142

Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC
Page 2: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

,

HISTORIA DA FILOSOFIA

DO DIREITO

Tradução e Notas de João Baptista da Silva

~~~~ ~~~1n

~

Belo Horizonte - 2010

Page 3: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

-

Catalogação na Fonte da Biblioteca da Faculdade de Direito da UFMG e ISBN

Departamento Nacional do Livro

D367h

DeI Vecchio, Giorgio, 1878

História da filosofia do direito I Giorgio DeI

Vecchio ; tradução de João Baptista da Silva.

Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006. p. 284.

ISBN: 85-88466-33-3

1. Direito - Filosofia - História 2. Direito

comparado 1. Silva, João Baptista da, trad. lI.

Título

CDU: 340.12(091)

COORDENAÇÃO

Dilson Machado de Lima

REVISÃO

Maria de Lourdes Costa Queiroz - Tucha

EDITORA

Editora Líder Rua Loreto, 25 - São Gabriel CEP:

31.980-550 - Belo Horizonte - Minas Gerais Tel./Fax: (31) 3447-0375 [email protected]

Copyright @ Dilson Machado de Lima Júnior - 2010 Licença

editorial para Livraria Líder e Editora Ltda. Todos os direitos reservados.

IMPRESSÃO

Promove Artes Gráficas - (31) 3486-2696 - [email protected]

Nenhuma parte desta edição pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios ou formas, sem a expressa autorização da Editora.

Impresso no Brasil

Printed in BraziJ

Prefácio do autor

Na falta de uma ampla e completa história da Filosofia

do direito (falta que se sente não só em nossa literatura, mas

também na estrangeira, não obstante a grande variedade de

monografias), foi-me proposto, faz tempo, publicar, em edição

separada, esta exposição resumida, que corresponde à parte

histórica das Lições, do mesmo autor, na sétima edição que

vem à luz ao mesmo tempo.

É óbvio que um livro de tão pequenas dimensões, como

este, não poderia preencher toda aquela enorme lacuna.

Todavia (segundo observação do editor e de não poucos

estudiosos), este compêndio poderá servir para integrar os

cursos de Filosofia do direito, que contêm apenas uma

exposição sistemática da matéria, e também para oferecer

esboço e subsídio aos cultores de outros ramos mais ou menos

afins do saber, que desejariam, todavia, conhecer as principais

tendências do pensamento antigo e moderno sobre os problemas

do direito e do Estado. I

A exposição histórica vem acompanhada,

freqüentemente, de observações e apreciações críticas que,

todavia, não prejudicam, segundo a visão do autor, a maior

objetividade possível e a exação nas referências das várias

doutrinas. Mas a história do pensamento filosófico, e

especialmente do pensamento filosófico-jurídico, não pode ser

mera série de dados; deve, sim, ser um

I A publicação da parte histórica das Lições em volume separado ocorre já em algumas edições estrangeiras (por exemplo, na espanhola de 1930).

Page 4: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

--

repensamento deles. Por essa mesma razão, o propósito deste

livro será plenamente atingido somente se o leitor quiser

retirar deles significado por suas próprias reflexões e juízos.

Sumário

---- INTRODUÇÃO... ................................................................. 11

A FILOSOFIA GREGA ....................................................... 13

Os primórdios... ............................................................... .13

Os sofistas ...................................................................... ..14

Sócrates ........................................................................... .16 Platão ........................................................ " ....................... " ......................... .19

Aristóteles ....................................................................... .23

A escola estóica ............................................................... .30

A escola epicuréia ........................................................... .32

Os juristas romanos .......................................................... 34

O CRISTIANISMO E A FILOSOFIA DO DIREITO

NA IDADE MÉDIA .................................................................... .41

A Patrística ...................................................................... 4 3

A Escolástica ................................................................... .45

Os escritores gibelinos e a doutrina contratualística ....... 49

O Renascimento .............................................................. .57

A FILOSOFIA DO DIREITO NA IDADE MODERNA ..... 61

Maquiavel e Bodin .......................................................... .61

Grócio e outros escritores de seu tempo .......................... 65

Hobbes.............................................................................. 75

Espinosa ........................................................................... 79

Pufendorf ....................... ..., .............. ... .......... , ............. ...81

Locke e outros escritores ingleses .................................... 84 Leibniz, Thomasius e Wolf ................................................ 89

Page 5: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

Vico e Montesquieu......................................................... 96

Rousseau e a Revolução Francesa ................................. 103

Kant ........ """"""""'" ......................................................... ... ........ ..1 09

Fichte e a escola do direito racional .............................. 125

O historicismo ............................................................. ..131

O historicismo filosófico, ou idealismo objetivo

(Schelling, Hegel) ......................................................... .132

O historicismo político, ou a Filosofia da Restauração .138

O historicismo jurídico, ou a escola histórica do direito 141

VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA

IT ÁLIA, NOS TEMPOS RECENTES ............................. 149

1. Da época de Vico a 1870 ............................................... 149

2. De 1870 até aos nossos dias ........................................... 168

VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA

FRANÇA, NA BÉLGICA, ETC., NOS TEMPOS

RECENTES (SÉCULOS XIX-XX) .................................. .197

VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA

INGLATERRA E NOS ESTADOS UNIDOS, NOS

TEMPOS RECENTES ..................................................... .209

VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA

ALEMANHA, NA ÁUSTRIA E NA SUíÇA, NOS

TEMPOS RECENTES .............................................................. .229

VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA

ESPANHA, EM PORTUGAL, NA AMÉRICA LATINA,

NA ROMÊNIA, NA HUNGRIA, NA GRÉCIA, NA

HOLANDA, NA ESCANDINÁ VIA, ETC .............................. 243

VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NOS

PAÍSES ESLAVOS (POLÔNIA, RÚSSIA,

CHECOSLOV ÁQUIA, ruGOSLÁ VIA, BULGÁRIA) ........... 269

"Compreender que há outros pontos de vista é o

início da sabedoria."

Campbell

Page 6: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

INTRODUÇÃO

É vantajoso conhecer a história de toda ciência. Mas a

importância do conhecimento histórico revela-se espécialmente nas

disciplinas filosóficas, tanto que, nestas, não se entende o presente

sem o passado; o passado revive no presente. Os problemas filo- .

sóficos hoje discutidos são, no fundo, os mesmos que se

apresentaram, ainda que apenas em forma embrionária, aos

pensadores da antiguidade.

O exame dos sistemas filosóficos oferece-nos como uma

série de. experimentos lógicos, nos quais podemos logo ver a quais

conclusões se chega partindo de certas premissas, e delas podemos

tirar partido na direção de um mais perfeito sistema, evitando-lhe os

erros já cometidos e tirando proveito dos progressos atingidos.

A história da Filosofia é ainda um meio de estudo e de pes

- quisa que nos ajuda grandemente em nosso trabalho; oferece-nos

um acumulado de observações, de raciocínios, de distinções, que

será impossível a um único indivíduo reunir, como seria impossível

a todo artífice inventar, ele próprio, ex novo, todos os instrumentos

de sua arte.

A história da Filosofia do direito, especificamente, nos

mostra, antes de tudo, que em todo tempo se meditou sobre o

problema do direito e da justiça, o qual, em verdade, não foi

artificiosamente inventado, mas corresponde a uma necessidade

natural e constante do espírito humano.

Todavia, a Filosofia do direito, em sua origem, não se

apresenta autônoma, mas mesclada à Teologia, à Moral, à Política;

sóaos poucos se operou a distinção.

11

Page 7: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Nos primeiros tempos a confusão é completa. Aparece-nos de

modo característico no Oriente, em cujos livros sacros são tratados

em conjunto a cosmogonia, a moral e os elementos de várias outras

ciências, teóricas e práticas. Neles domina o espírito dogmático; o

direito é concebido como um comando da divindade e como

superior ao poder humano, e, por isso, não como objeto de discussão

ou de conhecimento, mas apenas de fé. Assim, as leis positivas

consideram-se indiscutíveis, e inquestionável o poder existente,

como expressão da divindade.

Nesse estágio próprio dos povos orientais, o espírito crítico

não tinha ainda despertado. Deve-se, todavia, recordar que alguns

desses povos, especialmente os hebreus, os chineses e os indianos,

deram valiosos contributos aos estudos filosóficos, sobretudo no que

concerne à Moral.

2

-

FILOSOFIA GREGA

Os primórdios

A Grécia é a terra clássica da Filosofia, que assume nela um

desenvolvimento próprio. Em um primeiro momento, a mente grega

não se envolveu, porém, com problemas éticos e muito menos

jurídicos, mas considerou apenas a natureza física. Assim, a Escola

Jônica, a mais antiga (VI século a.c.), tentou a explicação dos

fenômenos do mundo sensível reduzindo-os a certos tipos. Essa

Escola, à qual pertenceram, dentre outros, Tales, Anaximandro,

Anaximene, Heráclito, Empédocles (o qual formulou a teoria dos

quatro elementos: água, ar, fogo e terra), não teve, porém,

importância para o nosso estudo.

Outra Escola quase contemporânea da Jônica, a Eleática,

representada por Xenofonte, Parmênides, Zenão, de Eléa, e Melisso,

de Samo, tentou o mesmo problema, de modo mais profundo do que

aquela, no ponto em que, elevando-se a um conceito metafísico,

sustenta que o ser é uno, imutável, eterno.

Para ela há uma só distinção: o que é e o que não é; em

seguida, negação, pois, do conceito de movimento e de vir-a-ser,

que seria uma ilusão dos sentidos. Não seria possível um nascer, um

morrer, um vir-a-ser.

Maior nexo com a nossa disciplina teria uma outra Escola

- a Pitagórica.

Conhecemos Pitágoras imperfeitamente, seja quanto à

sua vida, seja quanto à sua doutrina. Nascido em Samo, em

582 a.c., transferiu-se para a Itália Meridional, para Crotona,

onde fundou uma seleta sociedade de adeptos da doutrina que

professava. To

13

Page 8: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRJA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Os Sofistas

Diálogos de Platão, nos quais Sócrates disputa freqüentemente com

os Sofistas). Homens de grande eloqüência e bravura dialética,

percorriam cidades, sustentando em seus discursos teses assaz

disparatadas; compraziam-se em se opor às crenças dominantes,

muitas vezes suscitando escândalo público em razão de seus

paradoxos.

É notável, sobretudo, o fato de que, então, começou-se a

discutir, a criticar o princípio da autoridade, a abalar a fé tradicional,

a despertar a atenção popular, isso em um período de discórdias

internas, em que se encontrava a Grécia. O trabalho dos sofistas

relaciona-se com essa efervescência.

Os Sofistas eram individualistas e subjetivistas. Ensinavam

que cada homem tem um modo próprio de ver e de conhecer as

coisas, do que resultava a tese de que não pode existir uma

verdadeira ciência objetiva e universalmente válida. Célebre é o dito

de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas" (DáV'tÚ)v

XPll/lá'tú)v /lÉ'tpov av8pÚ)7to<;). Isto é: todo indivíduo possui

uma visão própria da realidade.

Em sentido bem diverso foi dito, por exemplo, por Kant, que

a mente humana é a medida de todas as coisas. Kant entendia a

mente humana como necessariamente idêntica em todos os

indivíduos, e, por isso, afirmar que ela seja a medida de todas as

coisas não destrói a validade universal da ciência.

As formas subjetivas, segundo Kant, apreendem, de certa

forma, a realidade, de maneira que toda experiência está por ser

feita (mas estas formas são comuns a todos os sujeitos pensantes).

Para os Sofistas, ao contrário, existem apenas as opiniões

divergentes de cada individuo.

Negando os Sofistas toda verdade objetiva, negam igualmente

que exista uma justiça absoluta; também o direito, por si, é relati vo,

é uma opinião mutável, a expressão do arbítrio e da força: 'justo é o

que favorece o mais poderoso". Assim, Trasímaco se pergunta se a

Justiça é um bem ou um mal, e responde: "A justiça é, em realidade,

um bem alheio, uma vantagem para quem manda, um dano para

quem obedece".

davia, esse aristocrático sodalício, de caráter moral e religioso,

sujeito a uma forte disciplina, durou pouco tempo porque, tendo

surgido dissidência política, teve de refugiar-se em Metaponto, onde

morreu por volta de 500 a.c.

Parece que Pitágoras não escreveu. Seu ensinamento foi

apenas oral. Suas teorias nos são conhecidas, em parte, por

fragmentos de seus discípulos e, em parte, pelas contestações de

Aristóteles. Especialmente importante é o escrito de Filolau,

seguidor de Pitágoras e contemporâneo de Sócrates, com o título

DEpt qJvcrEú)<; (Da natureza). Desse escrito chegaram-nos

notáveis fragmentos.

O pensamento fundamental da doutrina pitagórica é que a

essência de todas as coisas é o número; ou seja, os princípios dos

números são os princípios das coisas. Esse conceito matemático

abriu ensejo a considerações astronômicas, musicais e também

políticas. Na verdade, a Justiça é, para os pitagóricos, uma relação

aritmética, uma equação ou igualdade; daí a retribuição, a troca, a

correspondência entre o fato e o seu tratamento ('to

avn7tE7tov8ó<;). Neste conceito (que se aplica também, mas

não somente, à'pena) está o germe da doutrina aristotélica da

Justiça.

A Escola que por primeiro se decidiu a enfrentar os

problemas do espírito humano, o problema do conhecimento e o

problema ético foi a dos Sofistas, no VO século a.C.

Os Sofistas, cujos principais foram Protágoras, Górgias,

Hípias, Calixto, Trasímaco, Pródico, etc., nascidos na Grécia ou na

Magna Grécia (Itália Meridional, Sicília), costituíam um grupo de

pensadores e oradores que, mesmo ensinando doutrinas às vezes

contrárias, tinham muitas características comuns.

Conhecemos suas doutrinas não diretamente, mas mediante os

escritos de seus adversários (fontes principais são, para nós, os

14 15

Page 9: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Como se vê, os Sofistas eram moralmente céticos, e antes

negadores ou destruidores que construtores. Com tudo isso, tiveram

o grande mérito de ter desviado a atenção sobre dados e problemas

inerentes ao homem, ao pensamento humano. A própria dúvida a

respeito deles, levada à consciência pública, foi fecunda e benéfica,

tendo projetado o espírito crítico sobre muitos problemas que antes

não tinham sido postos para o pensamento.

Desta forma, enquanto os filósofos da Escola J ônica tinham

considerado apenas a natureza exterior, os Sofistas voltaram-se para

a consideração de problemas psicológicos, morais e sociais.

Foram eles que, por exemplo, puseram abertamente o

problema se a justiça tinha um fundamento natural, quer dizer, se o

que é justo por lei, ou, como diremos, por direito positivo, seja

também justo por natureza (antítese entre VÓ!lCú ÕíKalOV = justo por

lei, e <púcrtt ÕíKalOV = justo pela natureza), problema ao qual

responderam em geral negativamente, observando que, se

existisse um . justo por natureza, todas as leis seriam iguais.

Mais importante ainda que esta resposta, porém, foi a

colocação mesma do problema; em verdade, depois da solução

negati va tentada pelos Sofistas, outros filósofos puderam tentar uma

solução afirmativa para ela.

Os Sofistas foram, em suma, o fermento que deu causa à

grande Filosofia idealística grega, uma tlorescência do pensamento,

da qual talvez nenhum outro povo pôde vangloriar-se. Essa

tlorescência resume-se, principalmente, nos nomes de Sócrates, de

Platão e de Aristóteles, que brilharam soberanamente na história do

pensamento.

Sócrates

O grande adversário dos Sofistas foi Sócrates, que viveu em

Atenas, de 469 a 399 a.c. Ele foi mais o sábio da vida que o filósofo

teórico.

6

- HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Também quanto a Sócrates estamos em condição análoga

àquela em que nos vemos perante os Sofistas, isto é, não temos

escritos autênticos dele; conhecemo-Io apenas por meio de

referências de outros, porém de seus admiradores (ao contrário do

que se deu com os Sofistas, cujas teorias nos foram transmitidas tão

só por seus adversários), a saber: dos Diálogos, de Platão, e dos

Memoráveis, de Xenofonte.

Os Diálogos platônicos são, de longe, a fonte mais

importante, mas neles o pensamento de Sócrates é muito superado

pelo do grande discípulo, com o qual se confunde. Isto

especialmente nos últimos diálogos. Os primeiros (Apologia,

Eutifrone, Crito, etc.) reportam mais fielmente as palavras de

Sócrates, as quais Platão recolheu de viva-voz.

Sócrates disputava de maneira característica, devolvendo

muitas perguntas e trazendo conclusões simples das respostas;

afirmava nada saber, bem diversamente dos Sofistas, que

presumiam saber tudo; golpeava-os com ironia, e os confundia,

interrogando

os (ironia = pergunta) sobre questões aparentemente simples,

porém, no fundo, muito difíceis, e deste modo constrangendo-os

indiretamente a dar-lhe razão.

