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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Escola de Música Licenciatura em Música Gilmar Bedaque de Paula Junior ACORDANDO VOZES: O trabalho de preparação vocal desenvolvido junto ao Grupo Vocal Acorde Natal/RN 2018

Gilmar Bedaque de Paula Junior ACORDANDO VOZES: O …

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Escola de Música

Licenciatura em Música

Gilmar Bedaque de Paula Junior

ACORDANDO VOZES: O trabalho de preparação vocal desenvolvido junto ao

Grupo Vocal Acorde

Natal/RN

2018

Gilmar Bedaque de Paula Junior

ACORDANDO VOZES: O trabalho de preparação vocal desenvolvido junto ao

Grupo Vocal Acorde

Monografia apresentada à Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (EMURFN), como requisito parcial à

obtenção do título de Licenciado em Música. Orientadora: Profª. Drª. Maria Nazaré Rocha

de Almeida.

Natal/RN

2018

AGRADECIMENTOS

À Grande Força organizadora do Universo, que em sua sabedoria e inteligência

infinitos, permite a todos nós estarmos aqui hoje.

À harmonia e beleza de Logun Edé, Dono e Senhor do meu Orí. Loci Loci!

À minha família, especialmente à minha mãe Eurídice.

À todas as pessoas, amigas e amigos, companheiros da música e do canto, que

contribuíram para o ser humano que sou hoje. Pela troca de carinho, obrigado!

Ao meu companheiro, Wagner, pelo amor e apoio oferecidos a mim em todos os

momentos. Te amo.

À Professora Especialista Claudia Cunha por ter me iniciado na arte do canto e por

tanto ter me ensinado sobre música.

À Professora Doutora Nazaré Rocha por me ajudar a entender mais sobre mim

mesmo e consequentemente sobre minha própria voz, e por ter aceitado ser

orientadora desse trabalho. Imensamente grato sempre por sua ajuda!

E especial agradecimento ao Grupo Vocal Acorde, pela confiança no meu trabalho

como preparador vocal e diretor musical. Obrigado amigos!

“Por isso uma força me leva a cantar

Por isso essa força estranha Por isso é que eu canto, não posso parar Por isso essa voz tamanha!”

Caetano Veloso – Força Estranha

RESUMO

A construção desse escrito monográfico tem por objetivo relatar o trabalho de

preparação vocal desenvolvido junto ao Grupo Vocal Acorde, grupo de extensão da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, EMUFRN, realizado no período de 2012 a 2018. Iniciamos o trabalho investigando a natureza

do canto coletivo, traçando um panorama histórico do canto coral no ocidente e no Brasil, conceituando a diferença existente entre Coro e Grupo Vocal, e realizando uma breve discussão sobre os espaços dos grupos de canto coletivo como

ambientes de educação musical. Em seguida, buscamos contextualizar o local onde o trabalho foi realizado, expondo a atual configuração e apresentando um breve histórico da formação do grupo. E em sequência, relatamos os conceitos sobre canto

e produção de voz que serviram de base para a elaboração da preparação vocal junto ao Grupo Acorde, discutindo sobre as referências da pedagogia de voz e da pedagogia coral adotados no trabalho, abordando a escolha das metodologias

empregadas, bem como a exposição de desafios e soluções encontrados ao longo do processo.

Palavras-chave: Técnica Vocal; Grupo Vocal; Canto Coletivo.

ABSTRACT

The construction of this discourse has the goal of describing the experiences gained

during activities related to the Grupo Vocal Acorde, an extension group at the School of

Music at the Universidade Federal de Rio Grande do Norte, EMUFRN, between the

years 2012 and 2018. We begin our work investigating the nature of group singing,

tracing an historical panorama of choral singing in the West and in Brazil. We also define

the difference between the concept of the choir and the concept of the vocal group, with

a short discussion on the different spaces of singing groups as musical education

environments of learning. We then follow this discussion with search for context as

regards to the locale where the work in question took place. In this, we describe the

current configuration of the group as well as presenting a short history. In sequence, we

detail the concepts around singing and vocal production which served as the basis for

the elaboration of vocal preparation with the Grupo Vocal Acorde, discussing the

references of the voice and choral pedagogies that were adopted during the work,

addressing the methods employed as well as showing the challenges and solutions

found during the process.

Keywords: Vocal technique. Vocal group. Collective singing.

LISTA DE FOTOGRAFIAS

Foto 1 – Passagem de palco no Festival Paraibano de Coros, João Pessoa, 2013.21

Foto 2 – Show “O Homem da Feiticeira”, UFRN, 2015 ........................................... 25

Foto 3 – ensaio na EMUFRN, 2014 ........................................................................ 26

Foto 4 – Ensaio na EMUFRN, 2018......................................................................... 26

Foto 5 – Apresentação CIENTEC, UFRN, 2014....................................................... 27

Foto 6 – Show “Retropicando”, UFRN, 2018............................................................ 46

LISTA DE FIGURAS

Figura 01 - Pregas Vocais …………………………………………………………….. 29

Figura 02 - Trato Vocal ………………………………………………………………… 30

Sumário

1. Introdução ............................................................................................................................. 10

2. CAPÍTULO I: A voz e o Canto Coletivo ............................................................................ 13

2.1 Panorama histórico do Canto Coral ............................................................................ 14

2.2 O Grupo Vocal ................................................................................................................. 18

2.3 O canto coletivo como prática de educação musical .............................................. 19

3. CAPÍTULO II: O Grupo Vocal Acorde ............................................................................... 22

4. CAPÍTULO III: A preparação vocal .................................................................................... 28

4.1 Fisiologia da voz e Técnica Vocal ............................................................................... 29

4.2 Referências pedagógicas e metodologia ................................................................... 33

4.3 A realização do trabalho de preparação vocal ......................................................... 37

5. Considerações Finais ........................................................................................................... 47

Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 50

10

1. Introdução

Este escrito monográfico tem como objetivo relatar a experiência do autor no

trabalho de preparação vocal realizado junto ao Grupo Vocal Acorde, grupo de

extensão da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Para melhor organizar esse relato, optamos por dividir o trabalho em três capítulos: o

primeiro trata sobre a voz e o canto coletivo; o segundo é dedicado exclusivamente

ao Grupo Vocal Acorde; e o terceiro discute os conceitos e ferramentas adotados no

trabalho de preparação vocal.

Iniciamos o primeiro capítulo contextualizando a prática de um grupo vocal

através da investigação das origens do canto coletivo, demonstrando a sua

existência desde tempos antigos e reforçando a natureza humanizadora e o aspecto

social dessa prática. Em sequência, encontra-se um breve panorama histórico do

canto coral demonstrando o uso do termo “Coro” desde a antiguidade, e

descrevendo a evolução da prática coral ao longo da história da música no ocidente

e no Brasil, apontando importantes características desse fazer musical. Ainda nesse

capítulo, trataremos da diferenciação entre os conceitos de “Grupo Vocal” e “Coral”,

demonstrando especificidades estruturais entre os dois grupos, estendendo a

discussão para a esfera da educação musical, entendendo o espaço desses grupos

de canto coletivo como ambientes vivos de ensino e aprendizagem musical em

diferentes contextos.

Com o objetivo de melhor ilustrar o ambiente de atuação do autor, trazemos

no segundo capítulo um histórico do Grupo Vocal Acorde, desde sua fundação no

ano de 1997 até os dias atuais, falando sobre a formação inicial e posteriormente

sobre a escolha da formação atual, relatando suas principais características

enquanto grupo vocal amador formado somente por vozes masculinas, e relatando a

chegada do autor na equipe técnica do grupo. Também aqui evidenciamos o caráter

de laboratório apresentado pelo Grupo Acorde, que aparece como oportunidade de

espaço de atuação para estudantes, de diversos cursos, auxiliando-os em suas

aprendizagens e enriquecendo suas formações como profissionais capazes de

atuarem em vários setores no campo da industrial cultural.

11

Posteriormente, no terceiro capítulo, abordamos as concepções de produção

de voz e técnica vocal utilizadas no desenvolvimento do trabalho de preparação

vocal, explicando sobre quais as musculaturas são envolvidas no processo de

respiração e fonação, e qual seria a melhor maneira de utilizar esses mecanismos

orgânicos na prática do canto. Apresentamos alguns conceitos da pedagogia vocal

tradicional, especialmente a ideia do corpo como instrumento (MILLER, 1996),

discutindo a abordagem sensível do ensino do canto na perspectiva do corpo-sujeito

(ALMEIDA, 2013).

Salientamos nesse capítulo a necessidade de se adaptar conhecimentos e

metodologias para conseguir desenvolver da melhor forma possível o treinamento

técnico de cada pessoa, respeitando a individualidade e subjetividade de cada um.

Desse modo, relatamos algumas escolhas de exercícios utilizados para o

treinamento técnico dos cantores do Grupo Acorde, aplicados tanto para o

desenvolvimento individual quanto para o resultado sonoro do conjunto,

evidenciando desafios e apresentando os resultados percebidos ao longo do

processo.

Finalizamos esse escrito fazendo um retrospecto dos principais pontos

abordados ao longo desse trabalho, reforçando a natureza coletiva da prática coral

ou de grupo vocal, colocando-a como uma atividade capaz de promover o

desenvolvimento sociocultural pela interação entre pessoas através do fazer

musical, bem como um espaço importante de educação musical tanto para os

cantores que integram um grupo de canto coletivo quanto para os estudantes de

graduação, que estando em formação, atuam como regentes e preparadores.

Encerramos trazendo uma reflexão do ensino sensível da técnica vocal, que além de

fornecer ferramentas técnicas para a atividade do canto, é capaz de promover um

contato do aluno/cantor consigo mesmo, saindo da esfera puramente musical e

adentrando no campo do autoconhecimento, humanescendo esses indivíduos, ou

seja, possibilitando a eles o encontro com o que é próprio da expressão humana. O

termo “humanescer”, adotado nesse trabalho, foi criado pela Linha de Pesquisa

Corporeidade e Educação do Centro de Educação da UFRN para referir-se ao corpo

que valoriza as relações, que se mantém ressoante consigo e com o outro, com seu

corpo e com o mundo. (ALMEIDA, 2013)

12

Esperamos que esse trabalho possa contribuir para a formação de

estudantes e cantores, bem como ampliar os conhecimentos de coralistas,

preparadores vocais e regentes que já estejam em atividade.

