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Bernardo Sanchez da Motta

O processo contra GalileuBreve cronologia

Lisboa, Abril de 2008

O processo contra Galileu Breve cronologia

ndiceNDICE......................................................................................................................................................... 2 I. INTRODUO .......................................................................................................................................... 3 II. COPRNICO E A SUA OBRA .................................................................................................................... 11 III. GALILEU GALILEI ............................................................................................................................... 13 III. DE GALILEU AOS DIAS DE HOJE .......................................................................................................... 47 V. CONCLUSO ......................................................................................................................................... 54 VI. CARTA DE GALILEU A BENEDETTO CASTELLI..................................................................................... 61 VII. CARTA DE GALILEU A CRISTINA DE LORENA..................................................................................... 61 VIII. INSTRUO DO PROCESSO (ABRIL DE 1633)...................................................................................... 63 IX. FONTES .............................................................................................................................................. 67 X. AGRADECIMENTOS............................................................................................................................... 68

Nota Este texto apenas uma verso preliminar. Verses actualizadas iro aparecer ao longo do tempo na Internet, em http://espectadores.blogspot.com.

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I. IntroduoTenho duas fontes de perptuo conforto: primeiro, que nos meus escritos no se pode encontrar a mais tnue sombra de irreverncia em relao Santa Igreja; e segundo, o testemunho da minha prpria conscincia, que apenas eu e Deus no Cu conhecemos. E Ele sabe que nesta causa pela qual eu sofro, apesar de que muitos podem ter falado dela com mais erudio, ningum, nem mesmo os antigos Padres, falou com mais piedade ou como maior zelo pela Igreja do que eu Carta de Galileu a Nicol Fabri di Peiresc, de 21 de Fevereiro de 16351.

No se pretende com estas breves notas trazer qualquer novidade a esta temtica, nem obviar consulta do enorme acervo bibliogrfico sobre ela existente. O objectivo simples: fornecer informao elementar, sobretudo cronolgica e biogrfica, sobre Galileu e o clebre processo que lhe foi movido pelo Santo Ofcio. Evitam-se juzos de valor ou de moral, preferindo-se a enumerao de factos e informao slida. A distncia histrica face a estes acontecimentos obriga a uma viso o mais possvel desapaixonada e isenta de polmica. quase unnime afirmar que o processo contra Galileu foi injusto, e esta afirmao no se contesta. Por outro lado, e como este caso costuma ser invocado como forma de montar um argumento de uma pretensa incompatibilidade entre Cincia e Religio, fundamental a posse de noes bsicas sobre o tema para que se possa refutar este falso argumento. Galileu nunca deixou de ser catlico e de amar profundamente a Igreja (talvez mais do que aqueles que o condenaram). Nunca foi declarado herege nem excomungado. Mais do que um paradigma de um presumido confronto perptuo entre Cincia e Religio, o caso Galileu constitui um bom exemplo de complexa intriga social, na qual as dificuldades inerentes a um pensamento cientfico em processo de amadurecimento constituem o pano de fundo, ao qual se juntam difamaes pessoa de Galileu, depoimentos annimos repletos de falsidades, confuses inconscientes ou deliberadas, abusos de poder e manipulaes a noes teolgicas, guerras pessoais contra Galileu, motivadas por inimigos e adversrios do sbio, tanto leigos como membros do clero, que lhe invejavam a qualidade da obra, a1

Carta escrita aps a sentena de 1633. Opere di Galileo, Edizione Nazionale, vol. XVI, p. 215.

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vastido dos conhecimentos, e sobretudo a sua elevada fama e estima por parte dos poderes espirituais e temporais da poca. tambm de destacar a considerao que por ele teve, pelo menos numa fase inicial, o Papa Urbano VIII. Pode-se conjecturar que este, talvez desgostado com certas atitudes e intenes de Galileu que lhe comearam a chegar aos ouvidos a partir de 1632, algumas reais, outras inventadas ou distorcidas, e certamente influenciado pela presso dos seus adversrios, acabaria por subvencionar o processo inquisitorial de 1633 que ditaria a injusta pena de priso domiciliria at ao final da vida, pena essa que nunca seria levantada. No entanto, no fcil ter certezas acerca das intenes que levaram o Papa Urbano VIII a condenar Galileu, que podero tambm estar marcadas pelo contexto poltico de ento. O contexto histrico que marca este perodo crucial para a compreenso do caso Galileu. Entre 1545 e 1563 desenrola-se o Conclio de Trento, ponto alto da Contra-Reforma, que seria a reaco catlica s revolues doutrinrias de Lutero (1483-1546). O fenmeno do Protestantismo, inaugurado por Lutero, contribuiu para a atitude de constante sobressalto do Santo Ofcio durante os sculos XVI e XVII perante quaisquer questes doutrinrias que pudessem complicar mais ainda o j agitado contexto da f crist de ento. No entanto, talvez mais relevante ainda, no panorama histrico, a grande Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que ajuda a compreender o complexo tecido poltico de alianas e guerras regionais que marcaram o pano de fundo da Europa do tempo de Galileu. Tendo tido a sua origem num conflito interno da Alemanha, que opunha o catlico Sacro Imprio Romano-Germnico, liderado por Fernando II da dinastia dos Habsburgos (que tambm reinavam na ustria, em Espanha e em Portugal, sob Filipe IV Filipe III de Portugal), contra o Palatinado da Rennia, liderado pelo protestante Prncipe-Eleitor Frederico V, rapidamente degenerou em conflito escala europeia. O conflito no se limitou a uma motivao religiosa, pois foi vincadamente poltico: no plano interno da prpria Alemanha, um conflito entre o poder imperial dos Habsburgo e o poder dos principados protestantes; no plano externo, um conflito que se previa polarizado entre catlicos e protestantes d lugar a um cenrio complexo: tanto a Frana como a Espanha (com Portugal), catlicas, lutavam pelo objectivo de consolidar o seu poder na Europa: a Espanha, lutando necessariamente ao lado do Sacro Imprio do Habsburgo Fernando II, aliou-se ustria e

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Baviera, formando a Liga Catlica. Por outro lado, Frana aliou-se s potncias protestantes, Bomia, Inglaterra, Holanda, Dinamarca e Sucia, para combater a Liga Catlica2. O Papa Urbano VIII, que numa primeira fase apoiava naturalmente os Habsburgos e o Sacro Imprio, a partir do momento em que a Frana entra no conflito declarando guerra Espanha, decide apoiar os franceses. A preferncia de Urbano VIII por Richelieu e por Lus XIII iria marcar uma fase problemtica do seu papado3: face oposio de muitos dos seus cardeais, Urbano VIII procurou silenciar essa oposio, afastando figuras contestatrias s suas opes polticas ou que demonstrassem simpatias pr-espanholas. Alguns importantes amigos de Galileu, como Monsenhor Giovanni Cimpoli (1589-1643), conotados com essas simpatias, seriam deste modo afastados de posies influentes. Para mais, Galileu sempre fora protegido pelo patronato do Gro-Ducado da Toscnia, primeiro com Cosme II de Mdicis (at sua morte em 1621), e depois com o seu filho Fernando II de Mdicis, mas essa proteco viria a custar-lhe cara durante esta fase do papado de Urbano VIII: Fernando II fez-se aliado do Imperador, bem como de Veneza, e tomou o seu partido na guerra sucessria de Mntua, ou seja, contra a posio tomada pelo Papa, que nesta guerra apoiava os franceses. Nestes tempos conturbados, fcil ver que o patronato dos Mdicis a Galileu, que em tempos fora to importante, s vinha piorar a situao do sbio.Numa primeira fase, 1618-1621, o conflito centra-se na Bomia, onde uma rebelio rejeitou o poder Habsburgo e prestou vassalagem a Frederico V do Palatinado. Fernando II, ajudado pelos espanhis, derrota os bomios e Frederico V a 8 de Novembro de 1620. Os espanhis, entretanto, ocupam uma parte substancial das posses de Frederico na Rennia. Entre 1621 e 1624, o Prncipe-Eleitor tentou recuperar os seus territrios, mas sem sucesso. Entre 1625 e 1630, a guerra amplia-se com a entrada em cena dos Holandeses, inimigos de Espanha, que se alinham Inglaterra e Frana para combater os Habsburgos e a Liga Catlica. Cristiano IV da Dinamarca lidera a causa, invadindo o norte da Alemanha, mas derrotado em 1626 pelos exrcitos de Fernando II, liderados pelo bomio Wallenstein. Entre 1630 e 1634, entra em cena a Sucia. Os exrcitos do rei Gustavo Adolfo invadem o norte da Alemanha, seguindo rapidamente para o Sul, obtendo entretanto o apoio da Saxnia. Fernando II decide enviar de novo Wallenstein para combater os dinamarqueses, e Gustavo Adolfo morto em batalha, em Ltzen (1632), perto de Leipzig. Os exrcitos imperiais, ajudados pelos espanhis, derrotam os suecos em Nrdlingen (1634). O Cardeal Richelieu, vendo que os suecos perdiam fora, decide que chegara a vez da Frana os apoiar, declarando guerra a Espanha (1635) e ao Sacro Imprio (1636). As campanhas em colaborao com os suecos alcanam alguns xitos: a Frana chega a controlar a Alscia e a Rennia, enquanto que os suecos se fortalecem no norte da Alemanha. No entanto, as campanhas no decorreriam sem prejuzo para os franceses, que se viam invadidos tanto pelo sul como pelo oriente pelos exrcitos espanhis e imperiais, que praticamente chegaram s portas de Paris em 1636. Em 1642, morre Richelieu, e um ano mais tarde, morre o rei Lus XIII. O regente Cardeal Mazarin, vendo-se responsvel pela coroa, com Lus XIV ainda criana no trono, e com a ameaa de crises internas (que viriam a culminar na crise da Fronda em 1648-1653), comea a fazer planos para a paz. Em 24 de Outubro de 1648, aps quatro anos de negociao entre as vrias partes, assinada a paz em Westfalia que pe termo Guerra dos Trinta Anos. 3 Fase esta que ficaria ainda marcada negativamente pela crise da guerra sucessria de Mntua (1628-1631), na qual a Frana se ops ao Imperador Fernando II, e na qual o Papa tomou o lado dos franceses, despendendo somas avultadas nos seus exrcitos.2

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Por outro lado, no plano religioso, a viso do mundo que o cristianismo prope uma viso que procura conciliar f com cincia, uma vez que, para os cristos, Cristo a prpria Verdade: nenhuma verdade cientfica poder invalidar uma verdade de f, e vice-versa. A tradio crist deixara bem slida a noo de que as Sagradas Escrituras, sendo necessrio que no contivessem erros por serem divinamente inspiradas, no constituam terreno adequado para dirimir questes cientficas, posto que diziam respeito salvao humana e no s cincias naturais. Na sua obra, De Genesi ad litteram, no final do primeiro livro, Santo Agostinho, sem nunca afirmar que h erro nas Escrituras, insiste na noo de que h necessidade de as interpretar correctamente para evitar leituras erradas. Caso alguma novidade cientfica comprovada entre em contradio com uma determinada interpretao habitual das Sagradas Escrituras, os cristos tm a obrigao de rever essa interpretao. Se h contradio, ento a interpretao do texto que est errada e no o texto em si. Agostinho defende a ideia de que as verdades cientficas so para ser levadas a srio pelos cristos, sob pena de serem motivo de escrnio por parte dos sbios pagos. Assim se constata que a tradio crist sempre estimou a cincia da hermenutica, que diz respeito interpretao correcta (ortodoxa) das Sagradas Escrituras, nunca permitindo leituras literais quando se est perante figuras de estilo. Por exemplo, quando se diz, em linguagem comum, que o Sol se ps, trata-se de uma figura de estilo, e no h dificuldades em tomar a afirmao como verdadeira, mesmo sendo certo que tal fenmeno se deve ao movimento de rotao da terra sobre o seu eixo, e no a um eventual aterrar do Sol sobre a Terra. Uma interpretao literal da expresso pr-do-sol, luz dos conhecimentos cosmolgicos de hoje, seria sempre absurda, em qualquer contexto. No entanto, no interpretar uma dada expresso de forma literal no implica, de forma alguma, como vimos no exemplo, que tal expresso seja falsa. deste modo que, com grande cautela, se preserva a inerrncia das Escrituras, a boa hermenutica, e a compatibilidade entre as verdades da doutrina crist e as verdades cientficas. O Cardeal Roberto Bellarmino4, que lidou com o primeiro inqurito a Galileu em 1616, era um homem sbio e sensato, muito respeitado entre os seus pares. Talvez porque viveu no contexto da ameaa protestante, o Cardeal Bellarmino defendeu com grande tenacidade a4

Foi beatificado (1923) e canonizado (1930) pelo Papa Pio XI.

