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GETÚLIO VARGAS NA ÓTICA DO JORNAL O GLOBO (1953-1954) O de Getúlio Vargas a presidência da república, na década de 1950, já foi intensamente explorado pela historiografia. Sendo assim, não existe a pretensão de revisitar o período de forma tradicional, pelo contrário, a partir de um corte específico, compreendido entre agosto de 1953 e agosto de 1954, e da observação de um veículo de imprensa em especial, tem-se o objetivo de apresentar novas perspectivas a respeito de um momento tão complexo da História do Brasil. A escolha do jornal O Globo como parâmetro para a análise do período proposto, leva em consideração algumas características apresentadas que o colocaram em uma posição singular frente a outros periódicos. Conhecer a trajetória do jornal O Globo, a partir da sua origem, mostra-se fundamental para compreender a narrativa construída pelo veículo, a respeito do presidente Getúlio Vargas, e como ela mostrou-se longe de uma pretensa isenção defendida pela direção do periódico como uma das suas principais virtudes. Inicialmente, O Globo, tratava-se de um periódico vespertino, tendo posteriormente se tornado matutino, fundado em vinte nove de julho de 1925. A tarefa coube a um triunvirato composto por Irineu Marinho, antigo diretor do jornal A Noite 1 , Herbert Moses e Justo de Morais. Segundo os dados coletados junto ao DHBB, a proposta do jornal era renovar os padrões dominantes da imprensa carioca. O nome foi uma sugestão do jornalista Elói Pontes e foi ratificado através de concurso popular. Vale destacar as diretrizes propostas por O Globo para pautar a sua linha de atuação expressa logo em seu primeiro número. Nas palavras de Irineu Marinho, “o dever ineludível em que nos vimos de continuar a consagrar-nos, tanto quanto nos consinta a nossa reduzida capacidade, à defesa das causas populares que nos empolgaram e nos dominam há (sic) bem mais de duas décadas 2 ”. Ainda nesse número inaugural, houve uma preocupação por parte dos redatores em deixar claro o posicionamento independente de O Globo em relação a qualquer tipo de interferência externa. É nesse sentido que: 1 A Noite Jornal carioca diário e vespertino, fundado em 18 de junho de 1911 e extinto em 27 de dezembro de 1957. 2 Conforme Dicionário Histórico Bibliográfico Brasileiro.

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GETÚLIO VARGAS NA ÓTICA DO JORNAL O GLOBO (1953-1954)

O de Getúlio Vargas a presidência da república, na década de 1950, já foi

intensamente explorado pela historiografia. Sendo assim, não existe a pretensão de revisitar o

período de forma tradicional, pelo contrário, a partir de um corte específico, compreendido

entre agosto de 1953 e agosto de 1954, e da observação de um veículo de imprensa em

especial, tem-se o objetivo de apresentar novas perspectivas a respeito de um momento tão

complexo da História do Brasil.

A escolha do jornal O Globo como parâmetro para a análise do período proposto, leva

em consideração algumas características apresentadas que o colocaram em uma posição

singular frente a outros periódicos.

Conhecer a trajetória do jornal O Globo, a partir da sua origem, mostra-se fundamental

para compreender a narrativa construída pelo veículo, a respeito do presidente Getúlio

Vargas, e como ela mostrou-se longe de uma pretensa isenção defendida pela direção do

periódico como uma das suas principais virtudes.

Inicialmente, O Globo, tratava-se de um periódico vespertino, tendo posteriormente se

tornado matutino, fundado em vinte nove de julho de 1925. A tarefa coube a um triunvirato

composto por Irineu Marinho, antigo diretor do jornal A Noite1, Herbert Moses e Justo de

Morais. Segundo os dados coletados junto ao DHBB, a proposta do jornal era renovar os

padrões dominantes da imprensa carioca. O nome foi uma sugestão do jornalista Elói Pontes e

foi ratificado através de concurso popular.

Vale destacar as diretrizes propostas por O Globo para pautar a sua linha de atuação

expressa logo em seu primeiro número. Nas palavras de Irineu Marinho, “o dever ineludível

em que nos vimos de continuar a consagrar-nos, tanto quanto nos consinta a nossa reduzida

capacidade, à defesa das causas populares que nos empolgaram e nos dominam há (sic) bem

mais de duas décadas2”.

Ainda nesse número inaugural, houve uma preocupação por parte dos redatores em

deixar claro o posicionamento independente de O Globo em relação a qualquer tipo de

interferência externa. É nesse sentido que:

1 A Noite Jornal carioca diário e vespertino, fundado em 18 de junho de 1911 e extinto em 27 de dezembro de

1957. 2 Conforme Dicionário Histórico Bibliográfico Brasileiro.

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(...) O novo jornal declarava-se ainda totalmente independente, na medida

em que não desejava a intervenção de nenhuma força externa a seus próprios

quadros: isento de afinidade com governos, livre de interesses conjugados

com os de qualquer empresa, o jornal tampouco se ligaria a grupos

capitalistas ou a plutocratas isolados3.

Ao observar o trecho, percebe-se que, pelo menos como discurso externo, O Globo,

assumia um posicionamento de independência frente a qualquer tipo de pressão. Fazia questão

de exaltar uma pretensa neutralidade, em relação aos poderes constituídos, sejam de grupos

econômicos nacionais, ou ainda, da ação de interesses exteriores.

Não seria surpresa se essas diretrizes, ao longo dos anos posteriores, à fundação do

jornal, tenham sofrido alguma flexibilização. Dessa maneira, foram adaptando-se às

necessidades, sobretudo, econômicas que se apresentaram de acordo com a ocasião.

Como empresa privada, o jornal, tem por objetivo primário a evolução econômica do

negócio, onde o principal produto é a informação. Dessa forma, é possível entender que as

notícias publicadas cumpram um papel muito além de, apenas, informar aos leitores, existem

outras motivações envolvidas. Sendo assim, acreditar na neutralidade de O Globo na

transmissão de notícias seria uma atitude, no mínimo, ingênua.

O Globo esteve, desde sua fundação, integrado à nova tendência assumida pela

imprensa a partir do século XX, em que a informação submete-se ao negócio em si. O jornal

adotou um modelo de funcionamento que o transformava em uma empresa voltada, em

muitos sentidos, para a rentabilidade econômica. Dentro dessa perspectiva, a veiculação de

notícias assumia uma característica singular, convergindo para os interesses do próprio jornal,

muitas vezes, escalonando o noticiário de acordo com sua conveniência, longe então de uma

ideia de neutralidade na transmissão do noticiário. O novo panorama abriu espaço para outras

motivações, que concorreram para a obtenção de capitais destinados ao negócio que se

transformou o empreendimento jornalístico.

A ideia da informação como produto, que pode ser modelada de acordo com as

necessidades do negócio, ou de um sistema econômico específico, através da empresa

jornalística ganha maior sustentação a partir do entendimento de que,

(...) nas sociedades capitalistas modernas, o papel das comunicações está em

conectar o sistema produtivo, baseado na propriedade privada, ao sistema

político que pressupõe uma cidadania cuja participação social efetiva

depende, em parte, do acesso à maior gama possível de informação (1997 :

311). O problema estaria em equacionar como um sistema de comunicações

3 Conforme Dicionário Histórico Bibliográfico Brasileiro.

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dominado pela propriedade privada poderia garantir a diversidade de

informação requerida para uma cidadania efetiva4.

A nova imprensa, da qual o Globo fazia parte, estava conectada com esta nova lógica

para a transmissão de notícias, Sendo assim, sobre a pretensa neutralidade do jornal, é

possível deduzir tratar-se de uma artimanha, cujo objetivo seria conferir credibilidade, e

porque não dizer aceitação, para as posições defendidas pelo periódico. A isenção usada como

recurso para ressaltar que os direcionamentos assumidos, por O Globo, estavam além das

paixões políticas, logo, apenas voltadas para os interesses gerais da nação. Entretanto, basta

um olhar atento às edições do jornal para perceber o discurso de isenção apenas como

retórica. Talvez essa seja a principal singularidade encontrada no periódico, apresentar-se

como neutro, quando muitos jornais assumiam posições claras de acordo com suas afinidades

econômicas e políticas. Vender a imagem de isenção era bom para os negócios da família

Marinho.

A expressão “Família Marinho” ajuda a identificar O Globo como um veículo de

comunicação atrelado a uma família em específico. Irineu Marinho, co-fundador do jornal,

morreu pouco tempo depois de sua fundação, ainda em 1925, o que, a princípio, abriria

espaço para uma sucessão familiar para a direção do periódico, algo que na prática não

ocorreu. Em teoria seu filho mais velho, Roberto Marinho, seria o sucessor natural na

condução do jornal, mas diferente do imaginado, o jovem Marinho, só veio assumir a direção

do Jornal em maio de 1931, quando do falecimento de Eurícles de Matos5.

Durante esse hiato de tempo o herdeiro de Irineu Marinho não se afastou do jornal,

pelo contrário, exerceu outras funções dentro da estrutura do periódico como, por exemplo,

repórter e copidesque6. Antes de comandar o jornal, de fato, Roberto Marinho procurou

conhecê-lo melhor por dentro.

A atitude adotada por Roberto Marinho, de passar por diferentes setores do jornal

antes de assumi-lo, permitiu ao jornalista conhecer melhor a empresa que iria comandar no

futuro. O caminho seguido por ele vai de encontro ao raciocínio elaborado por Antônio

Gramsci, em que “seria preciso partir do princípio de que todo redator ou repórter deve ser

posto em condições de redigir e de dirigir todas as partes do jornal, assim como, de imediato,

4 SANTOS, 2006, p. 22. 5 Editor chefe do jornal , O Globo, que assumiu sua direção quando do falecimento de Irineu Marinho. 6 Segundo o Dicionário Houaiss, o copidesque seria uma espécie de “faz tudo” na editoração, ou seja, faria o

papel que normalmente se atribui ao revisor, ao preparador e também ao editor.

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todo redator deveria adquirir as qualidades do repórter, isto é, dar toda sua atividade ao jornal,

etc...7“.

Roberto Marinho, seguindo a orientação recebida de seu pai e fundador do jornal,

Irineu Marinho, procurou traçar um perfil independente para o periódico, agora dirigido por

ele. Isso significava dizer sem maiores aproximações com os governos, mantendo assim, os

compromissos assumidos pelo jornal em seu primeiro número.

Todavia, a observância da diretriz não impediu que O Globo, através da ação firme de

Roberto Marinho, assumisse algumas posições fortes frente a certos acontecimentos,

inclusive, em algumas situações alinhando-se vigorosamente ao governo. A posição do jornal,

assim, era pendular, sempre de acordo com suas próprias convicções. Seria possível encampar

pautas governamentais, desde que elas não representassem risco aos interesses do jornal.

O Globo identificava-se como um jornal conservador em essência. Esta característica

mostrava-se evidente através de duas posições assumidas entre as décadas de 1930 e 1950.

A partir dos anos de 1930 foi desenvolvido um forte sentimento de oposição ao

comunismo, que se manteve presente e fortemente expresso nos anos posteriores. Tal

evidência pode ser comprovada a partir do trecho a seguir onde,

(...) Ao noticiar os levantes armados de 1935, o jornal O Globo, sob censura

como os demais órgãos da imprensa brasileira, mas de modo contrastante

com o tom sóbrio utilizado pelos demais periódicos, empregou, em suas

manchetes, expressões alarmistas de cunho claramente xenófobo, como

“invasão vermelha” ou “Moscou confessa”, divulgando que o Partido tinha

planejado uma revolta armada no Brasil, orientados e diretamente

influenciados pela Internacional Comunista8.

A forma de apresentação das notícias, relativas aos levantes armados de 1935,

evidenciam como o comunismo era visto por O Globo. Os termos utilizados, Além das

mensagens alarmistas, foram responsáveis por criar um clima, para os leitores, de profunda

aversão a tudo que estivesse relacionado à ideologia comunista, de certa forma apresentando

os brasileiros, defensores do comunismo, mais identificados com Moscou do que com o

próprio Brasil.

Na década seguinte, após a redemocratização, foi possível verificar como o jornal

comandado por Roberto Marinho aproximou-se, ideologicamente, de um dos partidos

7 Gramsci, 2001, p. 213. 8 VALENTINI, André Alexandre. Os levantes armados de 1935 na visão do O Globo, como prática de uma

campanha anticomunista.

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autorizados a atuar em 1945. Este partido era a União Democrática Nacional9 (UDN), cujo

apoio, não de forma explícita, O Globo forneceu nas eleições presidenciais de 1945, assim

como nas de 1950, onde mostrava simpatia pelo candidato da legenda, nas duas ocasiões o

Brigadeiro Eduardo Gomes.

As posições defendidas pela UDN estavam afinadas com a ideia de nação encampada

pelo jornal. Entretanto, isso não significava que O Globo era um porta-voz do partido. Não

foram raras as oportunidades em que o posicionamento do periódico divergiu da postura

assumida pela legenda. Um caso exemplar diz respeito aos resultados da eleição presidencial

de 1950. A vitória de Vargas no pleito era questionada a partir da alegação de que o candidato

não havia obtido 50 % dos votos, logo não poderia ser declarado vencedor. A tese firmemente

defendida pelos udenistas, relutantes em aceitar a derrota, não reverberou nas páginas de O

Globo, nem junto ao Tribunal Superior Eleitoral. O caminho para a posse, e diplomação, de

Vargas estava aberto do ponto de vista legal, e a forma como a questão foi tratada pelo jornal,

apenas, demonstraria o compromisso assumido, nesse caso em específico, de respeito às

instituições e a legalidade. Mas também demonstra outro dado, o de que os interesses do

negócio suplantavam as possíveis afinidades ideológicas.