Em um ponto Sócrates avizinhou-se dos Sofistas, a saber: no

haver dirigido o seu estudo ao homem. Sabe-se que a sua divisa era

a inscrição délfica: "Conhece-te a ti mesmo" (yv&8t crwuróv).

Ninguém mais que Sócrates insistiu na necessidade de conhecer a si

mesmo. Mas nesse estudo chegou ele a conclusões opostas às dos

Sofistas. Mostrou que cumpre distinguir o que é impressão dos

sentidos, onde domina a variedade, o arbítrio individual, a

instabilidade e a acidentalidade subjetiva, daquilo que é produto da

razão, onde encontramos conhecimentos necessariamente iguais

para todos.

Assim, é preciso remontar dos sentidos à unidade conceitual,

racional. Sócrates ensinava a inquirir o princípio da verdade. Saber e

operar significa para ele uma coisa só, como ciência e virtude, já que

esta não é senão a aplicação daquela. A virtude é a

verdade conhecida e aplicada.

17

Page 10: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

HISTORlA DA l'lLOSOHA DO DIRElTO

GIORGIO DEL VECCHIO

Isto que se afmna do saber em geral vale também para o saber

jurídico. Sobre cada coisa devemos saber ver a universalidade.

Aqueles que vêem a variedade das coisas justas em cada tese ou

norma jurídica, mas não a justiça em si, não são filósofos

(q:nÀócroq>Ot = filósofos), mas q>lÀóÕOçOt = amantes da

glória) isto é, não amantes da sabedoria, mas da opinião da

nomeada. Sobre as contradições do mundo empírico, objeto da

opinião, está a unidade do mundo inteligível, objeto da ciência.

Filosofia é justamente o amor à ciência.

Desta maneira, Sócrates deu os primeiros acenos de um

sistema filosófico idealístico, mesmo não o construindo, como fez,

depois, Platão. Ensinou o método do filosofar, com especial atenção

para a Ética, reagindo contra o ceticismo prático dos Sofistas, por

dirigir-se para o bem; ensinou a respeitar as leis (que os Sofistas

haviam ensinado a desprezar), e não só as leis escritas, mas também

aquelas que, mesmo não escritas, valem, como dizia, igualmente,

em toda parte, e são impostas aos homens pelos deuses. Assim

Sócrates afirmou a sua fé em uma justiça superior, por cuja validade

não é necessária uma sanção positiva, nem uma formulação escrita.

A obediência às leis do Estado é, pois, em todos os casos,

para Sócrates, um dever. O bom cidadão deve obedecer também às

leis más, para não encorajar o cidadão perverso a violar as boas.

O próprio Sócrates pôs em prática esse princípio quando,

acusado de haver introduzido novos deuses e de ter corrompido a

juventude, e, tendo sido condenado à morte por esses pretensos

delitos, quis que se executasse a condenação, e enfrentou

serenamente a morte, da qual tinha podido escapar.

A acusação de querer introduzir novos deuses, já acenada por

Aristófanes nas Rãs, tinha sido possível porque Sócrates diziase

inspirado por uma di vindade (õat/-lwv = divindade), que não era outra

que não a sua consciência; e tal atitude, que parecia contrária à

religião dominante, serviu de pretexto para seus inimigos.

O modo sereno e sublime com que encarou a morte toma

ainda mais admirável a sua figura e faz dele um precursor dos outros

mártires do pensamento. Por seu ensinamento, com o qual pre

tendeu procurar os princípios racionais do agir, Sócrates

merece ser considerado um dos principais (se não

absolutamente o primeiro) entre os fundadores da Ética.

Platão

As obras do grande discípulo de Sócrates, Platão (427-347

a.c.), escritas em forma dialogal, apresentam o mestre discutindo

com seus discípulos e com Sofistas, seus adversários, de modo que

o inteiro sistema de Platão vem expresso aparentemente por

Sócrates. Este, porém, não é o seu construtor. Sócrates iniciou na

especulação filosófica, mas não produziu ele mesmo um completo

sistema. O Sócrates de Platão não é, pois, o Sócrates histórico, mas,

em grande parte, o próprio Platão.

Das doutrinas deste último não podemos tratar senão

enquanto contempla mais especialmente a nossa disciplina.

Faremos um resumo dos dois diálogos Politéia ou República

(melhor se traduziria "Estado"), e Nó/-lOt, ou "Leis", aos quais

pode-se acres

centar como terceiro, intermediário entre os dois, o intitulado

TIoÀtnKÓç; (= O homem político)

O mais importante é o primeiro, no qual Platão apresenta

completamente a sua concepção ideal do Estado. Quer ele considerar

a justiça no Estado, porque, como ele diz, aí a justiça se mostra mais

claramente, sendo escrita em caracteres grandes, enquanto em cada

homem é escrita em caracteres pequenos.

Para Platão, o Estado é o homem em grande, isto é um

organismo perfeito ou, antes, a mais perfeita unidade: um todo

formado pelos vários indivíduos, e fmnemente constituído, como um

corpo é formado de muitos órgãos, que, juntos, tomam possível a

vida de

les. Assim no indivíduo, como no Estado, deve reinar alguma

harmonia, que se obtém pela virtude. A Justiça é a virtude por

excelência, enquanto esta consiste em uma relação harmônica entre

as várias partes de um todo.

1

9 .8

Page 11: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

A Justiça exige que cada um faça o que lhe cabe ('tá Éamoü

1tpá't'tEtV). Platão traça com cuidado o paralelo entre o Estado e o

indivíduo e o faz também nos particulares, dando à sua concepção

base psicológica. Três partes ou faculdades existem na alma do

indivíduo: a razão que domina, a coragem que atua, o senso que

obedece. Assim, no Estado distinguem-se três classes: a dos sábios,

destinada a dominar; a dos guerreiros, que devem defender o

organismo social; a dos artífices e agricultores, que devem nutri-lo.

Como o indivíduo é dominado pela razão, o Estado é pela classe que

representa justamente a sabedoria, isto é, pelos filósofos.

A causa da participação e da submissão do indivíduo ao

Estado é a falta de autarquia, isto é, a imperfeição do indivíduo, a

sua insuficiência em si mesmo. O ser perfeito que basta a si mesmo,

que tudo absorve e tudo domina, é o Estado. O fim do Estado é

universal, compreende nele, por isso, suas atribuições, tanto quanto

a vida de cada um. O Estado tem por fim a felicidade de todos

mediante a virtude de todos. Note-se que, pela Filosofia grega

clássica, felicidade e virtude não são termos antitéticos, mas

coincidentes, porque a felicidade é a atividade da alma segundo a

virtude, isto é segundo a sua verdadeira natureza.

O Estado, segundo Platão, domina ainda a atividade humana

em todas as suas manifestações; a ele compete promover o bem e

todas as suas formas. O poder do Estado é ilimitado, nada é

reservado exclusivamente ao arbítrio dos cidadãos, mas tudo está

sob a competência e ingerência do Estado. Esta concepção

absolutista é oposta àquela que foi, depois, sustentada por outros

filósofos, segundo os quais existem limites determinados para a

ação do Estado (Estado de direito: Kant).

A concepção platônica é, de resto, a dominante no mundo

helênico. Desta maneira, o Estado tem, antes de tudo, segundo os

gregos, a função de educador. E no diálogo da República

encontramos cumpridas dissertações sobre este tema.

20

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

São meios de educação, para Platão, sobretudo a Música (que

compreende a primeira instrução literária), e a Ginástica. A

Música gera uma disposição do ânimo apta ao acolhimento do bom

e do belo. Em seguida, a Matemática (compreendida a

Astronomia); segue, depois, para os mais capazes, o ensino das

outras ciências e da Filosofia.

Platão ocupa-se especialmente da preparação dos cidadãos

para a vida pública. Os indivíduos melhores deverão chegar ao

governo da coisa pública mediante gradual seleção e aplicada

educação, e só depois dos cinqüenta anos de idade, dedicando-se

exclusivamente a essa função, que é a mais alta entre aquelas do

cidadão.

Nesta concepção, o elemento individual é de todo sacrificado

ao social e ao político. Falta inteiramente a idéia de que todo

indivíduo tenha certos direitos próprios, originários. O Estado

domina de modo absoluto.

Para tomar mais legítima e estreita a estrutura política, Platão

suprime as entidades sociais intermediárias entre o indivíduo e o

Estado. Desta maneira, ele chega a sustentar a abolição da

propriedade e da faIllilia, ou seja, a comunhão dos bens e dos

haveres de

modo a formar uma só faIllilia, para que resulte inteira e perfeita a

unidade orgânica e a harmonia do Estado. Isto, porém, vale apenas

para as duas classes superiores (ou seja, aquelas que participam

mais diretamente da vida pública). Estamos ainda bem distantes das

modernas concepções comunistas.

De certo modo, a personalidade do homem não é

adequadamente reconhecida por Platão. Em vão, por exemplo, se

buscaria em Platão uma condenação da escravidão. Os escravos

não

estão incluídos nem mesmo nas três classes postas por ele para

exercitarem as funções do Estado, do que se vê quanto erram

aqueles que costumam considerar a teoria platônica ligada à do

socialismo hodierno.

Platão foi movido a construir seu Estado ideal apenas com

preocupações éticas e políticas, nunca econômicas.

2]

Page 12: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Estes, em resumo, os conceitos principais formulados

por Platão no diálogo da República.

O diálogo das Leis, composto mais tarde, quando Platão

era mais que setenário, tem caráter di verso do precedente,

porque não traça ele um ideal puro, mas, ao contrário,

considera a realidade histórica nos seus caracteres

contingentes, e mostra-nos freqüentemente um admirável

senso de experiência prática.

No diálogo da República, Platão tinha expressado a

regra de que os sábios governariam segundo a sua sabedoria.

Na verdade, se supomos que a sabedoria domina o

mundo, as leis são supérfluas (cf. sobre isto o Político,

294/299 e). Mas, se consideramos a prática e a natureza

humana em concreto, vemos a necessidade delas. O diálogo

das Leis põe exatamente a questão do que idealmente deveria e

do que acontece na vida, e trata largamente do problema da

legislação.

Os princípios fundamentais da República mostram-se,

não

obstante, os mesmos também no diálogo das Leis. Platão dá ao

Estado uma função educativa, quer as leis acompanhadas das

exortações e dissertações que lhe mostram os fins.

Nas leis penais, tem-se um escopo essencialmente

curativo. Platão considera os delinqüentes como doentes (pois

que, segundo o ensinamento socrático, nenhum homem é

voluntariamente injusto); a lei é o meio para cuidar dele; a

pena, a sua medicina.

Mas, em razão do delito, também o Estado é, em certo

modo, doente, donde, se a saúde do Estado o exige, isto é,

quando se trata de um delinqüente incorrigível, o delinqüente

deverá ser eliminado ou suprimido para o bem comum.

(Convém notar, a este propósito, a diferença entre a

concepção de Platão e a da moderna Escola de Antropologia

criminal; esta considera a delinqüência como um produto da

degeneração física, enquanto que, para Platão, o delinqüente

é, intelectualmente, um débil; e sua enfermidade é aberração,

ignorância do verdadeiro, isto é, da virtude, que é o

conhecimento do vero.)

N o diálogo das Leis, Platão demonstra um maior respeito

para com a personalidade individual (sempre, porém, apenas dos

homens livres, excluídos os escravos). A família e a propriedade nos

aparecem mantidas, e não mais sacrificadas a uma sorte de

estatismo, como na República. Mas a autoridade do Estado

permanece enorme e absorvente, por exemplo, no que concerne

àrepartição da propriedade (onde há divisão dos cidadãos em

diversas classes segundo o censo), à formação dos matrimônios e

àvida conjugal (sujeita sempre a uma rigorosa vigilância), à

atividade musical e poética (também essa regulada com precisão,

em razão de fins educativos), à religião e ao culto, etc.

Quanto à forma política, Platão critica tanto a monarquia

quanto a democracia, na qual uma parte dos cidadãos comanda e

outra serve; e propõe uma espécie de síntese, vale dizer, um governo

misto, com vista especialmente ao regime de Esparta, em que, ao

lado das duas formas, havia o Senado e os Éforos.

Temos afirmado que no diálogo das Leis existe uma notável

base histórica (há, por exemplo, uma exposição maravilhosa sobre a

gênese do direito), e aparece uma consciência da realidade empírica

muito maior que no da República. Também este, porém, onde o

Estado aparece como pura concepção ideal, não falta uma conexão

histórica, que é dada exatamente pelapólis grega, representada nos

seus traços essenciais e ao mesmo tempo idealizada.

Platão visava reagir contra o ceticismo dos Sofistas e as

tendências demagógicas do seu tempo, afmnando que só os

melhores deveriam governar, e para impedir a dissolução da coisa

pública. Deve-se reconhecer também que a sua teoria política teve,

ainda, um intento prático e uma referência às condições históricas

da sua idade.

Aristóteles

Aristóteles (384/322 a.c.), nascido em Estagira, foi discípulo

de Platão por bem vinte anos e, mais tarde, preceptor de Ale

22 23

Page 13: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

xandre Magno. Quando este subiu ao trono, Aristóteles fundou sua

escola em Atenas, no Ginásio Liceu (dedicado a ApoIo

AÚKElOÇ).

Tratou o estagirita de quase todos os ramos do saber, e

muitas ciências pode-se dizer que começaram com ele. Todavia,

tendo grande parte de seus escritos andado perdidos, não se pode

determinar até que ponto valeu-se ele das perquirições de outrem.

O caráter do seu gênio é diverso do de Platão. Platão, por sua

natureza, mais especulativo; Aristóteles, mais inclinado à

observação dos fatos. Porém, em questões cardeais da Filosofia, ele

não se distancia muito de seu mestre, e é equivocado apresentá-Ios

como adversários e antagonistas, como às vezes se faz. É verdade

que Aristóteles refuta expressamente algumas teorias de Platão.

Temse mesmo acenado também para discórdias pessoais que se

sabe existiram entre mestre e discípulo. Mas, provavelmente, se

exagerou sobre este ponto, e se formaram lendas. Deve-se

reconhecer que também Aristóteles foi essencialmente metafísico e

idealista.

Também a respeito deste filósofo deveremos limitar-nos ao

exame das doutrinas que concemem à Filosofia do direito. As obras

mais importantes são, por isso, a Política e a Ética. Desta têm-se

três redações: Ética a Nicômaco, Ética Eudemia e a também dita

Grande moral ou magna moralia, que em muitas partes se

equivalem. Apenas a primeira (Ética a Nicômaco) é certamente

obra de Aristóteles, enquanto a Eudemia é provavelmente obra de

Eudemo,

seu aluno, e a Grande Moral é um extrato das duas precedentes. A

Política (IToÀ.t'nKá), em oito livros, não chegou a completar-se.

Outro escrito, sobre Constituições (IToÀ.t'"CElm), que

continha a descrição de 158 constituições, perdeu-se em grande

parte (recentemente encontrou-se importante fragmento da

Constituição dos Atenienses).

Como para Platão, também para Aristóteles o sumo bem é a

felicidade produzida pela virtude. O Estado é uma necessidade; não

é simples aliança (O'U~I.taxía), isto é, associação temporal feita para se

alcançar qualquer fim particular, mas é uma união orgânica

24

-- HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

perfeita, que tem por finalidade a virtude e a felicidade universal; é

uma comunhão necessária., tendente ao escopo da perfeição da

vida.

O homem é um animal político (ç<úov nOÀ.t'nKóV), isto é,

chamado pela sua própria natureza à vida política; e o Estado

logicamente existe antes dos indivíduos, tal como o organismo

existe antes de suas partes. Vale dizer: como não é possível

conceber, por exemplo, uma mão viva separada do corpo, assim não

pode o indivíduo, propriamente, pensar sem o Estado.

O Estado regula a vida dos cidadãos por intermédio das leis.

Estas dominam toda a vida, porque o indivíduo não pertence a si,

mas ao Estado. O conteúdo das leis é a justiça, e desta Aristóteles

elaborou profunda análise. O princípio da justiça é a igualdade, a

qual vem aplicada de vários modos.

Aristóteles distingue, a seguir, a justiça em várias espécies. A

primeira entre elas é a justiça distributiva ('"Cà ôíKmov Év '"Catç

ôwvoJlmç, '"Co ÔWVE~ll'nKÓV), que se aplica na repartição das

honras e dos bens, e visa a que cada um dos consociados dela receba

uma porção adequada ao seu mérito (Ka'"C' àçíav).

Se, pois - aduz Aristóteles - as pessoas não são iguais,

também não terão elas coisas iguais. Com isto, evidentemente, não

se faz mais que reafirmar o princípio da igualdade, pois que ele seria

violado em sua função específica, se se desse igual tratamento a

méritos desiguais. A justiça distributiva consiste pois em uma

relação proporcional, que Aristóteles, não sem algum artifício,

define como uma proporção geométrica (YEW~E'"CptK~ àvaÀ.oyta).