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inerrncia das Sagradas Escrituras. Bellarmino receava o relativismo interpretativo da Bblia precisamente porque grande parte do protestantismo emergente estava marcado por esse relativismo, e o Cardeal sentia a necessidade de repor o equilbrio. H inmeras provas da cautela de Bellarmino face aos dois sistemas planetrios e s possveis implicaes de cada um destes para as Escrituras, sempre que nestas se falava da Terra ou dos astros5. Bellarmino no tinha objeces leitura de certas passagens da Bblia como sendo figurativas 6 , no entanto, queria preservar tanto quanto possvel a leitura literal do texto sacro, at que novos factos comprovados obrigassem a alteraes. Monsenhor Piero Dini escreveu o seguinte ao seu amigo Galileu, relatando-lhe uma conversa que tivera com o Cardeal Bellarmino:() Eu respondi-lhe [a Bellarmino] que podia acontecer que as Sagradas Escrituras empregassem aqui um modo corrente de falar, mas o Cardeal disse-me que nestas questes no se devem tirar concluses apressadas, do mesmo modo que no estaria certo condenar quem perfilhasse as posies que eu lhe tinha descrito [a favor do heliocentrismo]7

Uma atitude de prudncia intelectual levava Bellarmino a considerar a possibilidade de o modelo heliocntrico ser mais conforme com a realidade, no entanto, pelos seus escritos, fica claro que Bellarmino tinha enormes dvidas face ao heliocentrismo e no estava disposto a abandonar a interpretao literal das passagens que pareciam defender o geocentrismo, sem que fossem apresentadas provas conclusivas e irrefutveis. Visto que o novo modelo iria colocar em questo a interpretao tradicional de certas passagens das Escrituras, e porque isso poderia gerar confuso na populao no instruda, Bellarmino recomendava que no se tirassem concluses precipitadas, sobretudo na ausncia de provas definitivas, que Galileu ainda no possua em 1616. Acima de tudo, Bellarmino8 queria evitar a disseminao destas questes ainda em debate junto do pblico no especializado e no treinado nas lides hermenuticas. As obras de Galileu, escritas em italiano ao invs do latim

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Por exemplo, no Salmo 104, vs. 5 (Fundaste a terra sobre bases slidas, ela mantm-se inabalvel para sempre), e no livro de Josu, cap. 10, vs. 13 (E o sol se deteve, e a lua parou, at que o povo se vingou de seus inimigos. Isto est escrito no livro de Justo. O sol, pois, se deteve no meio do cu, e no se apressou a prse, quase um dia inteiro). 6 Figurativas, mas verdadeiras. O que a doutrina crist considera inaceitvel o erro nas Escrituras Sacras. 7 Citao retirada da obra de Jos Maria Costa Andr, Galileu, pp. 26-27. 8 E muitas outras figuras de autoridade dentro da Igreja.

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corrente nos meios cientficos, chegavam mais facilmente a audincias mais vastas, o que tambm contribuiu para a dimenso social que este caso veio a ter. Monsenhor Giovanni Cimpoli, numa carta enviada ao seu amigo Galileu, refora esta viso:O Cardeal del Monte disse-nos que tinha discutido demoradamente a questo do copernicanismo com o Cardeal Bellarmino e que tinham concludo que se o sistema de Coprnico fosse demonstrado sem chamar ao caso as Escrituras, cuja interpretao assunto de telogos qualificados, no haveria qualquer oposio9

o prprio Bellarmino quem escreve este texto, numa carta enviada ao frade carmelita Paolo Foscarini, adepto do copernicanismo e amigo de Galileu:() Vossa Reverncia e o Senhor Galileu actuariam prudentemente limitando-se a falar hipoteticamente e no de modo taxativo, como alis sempre fez Coprnico. Pois est muito bem dito, e no corre o risco [de comprometer alguma verdade teolgica], afirmar que se explica melhor aquilo que observamos supondo que a Terra se move e o Sol permanece fixo, do que imaginando crculos excntricos e epiciclos () Digo que, se fosse verdadeira a demonstrao de que o Sol est no centro do Universo e a Terra no terceiro cu, e que o Sol no gira em torno da Terra, mas a Terra em torno do Sol, ento seria necessrio ter muito cuidado ao explicar as Escrituras que parecem contrrias, dizendo eventualmente que no as entendemos, em vez de dizer que falso aquilo que se demonstra. Mas no creio que exista demonstrao at que eu o veja demonstrado; no o mesmo que dizer que visualizando o Sol no centro e a Terra no cu se explica melhor a realidade e demonstrar que na verdade o Sol est no centro e a Terra no cu. A primeira demonstrao julgo que se pode fazer, mas quanto segunda tenho grandssimas dvidas ()10

Este o cerne do problema cientfico e teolgico, que foi central no primeiro embate de 161611. No entanto, o processo a Galileu, como veremos, no se esgota em 1616, pois no se conhece neste ano nenhum documento inequvoco que prove uma condenao formal a Galileu. S mais tarde o processo atinge o auge, em 1633, quando Galileu interrogado, pressionado e condenado a pena de priso domiciliria por parte do Santo Ofcio, sob a aprovao do Papa Urbano VIII, que at ento demonstrara considerao por Galileu. A razo apontada pelos condutores do processo que levou condenao de 1633 era a da desobedincia de Galileu ordem que presumidamente lhe fora dada em 1616 para se abster

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Ibidem, p. 27. Ibidem, pp. 27-28. 11 Este primeiro embate processual teve incio em Fevereiro de 1615, quando o dominicano Niccol Lorini fez a primeira denncia de que h registo no Santo Ofcio contra Galileu Galilei.10

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de defender e ensinar o copernicanismo. Em 1633, as questes cientficas e teolgicas ficaro para segundo plano. O processo girar em torno da presumida desobedincia de Galileu, que, como veremos, no tinha fundamentao jurdica slida, porque do ano 1616 no h documentao que ateste que Galileu foi intimado ou forado formalmente a abjurar de ideia alguma. Pelo contrrio, um documento assinado pelo Cardeal Bellarmino atesta precisamente o oposto. A acusao apontava como prova de maior peso a edio da sua obra Dilogo acerca dos dois mximos sistemas do Mundo o Ptolemaico e o Copernicano, uma obra de divulgao, escrita em linguagem acessvel, na qual Galileu promovia o modelo copernicano. No se sabe exactamente como, e porque razes, surgiu esta polmica em torno do Dilogo. Nos documentos do processo, argumenta-se que Galileu conduziu de forma irregular o processo de pedido de autorizao da impresso do Dilogo, mas esta argumentao no convincente: Galileu apresenta a sua obra pela primeira vez ao Santo Ofcio, em Roma, em 1630. A obra recebe o imprimatur de Roma, bem com uns tempos mais tarde o imprimatur do Inquisidor de Florena, e impressa nessa cidade em Fevereiro de 1632. Mas o processo s ganha corpo no Vero deste ano, o que torna incompreensvel o argumento dado no processo de que Galileu no teria agido correctamente na legalizao da obra. H tambm que ter em conta o fermentar das diligncias e denncias feitas Inquisio acerca de Galileu por parte dos seus adversrios, alguns dos quais arrastavam dcadas de invejas, atritos e inimizades com o sbio. Entre outras razes, alegava-se falsamente que o Dilogo continha referncias crpticas a conceitos de magia e ocultismo. Faziam-se paralelos errados e injustos entre Galileu e Giordano Bruno (1548-1600), queimado por heresia em Roma no ano de 160012. E, talvez um motivo que ter trazido desgosto ao Papa Urbano VIII, as ms lnguas diziam que a personagem aristotlica fictcia, de nome Simplcio, que figurava no seu Dilogo, essa figura cujas ideias eram refutadas e ridicularizadas no confronto com as outras duas personagens, Salviati (o defensor do heliocentrismo) e Sagredo (neutro ao incio, mas que acaba convencido do heliocentrismo), seria uma stira ao prprio Papa. razovel

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costume supor-se que Giordano Bruno foi imolado por causa das suas ideias cientficas, no entanto, esta ideia dever ser falsa. Do pouco que se sabe sobe o processo de Bruno, porque a documentao praticamente desapareceu na totalidade, este parece ter sido conduzido por questes de f e de doutrina crist e no por questes filosficas ou cientficas. Apesar da terrvel injustia do seu processo e da pena de morte que lhe foi imposta, no linear comparar os dois processos, o de Bruno e o de Galileu, nem quanto s acusaes nem quanto pena.

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presumir que Galileu no teve essa inteno, mas tudo isto pode ter contribudo para o ressentimento do Papa. Sobre os adversrios de Galileu e sobre o mbil do processo, escreve Jos Maria Andr:A animosidade de muitos contra Galileu pode ajudar a entender o Processo. Ao longo dos anos, foi aumentando continuamente o nmero dos que, pelas razes mais diversas, pretendiam activamente a condenao de Galileu. Cremonino, Baltasar Capra, Martino Orchio, Francesco Sizii, Christopher Scheiner, Lodovico delle Colombe, Vincenzio di Grazia, Giorgio Coresi, Tommaso Palmerini, Orazio Grassi, Firenzuola e muitos outros, deram-se a um trabalho sem descanso, de escrever livros (geralmente caluniosos), de multiplicar acusaes contra Galileu, de fomentar boatos. O principal mbil claramente a condenao de Galileu e no o sistema de Coprnico, como se prova facilmente pelo facto de no ter sido impugnado at Galileu ter aderido a ele. Curiosamente, das vrias acusaes movidas contra Galileu, s esta acabou por ter consequncias directas, apesar de a memria gloriosa de Coprnico ser um obstculo de monta, a dificultar as manobras da acusao.13

Como se v, no processo movido contra Galileu, entram em jogo diversos factores e motivaes, pelo que no parece possvel tirar concluses simples. A falta de solidez de todo o processo pode ser constatada, e praticamente ningum discute que a pena de priso domiciliria imposta a Galileu foi dura e injusta. O que seguro afirmar que este caso no constitui prova de que a doutrina crist incompatvel com verdades cientficas ou que convive mal com a Cincia. Trata-se de um caso movido contra a pessoa de Galileu, por pessoas variadas e razes complexas, e no um choque frontal de ideias incompatveis. Para se compreender que o caso Galileu , no a regra na relao entre a Igreja e a Cincia, mas sim uma m excepo, til analisar primeiro, brevemente, a cronologia dos momentoschave da vida de Coprnico, pai do modelo que Galileu viria a defender no sculo seguinte.