13

2. CAPÍTULO I: A voz e o Canto Coletivo

A voz surge como uma das primeiras manifestações sonoras da vida humana,

presente desde o nascimento através de vocalizações expressivas como o choro, o

grito, o riso. É um poderoso instrumento que, além de manifestar aspectos

fisiológicos, é também ferramenta de interação, expressão e grande provocadora de

respostas no outro, atuando como veículo que não somente carrega as palavras,

mas que transporta a mensagem emocional associada a elas, ou seja, " a voz tem a

dupla função de transmitir conteúdos e sentimentos" (BEHLAU; PONTES; MORETI,

2017, p.).

Desta maneira, por ser uma das primeiras possibilidades de exteriorização

sonora, podemos pensar que o canto (voz), juntamente com a dança (corpo),

surgem como as primeiras manifestações do fazer musical na história da

humanidade. Ao observarmos os povos da antiguidade, podemos encontrar registros

da presença de práticas musicais, através do uso do canto, em rituais associados à

funções religiosas, cívicas e sociais (BÜNDCHEN, 2005, p.22). Assim, presente

desde de os tempos remotos, o canto coletivo fundamenta a organização grupal do

ser humano, assumindo diversas significações e agindo como forma de expressão,

pois

"Um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo de humanos. tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador." (WISNIK, 1989, p.33)

Na tentativa de aproximar-se dessas origens musicais da humanidade, a

musicologia moderna, através de análises de culturas onde a prática musical é

baseada em sistematizações de elementos melódicos e rítmicos muito rudimentares,

considera a música de alguns povos orientais como uma "herança direta de um

passado distante" (JARABA, 1989, p.21), apesar de, infelizmente, ser impossível

saber com precisão como soava a música cantada em épocas tão remotas.

14

2.1 Panorama histórico do Canto Coral

O termo Coral, ou Coro, que atualmente é usado para denominar um grupo

de pessoas que cantam em conjunto, remonta a cultura da Grécia antiga, onde o

termo Chóros (em grego Κόρος) significava a junção de poesia, canto e dança,

elementos que compunham o antigo drama grego (ZANDER, 1987, p.165).

Encontramos também na cultura da antiguidade grega, a palavra musiké (em grego

μουσική), que "abarcava tudo o que representava um meio de transmissão cultural e

espetáculo público, abrangendo todas as artes" (SOUSA apud BÜNDCHEN, 2005,

p.23). O cristianismo antigo, por sua vez, adota o mesmo nome mas com outro

sentido, originando-se assim, o termo latino Chorus, que representa "o grupo da

comunidade que canta." (ZANDER, 1987, p.166). Desta maneira, falar sobre a

origem e a história do canto coral é, inevitavelmente, falar sobre a origem e a história

da própria música no ocidente.

Os historiadores consideram a prática do canto coletivo na liturgia da primitiva

igreja cristã, após a queda do império romano, como o nascimento do canto coral na

cultura ocidental. Essas melodias, de textura monofônica, com textos incialmente em

grego e posteriormente em latim – após a adoção da língua latina como sendo a

oficial pela igreja cristã – eram cantadas, em uníssono, durante as celebrações dos

cultos, pelos clérigos na era medieval. No século VI, o Papa Gregório I, chamado de

"O Grande", organizou um antifonário contendo diversos cantos eclesiásticos, obra

que foi amplamente difundida pela igreja medieval e que fez o cantochão receber

também o nome de "Canto Gregoriano".

Também foi o Papa Gregório I, o criador e principal impulsionador da "Schola

Cantorum" (escola de cantores) em Roma. Nela se ensinava a crianças e monges a

arte do canto, com a finalidade de prepará-los, com cuidado e requinte, para os

cantos que se executariam durante as celebrações litúrgicas. Este modelo de ensino

de canto rapidamente passou a proliferar nas mais importantes igrejas e abadias da

Europa medieval, sendo considerado como "os primeiros coros organizados da

história". (JARABA, 1989, p.23)

Com o passar do tempo, especialmente a partir do século IX e X, o cantochão

começa sofrer uma verticalização com o acréscimo de uma segunda voz, cantada a

uma distância intervalar de 4ª ou 5ª justa em relação a melodia original. Essa nova

15

maneira de compor recebe o nome de Organum, e é considerada o gérmen do

empilhamento de vozes que se desenvolverá nos séculos seguintes, culminando no

auge da polifonia dos séculos XV e XVI. Esse desenvolvimento, não só resultou

numa nova maneira de compor música, concebida na textura polifônica – onde

várias vozes cantam suas melodias independentes, preservando ainda alguma

relação entre si – mas, para além disso, estabeleceu a estrutura da organização

coral, que é usada até os dias de hoje, separando as vozes em agudos, médios e

graves.

Nascido no século XIII e consolidado no século XIV, o Moteto, gênero

polifônico composto inicialmente a 3 vozes, era construído acrescentando-se duas

vozes mais agudas, que recebiam o nome de Duplum e Triplum, sobre um

cantochão já existente, que era chamado de Tenor. Com o desenvolvimento do

gênero, progressivamente, foram acrescentadas novas vozes e adotados novos

termos como Altus e Bassus, que seriam, respectivamente, as vozes imediatamente

mais aguda e mais grave em relação ao Tenor. Surge também o termo Superius, de

onde se originou a palavra "soprano", para designar a voz que ficaria sobre todas as

outras na composição, ou seja, a mais aguda. Além de termos como Contra-tenor e

Contra-altus, usados para nomear vozes que cantariam um movimento polifônico de

oposição às melodias compostas para o tenor e o altus.

É importante observar que termos como soprano, contralto, tenor e baixo,

ainda usados nos dias de hoje nos grupos de canto coral, nasceram juntamente com

a ideia de organização do cantar coletivo nas composições polifônicas dos séculos

passados, o que faz dos nossos coros atuais os "herdeiros nascidos dessas escolas,

Scholae, formadas pelos estudantes do "quadrivium", os quais, [...] dominavam com

perfeição a técnica e a arte do canto" (JARABA, 1989, p.13). Porém, também é

preciso observar que, atualmente, soprano, contralto, tenor e baixo, são termos

usados para a classificação das vozes de acordo com sua tessitura, diferindo assim,

do emprego inicial desses termos, que originalmente representavam a função de

cada voz dentro da composição, e não o âmbito vocal dos cantores.

A partir do século XVII, a música instrumental começa a ganhar força, e o

canto solista, que já vinha sendo desenvolvido desde o século XVI, ganha cada vez

mais espaço nas obras musicais. Estes novos fatores fizeram com que o canto coral,

16

paulatinamente, fosse perdendo o protagonismo que havia alcançado nas

composições dos séculos anteriores, restringindo-se, quase que totalmente, aos

gêneros da música sacra como o Oratório e a Cantata. Também na Ópera – gênero

criado no início do século XVII, com o objetivo de resgatar o ideal do drama grego, e

que buscava integrar música (canto e orquestra), dança e teatro – o coro perde

espaço para a voz solista, que passa a ser cada vez mais explorada, e sua aparição

em composições operísticas se torna mais escassa e curta.

A revolução francesa, do final do século XVIII, mudaria profundamente a

prática coral, não só no campo criativo, mas também no participativo. Os ideais

democráticos, surgidos da revolução, influenciariam a criação do L'Orpheon de

Paris, coro com uma grande massa de cantores não profissionais e de todas as

classes sociais, criado pela necessidade de trazer para as pessoas comuns o prazer

da música da maneira mais direta: a interpretação (JARABAS, 1989, p.62). O

exemplo do L'Orpheon se estendeu rapidamente por toda Europa, e teve seu

apogeu na segunda metade do século XIX. Dessa forma, se pensarmos no ideal

filosófico no qual o L'Orpheon foi concebido, podemos facilmente perceber que os

chamados Corais Amadores de hoje em dia, assemelham-se à proposta original

francesa.

No nosso país, a prática coral está fundamentada, intimamente, com as

práticas musicais dos países que nos colonizaram. Desde o início do processo de

colonização, ainda no século XVI, existem registros da atuação dos jesuítas, que

buscando a catequização de povos indígenas, utilizavam como principal ferramenta

a prática musical, e especialmente o canto como instrumento de evangelização. No

século XVII, o desenvolvimento econômico proporcionado maiormente pela cultura

da cana-de-açúcar, "faz surgir, com destaque na Bahia e em Pernambuco, aquilo

que podemos identificar como os primeiros sinais de vida musical organizada no

Brasil colonial" (CARDOSO apud FERNANDES, 2009, p.161). Mais à frente, com o

grande desenvolvimento de Minas Gerais durante o século XVIII, decorrente da

mineração do ouro e de diamantes, a "região mineira desenvolveu uma prática

musical de alto nível seja no campo da composição seja no campo da performance"

(FERNADES, 2009, p.163), o que, sem dúvida, podemos considerar como o auge da

música colonial no Brasil.

17

É preciso dizer que a atividade musical do Brasil colônia estava, de forma

geral, ligada à igreja, e acontecia, majoritariamente, no âmbito das funções

religiosas. Dessa forma, a música era essencialmente sacra e vocal, exigindo

sempre a participação de vozes, solistas e coristas, fazendo do canto coral um

importante elemento nessa atividade musical. Contudo, após a chegada de D. Joao

VI ao Rio de Janeiro, no início do século XIX, apesar da igreja da Sé ter sido elevada

à categoria de "Capela Real", e ter experimentado uma intensa produção música

coral, "o gosto pela ópera italiana cultivado pela corte, acabou por dominar a prática

musical do Rio de Janeiro" (FERNANDES, 2009, p.167), o que fez o canto coral

perder seu protagonismo, tal qual aconteceu na Europa no século anterior,

restringindo-se somente à função religiosa durante todo o século XIX e início do XX.

