Gilberto Amado

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  • 8/19/2019 Gilberto Amado

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    GILBERTO AMADO

    http://www.academia.org.br/academicos/gilberto-amado

    PERFIL DO ACADÊMICOQuinto ocupante da Cadeira 26, eleito em 3 de outubro de 1963, na sucessão de

    Ribeiro Couto e recebido pelo Acadêmico Alceu Amoroso Lima em 29 de agosto de 1964.

    Cadeira:

    26

    Posição:

    5Antecedido por:

    Ribeiro Couto

    Sucedido por:

    Mauro Mota

    Data de nascimento:

    7 de maio de 1887

    Naturalidade:

    Estância - SE

    Brasil

    Data de eleição:

    3 de outubro de 1963

    Data de posse:

    29 de agosto de 1964

    Acadêmico que o recebeu:

    Alceu Amoroso Lima (pseud. Tristão de Ataíde)Data de falecimento:

    27 de agosto de 1969

    BIOGRAFIA 

    Gilberto Amado, político, ensaísta, memorialista e diplomata, nasceu em Estância, SE, em

    7 de maio de 1887, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 27 de agosto de 1969.

    http://www.academia.org.br/academicos/gilberto-amadohttp://www.academia.org.br/academicos/ribeiro-coutohttp://www.academia.org.br/academicos/mauro-motahttp://www.academia.org.br/academicos/alceu-amoroso-lima-pseud-tristao-de-ataidehttp://www.academia.org.br/academicos/ribeiro-coutohttp://www.academia.org.br/academicos/mauro-motahttp://www.academia.org.br/academicos/alceu-amoroso-lima-pseud-tristao-de-ataidehttp://www.academia.org.br/academicos/gilberto-amado

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    Era o primeiro dos 14 filhos do casal Melchisedech Amado e Ana Amado. Fez os estudosprimários em Itaporanga, também no interior do Sergipe. Depois estudou Farmácia naBahia e diplomou-se pela Faculdade de Direito de Recife, da qual se tornou, ainda muitomoço, catedrático de Direito Penal.

    Em 1910, transferiu-se para o Rio de Janeiro, iniciando a sua colaboração na imprensa, noJornal do Commercio com um estudo sobre Luís Delfino. Passou depois a ocupar umacoluna semanal, em O País. Em 1912, realizou sua primeira viagem à Europa assunto de

    um de seus livros de memórias e em 1913, pronunciou, no salão nobre do Jornal doCommercio, a convite da Sociedade dos Homens de Letras, uma conferência em que fez oelogio do espírito contemplativo A chave de Salomão, que no ano seguinte, juntamentecom outros escritos, seria publicada em livro.

    Em 1915, foi eleito deputado federal por Sergipe e em 1926, eleito senador pelo mesmoestado. Sua atuação na Câmara se fez sentir, sobretudo, através de discursos que se

    tornaram famosos, como o que pronunciou na sessão de 11 de dezembro de 1916 sobre"As instituições políticas e o meio social no Brasil". Nos últimos anos da República Velha,

    exerceu mandato no Senado, até encerrar-se a sua carreira política, com a Revolução de1930. Em 1931 realizou uma série de conferências sobre regime eleitoral, publicado no

    livro Eleição e Representação (1932). Por essa época, voltou ao magistério superior, naFaculdade Nacional de Direito do Distrito Federal, iniciando um novo e fecundo período em

    sua vida, de estudos e trabalhos. A Comissão de Direito Internacional criou em suahomenagem a “Amado Lectures”, que anualmente é proferida por um especialista emdireito internacional.

    Em 1934, foi nomeado consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, sucedendoa Clóvis Beviláqua. Desse posto passou ao de embaixador, sendo a sua primeira missão junto ao governo do Chile (1936). De 1939 a 1947, foi ministro na Finlândia. A partir de1948, tornou-se membro da Comissão de Direito Internacional da ONU, sediada emGenebra. Os arquivos do Itamarati guardam os numerosos relatórios, pareceres e teses de

    Gilberto Amado, documentos da sua contribuição ao estudo do Direito Internacional,durante o período de 28 anos em que integrou essa Comissão. Foi também delegado do

    Brasil a todas as sessões ordinárias da Assembléia Geral da ONU, desde as primeiras,realizadas ainda em Lake Success, logo depois da assinatura da Carta de São Francisco,

    até à última a que pôde comparecer, reunida em Nova York em 1968. São de sua autoriapublicações que se encontram no Anuário das Nações Unidas, tais como: "Direitos edeveres dos Estados", "Definição da agressão", "Processo arbitral", "Reservas àsConvenções multilaterais", e outras.

    Afastado do Brasil em missões oficiais no exterior, Gilberto Amado aos poucos foi setornando, entre nós, figura mítica. Periodicamente vinha ao Brasil. Como toda figura mítica,tornou-se conhecido, sobretudo, pelas lendas e anedotas que circulavam a seu respeito,reproduzindo ditos espirituosos e atitudes inusitadas. A carreira de escritor seguiu sempre

    paralela à do político e do diplomata. Em 1917 publicou os versos de Suave ascensão.

    Depois de História de Minha Infância, Minha Formação no Recife, Mocidade no Rio e

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    Primeira Viagem à Europa, Presença na Política e Depois da Política, o irmão de GenolinoAmado foi eleito para a Academia em 1963.