É possível, a partir das primeiras impressões, definir o perfil do jornal O Globo em

relação ao período analisado. Um jornal familiar, identificado com o novo modelo de empresa

jornalística – característico desse momento –, com forte sentimento anticomunista e de caráter

conservador. Assim poderia ser definido o jornal que trouxe uma narrativa, a princípio, de

acordo com o próprio entendimento de sua direção, singular sobre Getúlio Vargas, já que

afastava-se daqueles periódicos cujo objetivo era depreciar a figura do presidente,

exemplificado pelo “Tribuna da Imprensa10” de propriedade de Carlos Lacerda11; assim como

9 A UDN caracterizou-se essencialmente pela oposição constante a Getúlio Vargas e ao getulismo, contradições

e cisões acompanharam a trajetória udenista. Coexistiram na UDN teses liberais e autoritárias, progressista e

conservadoras. O partido que vota a favor do monopólio estatal do petróleo (1953) e contra a cassação dos

mandatos dos parlamentares comunistas (1947) é o mesmo que se opõe à intervenção do Estado na economia,

denuncia a “infiltração comunista” na vida pública e contesta os resultados quando perde as eleições. O partido

ficou marcado pela vinculação com os militares e as aspirações das camadas médias urbanas, identificando-se,

também extrapartidariamente, com o udenismo. O udenismo caracterizou-se pela defesa do liberalismo clássico,

o apego ao bacharelismo e ao moralismo e o horror aos vários “populismos”. 10 Jornal carioca diário e vespertino, fundado em 27 de dezembro de 1949 por Carlos Frederico Werneck de

Lacerda. Em 1962, foi adquirido por Hélio Fernandes, seu atual diretor. Deixou de circular em papel em 2 de

dezembro de 2008, mantendo, porém, uma edição online. 11 Jornalista; dep. fed. DF 1955 e 1956-1960; gov. GB 1960-1965.

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os defensores acríticos, segundo algumas interpretações, do “Pai dos Pobres”, como era o

caso do “Última Hora12”, dirigido por Samuel Wainer13.

Entre agosto de 1953 e agosto de 1954 o Globo exerceu forte papel de ator político. O

alcance do jornal e suas posições o tornavam um forte representante do pensamento

conservador. Apesar de, como já destacado anteriormente, assumir uma postura de isenção,

colocando-se acima das paixões políticas, sempre em defesa dos interesses nacionais em

primeiro lugar. Mas como defender a ideia de isenção e ao mesmo tempo representar uma

importante voz dos conservadores? A solução era simples, O Globo não raras vezes

terceirizava opiniões, selecionando aquelas convergentes a sua linha editorial, a respeito de

questões de interesse nacional, sempre oferecendo um contraponto as posições assumidas por

Vargas, quando era do interesse do jornal. Ou seja, tratava como informação o que muitas

vezes representava oposição, não declarada, ao governo. Para atingir esse objetivo, recorria a

alguns expedientes bem definidos.

O Globo nas suas edições diárias apresentava uma coluna cujo título era “Legislativo

em Ação”. Ao contrário do que poderia se especular, não era um espaço de noticiário sobre o

legislativo (Câmara dos deputados, Câmara dos vereadores e Senado) brasileiro. Na verdade

aparecia como tribuna onde, de forma sutil, O Globo pontuava a sua posição, ora favor ora

contra, em relação à atuação do governo Vargas. Para esse fim, utilizava as vozes dos

representantes do legislativo, justamente daqueles cuja opinião ia de encontro às posições do

jornal. Nesse ponto, algo já discutido antes se mostrava presente, no caso, a pretensa isenção e

neutralidade do periódico.

Outro recurso utilizado por O Globo consistia em dar voz a personagens de grande

apelo junto à sociedade. Nessa linha, para defesa das posições do jornal, figuras como Carlos

Lacerda, Octávio Mangabeira14 e Eurico Gaspar Dutra15 compartilhavam suas opiniões sobre

temáticas relativas aos interesses nacionais, através das páginas do periódico. Os dois

primeiros eram utilizados pelo periódico com o objetivo de atacar Vargas; já em relação ao

ex-presidente, suas impressões eram solicitadas quando o interesse do jornal estava voltado

12 Jornal diário e vespertino fundado no Rio de Janeiro em 12 de junho de 1951 por Samuel Wainer. A partir de

1952, passou a ser igualmente editado em São Paulo. 13 Jornalista fundador do periódico “Última Hora”. 14 Político baiano filiado a UDN. Foi governador da Bahia, além de exercer forte oposição ao presidente Getúlio

Vargas. 15 Militar; comte. 1ª RM 1935-1936; min. Guerra 1936-1945; pres. Rep. 1946-1951.

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para o respeito e manutenção da ordem institucional, mesmo que isso representasse a defesa

de Getúlio Vargas, como ocorreu em janeiro de 195116.

É possível enquadrar as opiniões de Lacerda, Mangabeira e Dutra dentro de uma

mesma categoria. Estas apreciações representariam a prática de um importante recurso

estilístico: a retórica. Nela, de forma mais específica, encontra-se o “argumento de

autoridade”. Sobre o “argumento de autoridade”, cumpre destacar que,

(...) O argumento de prestígio, sobretudo o de autoridade, pertence à prática

comum da retórica. Foi, como observam Perelman e Olbrechts-Tyteca, o tipo

de raciocínio mais atacado por ter sido muito usado contra os avanços

científicos. Apesar dos abusos, ele não pode ser descartado, uma vez que

muitas questões são controversas e a opinião de especialistas pode ser útil

para a persuasão. A jurisprudência, por exemplo, amplamente usada na

argumentação jurídica, não é outra coisa senão um argumento de autoridade.

Levando-se em conta a importância que tem para a retórica a autoridade do

autor, ou orador, será fácil ver o recurso a outros autores como parte da

tática de reforçar a própria autoridade17.

Não foram poucas as oportunidades em que o recurso estilístico foi utilizado para a

construção de uma narrativa de acordo com as interpretações do jornal. Mas uma vez fica

evidente, que a opção assumida pela neutralidade não passava de mais uma figura de retórica,

que tão bem era exercitada por O Globo.

Conhecidos os recursos utilizados, pelo jornal, para a transmissão das notícias, ou seja,

a metodologia aplicada para a construção da narrativa é possível aprofundar no noticiário que

diz respeito à figura do presidente Getúlio Dornelles Vargas.

Não seria nenhum absurdo a afirmação de que O Globo apresentava uma atitude

bivalente em relação a Vargas. Tinha a capacidade de em uma mesma edição do jornal trazer

elogios quanto à gestão econômica, conduzida pelo Ministro da Fazenda Oswaldo Aranha18, e

criticar a condução das relações políticas, que estimularia o enriquecimento ilícito e práticas

16 Em relação ao posicionamento assumido pelo jornal em defesa da estabilidade, ou seja a posse de Getúlio

Vargas, e da conciliação foi observado na edição de três de janeiro de 1951, logo na primeira página o editorial

intitulado “Espadas em continência a Lei”. Nele, o jornal faz ressonância a uma posição do então presidente

Dutra, que defendia a legalidade acima de tudo, e que as Forças Armadas deveriam agir para garantir, de todas as

formas, o respeito à Constituição Federal. 17 CARVALHO, 2000, p.142 18 Deputado Federal pelo RS 1927-1928; Revolução de 1930 Ministro da Justiça 1930-1931; Ministro da

Fazenda 1931-1934; Emb. Brasil nos EUA 1934-1937; Ministro das Relações Exteriores 1938-1944; Emb.

Brasil na ONU 1947; Ministro da Fazenda 1953-1954. Oswaldo Aranha contava com enorme simpatia por do

jornal O Globo, pode-se inclusive constatar que sua presença no Governo Vargas, durante os anos de 1950,

contribuiu para um tom menos belicoso por parte do periódico.

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nocivas a nação. Recorrendo a coluna “Legislação em Ação19”, publicada em 25 de agosto de

1953, encontram-se depoimentos de parlamentares confirmando estas duas posições. O jornal

manteve esta prática, pendular, ao longo de todo período analisado.

Entrevistas concedidas por Getúlio Vargas ao jornal O Globo não apareciam como

uma prática usual. Entretanto, o veículo de comunicação da família Marinho não poderia

prescindir das posições do presidente Vargas. A solução encontrada foi recorrer às opiniões

emitidas, pelo presidente, em discursos realizados em ocasiões especiais. Nesses momentos,

Getúlio Vargas tratava tanto do tema principal, que o levava a discursar, como aproveitava a

oportunidade para responder aos seus críticos. A partir do discurso realizado, que muitas

vezes era transcrito na íntegra nas páginas do jornal, O Globo buscava coletar opiniões

diversas sobre a fala presidencial, tanto aquelas que elogiavam as palavras do presidente,

como também daqueles que a criticavam de forma contundente o posicionamento de Vargas.

Para ilustrar essa situação a edição de 8 de setembro de 1953 traz as impressões a

respeito do discurso presidencial realizado em decorrência das comemorações pelo dia da

Independência do Brasil, realizado no dia anterior.

Antes de trazer as opiniões relativas ao discurso, cumpre apresentar um trecho do

mesmo, em que Vargas deixava bastante claro para quem suas palavras eram endereçadas,

seus detratores. Ao mesmo tempo em que conclama a união nacional e o fim dos ataques

improdutivos ao governo. Segundo o presidente,

“No grande dia de hoje recebi da população da capital da República as

demonstrações mais carinhosas de afeto e entusiasmo que profundamente me

comoveram e me alentaram. Não eram as manifestações dos afortunados e

bem vividos, mas as do povo anônimo das ruas, daquele que luta para

sobreviver e que sua o suor de sangue de todos os dias.”

“(...) Se a lição dos anos vividos no serviço da Pátria me assegura serenidade

ante as incompreensões, as injustiças e os ultrajes, lastimo, entretanto, que se

procure dificultar o trabalho construtivo do País e comprometer a confiança

do Povo nos seus dirigentes, quando, mais do que nunca, se impõe a união

nacional20.”

Na página 8 da edição, foram encontrados apanhados desses juízos, sobre a fala

presidencial. Inicialmente, destacaram-se aquelas posições favoráveis a Vargas. Aplaudiram o

discurso do chefe da nação o presidente da Câmara, Nereu Ramos, e o líder da maioria na

Câmara Federal, Gustavo Capanema. Nereu Ramos elogia a clareza com que o presidente

19 O Globo edição de 25 de agosto de 1953, página 9. 20 O Globo edição de 8 de setembro de 1953, página 2.

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tratou as responsabilidades que competem a Presidência da República; Já Gustavo Capanema

reitera que apesar da ação dos detratores, os aplausos recebidos, por Vargas, em praça

pública, demonstraram a compreensão do povo, e ainda mais, o respaldo para o chefe da

nação seguir em frente com suas medidas.

As posições contrárias, ao discurso, foram tomadas junto a Aliomar Baleeiro, que o

jornal chama de oposicionista número um da UDN, e de Lopo Coelho filiado ao PSD.

Baleeiro entende que nada mudaria, pelo contrário, os favorecimentos e a corrupção seriam

mantidos, e a tendência era a piora da situação; Lopo Coelho sinaliza que Vargas esquiva-se

de punir os culpados, segundo ele, a preocupação do presidente foi criar polêmica com todos

aqueles que apontariam os erros e a corrupção no governo, apesar do crescimento verificado

no país.

Quando O Globo traz opiniões distintas a respeito do discurso presidencial, reforça

para os seus leitores a ideia de isenção que, em tese, pautaria a narrativa do jornal. Mas o

público conservador, que representava a base daqueles que acompanham as páginas do

periódico, identificavam-se com as posições de Aliomar Baleeiro e Lopo Coelho, por

exemplo.

Já foi sinalizado que O Globo assumiu a função de ator político. Isso ficaria mais

evidente quando se verifica a antecipação do debate para sucessão de Getúlio Vargas na

Presidência da República promovido pelo jornal. As eleições presidenciais só ocorreriam em

outubro de 1955, entretanto, pouco mais de dois anos antes do pleito, a narrativa trazida

enfatizava a necessidade de apresentar alternativas para enfrentar o candidato identificado

com o presidente, ainda que ele não estivesse identificado. Então, é possível enxergar como a

sucessão presidencial aparece, também, como fator que contribui para a instabilidade política

do período. Logo, Alguns nomes, pouco a pouco, tendem a aparecer como eventuais

postulantes a cadeira de Vargas, e por isso ganhariam cada vez mais destaque, seja positivo ou

negativo no noticiário do jornal. O Globo, obviamente, não deixaria de atuar nesse ambiente,

procurando defender os seus próprios interesses, como de costume.

As eleições presidenciais só seriam realizadas em 1955, um ano antes seriam

realizadas as eleições para os governos estaduais e para o legislativo. Mas ainda assim o foco

dado, pelo jornal, era a sucessão de Vargas. Sendo assim, qualquer oportunidade era adotada

por O Globo para construir um discurso que enfraquecesse politicamente o presidente. Por

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esse motivo, o grande destaque dado às comemorações do aniversário da Constituição de

1946.

Na edição de 18 de setembro de 1953, duas opiniões serviriam para reforçar, mesmo

que sutilmente, as posições do jornal contra o governo. O deputado Afonso Arinos, por

exemplo, reforça que a data, em questão, deveria ser utilizada pelo governo para refletir sobre

a necessidade de respeitar a Constituição Federal. Octávio Mangabeira, ex-governador da

Bahia, também, não perdeu a oportunidade para atacar o governo, inclusive, sua declaração

ganha maior destaque pela projeção concedida por O Globo, que sempre recorreu ao

conhecido político baiano para direcionar críticas ao governo. Segundo Mangabeira,

referindo-se a constituição de 1946, “eram quase todos marinheiros de primeira viagem e

andavam tateando à luz do sol, pois haviam saído da escuridão do Estado Novo21”.

A lembrança do passado golpista de Vargas era lembrada no momento em que se

comemorava a data que marcava o retorno do Brasil a “democracia”, a partir da promulgação

da constituição de 1946. É evidente que esta ação tem um viés político de ataque ao

presidente, e as suas potenciais ideias de continuidade no poder, nunca assumidas por Vargas,

desrespeitando, assim, a carta constitucional.