A segunda espécie de justiça é a corretiva ou igualadora, que

também se pode dizer retificadora ou sinalagmática, isto é, re

guladora das relações mútuas ('"Cà Êv '"Colç cr~vaÀ.À.áy~a<H

ÔlOp8w'nKÓV). Também aqui se aplica o princípio da igualdade,

mas em forma diversa daquela vista antes; pois aqui se trata só de

medir impessoalmente o dano ou o proveito, isto é, as coisas e as

ações no seu valor objetivo, considerando-se como iguais os termos

pessoais. Uma tal medida tinha, segundo Aristóteles, o seu próprio

tipo na proporção aritmética (dpt8~lltK~ ávaÀ.oyÍa).

25

Page 14: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Esta espécie de justiça tende a fazer que cada uma das

duas partes que se encontre em uma relação venha a encontrar-

se, em relação à outra, em uma condição de paridade; de modo

que nenhuma tenha dado nem recebido a mais nem a menos.

Daí a definição desta forma de justiça como o ponto

intermédio ou o meio entre o dano e a vantagem. Estes termos

vão, porém, em sentido lato, aplicando-se não só às relações

voluntárias ou contratuais, mas também àquelas que

Aristóteles chama involuntárias (âKOÚcnCX), e que nascem do

delito, mesmo que, porém, a seguir, se exija certa equiparação, vale

dizer, exata corespondência entre o delito e a pena.

A justiça corretiva (igualitária ou retificadora) vale, pois, para

toda sorte de troca e de interferência, de natureza ci vil ou penal.

A respeito, sempre segundo Aristóteles, que, todavia, não

desenvolve aqui muito claramente o seu pensamento, faz-se logo

ulterior subdistinção.

Ajustiça corretiva ou igualitária pode mostrar-se sob dois

aspectos: enquanto determina a formação das relações de troca

segundo certa medida, e se apresenta, então, como justiça

comutativa, ou enquanto tende a fazer prevalecer tal medida no

caso de controvérsias, com a intervenção do juiz, e se apresenta, aí,

como justiça judiciária.

Em matéria de delitos, a justiça corretiva exercita-se de

forma necessária, imediatamente, na forma judicial, porque, aí, se

tratata, necessariamnente, de reparar, contra a vontade de uma das

partes, um dano advindo injustamente. Ao invés, em matéria de

permutas ou de contratos, aquela justiça oferece normas, antes de

tudo, aos próprios contratantes, e a atuação corretiva do juiz pode

também não ser necessária.

Aristóteles preocupou-se com a dificuldade de aplicação das

leis abstratas aos casos concretos e indicou um corretivo para a

rigidez da justiça: a eqüidade, critério de aplicação da lei que

permite adaptá-Ia a cada caso, temperando-lhe a dureza.

26

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Para tornar claro este conceito, ele equipara a equidade a uma

certa medida (régua lésbia*), feita de uma substância flexível, que

permitia seguir a sinuosidade dos objetos a medir.

Assim, as leis são formais, abstratas, esquemáticas. Sua justa

aplicação exige certa adaptação. Esta adaptação é constituída da

equidade, que, segundo Aristóteles, pode chegar, nos casos não

contemplados propriamente pelo legislador, até a sugerir novas

normas.

Quanto às relações entre o Estado e os indivíduos, enquanto

Platão queria afastados os graus intermediários, absorvidos nele,

Aristóteles os conserva, concebendo assim o Estado como a mais

elevada síntese da convivência, mas síntese que não elimina os

agregados menores, como a família, mesmo a tribo, ou os vilarejos (KéD~CXt).

Do primeiro agregado, a fanulia, passa-se ao segundo, a tribo,

ou vila. Em seguida, a reunião das KW~CXt dá lugar à 7tóÀtç, ou

seja, ao Estado grego (Note-se que a pólis grega é uma unidade

política mais reduzida do Estado moderno).

A consideração daqueles graus intermédios de convivência

demonstra uma melhor concepção histórica em Aristóteles do que

em Platão. Aqueles agregados são como as diversas etapas para

formar o Estado.

A abolição da fanulia e da propriedade, concebida por Platão,

encontra em seu discípulo uma oposição e uma confutação veemen

* N. T. - Régua lesbiana - Define-a Larousse como regle de plomb qui pouvait se plier pour prendre

le contour dês pierres à surface courbe ou brisée = "régua de chumbo que podia dobrar-se

para tomar o contorno das pedras de superfície curva ou fragmentada" (GRAND diccionaire

universal du XIXême siêcIe. Paris, 1865, tome treiziême, p. 856). A régua lesbinana é

tomada, aqui, em sentido intelectual, no campo das idéias, mais pelas suas propriedades que pela figura em sua materialidade. Tal como a régua, que amolga ao ser aplicada a

superfícies sinuosas, a eqüidade representa o amolgamento (adaptação) da conduta do juiz

para atender a peculiaridades do caso que examina. Mas, por que lesbiana? Parece que a

razão deve ser buscada na idéia de adaptação, presente na eqüidade e, também, na coisa,

lesbianismo. Estarei certo ou obrando em fantasia?

27

Page 15: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

teso Desse contraste revela-se o temperamento diverso dos dois

grandes filósofos: ao idealismo absoluto, puramente especulativo de

um, opõe-se o espírito observador do outro, que busca nos próprios

fatos sua relativa razão, e os graus de seu sucessivo

desenvolvimento.

A farrulia tem como elementos o homem, a mulher, os filhos

e os servos, uma sociedade estabelecida perpetuamene pela

natureza. Da união de várias farru1ias surge a vila, ou a comuna

(KWfll1); da reunião de várias comunas, o Estado, que, ele só,

possui a plena autonomia administrativa. Este é, portanto, o

fim das outras comunidades dado pela natureza. Para não

precisar da sociedade deve

rá ser ou mais, ou menos que um homem, um animal, ou um

deus.

Aristóteles observa o fenômeno da escravidão, e também

buscajustificá-Io demonstrando como os homens que são

incapazes de se governarem deviam ser dominados. Alguns

homens afirma ele - são nascidos para a liberdade; outros, para a

escravidão. Tenta ainda provar com razões de índole prática a

utilidade da escravidão.

O Estado, na concepção aristotélica, tem necessidade de

uma classe de homens dedicada às ocupações materiais, que

sirva a outra classe, de condição privilegiada, permitindo a ela

atender a formas superiores de atividade, especialmente à vida

pública. Cumpre salientar que, então, a escravidão era

geralmente considerada como necessidade para o Estado

(Note-se que também o Estado romano tinha uma de suas

bases nessa instituição. Pense-se, por exemplo, nas grandes

obras públicas construídas pelos escravos. De mais a mais, a

possibilidade de os cidadãos participarem livremente da vida

pública, e de se dedicarem às letras e às ciências, dependia,

em parte, da escravidão. Esta era um efeito, considerado

legítimo, da conquista militar. Muitos dos escravos mais

cultos, especialmente gregos, desempenhavam funções

nobres, ajudando também aos seus donos naquilo que dizia

respeito aos seus conhecimentos. Sabe-se que muitos escravos

em Roma eram amanuenses e professores muito apreciados, e,

ainda, adidos às numerosas bi

bliotecas, especialmente ao tempo do Império. Talvez

possamos, então, compreender, até certo ponto, como

Aristóteles considerava necessária a escravidão a qual- dizia -

se poderia abolir "se a lançadeira corresse por si sobre o

tear"*

Tais palavras demonstram como existia nele uma

profunda compreensão da função econômica da escravidão no

seu tempo. Na verdade, para a abolição da escravatura, nos

tempos que se seguiram, contribuiu também o progresso da

indústria, a invenção da máquina, etc.

Todavia, podendo-se admitir, em certas fases históricas,

a relativa razão da escravatura - e, neste ponto, são apreciáveis

as razões de Aristóteles -, não é admissível a sua tese, quando

pre

tende dar para ela uma justificativa absoluta, uma vez que,

por si mesma, a escravidão choca-se contra o direito à

autonomia, que todo homem possui naturalmente; e não se

pode sustentar que exista uma categoria de homens destinada

pela natureza a servir.

Enquanto Platão havia engendrado um ideal de Estado,

Aristóteles, ao contrário, contempla, antes de tudo, a realidade

dos Estados existentes, desenvolvendo uma série de análises.

De sua coleção de Constituições políticas infelizmente a

maior parte se perdeu, e apenas, como dissemos, foi

encontrada a parte referente à Constituição dos Atenienses,

traduzida em italilano por Ferrier, se bem que a Política

contenha também considerações de

caráter geral. Nela Aristóteles destaca o nexo das instituições

políticas com as condições históricas e naturais; não, sem

dúvida, o melhor absoluto, mas o relativo, e examina quais os

governos mais adequados em relação aos vários elementos de

fato. Acena ele, * N. T. - Aristóteles era o filósofo, mas não era profeta. O que lhe parecia impossível, e era,

mesmo, no seu tempo (a lançadeira correr sozinha sobre o tear), o gênio inventivo de

Ark Wrigst (Sir Richard - 1732/1792) fez realidade em 1769 quando, retomando experiências de James Hargreaves, patenteou o invento de uma máquina de tecer

que substituiu o braço escravo, movida, inicialmente, pela força eqüestre, depois pela força

hidráulica, abrindo a Revolução Industrial do século XVIII.

28 29

Page 16: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

por primeiro, para uma distinção entre os Poderes do Estado

(Executivo, Legislativo e Judiciário). A Constituição política é o

ordenamento desses Poderes. Segundo o poder supremo diga

respeito a um, a alguns, a todos, Aristóteles distingue três tipos de

constituições: monárquica, aristocrática, policial, que considera

igualmente bons, desde que quem tenha o poder o exercite para o

bem

de todos (KOWOV crtl.upÉpov). Mas, se o poder é exercitado por

quem governa para utilidade própria (t8wv crtl.UpÉpov), aquelas

formans normais de governo degeneram, dando lugar, respectiva

mente, à tirania, à oligarquia, à democracia (que melhor se diria

hoje demagogia, nesse sentido).

A escola estóica

A escola estóica liga-se à escola cínica, mas é uma

sublimação da idéia fundamental dos cínicos. Teve ela por primeiro

fundador Zenão de Cipro, que começou a ensinar em Atenas, em

308, a.c., e tomou o nome de stoá, ou pórtico de Atenas que era o

lugar onde se ensinava. Além de Zenão, entre os antigos estóicos,

são dignos de nota Cleante e Crisipo, que sucederam no ensino a

Zenão.

Entre os estóicos de uma era posterior, devem-se recordar,

especialmente, Panésio, Posei dão, que foi mestre de Cícero em

Rodes, em seguida, Sêneca, Epiteto (autor do famoso Enqueiridión,

ou Manual, belamente traduzido por Lopardi, e Marco Aurélio).

Os estóicos conceberam um ideal do saber humano, que

possui aquele que venceu todas as paixões e vê-se liberado das

influências externas. Somente desta maneira se obtém o acordo

consigo mesmo, isto é, a verdadeira liberdade.

Este ideal, que para os estóicos era personificado por

Sócrates, deve ser tido em mira por todo homem, porque lhe é

imposto pela reta razão. Existe uma lei natural que domina o mundo,

e reflete-se também na consciência individual: o homem épartícipe,

por sua natureza, de uma lei que vale unversalmente. O

preceito supremo da Ética é, pois, para os estóicos, "viver

segundo

( I - I a natureza" (o!-!oÀOYOU!-!EVú)S; 111 <pucra

Sl1v).

Esse conceito de uma lei universal faz que se quebrem as

barreiras políticas, e o homem se considera (como ocorria com os

cínicos, mas aqui em um sentido mais alto) um cosmopolita, cidadão

do universo.

Como Platão, em homenagem à pólis (= cidade), suprimia a

faml1ia e a propriedade, assim a escola estóica suprime os Estados

particulares em reverência ao Estado universal.

Até então dominava um ideal estritamente político no qual o

fim supremo era, em suma, a pertença do indivíduo ao Estado. Mas

com a Filosofia estóica anuncia-se e se prepara uma moral mais

abrangente e mais humana.

Vamos recordar, agora, duas escolas pós-aristotélicas de

grande importância: a estóica e a epicuréia.

A escola estóica deriva de uma precedente, dita escola

dos cínicos, representada principalmente por Antístenes, que

teve entre seus seguidores o famoso Diógenes.

Antístenes foi primeiro discípulo de Górgias, e depois de

Sócrates, mas colocou-se numa espécie de antagonismo com

outros discípulos de Sócrates, especialmente com Platão.

Para os cínicos, a virtude é o só bem e consiste na

modéstia, na

continência, no contentar-se com pouco. O sábio quase não

tem necessidades e despreza aquilo que os homens comuns

desejam: ele segue apenas a lei da virtude, e não cuida das

demais leis positivas.

Assim, ele não é estrangeiro em lugar algum; é

cosmopolita,

cidadão do mundo.

De acordo com esta idéia, os cínicos desprezam todas as

leis e os costumes dominantes, têm uma postura negativa

perante o Estado e buscam desprender os cidadãos dos

vínculos que os unem a ele, retomando à simplicidade

primitiva do estado de natureza. 30 31

Page 17: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

o estoicismo afmna que existe uma liberdade que jamais

qualquer opressão poderá destruir, aquela que deriva da supressão

das paixões. O homem é livre se segue a sua verdadeira natureza,

isto é, se aprende a vencer as paixões, postando-se independente

delas.

Nesse sentido, não há diferença entre livre e escravo. Temse

uma sociedade do gênero humano, além dos limites assinalados

pelos Estados políticos, fundada sob a identidade da natureza

humana e da lei racional, que corresponde a ela.

É por si mesmo significativo que encontremos entre os mais

insignes escritores cultores e seguidores da Filosofia estóica um

escravo, como Epiteto, e um Imperador, como Marco Aurélio.

A Filosofia estóica prenuncia, de certo modo, o Cristianismo.

A escola epicuréia

A escola estóica opõe-se à escola epicuréia, que, por sua

vez, foi precedida da escola cirenaica ou hedonística, fundada

por Aristipo de Cirene. Segundo esta escola, o prazer é o único

bem e não existem outros fundamentos de obrigação, além

daqueles que derivam da finalidade do prazer.

Epicuro, que fundou sua escola em Atenas em 306 a.c., e

a continuou até o ano de sua morte (270), partiu do mesmo

conceito fundamental dos cirenaicos, mas teve o mérito de dar

um desenvolvimento mais amplo e mais razoável à doutrina

hedonística.

Para Epicuro a virtude não é o fim supremo, como para

os estóicos, mas um meio para chegar à felicidade. Assim,

enuncia-se o princípio utilitário, ou hedonístico, avesso à

moral estóica; e podese afirmar que as escolas éticas

posteriores dividiram-se segundo essas duas concepções, em

contínuo contraste.

Pessoalmente, Epicuro foi um homem sábio e pregava a

temprança como a primeira virtude para assegurar o prazer.

Segundo a sua doutrina, não é necessário procurar o prazer,

nem evi

tar toda dor, mas conduzir-se de maneira que o êxito final ou

o 32

--

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

resultado constitua a maior quantidade possível de prazer e a menor

possível, de dor.

Isto implica certo cálculo ou medida de utilidade. No caso, a

falta de moderação abrevia a vida, prejudica o organismo e diminui,

assim, a faculdade de gozar.

Neste ponto, Epicuro chegou a oferecer preceitos éticos.

Além disso, a escola de Epicuro manifestajá uma teoria sobre a

distinção qualitativa, ou graduação dos prazeres.

Diferentemente da Escola Cirenaica, que considerava

sobretudo as sensações físicas, Epicuro dá maior peso aos prazeres e

às dores do espírito, que são mais duradouros do que aquelas. A

amizade é consderada por Epicuro como o maior dos prazeres. Isto

mostra como sua doutrina não é apenas materialista.

Dessa graduação dos prazeres origina-se, porém, a crítica do

utilitarismo, uma vez que, admitindo-se prazeres inferiores e

superiores, há necessidade de um critério de escolha, de uma régua

qualitativa e não quantitativa, pela qual o sumo bem pode ser a

satisfação da consciência, a ser alcançada até mesmo a preço de uma

dor física. Supera-se, assim, a singela doutrinna hedonística, que

busca o prazer pelo prazer, sem distinções.

Merece ainda consideração a parte da doutrina de Epicuro que

conceme ao Estado. Também aqui domina a concepção utilitária.

Epicuro nega que o homem seja social por natureza. Em sua origem

estaria em luta permanente com os outros homens, mas esta luta,

gerando dor, vem a ser abolida com a formação do Estado.

Assim, para Epicuro, o direito é apenas um pacto utilitário, e

o Estado é o efeito de um acordo que os homens poderiam romper

toda vez que em tal união não encontrassem a utilidade pela qual a

concluíram.

Como se vê, o Estado de Epicuro está, pois, em condição de

anarquia potencial. Tem-se, aqui, a primeira formulação

(prescindindo-se de qualquer aceno dos Sofistas) da doutrina

platônica e aristotélica, que, ao contrário, fundava o Estado sobre a

natureza mesma dos homens.

