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Gestão de recursos hídricos no Brasil: a experiência da Agência Nacional de Águas Marcos de Freitas, Diane Rangel e Luís Dutra Resumo: A gestão dos recursos hídricos evoluiu significativamente no decorrer do último século, sem contudo reduzir a pressão sobre os recursos hídricos. O Brasil, apesar de dispor da maior reserva hídrica na terra, não está em situação confortável, por uma lado, porque enfrenta secas recorrentes em sua região Nordeste, enquanto, no Centro Sul é a degradação dos recursos hídricos e a crescente demanda que se transformaram em importantes obstáculos para o desenvolvimento. A evolução institucional do setor no país foi marcada no século passado por uma trajetória anacrônica, pois caracterizou-se inicialmente pela natureza pioneira do Código de Águas, editado em 1934, para mais tarde tender a um progressivo centralismo, na medida em que o tema foi capturado pelo setor hidroelétrico, para finalmente, ser marcada pela exagerada segmentação da administração pública (via criação de órgãos setoriais), que se incumbiam dos recursos hídricos sem muita articulação. A promulgação da Constituição de 1988 e das Leis n. os 9.433/97 e 9.984/00 formam, no final do século XX, as bases que permitirão alterar radicalmente a política nacional de recursos hídricos, a partir da implantação de um sistema que tem por foco a descentralização, a garantia do uso múltiplo, a apreciação do bem de acordo com seu valor econômico e a definição da bacia hidrográfica como unidade de gestão. Conteúdo: 1) Os recursos hídricos, uma questão mundial, 2) A participação do Brasil na disponibilidade hídrica mundial, 3) Do pioneiro Código de Águas ao progressivo anacronismo da gestão dos recursos hídricos brasileiros, 4) A evolução institucional recente: da reforma jurídica à instalação ANA e 5) A ANA, suas prioridades e seus desafios, 6) Referências bibliográficas, 7) Curriculum vitae e Summary 1) Os recursos hídricos, uma questão mundial O crescimento da demanda mundial, por água de boa qualidade, a uma taxa superior à taxa de renovabilidade do ciclo hidrológico, é um consenso nos meios técnicos e científicos internacionais. Este crescimento tende a se tornar uma das maiores pressões antrópicas sobre os recursos naturais do planeta no próximo século. De fato, o consumo mundial d'água cresceu mais de seis vezes entre 1900 e 1995 - mais que o dobro das taxas de crescimento da população - e continua a crescer rapidamente com a elevação de consumo dos setores agrícola, industrial e residencial (WMO, 1997). Globalmente, embora as fontes hídricas sejam abundantes, freqüentemente elas estão mal distribuídas na superfície do planeta. Em algumas áreas, as retiradas são tão elevadas em comparação com a oferta, que a disponibilidade superficial de água esta sendo reduzida e os recursos subterrâneos rapidamente esgotados. A escassez de recursos hídricos traz sérias limitações para o desenvolvimento, ao restringir o atendimento às necessidades humanas, o que freqüentemente é acompanhado pela degradação acelerada dos ecossistemas aquáticos. E, sublinhe-se, escassez e degradação não são fenômenos recentes. Por volta de 2000 aC, a decadência econômica dos sumérios decorreu da estagnação de sua agricultura irrigada em razão da salinização do solo. Grandes impérios na Mesopotâmia, no Egito, na Índia e na China dependiam diretamente do aproveitamento dos seus recursos hídricos. Tales de Mileto, 625-558 aC, já afirmava que a água estava no princípio de tudo e, um pouco mais tarde, Platão, 427-558 aC, defendeu a necessidade de discip linar o uso e de se evitar a degradação dos corpos

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Gestão de recursos hídricos no Brasil: a experiência da Agência Nacional de Águas