    BIBLIOGRAFIA 

     A chave de Salomão e outros escritos, ensaios (1914); A suave ascensão, poesia (1917);Grão de areia, ensaio (1919); Aparências e realidades, ensaio (1922);lei!ão e representa!ão, con"erências (19#2);$an!a so%re o a%ismo, ensaio (19#2);sp&rito do nosso tempo, ensaio (19##);$ias e horas de vi%ra!ão, cr'nicas (19##);nocentes e culpados, romance (1941);s interesses da companhia, romance (1942);*oesias (19+4); Assis hateau%riand, ensaio (19+#)-

    Memórias: .ist/ria da minha in"0ncia (19+4);inha "orma!ão no eci"e (19++);ocidade no io e primeira via3em uropa (19+5);*resen!a na pol&tica (19+6);$epois da pol&tica (195)-

    Memórias8

    • História de Minha Infância (19++);

    • Mocidade no Rio e Primeira Viagem à

    Europa (19+5);

    • Presença na Política (19+6);

    • Depois da Política (195);

    Estudos filosófico-literários e político-sociais8

    •   !ha"e de #alom$o (1914);

    • %r$o de reia (1919);

    •  par&ncia e Realidades (192);

    •  s Instituiç'es Políticas e o Meio #ocial do

    (rasil  (1924);

    • Espírito do )osso *empo (19#2);

    •   Dança #o+re o +ismo (19#2);

    Romances:

    • Inocentes e

    !ulpados (1914);

    • ,s Interesses da

    !ompanhia (1942)-

    Poesias:

    • #ua"e scens$o (1917)

    Crônicas:

    • Dias e Horas de

    Vi+raç$o (19##)

    • mpresses de

    :ia3em (19##)-

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Mem%C3%B3riashttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Hist%C3%B3ria_de_Minha_Inf%C3%A2ncia&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mocidade_no_Rio_e_Primeira_Viagem_%C3%A0_Europa&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mocidade_no_Rio_e_Primeira_Viagem_%C3%A0_Europa&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Presen%C3%A7a_na_Pol%C3%ADtica&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Presen%C3%A7a_na_Pol%C3%ADtica&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Depois_da_Pol%C3%ADtica&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=A_Chave_de_Salom%C3%A3o_(Gilberto_Amado)&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Gr%C3%A3o_de_Areia&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Apar%C3%AAncia_e_Realidades&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=As_Institui%C3%A7%C3%B5es_Pol%C3%ADticas_e_o_Meio_Social_do_Brasil&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=As_Institui%C3%A7%C3%B5es_Pol%C3%ADticas_e_o_Meio_Social_do_Brasil&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Esp%C3%ADrito_do_Nosso_Tempo&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=A_Dan%C3%A7a_Sobre_o_Abismo&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=A_Dan%C3%A7a_Sobre_o_Abismo&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/Romancehttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Inocentes_e_Culpados&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Inocentes_e_Culpados&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Inocentes_e_Culpados&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Os_Interesses_da_Companhia&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Os_Interesses_da_Companhia&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/Poesiahttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Suave_Ascens%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Suave_Ascens%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%B4nicahttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Dias_e_Horas_de_Vibra%C3%A7%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Dias_e_Horas_de_Vibra%C3%A7%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Dias_e_Horas_de_Vibra%C3%A7%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Impress%C3%B5es_de_Viagem&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Impress%C3%B5es_de_Viagem&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Impress%C3%B5es_de_Viagem&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/Mem%C3%B3riashttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Hist%C3%B3ria_de_Minha_Inf%C3%A2ncia&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mocidade_no_Rio_e_Primeira_Viagem_%C3%A0_Europa&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Mocidade_no_Rio_e_Primeira_Viagem_%C3%A0_Europa&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Presen%C3%A7a_na_Pol%C3%ADtica&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Depois_da_Pol%C3%ADtica&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=A_Chave_de_Salom%C3%A3o_(Gilberto_Amado)&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Gr%C3%A3o_de_Areia&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Apar%C3%AAncia_e_Realidades&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=As_Institui%C3%A7%C3%B5es_Pol%C3%ADticas_e_o_Meio_Social_do_Brasil&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=As_Institui%C3%A7%C3%B5es_Pol%C3%ADticas_e_o_Meio_Social_do_Brasil&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Esp%C3%ADrito_do_Nosso_Tempo&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=A_Dan%C3%A7a_Sobre_o_Abismo&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/Romancehttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Inocentes_e_Culpados&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Inocentes_e_Culpados&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Os_Interesses_da_Companhia&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Os_Interesses_da_Companhia&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/Poesiahttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Suave_Ascens%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/wiki/Cr%C3%B4nicahttps://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Dias_e_Horas_de_Vibra%C3%A7%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Dias_e_Horas_de_Vibra%C3%A7%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Impress%C3%B5es_de_Viagem&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Impress%C3%B5es_de_Viagem&action=edit&redlink=1

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    • Eleiç$o e representaç$o (19#2)-

    TEXTOS ESCOLHIDOS

    CHEGADA AO RECIFE

    O ano era 1905. Cheguei a tempo da matrícula. Fim de março, começo de abril, não possoprecisar. Uma certeza tenho. Chovia. Porque, com a intenção de olhar de longe Olinda(Oh, linda posição para uma cidade...), subi ao tombadilho para não perder a vista famosa.Engravatado, deixei o camarote, gingando com o Jacuípe da Companhia Pernambucana,que lutava desesperadamente com as ondas brabas do Lamarão. Não guardo outra visão

    que esta de chuva caindo. Atracação, desembarque, cais, Lingüeta, Capibaribe... Tudo seoblitera num fundo, de que, aliás, nada desejo arrancar. Certo eu poderia, a propósito dachegada ao Recife, alinhar períodos e períodos, compor mesmo capítulos de

    reminiscências históricas e evocações poéticas, mas mentiria se falasse de JoãoFernandes Vieira, em guerra dos Mascates, em Nunes Machado, em Pedro Ivo, de Maciel