Na edição de 6 de outubro de 1953, o jornal traz um importante posicionamento que

demonstra como a sucessão da cadeira presidencial tinha entrado definitivamente na pauta

política. O Globo recorre às observações de Pedro Aleixo, ex-presidente da UDN mineira, que

afirma; se houver um acordo entre os partidos “centristas” para a sucessão de Vargas, o

virtual candidato deveria sair das “forças armadas”. Argumenta que,

“o candidato militar seria o único meio seguro de se evitar qualquer perturbação ao

regime ou por um golpe, ou por tentativa de se impor um candidato ao povo,

hipóteses essas perfeitamente plausíveis, sabendo-se que quem está no poder é o

senhor Getúlio Vargas...22”.

A interpretação de Pedro Aleixo aponta, sobretudo, para o temor existente em certos

setores da sociedade. Primeiro a recorrente ideia de que Vargas estaria disposto a promover

um golpe para manter-se no poder, assim, como fez no passado. Fica subentendido também

que, quando se refere à imposição de um candidato ao povo, ele estaria referindo-se ao

Ministro do trabalho João Goulart, outro potencial candidato capaz de criar calafrios nas

classes conservadoras.

21 O Globo edição de 18 de setembro de 1953. 22 O Globo edição de 6 de outubro de 1953.

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O pensamento de Pedro, Aleixo sobre a presença de militares na política nacional, não

era algo isolado. Identificados, os militares, com a ideia de força e ordem, não é de estranhar o

conforto que eles ofereceriam aos setores conservadores da sociedade, visto que são

encarados como mantenedores da estrutura social. Não por acaso, O Globo nutria forte

simpatia pelos representantes das Forças Armadas.

No dia 20 de outubro o jornal, mais uma vez, levanta a questão da sucessão

presidencial, onde informa aos seus leitores sobre a entrevista que seria concedida pelo

presidente da UDN, Arthur Santos. A notícia antecipa todos os temas que serão abordados

pelo presidente da legenda, em que defende sim a antecipação do debate sobre a sucessão, e o

entendimento por parte dos partidos políticos de sua função na sociedade, e que em nenhuma

hipótese devem se furtar a essa responsabilidade.

O Globo era defensor da antecipação desse debate. Suas matérias frequentemente

dedicam atenção ao tema, sempre com um olhar no futuro, tentando desqualificar qualquer

atitude política que ofereça um projeto de país que ameace seus interesses, por isso, retardar

as discussões relativas à sucessão de Vargas é vista com reservas e preocupação.

Outro detalhe, o conglomerado Globo é muito generoso ao oferecer as páginas do

jornal ou os microfones da rádio aos opositores de Vargas. Entretanto, existiria espaço para

fala de certas figuras da cúpula governamental, Tancredo Neves e Oswaldo Aranha, por

exemplo. Mas os dois contariam com simpatia ou tolerância por parte do grupo, por

apresentarem tendências mais próximas daquilo que converge para a visão de mundo

defendida pelo jornal.

“Plano de subversão do regime à vista23” está é a manchete de capa da edição do dia

21 de outubro. Ela faz alusão à entrevista concedida por Arthur Santos, presidente da UDN, a

Rádio Globo, onde o deputado udenista alertaria sobre “os que pretendem usar das massas

sindicais como instrumento de seus intuitos de domínio político”.

É inegável o poder das palavras, a retórica é uma arte, e a forma de sua utilização,

principalmente, por políticos experientes não era praticada ao acaso. Então, quando em uma

mesma frase são utilizadas as palavras “massas” e “domínio” pode-se intuir uma alusão ao

totalitarismo. Tal ideologia não deixou de ser associada a Vargas, e também não deixaria de

ser associada aos seus herdeiros políticos, como João Goulart. O Ministro, sempre era

23 O Globo edição de 21 de outubro de 1953.

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apresentado como fomentador do enfrentamento entre as classes, e estimulador da

sindicalização dos trabalhadores, em prejuízo a ordem social.

O clima de campanha eleitoral antecipado foi prejudicial ao desenvolvimento do país.

De forma crítica, o clima belicoso estimulado por setores da sociedade, em relação à sucessão

presidencial, nada contribuiria para o bom andamento do Brasil, muito pelo contrário. As

discussões importantes são relegadas a um segundo plano, dedica-se mais tempo em

acusações e negativas do que pensar efetivamente em um projeto de nação, a preocupação

maior debruça-se em diferentes projetos de poder.

Personalidade recorrente nas páginas de O Globo, quando sempre tem uma palavra

desabonadora em relação ao governo, ainda reflexo do passado de Vargas, Octávio

Mangabeira é o principal chamariz para a capa. Em sua fala a imprensa, publicada em vinte

três de outubro, realizada na capital paulista, destaca-se a percepção de Mangabeira que, no

Brasil, há clima propício para golpes. Atesta que o momento vivido deve-se em muito a

“ditadura” que se abateu sobre o país durante 15 anos. Alerta que quando o povo deserta da

vida política, segundo sua percepção o que estaria acontecendo, o espectro da ditadura volta a

rondar a sociedade, e por isso mesmo a participação política precisa ser mais efetiva.

Nesta mesma entrevista, Mangabeira, foi bastante generoso nos louvores a duas

personalidades paulistas: Lucas Garcez e Jânio Quadros. Identificou em Garcez uma grande

reserva moral para nação, mas foi sobre Jânio Quadros que dedicou mais palavras elogiosas.

Segundo Mangabeira, Jânio Quadros era o que o Brasil precisava “a união do proletariado

com a elite. É um homem que não sendo um analfabeto nem aventureiro, mas pertencendo a

elite, porque formado, sabe falar ao povo. Porque sente os seus anseios, conhece suas

dificuldades, tem vocação da vida pública24”.

Octávio Mangabeira através de suas considerações não só defende a antecipação do

debate sobre a sucessão presidencial, como alerta do perigo para aqueles que ainda teimariam

em negligenciá-lo, sob risco de um possível retorno da “ditadura”, que para ele surgiria como

um perigo real. Também aponta duas possibilidades viáveis para a sucessão de Vargas,

representadas por Jânio Quadros e Lucas Garcez. Podemos notar como no panorama que se

apresentava São Paulo tinha grande importância.

A edição do dia 24 de outubro apresentaria as principais colocações do presidente do

PL, Raul Pila, aos microfones da Rádio Globo. Entrevista esta noticiada na edição anterior do

24 O Globo edição de 23 de outubro de 1953.

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jornal. Raul Pila mantém a linha de raciocínio exposto por Arthur Santos, em que é preciso

sim discutir a sucessão presidencial, tema que urge ser debatido. Raul Pila também informa

que estaria em elaboração na câmara um projeto para a implantação do parlamentarismo no

país, acreditava que em breve a reforma parlamentarista triunfaria no Brasil.

O golpe, temido por Octávio Mangabeira, poderia acontecer de diferentes maneiras, e

não necessariamente partiria do governo. Não deve ser ignorado que a proposta de emenda

parlamentarista poderia ser uma dessas possibilidades. As classes conservadoras receavam

que um candidato afinado com as classes trabalhadoras, viesse suceder Vargas na presidência,

e que dessa forma colocasse em risco o status quo. Por isso, a emenda parlamentar, seria uma

salvaguarda para essas classes conservadoras, uma forma de reduzir o poder do presidente da

República.

A edição do dia 29 de outubro faz louvação ao evento ocorrido, nessa mesma data,

oito anos antes. A notícia refere-se à deposição de Getúlio Vargas em 1945, quando os

militares forçaram a saída do atual presidente do poder. O Globo relata que todos os

parlamentares ouvidos foram unânimes em reconhecer a importância do movimento realizado

pelas classes armadas. Os mesmos parlamentares indicariam que, sem a ação dos militares, o

regime iniciado em 1937 ainda vigoraria no país.

Ao exaltar a data em questão, comemoração pelo fim do “Estado Novo”, o jornal

criaria um nítido constrangimento ao Presidente da República, mantendo para o seu público

leitor, a lembrança da faceta “ditatorial” de Vargas. Algo que seria aproveitado politicamente

por aqueles que faziam oposição ao presidente, já que a corrida eleitoral já havia sido, de

forma conveniente, antecipada.

A antecipação da corrida pela sucessão de Vargas teve tanto sucesso, que os próprios

integrantes do governo não tiveram como fugir do tema, já abordavam com naturalidade a

questão. Podemos constatar como a articulação de algumas figuras, como Octávio

Mangabeira, apoiadas pela imprensa, no caso O Globo, foram felizes no seu intuito. Com

mais de dois anos de governo pela frente, Vargas se viu obrigado a atuar em duas frentes. De

um lado no exercício de seu mandato procurava administrar os desafios representados pela

difícil tarefa de conduzir o país; ao mesmo tempo devia lidar com a questão sucessória,

interagindo com uma oposição ávida por assumir o poder no país.

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Em 18 de novembro de 1953, identifica-se um recurso utilizado por O Globo, que

pode ser visto como de grande valia, tratava-se do “Ineditorial25”. Este recurso era a forma do

jornal, objetivamente, terceirizar uma opinião. Ou seja, emitir um juízo de valor sem

comprometer as suas próprias convicções, e ainda ganhar financeiramente com isso. O

“Ineditorial” transcrito da edição de 14.11.1953 de "O Jornal", periódico de Assis

Chateaubriand, traz o título “Ilusão dos lucros excessivos” e tratava de uma análise sobre o

plano econômico de Oswaldo Aranha, e as suas perspectivas na taxação sobre os lucros.

Para comprovar a importância do “Ineditorial”, a edição do dia dezenove trouxe outro

exemplo, só que agora publicado originalmente no “Correio da Manhã” no dia anterior. O

tema também foi diferente, agora tratando da situação relativa ao grupo de Samuel Wainer e

os inquéritos que sobre o grupo recaíram.

Como o “Ineditorial” envolve transação financeira, podemos concluir que O Globo

lucra duplamente. A primeira, de forma evidente, com os ganhos auferidos pela cessão do

espaço, o outro pelo poder de penetração junto ao público leitor, que demonstrava de forma

clara a força do jornal.

O “Ineditorial” mostra-se um recurso formidável já que, no caso particular do jornal O

Globo, permitiria ao periódico exercitar o seu mais destacado papel, o de veículo neutro. A

“opinião publicada”, nos casos verificados nas edições, apresentaria-se uma narrativa que

coaduna-se com as ideias defendidas pelo jornal, ou seja, reforça um discurso já existente nas

suas páginas, ao mesmo tempo que garante para os leitores a ideia de isenção.

Em 21 de novembro de 1953 foram publicadas as impressões do presidente do

Supremo Tribunal Federal, José Linhares, em que o magistrado mostrava-se favorável à

iniciativa do jornal O Globo em consagrar uma data ao Congresso Nacional. O objetivo dessa

iniciativa era exaltar o Congresso, “tributando, assim, ao regime democrático o apreço e a

consideração do povo brasileiro”. O objetivo do jornal seria transformar esta iniciativa em

realidade, e para isso contava com o apoio de expressivas personalidades do país. Nas

palavras de José Linhares uma ação que merece aplausos e que se mostraria fundamental para

fortalecer o regime representativo, que é a “pedra angular da nossa vida democrática”.

Também com mensagem elogiosa o ministro do supremo Luís Gallotti, que, seguindo a

mesma linha de José Linhares, acentuou a importância do legislativo, “de onde emanam as

25 Segundo o site “Nossa Língua Portuguesa” o termo diz respeito à parte do jornal vendida para publicação de

informação de terceiros.

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leis que disciplinam vida da nação”, e por esse motivo os brasileiros deveriam abraçar essa

ideia.

Percebe-se que a ideia de um dia em homenagem ao Congresso Nacional, além de

toda importância atribuída à iniciativa, cumpre um objetivo, enfraquecer o culto a

personalidades políticas, como João Goulart e Getúlio Vargas, por exemplo. Fortalecer o

legislativo significaria, em contrapartida, o enfraquecimento do Executivo, e

consequentemente o poder do presidente da República. Potenciais candidatos à sucessão de

Vargas, com forte apelo popular, como Goulart, diante das mudanças na legislação que

estavam em gestação, teriam sua margem de atuação consideravelmente reduzida. Com

certeza, um alento para as forças conservadoras.

O Globo atua como agente histórico quando trabalha para criação de um dia em

homenagem ao Congresso Nacional. Fortalecer o Legislativo com o objetivo de minar as

ações do executivo está longe de representar a postura de um elemento neutro. Pelo contrário,

existe uma clara pretensão de ingerência do periódico nos assuntos de Estado, a prática

apresenta-se muito distante do discurso do jornal.

Uma notícia registrada na página dois da edição de 17 de dezembro de 1953 é de

grande importância para identificar para quem O Globo, principalmente, fala, e porque não

dizer representa interesses.

A notícia cujo título é “Papel da Imprensa Livre” relata um almoço que,

frequentemente, é realizado entre os representantes da indústria de tecidos, onde são

discutidos assuntos de interesse “comum” (?), em que O Globo foi convidado a participar. No

almoço foi valorizado o papel da “imprensa independente”, e como ela é fundamental para o

progresso do país. Os industriais vão mais além, pregam uma união mais estreita entre as

forças produtoras e a imprensa em benefício da “coletividade”. A imprensa, segundo a fala

dos industriais, tem um papel que vai muito além de informar, sua ação efetiva através da

advertência ou censura tem a força para evitar prejuízos à economia coletiva. Ao final da

explanação, O Globo é apresentado como um exemplo dessa imprensa “independente” e

“combativa” que tão bem faria ao país.

Uma nota aparentemente despretensiosa, mas que ilustrava de forma clara aqueles para

com quem o jornal apresentaria maiores compromissos. É possível afirmar que era uma

situação ambígua vivida pelo jornal. É saudado como defensor da liberdade e da democracia,

mas ao mesmo tempo as suas posições defendem a manutenção do status quo, que muitas

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vezes representaria combater e criticar certas conquistas das classes trabalhadoras, que vieram

a partir das práticas realizadas por Vargas.