Marcos de Freitas, Diane Rangel e Luís Dutra

Resumo: A gestão dos recursos hídricos evoluiu significativamente no decorrer do último século, sem contudo reduzir a pressão sobre os recursos hídricos. O Brasil, apesar de dispor da maior reserva hídrica na terra, não está em situação confortável, por uma lado, porque enfrenta secas recorrentes em sua região Nordeste, enquanto, no Centro Sul é a degradação dos recursos hídricos e a crescente demanda que se transformaram em importantes obstáculos para o desenvolvimento. A evolução institucional do setor no país foi marcada no século passado por uma trajetória anacrônica, pois caracterizou-se inicialmente pela natureza pioneira do Código de Águas, editado em 1934, para mais tarde tender a um progressivo centralismo, na medida em que o tema foi capturado pelo setor hidroelétrico, para finalmente, ser marcada pela exagerada segmentação da administração pública (via criação de órgãos setoriais), que se incumbiam dos recursos hídricos sem muita articulação. A promulgação da Constituição de 1988 e das Leis n.os 9.433/97 e 9.984/00 formam, no final do século XX, as bases que permitirão alterar radicalmente a política nacional de recursos hídricos, a partir da implantação de um sistema que tem por foco a descentralização, a garantia do uso múltiplo, a apreciação do bem de acordo com seu valor econômico e a definição da bacia hidrográfica como unidade de gestão. Conteúdo: 1) Os recursos hídricos, uma questão mundial, 2) A participação do Brasil na disponibilidade hídrica mundial, 3) Do pioneiro Código de Águas ao progressivo anacronismo da gestão dos recursos hídricos brasileiros, 4) A evolução institucional recente: da reforma jurídica à instalação ANA e 5) A ANA, suas prioridades e seus desafios, 6) Referências bibliográficas, 7) Curriculum vitae e Summary 1) Os recursos hídricos, uma questão mundial

O crescimento da demanda mundial, por água de boa qualidade, a uma taxa superior à taxa de renovabilidade do ciclo hidrológico, é um consenso nos meios técnicos e científicos internacionais. Este crescimento tende a se tornar uma das maiores pressões antrópicas sobre os recursos naturais do planeta no próximo século. De fato, o consumo mundial d'água cresceu mais de seis vezes entre 1900 e 1995 - mais que o dobro das taxas de crescimento da população - e continua a crescer rapidamente com a elevação de consumo dos setores agrícola, industrial e residencial (WMO, 1997). Globalmente, embora as fontes hídricas sejam abundantes, freqüentemente elas estão mal distribuídas na superfície do planeta. Em algumas áreas, as retiradas são tão elevadas em comparação com a oferta, que a disponibilidade superficial de água esta sendo reduzida e os recursos subterrâneos rapidamente esgotados.

A escassez de recursos hídricos traz sérias limitações para o desenvolvimento, ao

restringir o atendimento às necessidades humanas, o que freqüentemente é acompanhado pela degradação acelerada dos ecossistemas aquáticos. E, sublinhe-se, escassez e degradação não são fenômenos recentes. Por volta de 2000 aC, a decadência econômica dos sumérios decorreu da estagnação de sua agricultura irrigada em razão da salinização do solo. Grandes impérios na Mesopotâmia, no Egito, na Índia e na China dependiam diretamente do aproveitamento dos seus recursos hídricos. Tales de Mileto, 625-558 aC, já afirmava que a água estava no princípio de tudo e, um pouco mais tarde, Platão, 427-558 aC, defendeu a necessidade de discip linar o uso e de se evitar a degradação dos corpos

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d’água. Grande parte das condições insalubres que predominaram no início da Idade Média foi relacionada à perda de infra-estruturas e técnicas de gestão e tratamento das águas e rejeitos. Ainda em 1830, a epidemia de cólera assolava a América do Norte e a Europa e tinha origem no inadequado tratamento dos efluentes domésticos que espalhavam os microrganismos causadores de doenças.

Desde então, apesar da significativa evolução científica e tecnológica e da mais

recente conscientização quanto à importância dos recursos hídricos e de sua crescente escassez, a situação está longe de ser confortável. Levantamentos realizados pela Organização Meteorológica Mundial das Nações Unidas indicam que um terço da população mundial vive em regiões de moderado a alto stress hídrico; ou seja, com um nível de consumo superior a 20% da sua disponibilidade d'água. As estatísticas da OMM/ONU demonstram claramente que, nos próximos 30 anos, a situação global das reservas hídricas tende consideravelmente a piorar, caso não sejam tomadas atitudes definitivas no sentido de uma melhor gestão da oferta e demanda d'água. Extrapolando-se o que ocorreu no século XX, a WMO prevê que dois terços dos habitantes do planeta estarão vivendo em áreas de "moderado a alto stress", se nada for feito (WMO, op. cit.).