    Pinheiro, de “À Vista do Recife”, de Tobias Barreto, de Castro Alves. Estaria fazendoliteratura... da pior, da convencional, da que não devo fazer. Nada disso me veio. Nenhumadas imagens que esses nomes sugerem existia ainda em meu espírito, virgem de históriado Brasil. Tobias Barreto, só de nome conhecia. Exagero. Já devia ter visto no Almanaquede Sergipe ou ouvido recitar, na Estância, ou em Aracaju, o “Beija-Flor”, que eu ia depois,

    quando me interessei por poesia, saber de cor, para prazer próprio e para demonstrar aosparnasianos do Rio o que era poesia romântica na sua melhor expressão no Brasil.

    Uma imagem risca-me a memória e se projeta para a pena: uma tabuleta - Hotel deFrança. Mas ter-me-ia ficado perdida na chuva da hora do desembarque se o preto quecarregava a minha mala na cabeça, e que ia na minha frente, não me tivesse dito: “Osenhor entre aqui no hotel até a chuva abrandar”. Entrei... e este momento tomouimportância extraordinária por sua repercussão psicológica, por sua sobrevivência erecorrência no meu espírito. Entrei no hotel. Um gato escapuliu da sala deserta. Do interiorvinha uma voz de mulher falando francês. Achei-me, pela primeira vez, diante de uma

    coisa que eu nunca tinha visto: enormes espelhos de que só tinha conhecimento pelasdescrições de romances. No que estava na frente, meu olhar começou a navegar como

    num mar siberiano, numa cinza líquida carregada de mistério. Em Sergipe, todos osespelhos do Estado, do litoral ao sertão, de São Cristóvão e Estância, cidades velhas, a

    Aracaju, cidade nova, colados um ao outro, não dariam um só do tamanho dos que vi noRecife nessa primeira hora. Eu havia estado dois anos na Bahia, mas aí só vivera emrepública, só freqüentara casas de professores, jamais residências de luxo.

    Recife e espelhos... eis a primeira imagem. A dona do hotel, a quem depois tanto conheci,

    veio de dentro e disse: “Bom dia, senhorrr!” Escancarou a porta por onde eu entrara e aoutra. O salão clareou-se. A luz derramou-se nos espelhos. Vi-me não só de frente como

    https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Elei%C3%A7%C3%A3o_e_representa%C3%A7%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Elei%C3%A7%C3%A3o_e_representa%C3%A7%C3%A3o&action=edit&redlink=1https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Elei%C3%A7%C3%A3o_e_representa%C3%A7%C3%A3o&action=edit&redlink=1

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    de lado, multiplicado e devolvido a mim mesmo do fundo daqueles lagos luminosos. Entãotive a grande surpresa... A mulher retirou-se de novo. Eu não tirava os olhos de mimmesmo.

    Pela primeira vez me via de corpo inteiro. Até então só me tinha olhado em espelho

    pequeno, de parede ou pequeníssimo, de bolso, reproduzindo só rosto, gravata, pescoço.Jamais assim... todo, paletó, calças, sapatos. Tive um choque. Aí é que tomeiconhecimento da minha fealdade. Experimentei uma espécie de recuo diante de mimpróprio. Eu era “aquilo”?! Mentiria se especificasse impressões ou nuanças de sentimento.Do que recordo é do estremeção recebido. Esse choque iria repetir-se a vida toda. Era ver-

    me em espelho grande, de frente, e sobretudo de perfil, era ser abalado por uma sensaçãobrusca, quase diria de susto, diante de mim mesmo, ao me ver tal qual “a natureza em

    mim próprio me resolvia”. Toda vez que ia experimentar roupa em alfaiate, onde osespelhos conjugados nos mostram de frente, de lado e de costas, essa sensação me

    assaltava. Sensação de mal-estar, quase diria de inimizade com o meu físico. A cabeça,grossa e pesada, se me enterrava nos ombros, formando com o torso empinado umângulo agudo. A queixada aproava num arremesso antipático. Depois, sempre, na casa daViscondessa do Livramento (avó de Rosa e Silva Júnior), onde os havia tão grandes comoos do hotel, na casa de João Elíseo de Castro Fonseca, senador estadual, na de GenaroGuimarães, professor da Faculdade, na do velho Gibson, onde me casei, ao me descobrirtodo, ao passar em frente desses grandes espelhos da Europa, acometia-me o espanto deme ver e de me encontrar tal qual me havia feito a natureza. Os alfaiates que me serviram,o Almeida Rabelo da Rua do Ouvidor, os da França, o de Londres, da Itália, da Suíça, enos últimos anos o Brum da Rua dos Ourives, sorriam sempre simpaticamente, com

    benevolência, abanando a cabeça com denegações compassivas diante da minhaexclamação a respeito de mim mesmo. “Ô camarada feio!...” Devo notar que a essa

    sensação... de mal estar, de antipatia, de constatação, não se juntava desgosto,constrangimento ou tristeza propriamente dita. Era um fato... Nunca a realidade, por pior

    que fosse, me foi ensejo a lamentação inútil. O que eu experimentava era apenas aestocada fina que me atravessava coração, onde ficava pungindo. Pungência, é aexpressão que define o que eu sentia. E por paradoxal que pareça, é sensação parecidacom a que me produz a beleza subitamente revelada. Um rosto de mulher cheio de amor,um descortinar de paisagem, um pedaço de música em que Beethoven abre um rasgoinesperado de bondade na face da vida, sacode-me o peito e perfura-me o coração com a

    intensidade de uma facada penetrante. “Como a beleza punge!” escrevi num dos meuspoemas.