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Jos Maria Andr, op. cit., pp. 40-41.

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II. Coprnico e a sua obra

Figura 1. Nicolau Coprnico (1473-1543)

1473 A 19 de Fevereiro nasce Nicolau Coprnico, em Toru, na Polnia. A famlia de Coprnico pertencia Ordem Terceira de S. Domingos. Nicolau e o seu irmo mais velho, Andr, seguiram a carreira eclesistica. A sua irm mais velha seguiu a vocao monacal e tornou-se Abadessa de Culm. 1491 Nicolau aluno da Universidade de Cracvia. 1497 O Bispo de Cracvia envia Nicolau e o seu irmo para estudar para Itlia (Universidade de Bolonha); Nicolau estuda, entre outras coisas, Direito Cannico. 1500 Nicolau e o seu irmo esto em Roma para assistir aos festejos do Jubileu. Nicolau d palestras sobre astronomia na Cidade Eterna. 1501-1503 Coprnico estuda Medicina e Jurisprudncia em Pdua e Ferrara. 1506-1512 Coprnico exerce medicina em Heilsberg. 1514 Durante o quinto conclio de Latro (1512-1517)14 convocado pelo Papa Leo X, este pede a Coprnico a sua opinio tcnica relativamente a uma reviso do calendrio litrgico; o

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Ver http://www.newadvent.org/cathen/09018b.htm.

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constante interesse de Coprnico pelo tema fez com que este contribusse de forma substancial para a reforma do calendrio gregoriano, a acontecer no final do sculo XVI. Final da dcada de 1520 Nicolau torna-se administrador da diocese de Frauenburg. 1537 O rei da Polnia, Segismundo, coloca o nome de Coprnico na lista de possveis sucessores para o ento vago cargo episcopal em Ermlund, o que faria presumir que Nicolau teria, a dada altura, recebido as ordens maiores; no entanto, no h registo histrico da ordenao sacerdotal de Coprnico, pelo que esta no dever ter ocorrido. 1543 impressa em Nuremberga a sua principal obra De revolutionibus orbium coelestium, na qual expe o modelo que ganhou o seu nome. A obra foi publicada sob pedido insistente de duas figuras notrias da Igreja, o Cardeal Schmberg e Tiedemann Giese, o Bispo de Culm; a obra foi dedicada ao Papa Paulo III; Coprnico pedira ao Papa a permisso papal para a publicao da obra, na esperana de que esta ficasse mais protegida contra os ataques dos matemticos (categoria que inclua certos filsofos que procuravam ridicularizar o novo modelo), como escrevera Coprnico. Apesar da forte oposio ao heliocentrismo feita por telogos e autoridades protestantes, do lado catlico, nenhum problema durante largas dcadas: nenhum Papa, nenhuma Congregao levantou qualquer questo obra de Coprnico. O sbio polaco gozou de grande prestgio at crise do caso Galileu. Idem Coprnico morre a 24 de Maio, em Frombork.

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III. Galileu Galilei

Figura 2. Galileu Galilei (1564-1642)

15-2-1564 Nasce em Pisa Galileu Galilei, filho de Vincenzo Galilei. 1587 Primeira viagem a Roma; Galileu candidata-se ao cargo de professor de Matemtica na Universidade de Siena, sem sucesso. 1588 Galileu candidata-se a docente em vrias universidades: Pisa, Siena, Pdua, Bolonha, e Florena; obtm o cargo de professor de Matemtica em Pisa, onde ficar at 1592. 1592 Obtm a ctedra de Matemtica em Pdua, que manter at 1610. 1595 Desenvolve a sua teoria sobre as mars, que implicaria o movimento da Terra (este um falso argumento cientfico, uma vez que o fenmeno das mars se deve atraco gravtica da Lua e no ao movimento da Terra); dever datar desta poca o incio da sua defesa do modelo de Coprnico. 1597 O matemtico e astrnomo alemo Johannes Kepler (1571-1630) publica a sua importante obra acerca das rbitas planetrias, Mysterium Cosmographicum.

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1599 O matemtico e astrnomo dinamarqus Tycho Brahe (1546-1601), cujas inovaes no campo da instrumentao e da medida dos corpos celestes revolucionaram a astronomia, muda-se para Praga, para servir como Matemtico Imperial na corte do Imperador Rodolfo II. Tratava-se do mais importante cargo matemtico da Europa. Para o ajudar nos clculos das rbitas planetrias a partir das suas precisas observaes, Brahe contratou Kepler, que se mudou para Praga em 1600. 1601 Tycho Brahe morre em Praga. Kepler substitui-o como Matemtico Imperial, cargo que ocupar at 1612, aquando da morte de Rodolfo II. 1600 A 17 de Fevereiro, Giordano Bruno queimado em Roma aps ser condenado por heresia. Contrariamente opinio em voga, provvel que Bruno no tenha sido condenado por nenhuma posio cientfica; a sua acusao ter apoiado o caso contra Bruno em denncias de que este no aceitava ou distorcia certos artigos da f catlica. No fcil ter hoje um conhecimento detalhado do julgamento de Giordano Bruno, uma vez que a maioria dos documentos no chegaram aos nossos dias 15 . O que verosmil que o mbil do julgamento no se ateve a questes cientficas, mas sim a problemas de doutrina, ou talvez ainda ao envolvimento de Bruno com ideias esotricas e doutrinas hermticas. 1603 Federico Cesi funda a Accademia dei Lincei (Academia dos Linces), com o patronato do Papa Clemente VIII. A instituio viria a ser dissolvida logo aps a morte de Cesi, em 1630. 1609 Kepler publica as suas primeiras duas leis sobre o movimento planetrio. Maio Galileu ouve falar pela primeira vez da inveno do telescpio na Holanda. Junho Galileu reproduz a inveno e cria o seu primeiro telescpio de 3x. Agosto Galileu apresenta um novo telescpio de 6x ao Senado de Veneza.

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Resta pouco mais do que um resumo do processo, escrito com base nos originais entretanto perdidos. Ver Summary Of The Trial Against Giordano Bruno, em http://asv.vatican.va/en/doc/1597.htm

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Maro de 1610 Galileu dedica a sua obra Sidereus Nuncios (Mensageiro das Estrelas) ao Gro-duque da Toscnia, Cosme II a obra contm descobertas recentes sobre os satlites de Jpiter.

Figura 3. Frontispcio da obra Mensageiro das Estrelas

Abril Kepler escreve a Galileu a felicit-lo pelas suas descobertas a carta seria publicada com o ttulo Dissertatio cum Nuncio Sidereo; Galileu vai a Pisa mostrar os satlites de Jpiter ao Gro-duque Cosme II de Mdicis. Setembro Galileu muda-se para Florena. Dezembro Galileu descobre as fases de Vnus, o que constitui um argumento forte contra o sistema ptolemaico e a favor do sistema copernicano. 1610/1611 Lodovico delle Colombe, arqui-inimigo de Galileu, publica uma obra contra o movimento da terra e contra as descobertas de Galileu. 1611 Francesco Sizzi publica uma obra contra as descobertas de Galileu. Maro Galileu chega a Roma a 29 desse ms. Maro ou Abril de 1611 O Jesuta Christoph Scheiner (1573-1650) descobre as manchas solares. At ao fim da vida, Scheiner vai estudar as manchas solares (alegando tratarem-se de satlites do Sol) e tentar contestar as teses de Galileu. A sua obra principal de tentativa de refutao das teses de Galileu s foi publicada postumamente em 1650, e no ir interferir com o caso Galileu.

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Abril de 1611 Seguindo ordens do Cardeal Bellarmino, os matemticos jesutas do Collegio Romano (fundado por Santo Incio de Loyola, actualmente recebe o nome de Pontifcia Universidade Gregoriana) atestam cientificamente as recentes descobertas celestiais de Galileu; Galileu introduzido na exclusiva Accademia dei Lincei, durante um banquete dado por Federico Cesi. Maio Os matemticos do Collegio Romano honram Galileu com um banquete para celebrar as suas recentes descobertas; enquanto est em Roma, Galileu monta o seu telescpio nos jardins do Palcio do Quirinal, propriedade do Cardeal Bandim, e mostra as manchas solares a alguns amigos (tanto leigos como membros do clero), atravs do seu telescpio. Agosto De volta a Florena, Galileu v-se envolvido numa disputa acerca da imerso de corpos em gua: Galileu argumenta pelas teses de Arquimedes contra as teses de Aristteles na matria. Outubro Num jantar de Estado oferecido a dois cardeais, Galileu repete os argumentos de Arquimedes acerca dos corpos imersos em gua. O Cardeal Maffeo Barberini (futuro Papa Urbano VIII) apoia-o; nesta altura, o Cardeal era um dos patronos de Galileu. 1612 Morre Barbara, a primeira mulher de Kepler; este muda-se com a famlia para Linz. Maio de 1612 Primeira carta de Galileu acerca das manchas solares. Agosto Segunda carta de Galileu acerca das manchas solares. Outono A Accademia dei Lincei decide publicar as cartas de Galileu acerca das manchas solares. Dezembro Terceira carta de Galileu acerca das manchas solares. Maro de 1613 A Accademia dei Lincei publica as trs cartas de Galileu acerca das manchas solares. Dezembro Benedetto Castelli, professor de Matemtica da Universidade de Pisa, e aluno de Galileu, defende o copernicanismo junto da Gr-duquesa de Lorena; ao saber disto, Galileu escreve uma longa carta a Castelli (com data de 21 de Dezembro) acerca da sua viso da relao entre cincia e as Escrituras16. Ser esta a carta, que teve ampla divulgao na

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A carta est transcrita no final deste trabalho, no penltimo captulo.