Na década de 1930, o compositor Heitor Villa-Lobos resgata o canto coral

através do Canto Orfeônico, projeto de educação musical que buscava despertar o

interesse dos jovens e formar um público para a música. O compositor entendia que

"a voz humana, através do canto em conjunto, era o principal meio de prática

musical" (FERNANDES, 2009, p.176), no entanto, a prática coral nas escolas não

buscava a formação de grandes artistas, mas, primordialmente, a construção de

uma fisionomia musical brasileira. Além do grande número de corais criados em todo

o Brasil através desse projeto, outro importante legado é a grande quantidade de

obras corais que o próprio compositor produziu, material bastante adequado para

educação musical e realização coral nas escolas.

A partir da década de 1960 o movimento coral brasileiro atinge as

universidades, e muitas instituições criam seus próprios coros, alguns ativos até os

dias de hoje, com a finalidade de tornar acessível a prática coral entre universitários,

docentes e funcionários. Nesse período a prática coral sofreu uma grande

transformação no âmbito postural e estético, os grupos corais começam a incorporar

a música popular e a canção de massa em seus repertórios, proliferando um grande

número de arranjos corais de música popular brasileira urbana, o que incentivou

uma maior liberdade corporal, surgindo assim o coro cênico (FERNANDES, 2009,

p.183).

Ainda hoje, o cantar coletivo, seja como instrumento pedagógico e de

educação musical, seja como atividade social e diletante, está presente em diversos

18

setores da sociedade, públicos e privados, fazendo do canto coral uma importante

ferramenta de aproximação de pessoas, possibilitando a interação de grupos e o

contato com o prazer musical através da performance.

2.2 O Grupo Vocal

A principal diferença entre o canto coral e o grupo vocal diz respeito ao

número de componentes que formam cada um desses grupos. O grupo vocal é

formado por um número reduzido de vozes, geralmente sem a presença do maestro

em cena durante a performance, o que aponta para uma exigência maior de cada

cantor em relação à segurança musical, além da valorização da voz solista, visto que

em muitos momentos o cantor precisará executar sozinho uma linha melódica

independente. O coral ou coro, por sua vez, se caracteriza pela existência de um

número maior de integrantes que, de acordo com a sua extensão vocal, são

agrupados em naipes onde coletivamente executam a mesma linha melódica,

construindo assim a voz do naipe. Dessa maneira, no canto coral, a voz do naipe é o

resultado da soma de todas as vozes que o compõem, e sendo assim, eventuais

falhas individuais ou até mesmo deficiências técnicas pessoais podem ser diluídas,

tornando-se imperceptíveis na sonoridade final do naipe. Já no grupo vocal, é

comum que um único cantor seja ele próprio o naipe, precisando sustentar com

excelência a linha melódica que lhe cabe no todo musical, para manter a qualidade

da performance do grupo.

Ao longo da história da música, é possível encontrar composições que

valorizavam pequenos ensembles de cantores, em detrimento da grande massa

coral comumente conhecida. Podemos destacar entre essas composições o

Madrigal, gênero que atingiu o seu auge e foi amplamente explorado na segunda

metade do século XVI, e valorizava formações camerísticas de grupos com pequeno

número de cantores, de cinco a oito vozes.

Também na música popular brasileira é possível encontrar uma expressiva

participação de grupos vocais desde o início da chamada "época de ouro" nas

primeiras décadas do século XX. Mesmo que na história da MPB tenha existido, sem

dúvida, uma enorme valorização de cantores solistas, os grupos vocais aparecem

19

como importantes formadores da sonoridade da nascente música popular da época.

Podemos destacar, nesse período, o grupo vocal "Bando da Lua", que em parceria

com Carmem Miranda, ajudou a tornar o samba um gênero internacionalmente

conhecido.

Esses primeiros grupos vocais na maioria das vezes não possuíam estudo

musical formal, e seus cantores e arranjadores, de forma intuitiva, construíam a

distribuição das vozes no estilo "close harmony" - quando as vozes são arranjadas

em intervalos próximos, geralmente terças, e a distância entre a nota mais grave e a

nota mais aguda não ultrapassa uma oitava - sob forte influência dos grupos vocais

americanos, além de explorar a grande riqueza rítmica da música brasileira, criando

palavras e usando onomatopeias com o caráter de acompanhamento instrumental, e

realizando a harmonia com apenas três vozes.

Foi Ismael Neto, um dos fundadores do grupo vocal "Os Cariocas", que

mesmo tendo conhecimento intuitivo, revolucionou o cenário da música vocal

brasileira trazendo para a música popular a construção harmônica a quatro vozes,

alcançando uma sonoridade e apresentando uma harmonização muito aproximada

da música erudita.

Além do "Bando da Lua" e do "Os Cariocas", podemos destacar na música

popular brasileira a presença de outros grupos vocais como o "Quatro Ases e um

Coringa", "Os Tincoãs", "Demônios da Garoa", "Garganta Profunda", "BR 6",

"Quarteto em Cy", "MPB4" e o potiguar "Trio Irakitan".

2.3 O canto coletivo como prática de educação musical

Se levarmos em conta a realidade de muitos coros e grupos vocais, que na

maioria das vezes é formado por cantores amadores que não possuem formação

musical, podemos perceber que os grupos de canto coletivo, para além do objetivo

da performance artística, aparecem como ambientes de ensino e aprendizagem

musical, servindo como ferramenta de inclusão social e de integração, capaz de

alcançar diferentes públicos, desenvolvendo aspectos dos saberes da educação

musical no contexto não-formal, considerando que

20

“a educação não-formal designa um processo de formação para a cidadania, de capacitação para o trabalho, de organização comunitária e de aprendizagem dos conteúdos escolares em ambientes diferenciados.” (GADOTTI, 2005, p.3)

Com essa perspectiva, dentro de um grupo de canto coletivo podemos

alcançar todos esses parâmetros pressupostos pela educação não-formal,

capacitando os coralistas para o trabalho do canto, organizando aquela comunidade

que se propõem a cantar em conjunto. Além do mais, a prática do canto coletivo

proporciona o contato com uma série de conteúdos interdisciplinares, como fatos

históricos para contextualizar as peças do repertório desenvolvido, ou mesmo

possibilitando o contato com outras línguas e outras linguagens artísticas, ampliando

o repertório cultural dos indivíduos.

No contexto dos grupos amadores, sejam corais ou grupos vocais onde os

cantores não possuem nenhum tipo de estudo formal em música, muitas vezes o

coro “cumpre a função de única escola de música que essas pessoas tiveram”

(FUCCI AMATO, 2007, p.83). Assim, os grupos de canto coletivo, ainda que de

forma aparentemente despretensiosa, tem como característica essencial “a

musicalização daqueles que o vivenciam” (SILVA, 2014, p.73), pois constantemente,

os integrantes de um grupo vocal ou coro, são capazes de organizar e assimilar

conceitos musicais vivenciando-os de forma prática.

Além da musicalização, o canto coletivo é capaz de possibilitar o contato com

a sensibilidade humana, agindo como um local de experimentação do belo,

viabilizando uma experiência estética e o acesso ao fazer artístico, proporcionando

às pessoas a autorrealização por meio da performance musical, colocando o

indivíduo na dinâmica da apresentação pública, o que dá sentido ao trabalho

desenvolvido durante os ensaios. E ainda pela natureza coletiva dos grupos vocais

ou coros, essa prática estimula a sociabilidade e a integração de pessoas, levando o

indivíduo a “perder no momento necessário a noção egoísta da individualidade

excessiva, integrando-o na comunidade” (VILLA-LOBOS apud FUCCI AMATO,

2007, p.82) desenvolvendo assim a ideia de solidariedade humana.

Porém, os grupos de canto coletivo não servem como espaço de ensino-

aprendizagem musical somente para as pessoas que atuam como cantores.

Também os profissionais envolvidos na realização da atividade de qualquer coral ou

21

grupo vocal, como regentes e preparadores vocal, podem se utilizar desses grupos

como um ambiente de educação, especialmente ao considerarmos a educação

formal, ou seja, aquela cujos objetivos são claros, dependente de uma diretriz

educacional centralizada como o currículo, representada principalmente pelas

escolas e universidades. (GADOTTI, 2005)

Nesse contexto, os grupos de canto coletivo surgem como espaços de

educação musical que auxiliam no processo de formação de regentes e

preparadores vocais dentro dos cursos de graduação (FUCCI AMATO, 2007). Dessa

forma, os grupos vocais ou coros podem ser considerados como verdadeiros

laboratórios de atuação, contribuindo para a aprendizagem e para a prática de

futuros profissionais da área. É exatamente nesse contexto que se encaixa o Grupo

Vocal Acorde, servindo como espaço de experimentação da atuação profissional

como preparador vocal, experiência essa, que resultou no desenvolvimento desse

trabalho monográfico.

Foto 1 – Passagem de palco no Festival Paraibano de Coros, João Pessoa, 2013.

Fonte: Acervo do Grupo Acorde

22

3. CAPÍTULO II: O Grupo Vocal Acorde

Criado em maio de 1997, por um grupo de cantores e cantoras que já

atuavam como coralistas em coros na cidade de Natal, o Grupo Vocal Acorde surge

da vontade de vivenciar a performance da música vocal através de uma proposta

mais descontraída e espontânea, trabalhando o repertório da música popular

brasileira sem o rigor formal dos coros tradicionais. Nessa primeira formação,

organizado como um grupo de vozes mistas, o grupo contava com a direção musical

de Sebastião Edson e com a presença de 4 sopranos, 4 contraltos, 3 tenores e 3

baixos. Sediado na escola de música da UFRN, mesmo sem ser propriamente um

grupo de extensão da escola, o Grupo Acorde realiza sua estréia nos palcos em

novembro de 1997, na semana da música da EMUFRN.

No ano de 1998, Fabio Cruz assume a sua direção musical, e a partir daí o

grupo começa a se configurar como um grupo vocal cênico, as apresentações, além

de musicais, passam a comportar textos, figurinos, cenário e movimentação de palco

marcada, assumindo uma postura mais teatral. Também nessa época, o grupo

começa a misturar músicas diferentes em um mesmo arranjo, o que acabaria por se

tornar uma característica marcante na performance do grupo até hoje. Sob a direção

de Fabio Cruz, o Grupo Acorde realiza os espetáculos "Músicas de Bar", no ano de

2001, e "Retalhos", no ano de 2003. Aliás, nesse mesmo ano o Grupo Acorde se

torna um grupo de extensão na Escola de Música da UFRN.