A razão principal é que o crescimento demográfico e desenvolvimento sócio-

econômico são necessariamente acompanhados pelo rápido aumento da demanda por água. O uso industrial, por exemplo, deve dobrar até 2.025, se a atual tendência de crescimento se mantiver (WRI, 1998). Já a progressão da demanda mundial de alimentos tem efeito direto no aumento do uso da água no setor agrícola. Atualmente, a agricultura é responsável por nada menos que 70% do consumo mundial d'água. O crescimento das áreas de lavoura irrigada será responsável pela maior parcela de acréscimo de consumo neste setor nos próximos 25 anos. Assim, muito do aumento projetado na demanda d'água ocorrerá nos países em desenvolvimento, onde o crescimento populacional aliado à expansão industrial e agrícola deverá ser acelerado, de forma a reduzir a distância para com os países industrializados. Contudo, os mesmos padrões de consumo não devem ser repetidos, sob pena de tornar ainda mais insustentável a situação. De qualquer forma, ainda por muitos anos, o consumo per capita continuará a ser muito mais elevado nos países industrializados.

À escassez d'água, que é grave em diversas regiões, adiciona-se a poluição

concentrada e difusa dos corpos hídricos. Somente a imposição de marcos regulatórios cada vez mais restritivos e a realização de investimentos em estações de tratamento d'água permitirão aos países melhorar gradualmente a qualidade de seus corpos hídricos. Mesmo nos países mais desenvolvidos, uma boa parcela das águas poluídas ainda não é tratada, antes de descarregadas nos rios, lagos e oceanos. Nos países do Sul da Europa Ocidental, mais de 50% das populações ainda não têm acesso às redes de esgotamento sanitário.A situação é bem pior nos países em desenvolvimento. A saúde humana é gravemente afetada pela aceleração da contaminação de recursos d'água potável, especialmente em regiões de urbanização intensa. Eutrofização, metais pesados, acidificação, poluentes orgânicos e outros efluentes tóxicos degradam os corpos hídricos de áreas densamente povoadas. A poluição afeta igualmente os recursos hídricos subterrâneos, onde a contaminação é lentamente diluída e as práticas de despoluição são extremamente onerosas.

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A maior dificuldade assim pode ser resumida: conseqüência imediata da expansão de áreas urbanas e de novas demandas agro-industriais, na mesma proporção em que as fontes d'água potável são reduzidas, a competição por elas tem aumentado. Alguns exemplos bem sucedidos apontam para um leque de soluções: a definição de sistemas de cobrança e de controle do uso d'água, a criação de mercados de recursos hídricos (que permitiriam transferir recursos entre compradores e vendedores, usuários e gestores, beneficiados e atingidos), o estabelecimento de novos mecanismos de financiamento público e privado para investimentos em infra-estrutura etc. De todo o modo, a expressão monetária do bem “água” deve necessariamente refletir seu valor econômico, quer seja por instrumentos de mercado, quer seja pela definição de preços públicos, sobretudo para sinalizar a prioridade no que diz respeito à racionalização de seu uso. 2) A participação do Brasil na disponibilidade hídrica mundial

O Brasil possui a maior disponibilidade hídrica do planeta, ou seja,. 13,8% do

deflúvio médio mundial (vide quadro 1). A produção hídrica, em território nacional é de 182.170 m3/s, o que eqüivale a um deflúvio anual de cerca de 5.744 km3. Levando-se em consideração as vazões produzidas na área das bacias da Amazônia, Paraná, Paraguai e Uruguai que se encontram em território estrangeiro, estimadas em 76.580 m3/s, essa disponibilidade hídrica total atinge 258.750 m3/s.