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sociedade de ento, a motivar a denncia do dominicano Niccol Lorini em 1615, que deu incio primeira inquirio do Santo Ofcio a Galileu, ocorrida em 1616. Dezembro de 1614 O frade dominicano Tommaso Caccini (1574-1648)17, nascido Cosimo Caccini, faz um sermo em Florena contra Galileu e os matemticos adeptos do copernicanismo, que, segundo Caccini, seria um sistema hertico. Caccini, buscando o prestgio do nome de So Toms, adopta esse mesmo nome quando assume o hbito dominicano; no entanto, no deixou obra importante e era conhecido pelo seu feitio polmico e por gostar de disputas. Caccini era, para mais, um homem com ambies de poder: tentou o patronato do Cardeal Barberini (futuro Papa Urbano VIII), mas sem sucesso. Fazia parte da Liga dos Pombos, o grupo de Lodovico delle Colombe, arqui-inimigo de Galileu; desse grupo tambm constava o dominicano Niccol Lorini, de quem se falar adiante. Janeiro de 1615 O superior de Caccini escreve uma carta a Galileu a pedir desculpas pela atitude do frade. Fevereiro Um outro frade dominicano, Niccol Lorini, que tinha previamente criticado Galileu em privado, escreve em Florena ao Cardeal Paolo Camillo Sfondrati uma carta datada de 7 de Fevereiro contra o copernicanismo de Galileu, anexando uma cpia da carta de 21 de Dezembro de 1613, escrita por Galileu a Castelli18. Diz Lorini na sua carta:Ilustrssimo e reverendssimo Senhor Porque, para alm do que obrigao comum de todo o bom cristo, infinita a obrigao que tm todos os frades de S. Domingos (), e em particular todos os telogos e pregadores, eis que por isto, eu, o menor de todos, e devotssimo servo e particular de V. S. ilustrssima, tendo-me vindo parar s mos um escrito, que aqui corre pelas mos de todos, feita por estes que se afirmam Galilestas, que afirmam que a terra se move e o cu est parado, seguindo as posies de Coprnico, onde, seguindo o juzo de todos estes nossos Padres deste religiosssimo convento de S. Marco, esto dentro muitas proposies que parecem ou suspeitas ou temerrias, como dizer que certos modos de falar da Santa Escritura so inconvenientes e que nas disputas dos efeitos17

Detalhes sobre o dominicano Tommaso Caccini podem ser lidos no site do The Galileo Project, nesta pgina: http://galileo.rice.edu/chr/caccini.html 18 A carta de Lorini est documentada na colectnea feita por Sergio Pagano com a transcrio dos textos do processo contra Galileu (pp. 63-77). A narrao do processo comea com o texto Ex archivo S. Officii contra Galileum Galilei mathematicum, Vol. 1181. Segundo o organizador Sergio Pagano, provvel que esta narrao do processo, resultado de uma primeira tentativa de compilao de material por parte do Santo Ofcio, date de 1633.

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naturais a mesma Escritura tenha o ltimo lugar, e que os seus expositores muitas vezes eram na sua exposio, tenha maior fora o argumento filosfico ou astronmico do que o sacro e o divino, proposies estas que V. S. ilustrssima ver sublinhadas por mim no escrito acima referido, do qual lhe mando cpia verdadeira (). Confesso que tenho todos estes, que se afirmam galilestas, como homens de bem e bons cristos, mas um pouco presunosos e duros nas suas opinies; como tambm digo que neste servio no me movo seno por zelo, e suplico a V. S. ilustrssima que esta minha carta (e no digo o escrito [a carta de Galileu]) seja por vs mantida, como estou certo de que o far, secreta, e no seja tomada ao modo de depoimento judicial, mas s amoroso aviso entre mim e vs, como entre servo e patrono singularssimo, e fazendo-lhe saber ainda mais que a ocasio deste escrito [a carta de Galileu] foi uma ou duas lies pblicas, feitas na nossa igreja de S. Maria Novella por um Padre Mestre frei Tommaso Caccini, expondo o livro de Josu e o captulo X do dito livro. Assim termino, pedindo-lhe a sua bno sacra e beijando as suas vestes, () 19

Esta carta de Lorini muito informativa: revela-nos que a denncia era velada, porque o seu autor queria permanecer annimo; por outro lado, ficamos a saber que Lorini no queria que a denncia fosse entendida com um depoimento com fora legal (temeria ele um confronto judicial com Galileu?), e que este achava que os galilestas eram bons cristos, apenas presunosos e duros nas suas posies, que este Lorini considerava serem posies suspeitas ou temerrias. O que notrio que tanto Galileu com os seus apoiantes se moviam, h muito tempo, na esfera pblica com uma atitude de tranquilidade (veja-se a rpida divulgao pblica da carta de Galileu a Castelli), confiantes de que no seriam perturbados pela defesa do copernicanismo, e escudando-se certamente da fama e prestgio de Coprnico, bem como da considerao que o Papa, e outras figuras da Igreja, tinham por Galileu. No entanto, o tema era delicado: a opinio prevalente entre a hierarquia da Igreja era a de que a interpretao das Sagradas Escrituras era para ser deixada aos telogos, e no a cientistas como Galileu, por muito sbios e devotos cristos que fossem; aos adversrios do sbio, era demasiado fcil distorcer as palavras de Galileu ou aproveitar uma sua observao pblica pouco prudente. A inveja e a denncia annima fariam o resto, mas s muitos anos mais tarde A carta de Lorini foi arquivada. A documentao existente no traz vestgios de que os responsveis do Santo Ofcio teriam interrogado Galileu: a Inquisio chamou Caccini, notrio adversrio das ideias de Galileu, a depor como testemunha (ver adiante), mas o testemunho de Caccini no se revelou muito slido.

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Pagano, op. cit., pp. 69-71.

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Idem No dia 27, o Cardeal Giovanni Garcia Millini escreve ao Arcebispo de Pisa, Monsenhor Francesco Boncianci, a pedir que se averige o que naquela cidade se diz acerca da carta de Galileu a Castelli. Maro O frade carmelita Paolo Foscarini, amigo prximo de Galileu, publica em Npoles uma obra em defesa da compatibilidade entre o copernicanismo e as Escrituras. Idem No dia 7, o Inquisidor de Pisa escreve ao Cardeal Giovanni Garcia Millini 20 , a assegurar-lhe que ele e o Arcebispo de Pisa esto a tomar diligncias para tentar saber o que que nesta cidade se tem dito acerca da carta de Galileu a Castelli. Idem No dia 8, o Arcebispo de Pisa escreve ao Cardeal Millini para lhe dar novidades sobre a carta de Galileu:Ilustrssimo e reverendssimo Senhor () Quando eu recebi a carta de V. S. ilustrssima, o Padre Don Benedetto Castello estava em Florena, mas chegou dois dias depois, e logo me veio visitar; () pedi-lhe a carta que lhe foi escrita [por Galileu] a 21 de Dezembro de 1613. Ele disse-me que no a tinha, mas que teria mandado obt-la para ma dar. () a resposta foi to sbita, que eu estou certo de que a coisa seja como ele me disse; no fiz outra coisa seno pedir-lhe que a faa vir quanto antes (). Entretanto, quis dar conta disto a V. S. ilustrssima, para que me possa ordenar se quer que eu faa outra diligncia, e de modo a que, se achasse [que vinha] a propsito, desse qualquer outra ordem a Florena, onde eu tenho por seguro que esteja agora a dita carta. E beijando humildemente as mos a V. S. ilustrssima, ()21

Idem No dia 19 de Maro, o Papa d ordem escrita para chamar Caccini a depor22. Idem No dia 20, Caccini chamado a depor junto da Inquisio, em Roma:() Digo ento, que lendo eu no quarto Domingo do advento deste ano passado na igreja de S. Maria Novella de Florena, onde por obedincia estava eu destinado a ser o leitor da Sacra Escritura, () nesse mesmo o Domingo tocou-me ler aquela passagem do captulo X daquele livro, onde o sacro escritor refere o grande milagre que, s oraes de Josu, fez Deus fazendo parar o sol, isto : Sol, ne movearis contra Ghabaon etc. Aproveitada a ocasio de neste lugar () reprovar, com aquela modstia que convm ao ofcio que tinha, uma certa opinio j de Nicolau Coprnico, e nestes tempos, por aquele cuja fama publicssima na cidade de Florena, tida e ensinada, por aquilo que se diz, do senhor Galileu Galilei matemtico, que o sol, sendo, segundo ele, centro do mundo, por consequncia imvel de movimento local progressivo, ou seja de uma

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Pagano, op. cit., p. 79. Pagano, op. cit., p. 77-78. 22 Pagano, op. cit., p. 79.

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ponta outra; e disse como semelhante opinio era tida como dissonante da f catlica por gravssimos escritores, porque contradizia muitas passagens da divina Escritura, as quais em sentido literal, (..) soam e significam o contrrio, como a passagem do Salmo 18 do Eclesiastes primeiro captulo, de Isaas 38, para alm da citada passagem de Josu: e para que ficassem na audincia mais persuadidos de que tal meu ensinamento no procedia do meu capricho, li-lhes a doutrina de Nicol Serraio, questo 14 sobre o captulo X de Josu, o qual, depois de ter dito que tal posio de Coprnico contrria s comuns sentenas de quase todos os filsofos, de todos os telogos escolsticos e de todos os Santos Padres, acrescentei que no sabia ver como tal doutrina no fosse quase hertica23, para as passagens acima referidas da Escritura. Depois deste discurso adverti que no era lcito a ningum interpretar a divina Escritura contra aquele sentido no qual todos os Santos Padres concorrem porque tal era vedado pelo Conclio Lateranense sob Leo X e pelo Conclio Tridentino24. Esta minha caritativa admonio, por muito que agradasse grandemente a muitos gentis-homens literatos e devotos, de outro modo desagradava a certos discpulos do referido Galilei, o que levou alguns deles a procurar o Padre pregador da catedral, para que nesta matria pregasse contra a doutrina que eu havia dado. Tendo ouvido tantos rumores, por zelo da verdade, dei conta ao muito reverendo Padre Inquisidor de Florena de como me tinha parecido [bem] por razes de conscincia tratar sobre a referida passagem de Josu, avisando-o que era bom colocar freio a certos petulantes sbios, discpulos do dito Galilei, do qual me foi dito pelo reverendo Padre frei Fernandino Cimenes, regente de S. Maria Novella25, que de alguns deles tinha ouvido estas trs proposies, a saber: Deus no substncia, mas acidente; Deus sensitivo, porque nele existem sentidos divinos; Verdadeiramente que os milagres que se dizem ter sido feitos por Santos, no so verdadeiros milagres26. Depois destes acontecimentos, foi-me mostrada pelo Padre Mestre frei Nicol Lorini uma cpia de uma carta escrita pelo referido senhor Galileu Galilei ao Padre Don Benedetto Castello, monge beneditino e pblico matemtico de Pisa, a qual me parece conter no boa doutrina em matria de teologia (). Ento deponho a este Santo Ofcio, como pblica fama que o referido Galilei tenha estas duas proposies: A terra move-se

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Note-se a hesitao do quase: a fragilidade dogmtica desta presuno de heresia torna-se aqui clara. H que clarificar este aspecto: interpretar as Sagradas Escrituras era tarefa de hermeneutas profissionais, de telogos imbudos da tradio crist; se fosse necessrio adaptar essa interpretao ao copernicanismo (como veio a ser feito mais tarde), essa adaptao deveria ser feita por telogos; Galileu, ao reagir s suspeitas de heresia lanadas pelos seus adversrios, tentou publicamente refutar essas suspeitas mostrando que era possvel compatibilizar as Escrituras com o modelo que defendia; ironicamente, ao faz-lo, exps-se ainda mais aos ataques dos seus inimigos, pois pronunciava-se sobre matrias fora da sua esfera de autoridade e competncia. 25 Este trecho deve ter parecido importante para o relator, visto que a palavra latina propositiones aparece na margem lateral esquerda precisamente nesta linha; tudo indica que se quis destacar, do depoimento de Caccini, as denncias relativas a proposies doutrinais herticas eventualmente defendidas por Galileu. Esta marca tambm mostra que o relator deu mais importncia a estas propositiones do que s referentes defesa do copernicanismo por parte de Galileu, defesa essa cuja classificao como heresia era muito polmica e frgil, e dividia as autoridades eclesisticas de ento. Ver Pagano, op. cit., p. 82. 26 As propositiones acerca de Deus e dos milagres que so aqui transcritas em sublinhado aparecem em itlico no original. Estas sim, eram acusaes doutrinais graves contra Galileu e os seus defensores. Caccini sabia bem que estas suas denncias eram bem mais graves do que as relativas ao copernicanismo. Note-se o carcter vago da denncia: () que de alguns deles tinha ouvido: Caccini no tinha forma de provar estas denncias, certamente caluniosas.24