Contudo, no ano de 2004, com a saída de Fabio Cruz da direção musical, o

grupo passa por um momento de grande instabilidade, chegando quase a se

desfazer. Neste momento, pela dificuldade da presença de vozes femininas nos

ensaios, o grupo resolve se renovar, e se reconfigura como um grupo de vozes

masculinas, divididas em três naipes: tenor, barítono e baixos, configuração essa

que permanece até os dias de hoje.

No ano de 2005, Andrey Azevedo assume como diretor musical, e sob sua

direção o Grupo Acorde adquire um aspecto de comédia em algumas de suas

peças, o que até então era menos evidente em seu repertório, e que também viria a

se tornar uma marca do grupo. Outra importante conquista dessa época, foi a

participação de Lenilton Teixeira como diretor e orientador cênico, com o objetivo de

23

fortalecer ainda mais a performance teatral do grupo. Também a partir desse

período, o Acorde começa a assimilar a presença cada vez maior de instrumentos

em sua performance, culminando com a formação de uma banda base, com guitarra,

teclado, baixo e percussão, para a realização de seus projetos futuros. Sob a

direção de Andrey o grupo realizou os espetáculos: "Faça você mesmo o seu grupo

vocal", de 2008; "Aniversário de Debutantes - 15 anos de Grupo Acorde", de 2012;

"E o fim do mundo chegou", de 2013; "10 anos com Andrey", de 2015; além de

participar do FIFA Fan Fest, evento organizado por ocasião do acontecimento do

mundial de futebol ocorrido no Brasil e que teve Natal como uma das cidades sedes,

no ano de 2014.

No ano de 2013 fui procurado pelo então diretor musical do grupo, Andrey

Azevedo, por ele sentir que o grupo necessitava de um melhor desempenho técnico,

me convidando para desenvolver o trabalho de treinamento vocal, buscando sanar

algumas deficiências técnicas e, dessa maneira, melhorar o resultado da

performance cantada do grupo. Iniciou-se, assim, o trabalho de preparação vocal

realizado até hoje junto ao Grupo Vocal Acorde, e que é o objeto de discussão

nessa monografia.

Nesse mesmo período, surge a parceria com o Grupo Pegadas, grupo

multidisciplinar de estudo, pesquisa e extensão da UFRN, o que resultou numa

importante estruturação, fazendo com que o Grupo Vocal Acorde se tornasse um

dos primeiros grupo da EMUFRN, senão o primeiro, a possuir uma equipe técnica de

produção composta por produtor cultural, assessor de mídia, designer gráfico,

cenógrafo e figurinista, técnico de som, entre outros, todos alunos bolsistas de

diversos cursos da UFRN, como artes plásticas, design, arquitetura, técnico de

gravação, comunicação social e ciências contábeis. Dessa forma, o Grupo Vocal

Acorde funciona como um verdadeiro laboratório de trabalho no campo da indústria

cultural, abarcando não somente a criação artística, mas praticamente todo o

mercado que surge a partir de sua realização.

No ano de 2015, ao longo do processo de montagem do espetáculo "O

Homem da Feiticeira", homenagem ao cantor e compositor potiguar Carlos

Alexandre, ocorre um momento de transição e mudança na direção do grupo. Nesse

24

período passo a assumir também a função de diretor musical, além da função de

preparador vocal.

Sob minha direção o grupo estreia o show "O Homem da Feiticeira" no final

de 2015, reapresentando o mesmo espetáculo ao longo do ano seguinte e

participando de um festival internacional de corais acontecido na cidade de Praia,

em Cabo Verde, no final de 2016. Em meados de 2017, iniciamos as pesquisas e

escolha de repertório para a criação do espetáculo "Retropicando", em

comemoração aos 50 anos do movimento tropicalista, movimento que revolucionou

a música popular brasileira, estreando esse novo show em agosto de 2018.

Atualmente, além da equipe de produção citada anteriormente, o grupo é

formado por 10 cantores – 3 tenores, 4 barítonos e 3 baixos – sem educação

musical formal. Além dos cantores, o grupo ainda conta com a participação de

quatro instrumentistas: 1 guitarrista, 1 baixista, 1 percussionista e 1 tecladista e

violonista, dos quais são 3 alunos ativos ou alunos egressos da escola de música da

UFRN, e 1 aluna do departamento de artes. A atuação profissional dos cantores

também é fora do contexto musical, sendo 3 professores universitários, 5

profissionais liberais, 1 funcionário do estado e 1 funcionário do setor privado.

Como o perfil dos integrantes do grupo é formado por cantores que não

possuem leitura musical, a dinâmica de ensaio consiste, em grande parte, na leitura

e memorização do repertório a ser trabalhado, exigindo sempre que o diretor musical

toque as melodias ao piano para que os cantores possam aprender suas partes,

dinâmica essa, aliás, que é bastante comum de se encontrar em vários grupos

corais por aí afora.

É importante dizer que o grupo funciona sempre com a colaboração coletiva,

onde todos os integrantes opinam e contribuem para o resultado final do trabalho

que está sendo desenvolvido, especialmente no que se refere à criação de cenas e

esquetes. O ambiente de ensaio é sempre muito criativo, por vezes até um tanto

caótico, mas é dessa forma que o grupo cria, e dessas brincadeiras de ensaio

surgem as ideias cênicas e até mesmo musicais que são desenvolvidas e refinadas

até o produto final.

25

Por fim, outra característica interessante na produção musical do Acorde é

que, pelo grupo apresentar essa particularidade de ser formado somente por vozes

masculinas, e trabalhar um repertório pensado, na maioria das vezes, a três vozes

(tenor, barítono e baixo), os arranjos cantados pelo grupo são compostos

exclusivamente para eles, e em alguns casos, compostos pelos próprios cantores,

de forma coletiva. Com a escassez de arranjos que atendam a realidade do grupo,

os diretores musicais, especialmente os que trabalharam com o grupo na

configuração de vozes masculinas, se viram obrigados a se tornarem também

arranjadores, buscando ampliar as possibilidades de repertório. Dessa forma, o

Grupo Vocal Acorde além de ter me propiciado desenvolver um trabalho como

preparador vocal, me estimulou também à composição, através da produção de

arranjos para o repertório do grupo, ampliando significativamente a minha

experiência musical.

Foto 2 – Show “O Homem da Feiticeira”, UFRN, 2015.

Fonte: Acervo do grupo

26

Foto 3 – ensaio na EMUFRN, 2014.

Fonte: Acervo do grupo

Foto 4 – Ensaio na EMUFRN, 2018.

Fonte: Acervo do grupo

27

Foto 5 – Apresentação CIENTEC, UFRN, 2014.

Fonte: Acervo do grupo

28

4. CAPÍTULO III: A preparação vocal

O canto é uma qualidade primária do ser humano, sendo assim, "todo aquele

que pode falar, em princípio, pode cantar" (JARABA, 1989, p.15). Contudo, a

realidade é que muitos corais ou grupos vocais são formados por pessoas que

apresentam interesse e alguma aptidão mas, em verdade, não possuem nenhuma

formação musical ou treinamento técnico vocal. Por esse motivo, a presença de um

preparador vocal na equipe de qualquer grupo vocal ou coro é fundamental não só

para o treinamento de competências técnicas que possibilitarão as ferramentas para

o desenvolvimento do repertório, mas também para o cuidado com a preservação da

saúde vocal dos cantores.

Ainda que possuindo um histórico de grande produção musical e focando

sempre na excelência da performance, esse amadorismo observado em outros

grupos corais é também a realidade do Grupo Vocal Acorde, sendo ele formado por

cantores que não possuem um estudo formal em canto e atuam profissionalmente

em outras áreas que não a música, fazendo das suas participações no grupo uma

prática diletante, o que compele ao Grupo Acorde a definição de espaço de

convivência e interação através da prática do canto coletivo e da performance

musical.

Entendemos que para a realização de um trabalho eficaz, o preparador vocal

precisa ter formação específica na área de canto, possuir conhecimentos teóricos e

ferramentas didáticas para o melhor desenvolvimento do treinamento técnico dos

cantores, de acordo sempre com o objetivo musical ambicionado pelo grupo. Assim

sendo, desde o início o repertório desenvolvido pelo Acorde foi a grande referência

para a elaboração da proposta de treinamento técnico realizado junto ao grupo,

sendo esse trabalho de treinamento de voz que passamos e relatar nesse capítulo.

Contudo, para não estender demasiadamente esse trabalho, visto que esse

relato é uma narrativa que comportará um histórico de seis anos de atividade como

preparador vocal no Grupo Acorde, pretendo não me ater aqui a detalhes muito

minuciosos, mas priorizar a exposição de conceitos técnicos de produção de voz nos

quais o trabalho se baseou, bem como dos conceitos pedagógicos e das

metodologias adotados no desenvolvimento da técnica vocal, buscando realizar o

29

relato de algumas experiências, apontando desafios e resultados obtidos ao longo

desse período.

4.1 Fisiologia da voz e Técnica Vocal

A voz é produzida a partir de um som básico, originado na laringe, ao qual

chamamos de "buzz". Este som é a vibração primária ocorrida pela aproximação das

pregas vocais, realizada através da musculatura da laringe, simultaneamente à

expulsão do ar armazenado nos pulmões. Porém, o "buzz" é um som de fraca

intensidade, e assemelha-se com o barulho de um vibrador elétrico, não parecendo

com nenhuma vogal ou consoante da nossa língua. Esse som, assim que produzido,

percorre todo o caminho do trato vocal dentro do nosso corpo, passando por

estruturas e tecidos que formam obstáculos e aberturas, até atingir o ambiente

exterior, saindo pela boca e/ou nariz, amplificando-se por meio de um processo

chamado de ressonância. Portanto, as cavidades da laringe, faringe, boca, nariz,

seios paranasais, são todas consideradas cavidades de ressonância, ou seja, atuam

como alto-falantes naturais no processo de fonação. (BEHLAU; PONTES; MORETI,

2017)

Figura 01 - Pregas Vocal (PACHECO; TUTTI, 2006, p.41)

30

Figura 02 - Trato Vocal (PACHECO; TUTTI, 2006, p.48)

Esta mecânica de funcionamento da voz se aplica tanto para a fala coloquial

quanto para o canto. Contudo, é possível observar diferenças fundamentais se

compararmos o uso da voz falada com as particularidades da voz cantada,

especialmente nos parâmetros de respiração, ressonância e projeção, articulação,

velocidade e ritmo.