Na última edição de 1953 publicada em 31 de dezembro, onde encontra-se a coluna de

José Lins do Rêgo, em que o autor aborda o desalento dos brasileiros, independente da classe

social, em relação à cena política, principalmente, no que tange a sucessão de Vargas.

Descreve como poucos homens na politica, realmente, se importam em encontrar soluções

para resolver os problemas da nação. Enxerga a ação de muitos cuja preocupação maior é

dividir, e não encontrar um caminho conciliatório para o benefício de todos. O ceticismo de

suas palavras, a respeito do momento político nacional, tem como ponto conclusivo um aviso

ao presidente, de quem se diz amigo. José Lins do Rêgo previne; “Presidente, os demônios da

perdição andam soltos por aí. Germens da dissolução atacam o grande e inerme corpo da

nação. Vamos meditar sobre a morte, como os trapistas, para ver se salvamos a vida de todos

nós26”. Talvez José Lins do Rêgo não pudesse imaginar como suas palavras teriam um

inabalável sentido premonitório.

Apesar de todo clima de instabilidade que foi possível constatar, no segundo semestre

de 1953, era difícil imaginar que em poucos meses a trajetória de Vargas na política brasileira

fosse abreviada de forma tão traumática, atingindo níveis elevados de dramaticidade.

Os meses a seguir representaram a continuidade dos problemas verificados no ano

anterior. O embate entre a tentativa do Presidente da República conduzir o país, e o seu

governo, até o final de seu mandato constitucional e os setores que desejavam o encerramento

antecipado do seu governo foi uma tônica do período.

Na primeira edição de 1954 é possível constatar as reações contrárias, por parte das

“classes produtoras”, a proposta de elevação do salário mínimo. Alegavam que o novo piso

levaria um aumento generalizado dos preços, o que traria sérios problemas para a economia e

para a sociedade em geral. Uma observação faz-se necessária, o que o jornal chama de

“classes produtoras”, na verdade representaria os patrões. É inegável a construção, por parte

de O Globo, de uma narrativa contrária à medida para implantação do novo piso salarial. O

leitor a enxergaria, segundo a mensagem do veículo, na classe patronal a verdadeira geradora

de riqueza para o país, que não poderia ser penalizada com um reajuste além de suas

possibilidades. Nessa discussão, não é difícil perceber para onde se inclinaria a simpatia do

jornal.

26 Edição O Globo de 31 de dezembro de 1953.

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O Globo um jornal com viés conservador, e que muitas vezes se declarou, “defensor

da harmonia entre as classes” defendia que esta não deveria ser ameaçada por ações

demagógicas do governo. Quando a questão referente ao aumento dos índices do salário

mínimo chegou as suas páginas, a postura adotada pelo jornal foi refratária à proposta do

governo, pois segundo o periódico, esta ação potencializaria o embate entre as classes

trazendo a desarmonia entre elas. É importante destacar que não havia contrariedade em

relação ao aumento em si, mas sim quanto ao percentual de 100%, que era visto como

demagógico e com fins eleitoreiros. Também é preciso apontar que os interesses do jornal e

dos seus leitores não estava em consonância com a maioria que seria beneficiada pelo

reajuste.

Na edição de 7 de janeiro de 1954, o jornal colheu impressões do presidente do

Sindicato dos Lojistas, José da Silva Oliveira, que citaria como aumento de 100% do salário

mínimo seria responsável por duplicar o custo de vida. Apontaria os inúmeros problemas que

esta medida causaria para economia do país, leiam-se as “classes produtoras”, e acreditava na

capacidade do Chefe da Nação, de acordo com suas prerrogativas, vetar o aumento. Evitando,

assim, potenciais prejuízos, que impactariam sobre a sociedade como um todo.

A elevação do salário mínimo, ainda não efetivada, serviu de base para um editorial27

publicado pelo O Globo em 8 de janeiro. Nele encontra-se um ataque duro a medida,

atribuindo a ela um caráter demagógico, que traria sérios problemas para a classe

trabalhadora. Diz que o governo aumentaria o salário sem olhar as consequências,

demonstrando pouco comprometimento com os interesses nacionais. Entende a atitude como

subversiva, um verdadeiro ato de traição à pátria, uma ação que estaria mais de acordo com o

reacionarismo dos “vermelhos”. O desemprego, em massa, representaria uma das

consequências desse ato, entendido pelo editorial, irresponsável.

A função principal do editorial, no momento em questão, seria criar desconforto para o

governo, leia-se Vargas, e criar um clima de hostilidade, que o obrigasse rever a medida.

Apesar de citar como os trabalhadores seriam os principais prejudicados por esta medida

“demagógica”, a classe trabalhadora, não seria ouvida em nenhum momento.

Ao longo do mês de janeiro o novo piso para o Salário Mínimo foi uma constante nas

páginas de O Globo. Como destacado, o jornal assumiu, outra vez, uma postura tendenciosa.

Longe de cumprir com seu compromisso de veículo de comunicação isento, o periódico

27 O Globo edição de 08 de janeiro de 1954.

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cederia espaço quase exclusivo para a voz dos patrões a respeito da questão salarial.

Entretanto, no dia 21 de janeiro o jornal foi, digamos, generoso com os trabalhadores, ao

ceder um pequeno espaço na página sete da edição. Nela noticia a “marcha pelo salário

mínimo28” em que trabalhadores do comércio e da indústria se direcionariam ao Palácio do

Catete e as sedes dos governos estaduais, com o intuito de protestar contra a oposição da

classe patronal em relação ao aumento de salário mínimo.

No dia 3 de fevereiro o jornal apresentaria um novo editorial29. O texto abordaria a

entrevista concedida pelo Ministro da Justiça, Tancredo Neves, ao jornal “Tribuna da

Imprensa”. Tancredo Neves criticou a forma de agir da oposição, cuja forma de atuação seria

questionável, não assumindo uma postura crítica, e que seu interesse era direcionado para

cargos e para exercer diretamente o poder, mesmo que isso representasse prejuízos ao país.

O editorial, entre outras críticas, colocaria o ministro da justiça como o intérprete do

pensamento de Getúlio Vargas, ou seja, o presidente utilizou-se da figura de Tancredo Neves

para expressar suas posições a respeito da oposição. Sendo assim, o principal interesse seria

desacreditar os setores oposicionistas, apontando que muitos dos problemas enfrentados, pelo

país, resultariam de um tipo de oposição pouco construtiva, que não agregava e impediria o

governante de atuar em prol do desenvolvimento do país. Segundo o editorial, a fala do

Ministro da Justiça tencionaria o constrangimento da oposição, enfraquecendo suas pautas.

Alerta aos setores oposicionistas para ficarem preparados, pois, caso contrário, seriam

vitimados por mais um ardil perpetrado por Vargas.

A publicação desse último editorial confirma uma tendência. A postura do jornal, em

relação ao presidente, ganhava maior agressividade, com críticas cada vez mais explícitas. Os

movimentos de O Globo não são aleatórios, podem ser entendidos como resultado do

momento vivido pelo país, e da defesa dos seus próprios interesses.

Em 13 de fevereiro, a presença de Getúlio Vargas acompanhado de João Goulart, em

um evento na cidade de Petrópolis, motivou o protesto de operários locais contra o aumento

do custo de vida. Entretanto, as reivindicações dos trabalhadores versaram também a respeito

da aprovação dos novos índices do salário mínimo e da aposentadoria integral para os

industriários. Em nome de Vargas, João Goulart, declarou que as reivindicações locais,

também eram de todos os trabalhadores do país. Garantiu que a finalização dos estudos, sobre

28 O Globo edição de 21 de janeiro de 1954. 29 O Globo edição de 3 de fevereiro de 1954.

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o novo salário mínimo, já chegavam a um termo conclusivo, e que em breve seguiria para

sanção do presidente da República.

O contato direto, com os trabalhadores, mais do que apontar um risco, representava

uma oportunidade fundamental do presidente, e de seu Ministro do Trabalho, aproximar-se

desse importante segmento da população. Diante de tantas posições contrárias, o momento

político não era favorável a Vargas, encontraria nessa classe um porto seguro, uma força

capaz de referendar as ações do governo. Qualquer apoio, nesse cenário conturbado, era bem

vindo.

É com grande ênfase que O Globo, em 16 de fevereiro, retrataria o “Manifesto da

UDN Paulista30”. O documento divulgado pelos udenistas “denunciaria” que a intervenção de

Vargas no processo eleitoral em São Paulo, com ação direta do Ministro do Trabalho,

representaria o primeiro passo para o, imaginado, “golpe continuísta” que Vargas pretenderia

realizar. Teriam, inclusive, os comissários do ministério do Trabalho atuado junto a elementos

“comunistas” para sublevação dos trabalhadores. A própria questão relativa à elevação do

piso salarial faria parte do estratagema pensado por Vargas e seu séquito. No manifesto, o

exemplo do que fez Vargas em 1937 era relembrado. A UDN, segundo o documento,

cumpriria um papel cívico ao alertar São Paulo, e a toda a nação, sobre o terrível “plano”

arquitetado pelo Presidente da República.

Poucos dias antes da apresentação do “Manifesto da UDN paulista”, oficiais das

Forças Armadas apresentaram um documento à alta hierarquia militar. O conteúdo estava

repleto de queixas e posicionamentos políticos contrários à condução dos rumos do país.

Deixava explicita a insatisfação nos meios militares em relação ao governo Vargas. O

“Memorial dos Coronéis31” contribuiria para acirrar os ânimos na cena política nacional, e

pode ser encarado como determinante para a publicação do “Manifesto da UDN paulista”. Os

udenistas não deixariam passar a oportunidade, principalmente, se for considerado o peso

político dos militares no Brasil.

O Globo destacou em sua primeira página, na edição de 17 de fevereiro, o apoio de

capitães e tenentes ao “Memorial dos Coronéis”. O jornal relataria que das guarnições de todo

30 O Globo edição de 16 de fevereiro de 1954. 31 Segundo o DHBB também conhecido como “Manifesto dos Coronéis” foi o documento também conhecido

por Memorial dos coronéis, assinado por 42 coronéis e 39 tenentes-coronéis e dirigido em fevereiro de 1954 à

alta hierarquia militar, em protesto contra a exigüidade dos recursos destinados ao Exército e a proposta

governamental de elevação do salário mínimo em 100%.

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país chegaram mensagens de solidariedade ao ato realizado pelos coronéis. O alto comando

militar encerraria o caso com uma advertência a todos aqueles que subscreveram o

documento, todavia sem maiores consequências em relação a prejuízos em relação a

promoções ou outras atitudes punitivas.

O “Memorial dos Coronéis” surgiria como mais um potencial elemento para

instabilidade política no Brasil. Pode ser entendido que o governo tentou uma conciliação,

advertindo os envolvidos, sem, no entanto, recorrer a maiores punições. Não era inteligente

alimentar mais um foco de insatisfação, ainda mais proveniente das forças armadas.

Na edição do dia 18 de fevereiro, com habitual destaque para situações como esta, o

jornal informaria que a UDN Nacional apoiava o manifesto da seção paulista. Referendando

tudo o que foi exposto no documento. Ressaltava que Vargas pretenderia uma reforma

constitucional, além de promover a luta de classes, onde o salário mínimo seria uma parte do

processo.

É pertinente apresentar a posição do presidente da UDN sobre o “Manifesto” da

sucursal paulista. Disse Arthur Santos, “não só pela idoneidade da direção da UDN paulista,

como também pelos fatos denunciados, alguns públicos e notórios, o Diretório Nacional deu

sua solidariedade à seção bandeirante do partido”.

A pauta do jornal nos últimos dias alternava-se. Ora em relação ao “Manifesto da

UDN Paulista”, ora debruça-se sobre o “Memorial dos Coronéis”. No dia dezenove O Globo

publica o primeiro grande reflexo da ação dos coronéis. A edição noticia que o presidente

Vargas aceitara a demissão do Ministro da Guerra Ciro do Espírito Santo Cardoso. Após

entregar o relatório, ao presidente, sobre o “caso dos coronéis”, apresentou em caráter

irrevogável sua carta de demissão, prontamente aceita por Vargas.

A resposta de Vargas a crise, que levou a queda do Ministro da Guerra, deveria ser

rápida. Era urgente evitar que ganhasse maiores proporções e comprometesse ainda mais a

difícil tarefa de governar o país naquele momento.

No dia 20 de fevereiro O Globo noticiava o convite ao general Zenóbio da Costa para

assumir como novo Ministro da Guerra. Em suas primeiras declarações, prometeu ação firme

contra o que ele chamou de “sabotadores da ordem legal” e que a questão dos coronéis já era

caso superado, e não havia razão para continuar a falar sobre o tema. Uma característica do

general Zenóbio, que se mostrava bastante adequado era sua forte atitude anticomunista. Um

atributo muito conveniente para o momento em questão, e uma forma de resposta ao

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“Manifesto da UDN”, já que um Ministro da Guerra contrário ao comunismo não deixaria de

ser um alento para os conservadores.

Um assunto citado de forma superficial, em edições anteriores, ganharia materialidade.

Diz respeito a questão relativa a demissão do Ministro João Goulart. O que era especulado, ou

insinuado, agora ganharia destaque na primeira página, também no dia 20. O Globo sugere

que a, possível, demissão de Goulart estaria relacionada ação realizada pelos coronéis.

A edição do dia 22 retoma os temas já ressaltados no dia 20. Focaria em Zenóbio da

Costa e em João Goulart. O primeiro sobre o controverso convite, já que Vargas não realizou

a nomeação do General a pasta Guerra, mas afirmaria não ter vetado a escolha do general.