Apesar de possuir a maior disponibilidade mundial, os dados do balanço hídrico mostram que existe uma grande diversidade hidrológica dentro do território brasileiro. De fato, a disponibilidade per capita d’água varia de 1.835 m3/hab/ano na bacia hidrográfica do Atlântico Leste 1 (sub-bacias 50 à 53) à 628.938 m3/hab/ano na bacia Amazônica, levando-se em conta somente os dados referentes à área situada em território brasileiro. A concentração populacional precisamente em regiões de menor disponibilidade é um fator complicador para a gestão dos recursos hídricos no país.

O Brasil deverá promover uma gestão eficiente, não só para preservar e garantir o

acesso à suas reservas e corpos hídricos nos diversos pontos do território brasileiro para as gerações atuais, mas também para garantir às gerações futuras ao menos as mesmas condições de acesso. O requisito essencial para tanto é o conhecimento das necessidades dos diversos usuários, da capacidade de oferta e da velocidade de renovação das fontes naturais. São informações cruciais para a promulgação dos marcos de regulação e a definição, em seguida, da capacidade de suporte (ou retirada) de cada bacia hidrográfica. É igualmente imprescindível que ocorra uma discussão prévia sobre o aproveitamento da água envolvendo usuários e atingidos, quando forem previstas alterações da cobertura vegetal dos solos, bem como o acompanhamento permanente da implantação de obras de captação, regularização e despejo de efluentes nos corpos d’água. 3) Do pioneirismo do Código de Águas ao progressivo anacronismo da gestão dos recursos hídricos brasileiros

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A preocupação com a gestão das águas remonta ao tempo do Império, cabendo à Coroa definir os direitos e prerrogativas pelo uso da água. Após a instalação da República, o governo federal encaminhou, em 1907, ao Congresso Nacional o Código de Águas, editado através do Decreto 24.643, quase três décadas depois: em 10 de julho de 1934. Neste mesmo ano, foram editados os Códigos Florestal e de Minas. No que tange os recursos hídricos, o governo federal era o único a legislar sobre as águas e a concessão do potencial hidráulico; tornou-se necessária a concessão, ou autorização administrativa, de acordo com o uso da água; foram definidos diferentes domínios, inclusive domínios particulares; introduziu-se o principio poluidor-pagador, além de penalidades aos infratores. Estas mudanças não eram isoladas. O país deixava sua base agrária, ingressando na era industrial, o que demandava maior produção de energia. O arcabouço jurídico institucional ia sendo elaborado e uma nova estrutura administrativa foi implantada com a criação da Diretoria de Águas que, logo, tornou-se o Serviço das Águas dentro do Departamento Nacional de Produção Mineral, DNPM, vinculado ao Ministério da Agricultura.

Na década de 1940, destacou-se a expansão industrial impulsionada por novas empresas estatais, como a Companhia Siderúrgica Nacional e a Companhia Hidroelétrica do São Francisco. A redemocratização e a Constituição de 1946 pareciam apontar para uma gradual descentralização, uma vez que Estados e Municípios ganharam a competência de legislar sobre as águas em caráter supletivo e complementar. Mas, a concessão de potencial hidráulico foi mantida sob a responsabilidade do governo federal e, na década seguinte, em 1957, foi criado o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica, CNAEE, que regulamentou a prestação dos serviços de energia elétrica, apontando a tendência de cada vez maior centralização, que prevalecerá nas três décadas seguintes. A partir da Constituição Federal de 1967 e das alterações de 1969, legislar sobre as águas passou a ser privativo da União. Criou-se o Departamento Nacional de Águas e Energia e o Ministério de Minas e Energia, consolidando-se a predominância do setor elétrico na gestão das águas.

Não é por acaso que foram os capítulos referentes ao aproveitamento hidrelétrico do Código das Águas que avançaram, sem que o mesmo fosse observado em referência à qualidade das águas, ao uso múltiplo, ou a outros temas relevantes. Como conseqüência, na década de 1970, os Estados começaram a legislar sobre as águas, particularmente em relação ao controle de poluição ligada à saúde pública. Em seguida, passaram a tratar da proteção ambiental, iniciando um complexo “sistema” de gestão das águas no país: a qualidade sendo gerida segundo a legislação ambiental e a quantidade pelo Código de Águas. Com o tempo, ficou evidente a crescente falta de harmonia e coesão jurídico-institucional da gestão que se implantava. Vinculada ao Ministério do Interior, foi criada a Secretaria Especial de Meio Ambiente, SEMA, dedicando-se apenas aos aspectos relacionados à qualidade da água, enquanto cabia ao DNAEE a gestão dos aspectos quantitativos.