33

Page 18: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Veremos depois, os sucessivos desenvolvimentos da

teoria contratualista, na Idade Média e na moderna.

Os juristas romanos

conceitos fundamentais da melhor Filosofia grega, expressos em

forma elegante e clara, para torná-los bem acessíveis ao povo

romano.

O próprio Cícero apela para o bom senso natural, para a

persuação comum dos homens, dando ao seu discurso caráter

popular. A sua tese principal é que o direito não é um produto do

arbítrio, mas dado pela natureza. Natura juris ab homines repetenda

est natura( = "A essência do direito deve ser procurada pelos homens na

natureza"). Tem-se, aí, como ensinaram os estóicos, uma lei eterna,

que é uma expressão da razão universal. Portanto, ele combate os

céticos, os quais, afirmando a impossibilidade do conhecimento, e a

mutação e relatividade de todas as coisas, deduziram daí a

impossibilidade de uma justiça absoluta (em especial a Cameades

que, com sua pregação cética, causara em Roma certa turbação,

abalando as convicções comuns, e sustentando que o critério do

justo não é fundado na natureza.

Cícero opõe-se a esses argumentos, e observa que nem tudo

que é posto como direito é justo, que, em tal caso, também as leis

dos tiranos formariam o direito. O direito funda-se em opinião

arbitrária, mas existe um justo natural, imutável e necessário, pelo

testemunho inferido da própria consciência do homem.

Este conceito é desenvolvido por Cícero com grande

eloquência: Est quidem vera lex recta ratio, naturae congruens,

diffusa in omnes, constans, sempiterna... neque est quaerendus

explanator, aut interpres eius alius. Nec erit alia lex Romae, alia

Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni

tempore una lex, et sempiterna, et immutabilis continebit... cui qui

non parebit, ipse se fugiet, ac naturam hominis

aspernatus hoc ipso luet, maximas poenas, etiamsi cetera suplicia,

quae putantur, eftugerit (= "Na verdade, a reta razão é uma lei

conforme à natureza, difusa em todos, constante, eterna... não exige

quem a explique, ou um outro intérprete. Nem existe outra lei em

Roma, outra em Atenas, outra agora, outra depois, mas uma só lei

existirá para todas as pessoas e em todo tempo,

Roma não teve uma filosofia original. Mas como no Oriente

o supremo objeto da atividade espiritual foi a religião e na Grécia, a

Filosofia, em Roma foi o direito. Nisto, a sabedoria romana excele.

Houve em Roma, certamente, correntes filosóficas, mas elas

derivaram da Grécia. Pode-se dizer que todas as Escolas gregas

tiveram em Roma representantes próprios. O Epicurismo, por

exemplo, teve Lucrécio Caro que, no poema De rerum natura, expôs

com eloquência as teorias de Epicuro; o Estoicismo teve Sêneca e

Marco Aurélio, etc.

Cícero (106/43 a.C.) foi aquele a quem pertence o mérito de

ter tomado popular a Filosofia em Roma, o intermediário típico

entre o pensamento grego e o latino. Autor de obras às quais deu

esplendor de forma e de eloquência, mas cujo conteúdo é quase

todo grego. Ele mesmo afirmou que seus escritos "apografa sunt",

e acrescenta: Verba tantum aftero, quibus abundo (= "apenas lhes

dou as palavras, nas quais sou fértil").

Suas obras mais importantes para o direito são: De

Republica, De Legibus, De OfficÜs, além de De finibus bonorum et

malorum, Tusculararum desputationum libri quinque, etc.

Do De Republica chegou-nos apenas cerca de uma terça

parte, descoberta em maio de 1819 em um palimpsesto vaticano. O

De legibus é também incompleto, mas talvez tenha sido deixado

assim pelo próprio autor.

Cícero não pertenceu propriamente a nenhuma Escola, mas

sentiu a influência de muitas, a começar pela Estóica, à qual se

filiava

seu mestre Poseidon. Foi eclético. O título e a forma de algumas de

suas obras (De Republica, De legibus) são platônicos; o conteúdo é

aristotélico e estóico; encontram-se neles, em suma, revigorados,

os

34 35

Page 19: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

eterna, imutável... quem não lhe obedecer foge de si mesmo, e tendo

desprezado a natureza do homem, sofrerá por isso mesmo as

maiores penas, embora fuja de outros sofrimentos, que imagine").

Além do jus naturale, e em imediata pertinência com ele,

existe umjus gentium, observado por todos os povos, que serve de

base a suas relações recíprocas porque se funda sobre suas comuns

necessidades, não obstante as modificações que as diversas

circunstâncias tomam necessárias.

Por último, existe o jus civile, vigente para cada povo, em

particular.

Entre os termos dessa tricotomia (jus naturale, jus gentium e

jus civile) não existe contradição, sendo eles antes determinações

graduais de um mesmo princípio.

Ainda, para Cícero é o Estado um produto da natureza. Um

instinto natural leva o homem à sociabilidade, e precisamente à

convivência política. Renova-se, assim, a doutrina aristotélica.

Os juristas romanos tiveram, em geral, uma cultura

filosófica. O estoicismo foi, entre todos os sistemas da filosofia

grega, o que teve mais sorte em Roma, porque melhor correspondia

à índole austera, ao caráter fortemente rígido do cidadão romano.

Também

o ideal cosmopolítico dos estóicos tinha certa repercussão positiva

no crescente domínio de Roma.

O conceito de uma lei natural, comum a todos os homens

torna-se familiar aos juristas romanos, como uma crença implícita e

subentendida na sua própria noção do direito positivo. É apontado

como o fundamento deste a naturalis ratio, que não significa a

mera razão subjetiva, individual, mas aquela racionalidade que está

inscrita na

ordem das coisas e é, por isso, superior ao arbítrio humano. Há,

portanto, uma lei da natureza, imutável, não feita a propósito, mas

já existente, nata; lei uniforme e não sujeita a mutações por obra

huma

na (Jus naturale est id quod semper bonum et aequum est = "Direito natural é aquilo que é bom e eqüitativo sempre").

36

--

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

O conceito de jus naturale liga-se ao da eqüidade. A

eqüidade significa propriamente uma equalitação, tratamento igual

de coisas e assuntos iguais, um critério que obriga a reconhecer o

que é idêntico no substrato das coisas, além do vário e do acidental.

A idéia de eqüidade e a de lei natural tomam-se fatores de

progresso no direito. O direito positivo é uma modificação do

direito natural, com elementos de acidentalidade e de arbítrio. As

condições de lugar e de tempo mudam, a utilidade sugere normas

particulares, e isso os juristas romanos reconhecem amplamente.

Mas, não obstante, está neles o cuidado permanente de reconduzir o

direito às suas mais profundas raízes, de confrontar a norma com

seu fundamento natural, tolhendo as desarmonias e desigualdades,

igualando equiparando, com o objetivo de corrigir o que seja iníquo

ou irracional.

O simples reconhecimento de que o direito positivo é

contrário ao direito natural não basta, por si, para aboli-Io, mas

determina uma tendência à sua reforma ou.modificação, também no

momento da aplicação judicial, por meio da equidade.

Advirta-se que o magistrado romano tinha um poder mais

vasto que o do magistrado moderno; tanto que, assumindo o cargo,

o pretor publicava as regras que informariam sua jurisdição

(edictum).

O direito natural permanece o mais alto critério teórico. Dele

deduzem-se as máximas mais gerais; por exemplo, aquela segundo a

qual todos os homens são iguais e livres por natureza (segundo o

ensinamento da Filosofia estóica).

Desta maneira, os juristas romanos reconhecem,

expressamente, que a servidão é contrária ao direito natural;

porémjustificam-na em nome do jus gentium, sendo ela usada por

todos os povos (em conseqüência das guerras).

Outro princípio do direito natural é, por exemplo, a

legitimidade da defesa (Adversus periculum naturalis ratio permitit

se defendere = "Diante do perigo a razão natural permite a defesa"), ou

seja, vim vi reppelere (repelir a violência pela violência).

37

Page 20: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Ulpiano oferece do direito natural uma formulação que não

se encontra em outros escritores: o direito natural -diz- é

quod natura omnia animalia docuit ( = "aquilo que a natureza ensinou

a todos os animais").

Com isso estende a validade do direito natural também aos

animais em geral. Mas, em substância, nada mais faz que dar

expressão restrita àquilo que também era para todos um fIrme

princípio, ou seja, que o fundamento do direito está na natureza

mesma das coisas, naqueles motivos que, desenvolvidos maiormente

no

homem, estão, também, em germe, nos animais inferiores.

Uma questão importante em tomo das idéias jurídicas dos

romanos é a que concerne ao jus gentium, denominação usada em

diversos sentidos acuradamente distintos.

Entende-se porjus gentium, em primeiro signifIcado, o

complexo de normas que, no Estado romano, são aplicáveis aos

estrangeiros (isto é, entre estrangeiros e estrangeiros, e entre

estrangeiros e cidadãos romanos, uma vez que os estrangeiros eram

excluídos do jus civile.

De regra, para estas relações internacionais se estabeleceu

um direito simples, despojado daquelas formalidades solenes, das

quais era revestido o direito próprio do povo romano.

O jus gentium é o modo simples e sufIciente para regular as

relações às quais são admitidos também os estrangeiros.

Quanto ao segundo sentido em que se entende o jus gentium,

é provável que se tenha chegado a ele com o seguinte processo: a

princípio, os romanos não conceberiam esse direito como superior

ao civil, antes, como um direito primitivo e rudimentar; depois, o

estudo da FilosofIa grega fez reconhecer naquela própria

simplicidade a indicação da natureza, o reflexo da lei natural; em

seguida,

vislumbrou-se nele um elemento de superioridade, considerou-se o

jus gentium como expressão das exigências primordiais e comuns

a todos os povos, como revelação mais direta da razão universal.

Entende-se, então, por direito das gentes o direito positivo comum

38

- HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

a todos os povos (quasi quo jure omnes utuntur = "o direito que

todos usam").

Assim, um fato da experiência assume, pouco a pouco, um

significado filosófico, chegando-se à triconomia: direito natural

(universal, o mesmo sempre, perpétuo), direito das gentes

(elementos comuns que se encontram nos vários direitos positivos),

direito civil (com suas particularidades, que são determinações

posteriores das espécies precedentes).

Freqüentemente o jus gentium é confundido com o jus

naturale. Mas aquele é conceito essencialmente romano, nascido da

experiência histórica dos romanos; já este é conceito expresso pela

Filosofia grega. Isto não exclui, porém, que os romanos possam ter

tido alguma intuição nesse sentido, antes ainda da influência daquela

FilosofIa.

Os dois conceitos tendem a encontrar-se, e talvez pareçam

coincidir; têm, todavia, um significado diverso, e certamente são

também contrapostos, de tal modo que não se pode aceitar a tese

segundo a qual constituiriam eles uma só coisa.

Assim, por exemplo, os juristas romanos reconheceram a

escravidão como contrária ao direito natural (pelo qual todos nascem

livres); encontraram, todavia, para ela, justifIcativa na prática

comum dos povos, no jus gentium.

Bastaria isto para demonstrar a diversidade dos dois

conceitos. De resto, os juristas romanos não foram notáveis nas

abstrações teóricas, nas idéias puramente filosóficas, mas no

traspasse delas para a prática do direito positivo, na sua aplicação,

satisfazendo sempre, com genial agudeza, as exigências lógicas e as

necessidades mutáveis da realidade.

Consagrando o maior respeito pelas formas tradicionais e

históricas dos institutos, e não rompendo nunca de maneira violenta

a continuidade do seu desenvolvimento, os juristas romanos jamais

perderam de vista a vida concreta e a natureza das coisas, e

souberam fazer progredir continuamente o direito segundo o

coteúdo das

39

Page 21: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

novas exigências, mas com uma técnica formal perfeita. Nisto está a

sua glória máxima. A nossa disciplina tem por fontes clássicas a

Filosofia grega e a Jurisprudência romana.

40

~

o CRISTIANISMO E A FILOSOFIA DO /

DIREITO NA IDADE MEDIA

A sublime doutrina religiosa e moral que, nascida na

Palestina, difundiu-se em poucos séculos em grande parte do mundo

civil, produziu uma mutação profunda na concepção do direito e do

Estado.

Originariamente, porém, a doutrina cristã não teve

significado jurídico ou político, mas tão só moral.

O princípio da caridade não se desenvolveu para obter

reformas políticas e sociais, mas para reformar as consciências.

Seguiam, sim este princípio, a liberdade, a igualdade de todos os

homens, e a unidade da grande farm1ia humana, porém, como

corolário da pregação evangélica; mas essas idéias não se opuseram

diretamente à ordem poÍítica estabelecida.

A própria escravidão não foi combatida, mas respeitada como

iQstituição humana, porém afmnando-se a fraternidade dos homens

pela lei divina. Ao contrário, chegaram alguns Padres da Igreja a

considerá-Ia como ocasião propícia para que os escravos se

exercitassem na paciência, e na obediência aos patrões, e os patrões

na brandura com os escravos. Não se sustenta, em suma, a

necessidade de abolir, na prática, a escravidão, mas contentou-se

com mitigá-Ia, através do princípio cristão da caridade e do amor.

A doutrina do Evangelho foi essencialmente apolítica. Todos

os seus ensinamentos tiveram, originariamente, um sentido

espiritual: "Não vim para ser servido, mas para servir - O meu

Reino não é deste mundo - Dai a César o que é de César, e a Deus, o

que é de Deus". Os tributos devem ser pagos ao Estado, não à

Igreja.

Todavia, a doutrina da Igreja teve efeitos e influência

notáveis também -sobre a Política e sobre as ciências atinentes a ela.

41

Page 22: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Um primeiro efeito, de natureza metodológica, é a

aproximação do Direito à Teologia. Posto que um Deus pessoal

governa o mundo, considera-se o direito como fundado sob um

comando divino. O Estado como instituição divina. E a vontade

divina é conhecida não tanto pelo raciocínio, quanto pela revelação;

antes de ser demonstrada, deve ser crida, aceita pela fé.

Somente no Renascimento, no qual se verificou, de certo

modo, um ressurgimento da Filosofia e da cultura greco-latina,

reafIr

mou-se a doutrina clássica segundo a qual o direito deriva da

natureza humana, independentemente da Teologia.

Outro resultado do Cristianismo, ou melhor, da forma

histórica do Cristianismo, é reconhecido na nova concepção do

Estado em relação à Igreja.

Na antiguidade clássica apenas existia o Estado, como

unidade perfeita. O indivíduo tinha a suprema missão de ser bom

cidadão, de dar ao Estado tudo de si mesmo.

Com o Cristianismo, ao contrário, outro fim é proposto ao

indivíduo: o fim religioso, do outro mundo. A meta última não é a

vida civil, mas a conquista da felicidade eterna, da beatitude celeste,

que se alcança mediante a subordinação à vontade divina

representada pela Igreja.

No Estado clássico, a religião era uma magistratura a ele

submetida; na Idade Média, a Igreja tende a sobrepor-se ao Estado,

dado que, enquanto o Estado cuida das coisas terrenas, a Igreja se

ocupa das eternas; daí a pretensão de usar o Estado como

instrumento do fim religioso. Portanto, a Igreja afirma-se como

autoridade autônoma, superior ao Estado.

Desta maneira, o relacionamento político complica-se. Dos

dois termos cidadão e Estado, aproxima-se um terceiro, a Igreja. O

princípio fundamental, o ideal do Cristianismo, a irmandade dos

homens

em Deus é mais vasto e elevado que o ideal grego da era clássica.

Em geral, os gregos não tinham visto mais, além do Estado,

da poUso O caráter cosmopolítico é assinalado apenas pela

filosofia estóica que, em algum aspecto, prenuncia o Cristianismo.

42

.......

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Enquanto o ideal cristão se toma fator histórico e princípio de

organização social, assume, todavia, alguns caracteres próprios de

todo sistema político; como força social, não chega a uma

verdadeira universalidade, mas toma-se um fim antitético de outras

forças. Politicamente, a Igreja firmou-se, em certo modo, como

partido guelfo, em oposição ao gibelino: como Estado, frente a

outros Estados.

A Filosofia Cristã (que, nascida na Idade Antiga,

desenvolveu-se e predominou especialmente na Idade Média),

divide-se em dois principais períodos: o da Patrística e o da

Escolástica.

No primeiro fixam-se os dogmas, os artigos de fé, por obra

dos padres da Igreja (donde o nome). No segundo, surge uma

elaboração dos dogmas, notadamente em razão dos elementos

trazidos pela Filosofia grega.

É também importante notar que os padres da Igreja

deduziram dos juristas romanos a concepção do direito natural

(dando-lhe, todavia, uma base teológica), dominante sobre toda a lei

positiva.

Esta concepção, transmitida aos canonistas e em geral aos

estudiosos da Idade Média, foi desenvolvida pela Filosofia

escolástica, como se depreende, sobretudo, do sistema de Santo

Tomás, e teve uma certa função diretiva em toda a civilização

futura.