    Minha reação em presença da minha fealdade era a mesma que me despertava a deoutros. Ver gente feia me dói. Sinto-me profundamente em desacordo com certas caras,certos jeitos, certas maneiras de caminhar. Tenho que lutar para conservar em relação àgente feia a minha bondade. Tenho que fazer apelo a todos os recursos da cultura para

    não ser descaridoso dentro de mim, sobretudo com mulher ou criança feia. Por isso nãogosto de me olhar em espelho. Tenho medo de me indispor comigo mesmo.

    Ao me reconhecer como era, sentia ao mesmo tempo no meu arcabouço inóspito respirarum sopro intenso de vida. Tive a revelação do efeito em outras pessoas dessa força

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    íntima, que palpitava em mim, anos depois desse primeiro encontro com os espelhosgrandes de Pernambuco, em 1912, na Holanda, quando ouvi Graça Aranha, então nossoministro em Haia, exclamar diante das provas de uma fotografia minha que lhe fui mostrarpedindo conselho sobre qual escolher: “Oh, quanta vida! Até faz medo!” De fato, na cruezada placa revelada a minha fisionomia pulava como propulsada por uma violência que os

    olhos, queimando o papel mal podiam conter.

    - “Vambora!” disse o preto, botando a cabeça dentro do salão.

    - “Vamos!”

    A rala rede da chuva, que se rarefazia, apanhou-me nos seus fios moles. Não parava nasua morrinha. O negro ia na frente, com a mala na cabeça, patinhando. Atravessei umaponte...

    Minha Formação no RecifeGilberto Amado

     

    O MAR

    Logo nos primeiros meses de estadia em Itaporanga, antes mesmo de ter começado afazer amizade com o Vaza-Barris, fui ver o mar... e isso em conseqüência de uma notícia

    que abalou a vila. Um verdadeiro estrupício. Os meninos da escola onde eu ainda não ia,passavam excitados, falando alto. Gente, ouvindo o alvoroço, perguntava: “Que foi?”

    Meu pai chegou em casa dizendo: “Uma baleia deu na costa”. Numa praia perto, a doMosqueiro, entre Itaporanga e S. Cristóvão, uma baleia “deste tamanho”. Vinha vindogente até de Aracaju para ver. Organizou-se excursão. Itaporanga toda ia ver a baleia. Látocamos, os meninos pequenos em maçaneta de sela, os maiores nas garupas, uma

    ninhada de família pobre acomodada em caçuás, dois de cada lado, como galinhas. Meupai e amigos com os filhos fomos dos primeiros a partir. A terra, na viagem, foi mudando.

    Já não era como a de Itaporanga; só areia branca e fofa; os pés dos cavalos enterrando-se

    nela; canavial não se via, só coqueiros. Paramos numa casa para deixar os cavalos;tocamos a pé. Aí foi caminhar muito. A baleia estava longe. Íamos uns quinze meninos. Derepente, um estrondo inenarrável, uma explosão inconcebível me fez estremecer.

    - É o mar! - exclamou meu pai, acolhendo-me nos braços, pois eu recuara para ele. A quedistância estaríamos? Não o poderia precisar. O mar, que eu só havia visto pintado, a sua

    revelação inicial foi pelos ouvidos: um trôo formidável, um medonho estrondejo de mil tirosde canhão fundidos num só, disparados ao mesmo tempo. Dir-se-ia vir do oco da terra.Meu pai e outros homens, todos ainda jovens, dispararam para a frente levando osmeninos. Ouvimos então choro; paramos. Um pequenino, com os olhos pulando, segurava

    nas calças do pai, dizendo: “Não! Não!” Chegamos para perto dele; catarro escorria-lhe donariz, e, misturado às lágrimas, entrava-lhe pela boca. Todos começaram a agradá-lo, a

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    convencê-lo, a ajudá-lo a superar aquele choque, a arrastá-lo mesmo. Não deu resultado;teve de ser carregado esperneando e esgoelando-se como um bacorinho. Nós jáestávamos molhando os pés junto da baleia. Que bicho! Passeavam em cima, davam-nosa mão lá de cima, os meninos escorregavam, quem dava a mão escorregava com a gente.Iam abrir a baleia a machado no dia seguinte antes que começasse a feder e os urubus a

    chegar.

    O mar, o Atlântico, ali estava, todo unido e plano, o mar, aquele camaradão, diante de mim.O olhar ia por ele sem parar até lá longe. O sol danava-se em cima da gente querendocomer pescoço e peito nu de menino. Os homens tiravam a roupa para tomar banho,

    entravam, voltavam logo, sacudindo-se. O mar unido, o mar plano!

    Na conferência que marcou o início da minha carreira literária (A Chave de Salomão),quando falei do mar, a impressão que salientei foi essa da unidade. Não me recordo se alembrança estaria em mim ao escrever a conferência. Devia estar.