Embora imprescindíveis, tanto a integração gerencial da qualidade e quantidade,

quanto a articulação entre os diferentes usuários, eram cada vez mais difíceis de serem obtidos. Em 1979, a Lei 6662/79 define a Política Nacional de Irrigação, transferindo a gestão do uso da água na irrigação do DNAEE para o MINTER. Assim, de forma anacrônica, em vez de dar as bases para as soluções, a legislação passou, ela, a gerar conflitos, quer sejam entre usuários, como no caso do setor elétrico e o de irrigação, quer

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sejam entre os diferentes órgãos responsáveis pela gestão da quantidade e qualidade das águas, ou ainda entre as decisões da esfera federal e estadual. 4) A evolução institucional recente: da reforma jurídica à instalação ANA

A partir do final da década de 1970, apesar dos percalços jurídicos-institucionais,

foi sendo introduzida uma visão mais coerente e moderna da gestão das águas no país. A preocupação com o uso múltiplo das águas dos rios de domínio da União levou a criação de um comitê especial intitulado CEEIBH – Comitê Especial de Estudos Integrados das Bacias Hidrográficas (Portaria Interministerial 090/78). Ele foi incumbido da classificação dos cursos d’água, bem como do estudo integrado e do acompanhamento da utilização racional nas bacias hidrográficas. Reunia os órgãos existentes na época: DNAEE, SEMA, ELETROBRAS e DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca), introduzindo-se de forma pioneira um processo de gestão “coparticipativo”, baseado em informações um pouco mais confiáveis, elaboradas pelo DNAEE. A partir desta iniciativa, alguns comitês foram criados nos rios Paraíba do Sul, Verde Grande, Paranapanema, São Francisco e Doce entre outros. Vale lembrar que, apesar de pioneiros e integradores, esses comitês não eram deliberativos e, portanto, eram inócuas suas decisões.

Em 1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, que alterou de forma

significativa a base jurídico-institucional na qual repousa a gestão das águas no país. O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos foi criado, ao mesmo tempo em que foi extinto o domínio privado da água, previsto no Código das Águas. Todos os corpos d’água passaram a ser de domínio publico e passou a vigorar apenas dois domínios: a União com os rios, ou lagos, que banham mais que uma unidade da federação, ou sirvam de fronteira, ou ainda que tenham origem, ou se estendam, a outros países e os Estados com as demais águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, as decorrentes de obras da União. Introduziu-se também a noção de bacia hidrográfica como unidade de planejamento.

Considerando a urgência de se reorganizar o setor, em 1991, foi remetido o Projeto

de Lei que dispunha sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos e mudava a Lei 8001/90, que definia os percentuais da distribuição da compensação financeira paga pelo setor elétrico. Em 1995, foi criada a Secretaria de Recursos Hídricos vinculada ao Ministério de Meio Ambiente pela Medida provisória 813/95. O objetivo era dar maior coesão à gestão dos recursos hídricos. O Projeto de Lei das Águas foi submetido a um amplo e longo processo de discussão com significativa participação da sociedade. As contribuições se traduziram em um substitutivo, que foi aprovado e sancionado como a Lei das Águas – Lei 9433 de 08 de janeiro de 1997. Como órgão máximo do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, foi criado o Conselho Nacional de Recursos Hídricos.