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segundo si mesma, etiam de movimento diurno; O sol imvel: proposies que, segundo a minha conscincia e inteligncia, repugnam s divinas Escrituras expostas pelos Santos Padres e consequentemente repugnam f, que ensina o dever de acreditar como verdadeiro aquilo que se contm na Escritura. E por agora no me ocorre dizer mais [nada]. () [o Interrogador pergunta a Caccini como que Galileu ensinava e sustentava essas teses] Resposta: Para l da fama pblica, como disse, tambm entendi de mons. Filippo de Bardi, bispo de Cortona, no tempo em que esteve l, e depois em Florena, que Galileu tem as referidas posies como verdadeiras, acrescentando-me que tal lhe parecia muito estranho, por dissonar das Escrituras. Ademais tambm entendi de um certo gentil-homem florentino dos Attavanti, seguidor do mesmo Galilei, que o referido Galilei interpretava as Escrituras de modo a que no repugnassem sua opinio: e deste gentil-homem no me recordo do nome, nem sei onde seja a sua casa em Florena; () e isto me disse neste vero passado, por volta do ms de Agosto, no convento de Santa Maria Novella, no quarto do Padre frei Ferdinando Cimenes (). Tambm li esta doutrina num livro impresso em Roma, que trata das manchas solares, sado sob o nome do dito Galileu, que me foi emprestado pelo dito Padre Cimenes. () [o Interrogador pergunta a Caccini se conhece Galileu] Nem sequer o conheo de vista. [o Interrogador pergunta a Caccini qual a opinio dos florentinos acerca de Galileu em matria de f] Por muitos tido [por] bom catlico; por outros tido como suspeito nas coisas da f, porque dizem que seja muito ntimo daquele frei Paolo servita, to famoso em Veneza pela sua impiedade, e dizem que tambm trocam presentemente cartas entre eles. [o Interrogador pergunta a Caccini se se recorda de quem que lhe deu esta informao] Eu entendi as acima referidas coisas do Padre Mestre fra Nicol Lorini, do senhor prior Cimenes, prior dos cavaleiros de S. Stefano; e estes me disseram as acima referidas coisas, a saber o Padre Nicol Lorini, que entre Galileu e Mestre Paolo passam cartas e grande familiaridade, com ocasio de dizer que este era suspeito in fide (). O prior Cimenes no me disse nada da familiaridade que existe entre Mestre Paolo e o Galileo, mas somente que o Galileu suspeito, e que tendo vindo uma vez a Roma, foi-lhe assinalado como o Santo Oficio procurava pr-lhe as mos em cima () [o Interrogador pergunta a Caccini o que disseram Lorini e Cimenes acerca das suspeitas sobre a f de Galileu] No me disseram mais nada, excepto que o tinham por suspeito por causa das proposies que ele tinha [acerca] da estabilidade do sol e do movimento da terra, e porque este quer interpretar a Escritura Sacra contra o senso comum dos S. Padres. Este [Galileu] e outros esto numa Academia, no sei se erigida por eles, que tem por ttulo os Linces; e tm correspondncia, isto o dito Galileu, por quanto se v no seu livro das manchas solares, com outros na Alemanha. [o Interrogador, preocupado sobretudo com as alegadas propositiones acerca de Deus ser acidente, de Deus ser sensitivo, e do questionar dos milagres dos santos, pergunta qual era a fonte de Cimenes] Parece-me recordar que me tivesse nomeado aquele dos Attavanti, por mim descrito como um daqueles que diziam as ditas proposies; de mais no me recordo.

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[o Interrogador insiste em ter mais detalhes sobre as propositiones: onde e como foram proferidas] O Padre Ferdinando disse-me que teria ouvido as ditas proposies dos alunos de Galileu vrias vezes, e no claustro de baixo e no dormitrio de baixo e na sua cela, e isto depois de eu ter feito aquela lio, aproveitando a ocasio para me dizer que me tinha defendido deles; nem me recordo que mais algum tenha estado presente. [o Interrogador pergunta a Caccini se tem inimizade por Galileu, pelo florentino dos Attavanti ou por outros discpulos de Galileu] Eu no s no tenho inimizade com o dito Galilei, como nem sequer o conheo; assim com o Attavante no tenho nem inimizade nem dio, nem com outros discpulos de Galileu, de tal modo que rezo a Deus por eles. [o Interrogador pergunta se Galileu ensina publicamente em Florena e se os seus discpulos so numerosos] Eu no sei se o Galileu ensina publicamente nem se tem muitos discpulos: sei bem que em Florena [ele] tem muitos sequazes, que se chamam galilestas; e estes so aqueles que vo ampliando e louvando a sua doutrina e opinies. [o Interrogador pergunta qual a ptria de Galileu, a sua profisso e onde estudou] Ele diz-se florentino, mas ouvi dizer que pisano; a sua profisso matemtico; por aquilo que ouvi dizer, estudou em Pisa, e leccionou em Pdua; e tem 60 anos de idade passados.27

Idem No dia 28, o Arcebispo de Pisa escreve de novo ao Cardeal Millini, a relatar-lhe que, tendo pedido ao Padre Castello que voltasse a requisitar a Galileu a carta que este lhe escrevera, a diligncia no teve sucesso. Castello no recuperou a carta. O Arcebispo assegura que no h razes para duvidar da atitude de Castello, pois a carta de Galileu foi pedida ao Padre Castello em tom amigvel e por curiosidade. O Arcebispo termina a pedir ao Cardeal Millini para lhe dar novas instrues, sugerindo que se pea a dita carta directamente a Galileu. Idem Galileu escreve uma longa carta em defesa das suas ideias a Monsenhor Piero Dini, um seu contacto bem posicionado na Santa S. Abril O Cardeal Bellarmino escreve a Foscarini a aconselh-lo a tratar a teoria copernicana como uma hiptese (ver trecho desta carta na Introduo). Idem No dia 4, o Cardeal Millini escreve a Cornlio, Inquisidor de Florena, a pedir-lhe que interrogue naquela cidade o Padre Fernando Ximenes, da Ordem dos Pregadores, que fora referido por Caccini no seu depoimento como testemunha das acusaes apresentadas contra Galileu28, bem como outras testemunhas mencionadas pelo dito Caccini.

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Pagano, op. cit., pp. 80-85. Note-se que a preocupao do Cardeal Millini com as propositiones doutrinais que o dito Padre Ximenes teria alegadamente (segundo Caccini) ouvido dos discpulos de Galileu, e no com a defesa do modelo

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Idem No dia 13, Cornlio, Inquisidor de Florena, escreve ao Cardeal Millini. Acusa recepo da carta de dia 4, que vinha acompanhada do depoimento de Caccini contra Galileu. Maio No dia 11, o Inquisidor de Florena escreve ao Cardeal Millini. Carta fundamental: Cornlio informa no ter conseguindo ainda o depoimento do Padre Ximenes, que est fora de Florena, em Milo, e no se prev que regresse cedo a Florena; o Inquisidor diz que antes de comear a interrogar as pessoas referidas na denncia de Caccini est espera de ver primeiro o depoimento do dito Padre Ximenes acerca das trs proposies () dos discpulos de Galileu, que o fundamento principal do que se possa pretender contra o dito Galileu, e que s necessita de prova (sublinhado meu). Claramente, a Inquisio est focada nas acusaes doutrinais, e no no copernicanismo de Galileu. Idem No dia 20 (ou 29), o Cardeal Millini pede ao Inquisidor de Milo para procurar obter o depoimento de Ximenes naquela cidade. Junho No dia 24, o Inquisidor de Milo, Desiderio Scaglia, escreve ao Cardeal Millini. Na carta, refere que ainda no entrevistou Ximenes: este acabou de defender tese de Teologia em Bolonha, comunicou numa carta recente que tem que ir a Florena, estar l quinze dias, e que depois retornar a Milo. Scaglia diz que ento ir examin-lo sobre os depoimentos (o de Caccini) que recebeu do Cardeal, juntamente com a carta de dia 20 (ou 29) de Maio. Vero Galileu escreve a sua carta Gr-duquesa Cristina, que acaba por ter ampla circulao pblica. Trata-se de uma verso alargada da sua carta a Castelli datada de Dezembro de 1613. Outubro No dia 21, o Inquisidor de Milo volta a escrever ao Cardeal Millini. Informa que ainda no conseguiu entrevistar Ximenes, porque este ainda est em Florena. Novembro No dia 13, Fernando Ximenes interrogado pela Inquisio em Florena:() [o Inquisidor pergunta ao Padre Ximenes se conhece Galileu] Eu nunca o vi nos dois anos que tenho estado em Florena; mas digo bem que, conforme o que ouvi dizer acerca das opinies do movimento da terra e da firmeza do cu, () digo ser essa doutrina diametralmente oposta verdadeira teologia e filosofia. [o Inquisidor pede-lhe que se exprima de modo mais claro]

copernicano. Sem se mostrar preocupado com esta ltima questo, Millini quer tirar a limpo as graves alegaes de Caccini em relao f catlica de Galileu e s noes deste acerca de Deus e dos milagres.

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Ouvi alguns dos seus alunos dizer que a terra se move e que o cu imvel; acrescentaram que Deus acidente, e que a substncia das coisas no quantidade contnua, mas que cada coisa quantidade discreta, composta de vcuo; que Deus sensitivo (), que ri, que chora (), mas no sei no entanto se eles falam de opinio prpria, ou pela opinio do seu mestre, o referido Galileu. [o Inquisidor pergunta se ouviu dizer, quer de Galileu, quer dos seus discpulos, que os milagres dos santos no seriam verdadeiros milagres] Deste ponto particular no me recordo. [o Inquisidor pergunta se mais algum ouviu estas coisas ao mesmo tempo que ele] Ouvi as referidas coisas e discuti-as com () Gioanozzio Attavante florentino, estando presente nestes raciocnios o cavaleiro Ridolfi florentino, cavaleiro de Santo Estvo. [o Inquisidor pergunta onde, quando, e em que ocasio estes debates tiveram lugar] [Acerca] do lugar, foi no meu quarto, no convento daqui de Santa Maria Novella; o tempo foi no ano passado, vrias vezes, mas no saberia dizer nem em que meses nem em que dias; presentes estavam o dito senhor cavaleiro algumas vezes, e alguns nossos irmos, dos quais no me recordo precisamente. [o Inquisidor pergunta-lhe se acha que o seu interlocutor acreditava verdadeiramente nessas coisas] No acredito que o dito Attavanti assertivamente dissesse e acreditasse nas referidas coisas, porque me parece que ele mesmo teria dito que se remetia Igreja, e que tudo [aquilo] teria [sido] dito disputationis gratia29. () Eu sei que ele no tem fundamentos nem de teologia nem de filosofia, e creio que no seja doutor; () creio que falasse segundo a opinio de Galileu do que de opinio prpria: a ocasio foi a de que () entre ns vieram a discusso algumas lies que fez o Padre Mestre Caccini, ao tempo leitor da Sacra Escritura aqui na nossa igreja de Santa Maria Novella, e lia a histria de Josu e entre outras, aquelas palavras Stetit sole (). [o Inquisidor pergunta-lhe se repreendeu o Atavante em relao s suas ms opinies e se lhe respondeu] Eu repreendi-o instantaneamente e fiz-lhe ver que as coisas [por ele] ditas e disputadas eram falsas e herticas, porque a verdade que a terra, toda ela, imvel e fundada sobre a sua estabilidade, como diz o profeta, e que o cu e o sol se movem, e que Deus substncia e no acidente, e que no se pode dizer de outro modo, que so vanidades aquelas que ele dizia, que Deus sensitivo, que ri, que chora (), e que no se d seno quantidade discreta, composita ex vacuis30. [o Inquisidor pergunta-lhe se tem inimizade com Galileu ou com o Atavante] Nunca vi o dito Galileu, como referi acima, e () muito menos tenho () inimizade com o dito Atavante, mas antes [tenho] amizade: desagrade-me a doutrina do dito Galileu, porque no conforme aos Padres ortodoxos da Santa Igreja, e assim contra a prpria verdade. [o Inquisidor pergunta-lhe se tem algo mais a depor ao Santo Ofcio] No tenho mais nada que dizer, e tudo o que acima disse verdade.31

Idem No dia 14, a vez de Giannozzo Attavanti ser interrogado:29 30

Apenas por motivo de debate. Composta do vcuo. 31 Pagano, op. cit., pp. 93-95.