    Nenhum daqueles meninos tinha visto ainda o mar; o mar; todos queriam provar a água.Faziam caretas golfando-a fora. Tomamos “banho salgado” (em Sergipe não se diz banhode mar), os olhos ficaram ardendo; os pais seguravam os filhos; fizemos barulho dentro daágua, mas o menino que tinha medo não tomou parte nos brinquedos. Ficou todo o tempo

    sozinho, sentado na areia, de costas para a água, virando-se uma vez ou outra deesgueira, um instante, para retirar logo os olhos da superfície imensa que nos chamava

    para as viagens, para o mundo.

    Apanhamos entãs. Dava-se este nome que não encontro no dicionário, pelo menos no quetenho aqui à mão, o Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, entãs, a conchas cor-de-rosa, madrepérola, nacaradas, de várias formas. Meu pai trouxe um búzio que lhe deram

    na casa em que repousamos, para a gente encostar ao ouvido e ouvir o mar dentro dele.

    Que histórias Iaiá não contou depois a propósito dessa baleia! Iaiá era contadeira de

    histórias à criançada, que ao escurecer, tendo levado banho, depois do brinquedo, vinhachegando para a nossa calçada. Os cabelos fouveiros amarrados por uma fita, os olhos

    muito abertos onde a sensibilidade tremia, olhando para todos e para ninguém, Iaiácomeçava a contar. Fora eu, santo de casa, toda a pequenada sentava-se por ali em torno

    dela. Onde tinha ido ela achar tanta história de trancoso, tanto conto da carochinha?Saíam-lhe da boca, um atrás de outro, príncipes vestidos de ouro, cavaleiros montados emdragão que botava fogo pelo nariz, bicho falando, velha que come menino, a passarempelos olhos da garotada, presos aos dela, uns babando. Que façanhas, sortilégios eproezas de mouras-tortas, de fadas e de velhinhas feiticeiras, de pajens encantados, decorcéis, de palácios e de castelos, não trazia Iaiá para aquela meninada! Vi muitomolequinho chorar com as histórias, sobretudo nas em que ela cantava como a do“Jardineiro de meu pai”; cantava de cortar coração. Vi-a, lembro-me tanto, consolando os

    cabrochinhas, explicando que era só história, os cabrochinhas chorando, e ela a contagiar-se das lágrimas que provocava, querendo chorar também. A verdade é que se esquecia de

    que estava inventado; ficava com medo dos próprios fantasmas, figuras e monstros que

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    criava. Como todo verdadeiro artista, acabava acreditando nas próprias criações. Setivesse vivido em outro meio teria sido uma atriz.

    Que espanto, o meu, quando três anos depois, esquecida na sua imaginação da origemdesse cetáceo que tinha dado na praia ali perto, ouvi-a contar a história começando assim:

    “Foi um dia lá longe, numa terra muito longe em que o Rei era assim e assim, a Rainhaassim e assim... foi um dia uma baleia, um bicho que come menino...” E lá vinham ahistória de Jonas e uma baleia mesmo ruim, com interpolações medonhas que faziam amolecada esfregar os olhos, de assombro. A baleia afinal era desencantada, aparecia emforma de uma moça loura muito bonita, penteando os cabelos na janela de um castelo, e

    por aí continuava ela até que Bernarda implacável, obedecendo à ordem “de botar meninopara dentro”, chegava, e a turma era obrigada a dispersar-se.

    À volta da excursão, alguém tendo afirmado que baleia não era peixe, provocou umarisada geral. Travou-se discussão. ”Baleia não é peixe! Ora essa! Não vive no mar? Se

    baleia não é peixe, que é?” “Cetáceo!” “Cetáceo? Mas por que cetáceo não é peixe?” Todoo tempo que durou a viagem de retorno, o problema foi debatido. Não teve solução.

    Teria o menino medroso do mar lido nas ondas um destino de náufrago... por uma dessasiluminações premonitórias de que nos falam tantos casos e exemplos da metapsíquica

    moderna? Essa idéia me veio depois, muito mais tarde, num tempo em que a curiosidadepelos problemas relativos às atividades supermentais do espírito me entreteve...

    experiências, transes de presciência inexplicáveis, comunicações misteriosasrelampejando em clarões o futuro, estados de extralucidez em tantas modalidades

    relatadas por autores especialistas, ajuntados aos que a versão popular propala. Lembrei-me do menino em face do oceano. Ter-lhe-ia acontecido depois, no curso da existência,alguma coisa no mar ou por causa do mar? Acaso nem a própria criança se recorde doque me recordava eu. Talvez nada lhe tenha restado na memória desta cena. Fui noentanto testemunha de outro caso, de uma manifestação de medo na qual a realidadeconfirmou o presságio.

    Foi muitos anos depois. Entre Itabaianinha e Timbó, onde íamos tomar o trem para aBahia, apeei-me na propriedade em que habitualmente nos hospedávamos. O donodessas terras morrera. O filho, estudante de medicina, que eu conhecera na Bahia,

    abandonara os estudos para dedicar-se de todo à vida de fazenda. A tarde ia caindo nachapada nítida. O terreno, aí, reluz ao sol como uma miragem. De noite, quando há lua,fica branco como um cemitério. Os arbustos secos, esparsos na transparência da luz,lembram figuras e representações funerárias. A imagem impõe-se ainda porque certoscômoros e elevações arredondadas na superfície escalvada tomam um aspecto de

    carneiros sepulcrais, ou de um ossuário imenso. Do céu metálico pende no descampado,como uma lâmpada, a lua. O longe não se esfuma e amortece. O horizonte define-se no

    fim da vista, exato, numa linha rasa. Nesse dia, a tarde, ao cair, emendara-se com o luar.Soltamos os cavalos. Tomamos um vinho de jenipapo e, desprezando as redes armadasno alpendre, estiramo-nos fora, nas mantas, gozando o cheiro do pasto espalhado no luar

    como perfume num lenço de cambraia. Os agregados juntaram-se a nós. Um cavaquinhocomeçou a repenicar, pespontando a minha conversa com Jerominho, meu hospedeiro.