Os fundamentos que alicerçaram as mudanças do arcabouço jurídico são

universalmente aceitos: i) a água, além de ser um bem público, é um recurso natural limitado e, portanto, é dotado de valor econômico, ii) quanto ao uso, a prioridade é o consumo humano e a dessedentação de animais, contudo, sem esquecer que a gestão dos recursos hídricos deve proporcionar o uso múltiplo, iii) a bacia hidrográfica é a unidade

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territorial de implementação da política e de atuação do sistema, uma vez que a gestão das águas deve ser descentralizada e contar com a participação do poder público, dos usuários e das comunidades. Definiu-se igualmente quais são os instrumentos que devem permitir a

gestão eficiente, a saber: os planos de recursos hídricos, o enquadramento dos corpos de águas, a outorga de direitos de uso, a cobrança pelo uso e a implantação de um sistema de informações. Os objetivos principais que também foram explicitados são a gestão integrada, a arbitragem de conflitos, a regulação do uso, a conservação e, por fim, a recuperação dos corpos degradados. A criação da Agência Nacional de Águas – ANA – ocorreu em 17 de julho de 2000, com a promulgação da Lei 9.984. É uma autarquia federal com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério de Meio Ambiente. Seus principais objetivos são implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos e coordenar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Sua instalação é bastante recente, ocorreu em 19 de dezembro de 2000, pelo Decreto nº 3.692. A missão definida é extremamente ampla: i) fiscalizar os usos de recursos hídricos nos corpos de água de domínio da União, ii) elaborar estudos técnicos para subsidiar a definição, pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, dos valores a serem cobrados pelo uso de recursos hídricos de domínio da União (com base nos mecanismos e quantitativos sugeridos pelos Comitês de Bacia Hidrográfica); iii) estimular e apoiar as iniciativas voltadas para a criação destes comitês; iv) arrecadar, distribuir e aplicar receitas auferidas por intermédio da cobrança pelo uso de recursos hídricos de domínio da União; v) planejar e promover ações destinadas a prevenir, ou minimizar, os efeitos de secas e inundações, no âmbito do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, em articulação com o órgão central do Sistema Nacional de Defesa Civil, em apoio aos Estados e Municípios; vi) prestar apoio aos Estados na criação de órgãos gestores; vii) propor ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos o estabelecimento de incentivos, inclusive financeiros, à conservação qualitativa e quantitativa de recursos hídricos; viii) dirimir conflitos entre usuários.

É interessante tentar resumir o extenso escopo de atuação a partir das diferentes competências que cabem a ANA, neste novo arranjo institucional. É um órgão executor, na medida em que implementa o sistema nacional de gerenciamento, tendo como foco a gestão por bacia e, portanto, a implantação dos comitês. É também um órgão regulador clássico, uma vez que lhe compete, por um lado, regular no sentido clássico a oferta e a demanda e, por outro lado, fiscalizar os usos dos recursos hídricos, inclusive mediando os conflitos e dispondo de poder de polícia. Por fim, dispõe de um poder outorgante, visto que lhe cabe autorizar o uso de água em rios de domínio da União.

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Da mesma forma como foi observado no final da década de 1930, é importante inserir as profundas alterações no que concerne à gestão das águas em um contexto geral de reforma do aparelho de estado. Concebida no quadriênio 1995-98, ela previu a criação de agencias reguladoras para aqueles setores onde as condições de monopólio natural vigoravam. A busca por maior competição e, portanto, o ingresso de novos capitais nestes setores permitiria a simultânea expansão da oferta e queda de preço. Assim, foram criadas a Agencia Nacional de Telecomunicações (ANATEL), a Agencia Nacional do Petróleo (ANP) e a Agencia Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).