Ficaria a impressão que a opção por Zenóbio não foi uma escolha pessoal do presidente. O

segundo confirmando-se a especulação a respeito da saída de João Goulart do Ministério do

Trabalho. Goulart confirmaria a sua condição demissionária, e que entregaria sua carta de

renúncia ao Presidente da República.

Não é possível ignorar que a pressão das chamadas classes conservadoras, amparadas

pela UDN e pelos militares, feriu gravemente o Governo Vargas. As saídas dos ministros da

Guerra e do Trabalho foram muito sintomáticas das dificuldades enfrentadas pelo governo. A

saída de Goulart da pasta do Trabalho ainda teria reflexos na corrida pelo Palácio do Catete e

nas eleições para os governos estaduais.

As últimas edições do mês de fevereiro apresentariam um cenário político complexo,

com a UDN apontando a ação dos militares como reflexo da incapacidade do governo Vargas

em conduzir de forma adequada os rumos do país. Mostraria também as articulações políticas

com os entendimentos entre o PSD e a UDN para a disputa eleitoral no Rio de janeiro. Assim

como uma entrevista concedida por Vargas, em Caxias do Sul, em que o presidente abordaria

o caso dos coronéis, reiterando que era um caso superado e também sobre a saída de João

Goulart que, para ele Vargas, foi uma surpresa. Afirmou ainda que o ex-ministro contava com

sua admiração e confiança.

A capa da edição de 4 de março destacava-se por apresentar a declaração do general

Zenóbio da Costa, Ministro da Guerra, em resposta ao secretário da Viação do Rio Grande do

Sul, Leonel Brizola. Afirmava, o ministro, que os militares não conspirariam para derrubar o

presidente Getúlio Vargas. Segundo Leonel Brizola, a queda de João Goulart teria sido

determinada pelas “maquinações do poder econômico e das forças mais reacionárias do nosso

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país (...)32”, acrescentou ainda que “se juntou o pronunciamento de um grupo de militares que

o poder econômico soube explorar em seu benefício, tal a forma como encaminhou e

procurou interpretar o chamado memorial dos coronéis33”.

Zenóbio da Costa afirmava que sua nomeação, para a pasta da Guerra, não era oriunda

de nenhum tipo de conchavo, e que acima de tudo os militares defenderiam os interesses da

nação contra os seus inimigos. Não deveriam ser encarados como uma ameaça à ordem

institucional, logo, não seriam, os militares, massa de manobra nas mãos de qualquer classe.

A edição do dia 16 de março apresentava, em sua primeira página, o posicionamento

do ministro da justiça, Tancredo Neves, sobre as agitações que abalavam o país. Relatou que

não enxergava nada de anormal, já que o período que precede as eleições é caracterizado por

articulações e enfrentamentos que têm por objetivo o alcance dos cargos eletivos. Para

Tancredo Neves, nada mais natural, inclusive, demonstraria como as instituições estariam em

pleno funcionamento.

É possível conceber que a linha de raciocínio apresentada pelo ministro Tancredo

Neves, sobre o momento vivido pelo país, era de que não existiria crise de fato, sendo o clima

eleitoral responsável pelo acirramento de certos ânimos. Em todo caso, alguns setores foram

capazes de potencializar os radicalismos, contribuindo para o clima de incertezas e ameaças

golpistas, de parte a parte, que ameaçariam a ordem institucional no país. Pode ser entendido

que a imprensa, em específico O Globo, tenha contribuído para essa situação turbulenta.

A edição publicada em 18 de março transcreveu, na íntegra, o discurso do presidente

Vargas durante a abertura da sessão legislativa do ano de 1954. Ao mesmo tempo apresentaria

as impressões, sobre esse pronunciamento por parte, principalmente, da oposição. Podemos

constatar duas visões de país expostas através das páginas de O Globo. Uma positiva,

encontrada na fala presidencial, apontando que o Brasil estaria superando os desafios; o país

caminharia em uma direção onde o desenvolvimento econômico seria uma realidade em um

futuro próximo. Embora ressaltasse os sucessos de sua gestão, não deixou de pontuar a ação

demagógica e oportunista da oposição, que em nada contribuiria para a democracia e para o

aperfeiçoamento das instituições. Já a oposição enxergaria um “desgoverno” praticado por

Vargas, onde promessas deixaram de ser cumpridas, e a nação seria vítima desse estado de

32 O Globo edição de 4 de março de 1954. 33 Idem.

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coisas, e do populismo do presidente, sem medidas efetivas para solução dos problemas que

afligiriam os brasileiros.

Duas visões conflitantes, mas que na realidade precisariam ser analisadas dentro do

contexto eleitoral que são encontradas. O governo não era modelo de eficiência, apresentava

pontos positivos, mas ainda era preciso muito mais para a construção de um país melhor.

Assim como, a narrativa da oposição que realçava os problemas, não era condizente com a

verdade. O Brasil não era uma terra arrasada, onde as instituições não funcionavam; Vargas

não planejava, a todo o momento, mais um golpe para manter-se no poder. O choque retórico,

entre oposição e governo, obscurecia a verdadeira visão sobre o país.

A manchete do dia 23 de março acrescentaria um fato novo. No já turbulento

momento político nacional, a câmara é conclamada a promover o impeachment do Presidente

Getúlio Vargas. O responsável por esta conclamação é Odilon Braga importante figura nos

quadros da UDN. Ao conceder entrevista ao jornal, emite esta posição acentuando que o

povo, de acordo com sua leitura, já está farto de Getúlio Vargas. Utilizava como recurso para

embasar sua argumentação, sobre a necessidade de impeachment, o texto atribuído a Perón.

Segundo o entendimento de Odilon Braga, Vargas tencionaria implantar uma ditadura no

Brasil. A oposição, de acordo com Braga, deveria aproveitar a oportunidade e as evidências

para promover a ação de destituir o presidente da República.

Não foi surpresa que o tema impeachment fosse abordado na edição seguinte do

jornal. Desta vez a entrevista foi concedida pelo líder do Governo Gustavo Capanema, onde

descartaria a possibilidade de impeachment de Vargas, levando-se em conta que o governo

contaria com uma base considerável para barrar tal medida. Logo, não existiria possibilidade,

segundo Capanema, de sucesso na empreitada sugerida por Odilon Braga. Além disso,

ressaltava a excepcionalidade para um processo de impeachment, e que o presidente Vargas

não apresentou nenhuma atitude que gerasse a necessidade de medida tão extrema.

Gustavo Capanema procurou refutar a ideia de impeachment em dois pontos. Por um

lado o governo contava com uma base forte no congresso para barrar a iniciativa, e por outro

lado, não existiriam razões palpáveis para esse tipo de ação contra o presidente. Mas do que

um perigo real, a hipótese de impedimento do presidente surgiria como mais uma tentativa de

desacreditar Vargas, e influenciar as articulações para a sucessão presidencial.

O jornal trouxe, em 3 de abril, uma extensa entrevista com o ex-chanceler, do governo

Vargas, João Neves. A entrevista apresentava-se como uma oportunidade para atacar o

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presidente Vargas. João Neves destacaria as relações, por ele chamadas de subterrâneas, entre

o governante brasileiro e o presidente Argentino. Indicaria que enquanto permaneceu no

governo, apesar de contrariado com o tipo de relação entre os presidentes, buscou diminuir os

prejuízos ao Brasil e a solidariedade continental. Inclui nesta trama também o antigo ministro

da pasta do Trabalho, João Goulart, que seria um habitual frequentador da Casa Rosada34.

Deixava claro que, desde o primeiro dia do governo de Getúlio Vargas, a aliança entre os

presidentes estaria posta em prática. Ressaltava que Perón, e seus objetivos, representaria um

risco para a estabilidade nas relações entre os vizinhos.

Não causa estranheza à exploração, pelo O Globo, da repercussão da entrevista do ex-

chanceler, João Neves, ao jornal. É inegável que as palavras do ex-ministro foram utilizadas,

sobretudo, pela oposição para referendar os seus objetivos, como a ideia de impeachment.

Muitas vozes da UDN levantaram-se favoráveis a deposição do presidente, aproveitando o

conteúdo da entrevista para criar o “clima”, que segundo Gustavo Capanema não existia, para

o impeachment de Vargas.

Se Vargas encontrava sérios problemas para lidar com as questões internas, onde a

oposição explorava qualquer possibilidade para causar constrangimento ao governo, é

possível afirmar que as declarações combinadas de Perón e Neves trouxeram para o debate

político a questão da política externa, e o “perigo”, segundo os opositores do governo,

representado pela aproximação entre Vargas e Perón. A disputa pelo poder no Brasil ganharia

mais um importante ingrediente, nele o chefe da nação acabaria por ganhar uma nova alcunha:

“Traidor da Pátria”.

Na primeira página, da edição de 8 de abril, O Globo apresentaria em destaque a

manchete “Cartas de Perón” em que expôs o conteúdo das seis cartas escritas por Perón a

Getúlio Vargas. Nelas, como atesta o próprio jornal, não foi encontrado nada que trouxesse

algum episódio que denunciasse relações comprometedoras entre os presidentes.

A repercussão da entrevista de João Neves obrigou o governo brasileiro a agir, no

intuito de diminuir o clima hostil que se instalava. Foi divulgada uma nota do Itamarati,

publicada pelo O Globo, em que procurava esclarecer a questão. A nota buscava ressaltar que

as relações entre Brasil e Argentina não fogem ao estabelecido com outras nações, onde

reitera a inexistência de tratados secretos com o país vizinho e nega o estabelecimento de

compromissos políticos com o governo argentino. O pronunciamento do governo, publicado

34 Sede da presidência da República Argentina, localizada em Buenos Aires.

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na edição de oito de abril, procurava mostrar como naturais as tratativas entre os dois

governos.

Cabe ressaltar que o destaque dado as “Cartas de Perón”, na primeira página, não foi

concedido ao pronunciamento do governo a respeito das declarações de João Neves. A nota

do governo sem o devido realce encontrava-se, timidamente, publicada nas páginas internas

da edição.

No dia dez de abril, O Globo, publicou um editorial35, em que aborda as declarações

de João Neves. O texto inicia-se destacando que o transcorrer dos dias permitiu uma avaliação

mais serena acerca do conteúdo divulgado pelo antigo chanceler. Defendeu, João Neves, das

acusações de levantar falso testemunho sobre os fatos narrados, desqualificando aqueles que

se posicionaram contra suas palavras. Reconhece que nenhum indicativo de relações

suspeitas, entre Perón e Vargas, tenha sido encontrado, mas não deixou de sinalizar como as

ligações entre a “Casa Rosada” e o “Palácio do Catete” não eram aconselháveis, e por isso

deveriam ser vistas com cuidado.

Sem nenhuma comprovação das acusações levantadas por João Neves, o editorial

procurou relativizar o que foi exposto. Protege o ex-chanceler e ressalta o caso como

exemplar para o debate político, tendo em vista que permitiu ao governo se posicionar sobre o

caso, apresentando dados que excluíam a possibilidade de “traição” de Vargas. Para O Globo

o episódio reforçou as instituições democráticas, embora, o interesse em desqualificar Vargas

mostrava-se mais relevante que o respeito à biografia do presidente.

Em dezenove de abril, chama atenção uma notícia que abordaria o lançamento de um

livro de autoria do presidente Getúlio Vargas. Intitulado “O Governo Trabalhista do Brasil”

era uma coletânea de discursos pronunciados pelo governante entre setembro de 1951 e maio

de 1952, incluindo ainda a mensagem enviada ao congresso, em razão da abertura dos seus

trabalhos no ano de 1952.

A abordagem sobre obra lhe atribuía grande importância documental, ainda mais em

razão do autor ser precisamente o governante da nação, logo o mais abalizado para tratar dos

temas apresentados. Destacava a linguagem acessível e concisa do texto, em relação condução

que faz de sua administração.

35 O Globo edição de 10 de abril de 1954.

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A notícia publicada, assim podendo ser entendida, tratava-se de matéria paga, no

sentido que o texto “vende” o produto de forma bastante elogiosa, contrastando com a atitude

geral tomada em relação ao presidente Vargas.

A respeito do pronunciamento realizado por Vargas em Ouro Preto, em razão da

comemoração do dia vinte um de abril, O Globo trouxe mais um editorial crítico ao

presidente. Atribuiu ao presidente uma atitude oportunista ao comparar-se ao mártir

“Tiradentes”, e rebate a posição do presidente frente ao que ele julga perseguição dos

oposicionistas. O texto colocava que as críticas eram justas e de total responsabilidade do

presidente, que não foi capaz de tomar atitudes capazes de sanar os problemas. Mas em

atitude conciliatória, critica os excessos cometidos, como as ofensas a honra do presidente,

condenando esta prática. Mas no geral, o conteúdo é bastante agressivo a administração

realizada por Vargas.

Um recurso bastante interessante praticado pelo jornal diz respeito ao fato do leitor

tomar contato primeiro com o editorial do jornal, apresentado na primeira página, e só a

seguir, mais precisamente, na página dois ter acesso aos pontos abordados pelo presidente em

seu pronunciamento. Nesse caso, a leitura particular sofre uma interferência externa, um

direcionamento claro, que em última instância pode exercer influência sobre o julgamento do

leitor.

Nas duas últimas edições do mês de abril, 29 e 30 de abril, a questão do salário

mínimo teve grande realce. A divulgação, oficial, do novo piso, que, em tese, sofreria

algumas variações, se realizaria em primeiro de maio, por pronunciamento do Presidente da

República.

O Globo obteve declaração do Ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, a respeito dos

índices relativos ao salário mínimo. Segundo o ministro, mais do que o valor quantitativo em

si, o que se deve ponderar eram dois fatores: assiduidade e produtividade. Esses deveriam ser

entendidos como a mola mestra para que os objetivos econômicos do país pudessem ser

alcançados, bem como para estabelecer uma “relação harmônica” entre empregados e

empregadores.