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[o Inquisidor pergunta com quem, e que matrias, que o interrogado estudou em Florena] Frequentei letras nos anos passados; os meus mestres foram o Padre Vincenzo de Civitella e o Padre Vincenzo Populeschi, ambos da Ordem dos Pregradores. [o Inquisidor pergunta se teve outros preceptores] Enquanto eu frequentava gramtica e humanidades, ensinaram-me o senhor Simone dalla Roca e o senhor Giovanni Batta, hoje mestre destes Prncipes; e faz j um ano que o Padre Ximenes, da Ordem dos Pregadores, me leu os casos de conscincia. [o Inquisidor pergunta se teve aulas com Galileu] Eu nunca estive sob a sua alada como seu aluno; tratei com ele de letras, como ordinariamente fao com aqueles que so letrados, e particularmente tratei com ele de coisas filosficas. [o Inquisidor pergunta-lhe se alguma vez ouviu Galileu a discorrer acerca das Escrituras Saras ou de doutrinas filosficas repugnantes e no consonantes com a f] Nunca ouvi o senhor Galileu dizer coisas que repugnassem a Escritura Sacra nem a nossa santa f catlica; mas acerca das coisas filosficas ou matemticas, ouvi o dito senhor Galileu dizer, segundo a doutrina de Coprnico, que a terra no seu centro ou no seu globo se move, e que o sol igualmente se move dentro do seu centro, mas de fora no tenha movimento progressivo, segundo algumas cartas suas publicadas em Roma sob o ttulo Das mscaras solares, s quais me remeto em tudo. [o Inquisidor pergunta-lhe se ouviu Galileu falar acerca da interpretao das Escrituras Sacras no que diz respeito s suas opinies acerca do movimento da terra e do sol] Ouvi-o raciocinar acerca do texto de Josu () que miraculosamente o sol parou, mas que fora do seu centro, de movimento progressivo, no se move. [o Inquisidor pergunta-lhe se ouviu Galileu dizer que Deus no era substncia, mas acidente; que Deus era sensitivo, que ria; e que os milagres adscritos aos Santos no seriam verdadeiros milagres] Acerca destas coisas particulares, saiba Vossa Paternidade que um dia, raciocinando eu () acerca dos absolutos de so Toms com o Padre Ferdinando Ximenes da Ordem dos Pregadores, no seu quarto em Santa Maria Novella, aqui em Florena, se Deus seria substncia ou acidente, e do que disputava so Toms [na sua obra] Contra gentes32, se Deus seria sensitivo, se riria, se choraria, etc., de modo disputativo, como disse, e no de outro modo, [quando] um Padre Caccini, da Ordem dos Pregadores, actualmente pregador em Santa Maria Novella, tendo o seu quarto vizinho ao quarto do dito Padre Ximenes, ouvindo-nos raciocinar juntos de modo disputativo, talvez tenha imaginado que eu referisse as sobreditas coisas como certas ou da opinio do dito senhor Galileo; mas no verdade. Quanto aos milagres dos Santos, [esse tema] no foi tratado de modo algum, e [sobre ele] no sei nada. E assim se determinou, segundo a doutrina de so Toms, que Deus no sensitivo, nem ri, nem chora, porque seria corpo orgnico, o que falso, mas que substncia simplicssima. () Eu referi o dito Padre Caccini () porque uma vez, anteriormente, raciocinando eu com o dito Padre Ximenes no seu quarto, e escutando-nos o dito Padre Caccini, acerca do propsito do movimento do sol, saiu fora do

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Trata-se da Summa Contra Gentiles, completada por volta de 1264.

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seu quarto e veio ter connosco, e disse que era uma proposio hertica dizer que o sol estaria quieto e no se movesse fora do seu centro segundo a opinio de Coprnico, e que queria ensin-lo no plpito (). [o Inquisidor pergunta-lhe como sabe o que relatou, onde e quando teve lugar, e em que ocasio] Eu sei-o, como disse acima, de certa cincia e de ouvido prprio. O lugar foi o quarto do Padre Ximenes. O tempo foi o ms de Agosto ou de Julho do ano 1613, mas no me recordo precisamente o dia. Presente no era ningum, s o dito padre Ximenes e eu. A ocasio foi a de que eu aprendia do dito Padre Ximenes os casos de conscincia; e deste modo se chegou aos raciocnios atrs referidos; por modo de disputa e de aprendizagem, e no de outro modo. [o Inquisidor pergunta o que ouviu dizer de Galileu acerca da f] Eu tenho-o por bonssimo catlico, de outro modo no estaria com estes Serenssimos Prncipes. [o Inquisidor pergunta-lhe se tem inimizade, malevolncia ou dio ao Padre Caccini] Eu nunca mais falei com ele, nem antes, nem depois, e no tenho nada a fazer com ele, nem sei o seu nome. [o Inquisidor pergunta-lhe se tem algo a acrescentar ao depoimento perante o Santo Ofcio] No tenho mais nada a dizer, e o que disse a pura e mera verdade.33

Idem No dia 15, o Inquisidor de Florena envia ao Cardeal Millini os textos dos dois depoimentos atrs referidos. Janeiro de 1616 Galileu escreve mais uma obra sobre as mars, procurando argumentar que estas provam que a terra se move; dedica a obra ao Cardeal Allessandro Orsini. Fevereiro Segundo documentos encontrados nos arquivos, nos dias 23 e 24, um grupo de telogos censores do Santo Ofcio teriam declarado formalmente que a tese de que o Sol o centro do Universo era filosoficamente absurda e hertica34. Esta declarao, se alguma vez foi formalizada, constitui um abuso de autoridade, uma vez que o Santo Ofcio no tinha competncia para censurar proposies filosficas, se estas no atentassem contra a f, e no havia forma de provar que o copernicanismo era uma doutrina hertica. importante notar

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Pagano, op. cit., pp. 95-98. Ver documento do Santo Ofcio, datado de 23 de Fevereiro, na obra j referida de Sergio Pagano, p. 99: Proposio censurada: Que o sol seja o centro do mundo, e por consequncia imvel de movimento local. Que a terra no o centro do mundo nem imvel, mas que se move segundo si mesma toda, etiam de movimento diurno. No dia seguinte, 24 de Fevereiro, sai uma formulao mais completa, e em latim, das proposies censuradas: Prima: Sol est centrum mundi, et omnino immobilis motu locali. Censura: Omnes dixerunt dictam propositionem esse stutltam et absurdam in philosophia et formaliter haerecticam, quatenus contradicit expresse sententiis Sacrae Scripturae in multis locix secundum proprietatem verborum et secundum communem expositionem et sensum Sanctorum Patrum et theologorum doctorum. 2.: Terra non est centrum mundi nec immobilis, sed secundum se totam movetur, etiam motu diurno. Censura: Omnes dixerunt, hanc propositionem recipere eandem censuram in philosophia; et spectando veritatem theologicam, ad minus esse in fide erroneam. (seguem-se as assinaturas das autoridades), Pagano, op. cit., pp. 99-100.

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que esta declarao no cai sob a alada do magistrio infalvel, pois no uma proclamao papal ex cathedra35. Idem Nos arquivos do processo existe um documento datado do dia 2536, sem assinaturas, que contm uma ordem escrita do Santo Oficio a instar que o Cardeal Bellarmino convoque Galileu e o faa aceitar a proibio de defender que o Sol seja verdadeiramente o centro do mundo e imvel de movimento local, e que a terra se mova diariamente. A ordem refere que se Galileu no aquiescer, dever ser encarcerado. questionvel que esta ordem tenha sido sancionada superiormente, uma vez que no est assinada. Talvez se trate de um esboo de uma deciso que nunca foi tomada. Parece ter vindo do prprio Papa Paulo V a deciso de ser o Cardeal Bellarmino a falar pessoalmente com Galileu, evitando assim um confronto directo entre o Santo Ofcio e o sbio, deciso essa que no era habitual. Idem No dia 26, respondendo a um pedido do Papa Paulo V, o Cardeal Bellarmino chama Galileu sua residncia e avisa-o de que no defenda a teoria copernicana como sendo a realidade, podendo defend-la como a melhor teoria, em termos de facilidade de clculo, para estudar os movimentos planetrios. Segundo um documento no assinado e datado do dia 26, e que consta dos arquivos do processo37, Galileu teria sido proibido presencialmente pelo Cardeal Bellarmino de ter, defender ou ensinar38 a teoria, fosse por via oral ou por via escrita. Este ponto controverso, pois uma carta do Cardeal Bellarmino, escrita em Maio desse ano (ver adiante), assegura que Galileu no foi forado a nenhuma confisso ou abjurao, nem foi admoestado ou citado pelo Santo Ofcio. Eis o que diz Jos Maria Andr acerca do que se ter passado nesse dia crucial:O Cardeal Bellarmino chamou Galileu sua residncia, mas o Comissrio da Inquisio, sem ter sido convocado, apresentou-se, com um notrio e outras testemunhas, para assistirem conversa. O Cardeal ficou ofendido com esse abuso, mas no lhes pde negar a entrada. Ento, aproveitando o costume social de sair a receber os visitantes, preveniu Galileu do que se passava antes de se reunirem com os demais. Depois, j na presena de todos, o Cardeal comunicou a Galileu a mensagem que o tinham encarregado de transmitir. Ao ver o assunto resolvido to simplesmente, o Comissrio invocou o pretexto de que Galileu fora avisado por Bellarmino e formulou a Galileu uma admoestao formal, como se Galileu no tivesse aceitado o que lhe fora dito. Galileu no reagiu a este ataque intempestivo. Bellarmino acompanhou Galileu at porta, pedindo-lhe

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Ver a nota relativa ao ano 1664, mais adiante no texto. Pagano, op. cit., pp. 100-101. 37 Pagano, op. cit., pp. 101-102. 38 quovis modo teneat, doceat aut defendat, verbo aut scriptis, no original em latim.