5) A ANA, suas prioridades e seus desafios A instalação da ANA representou um duplo desafio institucional: ao mesmo tempo, operacionalizar uma nova agência, que não era apenas reguladora, e implantar o sistema nacional de gestão das águas, o que inclui não só a coordenação da esfera federal, mas também o apoio às iniciativas estaduais nos rios de seus domínios. Concretamente, os desafios não são menores: mitigar os efeitos da seca na região Nordeste do país, enquanto no Centro-Sul, a agência deve procurar reduzir os impactos da poluição nos corpos de água, resultado da industrialização e urbanização desordenada. Intempestivamente, surgiu um elemento complicador de peso para a gestão dos recursos hídricos, que foi a crise da produção de energia elétrica no país, apoiada quase exclusivamente na geração hidráulica (92-94%). Conflitos entre usuários do setor de transporte, de lazer e turismo, de geração elétrica, de abastecimento urbano e de irrigação multiplicaram-se em quase todo o território nacional. As áreas críticas foram mais uma vez reveladas: canal Pereira Passos, abastecimento das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo, Aracaju e Fortaleza, queda acentuada dos reservatórios de Furnas afetando todas as cidades banhadas por essas águas, redução expressiva da vazão do rio São Francisco, afetando toda a bacia hidrográfica e as sub-bacias envolvidas. A estruturação interna da agência foi calcada na experiência já obtida com a reforma administrativa iniciada em 1995 e levou em conta a missão e os desafios já mencionados. Existem dois níveis significativos de decisão: a Direção é colegiada, composta de cinco membros e se constitui na última instância deliberativa. As decisões são tomadas por maioria, tendo o Diretor-Presidente o voto “Minerva” (de desempate). As Superintendência são as unidades de decisão de nível inferior; elas trabalham por áreas temáticas, horizontalmente, submetendo-se à coordenação e fiscalização da Diretoria. Os superintendentes possuem essencialmente o papel de executores dos projetos. Tendo em vista a sua instalação recente, a reduzida experiência das agências criadas anteriormente, a história particular do setor e as rápidas transformações em andamento no que concerne à gestão dos recursos hídricos, é natural que os modelos de estruturas administrativas e procedimentos de tomada de decisão sejam transitórios e relativamente flexíveis, de maneira a permitir a realização dos devidos ajustes, a fim de garantir a eficácia e a transparência da administração pública que são, afinal, os principais objetivos do governo brasileiro. Ainda em relação aos desafios anteriormente mencionados, cabe constatar que a missão da agência possui duas naturezas pelo menos: por um lado, técnico-científica e, por outro lado, política; são facetas distintas, que devem ser ambas simultaneamente absorvidas

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para, em seguida, gerarem soluções específicas, mas, articuladas entre elas. O desafio técnico pode ser enfrentado a partir da definição de prioridades, após confrontar-se as carências do setor e às ambições contidas na legislação promulgada e detalhada no decorrer dos últimos cinco anos. A Pirâmide Espaço-Temporal de Prioridades em Gestão de Recursos Hídricos (figura 1) apresentada em seguida procura sintetizar as metas a serem atingidas em etapas, de forma a sublinhar quais são as dificuldades mais urgentes e a seqüência de etapas que viabilizariam a consolidação em um prazo de três a quatro anos do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Figura 1 – ANA – Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos –

“Pirâmide Espaço-Temporal de Prioridades em Gestão de Recursos Hídricos”

Evidentemente, muitos dos esforços podem ser feitos em paralelo, com está sendo observado efetivamente na implantação da agência. Contudo, é indiscutível que o primeiro requisito para qualquer gerenciamento é a elaboração de um confiável sistema de informação, articulado com um programa de capacitação e qualificação de recursos humanos na gestão de águas. Fiscalização e outorga do direito de uso subentendem a definição de um coerente e coeso conjunto de leis, normas e regulamentos. Por sua vez, a cobrança exige a definição anterior dos Planos de Bacias e dos Comitês, além de não ser concebível sem a existência de um sistema de outorga e fiscalização.

A natureza política dos desafios da Agência Nacional de Águas é facilmente discernível quando se observa que é a bacia hidrográfica a unidade principal de gestão no sistema que ora se implanta. Nesta bacia, os atores são bastante diversos: governos federal, estaduais e municipais, usuários de segmentos tão díspares quanto empresas de saneamento e agricultores, além de organizações não governamentais e representantes da sociedade