Na voz falada, o uso da respiração é natural e utiliza um volume médio de ar,

já durante o canto, os ciclos respiratórios são pré-programados de acordo com as

frases musicais, e necessitam de um volume grande de ar, o que provoca o

esvaziamento quase que total dos pulmões, exigindo uma respiração treinada. Na

questão do volume de voz, a fala cotidiana, geralmente, não necessita de grande

projeção, utilizando-se de ressonância média e sem grande intensidade para a

conversação. Por sua vez, o canto exige maior projeção de voz, buscando manter o

foco ressonantal na parte superior do trato vocal, com colocação de voz alta, a

chamada "voz na máscara", além de apresentar variação constante de intensidade.

(BEHLAU; REHDER, 2009)

No que diz respeito à articulação, velocidade e ritmo, a voz da fala depende

da característica do idioma falado, onde as vogais e consoantes possuem duração

31

pré-definidas e a articulação das palavras precisa ser clara para a inteligibilidade da

língua. Porém, no ato de cantar, a voz comunica, para além das palavras,

parâmetros puramente musicais, como altura e duração. Sendo assim, a articulação

precisa privilegiar esses aspectos musicais, o que faz os cantores adequarem as

vogais, especialmente em notas agudas, para a manutenção da ressonância,

qualidade musical e afinação, articulando a emissão de acordo com o andamento

das melodias.

É notório que a voz cantada, considerando essas cruciais diferenças entre

canto e fala, exige do executante maior conhecimento e consciência do seu aparelho

vocal, das musculaturas envolvidas na fonação e no processo de respiração, bem

como da percepção das cavidades de ressonância no momento da emissão. Dessa

forma, podemos chamar de técnica vocal a competência de utilização desses

mecanismos musculares, respiratórios e ressonantais com o objetivo de otimizar o

desempenho na atividade do canto, competência essa adquirida pelo "aprendizado,

treinamento e desenvolvimento de habilidades, paciência e dedicação para alcançar

objetivos" (BEHLAU; REHDER, 2009, p.32).

Por ser a voz o resultado de uma atividade que é corporal sobretudo,

considerarmos que o instrumento do cantor é o próprio corpo (MILLER, 1996).

Assim, podemos entender a técnica vocal como uma espécie de "coreografia",

coordenando movimentos respiratórios, produção de voz e sensações de

ressonâncias. Dessa maneira,

"a pedagogia da voz pode ser pensada como uma forma de sintaxe, a capacidade de elaborar um programa complexo de ação, usando ferramentas, sinais, palavras, e coordenação motora." (MILLER, 2004, p.190)

Miller também nos mostra que o campo da técnica vocal depende de uma

conexão que integra, sequencialmente, todo um sistema estrutural (MILLER, 2004),

o que reforça o entendimento do comportamento técnico da voz como resultado de

um movimento corporal coreografado, ou seja, resultado de uma sequência de

atividades, ou movimentações, musculares. Sendo assim, ao considerarmos que a

voz é o resultado da atitude corporal de uma pessoa, e concebendo esse corpo na

perspectiva da unidade de um corpo-sujeito, ou seja, tratando esse corpo não

somente como um objeto submetido às leis mecânicas da natureza, mas também

32

como sujeito sensível, considerando suas vivências, sensações e emoções, é

possível entender que "essa condição ambígua do corpo lhe dá uma singularidade

que inclui a voz" (ALMEIDA, 2013, p.25). Desse modo, podemos afirmar que cada

indivíduo possui uma voz que é única, posto que cada corpo estruturalmente é

singular, e mais ainda, cada sujeito traz consigo memórias e emoções sentidas e

vivenciadas em seu próprio corpo, fazendo de cada indivíduo uma subjetividade

ímpar.

O treinamento técnico da voz não possui, portanto, um único caminho, nem

tampouco existe uma única técnica universal que pode ser aplicada a todas as

vozes. Muito pelo contrário, "a técnica vocal é uma questão muito individual e não se

deve pedir para que todos cantem do mesmo modo" (MILLER, 2004, p.209). Dessa

forma, para um trabalho vocal eficaz, é preciso a compreensão dessa subjetividade

de cada sujeito.

Outro ponto que precisa ser considerado, e que é bastante norteador no

processo de ensino da técnica vocal, é o repertório que pretende ser desenvolvido

pelo cantor. A música é o objetivo máximo do canto, sendo a técnica vocal a

ferramenta que possibilitará alcançar esse objetivo. Richard Miller, por exemplo,

considera que o sistema de técnica vocal e expressão artística são inseparáveis

(MILLER, 1996), ou seja, a voz precisa do conhecimento técnico para, através dele,

alcançar o maior nível de expressividade desejado na performance.

Portanto, é a partir do tipo de repertório que se pode traçar um objetivo a ser

alcançado pela voz, treinando e desenvolvendo a melhor técnica que possibilitará a

execução da melhor performance. Podemos exemplificar isso se compararmos o uso

da voz ao se cantar uma bossa nova e ao se cantar uma ária de ópera. Sem dúvida,

a ária de ópera exigirá do cantor maior alcance vocal, levando a voz a regiões

extremas, e exigindo maior projeção, consequentemente, maior volume de ar,

enquanto que a bossa nova precisará de um comportamento vocal mais "natural",

preservando uma colocação de voz mais relaxada, menos vertical e mais

aproximada da fala do cantor.

Para além dessa dualidade de universos musicais, popular e erudito, é

possível observar que, mesmo em gêneros dentro do mesmo campo musical, essa

especificidade técnica da voz se faz imperativa. Se compararmos, novamente, a ária

33

de ópera à uma canção de câmara, gênero que exige uma voz mais intimista e cheia

de nuances, mesmo sendo os dois gêneros pertencentes ao universo da música

erudita, veremos que apesar de certa equivalência técnica, ainda assim, existe uma

diferença que é estilística, e que essa diferença para ser evidenciada, precisa de um

comportamento técnico específico para cada um desses gêneros. O mesmo

acontece no universo da música popular, a voz usada para a bossa nova,

certamente, não será a mesma usada para o rock'n'roll, pois estes são gêneros

musicais que possuem estilos diferentes de comportamento vocal. Em suma, o ideal

sonoro da voz pretendida é quem determina a atitude técnica do cantor.

4.2 Referências pedagógicas e metodologia

Como colocado anteriormente, o repertório desenvolvido pelo Grupo Vocal

Acorde - repertório esse construído praticamente todo em cima da música popular

brasileira, abarcando seus diversos gêneros - foi o norteador nas escolhas

pedagógicas e na metodologia adotadas no trabalho de preparação vocal.

No chamado canto lírico, ou canto erudito, desde alguns séculos atrás, é

possível encontrar escritos, tratados e métodos de ensino de voz, com exercícios e

referências ao comportamento esperado no canto para atender as exigências

desejadas nas obras musicais de cada período, ao longo da história da música.

Contudo, no campo do canto popular, ainda hoje existe uma certa carência em

escritos acadêmicos que mostrem caminhos para a pedagogia da voz na música

popular brasileira.

Apesar da canção popular brasileira ter alcançado "relevância para se tornar

assunto de teses e dissertações, o canto popular, principal veículo dessa realização,

só agora começa a ganhar alguns poucos estudos" (MACHADO, 2012, p.14). Na

tradição do canto popular brasileiro, o culto ao talento inato sempre foi reforçado, o

que levou os cantores populares a seguirem "um caminho de aprimoramento técnico

e interpretativo ligado à tradição oral, à escuta e à percepção, e não ao estudo

formal" (MACHADO, 2012, p.22). Dessa forma, a técnica de voz no canto popular foi

construída a partir da percepção, da escuta das gerações antigas, e até certo ponto,

da imitação, prática que só começou a mudar no início dos anos de 1990, com o

34

surgimento de uma geração de cantores populares com formação técnica e musical

formal.

Por esse motivo, para a elaboração do trabalho de preparação vocal realizado

com o Grupo Vocal Acorde, foram assimilados modelos e metodologias de autores

da pedagogia vocal tradicional, com escritos majoritariamente voltados para a prática

do canto erudito, porém buscando sempre adaptar os exercícios e conceitos para o

comportamento técnico da voz na canção popular, bem como conceitos da

pedagogia coral, posto que além do desenvolvimento individual dos cantores,

buscou-se o desenvolvimento do cantar coletivo enquanto grupo vocal.

Outro importante norteador do trabalho, foram as ideias da professora doutora

Nazaré Rocha, que em sua tese de doutorado, apresenta uma proposta sobre o

ensino sensível do canto, pautado sobre os cinco saberes: o saber sentir, saber

pensar, saber criar, saber brincar e saber humanescer.

