outro, que a contraparte crie um quadro de plausibilidade da sua
actuação futura, quadro esse objectivamente construído; de outro, ainda, é necessário o
investimento de confiança, traduzido em actuações desenvolvidas na convicção de que esse
quadro se irá cumprir; finalmente, é necessário imputar a quebra de confiança a quem a
criou263.
260 Tenha-se presente que o princípio já constava do Código do Procedimento Administrativo em razão darevisão feita a este Código pelo Decreto-Lei nº 6/96, de 31 de Janeiro. O artigo que consagra este princípio éo artigo 6º-A.261 Por todos, JOÃO BAPTISTA MACHADO, Tutela da confiança e «venire contra factum proprium», in JoãoBaptista Machado. Obra dispersa, vol. I, Scientia Juridica, Braga, 1991, pp. 345 e ss.; A NTÓNIO MENEZES
CORDEIRO , Da boa fé no direito civil, vol. I e II, Coimbra, 1984.262 DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LINO TORGAL, Curso de Direito Administrativo, vol.
II, Almedina, 2001, p. 135.263 Sobre estes pressupostos, DIOGO FREITAS DO AMARAL, com a colaboração de LINO TORGAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2001, p. 137.
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