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reunidos em consócios, grupos de trabalho e “procomitês”. Todos eles estão representados nos Comitês de Bacia. Para um país de fraca tradição federalista, onde a União acumulou competências ao longo de décadas, muitas vezes à revelia do próprio espírito de sua mais recente Constituição, fazer dos comitês unidades de gestão autônomas, com pleno poder deliberativo, representa uma mudança radical na trajetória até a pouco seguida pela administração pública no que diz respeito ao aproveitamento dos recurso hídricos. Raras vezes foram tão grandes as oportunidades para se fazer ouvir e participar setores até então quase nada representados e interesses difusos que, afinal, caracterizam o uso múltiplo da água. Como se conclui, articular todos os agentes em favor da gestão racional de águas é, antes de tudo, estabelecer “pactos políticos” ao nível local; sem dúvida, sendo este o maior desafio e a chave para o sucesso na implantação do novo sistema. Referências Bibliográficas Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL (1998). “Atlas Hidrológico Brasileiro – Versão 1.0”. ANEEL, Brasília, CD. ROM. Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL (1999). “Informações Hidrológicas Brasileiras”. ANEEL, Brasília, mimeo. Armand D. (1998). “L’eau en danger”. Collection Les Essentiels Milan, Paris Freitas, M. A. V. & Coimbra, R. (1998). “Perspectivas da Hidrometeorologia no Brasil”. ANEEL, Brasília, CD ROM. IBGE (1998). “Anuário Estatístico de 1996”. IBGE, Rio de Janeiro. World Meteorological Organization – WMO (1997). “Comprehensive Assessment of the Freshwater Resources of the World”. WMO, Genebra. World Resources Institute – WRI (1998). “World Resources – 1998-99 – Environmental Change and Human Health”. Oxford University Press, Oxford.

Curriculum Vitae - Marcos Aurélio Vasconcelos de Freitas Education: Doctor in Economics of Environment (Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 1994); Master of Science in Energy Planning (COPPE - Federal University of Rio de Janeiro, 1988); Graduate in Geography (State University of Rio de Janeiro, 1983).

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Professional Experience : Director of Water National Agency (2000 to present); Adviser in Brazilian hydrology (World Meteorologist Organisation, 1998 to present); Director of Energy Planning Brazilian Society (1998 to present); Head of Hydrological Information Superintendence (Electrical Energy National Agency, 1998-2000); Visiting Professor (Centre of Environmental Sciences, University of Amazon, 1997-1998); Visiting Professor (COPPE, Energy and Environmental Planning, Federal University of Rio de Janeiro, 1994-1997). - Diane Mara F. Varanda Rangel Education: Master of Science in Biomedical Sciences (Biomedical Science Institute of São Paulo University, 1982); Graduate in Pharmacology and Biochemistry (Pharmacology and Biochemistry Faculty of Espirito Santo, 1975). Professional Experience: Adviser of the Board of Directors (National Water Agency, 2001 to present); Adviser in water resource management (UNESCO/Water Resource Secretary in Minister of Environment, 1999-2001); Municipal Secretary of Environment (Serra City Council, State of Espirito Santo, 1998-00); Municipal Secretary of Public Utilities (Serra City Council, State of Espirito Santo, 1997-99), Chief of Environmental Department (State Sanitation Company of Espirito Santo, 1993-1996). - Luís Eduardo Duque Dutra Education: Specialisation in Intellectual Property (WIPO Academy and University of Turin, 2000); Doctor in Economics (University of Paris-Nord, 1993); Master of Science in Energy Planning (COPPE - Federal University of Rio de Janeiro, 1988); Graduate in Economics (National University of Brasilia, 1982). Professional Experience:, Professor (School of Chemistry and Industrial Engineering Department at School of Engineering, 1997 to present);Visiting Professor (COPPE, Energy and Environmental Planning, Federal University of Rio de Janeiro, 1994-1997); Research Fellow (Centre de Recherche em Economie Industrielle, PARIS XIII, 1998-94); Economist (National Council of Petroleum, 1982-84) Summary: Water management was significantly developed in the last century, without however reduce to pressure on the water resource. In spite of have the biggest water stock on earth; Brazil is not in a comfortable situation, because it faces droughts in its Northeast, while in the Centre South, it faces degradation of water resources and growing demand. Institutional evolution was marked, in the beginning, by the pioneer nature with the Code of Waters, edited in 1934, but later it turned to anachronism, with the progress of centralism. The water governmental administration was captured by the electrical sector after the II World War. During the 1980th, the excessive segmentation of public administration concerning the water management ended in a public action without much articulation. Constitution of 1988 and new Laws ( 9. 433/ 97 and 9. 984 /00), editing in the end of the Twentieth Century shaped the bases that will allow radical changes on water national politics. They will guide the implementation of one system that has as focus decentralisation, warranty to multiple use, recognition of economic water value, and definition of river basin as the geographical management unit.