Pode-se, pois, dizer que os elementos essenciais do

pensamento clássico não ficaram de todo perdidos, não obstante a

revolução operada pelo Cristianismo; antes, passaram a dever a ele

uma nova vida.

A Patrística

A Patrística, que vai das origens do Cristianismo até aos

tempos de Carlos Magno (800), pode dividir-se também em dois

períodos, separados pelo Concílio de Nicéia (325). Entre os padres

da Igreja, depois dos Apóstolos, recordaremos: Tertuliano,

Clemente de Alexandria, Orígenes, Lactâncio, Ambrósio, etc. O

mais im

43

Page 23: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

portante é Santo Agostinho (354/430), que escreveu numerosas

obras. Nasceu em Tagaste, na Numídia (Algéria), e morreu como

Bispo de Hipona (Bona).

Especialmente na obra em vinte e dois livros, De Civitate

Dei, desenvolveu suas teorias sobre a história do gênero humano,

sobre o problema do mal e sobre o destino ultraterreno do homem,

sobre a Justiça e sobre o Estado.

Em nenhuma outra obra se pode observar melhor a diferença

entre o conceito grego clássico e o cristão, a respeito do Estado.

Enquanto os gregos haviam exaltado o Estado como supremo fim do

homem, Santo Agostinho enaltece a Igreja e a comunhão das almas

em Deus.

A civitas terrena, que não significa propriamente um Estado

determinado, mas, em geral, o reino da impiedade (societas

impiorum), descende do pecado original, sem o qual não existiriam

senhorias políticas, nem juízes, nem penas. O Estado teve,

portanto,

origem de delitos (Caim e Rômulo foram fratricidas); e o próprio

Império Romano aparece a Santo Agostinho corrompido e viciado

pelo paganismo.

A Civitas terrena é, pois, caduca, e deve ser substituída pela

Civitas Dei (ou Civitas Coelestis), que já existe, em parte, na terra, e

reinará sozinha, por último.

Por civitas Dei Santo Agostinho entende a comunhão dos

fiéis, que se organizam como uma cidade divina, uma vez que são

predestinados a participar da vida e da beatitude celestes.

O Estado terreno tem, assim, escopo louvável e deriva,

também, da vontade divina e da natureza, enquanto se propõe

manter a paz temporal entre os homens. Mas está sempre

subordinado à cidade celeste, isto é, à Igreja, que tende a procurar a

paz eterna.

Pode o Estado justificar-se apenas relativamente, enquanto

deve servir sobretudo como instrumento a fim de que a Igreja atinja

os seus próprios fins (portanto, deve ele repelir as heresias). Por

último, o Estado terreno desaparecerá, para dar lugar ao

restabelecimento do reino de Deus.

44

.......

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Esta concepção enormemente catastrófica das coisas humanas

explica-se, em parte, pelas experiências políticas do tempo de Santo

Agostinho, que viu o Império sendo invadido pelos bárbaros.

Em geral, Santo Agostinho elaborou a doutrina cristã em

todas as suas partes mais severas (a predestinação, a condenação

eterna da maior parte dos homens, etc.). A Filosofia política de

Santo Agostinho representa o triunfo da ascese. Em tal condição,

que tende a esvaziar o Estado, as aspirações ultramundanas levam

vantagem sobre os valores da vida terrena.

Notemos, ainda, que a obra De Civitate Dei pode ser

considerada como o primeiro ensaio de Filosofia da História, sob o

ponto de vista cristão. Santo Agostinho reconhece na História o

cumprimento dos desígnios da Providência Divina. Desta forma,

indic~, por exemplo, a tomada de Roma pelos bárbaros como um

produto do juízo universal.

A Escolástica

Tem-se, com a Escolástica, um retomo parcial à

Filosofia clássica. Na segunda metade da Idade Média

aparecem obras, especialmente da Filosofia grega, que

estiveram perdidas no obscuro período precedente; ou seja,

tinham permanecido perdidas, foram reencontradas e postas

em destaque. Todavia, foram estudadas com métodos

dogmáticos, com o propósito de, a todo modo, harmonizá-Ias

com os dogmas religiosos.

Este o caráter fundamental da Filosofia escolástica.

Aristóteles toma-se o doutor por excelência; mas, estudado e

interpretado com aquelas premissas, nem sempre foi

apresentado na sua verdadeira luz.

Porisso, ocorreu que, depois, na reação contra a

Escolástica, a Filosofia do Renascimento (por exemplo,

Telésio, Bacon, etc.) declarou-se antiaristotélica. .

Os Escolásticos arquitetaram engenhos rniraculsos na

elaboração dos dogmas e no esforço de harmonizar com eles a

Filosofia 45

Page 24: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

clássica. Tomaram-se insuperáveis na agudeza e na sua habilidade

dialética, especialmente no distinguir.

Mesmo conservando o caráter dogmático, a Filosofia

escolástica tentou desenvolver os dogmas religiosos com uma

análise racional, até onde permitiam os limites da fé. O influxo do

pensamento clássico é, todavia, visível, e assaz fecundo.

Isto se mostra sobretudo nas doutrinas de Santo Tomás de

Aquino (1225/1274), o principal representante da escolástica. Sua

obra maior é a Suma Teológica, compêndio sistemático do saber

filosófico do seu tempo, obra pela qual conquista a qualidade de

Cabeça Doutrinal do Catolicismo.

Cumpre recordar, ainda, entre as outras obras suas, um

Tratado, De regimine principum, do quaIlhe pertencem apenas o

primeiro livro e parte do segundo, enquanto os outros dois livros

são atribuídos ao seu discípulo Ptolomeu de Luca (Ptolomaeus

Lucensis).

Santo Tomás deu sistematização mais orgânica ao

ensinamento cristão. Aludiremos apenas à parte que concerne à

nossa disciplina.

O fundamento da doutrina jurídica e política de Santo Tomás

é a divisão da lei.

Distingue ele três ordens de leis: a lei eterna, a lei natural e a

lei humana.

A lei eterna é a mesma razão divina que governa o mundo

(ratio divinae sapientiae = "razão da divina sabedoria"), que

ninguém pode conhecer inteiramente em si mesma (Legem

aetemam nullus potest cognoscere, secundum quod in ipsa est, nisi

solus Deus et beati, qui Deum per essentiam vident = "Ninguém

pode conhecer a lei eterna, segundo o que ela é em si, a não ser

Deus e os bemaventurados, os quais vêem a Deus em sua essência"

Summa theol., 1 a, 2a, q. 93, art. 2), não obstante poder-se ter dele

uma noção parcial através de suas manifestações.

A lex naturalis é, ao contrário, cognoscível diretamente pela ..

razão, sendo precisamente uma participação da lei eterna na criatu'"

46

..,.........

-

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

ra racional, segundo a sua própria capacidade (Lex naturalis nihil

aliud est quam participatio legis aetemae in rationali creatura = "a

lei natural nada mais é do que a participação da lei eterna, na criatura

racional", secundum proportionem capacitatis humana e naturae =

"de conformidade com a proporção da capacidade da natureza

humana" - Ib., q. 91, art. 2 e 4). A lex humana é uma invenção do homem pela qual, partindo

dos princípios da lei natural, vai-se às aplicações particulares (ib.,

q.91, art. 3; q. 95, art. 2). Ela pode derivar da lex naturalis, per

modum conclusionum (= "à maneira de conclusões") ou per

modum determinationis (= "mediante uma determinação") segun- .

do resulte de premissas da lex naturalis, como conclusão de um

silogismo, quer dizer, uma especificação maior daquilo que é

afirmado de modo geral na lex naturalis.

O problema prático é: a lex humana deve ser obedecida

também quando contrasta com a lex aetema e a lex naturalis? Ou

seja, até onde o cidadão deve obedecer às leis do Estado?

Segundo a doutrina tomística, a lex humana deve ser

obedecida também quando vá contra o bem comum, isto é, mesmo

quando constitua um dano, e isto para a manutenção da ordem

(propter vitandum scandalum vel turbationem = "para evitar o escândalo ou a turbação"). Não deve, porém, ser obedecida quando

implique uma violação da lex divina (contra Dei mandatum = "contra ordem de Deus"). Tal seria, por exemplo, uma lei que

impusesse um falso culto.

Na doutrina do Estado é ainda mais visível a influência de

Aristóteles, e também evidente a diferença entre a teoria tomística e

a de Santo Agostinho.

Para Santo Tomás, o Estado é um produto natural e

necessário à satisfação das necessidades humanas; deriva da

natureza social do homem e subsistiria também independentemente

do pecado. O Estado tem por finalidade garantir a segurança dos

homens consociados e de promover o bem comum, o que é uma

imagem do reino de Deus.

47

Page 25: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Com isto se tem uma reabilitação do conceito do Estado, em

confronto com a teoria de Santo Agostinho.

Não muda, todavia, a concepção fundamental, neste ponto,

que também SantoTomás formou do Estado como subordinado à

Igreja, à qual deve ele obedecer sempre, ajudando-a a atingir seus

fins.

Um Estado que se oponha à Igreja não é legítimo. Como

representante do poder divino, tem o Papa o direito de punir os

soberanos, e pode dispensar os súditos do dever de obediência a eles,

desobrigando-os do juramento de fidelidade. Tem isto grande

importância na história política da Idade Média.

Essa, em resumo, a teoria tornística, que contém elementos

preciosos extraídos, em parte, das doutrinas grega e romana.

Sob certo aspecto, pode-se notar como defeito a preponde

rância dada nela à autoridade, em confronto com a liberdade.

O homem, apesar de livre, é considerado, de regra, como

passivo perante o poder público, tanto eclesiástico quanto civil. Não

é ele o centro, o autor das leis; deve apenas submeter-se a elas; sua

autonomia não é plenamente reconhecida, nem na ordem teórica,

como sujeito do conhecimento, nem na ordem prática, como sujeito

de ação. Domina, ao contrário, a heteronomia, que, porém, não

exclui um conceito elevado da pessoa humana, como partícipe de

uma substância e de uma lei absoluta (Assim, Santo Tomás diz, por

exemplo, que as substâncias racionais, ou seja, as pessoas, habent

dominium sui actus, et non solum aguntur sicut alia, sed per se

agunt (= "têm o domínio de seus atos e não são apenas feitas, como

as outras, mas agem por si" (Suma teol., I, q. 29, art. 1).

De qualquer modo, surgiram oposições contra a teoria

tornística, determinadas mais por razões políticas concretas que por

defeito doutrinal. Realmente, é evidente que ela tendia a fazer da

Igreja o único Poder absoluto, sacrificando a ela todos os demais

poderes e, em especial, prejudicando a soberania estatal.

Era natural que uma reação, uma defesa, surgisse para

reafirmar a independência do Estado contra as pretensões de

ingerência da Igreja; tanto mais que era vivíssima a tradição do

Estado roma

48

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

no, que continuava, ainda, formalmente, no Império. Roma

representava, na mente do medievo, o Estado universal, o Estado

por excelência.

Havia, pois, dois fundamentos sobre os quais se apoiava a

vida política da Idade Média: o Papado e o Império. As relações

entre essas duas supremas autoridades se discutiam mesmo também

em termos simbólicos, tirando argumentos dos textos sagrados; por

exemplo, onde se acena para as "duas espadas" (cf. sobre este tema,

particularmente, as disquisições de Dante, Monarchia, 111,9).

Dois poderes foram estabelecidos por Deus sobre a

humanidade: um, temporal; o outro, espiritual. Este dualismo era

admitido por ambos os partidos, o dos guelfos e o dos gibelinos. O

primeiro, porém, afirmava que, derivando os dois poderes,

igualmente, da divindade, só a Igreja era intérprete imediata dos

quereres do Céu; e o Estado, ao contrário, os derivava

mediatamente, por meio da Igreja, de modo que o Papa tinha

também o direito de depor e de punir o Imperador.

Diversamente, o segundo partido afirmava que o poder civil

era paralelo, por isso, independente do poder religioso, dependente

só e diretamente de Deus.

Os escritores gibelinos e a doutrina contratualista *

Esta segunda teoria (a gibelina) buscava subtrair o

Estado e a sua soberania da intromissão da Igreja, e inspirava-

se no ideal do Império Romano. Foi sustentada sobretudo por

Dante Alighieri

* N. T. - Guelfos (do alemão Hwelp, Welf, duque da Baviera, no século XI); Gibelinos (do

alemão Waiblingen, uma possessão dos Hohestaufen). Dois partidos políticos entre os quais se dividiram, no século XII, os partidários das famílias dos duques da Saxônia e da Baviera,

e dos senhores de Hohenstaufen. Em razão do casamento de GuelfIl, duque da Baviera,

com Matilde, filha de Bonifácio d'Est, Guelf tomou-se dono de vastas possessões na Itália, acrescidas por via de sucessão, dos bens de famílias importantes (Lumberg, Brunswick,

Northeim, etc.). Instalados na Itália, os

49

Page 26: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

(1265/1321) no tratado Monarquia (escrito provavelmente em tomo

de 1312; ignora-se a data exata).

Também Dante procede através de argumentos escolásticos,

por alegorias, por sÚllbolos, com disquisiçães sutilissimas,

confutando argumentos que aparentemente não mereceriam ser

afrontados. Sustenta, antes de tudo, no primeiro livro, que é

necessária a unidade do governo político para todo o gênero

humano, isto por razões metafísicas, em razão da excelência da

unidade em geral, e também

por utilidade prática (manutenção da paz).

No segundo livro, Dante passa a demonstrar que o povo

romano foi designado por Deus para comandar o mundo; e

afIrma a seguir que, como o Imperador era o herdeiro do povo

romano, por isso mesmo ele seria, de pleno direito, soberano

universal.

No terceiro livro Dante trata das relações do Estado

com a Igreja e sustenta a independência do Imperador em face

da Igreja,

na ordem temporal. Prova tudo isso com argumentos

abstratos, longe mesmo de toda a realidade, com valor apenas

alegórico.

Assim, discute o argumento do Sol (que para os guelfos devia

representar o poder da Igreja) e da Lua (que tinha

representado o Império, dele recebendo a luz). E mostra como

não se pode extrair uma prova da sujeição do Imperador, pois

a lua não recebe do sol o ser nem a atuação, mas apenas um

auxílio. Assim, o Imperador recebe, com certeza, da Igreja, o

lume da graça, mas isto não lhe destrói a independência.

partidos guelfos e gibelinos (nomes que se tomaram gritos de guerra nas batalhas da

convulsionada Itália dos anteriores à unificação), adquiriram coloração político-ideológica. Gibelinos, o povo como fonte e origem do poder; Guelfos, a aristocracia imperial

centralizando a origem do Estado, como expressão máxima e fonte única do poder. As

vicissitudes da História puseram os guelfos como partidários do Papa, defensores da supremacia da Igreja sobre o Estado, enquanto ao lado dos gibelinos enfileiraram-se os

que viam no Estado a fonte do poder absoluto, inclusive sobre a Igreja e temas religiosos.

Essa a marca diferenciadora de guelfos e gibelinos, passada à História, e que se faz

presente nas elucubrações dos filósofos do direito (cf. LAROUSSE, Pierre. Grand

diccionaire universel du XIXeme siecle, v. 8, p. 1.580-1582).

50

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Dante discute ainda os argumentos históricos, como aquele

que se queria trazer da pretensa doação de Constantino

(historicamente insubsistente)*. Não a põe em dúvida, mas

demonstra que Constantino não tinha o direito de com ela dividir o

Império. A

* N. T. - Dante Alighieri (1265/1321) não era só poeta, o imortal poeta da Divina Comédia.

Aventurou-se na Política e alimentou pretensões na Filosofia (Convito ou Banquet). Não se

tem tudo da vida. O político, conquanto até eminente (foi Prefeito (Priori) de Firenze, cargo do qual foi deposto), seguiu o destino de tantos outros: amargou sucessivas derrotas nos

embates entre Guelfos, entre os quais ter-se-ia enfileirado inicialmente (Les traditions de sa

famille et sés propres inclinations I'attachaient à Ia cause des Guelfes (ap. OZANAM, M. A. F. Dante et Ia philosophie catholique au treizieme siecle. Paris: Chez Jacques Lecoffre,

1845, p. 51), e Gibelinos (cuja linha de pensamento perfilou, na obra lembrada por DeI

Vecchio); e sofreu as decepções pela constatação da impossibilidade de ver realizados seus generosos projetos no campo social; por fim, conheceu o exílio, onde, aliás, nasceu e

morreu (OZANAM. Dante et Ia philosophie catholique au treizieme siecle, p. 55). A força

avassaladora do esplendor da dominação papalina de seu tempo impediu o surgimento de grandes pensadores e ofuscou o brilho dos poucos que, como Dante, ensaiaram vôo no

espaço da Filosofia, com alguns laivos de independência. Ficou, então, o Poeta. Enquanto se tiver olhos (ou dedos) para ler, ou ouvidos para escutar coisas como Nel mezzo dei

cammín di nostra vita / Mi ritrovai per uma selva oscura..., Dante será lembrado, lido e

aplaudido até com frenesi. Não se pode duvidar da sanidade mental dos poetas. Mas é certo que o universo que habitam com preferência é o dos arroubos visionários e das exaltações

alegóricas, que os tornam facilmente crédulos. Dante aderiu à crença da Doação de

Constantino, sem se ocupar com o caráter lendário que, já no seu tempo, matizava-a. No século VIII (segundo uns), ou IX (como geralmente admitido), surgiu um Constituto (uma

Constituição, um Decreto, um Edito) que passou para a História como A doação de

Constantino. Atribuído com mais empenho a um francês, anônimo freqüentador da Cúria Romana, foi usado pela primeira vez pelo Papa Leão IX (1002/1054), que o reivindicou

para fundamentar o domínio temporal dos papas. Pelo teor do documento, o Imperador

Constantino teria conferido ao Papa Silvestre I (314/335) e a seus sucessores "o primado

sobre os grandes patriarcados" (MCBRIEN, Richard P. Vida dos Papas; de São Pedro a

João Paulo lI, p. 62 (tradução do original inglês: LAMBERT, Bárbara Theoto. Lives ofthe

papes; the pontiffs from St. Peter to John Paul 11. São Paulo: Loyola, 2000) e doado "não só o Palácio de Latrão, mas também a cidade de Roma e todas as províncias, lugares e

cidades da Itália e do Ocidente" (GRASSO, G. B. Lo. ln: CHIOCCHETTA, Pietro.