A manchete do dia trinta mostra como o pensamento do ministro vai de encontro ao

que a linha editorial do jornal julga como adequada. Estamparia na primeira página em letras

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garrafais: “Salário mínimo só com assiduidade integral36”. Ainda nesta edição, aponta a

inclinação do presidente da República em manter o valor de Cr$ 2400,00 para o salário

mínimo no Distrito Federal. Este valor que foi motivo de tantas querelas e discussões nos

meses anteriores. Não por acaso, O Globo trouxe um editorial abordando o tema.

Intitulado “Demagogia, contra todo bom senso37” o editorial acusava Getúlio Vargas

de contrariar a opinião das “classes produtoras”, leiam-se patrões, e do parecer técnico do

Ministro da Fazenda para elevar os níveis do salário mínimo a patamares absurdos. Segundo o

editorial, longe de promover alento para os trabalhadores, o novo índice, seria responsável por

trazer sérios problemas econômicos e sociais. Textualmente afirma que o “novo salário

mínimo” é mais que um erro, apresentava-se como um crime contra a estabilidade do país.

Por fim, o editorial se encerra alertando que a atitude do presidente pode-se configurar em um

golpe contra os trabalhadores e contra a própria nação.

Esse último editorial não trouxe nenhuma novidade em relação à posição do jornal

frente ao novo salário mínimo. Manteve o tom acusatório e alarmista com que tratou o tema

em outras ocasiões. Continuava a atribuir a medida, que ainda não havia sido assinada, do

presidente como populista e contrária aos interesses gerais da nação. Colocava os

trabalhadores e patrões como “vítimas” das pérfidas ações de Getúlio Vargas, cujo objetivo

seria, apenas, perpetuar-se no poder. A utilização da palavra “golpe”, ao final do texto, não foi

feita de forma aleatória.

A primeira edição do mês de maio foi publicada apenas no dia três. E como não

poderia deixar de ser, traria, com muito alarde, as impressões sobre o novo salário mínimo

implantado no país, anunciado dias antes no discurso de “Primeiro de Maio”. Os destaques

dados, pelo jornal, apresentariam para qualquer pessoa, distante da realidade do país, um

assustador cenário de “terra arrasada”. A primeira página exibiu notícias como “Consequência

imediata do salário mínimo: fecharam todas as fábricas de Barbacena38” ou “Preparando a

catástrofe que o arrastará consigo39”, esta última, repetida pelo deputado Raul Pilla em

referência ao ato de Getúlio Vargas. Fica nítida a linha adotada pelo jornal para apresentar a

nova medida seguida pelo governo, na prática, apenas manteve um discurso coerente com o

ponto de vista seguido nos meses anteriores.

36 O Globo edição de 30 de abril de 1954. 37 O Globo edição de 30 de abril de 1954. 38 O Globo edição de 3 de maio de 1954. 39 Idem.

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Enquanto a oposição, e as classes patronais, apontavam o como “demagógica” a

medida adotada por Vargas, o presidente contra-atacava afirmando que, aqueles contrários ao

reajuste, eram na verdade contra a classe trabalhadora, interessados na manutenção do mesmo

estado das coisas. Ou seja, o debate sobre o novo salário mínimo apenas expusera os dois

projetos de país que estavam em jogo naquele momento, e as eleições, que se aproximavam,

acirravam ainda mais esse embate.

As edições dos dias 24, assim como, do dia 25 do mês de maio levantariam questões

fundamentais para o cenário político brasileiro. No dia vinte e quatro a manchete destacava o

posicionamento do ex-presidente Eurico Gaspar Dutra, em que defende o respeito à carta

Constitucional, pois somente desta maneira seria possível coibir golpes. Já no dia seguinte, o

tema de maior relevância diz respeito à fala do líder do governo na câmara, Gustavo

Capanema, repudiando a existência de atividades subversivas dentro do governo. Tal

afirmação é uma resposta à pretensão do deputado Joel Presídio de instaurar uma Comissão

Parlamentar de Inquérito para apurar ação antidemocrática do Executivo. Apelaria, ao

deputado Presídio, que o instrumento da CPI não deveria ser banalizado, tendo vista que,

segundo Capanema, tais ações não existiriam dentro do governo.

Durante o mês de maio, o jornalista Nestor Moreira40 foi vítima de uma ação

desproporcional41 por parte polícia, que teve grande repercussão no jornal, ainda mais quando

do seu falecimento42 em razão dos ferimentos sofridos. O peso do acontecimento foi tão

grande, que envolveu inclusive o Presidente Getúlio Vargas, que se viu obrigado a responder

a situação de maneira enérgica e apresentar os responsáveis pelo crime. Vargas, inclusive,

chegou a receber a imprensa para tratar do tema. O crime, longe de representar um problema

de responsabilidade do governo, não deixou de ser aproveitado para ataques ao presidente.

40 Repórter do Vespertino A Noite. 41 Na noite do dia 12 o repórter Nestor Moreira saindo bêbado de uma festa no Drink’s Bar, pegou um táxi, ao

chegar em sua residência discordou do preço da corrida e exigiu que o motorista seguisse com ele para o 2

Distrito Policial em Copacabana. Ao chegarem, lá foram recebidos pelo guarda civil Paulo Ribeiro Peixoto,

vulgo Coice de Mula. Este ao perceber quem era o queixoso, opositor do governo em várias matérias no jornal,

conduziu-o com truculência ao xadrez onde foi revistado não sem antes ter sua carteira tomada. Após a revista e

ser liberado o repórter deu falta de mil cruzeiros, ao se queixar com Coice de Mula, foi derrubado ao chão e

espancado a botinadas na vista do motorista e por outro guarda, que nada fizeram. Tendo sido então

encaminhado ao Comissário de Polícia como um criminoso, na base da gravata, ao chegar no gabinete do mesmo

reclamou com o comissário da violência sofrida. O comissário reconheceu o repórter e o liberou imediatamente,

pagando do próprio bolso a diferença da corrida de táxi, mas nada fazendo em relação a agressão sofrida e contra

o agressor. 42 O Jornalista Nestor Moreira faleceu, em decorrência dos ferimentos, em 22 de maio de 1954.

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A atitude crítica de Nestor Moreira, em relação ao governo Vargas, foi utilizada pela

oposição para politizar o episódio, transformando o acontecimento em um ato de

revanchismo. A violência praticada contra o jornalista, que acabou por levá-lo a óbito, seria

resultado direto de suas posições políticas. Esta era a narrativa que os opositores do presidente

pretendiam que prevalecesse.

Não foi casual, na edição de 26 de maio, o Chefe da Casa Militar da Presidência da

República, Caiado de Castro, conceder entrevista a O Globo. Segundo Castro, havia uma

evidente tentativa de politizar um crime brutal, com o único objetivo de constranger o

Presidente da República. Afirmou que o governo tomou todas as medidas possíveis para punir

os responsáveis, pela ação desastrosa, não existindo motivos para críticas ou acusações por

parte da oposição.

O turbulento mês de maio encerrou-se mantendo a temperatura política elevada no

país. Foram noticiadas as trocas de acusações entre o Ministro da Justiça e a UDN. Além das

turbulências internas no governo, que colocariam em xeque a permanência de Oswaldo

Aranha a frente do Ministério da Fazenda. As especulações, a esse respeito, foram sempre

acompanhadas de negativas por parte do Ministro. Mas era inquestionável que o ambiente

dentro do governo não era dos melhores, as divergências entre Vargas e Aranha eram cada

vez mais evidentes, e O Globo sempre que possível explorou esta situação.

O principal assunto discutido na primeira página do jornal, em 2 de junho, diria

respeito ao início da discussão sobre o Impeachment do presidente Getúlio Vargas. A base

para acusação de crime de Responsabilidade, do Presidente da República, estaria relacionada

aos casos da “Comissão Central de Preços43” e “Última Hora”, os dois geraram CPI’s que

foram presididas pelo deputado Castilho Cabral. O jornal indicaria que a questão

proporcionaria um duelo de oratórias, onde as partes tentariam da melhor forma possível fazer

com que seu ponto de vista prevalecesse.

A pauta a respeito do impeachment continuava a ser um dos principais assuntos

abordados pelo jornal no dia 4. A linha seguida pelo jornal, na apresentação desse noticiário,

enfatizou o embate entre o governo e oposição, cada qual defendendo suas posições. O

presidente era o alvo preferencial da oposição, com ataques diretos a sua pessoa. Da mesma

43 Órgão criado em 1946, subordinado ao Ministério do Trabalho, indústria e Comércio, cuja competência seria

evitar a elevação do custo de vida no país e providenciar para a redução ou fixação aos preços. Tabelar os preços

máximos de serviços essenciais ou da venda de gêneros ou utilidades essenciais, entre outras atribuições.

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forma os deputados governistas, em contrapartida, voltavam as suas atenções para atacar a

UDN, acusada de conduzir uma farsa. Nesse momento a retórica, talvez fosse, a principal

arma utilizada pelos parlamentares.

O editorial “APELO AO BOM SENSO44” publicado em 5 de junho traria uma posição

objetiva, talvez até definitiva, do jornal frente ao processo de Impeachment. Entre outras

coisas reconhece que a iniciativa não teria sucesso, em última análise representaria uma

aventura, que não produziria benefícios para o país. O Globo evocou o seu caráter imparcial, e

acima das paixões políticas, para decretar que o momento, às vésperas das eleições, não

deveria ser desperdiçado em querelas sem sentido, mas sim em renovar o congresso e criar

condições saudáveis para a realização das eleições no ano seguinte. É possível dizer que, o

jornal, no caso do impeachment não pouparia criticas a oposição e nem ao governo, que

seriam responsáveis pelos descaminhos vividos no atual cenário.

O conteúdo do editorial demonstrava com clareza a repulsa, por parte do jornal, em

relação à teoria do impeachment, apesar das contrariedades em relação a Vargas, esta linha,

que poderia ser entendida como “golpista”, não foi abraçada pelo jornal. O Globo indicaria

que a direção a ser seguida era a de respeito à ordem institucional. Era aceitável contribuir

para a queda de ministros, mas, até o presente momento, não a de presidentes.

Eurico Gaspar Dutra era uma figura utilizada pelo jornal O Globo quando pretendia

fazer valer determinado ponto de vista. A reconhecida autoridade e influência do velho

Marechal era bastante conveniente em momentos chave do debate político. Não foi por outro

motivo que as vésperas da votação do processo de impeachment, em onze de junho, o ex-

presidente concedeu entrevista ao jornal, em que de maneira categórica se coloca contra o

impeachment. Apesar da posição contrária, em relação ao impeachment, defende que os

deputados tenham autonomia em seu voto, mas ainda assim reiterou que “conversaria” com

deputados amigos sobre a sua leitura a respeito do episódio.

Ao recorrer à posição do Marechal Dutra, O Globo trabalhava em prol da tese de que o

impeachment era um equívoco, e por isso não deveria ser levado adiante. O jornal não

ofereceu duas opiniões a respeito da questão, forneceu aos seus leitores uma orientação clara

de que o processo de impeachment deveria ser rejeitado.

Na mesma edição, o editorial publicado trata das eleições de três de outubro. Mostrava

como as eleições representariam uma oportunidade para passar o país a limpo. Também

44 O Globo edição de 5 de junho de 1954.

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aproveitava o espaço para criticar as atuações tanto do governo, aqui em todas as esferas, e da

oposição no processo eleitoral. Segundo o editorial, o ponto chave a ser seguido seria o

respeito ao funcionamento das instituições, o país não deveria ficar sujeito a aventuras

“golpistas” sejam de que lado for.

A manchete do dia 15 de junho relataria o fim da chamada “Batalha do Impeachment”,

com a vitória da tese defensora da manutenção de Vargas na Presidência da República.

Prevaleceu entre os deputados, mesmo aqueles contrários ao presidente, a visão de respeito à

ordem institucional, ou seja, Vargas deveria ser “tolerado” na Presidência da República.

Partidários de Vargas aproveitaram o momento para atacar, sobretudo, a UDN como

articuladora de um “golpe branco” para depor Getúlio Vargas. Encerrada a questão do

impeachment, a disputa eleitoral retornaria com toda força.

Em 5 de julho, O Globo relataria a apreciação do Supremo Tribunal Federal sobre o

mandato de segurança impetrado pela Indústria sobre o novo salário mínimo, e que a decisão

a respeito do tema se daria em breve. Ainda nesta mesma edição, o jornal apresentaria um

editorial em que à relação de Vargas com o seu ministério é o centro da análise.

O editorial intitulado “Instabilidade Ministerial45” procuraria demonstrar como as

constantes trocas ministeriais, realizadas por Vargas, prejudicariam o bom andamento dos

projetos governamentais. Defendeu os ministros ao afirmar que, na maioria dos casos, eram

homens de grande capacidade técnica e intelectual, mas que tiveram sua atuação prejudicada

pelo método de trocas constantes realizadas por Vargas, que segundo o jornal, atenderiam aos

interesses pessoais do presidente. O jornal ainda alerta que após as eleições de outubro uma

nova ciranda ministerial seria realizada, em grande prejuízo a nação.

Em dezenove de julho, a primeira página do jornal traria uma notícia no mínimo

pitoresca. Com o título “Escolhido um getulista para candidato da UDN46” tratava-se da

indicação de João Cleofas como candidato da UDN ao governo de Pernambuco. Este caso,

noticiado nas edições anteriores, foi visto pela UDN, de outras regiões, como um ato de

traição de alguns adeptos da sigla na seção pernambucana.

Dois pontos mereceram desenvolvimento aqui, primeiro as rusgas internas dentro da

UDN, que estava longe de representar um bloco coeso contra o “getulismo”, muito pelo

contrário, como bem lembrou em outro momento o ministro Tancredo Neves. A UDN era

45 O Globo edição de 5 de julho de 1954. 46 O Globo edição de 19 de julho de 1954.

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incapaz de fazer uma oposição construtiva, e na prática era afeita a cargos na administração

pública. Outra questão diz respeito à capacidade de articulação e atração exercida por Getúlio

Vargas, capaz de produzir desavenças no seio do principal partido de oposição ao seu

governo, à capacidade de articulação do presidente era algo que saltava aos olhos e

atemorizava os seus inimigos.