O "saber sentir" vem propor uma experimentação e sensibilização do corpo

do aluno/cantor. É a busca da conscientização do corpo através de exercícios muito

particulares, sempre focando nas características vocais de cada indivíduo,

considerando que

"no aprendizado do canto as sensações se transformam de fato num conhecimento que é construído a partir do despertar do corpo por um leque de possibilidades reais de vivências sensibilizadoras." (ALMEIDA, 2013, p.37)

Essa sensibilização deve estimular o aluno/cantor a sentir e perceber qual o

estado e o comportamento do seu próprio corpo no momento do canto, buscando,

quando necessário, novas maneiras de pensar a atitude corporal para conseguir um

novo comportamento vocal, posto que "se não houver mudança na pessoa, também

não haverá mudança na voz.."(ALMEIDA, 2013, p.39)

Essa nova maneira de pensar, o "saber pensar", surge como uma

necessidade da junção entre a forma tradicional de pensamento, e a consciência

sensível desse corpo que canta. O aprendizado do canto une os parâmetros

psicológicos racional e emocional, fundindo-os numa atitude conjunta. Portanto, ao

cantar, o aluno/cantor precisa equilibrar uma série de comportamentos mecânicos

35

corporais, como controle de respiração, vibração das pregas vocais e articulação, e

ao mesmo tempo, precisa lidar com o aspecto emocional da voz. Assim,

"por essas especificidades apresentadas, a atividade de cantar precisa tanto do pensar atrelado ao sentir; ambos precisam estar amalgamados, pois, só nesse entrelaçamento, se poderá obter a consciência do que se está fazendo" (ALMEIDA, 2013, p.58)

Cantar é mais do que alcançar a nota na afinação correta, é pensar qual o

resultado sonoro pretendemos ao realizar essa nota, qual o movimento que esse

som vai apresentar, qual desenho melódico desejamos mostrar com essa voz. Esse

tipo de pensamento recebe o nome de "gesto vocal" (DINVILLE, 1993), ou seja, é o

gesto sonoro, o movimento musical, o traço que buscamos imprimir na voz para que

ela não se restrinja apenas à altura das notas mas à intenção do som. Dessa

maneira, é pensando no design do som que se deseja emitir, que o aluno/cantor

pode sensibilizar-se na busca da melhor forma de realizar essa emissão.

A partir do momento que existe essa consciência do gesto vocal, ou seja, a

clareza de qual a forma do som pretendido, cabe ao aluno/cantor entender como

realizar esse som. É aí que surge o "saber criar", cujo o principal personagem é a

figura do professor, que precisa instigar o aluno à criatividade, estimulando-o a

experimentar novos caminhos para alcançar novos comportamentos no seu corpo, e

consequentemente, na sua voz.

Essa consciência criativa do professor deve direcionar o aluno para "explorar

caminhos e possibilidades para a resolução dos problemas que se lhes apresentem,

seja de natureza técnica, musical e ou expressiva no seu estudo" (ALMEIDA, 2013,

p.83). Portanto, o professor deve provocar no aluno/cantor a ideia da criatividade e

experimentação, tendo em vista que, para além de saber o que fazer com a sua voz,

o aluno/cantor precisa saber como fazer. Dessa maneira,

"fica clara a motivação para o saber criar na atividade de ensino do canto, pois é pela necessidade de estratégias que possam ajudar o aluno a encontrar a sua voz autêntica, a entender os conteúdos mais agilmente e a expressar-se artisticamente de forma plena que o professor deve sentir-se instigado a incentivá-lo a desenvolver um corpo criativo."(ALMEIDA, 2013, p.85-86)

36

O desenvolvimento desse corpo criativo, capaz de criar novos caminhos para

vivenciar a atividade do canto, passa pela exigência da ludicidade na performance,

surgindo assim o "saber brincar". O lúdico é inerente à arte, é através da brincadeira

que a criatividade artística se manifesta, especialmente em se tratando do canto,

visto que a música, enquanto jogo, é capaz de transportar

"tanto o público como os intérpretes para fora da vida quotidiana, para uma região de alegria e serenidade, conferindo mesmo à música triste o caráter de um sublime prazer. Por outras palavras, tem o poder de 'encantar' e de 'arrebatar' tanto uns como outros. Seria em si mesmo perfeitamente compreensível, portanto, englobar no jogo toda espécie de música." (HUIZINGA, 2010, p.48)

Com essa visão, todo ensino técnico pautado somente na repetição

exaustiva, sem considerar a consciência do corpo para a sensibilização do fazer

artístico, atentando para o prazer lúdico e para a importância do brincar, está se

esquivando do compromisso com a formação do cantor enquanto artista, posto que,

"o fenômeno da ludicidade se nos apresenta como um meio para esse fim, pois, é ao

mesmo tempo estratégia de ensino e resultado do ensino ao ser manifestado na

performance." (ALMEIDA, 2013, p.99)

Nessa perspectiva, o trabalho de preparação vocal se utilizou de exercícios

lúdicos, que podem comumente restaurar uma "vivência infantil" da voz, como

vibração labial com sonorização em "brr", ou exercícios de soltura de língua como

"blá blá blá". Todos esses exercícios remetem a um aspecto da brincadeira infantil, e

por isso mesmo, algumas vezes, acabam por gerar um certo incomodo em cantores

adultos. As crianças, normalmente, ao fazerem essas vocalizações, não se

preocupam com outra coisa que não a brincadeira, sem julgamentos de valor, sem

se preocuparem se estão certas ou erradas, apenas buscando o prazer do brincar.

Porém os adultos tendem a apresentar algumas travas e inibições, que podem

impedi-los de experimentar essas brincadeiras de maneira espontânea, causando

um certo bloqueio. Contudo, quando se é um cantor, é preciso

"redescobrir o que é voltar a ser uma criancinha, livre de todas as inibições. Você deve restabelecer contato com o seu ser instintivo para que possa afastar os hábitos que impedem o aprendizado de como sua voz se comporta naturalmente." (BROWN, 1996, p.3)

37

Através da brincadeira podemos investigar e descobrir como é o

comportamento da voz autêntica de cada cantor, possibilitando o uso dessa voz da

forma mais natural possível, tirando o maior proveito de suas potencialidades, e

conseguindo importantes conquistas na consciência e possibilidade de

expressividade, fundamentados no prazer de cantar. (ALMEIDA, 2013, p.101)

Dessa maneira, o trabalho de preparação vocal realizado junto ao Grupo

Acorde teve como principal ferramenta metodológica a sensibilização do

aluno/cantor buscando desenvolver o "saber humanescer", estimulando no indivíduo

o pensar sensível, o espírito lúdico e a criatividade, para que ele pudesse "ser ele

mesmo, assumindo sua identidade vocal e expressiva, e, em consequência,

tornando-se também um sujeito autônomo no seu fazer artístico."(ALMEIDA, 2013,

p.120)

É importante lembrar que o trabalho de preparação vocal buscou não

somente desenvolver a voz de cada cantor individualmente, mas possibilitar o

desenvolvimento da sonoridade do grupo enquanto conjunto, atentando para as

diferenças entre o canto solista e o canto coral, considerando que

"Ao contrário do canto solo, o canto coral dá pouca ênfase ao formante do cantor, neutralizando as idiossincrasias individuais dos cantores para criar uma mistura de vozes. A voz coral é um som cultivado, específico para cada coro, e para cada regente." (SMITH; SATALOFF. 2006, p.182)

Dentro desse pensamento, a sensibilização e a percepção da sonoridade do

grupo foram constantemente estimuladas, buscando atingir um resultado de unidade

vocal, entendendo que mais do que vários cantores soando ao mesmo tempo, cada

um a sua maneira, era preciso atentar para a unidade do conjunto, e dessa forma

alcançar a voz do grupo através de uma sonoridade coesa.

4.3 A realização do trabalho de preparação vocal

A partir do convite realizado pelo então diretor do grupo, Andrey Azevedo,

comecei a atuar como preparador vocal junto ao Grupo Acorde em 2012, na época

ainda como aluno do bacharelado em canto na UFRN, vendo nessa oportunidade a

possibilidade de desenvolver um trabalho que estava intimamente ligado ao que eu

38

estudava na graduação. Nessa época, o grupo era formado por cinco cantores, e ao

longo dos anos novos cantores entraram e saíram, tendo passado pelo grupo,

durante todo esse tempo que estou presente como preparador vocal, cerca de

quatorze cantores, contando o grupo hoje com a participação de dez cantores.

Nesse início, apesar de já ter assistido a apresentações do Acorde, eu não

conhecia bem as vozes dos cantores, e não sabia exatamente qual era a proposta

musical do grupo. Foi a partir do primeiro contato com as vozes, durante os ensaios,

que as estratégias para o treinamento vocal dos cantores foram surgindo,

especialmente a partir de necessidades técnicas apontadas pelo próprio diretor

musical, que muitas vezes não sabia como orientar os cantores para que eles

conseguissem realizar vocalmente as ideias musicais propostas para a performance.

Logo de início, pude observar que os encontros eram divididos em dois

momentos: no primeiro era realizado alongamento corporal seguido de aquecimento

vocal; no segundo momento ocorria o ensaio propriamente dito, com a leitura e

memorização das melodias de cada voz e o treinamento das músicas do repertório.

Essa maneira de estruturar o ensaio é bastante comum para quem participa de

grupos corais, sendo reproduzida praticamente em todos os coros.

Este momento inicial, com alongamento e aquecimento vocal, é uma parte

que precisa ser valorizada no ensaio de qualquer coral ou grupo vocal, pois é

preciso preparar o corpo para o canto, aliviando tensões acumuladas ao longo do

dia, relaxando especialmente áreas importantes para o cantor como ombros, nuca,

pescoço e maxilar (PAPAROTTI; LEAL, 2011). Em seguida ao alongamento e

relaxamento corporal, os exercícios de aquecimento vocal aparecem como

"A transição da fala para o canto [...] estabelecendo uma atmosfera para o aprendizado, identificando fadigas físicas, estimulando a consciência e centrando a concentração". (SMITH; SATALOFF, 2006, p.153)

Porém, muitas vezes os exercícios propostos se detinham somente à

exigência do aquecimento vocal, e não funcionavam como treinamento técnico das

vozes. Dessa maneira, uma das primeiras medidas tomadas como preparador vocal

foi reorganizar o momento do aquecimento dividindo-o em quatro partes: iniciando a

primeira parte sempre com o alongamento e relaxamento corporal; inserindo na

segunda parte exercícios de respiração e sustentação de sopro; trabalhando na

39

terceira parte a emissão de voz a partir de exercícios de vibração; e por fim, na

quarta parte, realizando exercícios de vocalização que buscassem desenvolver

aptidões técnicas tais como flexibilidade vocal, afinação, colocação alta de voz,

homogeneidade de timbre, entre outras necessidades observadas no grupo. Assim

sendo, através dos exercícios de aquecimento, além dessa transição entre canto e

fala, busquei incentivar o pensamento-sensível (ALMEIDA, 2013), estimulando a

consciência do corpo para o canto, atentando para quais musculaturas eram mais

exigidas para a voz cantada, qual a melhor maneira de respirar para realizar

determinado som, possibilitando que a voz pudesse "despertar" não somente para o

ensaio, mas para a maneira de cantar como um todo.