Dizionario storico religioso. Roma: Studium, 1966, p.198-199). Documento incluído entre os Falsos Decretais do século IX e nas Decretais de Graciano (id.). Informa ainda

MCBRIEN: "No século Xv, a autenticidade do documento foi questionada por Enea Silvio

Piccolomini

51

Page 27: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

doação era, pois, ilegítima, e os direitos do Império não podiam ser

restringidos em razão dela.

Ao proclamar o elevado ideal da unidade política do gênero

humano, Dante não examina, porém, particularmente, as relações

que se deviam estabelecer entre o Império Universal e cada um dos

Estados. No máximo, parece pensar que todos os Estados existentes

(exceto o domínio temporal da Igreja) tinham de ter sido

conservados na sua estrutura atual, submissa à autoridade do

Imperador.

Não é, pois, exata a opinião de que tivesse Dante vaticinado a

formação de um Estado italiano unitário, mediante a supressão de

diversos regimes então vigentes na península. Pode-se dizer,

todavia, que um tal vaticínio estaria de certo modo implícito na sua

crença de que a Itália possuísse naturalmente uma certa unidade,

seja por seus caracteres geográficos, seja pela fundamental

homogeneidade de suas tradições, e de sua língua.

Ao tempo de Dante, outros escritores de tendências análogas,

no que concerne as relações entre o Estado e a Igreja, são o inglês

Guilherme de Occam (1270/1347) e Marsílio de Pádua (Marsilius

Patavinus - 1270/1342).

Este último tem particular importância. Levou vida vária e

aventurosa. Em 1313 foi nomeado Reitor da Universidade de Paris.

Gibelino por excelência, enérgico defensor dos direitos do Estado,

participou ativamente das lutas políticas de seu tempo, tomando

partido por Ludovico, o Bávaro, contra o Papa João XXII*.

(mais tarde Papa Pio 11) e outros, mas nesse meio tempo este documento e as

outras fontes espúrias exerceram enonne influência no pensamento medieval"

(ib.).

* N. T.-João XXII (Jacques Duese, de Cahors, na França, 1244/1334) protagonizou

um dos períodos mais conturbados da história da Idade Média e da hierarguia da

Igreja Católica. O segundo dos Papas de Avignon havia imposto uma decisão a

querela doméstica, que já se alongava, entre franciscanos conventuais e

espirituais. A decisão deixou dissidentes, entre eles Guilherme de Occam. João

XXII apoiara o rival de Luiz IV, o Bávaro, na disputa do trono da Alemanha.

Marsílio de Pádua e Occam valeram-se do pretexto para apoiar Luis IV no intento

de depor o Papa. Luiz IV entrou em Roma em janeiro de 1328, fez-se coroar

Imperador, 52

JII"""'"

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Na sua obra Defensor pacis (1324) pretende restabelecer a paz

subordinando a Igreja ao Estado. Parte do conceito de que a fonte

do poder político é o povo; dele emana o governo; por isso, sendo o

Príncipe, no Estado, secundaria, quasi instrumentalis seu executiva

pars (= "uma parte secundária, como que instrumental ou

executiva"), deve governarjuxta subditorum suo num voluntatem et

consensum (= "de acordo com a vontade e o consenso dos seus súditos").

O Príncipe é sempre levado, em respeito ao povo, a observar a lei, e

pode ser punido em caso de transgressão.

A maior causa de perturbação entre os homens é, segundo

Marsílio, o Papado, cujo domínio como poder temporal resulta de

uma série de usurpações.

Marsílio sustenta que ao Papa e ao clero em geral não assiste

nenhuma jurisdição coercitiva, nem mesmo o direito de impor

coativamente a obediência à lei divina. Em todos os casos, as penas

contra os heréticos somente podem ser pronunciadas por tribunais

civis.

Reafirma-se, assim, de certo modo, com Marsílio, o conceito

clássico da soberania civil, pela qual o Príncipe não só é inde

pendente do sacerdócio, mas tem ainda legítima jurisdição sobre

tudo o que se passa no território do Estado, inclusive sobre os

ofícios do culto, e as práticas religiosas.

Em verdade, na antiga Roma a religião era uma magistratura,

um ofício público, e não um Poder estranho ao Estado.

decretou a deposição de João XXII por heresia (João XXII sustentara, em oposição aos

dissidentes franciscanos, que os Santos só no fim do mundo veriam a Deus face a face, erro

teológico de que se penitenciou publicamente ao morrer em Avignon, em 4/12/1334), e impôs a eleição de Nicolau V (Pietro Rainalducci,

franciscano espiritual). Sem o apoio de Luiz IV, Nicolau V "escondeu-se e acabou

indo a Avignon, onde se submeteu a João XXII e foi perdoado e posto em cativei ro confortável" (MCBRIEN, Richard P. Vida dos papas; de São Pedro a João

Paulo 11, p. 62 (tradução do original inglês: LAMBERT, Bárbara Theoto. Lives 01

the papes; the pontiffs from St. Peter to John Paul 11. São Paulo: Loyola, 2000, p. 243-244).

53

Page 28: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

A obra de Marsílio de Pádua é sobremodo notável também

porque nela se delineia a teoria do contrato social, que já se

mostrava em germe nos sofistas e mais ainda em Epicuro, mas que,

a partir de Marsílio, ocupará lugar importante na história da

Filosofia do direito, terá campo fértil até o século XVIII por inteiro,

variamente concebida e diversamente exposta por escritores com o

objetivo de revelar nela conseqüências e aplicações práticas

diferentes. Presente estava sempre, e firme, a hipótese fundamental:

o Estado tivera origem no Contrato. Discute-se sobre o valor e sobre

cláusulas do suposto contrato, mas não se põe em dúvida (até o

século XVIII) a sua existência.

Resumidamente, pode-se compendiar a estrutura geral dessa

teoria da seguinte forma: admite-se, sem questionamento, tenha

existido um período da vida da humanidade anterior à formação do

Estado; nele os homens teriam vivido sem leis, sem autoridade, e

sem governo, entregues inteiramente a si mesmos. Esse estado extra

ou pré-Iegal é chamado estado da natureza (status naturae), e é

descrito de formas diversas, a saber: para alguns autores, signifi

caria uma era de paz e de beatitude, como um Paraíso (e se liga,

então, a vários mitos da Idade do Ouro, de Saturno, etc., isto é, de

uma primeira idade feliz da humanidade.2

2 Por exemplo: Tíbulo descreve assim a mística da Idade de Satumo: "Quam bene

Saturno vivebant rege, priusquam Ii Tellus in longas est patefacta vias!!!... Non

domus ullafores habuit, nonfixus in agrisll Qui regeret certisfinibus arva, lapis;1

IIpsae mella dabant quercus, ultroque ferebant Ii Obvia securis ubera lactis

oves.

IINon acies, non irafuit, non bella, nec ensem I/Immiti saevus duxerat arte faber"

(= "Quão bem viviam no reino de Satumo antes de a Terra abrir-se em longas

estradas! A casa não tinha portas, nos campos não havia marco que mantivesse

as lavouras em limites certos; até os carvalhos davam mel, e de boa vontade as

ovelhas mostravam os entumecidos úberes, sinal de leite. Não havia exércitos,

não havia

ódio, nem guerras, nem o cruel armeiro, com iníqua arte, produzia a espada").

Recorde-se também análoga descrição de Ovídio: Aurea prima sata est aetas,

quae,

vindice nullo, Ii Sponte sua, sine lege,fidem rectumque colebat. IIPoena

metusque

aberant; nec verba minaciafixo IIAere legebantur; Ii nec supplex turba timebant Ii

ludicis ora sui: sed erant sine judice tu ti, (= "Surgiu a primeira Idade do Ouro,

aquela que, sem vingadores, cultivava a lealdade e a justiça. O castigo e o medo 54

.............

HISTÓIUA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Para outros autores, ao contrário, constituiria um estado de

suma infelicidade, cheio de perigos, sem freio algum para o

organismo, e sem qualquer proteção e garantia para a liberdade.

Seja como for, em certo momento tudo acabou, ou por efeito

do pecado original, que tirara do homem a inocência e aquela

beatitude primitiva, ou por conseqüência das paixões humanas e dos

perigos e danos naturais naquela condição.

As diversas teorias concordam em afirmar que, em certo

momento, o estado natural terminou, e os homens convieram em

abandoná-Io para se unirem em sociedade. Passa-se, assim, do

status naturae para o status societatis. Essa passagem faz-se através

de um contrato, por cuja força os homens se obrigam a respeitarem-

se mutuamente e a conviverem pacificamente (pactum unionis). No

mesmo ato, ou seja, em um momento sucessivo, o povo (tomado tal

pela multidão desagregada, por força do pactum unionis) submete-

se a um governo por ele mesmo designado. Isto acontece, todavia,

através de um contrato (pactum unionis). Este pode ser simultâneo

ou posterior ao pactum unionis.

O significado essencial da doutrina do contrato social

consiste em demonstrar como o poder político é emanação do povo,

ao reivindicar deste o direito soberano. Na verdade, admitindo-se

que o governo reivindica do povo a sua autoridade, será fácil

sustentar que, quando lhe aprouver, sempre pode o povo revogar o

poder conferido; isto sobretudo no caso de o governo vir a faltar

com os compromissos assumidos no suposto Contrato.

desertaram; nem se liam palavras de ameaça publicadas; nem as turbas súplices

temiam a sentença do seu juiz; mas sentiam-se seguros semjuízes").

Metamorphoses, L. L v. 89/93). Esta legenda encontrou eco, é dizer, em toda

literatura (Por exemplo em uma das mais eloqüentes páginas do Don Quixote, de

Cervantes, P.I.C'xI). Se bem falte a essas representações fundamento histórico

suficiente, todavia podem elas vir a ter significado peculiar, como hipóteses

indicativas de aspirações e ideais humanos. Isto aparece claro, por exemplo, na

obra de Rousseau, da qual adiante trataremos (cf. o nosso estudo O conceito da

natureza e os princípios do direito, 2. ed. 1922, p. 111 et seq. Conferir, ainda,

PFLEIDERER. A idéia de uma Idade de Ouro (1877); Curcio. Evocações da

Idade de Ouro, no v. Italianos utopistas do cinquecento, 1944, p. 197 et seq.).

55

Page 29: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

De outro lado, poder -se-á também sustentar (e isto foi feito

por alguns escritores) que, em virtude do contrato social, o povo

perdeu irrecuperavelmente a sua liberdade, a sua soberania (tendo-a

cedido a um governo). O Contrato social toma-se, então, um meio

ou um motivo para fundamentar o poder absoluto.

A teoria contratualista pôde, assim, ser acolhida por

numerosos escritores, animados também de intenções diversas: no

século XV, por exemplo, pelo grande filósofo Nicolau de Cusa

(1401/

1464), autor da obra De concordantia catholica (1433), em cujas

doutrinas filosóficas inspirou-se mais tarde Giordano Bruno.

Ao mesmo tempo em que tendia a diminuir o poder do

príncipe, a teoria do contrato social pôde, em algum momento

histórico, corresponder aos fins da Igreja, quando se toma arma de

combate contra o poder civil. Assim: vários escritores jesuítas

reivindicam a autoridade do povo neste sentido (entre o século XVI

e o século CVII, Belarmino, Molina, Mariana, Soares).

Também escritores protestantes referem-se ao contrato social

para combater o absolutismo, mas com outro objetivo: provar que,

sendo o poder dos príncipes limitado pelo contrato de origem, não é

legítima a ingerência deles em certas matérias, e que a liberdade

religiosa, em especial, é inviolável.

Entre esses escritores, chamados antimonarquistas

(Monarcomachi) recordaremos o escocês Jorge Buchanan, que

escreveu a obra De jure regni apud Scotos (1579); o huguenote

francês Languet, que escreveu com o pseudônimo de Junius Brutus

o livro Vindicare contra tiranos, 1579, por alguns atribuído, porém,

a Mornay.3

3 Contra essa atribuição, pode-se ver o ensaio de BARKER, E. Proceedings o/the

Juguenot Society o/ London, v. XIV, 1930, p. 42 et seq. Avançou-se também a

hipótese de que tenham colaborado no livro, em diversas partes, Languet e Momay.

Nesse sentido, cf., por exemplo, YSSELSTEYN, G.T. van, Lauteur de l'ouvrage

Vindiciae contra tyrannos, Revue Historique, n. 167, especialmente p. 56 et seq.,

Mai/Aout, 1931.

56

.....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

E, por último, Giovanni Althusio (Althusius), alemão, cuja

política metodice digesta é de 1603.

Como precursores dos autores há pouco lembrados, menção

merece o italiano Colucio SaIutati, da Stignano, VaI di Nievole

(1331/ 1406) que no ano 1400 escreveu um breve tratado, De

Tyrano, (publicado apenas recentemente, 1913/1914). Nesse escrito

Salutati, depois de ter distinguido as várias espécies de tiranos (por

falta de título, e por injustiça no governar), sustenta o direito de o

povo resistir ao tirano, e também de, em certos casos, eliminá-lo.

Com a teoria do contrato social se quis, primeiro, afirmar em

geral a soberania popular como poder absoluto, indeterminado;

depois, cuidou-se de determinar as conseqüências jurídicas, as

cláusulas do hipotético contrato, vindo-se, desse modo, a investigar

quais os direitos que o povo se reservou, e em quais casos e modos

poderia exercitá-Ios. Começou-se, assim, a formular os direitos

individuais, buscando-se manter possi velmente no estado de

sociedade aqueles direitos que se dizia terem existido no estado de

natureza (liberdade, igualdade, etc.).

De outra parte, manifestava-se, também, a tendência a

assegurar a necessária autoridade e a estabilidade do Estado, embora

sob a forma de contrato. Chegou-se, assim, através de graus (como

veremos), ao conceito do Estado de direito, prenunciado pelos bills

ofrights, e pela declaração dos direitos, isto é, dos princípios da

revolução inglesa, americana e francesa, que tendiam a garantir os

direitos individuais de liberdade nos limites da soberania do Estado.

o Renascimento

Com alguns dos escritores por último recordados

saímos,

enfim, da Idade Média.

A formação das teorias contratualísticas é já um

fenômeno

do Renascimento, um efeito daquele vasto desenvolvimento

que 57

Page 30: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

deu nova direção ao espírito humano em todas as suas atividades.

Esse impulso de desenvolvimento ou renascimento, iniciado em

parte no século XIV (Petrarca), manifesta-se igualmente no século

XVI. Representa essencialmente a liberação do espírito crítico,

deprimido e sufocado, por longo tempo, pelos excessos de

dogmatismo.

Na Idade Média, o homem reputava-se subordinado a leis

extrínsecas, das quais não se reconhecia o autor, mas tão-só sujeito

passivo. Mesmo na obra científica não se admitia a liberdade de

pesquisa, mas nela se atinha rigorosamente aos chefes, às autorida

des estabeleci das (recorde-se o ipse dixit referido a Aristóteles).

Em suma, dominava um posicionamento heteronômico do espírito.

No Renascimento ressurge a autonomia. Várias causas,

algumas ocasionais, outras mais profundas, determinaram esse

grande ressurgimento que constitui, em certo sentido e sob certos

aspectos, uma volta à concepção clássica da vida.

Entre as causas ocasionais, recordaremos que já no século

XIV, e mais no seguinte, assim que Constantinopla foi tomada

pelos turcos de Maomé 11 (1453), caindo assim o Império do

Oriente, imigraram nas terras do Ocidente, especialmente na Itália,

muitos sábios gregos, os quais, tendo conservado em parte os

tesouros do saber antigo, contribuíram para reavivar o espírito da

civilização clássica, daí a fazer surgir um novo humanismo em

oposição ao espírito ascético dominante da Idade Média.

Outro fato extrínseco, todavia de grande importância, foi a

invenção da Imprensa, que permitiu a rápida difusão e propagação

das idéias.