Em vinte de julho de 1954, O Globo, através de um editorial aborda a questão

envolvendo Vargas, UDN e o candidato ao governo de Pernambuco. No texto, com uma clara

referência a situação pernambucana, envolvendo João Cleofas, o intervencionismo de Vargas

no processo eleitoral é severamente criticado. Acusando o presidente de práticas que atentam

contra a moral, e com artimanhas que produziriam traições como a de Cleofas. Mais do que

tudo, o editorial era um forte documento que visava, diante da aproximação de três de

outubro, intervir no cenário das eleições, em favor dos opositores do presidente Vargas.

O episódio envolvendo João Cleofas foi tão relevante, nesses dias de julho, que

ganhou um editorial específico no dia vinte e um. Novamente, o personagem central é tratado

como traidor. Dessa forma, assim como seus seguidores, deveria ser expurgado do partido.

Não restam dúvidas que os acontecimentos em Pernambuco representariam a oportunidade

para O Globo reforçar a necessidade de uma UDN forte e coesa para que tivesse reais

possibilidades de obter um saldo positivo nas eleições, derrotando assim as articulações do

presidente Vargas. Não custa lembrar que os resultados das eleições de 1954 teriam grande

peso político na eleição presidencial do ano seguinte.

Um novo editorial, abordando a condenação de João Cleofas por seu partido, foi

publicado na edição de 28 de julho. Identificava-se a satisfação pela atitude tomada pela

direção da UDN, que condenou João Cleofas, assim como inviabilizou sua candidatura ao

governo de Pernambuco. Segundo o texto, ao agir de maneira exemplar, a UDN, recuperou a

credibilidade dos “homens de bem” no partido, demonstrando que o mesmo não se submeteria

a acordos e subterfúgios para chegar ao poder.

O caso João Cleofas possibilita identificar o “udenista” como “corrupto” e Getúlio

Vargas como “corruptor”. Figuras sinistras responsáveis por comprometer a lisura do

processo eleitoral. Com a atitude tomada, a UDN apresentava-se como frontalmente contra a

essa forma de fazer política, contribuindo, com sua atitude, para oxigenar a política nacional.

Bem pelo menos era essa a ideia que o jornal, com seus editoriais e suas reportagens sobre o

episódio Cleofas buscava passar para seus leitores.

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O primeiro número de O Globo no mês de agosto, publicado no dia dois, tinha em sua

capa um editorial47, cujo conteúdo aproveitaria uma fala de João Goulart, empenhado na

campanha para sucessão estadual no Rio Grande do Sul, para tecer críticas contundentes ao

presidente Vargas. Citaria como João Goulart alertava sobre a apatia dos trabalhadores

gaúchos em relação ao processo eleitoral, evocando a necessidade de maior empenho e

participação. A partir daí, o editorial montaria uma argumentação cuja explicação para a

apatia seria resultado das práticas de Getúlio Vargas, responsáveis pelo aumento do custo de

vida e pelo descrédito em relação aos políticos. Criticaria Vargas por apresentar-se como o

verdadeiro responsável pela salvação nacional, onde os acertos, no governo, eram fruto de sua

habilidade administrativa, já os fracassos seriam fruto da incompetência de seus auxiliares,

fato relacionado à constante troca de ministros. Ainda no texto é possível identificar a repulsa

a uma posição de João Goulart, que atribuiria às dificuldades do país a atuação nociva do

legislativo que, segundo Goulart, impediria a plena realização dos planos de Vargas. De

acordo com o editorial, esta argumentação serviria, apenas, para proteger o “seu chefe”,

Getúlio Vargas, tirando dele as suas responsabilidades.

Na mesma edição, o jornal tomaria uma atitude aparentemente contraditória, levando-

se em conta o oportunismo das disputas políticas verificadas a época, mas, pelo que é possível

observar, constitui uma atitude de fidalguia do jornal, e de respeito às instituições, inclusive à

da Presidência da República.

A matéria cujo título era “A figura do Presidente” cita como o presidente Vargas, nas

instalações do Hipódromo da Gávea, foi vítima de manifestações de desapreço por parte dos

presentes no local. O jornal assumiria a postura de respeitar as manifestações de aprovação ou

desaprovação praticadas pelos cidadãos. Ressaltava que na democracia esse tipo de atitude era

totalmente válida. Entenderia, entretanto, que em certas ocasiões, os titulares de determinados

postos deixam de ser meros políticos, para figurarem como verdadeiros representantes,

delegados do país, e como tais deveriam ser respeitados. Sendo assim, apesar dos equívocos,

segundo a notícia, cometidos por Vargas ele ainda era o titular da mais alta posição da

República, e por isso mereceria respeito. O local, repleto de personalidades internacionais,

não se apresentava como espaço adequado para exposição, não do presidente, mas do próprio

país. A matéria é encerrada lembrando que o lugar ideal para a manifestação contra o

presidente, e os políticos em geral, seriam as urnas, durante as eleições de três de outubro.

47 O Globo edição de 2 de agosto de 1954.

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O jornal procurava demonstrar profundo respeito pelo cargo de Presidente da

República, independente de quem fosse o ocupante. Quem lá estivesse mereceria todo

respeito que a posição oferece ao ocupante. Ao mesmo tempo, a matéria representava mais

uma oportunidade para estimular a participação eleitoral, contra Vargas e seus representantes,

nas próximas eleições.

No dia cinco de agosto, a manchete do jornal retrataria de forma marcante, talvez, o

primeiro passo para o ocaso definitivo do Presidente Getúlio Vargas. Tratava-se do atentado

contra a vida do jornalista Carlos Lacerda, uma das principais vozes de oposição ao

presidente. Apesar de não ter sido vitimado fatalmente, o episódio produziu o óbito de um

militar da aeronáutica, que acompanhava o combativo diretor da “Tribuna da Imprensa”.

Além das imagens do jornalista vitimado pelo atentado, a primeira página dedicou-se

por completo a uma minuciosa descrição de como o crime foi planejado e executado.

Incluindo um esboço da ação realizada pelos criminosos, apontando, desde o primeiro

momento, que os criminosos teriam ligações com o Palácio do Catete. Esse fato deixava

subtendida a participação do próprio Presidente da República, ou pessoas a ele ligadas, no

trágico atentado.

Como não poderia deixar de ser a edição de seis de agosto traria um editorial

abordando o atentado contra a figura do jornalista Carlos Lacerda. O editorial, após abordar o

crime em si, concentraria a sua atenção no Presidente da República. De antemão descartava a

possibilidade de participação do chefe da nação no atentado. Apesar dos erros

administrativos, de acordo com a interpretação do jornal, e das divergências de O Globo com

o governante, o editorial procurava isentar Vargas de responsabilidades pelo crime. Ao

mesmo tempo cobraria, para eliminar quaisquer dúvidas sobre a sua inocência, a necessidade

de uma ação firme para elucidação do atentado. Solicitava que a chefia das investigações

fosse entregue a alguém com grande reconhecimento da “opinião pública”, e não ficando a

cargo de agentes do Poder Executivo. O presidente, de acordo com o editorial, encontrava-se

em uma encruzilhada: ou atendia os clamores por justiça e tomava ações efetivas em relação

ao acontecido na Rua Toneleros, ou só lhe restaria uma saída a “renuncia aos deveres e

compromissos contraídos com o povo nas urnas de 1950”.

Mesmo que de forma sutil, o atentado ao jornalista Carlos Lacerda foi responsável

por uma mudança na relação entre O Globo e o presidente da República. Ao longo da

investigação, nos exemplares do jornal, ficaram claras as divergências entre a visão de Estado

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do jornal e do presidente da República, inúmeras foram às vezes em que Vargas e alguns de

seus auxiliares foram severamente criticados. Entretanto, não havia nessas críticas menção a

qualquer tipo de abreviação do mandato presidencial, havia o claro desejo de respeito à ordem

institucional. Todavia agora, no editorial do dia 6 de agosto, diante da forma como Vargas

desse encaminhamento à investigação do caso, o jornal, pela primeira vez, cogitaria que o

presidente deveria renunciar ao seu cargo. Percebe-se então como o crime teve um impacto

devastador na sociedade brasileira, e como a sua elucidação tornava-se vital para o futuro

político de Getúlio Vargas.

Além do editorial, a primeira página da edição do dia 6 de agosto traria inúmeras

informações sobre o atentado e dos primeiros elementos a respeito da investigação. Também

traria a declaração do líder da maioria, Gustavo Capanema, em nome do governo para isentar

o presidente de responsabilidades em relação ao crime. Assim como, seu desejo para rápida

elucidação do caso. Foi encontrada no jornal ampla possibilidade para o governo, entenda-se

Vargas, defender-se das acusações que ligavam o Palácio do Catete ao atentado.

Em 7 de agosto, o jornal apresentou declarações do presidente Getúlio Vargas assim

como do Ministro da Justiça Tancredo Neves. A manchete do jornal deixaria clara a posição

do chefe da nação, dizia ela: “Esses assassinos são os meus inimigos48”. É nítido como, para o

presidente, o crime cometido traria para si sérios problemas políticos, e contribuiriam para

tornar ainda mais difícil as ações do governo. Afirmaria Vargas “esses agressores vieram

perturbar a paz pública e provocar contra a minha pessoa e o meu governo essa onda de

suspeições tão injustificáveis49”. Já Tancredo Neves declararia que “o maior interessado na

apuração do crime é o governo50”.

Na edição de 10 de agosto O Globo publicaria um duro editorial, onde apontaria que o

crime cometido contra Carlos Lacerda seria na verdade o ápice de uma sucessão de erros

cometidos por Vargas desde seu retorno ao Palácio do Catete. Indicaria que a recondução de

Vargas a presidência da Republica representaria uma oportunidade de reparar os erros

cometidos no passado, mas o que se viu, segundo o editorial, foi um governo titubeante, que

aliciou políticos e foi conivente com a corrupção. Criticou a guarda pessoal de Getúlio

Vargas, de onde teriam saído responsáveis pelo atentado a Carlos Lacerda, apontando a

48 O Globo edição de 7 de agosto de 1954. 49 Idem nota 157. 50 Idem nota 157.

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contradição de um presidente caracterizado pela calma e prudência, contar com um aparato de

segurança digno de ditadores e não de um presidente constitucional. Reconheceria a atitude de

Vargas em extinguir a guarda presidencial, e por fim sinalizaria que o conturbado momento

não poderia colocar em risco o funcionamento das instituições, e por isso mesmo todas as

garantias deveriam ser dadas para a realização das eleições de três de outubro.

Nesse editorial, em específico, acompanhamos um ataque político frontal a Vargas. O

atentado ocorrido na Rua Toneleros serviria de base para que o jornal reforçasse sua posição

crítica ao governo Vargas. Ficaria claro que acima de tudo era interesse do jornal estimular a

derrota eleitoral de Vargas, sem recorrer a nenhum artifício golpista, ou de natureza

conspiratória que enfraquecesse a ordem institucional vigente. Aparentemente, o jornal

percebeu que a deposição de Vargas, forneceria ao mesmo a condição de construir uma

narrativa em que se colocaria como vítima de conspirações das forças conservadoras. Acima

de tudo Vargas precisava ser derrotado nas urnas, mesmo que em três de outubro de 1954 não

fosse ele o candidato.

Em editorial publicado em 12 de agosto com o pitoresco título “O feixe das varas e a

união das classes armadas51” O Globo procurou ressaltar o papel das forças armadas na crise

política que afligiria a nação, e que a união dos militares era fundamental para resguardar a

ordem. Clama para que os militares, unidos, não se submetessem a vontade de políticos, e

cumprissem o seu dever constitucional para com o Brasil. Nesse ponto os militares não

deveriam enveredar por um caminho que conduzisse a aventuras golpistas de parte a parte.

Entretanto, o último parágrafo acabou por soar contraditório, pois afirmaria que “O feixe de

varas é ainda um símbolo para a redenção do Brasil nestes dias difíceis”. Entende-se, então,

que para o jornal seria aceitável a quebra da ordem institucional, desde que fosse praticada

pelos militares, foi essa a impressão passada.

O dia 13 de agosto apresentaria outro editorial de O Globo. Dessa vez, a abordagem

do texto trataria do discurso proferido por Vargas em sua visita a Minas Gerais. Segundo o

editorial, Vargas recorreria a uma prática contumaz de atacar para se defender, atribuindo a

oposição o “clima de anarquia” reinante no país. Acusaria o presidente da inversão dos

papéis, em que as vítimas seriam transformadas, pelo chefe da nação, nos verdadeiros réus.

Caracterizava a guarda pessoal do presidente como um antro de criminosos liderados pelo

51 O Globo edição de 12 de agosto de 1954.

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“Tenente Gregório52”, o chefe da extinta guarda, que com seu depoimento complicou ainda

mais a situação do governo. O editorial lembraria aos leitores os compromissos do jornal com

a apuração do crime, mas também com o respeito às instituições brasileiras. Por esse motivo,

repudia a atitude do presidente que ao invés de trazer palavras de tranquilidade torna, com sua

oração, o momento ainda mais turbulento e incerto para o país.

Não restam dúvidas que nesse momento observamos um duelo de retórica entre o

governo e os seus oponentes. As palavras ditas, ou escritas, são minunciosamente pensadas

para atingir o respeitável público. Essa constatação ganharia mais força, quando o editorial

apontava a capacidade do brasileiro em não aceitar mais qualquer tipo de argumentação, em

clara referência a capacidade de Vargas “hipnotizar” as pessoas com seu discurso. Atestaria o

editorial, que Vargas precisaria entender “que está falando a uma nação no pleno gozo da sua

maioridade, com um senso crítico apurado e atento aos menores movimentos de baixo e de

cima53”.