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que voltasse; em seguida repreendeu o Comissrio por ter exorbitado das instrues recebidas e recusou-se a assinar o documento preparado pelo notrio.39

Maro Nos arquivos, existe um documento datado do dia 5, da Congregao do ndex, a suspender40, entre outras obras, a obra de Coprnico, De Revolutionibus orbium coelestium, bem como a carta de Foscarini que fora impressa em Npoles em 1615, Lettera del R. Padre Maestro Paolo Antnio Foscarini Carmelitano, sopra lopinione de Pittagorici e del Coprnico della mobilit della terra e stabilit del sole, e il nuovo Pittagorico sistema del mondo; Galileu no mencionado neste texto. Galileu recebido pelo Papa Paulo V, que o tranquiliza em relao sua situao perante a Inquisio. Esta deciso inslita, sobretudo no que diz respeito obra de Coprnico, pois esta gozara at ento de ampla divulgao, apoio e aprovao eclesistica. Maio No dia 26, o Cardeal Bellarmino, tendo ouvido rumores de que se dizia que Galileu fora condenado secretamente pelo Santo Ofcio, escreve uma carta assinada a Galileu, que atesta que o sbio no foi nem julgado nem condenado por qualquer instituio romana:Ns, Roberto Cardeal Bellarmino, para que o senhor Galileu no seja caluniado atribuindo-se-lhe o ter abjurado da nossa mo, e ter recebido uma penitncia para que se emendasse, e ter sido objecto de um inqurito, declaramos que o supra mencionado senhor Galileu no abjurou de alguma opinio sua ou doutrina da nossa mo nem na de qualquer autoridade romana, nem mesmo em qualquer outro lugar de que tenhamos conhecimento, nem to pouco recebeu qualquer penitncia para que se corrigisse, nem qualquer outra repreenso; apenas lhe foi comunicada a declarao de Nossa Senhoria vinda da Sagrada Congregao do ndice, na qual se contm que a doutrina atribuda a Coprnico, de que a Terra se mexe em volta do Sol e o Sol o centro imutvel do Universo, contrria s Escrituras e no deve ser defendida e mantida. Dando testemunho destes factos escrevemos e assinmos por mo prpria esta declarao, a 26 de Maio de 1616 O mesmo, referido acima, Roberto Cardeal Bellarmino.41

Junho Galileu entra numa disputa oral com Francesco Ingoli acerca da mobilidade da Terra e do sistema copernicano; fica combinado que iriam debater a questo por escrito; o documento de Ingoli, que contm argumentos retirados das Escrituras para tentar refutar o

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Jos Maria Andr, op. cit., pp. 28-29. Pagano, op. cit., pp. 102-103. 41 Traduo de Jos Maria Andr, op. cit., pp. 29-30. O texto pode ser consultado nos documentos do processo, em Pagano, op. cit.; a cpia feita por Galileu nas pginas 134 a 135 e o original na pgina 138. Note-se que Bellarmino no refere nenhuma proibio relativamente ao ensino do heliocentrismo.

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sistema copernicano, no chega a ser impresso; por prudncia, para evitar problemas com a Inquisio, Galileu no responde a esta argumentao. 1618 Durante este ano, fazem a sua apario trs cometas diferentes; Orazio Grassi, professor de matemtica do Collegio Romano, faz uma palestra sobre estes cometas; uma cpia manuscrita da palestra enviada a Galileu. Junho de 1619 Mario Guiducci, aluno de Galileu, faz uma palestra na Accademia Fiorentina sobre cometas na qual contesta algumas opinies dos jesutas do Collegio Romano. Outubro Orazio Grassi, sob o pseudnimo de Lothario Sarsi, escreve uma obra contra as ideias de Galileu e de Guiducci acerca dos cometas. 1620 A Congregao do ndex publica as correces a fazer obra de Coprnico antes que esta possa ser novamente divulgada. Junho Guiducci publica uma carta de contestao obra de Grassi (Lothario). Agosto O Cardeal Barberini (futuro Papa Urbano VIII) envia a Galileu um poema da sua autoria em honra do sbio. Janeiro 1621 Galileu eleito Cnsul da Accademia Fiorentina. Morte do Papa Paulo V; sucede-lhe o Papa Gregrio XV. Fevereiro Morte do Gro-duque Cosme II de Mdicis; sucedido por Fernando II, de onze anos de idade, que reinar sob a regncia da sua av Cristina de Lorena e da sua me, Maria Madalena de ustria. Setembro Morte, no dia 17, do Cardeal Roberto Bellarmino. Outubro de 1622 Galileu envia o manuscrito Il Saggiatore, a sua resposta obra de Grassi, Accademia dei Lincei de Roma. A obra dedicada ao Papa Gregrio XV. 1623 Publicao da Defesa de Galileu, de Tommaso Campanella, em Frankfurt. Fevereiro Os censores romanos autorizam a impresso da obra Il Saggiatore de Galileu. Julho Morte do Papa Gregrio XV.

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Agosto Eleio do Cardeal Barberini como Papa Urbano VIII. Abril de 1624 Galileu vai a Roma ter seis audincias com o Papa e com vrios cardeais; o Papa assegura-lhe que pode escrever acerca da teoria copernicana, desde que a encare como uma hiptese matemtica. Galileu mostra um microscpio Accademia dei Lincei: uma abelha vista com este aparelho (desenhos desta experincia sero publicados por Francesco Stelluti em 1630), que depois entregue ao Cardeal Zollern para ser presenteado ao Duque da Baviera. Junho Galileu regressa a Florena. Setembro Galileu decide finalmente retorquir ao texto de Ingoli, datado de 1616, refutando a sua argumentao; esta carta a Ingoli no impressa mas circula em manuscrito. Galileu comea a rever o seu trabalho sobre as mars, o que o ajudar na elaborao da sua obra futura acerca dos dois sistemas, a surgir apenas em 1632. 1624/1625 Uma queixa annima acerca da obra de Galileu Il Saggiatore depositada na Inquisio. A queixa alega falsamente que as ideias atomistas expostas por Galileu nessa obra no so compatveis com a doutrina catlica da transubstanciao no sacramento da Eucaristia, pelo qual o po e o vinho so transformados em Corpo e Sangue de Cristo. Aps uma investigao por parte da Inquisio, Galileu ilibado das suspeitas de heresia que foram levantadas sobre a sua obra Il Saggiatore42. 1626 Orazio Grassi publica em Paris uma obra de reaco ao Il Saggiatore, com o ttulo Ratio ponderum librae et simbellae. Idem Kepler tinha estado a imprimir em Linz a sua importante obra Tabulae Rudolphinae, que continha os resultados dos seus modelos matemticos de rbitas planetrias elpticas, que tinham sido construdos com base nas excelentes observaes de Brahe. Rebenta uma rebelio na regio e a cidade de Linz sitiada: Kepler e a sua famlia saem da cidade. Com a rebelio, a tipografia arde e com ela a parte da obra que j estava impressa. 1627 Kepler consegue imprimir as Tabulae Rudolphinae em Ulm.

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Pagano, op. cit., p. 245-248.

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Maro O papa Urbano VIII atribui uma penso de 60 scudi por ano a Vincenzio Galilei, filho de Galileu. 1630 O jesuta Christoph Scheiner publica Rosa Ursina, que manter-se- durante mais de um sculo a obra de referncia acerca das manchas solares.

Figura 4. Gravura da obra Rosa Ursina, de Christoph Scheiner, mostrando as manchas solares

Fevereiro Urbano VIII concede a Galileu uma penso de 40 scudi por ano. Abril Galileu termina o seu Dilogo acerca dos dois mximos sistemas do Mundo o Ptolemaico e o Copernicano. Na obra, escrita sob a forma de dilogo, confrontavam-se trs personagens: Salviati, o adepto do modelo de Coprnico e cujo nome teria sido inspirado no amigo de Galileu Filippo Salviati (1582-1614); Simplcio, o adepto do modelo de Ptolomeu, cujo nome evocaria o filsofo Simplcio de Cilcia (c. 490-560 d.C.), comentador de Aristteles; e Sagredo, a figura inicialmente neutra que ser convencida dos argumentos a favor do modelo de Coprnico, e cujo nome teria sido inspirado noutro amigo de Galileu, Giovanfrancesco Sagredo (1571-1620). Maio/Junho Galileu vai a Roma para obter permisso dos censores para a sua obra e para conseguir que seja editada pela Accademia dei Lincei. Galileu apresentou a sua obra com o ttulo De fluxu et refluxu maris, uma vez que este o ttulo que consta no relato existente nos

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arquivos43. Segundo os documentos do processo, e nunca demais frisar que nos baseamos apenas em documentao escrita por um dos lados da questo, Galileu teria obtido do Mestre do Sacro Palcio44 uma permisso condicional: a obra deveria passar pela reviso de autoridades, tanto cientficas como eclesisticas. O Mestre do Sacro Palcio teria enviado a obra de Galileu a um colega seu, o Padre Raffaele Visconti, professor de Matemtica, para que este fizesse a sua reviso. O relato do Mestre do Sacro Palcio refere uma verso original da obra que teria recebido as correces de Visconti. As condies eram estas: Galileu deveria falar acerca do modelo copernicano como pura hiptese matemtica: a Sagrada Congregao (do ndex) mostraria a sua boa vontade deixando que se argumentasse em defesa do sistema copernicano45, mas Galileu no poderia defender este sistema como tese verdadeira e demonstrada. Deste modo, segundo os arquivos do processo, Galileu ficara de fazer uma reviso obra para a colocar no exigido tom hipottico. Da parte de Visconti, feitas as suas correces, nada mais havia a obstar: tudo estava a postos para que a aprovao que lhe competia surgisse no prefcio da obra, quando esta fosse impressa em Roma, como estava previsto. Segundo o Mestre do Sacro Palcio, este queria fazer uma ltima reviso ao texto com as correces de Visconti, mas tal desejo ter-se-ia revelado moroso e por razes prticas ter-se-ia optado por dar o imprimatur obra, para que a impresso pudesse comear de imediato, e medida que o Mestre do Sacro Palcio fosse lendo a obra, folha a folha, remet-la-ia para o prelo. Esta descrio do Mestre do Sacro Palcio no parece credvel: um imprimatur uma autorizao formal e completa para a impresso de uma obra. Agosto Morte de Federico Cesi, fundador e patrono da Accademia dei Lincei. o primeiro fim desta academia, que s ser reavivada no sculo XIX46. Outono Tendo viajado para Florena, Galileu decide imprimir a obra nessa cidade (na casa Giovanni Batista Landini). Pede autorizao ao Mestre do Sacro Palcio, que a recusa. Este exige a Galileu que lhe envie a obra, na ntegra, com as correces que lhe foram impostas,

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Ver Pagano, op. cit., p. 105 em diante. Cargo de grande importncia no Palcio Apostlico, atribudo de forma vitalcia pelo Papa a um frade da Ordem dos Pregadores, ou seja, a um dominicano. Trata-se, nada mais, nada menos, do telogo oficial do Santo Padre. 45 Ver Pagano, op. cit., p. 106, ponto 1. 46 Em 1847, o Papa Pio IX reabre-a com o nome de Pontificia Accademia dei Nuovi Lincei com a Questo de Roma, a Academia cair definitivamente fora do patronato papal, ficando sob a regncia de Quintino Sella, que a transforma na Accademia Nazionale Reale dei Lincei a academia existe ainda hoje com o nome de Accademia Nazionale dei Lincei. Em 1936, o Papa Pio XI funda a actual Pontifcia Academia das Cincias para que esta tome o lugar da antiga Pontifcia Accademia dei Nuovi Lincei.