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    João Calixto, meu pajem, cabra prosista, quis “garrar” conversa com os homens, mas ocavaquinho não fez conta da palavra dele. “Canta, Silvino”, disse Jerominho a umagregado bem jovem, de agradável aparência, que estava no grupo. Silvino cantou umatoada boa, demorada, chorosa. O silêncio tornou-se maior. Uma estrela cadente descreveulonga curva por cima de nós. “Caiu em S. Cristóvão!” exclamou João Calixto. “Por que S.

    Cristóvão?” perguntei. “Estrela só cai para as bandas do mar; ora, mar por ali onde ela foi,Só S. Cristóvão”. Rimos.

    De repente começamos a distinguir na linha extrema do pasto cavaleiros que passavamum atrás de outro com grandes chapéus de palha. Eram os morféticos (explicou

    Jerominho) que voltavam de pedir esmolas, o que faziam uma vez ou duas por semana.“Vivem por aqui?” “Sim, no agreste. Meu pai não deixava... Eu deixo; não incomodam;

    plantam sua mandioca, ninguém chega perto; aliás [e aí falava o ex-estudante demedicina] não pega; só com contato prolongado; o mais é superstição”.

    Passavam devagar, em fila, seis ou sete. Demoravam na vista como se não acabassem depassar. Ouvimos então uma espécie de trilo de garganta, um riso histérico inesperado,

    estranho, que rasgou a serenidade do momento. Era Silvino, o rapaz que cantara.Disparou para o puxado de onde tinha vindo com os demais agregados. “É a segunda vez

    que tem tal manifestação”, comentou Jerominho para o meu espanto. “Superstição, purasuperstição! A moléstia não é transmissível pelo ar e em muitos casos tem cura”. Citoufatos e autores. Ouvindo-o, concordando com o que dizia, não me libertei, contudo do mal-estar que me produziu o fato.

    Parti de madrugada para alcançar o trem. Paramos, como sempre fazíamos, para almoçarno Barracão, lugarejo onde havia um hotelzinho, casa de telha-vã atarracada no barro,com uma porta e uma janela, em que já dormira numa das viagens e na qual ouvi umdiálogo que me fez rir. Nessa ocasião a que me refiro, chegáramos ao escurecer. Atraídopelo tropear dos cavalos, o dono assomou à porta. Meu pai, que já ali tinha pernoitado,disse ao apear-se: Prepare duas camas “. E gracejou: “Tem muita pulga, Severo?” Otabaréu, alto, seco, respondeu com a maior seriedade: “Qual o quê, Coroné... percevejonão deixa...” Eu não sabia que percevejo comia pulgas, nunca soube e nunca perguntei.Mas valia a pena, concluí para mim, passar a noite no hotel do Barracão só para ouvir umdito destes. Meu pai e eu rebentamos numa risada gostosa que deve ter ficado dentro de

    nós, pois o sono foi bom e acordamos alegres.

    Anos depois, já deputado federal, vindo da Bahia, detive-me de novo na fazenda deJerominho, uma noite, cansado de viagem puxada. À partida, ao despedir-me, lembrei-mesubitamente do rapaz que se assombrara, que teve aquela crise nervosa quando viu

    passarem em frente de nós, a distância, os sombrios cavaleiros, no descampado luarento.Recordei-me do fato mas não do nome do rapaz, e perguntei: “Aquele seu agregado que

    cantou e teve um ataque de nervos quando viu os leprosos, na última vez que passei, nãoapareceu agora...” “Silvino?” – perguntou o dono da fazenda. Baixou a cabeça e depois deum silêncio: – “Já não está mais aqui...” Fiz uma interrogação com os olhos. Jerominho

    estendeu o gesto e respondeu com a voz triste: ”No agreste...” - “No agreste... como os...?Oh, diabo!” - exclamei. - “Então aquilo era um presságio, um pressentimento horrível?”

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    Contou-me Jerominho como, tempos depois daquela reunião, Silvino aparecera com ossinais iniludíveis da moléstia, rosto intumescido, dedos ficando cor-de-rosa. Os agregadosafastavam-se dele. Foi para Itabaianinha, andou pelo Lagarto, pelo Geru... Todo o mundofugia-lhe da presença. Pegou os trastes, foi-se juntar aos outros. “Oh, meu Deus!” -sussurrei. Jerominho continuou: “De vez em quando mando botar à beira da estrada

    dinheiro para ele. Ninguém quer ir entregar. Gritam de longe.” - “Como na Idade Média...” -comentei. - “Tal e qual!” - “Mas pode haver tais pressentimentos?” - ainda perguntei.

    Jerominho deu explicações cientificas de que não me recordo.

    História da Minha Infância

    Gilberto Amado

     

    AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS E O MEIO SOCIAL NO BRASIL

    Discurso proferido na Câmara dos Deputados[...] A “Conciliação” é obra política do Imperador, e nunca o “pensamento augusto” influiumais no sentido de apressar a marcha das idéias liberais donde haveria de sair mais tardea preocupação republicana. Propiciando a chegada dos liberais ao poder, o Imperadorempurrava o país na direção que ele queria seguir e pode dizer-se que iniciava umapolítica de suicídio dinástico sem compreender talvez que o trono assentava naaristocracia territorial e que o enfraquecimento desta traria como conseqüência oenfraquecimento do trono.