Apesar das negativas do presidente, do compromisso de punir os culpados, não

importando a proximidade junto a sua pessoa, as evidências indicavam um difícil caminho

para o chefe da nação. Era, praticamente, impossível dissociar a participação de Vargas no

crime contra o jornalista Carlos Lacerda. Nesse ponto, o noticiário do jornal ofertaria a

oposição, um extenso material para realizar ataques ao presidente, que se encontrava em uma

posição defensiva, e sem muitas perspectivas de reverter o quadro.

Em 17 de agosto a primeira página do jornal foi dedicada, integralmente, a noticiar a

prisão de Climério Eurides de Almeida. Com grande espetacularização do ocorrido,

concederia ares de epopeia à ação, conferindo dramaticidade a todos os passos da prisão.

Na mesma edição, o senador Aloísio de Carvalho colocaria em pauta a necessidade de

renúncia do presidente. Alude à constituição de 1891, que criou um dispositivo, chamado de

válvula de segurança democrática, que seria a instituição da vice-presidência. Ou seja, o vice-

presidente não seria um cargo meramente decorativo, pelo contrário, representaria uma forma

de garantir o bom funcionamento do sistema político. Sendo assim, caberia a Getúlio Vargas a

dignidade de renunciar ao seu cargo, permitindo que a nação seguisse o seu caminho, sem

maiores constrangimentos. O senador faz questão de ressaltar que não se tratava de um “golpe

52 Gregório Fortunato chefe da guarda pessoal responsável por proteger o presidente Getúlio Vargas. 53 O Globo edição de 13 de agosto de 1954.

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branco”, mas algo previsto dentro da carta constitucional, diante da falta de condições,

segundo o senador, para Vargas permanecer no seu posto.

Cada vez mais era enfatizada a falta de condições de Vargas manter-se no poder. Não

era o caso mais de derrota-lo nas eleições, aparentemente, ele já se encontrava derrotado. A

saída mais digna, para o chefe da nação, seria exatamente renunciar ao cargo. Para muitos,

esta surgiria como a alternativa mais digna para Getúlio Vargas abandonar o poder.

Em editorial54 publicado em 20 de agosto O Globo criticaria a postura do líder da

maioria, Gustavo Capanema, que não se dobrava as evidências e não admitia a renuncia do

presidente Getúlio Vargas. Destacava que o líder assumiu uma postura de guardar o mandato

do chefe da nação, desconsiderando os apelos da oposição em prol do seu afastamento. A

alegação de Capanema, criticada pelo editorial, é que não existiria unanimidade nem na UDN

para ser considerado o afastamento de Vargas. Para o líder da maioria era prioritária a

apuração de todos os fatos relativos ao atentado, antes disso, falar em renúncia seria uma

precipitação. A análise de O Globo caminhava no sentido de que Capanema agiria mais como

um líder partidário, mais preocupado na defesa do presidente do qualquer outra coisa.

O Globo defenderia a ideia de que a melhor saída para a situação consistia na renuncia

de Getúlio Vargas. Entendia-se que o afastamento do presidente não deveria ocorrer por um

golpe, recorrendo-se aos militares para depor Vargas, por exemplo. Um golpe poderia gerar

uma situação favorável ao presidente, pois poderia capitalizar a seu favor a simpatia de

muitos, e fortalecer a ideia que a ordem democrática foi rompida. Todos os esforços deveriam

ser feitos para que a renúncia se tornasse a única opção para Getúlio Vargas.

Se nas edições anteriores do jornal a ênfase no atentado marcava as manchetes, na

edição de 23 de agosto, a manchete tratava de forma categórica da renuncia de Getúlio

Vargas, sobre diferentes perspectivas. Podemos constatar que Vargas, nesse momento, não era

mais o senhor da situação, e apesar de rejeitar a renuncia, como uma possibilidade, o

desenrolar dos acontecimentos não indicavam outra possibilidade.

Em alto relevo o jornal destacaria a sugestão do vice-presidente, Café Filho, de uma

dupla renúncia que abriria caminho para uma solução negociada, e que, em tese, encerraria a

crise. Ainda na primeira página apareceram indicativos de que Vargas não considerava esta

possibilidade. “O Presidente da República recusa-se a renunciar55” deixava para todos a

54 O Globo edição de 21 de agosto de 1954. 55 O Globo edição de 23 de agosto de 1954.

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impressão de que a posição de Vargas era firme, e aparentemente não estava sujeita a

mudança. A declaração do Ministro da Guerra reforçaria ainda mais esta constatação, disse

ele que “O Getúlio só renunciará depois de morto56”. Os acontecimentos futuros confirmaram

às palavras do ministro.

Com o editorial “O Momento de pensar o Brasil”, publicado na versão vespertina do

jornal 23 de agosto, O Globo, destacou que manteve a firme defesa da ordem jurídica e que

não se deixou levar pelas paixões como acontecera com tantos políticos experientes. A partir

daí, o texto demonstraria a impossibilidade da permanência de Getúlio Vargas no poder, e de

forma explicita garantiria que o presidente sairia do posto voluntariamente ou coagido, não

havendo outra possibilidade. Sinaliza que Café Filho, vice-presidente, contaria com total

respaldo para conduzir o país, estando plenamente amparado pelos trâmites constitucionais.

Por fim, sugere a Vargas, em um gesto de grandeza, aceitar a proposta de renuncia conjunta

proposta por Café Filho, abrindo espaço para que, de forma indireta, o congresso escolhesse

um novo presidente até o final do mandato.

O editorial procurava demonstrar que o clima de “acefalia” no governo fazia com que

a saída de Vargas fosse um fato não consumado, mas irreversível. A mensagem passada aos

leitores era de que todas as instituições funcionavam perfeitamente; o legislativo e as Forças

armadas, por exemplo. A única instituição que não estava funcionado de forma adequada era

exatamente a presidência da República, logo trocar o presidente seria fundamental para que o

país fosse recolocado no caminho certo.

No dia 24 de agosto de 1954 O Globo nos apresentaria o ápice da campanha que

incentivava Getúlio Vargas a deixar o Governo, da forma como havia previsto dias antes o

Ministro da Guerra, o presidente realmente abriu mão de seu cargo, e O Globo com grande

destaque noticiou com a seguinte manchete “SUICIDOU-SE O SR. GETÚLIO VARGAS – O

CHEFE DO GOVERNO DESFECHOU UM TIRO NO CORAÇÃO NOS SEUS

APOSENTOS57”.

O jornal traria uma série de informações a respeito da tragédia. Apresentou

declarações do, agora, presidente Café Filho, a nota oficial e a revelação de uma carta deixada

por Getúlio Vargas. A famosa “Carta Testamento” foi publicada pelo O Globo em sua

primeira página. No documento, Vargas, procurava fazer um roteiro de suas realizações e dos

56 Idem. 57 O Globo edição de 24 de agosto de 1954.

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grupos que contra ele trabalharam, bem como contra o povo brasileiro. Assumir-se-ia como

mártir, já que sacrificaria a própria vida em nome de uma causa, e que dessa forma eternizaria

o seu nome na história.

Sobre a nota oficial publicada no jornal, ela trataria de que o presidente, em comum

acordo, com seus ministros, teria aceitado licenciar-se do cargo, passando o cargo ao seu

substituto legal, com a condição de que fosse “mantida a ordem, respeitando os poderes

constituídos e honrados os compromissos solenemente assumidos perante a nação pelos

oficiais-generais de nossas Forças armadas”. Vargas completaria a nota reforçando, de certa

forma, o conteúdo da “Carta Testamento” relataria que caso as condições não fossem

cumpridas “persistiria inabalável no seu propósito de defender as suas prerrogativas

constitucionais com o sacrifício, se necessário, de sua própria vida”.

Os dois documentos nos demonstram que o suicídio, de acordo com as evidências, não

seria fruto de uma atitude intempestiva, mas fruto de uma reflexão profunda de Getúlio

Vargas. A saída negociada, licença da presidência, que possibilitasse o seu retorno ao cargo,

talvez não tivesse sido aceita por alguns setores, logo, percebendo que a sua retirada seria algo

definitivo, ele não teria possibilidade de ser reconduzido a presidência. Entendeu que para a

preservação de sua honra e da sua biografia, o suicídio aparecia como alternativa mais viável.

Entende-se que esta era uma possibilidade plenamente aceitável, e a nota oficial além da

“Carta testamento” foram fundamentais para esta conclusão.

Todas as ações praticadas para retirar Getúlio Vargas do poder, ou pelo menos

enfraquecê-lo, politicamente, ao longo do período de um ano, o que tão bem puderam ser

acompanhadas através das páginas do jornal O Globo, não tiveram sucesso. Vargas, apesar

das dificuldades, manteria a sua ascendência política e capacidade de intervir nas eleições

tanto para o governo dos estados como a presidencial. Mas os insucessos, de um ano, nas

tentativas de retirar o presidente do jogo eleitoral foram “compensadas” pelos acontecimentos

do dia cinco de agosto, que representaram um “terremoto” no país e permitiram a oposição

assumir uma posição de prevalência, sobre o presidente, nunca antes vista. Esse novo cenário

não deixou alternativas para Vargas, e o levaram a enveredar pelo caminho da eternidade no

coração dos brasileiros, saindo da vida para entrar na História.

O acompanhamento de inúmeras edições do jornal O Globo, ao longo do período de

um ano, possibilitou conhecer um pouco mais do “modus operandi” do periódico. Entender

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suas motivações e também seus interesses em relação ao negócio, bem como o modelo de

Estado que entendia como adequado para o país.

Desde o princípio é possível constatar um compromisso, do jornal, com o respeito à

ordem institucional, algo que não pode ser ignorado. Apesar da narrativa que assumia uma

postura mais próxima aos setores oposicionistas, em relação a Vargas no poder, inclusive

identificando-se com o chamado “campo conservador”, procurou sempre manter o respeito à

questão da legalidade. Se em 1951, adotou posição de defesa em relação à diplomação e a

posse de Getúlio Vargas, também defendeu, até onde foi possível, a manutenção do mandato

presidencial até a sua conclusão, prevista para o ano de 1956. Esta posição só foi alterada a

partir da sucessão de eventos que eclodiram durante o mês agosto de 1954.

O conglomerado capitaneado por Roberto Marinho exerceu forte influência no cenário

político nacional durante o período 1953-1954. Para isso, além do jornal, a Rádio Globo foi

um recurso importante para expressar as posições e defender as teses do grupo jornalístico.

Havia uma simbiose entre o jornal e a rádio, entrevistas e comentários de personalidades

políticas, na maioria dos casos oposicionistas, eram divulgadas pelo jornal, antecipando temas

que seriam desenvolvidos pela Rádio Globo. O alcance nacional da rádio possibilitava

ampliar o debate político, bem como a “força” do grupo jornalístico comandado por Roberto

Marinho. Também contribuiu para o fortalecimento do campo de oposição a Getúlio Vargas.

Não seria coincidência o fato do jornalista Carlos Lacerda, diretor do jornal “Tribuna

da Imprensa”, e ferrenho crítico do presidente da República, assumir, frequentemente, os

microfones da Rádio Globo, como convidado, para tecer seus comentários ácidos sobre a

política nacional, sempre com o mesmo foco; Vargas e suas ações.

Certo pragmatismo pode ser atribuído a O Globo, uma vez que não se furtou a dar voz

a um jornalista de um jornal concorrente para referendar suas posições. Lacerda, como já

citado, tinha assento frequente na Rádio Globo, mas não deixou de ter espaço também no

próprio jornal de Roberto Marinho, sendo muitas vezes saudado como referência jornalística e

grande defensor da “liberdade de imprensa”.

Não restam dúvidas que longe de representar um veículo de comunicação neutro,

muito longe disso, O Globo apresentava-se como um ator político importante e com grande

influência no país. Suas posições reforçaram uma perspectiva de mundo associada com um

grupo social específico. Não por acaso, o jornal, era identificado como o veículo de

preferência de muitas figuras ligadas ao campo conservador. Recebendo, inclusive,

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felicitações por parte de elementos ligados ao setor patronal pela sua forma de atuação. A

identidade do jornal por essas breves observações nos parecem claras. Estava longe dos

setores mais populares, seus interesses estavam mais afinados com as camadas mais altas da

pirâmide social. Daí a percepção do porque assumiu posição contrária a Vargas,

principalmente quando as ações do presidente se voltavam para os setores mais humildes da

população. Entretanto, não exercitou uma oposição marcada pelo sensacionalismo ou pelo

disse me disse, mais do que isso. O Globo como jornal oposicionista, de acordo com os

indícios, procurava exercer esse papel de forma consciente. Buscava, acima de tudo,

transmitir a ideia de “farol da nação”, cujo único interesse era o bem estar dos brasileiros.

Logo, estaria acima de partidos e governos, dessa forma, o que era publicado em suas páginas

representava a verdade, e o melhor caminho a ser seguido por todos.

Quando o jornal posicionou em defesa da posse de Vargas, em 1951, e mais tarde

assumiu posicionamento contra o projeto de impeachment do presidente, em 1954, passou aos

seus leitores a ideia de defesa da ordem institucional, apesar de politicamente crítico ao

governo. Em agosto de 1954, em virtude da sucessão dos eventos deflagrados pelo crime da

Rua Toneleros, adotou a defesa pela renúncia de Vargas, exatamente, para resguardar o bom

funcionamento das instituições. Em todas as situações apresentadas existe uma, certa,

coerência por parte do periódico, essa ideia é passada. Nunca poderia ser dito que O Globo

perseguia o presidente, apesar da sua declarada oposição, como outros veículos o faziam, mas

não há como negar que a saída de cena de Vargas tenha sido reconfortante para as pretensões

do jornal, no final das contas, o objetivo do jornal foi atingido. Manteve-se a “lenda” do

compromisso com a isenção e a neutralidade, como foi destacado na primeira edição no

longínquo ano de 1925. Ao que parece a “lenda” continua a ser repetida até os dias de hoje, e

muita gente ainda acredita nisso!

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