A escolha desses exercícios de vocalização destinados ao treinamento

técnico propriamente dito, era feita a partir das dificuldades apresentadas pelos

cantores de acordo com o repertório que estava sendo trabalhado, prática que ainda

hoje é existente na dinâmica de ensaio e na escolha de exercícios para o grupo.

Dessa forma, o treinamento técnico não acontecia somente no momento do

aquecimento vocal, mas era comum que ao longo do ensaio, diante de uma

passagem musical de maior dificuldade, ocorresse novamente o retorno ao exercício

inicialmente proposto, ou ainda, a realização de um novo exercício que buscasse

superar qualquer dificuldade apresentada pelas vozes, procedimento que também é

realizado atualmente.

Quanto a respiração dos cantores, pude observar que a ginástica respiratória

era ineficiente, e em alguns casos até inexistente. Apesar dos dez cantores que

atualmente permanecem no grupo terem tido uma considerável experiência como

coralistas em outros corais antes de participarem do Grupo Acorde, todos eles,

alguns mais que outros, apresentaram certa dificuldade em executar frases mais

longas e em sustentar notas mais demoradas sem perder a afinação.

Acredito, que a memória da "respiração coral" seja o principal motivo para

isso. Ao se cantar em um coro, o cantor pode sustentar uma nota pelo tempo que lhe

for confortável, e ao longo de uma frase "alguns cantores respiram enquanto outros

cantam" (SMITH; SATALOFF, 2006, p.161) possibilitando assim uma continuidade

sonora, sem interrupções, a essa alternância de respiração chamamos de respiração

coral. Porém, no contexto de um grupo vocal, onde as vozes estão mais expostas,

40

uma boa ginástica respiratória é fundamental para a execução dos fraseados e para

a sustentação de notas longas, já que qualquer interrupção sonora é facilmente

percebida.

Os exercícios de respiração escolhidos, buscaram trabalhar os dois

parâmetros da ginástica respiratória: a inspiração e a expiração. No momento de

inspirar, era possível notar que muitos cantores pegavam mais ar do que precisariam

para cantar, enrijecendo o corpo por consequência do volume exagerado de ar nos

pulmões. Para evitar essa tensão desnecessária, foi pedido que eles evitassem

puxar o ar em excesso, pois na inspiração correta, mais do que inalar uma grande

quantidade de ar, é preciso deixar que ele "entre nos pulmões devido à elasticidade

na região do diafragma, à abertura da glote e vias aéreas superiores e à postura

correta" (COELHO, 1999, p.36), estimulando a consciência de que a pouca

quantidade de ar é suficiente para a execução do canto. Já no momento da

expiração, busquei orientar para que eles pudessem atentar para a existência de

uma pressão abdominal que é responsável pela sustentação do sopro. Durante a

expiração, é preciso realizar o retardo da volta do diafragma para o seu ponto de

repouso através da manutenção da pressão abdominal, possibilitando o apoio, ou

seja, o suporte de uma coluna de ar que sustentará a voz. Apesar do apoio ser um

conceito e uma experiência subjetiva, procuramos interpretá-lo como um "estado de

tonicidade muscular em que a tensão é agradável e elástica, dando ao músculo um

estado de prontidão para a finalidade a que se destina". (COELHO, 1999, p.37)

A partir desses conceitos de ginástica respiratória, desde o início do trabalho

de preparação vocal fiz uso, e ainda hoje utilizo, o seguinte exercício de respiração:

numa postura ereta e confortável, os cantores devem inspirar na forma da vogal 'u',

ou como costumo dizer, utilizando um canudinho imaginário, e no decorrer dessa

inalação, devem imaginar que o ar, ao entrar, se direciona para um ponto logo

abaixo do umbigo, construindo uma sensação de pressão abdominal. Feito isso, o

próximo passo é progressivamente soltar o ar armazenado produzindo o som de 's',

ajudando na manutenção da pressão através do apoio realizado pela musculatura

do reto abdominal, e primando pela constância e homogeneidade na realização

desse sopro. Sempre termino esse exercício pedindo para que os cantores

memorizem qual sensação corporal experimentaram ao sustentar esse sopro,

41

especialmente na região abdominal, pois é essa mesma sensação que devem sentir

ao cantar.

Outro comportamento vocal apresentado pelos cantores, que também remete

a uma memória coral vivida anteriormente por eles, era o hábito de modificar o

timbre da voz pensando em recuar o som. Segundo foi relatado pelos próprios

cantores, essa maneira de pensar o canto foi bastante praticada pela maior parte

deles nas suas experiências anteriores como coralistas. Sem dúvida, essa ideia de

"timbrar" o naipe, é bastante presente na maneira de construir uma homogeneidade

na sonoridade coral. Porém, nosso entendimento é de que a mistura de vozes na

unidade sonora de um coro, se constrói através da colocação alta da voz, do

controle de intensidade, e especialmente pelo gesto vocal, e não recuando o som e

modificando o timbre da voz.

Para corrigir essa ideia, o exercício proposto ao grupo foi o seguinte: cada

cantor, individualmente, deveria sustentar por 4 tempos cada uma das vogais, "a" "é"

"ê" "i" "ó" "ô" "u", e ao longo da sustentação íamos trabalhando a colocação da voz

alta, experimentando as ressonâncias superiores, e evitando qualquer recuo

desnecessário da voz. Novamente aqui é preciso atentar para a individualidade da

técnica vocal, no sentido que nem tudo que era orientado para um cantor servia para

outro. Enquanto que para alguns era pedido que pensasse a voz mais na frente,

com uso de maior ressonância na cavidade nasal, para outros, que já apresentavam

bastante frontalidade na emissão, era orientado que pensasse um som mais

redondo, explorando um ponto de ressonância mais intermediário, menos frontal.

Após essas adequações dos timbres individuais, era preciso promover um

encaixe das vozes em conjunto, criando uma sonoridade uniforme, uma unidade de

grupo. Para desenvolver a equalização das vozes, buscamos trabalhar o uníssono,

pois "cantar em uníssono é a escola preparatória para o canto polifônico e requer o

máximo em termos de liberdade e relaxamento" (EHMANN apud SMITH;

SATALOFF, 2006, p.182). Dessa forma, o mesmo exercício que era usado para

treinar a colocação das vozes individualmente, também serviu para equilibrar o

conjunto das vozes soando em uníssono.

Outro importante exercício, e também muito recorrente nos ensaios, é a

sustentação de tríades - acorde formado por três notas empilhadas em intervalos de

42

terça - durante 4 tempos, buscando equalizar o peso das vozes de forma a

conseguir alcançar a "cor" do acorde, comparando o equilíbrio harmônico dos

intervalos às cores. A ideia de gesto vocal, entendido aqui como "a representação da

imagem acústica do som" (DINVILLE, 1993, p.43), é fundamental na realização

desses exercícios de colocação de voz, pois antes de conseguir realizar um som, é

preciso saber qual som se deseja realizar, qual o formato desse som, para onde

esse som caminha, qual comportamento esse som apresenta. Assim sendo,

constantemente se estimulou nos cantores a consciência do “design” do som que

eles estavam produzindo.

Foi possível observar que a ideia de gesto vocal ajudou imensamente ao

grupo, fazendo-os perceber que, muitas vezes, colocavam força demais no som, não

atentando para o equilíbrio que precisa existir entre as vozes. Assim, costumo dizer

que eles deixaram de cantar ao mesmo tempo e passaram a cantar em conjunto, ou

seja, atentos para que as vozes, apesar de realizarem diferentes melodias,

acontecem na mesma intenção, buscando a harmonia e o equilíbrio entre as notas.

Entendemos que a elasticidade vocal é o resultado da integração da ideia do

gesto vocal, juntamente com a correta colocação da voz e adequação de timbre

aliados à ginástica respiratória e consciência da sensação de apoio. É uma equação

complexa onde cada fator é determinante no resultado do produto sonoro da voz.

Pudemos constatar que muitas vezes existia uma superconcentração em

movimentar a laringe no momento de cantar, o que acabava enrijecendo a voz ao

invés de permitir que ela agisse livremente.

Para tentar corrigir esse excessivo controle da laringe, foi sugerido a

realização do exercício de glissando: os cantores deveriam realizar o intervalo de 8ª

justa glissando a voz do grave até o agudo e deslizando novamente até a nota

grave. O objetivo desse exercício é liberar a laringe "que é um órgão móvel e deve

estar livre para executar movimentos de elevação ou abaixamento que estão

relacionados com as flutuações da linha melódica" (DINVILLE, 1993, p.31),

possibilitando um comportamento mais elástico da voz no momento do canto.

Os problemas de desafinação percebidos no grupo, acredito eu, são todos

decorrentes exatamente desses comportamentos equivocados de respiração,

colocação de voz e ajuste de timbre. No entanto, a desafinação traz consigo fatores

43

que ultrapassam as competências técnicas individuais e entram no campo do

psicológico, apontando traços emocionais como ansiedade, insegurança, medo de

se expor, entre outros. Este trabalho não tem o intuito de rotular qualquer perfil

psicológico observado nos cantores, mas é preciso considerar essas características

emocionais pois elas podem "gerar as mais variadas dificuldades no ato de cantar."

(SOBREIRA, 2003, p.49). Por esse motivo, mais uma vez é preciso reforçar que o

trabalho de preparação vocal buscou desenvolver o ensino do canto na perspectiva

do corpo-sujeito, considerando não somente o material físico oferecido pelas vozes,

mas a estrutura emocional demonstrada por cada um dos cantores, entendendo que

a prática do canto "se apresenta repleta de princípios desafiantes, e até

desestruturantes que se adentra rumo ao encontro com a voz autêntica" (ALMEIDA,

2013, p.121).