Podem-se também recordar as grandes descobertas

geográficas, advindas na mesma época, em especial a descoberta da

América, que abriu novas vias para o trabalho humano, e promoveu

grandes transformações em toda a economia.

Causa mais profunda de renovação espiritual foi a nova

concepção científica do universo, isto é, a prevalência do sistema

58

.............-

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

copemiquiano, o qual contraditava o sistema ptolomaico, segundo o

qual a Terra seria o centro do Mundo. Esse progresso científico teve

graves conseqüências, porque induziu o abandono de algumas

crenças antropomórficas que tinham imperado na Idade Média.

Demonstrado que a Terra não é, como se cria, o centro fixo

do mundo, mas uma poeira infinitesimal, abriu-se espaço a novas

concepções da natureza e também a várias formas de panteísmo.

Não se afastaram, todavia, nem se podiam afastar, as verdades

fundamentais de caráter ético, já estabelecidas e que, entendidas

corretamente, são independentes das doutrinas físicas.

Outra manifestação do Renascimento é a Reforma religiosa,

ocorrida especialmente nos países anglo-saxônicos. Também aqui o

espírito crítico se insurge. A consciência busca ser independente

também no campo da fé.

Note-se que os reformadores foram, em geral, homens

religiosos, que quiseram subtrair-se à autoridade da Igreja porque se

creram capazes de adorar a divindade sem intermediários. Até nessa

matéria, portanto, a consciência individual tenta reafirmar a sua

autonomia contra as imposições dogmáticas tradicionais, embora

muitas vezes dando lugar a um novo dogmatismo.

Um fato de singular importância, que é também de ser

considerado, se se quer compreender o grandioso fenômeno do

Renascimento, é a mudança que se vem realizando nas condições

políticas. A essa mudança corresponde o desdobrar de novas teorias.

Durante a Idade Média, havia multidões de pequenos

Estados, de pequenas organizações políticas, as quais, mais ou

menos diretamente, mediante uma escala jerárquica de poderes e

privilégios (caractística do feudalismo) afrontavam as duas

supremas autoridades: Papado e Império.

A pouco e pouco esse estado de coisas muda. Papado e

Império perdem sua efetiva preponderância política mundial. Em

lugar das pequenas potências, constrangidas a apoiar-se sempre em

uma das duas maiores (ou seja, a tomar partido guelfo ou

59

Page 31: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

gibelino ),surgem organizações mais vastas e seguras. Formam-se

grandes Estados, grandes monarquias, com territórios determinados,

mas independentes da hegemonia do Papado e do Império, e

verdadeiramente soberanas.

Também no campo teórico, o problema jurídico e político

põe-se, portanto, sob novas bases, e assim se procura saber, em

primeiro lugar, qual deva ser a relação entre o indivíduo e a

sociedade política, entre governados e governantes no Estado. Não

mais, como na Idade Média, entre a Igreja e o Império (as teorias

escolásticas, por exemplo, a das duas espadas, perdem então muito

do seu significado).

De uma parte, tende-se a afirmar, rigidamente, a soberania do

Estado, mesmo com prejuízo das liberdades populares (escritores

absolutistas).

De outra parte, tende-se a reivindicar os direitos populares,

mesmo pondo também em risco a estabilidade e a segurança do

Estado (escritores democráticos e liberais).

O direito não mais se estuda sob fundamento teológico, mas

sob bases humanas e racionais.

Rugo Grócio é considerado o iniciador desse novo

direcionamento. Mas teve numerosos precursores, que em suas obras

revelam os traços característicos do Renascimento.

Entre os escritores anteriores a Grócio, recomendaremos dois,

sobretudo, os quais, embora não tenham enfrentado os problemas

fundamentais da Filosofia do direito, são importantes em razão das

matérias políticas que versaram e pelo método que seguiram:

Maquiavel e Bodin.

60

~

A FILOSOFIA DO DIREITO NA

ERA MODERNA

Maquiave1 e Bodin

Nicolau Maquiavel (1469/1527), homem mais político que

filósofo, foi um dos primeiros a tratar a ciência política com o

espírito dos novos tempos, fundando-se na observação histórica e

psicológica, distanciado de qualquer preocupação dogmática. Foi

principalmente um homem de ação. Só quando se retirou dos

afazeres deEstado para a vida privada compôs suas principais obras,

entre as quais se destacam O Príncipe (Il Principe, de 1513) e os

Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio (Discorsi sopra ia

prima Deca de Tito Livio).

Maquiavel indaga-se quais as causas que asseguram a

estabilidade de um governo, e como tirar proveito a esse respeito da

história antiga, analisando os critérios de governo dos Romanos,

extraídos da narrativa de Tito Lívio.

Maquiavel examina os homens como são, com suas paixões,

com seus vícios em geral, estuda as condições de fato, às quais se

refere. Todavia, mirando o quadro desolador da Itália dilacerada por

vários dominadores, é levado a conceber o ideal da unidade pátria.

Segue, no entanto, sempre, o método da indução e da observação

histórica. Ciente das reais condições de seu tempo, mesmo naquilo

que elas tinham de mais triste, indaga como se possa tirar proveito

delas para chegar à formulação de um Estado Itálico independente.

Sem nenhuma preocupação moral, indica os meios que

estima como mais eficazes e aptos ao fim visado. Em certos casos

não

61

Page 32: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

tem dúvida em aconselhar ao Príncipe que queira garantir o domínio

da Itália, a fraude, além da violência. Tais meios eram comumente

usados em seu tempo, mas o fato de ele os aconselhar lançou uma

sombra sobre o seu nome e sua obra. Maquiavelismo tem, em

política, um triste significado e resume-se na conhecida fórmula: o

fim

justifica os meios.

Alguns, como Alberico Gentili, Rousseau, Foscolo, etc.,

entenderam que Maquiavel tivesse querido apenas dar conselhos

imorais com ironia, a um Príncipe; e, na realidade, revelar de tal

modo os meios adotados na política para, desse modo, resguardar os

povos contra as malas-artes dos govemantes. Mas essa interpretação

de O Príncipe não é a dominante na crítica.

A verdade é que Maquiavel vem julgado e interpretado

segundo as condições de seu tempo. A sua justificação, em todo

relativa, está nisto: ele tinha um ideal político e calculava quais as

reais forças que, na prática, pudesse agregar em dadas

circunstâncias, à sua atuação. Em suma, é preciso julgar a sua obra

historicamente e em relação a determinado problema político, não

como um tratado de moral, que estava distante de seu propósito.

Queria apenas ensinar como tinha podido, então, formar-se um

Estado Nacional na Itália (analogamente ao que ocorreu na França e

na Inglaterra). Queria, em especial, exortar um Príncipe, ao qual as

suas palavras eram endereçadas, a tomar uma iniciativa para esse

fim.

O livro O Príncipe não é, pois, como se chegou a acreditar,

uma sátira contra a tirania, mas um programa para a transformação

da Itália em um Estado unitário.

Convém também advertir que, mesmo sob o aspecto prático e

político, Maquiavel não avaliou adequadamente a eficácia dos

fatores morais. Apenas se referiu aos motivos mais baixos da

natureza humana, mas com eles não se fundam nem se regeneram as

nações.

Os próprios fatos mostram que a Itália permaneceu dividida e

em grande parte escrava, ainda, por três séculos, não obstante os

62

,...

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

meios sugeridos por Maquiavel; e só renasceu para a unidade estatal por

intermédio de um mais elevado programa moral, ensinado pelos

pensadores e mártires do final do século XVIII e primeira metade do XIX.

***

Outro escritor de transição digno de ser lembrado é o francês

Giovanni Bodin (1530/1596), autor da obra Da República (De ia

République), em seis livros (1577, depois traduzido pelo próprio

autor para o latim, em 1586).

Bodin trata da organização do Estado com método racional,

não dogmático; é, por isso, um dos precursores da nova ciência

política.

Não obstante algumas diferenças, pode ser confrontado com

Maquiavel por várias razões: também ele funda-se sobre a

observação dos fatos e se propõe fins concretos, imediatos; também

ele, como Maquiavel, é absolutista; sua obra corresponde à

consolidação da Monarquia na França.

A parte mais importante de sua obra é a que se refere à so

berania. O conceito de soberania não podia ser bem definido na

Idade Média, porque a ele se associavam elementos estranhos,

especialmente teocráticos. (Considerava-se o soberano como

representante da divindade. De outra parte, no feudalismo, a

soberania política confundia-se com o direito privado de

propriedade.)

Bodin afirma que em todo Estado deve existir um poder

supremo, uno e indivisível (não há Estado sem poder soberano). São

caracteres essenciais da soberania o absolutismo e a perpetuidade. A

soberania compreende, em primeiro lugar, o direito de fazer leis.

Mas aquele que faz as leis, segundo Bodin, não pode a elas estar

sujeito; permanece, assim, superior a elas. O soberano está sujeito

apenas às leis divinas e naturais, cujo império reafirma. Na ordem

jurídica positiva, a soberania é necessariamente absoluta: aquele que

é dela investido é superior à lei, e para com o soberano existem

63

Page 33: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

deveres, e não direitos. Assim, nenhum direito à rebelião contra o

tirano (como sustentado por algumas escolas); e, da mesma forma,

nenhum direito do cidadão contra o Estado. A liberdade é, desta

forma, sacrificada à autonomia estatal.

Observamos que essa concepção de Bodin é imperfeita,

porque põe em destaque o caráter de independência extrínseca do

poder soberano; não assinala, por outro lado, a possibilidade de uma

intrínseca limitação desse poder, com o objetivo de dar lugar a uma

tutela jurídica da liberdade individual. Mas a solução desse elevado

problema, do qual depende o surgimento do Estado constitucional,

devia estar reservada a uma época posterior.

A soberania, com todos os seus caracteres próprios, pode

pertencer, segundo Bodin, tanto a um monarca como ao povo, ou a

um corpo de nobres. É claro que, com isso, Bodin (contrariamente

a quanto foi considerado depois, por exemplo, por Roussseau)

confunde a soberania com o governo.

Distingue, portanto, três formas de soberania ou de governo:

monarquia, aristocracia e democracia.

Enquanto, segundo alguns (Aristóteles, Políbio, Cícero,

Maquiavel) podia-se ter também uma forma mista de governo,

Bodin refuta essa teoria, a qual, ao seu ver, contrasta com o

conceito fundamental de soberania, que é essencialmente

indivisível.

Assim, aqui e ali será preciso examinar a quem compete fa

zer as leis (primeiro distintivo da soberania). Quando no fazer a lei

existe parte essencial, por exemplo, o povo, o governo é

democrático; e assim por diante.

Bodin examina, depois, as vantagens de cada uma dessas

formas de governo e conclui pela excelência do governo

monárquico (como existia na França). Para Bodin, a soberania, que

é una por natureza, encontra na monarquia a sua natural expressão.

Como Maquiavel, Bodin é, antes de tudo, um político, e em

seus tratados visa sempre a política. Considera, portanto, com

particular zelo, as causas de mudança do governo e busca condições

64

..,.........-

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

melhores para o desenvolvimento do Estado, afirma a oportunidade

de adaptar as leis às condições naturais (insistindo, por exemplo, na

relação entre o clima e as leis). Inspirou, nessa parte, a

Montesquieu.

A obra de Bodin é também uma fonte de estudos especiais:

assim, por exemplo, sobre impostos, em que é considerado dos

primeiros cameralistas (cultores da ciência cameral, que

corresponde à hodierna ciência das finanças).

Bodin defendeu, ainda, a tolerância religiosa, diante das

violentas lutas que se feriram então entre católicos e protestantes.

Por essas e outras manifestações, mostra-se um iniciador da idade

moderna, enquanto que, por outros aspectos, conserva, ainda,

caráter medieval (por exemplo, ele escreveu ao influxo de demônios

e de astros, etc.).

Grócio e outros escritores de seu tempo

A renovação operada também no campo da Filosofia teórica

na época do Renascimento, e na que o sucedeu de imediato, é

representada principalmente por Telésio, Bruno, Campanella;

sobretudo pelos dois pensadores com os quais a Filosofia moderna

se anuncia propriamente nos seus caracteres programáticos e

sistemáticos, Francesco Bacon (1561/1626) e Renato Descates

(Cartesius; 1596/1650).

Os métodos de um e de outro são aparentemente opostos.

Bacon quer restaurar a ciência, com a observação dos fenômenos

naturais, substituindo o procedimento indutivo pelo dedutivo, pondo

seus experimentos no lugar dos silogismos.

Antes dele, salvo tentativas de alguns precursores isolados, a

Física era estudada em Aristóteles, cuja autoridade indiscutível

punha-se em detrimento do desenvolvimento da pesquisa científica.

O método experimental, empírico e positivo, que tantos

seguidores teria nas idades posteriores, é, pois, instaurado por

Bacon. Sua obra, da qual se pode aproximar a de seu

contemporâneo

65

Page 34: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

, GIORGIO DEL VECCHIO

li'

Galileu Galilei (1564/1642), desenvolve-se com propósitos análogos

e fecundos de descobertas maravilhosas.

Descartes, porém, toma como ponto de partida a consciência

individual. Quer libertar-se de todas as opiniões recebidas,

emancipando-se, em um primeiro momento, da autoridade dos

dogmas, e submetendo, metodicamente, todo dado, todo

conhecimento, à dúvida. Estabelece, assim, como primeira certeza a

só existência do seu pensamento que duvida (cogito, ergo sum:

penso; logo, existo, isto é: existo porque penso - sum cogitans -

penso porque duvido).

Destarte, põe em primeira plana o problema gnoseológico e o

dirige para a solução, buscando na própria consciência o princípio

de toda certeza.

Nessa afirmação metodológica, inspiraram-se as sucessivas

escolas do racionalismo, do idealismo e do criticismo. Porém, bem

considerado, também o posicionamento baconiano e galileico im

plica a afirmação dos poderes cognoscitivos da razão humana, pois

pressupõe que a razão humana esteja em condições de, por si,

descobrir a verdade, perquirindo os fenômenos.

***

Importância mais direta para a Filosofia do Direito tem Hugo

Grócio (Groot), holandês (1583/1645), autor da obra Do direito da

guerra e da paz (De jure belli ac pacis), em três livros, publicada

em 1625.

Grócio é notável sobretudo porque, diferentemente dos outros

autores mencionados, os quais trataram de questões políticas

particulares, remonta aos princípios gerais da matéria, da qual tenta

uma sistematização completa, sendo comumente considerado o

nmdador da moderna Filosofia do direito.

Deve-se notar ainda que ele teve, também nesse propósito,

alguns precursores como, por exemplo,os três protestantes alemães

João Oldendorp, Nicolau Hemming e Benedito Winkler, que

publicaram suas obras sobre direito natural entre 1539 e 1615 (é

espe

66

......

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

cialmente notável o tratrado de Winkler, Principiorumjuris

libri quinque, editado em 1615; (cf. sobre esses autores o livro

de Kaltenborn, Os precursores de Ugo Grozio, em alemão,

1848).

***

Singular importância tem também nesse período,

imediatamente antes de Grócio, a obra do espanhol Francesco

Suarez (1548/1617), De legibus ac Deo legislatore (1612),

da qual faremos ainda um resumo adiante.

Esta obra, rica de idéias profundas, tem, porém, ainda,

certo caráter dogmático e contém numerosas referências à

Teologia, enquanto Grócio, ao contrário, quer ater-se tão só à

razão e àpresentar, sobre esta base, princípios válidos para

todos os homens, independentemente da religião.

***

Já o título de seu tratado (De jure ac pacis) demonstra que

Grócio tinha precipuamente em vista o direito internacional, isto é,

queria determinar as relações jurídicas que devem existir entre os

Estados, seja na guerra, seja na paz.

Ensaios desse gênero tinham j á existido, especialmente de

autores italianos e espanhóis. Recordaremos os escritos de Giovanni

da Legnano, professor em Bolonha - morto em 1383: De belio

(Da guerra, 1360); do espanhol Francisco Arias de VaI

deras aluno do Colégio de S. Clemente em Bolonha: Libelius de

belli

justitia injustitiave (Sobre ajustiça ou injustiça da guerra, 1533); de

Francisco de Vitoria, outro importante autor espanhol, ao qual

retomaremos (De Indis, Dejure belli, 1483/1546, etc., cerca de 1537/1539; 1. ed., póstuma, 1557); de Pietro Belli da Alba in

Piemonte (1502/1575): De re militari et belio (1563); de Baltazar

Ayala, nascido em Anversa, de pai espanhol, em 1548, e morto em

1584: De jure et officiis bellicis et disciplina militari (1582); e,

sobretudo, de Alberico Gentili, nascido em San Genesio (na Pro

67

Page 35: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

vínciade Ancona) em 1552, e morto em Londres em 1608, depois de

ter ensinado por mais de vinte anos na Universidade de Oxford.