    Sem aptidão para criar uma classe militar forte para substituir aquela ou porque lherepugnasse ao caráter pacífico e burguês ou porque se temesse da sua possívelinfidelidade futura, tendo na memória o exemplo do 7 de abril, o certo é que Pedro IIcomeçou daí a sacrificar ao seu temperamento liberal os próprios fundamentos da suacoroa.

    É 1862, contudo, a época do esplendor da monarquia. O Brasil é então um blocoharmônico. Aquela situação de equilíbrio a que Salles Torres Homem já conciliado sereferia com tanta precisão, exprime a plenitude da maré cheia. Tinha começado,

    entretanto, a vazante conservadora, e ia pronunciar-se a forte enchente democrática. Umacontecimento inesperado deteve-a, porém. Foi a guerra do Paraguai. Não obstante, aeleição por círculos trouxe uma quase unanimidade liberal. E pode dizer-se que de 1862

    começou o domínio liberal.

    É o instante em que se podem estudar estas belas figuras que de um partido e de outro

    fulgentearam na monarquia. Não será exagero afirmar que umas e outras no que dizia comas realidades concretas do país realizaram uma simples ação decorativa. Ilustrados nos

    publicistas europeus, versando temas que não tinham relação com o meio, os maisbrilhantes estadistas não eram por certo os mais úteis. O seu trabalho político consistia em

    bordar sobre os assuntos do dia - empréstimos externos, reformas da legislação criminalou civil, direito orçamentário, questões partidárias e eleitorais, grandes e belos discursos

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    que poderiam figurar pelos assuntos nos “Anais” parlamentares da França e da Inglaterra.Nos chamados menos cultos, isto é, num Paraná, num Itaboraí, num Cotegipe mais tarde,se sentia a experiência que comunica o trato dos negócios, o cuidado da observação, amatéria dos fatos, dando aos seus discursos a contextura resistente das realidades.

    É claro que a todos eles faltava uma educação científica necessária à compreensão de umpaís que mais do que nenhum outro precisava de uma política construtiva.

    Tendo todos os hábitos peculiares aos legistas educados à abstrata, sem umentretenimento forte com a vida material do país levantado nos braços da escravidão paraas alturas de um sistema político nascido na Inglaterra, dos próprios fatos, do própriosenso do povo, da própria experiência das liberdades públicas conquistadas ao domíniosecular dos conquistadores, da própria originalidade do espírito saxônio, era natural queesses homens se surpreendessem do mau funcionamento desse sistema sobre tribos maisou menos selvagens, sobre negros escravos, sobre filhos de índios e de negros, sobre

    filhos de portugueses, sem instrução, sem idéia nenhuma também do que fosserepresentação popular, direitos políticos, deveres cívicos, etc.

    Por falta de capacidade construtiva do povo politicamente inexistente, os estadistas poucoadvertidos diante dos problemas eram levados por educação a procurar nos exemplos

    estrangeiros os moldes a aplicar, as normas a seguir sem cogitar das peculiaridades domeio, das suas condições típicas.

    Os homens mais úteis do Império foram justamente aqueles que, menos instruídos nessas

    leituras estrangeiras ou de natureza mais aptos a travar conhecimento com a realidade,tiveram da nossa gente uma percepção mais precisa e procuraram tirar dela o maiorproveito possível, sem, todavia, dela esperar muito.

    Não se pode, contudo, deixar de receber uma impressão de respeito desses homens,graves, honestos, imponentes, movendo-se numa atmosfera elevada em torno de um

    príncipe que me aparece como um verdadeiro milagre da espécie humana.

    Devo explicar. Filho de Pedro I, cujos costumes, cuja moral, nós conhecemos; senhorabsoluto em um país em que o sistema constitucional era e não podia deixar de ser uma

    ficção; em uma sociedade sem existência moral porque era baseada na escravidão, essehomem deve ser estudado não só pelo bem que fez, mas, sobretudo, pelo mal que nãofez... Imaginem se Pedro I encontraria obstáculos em 1840, em 1860 ou em 1870 para ser

    um príncipe corrupto, para exercer o seu temperamento exuberante, ávido de prazer.

    Não tenciono estudar aqui a ação do Imperador, cuja figura e cujo papel estão a demandar

    o talento de um grande historiador.

    Como vinha dizendo, a eleição por círculos encheu a Câmara quase toda de liberais.

    O ministério do Marquês de Olinda, que sucedeu ao gabinete meteórico de Zacharias, foi aúltima ilusão conservadora.

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    Dissolveu a Câmara por não poder enfrentá-la.

    E a eleição de 63 era a vitória liberal. Estava extinta a missão histórica do partidoconservador.