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para uma ltima leitura antes de ser dada autorizao total. Galileu alega que no o pode fazer, por perigo de contgio, em virtude de uma epidemia que grassava na altura. Novembro No dia 15, em Regensburg, morre Johannes Kepler. Primavera de 1631 Atravs do seu protector, o Gro-duque da Toscnia, por via dos seus embaixadores em Roma, Galileu consegue que a obra seja aprovada para impresso apenas com base no prefcio e na concluso. O acordo era que a reviso ao corpo da obra seria feito pela Inquisio em Florena. Maio No dia 24, Frei Niccol Riccardi, Mestre do Sacro Palcio, redige uma carta ao Inquisidor de Florena, a delegar nele todo o poder de deciso acerca da impresso ou no da obra. Frei Niccol deixa bem claro na carta que quer agradar ao Gro-duque da Toscnia, que fez grande presso para que a obra fosse impressa, mas deixa os avisos bem claros: que o ttulo da obra no adequado, pois a obra diz respeito ao debate entre os dois modelos astronmicos, e segundo o revisor, a escolha de um ttulo associado s mars uma m ideia47; que o autor tem que tratar a questo de forma matemtica e hipottica; e que o autor no pode invocar de forma alguma as Sagradas Escrituras. Segundo as palavras de Riccardi, se tudo isto se verificar, o livro no ter impedimento algum aqui em Roma, e Vossa Paternidade muito reverenda poder comprazer o autor e servir a Serenssima Alteza, que nisto mostra to grande solicitude48. No entanto, nada disto apaga o facto de que Riccardi j tinha dado o imprimatur obra, o que representa uma permisso total para a sua impresso. Idem No dia 31, Clemente, o Inquisidor de Florena, responde carta do Mestre do Sacro Palcio, prometendo que dar toda a ateno ao pedido, e dizendo que a impresso da obra interessa muitssimo ao Gro-duque, e que Galileu se mostra prontssimo e obedientssimo a toda a correco. O Inquisidor informa que deu a obra a rever ao Padre Stefani, da Ordem dos Pregadores, Padre de muito valor e Consultor deste Santo Oficio. Informa ainda que aguarda o envio do prefcio da obra, que ficara de ser escrito por Riccardi49. Julho No dia 19, Niccol Riccardi envia ao Inquisidor de Florena um prefcio, da sua lavra, a incluir na obra de Galileu50. Riccardi diz ao Inquisidor Clemente que Galileu tem

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As autoridades eclesisticas consideravam, correctamente, que o argumento das mars usado por Galileu para apoiar o copernicanismo era um mau argumento. 48 Ver Pagano, op. cit., pp. 108-109, bloco A. 49 Ver Pagano, op. cit., pp. 109-110, bloco B. 50 Ver Pagano, op. cit., pp. 110-112. O prefcio escrito por Riccardi o indicado no bloco C.

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liberdade para mud-lo e embelez-lo quanto s palavras, mas observando a substncia do contedo. Galileu dever ainda escrever ou adaptar a sua concluso da obra de acordo com o esprito do dito prefcio51. Fevereiro de 1632 A impresso do Dilogo concluda em Florena.

Figura 5. Gravura e frontispcio da obra Dilogo

Vero Os primeiros exemplares chegam ao conhecimento do Mestre do Sacro Palcio. Este mostra-se muito revoltado com o facto de que Galileu, presumidamente, no acatou as suas recomendaes e as que foram passadas ao Inquisidor de Florena. O Papa Urbano VIII probe a disseminao da obra. Atravs do Mestre do Sacro Palcio, o Papa manda recolher todos os exemplares e uma comisso instaurada para a analisar. Os delitos da obra so indicados deste modo nos arquivos do processo:1. Ter posto o imprimatur de Roma sem [ter recebido] ordem, e sem participar a publicao com quem diz se ter subscrito.

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Ver Pagano, op. cit., p. 113, bloco D.

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2. Ter posto o prefcio com carcter distinto, e o ter tornado intil como [se fosse] alienado do corpo da obra, e ter posto a cautela do fim na boca de um tolo, e em tal parte que nem sequer se encontra seno com dificuldade, aprovada depois pelo outro interlocutor friamente, e com acenar somente e no distinguir o bem que mostra dizer de m vontade. 3. Esquecer-se na obra muitas vezes e retirar-se da hiptese, ou afirmando absolutamente a mobilidade da terra e a estabilidade do sol, ou qualificando os argumentos sobre os quais a funda como demonstrativos e necessrios, ou tratando a parte negativa por impossvel. 4. Trata a coisa como no decidida, e como se se esperasse [pela deciso] e no se pressuponha a definio [do geocentrismo] 5. O mal tratar dos autores contrrios e de quem mais se serve [a] Santa Igreja. 6. Afirmar-se e declarar-se mal qualquer igualdade, no compreender as coisas geomtricas, entre o intelecto humano e divino. 7. Dar por argumento de verdade que os ptolemaicos passam a copernicanos, e no vice-versa. 8. Ter resolvido mal o existente fluxo e refluxo do mar na estabilidade do sol e mobilidade da terra, no existente. Todas estas coisas se poderiam emendar, se se julgasse existir qualquer utilidade no livro ().52

A seguir a esta lista de delitos, na mesma pgina, surge um pargrafo em latim cujo contedo j vimos ser duvidoso. Nesse pargrafo, afirma-se que em 1616 o Santo Ofcio teria proibido formalmente a Galileu o ensino, e mesmo a expresso oral ou escrita, da centralidade do sol e do movimento da terra, e que este teria aquiescido e parecido prometer acatar a proibio. Ora, como se viu atrs, no h documentao assinada que prove uma admoestao formal a Galileu, antes pelo contrrio: a nota manuscrita e assinada pelo Cardeal Bellarmino a 26 de Maio de 1616, incontestavelmente genuna, atesta-o. Galileu no parece ter recebido nenhum preceito formal do Santo Ofcio em 1616 nem parece ter feito promessas formais. Ao que tudo indica, em 1616, ter recebido apenas a recomendao informal do Cardeal Bellarmino para que tratasse o heliocentrismo apenas como uma hiptese matemtica, antes de ter provas definitivas, dando-lhe conta da recente (Fevereiro de 1616) proibio da Sagrada Congregao relativamente ao heliocentrismo. Agosto No dia 7, um amigo de Galileu, Fillipo Magalotti transmite-lhe o seguinte numa carta: Na semana passada nem escrevi por no ter nada importante para contar, simplesmente os rumores que j tinha ouvido, de que se estava a estudar o livro ()53.

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Pagano, op. cit., p. 108.

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Setembro Com base no relatrio da comisso que investigou a publicao do Dilogo, o caso passado pelo Papa Inquisio. Note-se que em Florena, a Inquisio autorizara a impresso da obra poucos meses antes. Numa sesso da Inquisio presidida pelo prprio Papa, decide-se chamar Galileu a Roma para depor. O intermedirio ser o Inquisidor de Florena. Um documento com data de 23 de Setembro formaliza a ordem54. Idem Filippo Magalotti escreve a Galileu, a tranquiliz-lo: parece-me que o negcio j amansou () Riccardi [o Mestre do Sacro Palcio] diz que se estivesse na Congregao [do ndex] na altura, no teria havido nenhuma medida contra o heliocentrismo. Riccardi assegura ainda que, na sequncia do exame da Congregao sua obra, Galileu ficaria muito bem e s seria louvado55. Idem Provavelmente nesta altura, Riccardi mostra-se muito preocupado e assustado com a obra de Galileu. Filippo Magalotti descreve um encontro com Riccardi: Na tera-feira de manh (), sua Reverncia [Riccardi] () veio ver-me (). Acrescentou, ento, um outro motivo () contra o livro dos Dilogos. Sob reserva de segredo, ele informou-me de que a gravura do frontispcio constitua uma ofensa gravssima (). Ao ouvir isto, desatei a rir () e disse que estava em condies de lhe garantir que o Senhor Galileu no era homem para disfarar grandes mistrios com brincadeiras dessas e que tinha dito claramente aquilo que queria dizer. Declarei que, provavelmente, o emblema seria apenas o ex-libris do editor. Ao ouvir isto, ficou muito aliviado e afirmou-me que se eu o conseguisse verificar () isso seria da maior vantagem para o autor56. Aps algum tempo e diligncias, Magalotti conseguiu entregar a Riccardi uma obra anterior do editor Landini, de Florena, na qual surgia o mesmo emblema57. Os fantasmas da comparao entre Galileu e Giordano Bruno surgiam

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Jos Maria Andr, op. cit., p. 38. Pagano, op. cit., p. 113. 55 Jos Maria Andr, op. cit., p. 38-39. 56 Jos Maria Andr, op. cit., p. 45. 57 A polmica levantada em torno do ex-libris do editor indicativa do ambiente de suspeio que ento se vivia no que diz respeito a movimentos ocultistas que agitavam a sociedade e inquietavam as autoridades. Nesse ambiente social dado a teorias conspiratrias, o ex-libris do editor da obra de Galileu foi tomado como smbolo hermtico. Os trs peixes foram interpretados como sendo golfinhos. Ora, na mitologia grega, o golfinho (delphos) smbolo do deus Apolo, venerado no templo de Delfos. Segundo a Ilada de Homero, Apolo prestara auxlio aos trajanos, de cuja linhagem descendem os francos. Deste modo, Riccardi e o seu crculo estavam a interpretar o emblema do editor como uma mensagem velada de Galileu para promover a poltica francesa sob a capa de smbolos hermticos. Para aprofundar a teoria conspiratria, os descendentes da coroa de Frana chamam-se sempre Delfim (dauphin), e o lema do emblema, Grandior ut proles, encaixava bem na ideia da corrente hermtica, que remete os segredos transmitidos ocultamente ao longo dos sculos para uma linhagem inicitica que remonta a grandes nomes como Apolo, Pitgoras ou Hermes. Explicaes retiradas da obra j citada de Jos Maria Andr, pp. 46-47.

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nalgumas mentes: Bruno escrevera tambm uma obra, La cena delle ceneri, tambm em dilogo e tambm defendendo o modelo copernicano. Idem Riccardi, numa carta ao seu cunhado, Francesco Niccolini, Embaixador de Florena e grande amigo de Galileu, que o Santo Ofcio se est a ocupar do caso e que () se trata de muitos perigos para a F, no de Matemtica, mas das Escrituras, da Religio e da F58. Niccolini quer ajudar Galileu, e ao dar-lhe conta por escrito do andamento do processo em Roma, deixa transparecer a gravidade: o prprio Papa disssera a Niccolini que estava muito irritado porque era ofendido no livro de Galileu, e que se tratava do assunto mais grave que se poderia ter em mos (), de uma doutrina perversa ao mais alto grau. No credvel que esta doutrina perversa fosse a de Coprnico, que nunca fora julgada desse modo pela Igreja. A proibio feita em 1616 obra de Coprnico, surgida aps 73 anos de circulao livre, parece ter sido motivada por receios de que a obra estivesse a inspirar ideias herticas relativas s Sagradas Escrituras, e essa proibio seria mais como que uma suspenso, a manter-se at que fossem feitas correces obra para uma futura edio da mesma 59 . Tratar-se-iam das suspeitas de que Galileu escondia na sua obra ideias polticas, esotricas e subversivas? Apesar da considerao