Assim sendo, o treinamento do canto é uma prática que pode afetar e até

mesmo revelar questões pessoais e de fundo emocional no indivíduo, por esse

motivo foi percebido uma certa resistência, ainda que inconsciente, por parte de

alguns cantores, e até relatado por alguns deles um certo incômodo com o processo

de treinamento vocal, afinal, por ser a voz o reflexo de uma identidade da pessoa,

quando mexemos no comportamento dessa voz "existe a possibilidade de também

se destravar alguns sentimentos profundos e muito subjetivos." (SOBREIRA, 2003,

p.117)

Sendo o Grupo Vocal Acorde um grupo cênico, o trabalho de preparação

vocal se via por vezes instigado a se adaptar às diversas movimentações presentes

em algumas peças do repertório apresentado pelo grupo. Constantemente

buscávamos identificar, nas coreografias e movimentações realizadas pelo grupo,

gestos ou movimentos corporais que pudessem reforçar a ginástica respiratória ou

mesmo a ideia do gesto vocal. Lembro aqui, especialmente de uma passagem da

música "Planeta Água", onde alguns cantores encontram-se agachados atrás de um

pano segurado por dois deles, e em um dado momento da canção, rapidamente se

colocam em pé, como se saltassem para fora da água em movimento de nado

sincronizado. No mesmo momento desse salto deveriam cantar o refrão da canção:

"Terra, planeta água". Atentar para esse impulso corporal e sobretudo para o apoio

das pernas para a realização do movimento, comparando-o ao impulso respiratório e

ao salto vocal que também era realizado no mesmo momento foi altamente

44

importante para o desempenho da performance, buscando mostrar que corpo e voz

realizavam exatamente o mesmo movimento.

A partir do ano de 2015 passei a assumir também a função de diretor musical,

e dessa forma, além do trabalho de aquecimento e técnica vocal passei a ser

responsável pela condução do ensaio como um todo, tocando as melodias das

vozes ao piano e ensaiando o repertório. Nesse período o grupo se encontrava em

meio ao processo de montagem do espetáculo "O Homem da Feiticeira".

Ao passar a conduzir os ensaios, o trabalho de treinamento técnico de certa

forma se intensificou, especialmente porque, ao tocar as melodias das vozes,

buscávamos ir construindo a ideia do gesto vocal ainda na fase de memorização das

notas, apontando desde o primeiro momento para o comportamento desejado das

vozes nessas melodias. Com isso ganhamos maior celeridade no desenvolvimento

do repertório, que anteriormente acontecia de forma mais lenta já que primeiro eles

aprendiam as melodias com o antigo diretor para só então, depois de memorizadas,

realizarmos os ajustes técnicos das vozes. Esse espetáculo foi um importante marco

no trabalho de preparação vocal do grupo, não somente pela resposta positiva do

público, mas pela percepção por parte do próprio grupo que reconheceu no

processo de construção do show um grande avanço nos recursos técnicos nas

vozes dos cantores.

Ao assumir a direção musical do grupo me deparei com uma questão que é

crucial na prática de qualquer grupo vocal ou coral: a escolha do repertório. Para

além de atender somente a um desejo de realizar determinada peça, ao escolher um

repertório é preciso considerar todo "um fator determinante das características

técnicas e do nível de exigência do conjunto" (JARABA, 1989, p.133). Dessa

maneira, não convêm selecionar arranjos que exijam uma maturidade técnica que o

grupo ainda não alcançou, pois além de inviabilizar a preparação do repertório,

certamente provocará frustração nos cantores.

Como dito anteriormente no terceiro capítulo desse trabalho, os arranjos

cantados pelo Grupo Acorde são todos exclusivamente compostos para eles. Assim

sendo, ao assumir a direção musical passei também a compor arranjos para ampliar

o repertório do grupo. No último espetáculo, "Retropicando", estreado em agosto de

2018, das quatorze músicas que compõem o show, doze são arranjos meus, e foram

45

construídos para serem tecnicamente viáveis no grupo, considerando as

características das vozes dos cantores.

Ciente de que o treinamento técnico é um processo contínuo, acreditamos

que qualquer cantor deve sempre continuar o aprofundamento nessa construção de

sua voz, assim sendo não acreditamos que um cantor possa dar por concluído o seu

treinamento vocal, pois a música e o canto exigem constante aperfeiçoamento e a

arte é uma eterna busca pelo novo. Contudo, penso que conquistamos importantes

avanços para o desenvolvimento técnico do Grupo Vocal Acorde, buscando uma

performance construída dentro de suas limitações, mas sempre pautada na verdade,

e talvez por essa razão, tendo boa aceitação do público.

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Foto 6 – Show “Retropicando”, UFRN, 2018.

Fonte: Acervo do grupo

47

5. Considerações Finais

Este escrito monográfico teve por objetivo relatar a experiência vivenciada ao

longo de seis anos como preparador vocal junto ao Grupo Vocal Acorde, trabalho

que foi fundamental na construção de ferramentas para o ensino do canto,

possibilitando uma rica vivência enquanto instrutor de técnica vocal, desenvolvendo

no autor desse relato uma série de saberes para a prática como professor de canto.

Presente desde os tempos remotos, o cantar coletivo ainda hoje existe na

humanidade assumindo diversas significações e agindo como forma de expressão e

prazer, atuando como princípio organizador e fundamentando o caráter social do ser

humano. Contudo, apesar da natureza coletiva da prática de um grupo vocal, é

preciso considerar a individualidade de cada voz. Assim sendo, quando alguém

canta, sua “voz é um meio pelo qual a pessoa se posiciona no mundo” (SILVA,

2014, p.72). Ao se perguntar a um cantor porque ele canta em coro, diversas

subjetividades aparecem em sua resposta, pois o próprio som musical "é um objeto

subjetivo, que está dentro e fora, não pode ser tocado diretamente, mas nos toca

com uma enorme precisão" (WISNIK, 1989, p.28). Por esse motivo, as vezes é

bastante difícil explicar com palavras o "complexo entrelaçamento de sensações

pessoais que qualquer coralista experimenta ao longo de sua atividade em um grupo

coral". (JARABA, 1989, p.15)

Os grupos de canto coletivo, sejam eles coros ou grupos vocais, aparecem

como espaços de interação de indivíduos através da música, fomentando o

desenvolvimento da sensibilidade humana, agindo como ambiente de

experimentação do belo, possibilitando a muitas pessoas o acesso ao fazer artístico

e à experiência estética através do prazer de cantar, desenvolvendo o senso de

coletivo e de pertencimento. E além disso, outro aspecto importante é a

autorrealização através da execução musical, por meio da performance, expressão

pública do trabalho desenvolvido, encontrando na plateia o sentido pela prática

realizada.

48

Esses ambientes de grupos corais ou grupos vocais funcionam como espaços

vivos de educação musical, tanto para as pessoas que integram um grupo como

cantores, quanto para os profissionais que desenvolvem o trabalho.

No contexto das universidades, é possível considerar o ambiente de um grupo

de canto coletivo como uma espécie de laboratório, auxiliando no processo de

aprendizagem de estudantes de graduação em formação para se tornarem

profissionais como regentes ou preparadores vocais. Essa foi a realidade encontrada

no Grupo Vocal Acorde, funcionando como um lugar de experimentação não

somente para a atuação como preparador vocal ou diretor musical, mas para uma

série de outras atividades como produtor cultural, designer gráfico, cenógrafo e

figurinista, técnicos de som, assimilando praticamente todas as atividades

profissionais que envolvem a indústria cultura, e possibilitando o enriquecimento na

formação de vários estudantes de diferentes cursos.

Já em se tratando das pessoas que integram o grupo como cantores, outro

importante parâmetro que podemos observar no ambiente do canto coletivo, é a

presença de aspectos educativo-musicais, pois, ainda que de forma aparentemente

despretensiosa, o canto em conjunto possui como característica essencial a

musicalização dos indivíduos que o vivenciam. Assim sendo, os integrantes de um

grupo vocal ou coro, são capazes de organizar e assimilar conceitos musicais

vivenciando-os de forma prática, fazendo desses grupos importantes espaços de

ensino-aprendizagem de música em contexto não-formal.

Ao considerarmos a realidade dos grupos amadores, onde os cantores não

possuem nenhum tipo de estudo formal em música, o ensino de técnica vocal nesse

contexto aparece como um importante instrumento mediador na capacitação das

pessoas para o desenvolvimento de uma performance de qualidade, sendo

fundamental o treinamento técnico individual para o bom resultado da sonoridade do

conjunto.

Acreditamos que a subjetividade de cada pessoa é um fator determinante no

ensino de técnica vocal, posto que, por ser a voz o resultado sonoro de uma atitude

que é acima de tudo corporal, o caminho ideal para o ensino do canto é sempre

considerando as vivências e sensações experimentadas pelo indivíduo, sentidas no

seu próprio corpo. Dessa maneira, o uso de conceitos pedagógicos e referências

49

metodológicas precisa sempre ser adaptados ao contexto de ensino, levando em

conta as características de cada aluno/cantor, suas dificuldades e facilidades, bem

como o objetivo musical a ser desenvolvido, entendendo o repertório como

importante norteador do processo de treinamento técnico da voz.

Diferentemente de um instrumentista, que realiza um som musical a partir da

interação com um instrumento a sua frente, ao cantar o indivíduo não está somente

alcançando notas que se apresentam fora de si, mas expressando à sua maneira,

melodias, ritmos, e entonações internalizadas, fazendo do sujeito o próprio

instrumento. Por essa razão, por ser a voz o resultado de um corpo-sujeito, a

educação vocal para além de promover o desenvolvimento de ferramentas técnicas

para o canto, estimula também uma nova forma de se perceber enquanto indivíduo,

mudando a forma como o cantor se relaciona consigo e com o mundo. (ALMEIDA,

2013)

Por esse motivo, o trabalho de preparação vocal desenvolvido junto ao Grupo

Acorde, buscou a sensibilização dos cantores através do "saber humanescer"

(ALMEIDA, 2013), entendendo o caráter estético do canto, pensando a voz como

resultado sonoro de um corpo-sujeito, considerando suas subjetividades e buscando

a conscientização de diversos elementos que constituem a própria expressão

humana. Nessa perspectiva, o ensino de técnica vocal ultrapassa o conteúdo

puramente musical e atinge o campo do autoconhecimento, promovendo um acordar

do sujeito não só enquanto cantor mas enquanto pessoa.

50

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