    Tinha começado no referver das paixões a decomposição da monarquia. Asdenominações dos partidos tornam-se palavras vazias de sentido. Já não correspondem àrealidade. Os senhores não podem preponderar como dantes. Os anos têm passado sobreo “tráfico”. Até então a ação do imperador era “o pensamento augusto” que fez “aConciliação” bem recebida por todos. Daí por diante, esse pensamento ia ser “a causaúnica da decadência do país” e as forças políticas em torno dele iam representar “o papeldo polichinelo eleitoral dançando segundo as fantasias dos ministérios nomeados peloImperador”, como dizia Tito Franco. Idêntica era a linguagem de Sayão Lobato, José deAlencar e de Saraiva, que dizia: - “o poder ditatorial da coroa era uma verdade sódesconhecida pelos néscios ou pelos subservientes aos interesses ilegítimos da

    monarquia”. Silveira Lobo assegurava: “o vício não está nos homens, mas sim nasinstituições”. Para Francisco Octaviano o império constitucional era “a última homenagem

    que a hipocrisia rendia ao século”. Os velhos conservadores levantavam-se do seu silênciopara afirmar cousas semelhantes. Nabuco no seu famoso sorites estabelecia: “O poder

    moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa (oImperador) faz a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Aí está o sistemarepresentativo do país”. E no pedir as grandes reformas, no propor a eliminação do podermoderador, Ottoni, Silveira Lobo, Zacarias, Nabuco, Souza Franco, Octaviano, Paranaguá,agora unidos, apresentavam o dilema: “ou a Reforma ou a Revolução”.

    A verdade é que estava gasta a velha máquina. A fadiga da monarquia constitucional eraevidente.

    Silveira da Motta, Silveira Martins, Affonso Celso, Paula Souza, todos sem discrepância,

    não encontravam para as infelicidades do país outra explicação que a “decadência” dosistema constitucional devida à cada vez maior preponderância pessoal do Imperador.

    Mas porque de 1854 até 1862, quando se reconhecia essa influência que não podia, naverdade, deixar de exercer-se, pois não assentavam os partidos em grandes camadas da

    opinião consciente subdividida - por que, pergunto, àquele tempo essa influênciachamada, em um misto de respeito e ironia benévola, o “pensamento augusto” a que todosse referiam sem acrimônia, era então, depois de 70, a causa de todos os males, a açãocriminosa do “César caricato”, de Ferreira Vianna?

    Certo, já em 1859, Silveira da Motta se aventurava a dizer:

    “As práticas constitucionais enfraquecem-se todos os dias; o regímen representativo tem

    levado botes tremendos, a depravação do sistema é profunda. No país o que há somente éa forma de governo representativo: a substância desapareceu. Tenteie-se esta chaga da

    nossa sociedade, e ver-se-á que no Brasil o regímen constitucional é uma mera

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    formalidade. E então acrescentava: “cheguei à convicção de que o vício não está noshomens, está nas instituições”.

    Veja-se como esta linguagem se parece com a de hoje! Quase todos os espíritos têmagora um falar parecido com este. “A culpa não é da República; a culpa é dos homens”,

    dizem uns. “Querem reformar a Constituição? Mas ela não foi ainda executada...” dizemoutros. Há os que asseguram, pelo contrário, que a causa de todos os nossos males estána adoção que fizemos de um regímen que não encontrava apoio nas “tradições”nacionais, acreditando com certa ingenuidade que existam tradições entre nós.

    Verifica-se facilmente que esse modo de raciocinar sobre os fenômenos políticos obedecea um sistema de educação. Nem Silveira da Motta, nem Ferreira Vianna, nem Saraiva,nem Silveira Martins, nem José de Alencar, nem Tito Franco, nem Francisco Otaviano,nem enfim todos os estadistas que se exasperavam com a mentira do sistemaconstitucional entre nós, se deram ao pequeno trabalho de fazer um estudo ligeiro das

    condições de raça, de meio, das contingências particulares de um país sem hábitoselementares de política, sem independência econômica, com uma população primitiva

    perdida na amplitude geográfica do Brasil, e perguntar até que ponto, já não digo toda apopulação do país, mas ao menos as populações do Rio de Janeiro, da Bahia, do Recife,

    de S. Paulo, das principais cidades em 1860, em 1870, para não falar de 1840 e 1850,poderiam intervir com a sua vigilância efetiva, com a consciência dos seus deverespolíticos na direção de um país cuja Constituição assentava no exercício dessaconsciência?

    Parece que nenhum deles se lembrava disto. Homens de educação abstrata, quase todoseram levados a se preocupar mais com o aspecto do que com o fundo dos problemas.

    Adaptamos as instituições políticas da Inglaterra através das sugestões de BenjaminConstant; logo deveriam elas funcionar como na Inglaterra. Raça religiosa e política dos

    saxônios, seis séculos de experiência das liberdades públicas, senso prático da população,equilíbrio econômico, autonomia do comércio, tudo parecia lhes passar despercebido. Eenquanto os discursos enxameavam de citações de estadistas franceses e ingleses, eradifícil encontrar uma referência a qualquer dos viajantes ilustres que aqui vieram conhecero país e em cujas obras tanta sugestão e ensinamento útil deparariam.

    Como ainda hoje, os Saint-Hilaire, os Luccock, os Spix, os d'Orbigny, os Castelneau, só denome se conheciam. E daqueles que a prática do imperialismo das nações européiasobrigou a estudar os processos de colonização das raças mestiças, fora difícil encontrartraço nas obras e preocupações deles.

    A ouvir as objurgatórias dos estadistas sobre o que eles apelidavam a “decadência” dosistema representativo entre nós, vem-nos ao espírito, com a perplexidade, umainterrogação. Seria, com efeito, possível que esses homens acreditassem na maravilha deuma provável realidade das instituições que adotaram? Por acaso nunca lhes tivera

    passado pela mente a idéia da população do Brasil em confronto com a daqueles paísesque criaram das próprias entranhas do seu gênio essas instituições? [...]

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    À Margem da História da RepúblicaGilberto Amado