No seu tratado De jure belli (1588) e em outras obras suas,

Gentili revela-se um dos maiores teóricos do direito internacional,

preocupado em dar à prática da guerra, além das relações pacíficas

entre os Estados, um verdadeiro e próprio regulamento jurídico.

A obra de Gentili foi muito negligenciada. Grócio apenas

acena para ela, mas dela serviu-se largamente. Em nossos dias o

jurista inglês T.E. Holland republicou o De jure belli e escreveu uma

monografia sobre Gentili. Na Itália, Aurélio Saffi, em 1878, fez e

publicou sobre Gentili uma série de leituras. Escreveram ainda sobre

Gentili: De Giorgi, Speranza, Fiorini (que lhe traduziu em italiano a

obra principal, O direito de guerra, 1877), etc.

Gentili não é, certamente, inferior a Grócio como jurista;

mas, no confronto entre ele e outros escritores semelhantes, Grócio

tem o mérito de ter querido e sabido ir das questões particulares de

direito internacional aos princípios filosóficos gerais. Ele não foi

apenas jurista, mas também filósofo e, embora sem grande

originalidade, soube realizar uma obra sistemática.

Ao dar esse caráter à sua obra, Grócio foi induzido também

por considerações práticas, porque advertiu que um sistema de

direito internacional devia fundar-se sobre bases diversas daquelas

próprias dos sistemas jurídicos positi vos de cada Estado.

Na era precedente, e em toda a Idade Média, sobre cada

Estado tinham exercido (como vimos) uma espécie de

hegemonia duas grandes autoridades, a Igreja e o Império, as

quais, de qualquer forma, tinham regulado as relações

internacionais. Ao tempo de Grócio, essas duas autoridades

tinham perdido, finalmente, sua importância política: o sonho

de um Império ou de uma Igreja, universais como poder

político, esvanecera.

Era, então, preciso encontrar outras bases para

determinar

as relações jurídicas entre os Estados autônomos, limitados em

seu

território, mas absolutamente soberanos entre suas próprias

fronteiras, e iguais, juridicamente, entre eles.

68

,........

.....

HISTÓRlA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Grócio estabeleceu esses princípios, retomando às fontes

clássicas, em especial a Aristóteles. Colhe deste a teoria

fundamental, que o homem é sociável por sua natureza e destinado a

urna certa forma de sociedade (política): Inter haec enim autem,

quae homini sunt propria, est appetitus societatis, id est

communitatis, non qualiscumque, sed tranquillae et pro sui

intellectus modo ordinatae (De jure belli ac pads, Proleg., § 6° =

"Entre as coisas, pois, que são adequadas ao homem, está o desejo

de sociedade, isto é, de comunidade, não de qualquer sociedade,

mas de sociedade pacífica e ordenada exclusivamente em benefício

de sua inteligência").

O direito é o que se mostra segundo a razão (não pela

revelação) apto a tomar possível a convivência social, isto é, o que a

reta razão demonstra conforme a natureza sociável do homem. Jus

naturale est dictatum rectae rationis, indicans actui alicui, ex eius

convenientia aut disconvenientia cum ipsa natura rationali ac

sociali, inesse moralem turpitudinem, aut necessitatem moralem

(Lib. I, capo I, § 10; cf. § 12 = "Direito natural é uma imposição da

reta razão que indica, para determinado ato, que é ele urna torpeza

moral ou urna necessidade moral, segundo sua conveniência ou não

conveniência com a própria razão natural ou social").

Grócio alcança substancial independência do direito em

relação à Teologia e põe explicitamente em relevo tal

independência. O direito natural, afirma, o sustentaria ainda que não

existisse Deus, ou

mesmo que ele não cuidasse das coisas humanas: Et haec quidem,

quae jam diximus, locum aliquem haberent, etiamsi daremus,quod

sine summo scelere dari nequit, non esse Deum, aut non curari ab

eo negotia humana (Proleg. § 11 = "E essas coisas que já

afirmamos, também diríamos que existem, mesmo que (o que não

poderia ser dito sem grande crime) não existisse Deus, ou não

cuidasse ele das coisas humanas"). 4

4 Convém advertir que essa fórmula, conquanto típica do sistema de Grócio e a ele

ordinariamente atribuída, não teve, porém, nele, a sua origem. Suarez (De legibus

ac

69

Page 36: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Como se conhece o direito natural? Grócio indica dois

métodos: um, a priori, mais sutil e filosófico; o outro, a posteriori,

acessível a todos, mais popular.

Conhece-se a priori quando se encontra a necessária

conformidade ou desconformidade de uma certa coisa com respeito

ànatureza racional e social.

Conhece-se a posteriori quando se vê que alguma coisa é

crida como justa por todos os povos mais civilizados. Mas, admite o

próprio Grócio, este segundo método é imperfeito, e tem valor

apenas de probabilidade. Na verdade, ele exigiria, antes de tudo, o

conhecimento do direito positivo de todos os povos, e mais (e esta

deo legislatore, Lib. n, Capo CVI, § 3°) acena para vários autores que, em suas disputas

teológicas, usaram semelhantes expressões: em especial Gregorius, que não é, aqui, o

Gregório de Valença, do século XVI (como alguém entendeu), nem mesmo Gregório de

Rimini (Ariminensis, ou de Arimino, morto em 1358), no qual, de fato, lemos: Nam si per

impossibile ratio divina sive Deus ipse non esset, aut ratio illa esset errans, adhuc si quis

ageret contra rectam rationem angelicam vel humanam aut aliam aliquam si qua esset; peccaret (= "Pois, se por impossível, não exisisse a razão divina, ou o próprio Deus, ou

fosse titubeante aquela razão, se mesmo assim, agisse contra a reta razão, Angélica ou

humana, ou contra outra razão qualquer, pecaria") - (Super secundo Sententiarum, Distinctio XXXIV, quaestio 1, art. 2). Certamente por engano, Gierke, na sua excelente obra J.

Althusius und die Entwicklung der narurrechtlichen Staatstheorien (3. Aug., 1913, p. 74),

atribuiu essas palavras ao alemão Gabriel Biel (morto em 1495), o qual as escreveu, mas reportando-as a Gregório de Rimini, que não deixa de citar (cf. BIEL. Epítome et

collectorium ex Occamo super auatuor libros sententiarum, 1495, edição também com o

título Commentarii in IV Sententiarum libros, Brixiae, 1574, L. n. Dist. XXXIV, questão única, art. 1). As disquisições teológicas desses e de outros escritores tiraram motivo de uma

doutrina de Hugo de S. Victor (De sacramentis Christianae fidei. L. I. P. VI, Capo VI-VII.

In: MIGNE. Patrologia latina, t. 176). Notáveis são as palavras, com as quais Suarez retoma (sem, porém, aprová-Ias) as teses dos autores acima referidos: Licet Deus non esset,

vel non uteretur ratione, vel non recte de rebus judicaret, si in homine esset idem dictamen

rectae rationis dictantis, v. g. malum esse mentiri, illud habituum eamdem rationem legis,

quam nunc haber; quia esset lex ostensiva malitiae, quae in objecto ab intrínseco existit = "Ainda que Deus não existisse, ou não usasse a razão, ou não julgasse retamente a respeito

das coisas, se no homem existisse um ditame da reta razão que dissesse, por exemplo, ser

mau mentir, aquele ditame teria a mesma razão da lei que tem agora, porque a lei seria ostensiva da maldade que existe intrinsecamente no objeto" (loc. cit.). Suarez foi, sem

dúvida, a fonte próxima, à qual chegou Grócio.

70

~

.....

HISTÓlUA DA FILOSOFIA DO DIREITO

é a objeção capital), o direito natural deve valer propriamente por si

mesmo, ainda se violado ou desconhecido.

Entre as condições de sociabilidade, que constituem o direito,

Grócio destaca nelas especialmente uma, a inviolabilidade dos

pactos. Se admitíssemos que fosse lícito faltar aos pactos, a

sociedade não seria possível. Deinde vero cumjuris naturae sit stare

pactis, ab hoc ipso fonte jura civilia fluxerunt (= "Na verdade, como

é do direito natural que os pactos são estáveis, dessa mesma fonte

decorreram os direitos civis" - Proleg., § 15).

Partindo desse princípio, Grócio deduz do mesmo a

legitimidade dos governos e a inviolabilidade dos tratados

internacionais. Supõe, de fato, que o Estado, a organização política,

seja constituído por força de um pacto. Portanto, também Grócio é

um contratualista, isto é, segue a teoria do contrato social, mas em

um sentido que podemos dizer empírico.

Outros escritores, anteriores e posteriores a Grócio, buscam

estabelecer um tipo ideal de contrato. Tinham eles compreensão,

mais ou menos explicitamente, de que o contrato é uma idéia, uma

hipótese, um princípio regulador mas não um fato histórico; este

reconhecimento realça o desenvolvimento progressivo da teoria.

Ao contrário, para Grócio, o contrato social teria acontecido,

ou seja, representaria uma verdade histórica. Por conseqüência, não

existe um contrato social único, mas existem tantos deles, e

diferentes, quantas e quais sejam as constituições políticas

existentes.

Grócio supõe que toda constituição positiva possa ter sido

precedida de um contrato correspondente, o que tomaria legítimas

todas as instituições, todos os governos. Sicut autem multa sunt

vivendi genera, alterum altero praestantius, et cuique liberum est

ex tot generibus id eligere, quod ipsi placet, ita et populus eligere

potest qualem vult gubrnationis formam, neque ex

praestantia huius, aut illius formae, qua de re diversa diverso rum

sunt judicia, se ex voluntate jus metiendum est (= "Assim como são

muitos os modos de vida, um mais valioso do

71

Page 37: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

que o outro, e cada um é livre para escolher entre todos o que lhe

agrade, da mesma forma, o povo pode escolher a forma de governo

que deseja, não pelo valor dele, ou de sua forma, a respeito da qual

os juízos são diversos, mas esse direito deve ser medido pela

vontade"). (Lib. l, capo lU, § 8.)

O contrato social é, então, para Grócio, um ato exterior, uma

manifestação que deriva da opinião e de uma certa oportunidade do

momento, não já da natureza própria do homem. Só o impulso à

sociabilidade derivaria, para o homem, da natureza; mas a forma

que a sociedade deve assumir, seria deixada ao seu mero arbítrio.

Grócio inclina-se a combater a opinião (manifestada pouco

antes, por exemplo, por Althusius) segundo a qual os povos teriam

sempre o direito de chamar para si a soberania originária. Atque hoc

primum rejicienda est eorum opinio, qui ubique, et sine exceptione

summam potestatem esse volunt populi, ita ut ei reges, quoties suo

imperio male utuntur, et coercere et punire liceat" (ib.) (= "Em

primeiro lugar deve ser rejeitada a opinião daqueles que, sempre e

sem exceção, querem que o poder do Povo seja o maior, de tal modo

que a ele seja lícito coagir e punir os reis sempre que usem maio

poder").

Por isso ele, à guisa de postulado, declara que juris naturae

est stare pactis (= "É da natureza do direito que os pactos se

mantenham").

A idéia do contrato social é colocada por Grócio apenas para

demonstrar no povo a obrigação perpétua da obediência ao

soberano. Desta maneira, o contrato social é como uma paesumptio

juris et de jure, pela qual os atos praticados pelos governantes

entendem-se consentidos pelos súditos.

Entendida neste sentido empírico e irracional, a teoria

contratualística merece as várias objeções que lhe são feitas. Tais

objeções, todavia, não têm valor contra os sistemas, nos quais o

contrato social é entendido, mas como fato empírico, como

princípio racional regulativo. Podem, antes de tudo, opor-se às teses

de

72

1

......

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Grócio as constatações históricas, que demonstram que a sociedade

e o Estado não tiveram origem no contrato, mas são fatos naturais,

produzidos independentemnete da reflexão e da deliberada vontade.

O caráter consensual prevalece apenas enquanto a vida da sociedade

progride; já o exercício e o reconhecimento jurídico da autonomia

de cada um sucedem gradativamente à primitiva solidariedade

impessoal dos grupos.

Poder-se-ia ainda indagar a Grócio por qual razão, dado que

um pacto tivesse mesmo sido conluído originariamente, devesse

obrigar as gerações seguintes, sem que elas tenham contratado ex

novo aquele vínculo.

Ademais, seria necessário verificar a liberdade do consenso e

examinar se o conteúdo do contrato é lícito ou não. A razão nos diz

que um contrato é obrigatório apenas se for concluído por

deliberação espontânea, ou pelo menos fora de imediata violência.

O caso de um povo que, derrotado na guerra, in periculum

vitae adductus, ou inopia pressus (como diz Grócio), renda-se

incondicionalmente em escravidão a outro povo ou uni homini

praepotenti, pode constituir entre as duas partes uma transação de

fato, não de direito. Enfim, é de advertir-se que, em certos casos, o

conteúdo do pretenso contrato pode ser de maneira a excluir por si

que o consenso tenha sido livre, e assim, válido.

Assim, quando se apresenta como conteúdo de um contrato a

alienação total, feita, por um dos contratantes, de tudo o que ele é e

tem, sem qualquer correspondência da outra parte, poderíamos

afirmar, a priori, sem receio de erro, que tal contrato, mesmo que

concluído, é nulo em face do direito. Mas Grócio, atento apenas em

estabelecer a obrigação de obediência dos súditos, atribuiu valor

absoluto ao pretendido fato do contrato social (que como tal

éinexistente). A hipótese contratualística não tem, pois, no seu

sistema, valor racional, mas representa apenas um expediente ou

uma fórmula fictícia para sanar e ratificar o que se encontra já

realizado.

A teoria de Grócio é, quiçá, mais fecunda quando se aplica

aos tratados internacionais. Ele quer introduzir a idéia do direito nas

73

Page 38: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

relações entre os Estados, e demonstrar que os tratados concluídos

entre os Estados têm validade jurídica, são obrigatórios por direito

natural. Desenvolvendo esse conceito, Grócio promoveu o

desenvolvimento do direito internacional, em um tempo no qual a

sociedade dos Estados apenas se preparava para formar-se, depois da

decadência do poder medieval.

Além daquele princípio geral, Grócio propõe várias normas

especiais sobre o estado de paz e de guerra, preparando algumas

reformas nos usos dos beligerantes e formulando temperamentos

que, em parte, vieram a ser aceitos.

Segundo as regras do direito internacional, a guerra tomar -

seia quase um instituto jurídico, embora não perfeito, certamente. A

isso, na verdade, tendia o trabalho de Grócio. Em seu tratado, po

rém, ele vale-se sobretudo de exemplos históricos, de tal modo que

se transformou em uma exposição mais de fatos que de princípios.

A tendência moderna é no sentido de não reconhecer em

Grócio um grande valor especulativo. Mas é indubitável a

influência que ele teve em seu tempo, tanto que foi geralmente

proclamado o fundador do direito internacional (embora isto não

seja exato); e como tal foi considerado pelos estudiosos, e talvez

também pelos governos. Vico o chamou "o jurisconsulto do gênero

humano".

Entre as numerosas elaborações e discussões sobre a obra de

Grócio, recordemos o escrito do alemão Enrico Cocceji

(1644/1719), Grotius illustratus, que foi completado e publicado

(com notáveis acréscimos) por seu filho, Samuel Cocceji

(1679/1755). Pode-se ainda recordar a tradução francesa do De jure

belli ac pacis, acom

panhada de valiosas notas, de 1. Barbevrac (1674/1744), nascido na

França, professor em Losana e em Groninga), que traduziu e

comentou igualmente também a obra de Pufendorf.

Não faltaram a Grócio, mesmo em seu tempo, críticas e

oposições. Uma célebre polêmica desenvolveu-se a propósito da

liberdade dos mares, que Grócio (em vista dos interesses

holandeses) tinha defendido com a monografia intitulada Mare

liberum

(1609). Contra a tese de Grócio surgiram numerosos opositores,

especialmente na península ibérica e na Inglaterra.

74

..,.........-

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Recordemos, entre os mais notáveis, o monge português,

professor na Espanha (em Valladoli), Serafino de Freitas (De justo

imperio Lusitanorum asiatico adversus Grotii Mare liberum, 1625)

e o inglês João Selden (1584/1654), Mare clausum, seu de dominio

ma ris, 1635). Com esta monografia, tomada famosa ao lado da de

Grócio, Selden propôs-se, antes de tudo, a demonstrar que, por

direito natural, o mar não é comum a todos os homens, e, assim,

pode ser objeto de domínio privado e político. Daí sustentou

particularmente os direitos do rei da Inglaterra sobre os mares que

circundam o Império Britânico.

Mais ainda que por esta dissertação, Selden merece menção

pela sua maior obra, De jure naturali et gentium juxta disciplinam

Ebraerum (1640), a qual representa uma singular tentativa de

construir um sistema de direito natural sobre as bases dos preceitos

divinos, que teriam sido revelados aos hebreus, e por meio deles a

outras nações (proibição da idolatria, da blasfêmia, do homicídio,

do adultério, do incesto, do furto, etc.).

A obra de Selden foi profundamente estudada e discutida por

Vico, ao lado das de Grócio e de Pufendorf, sendo justamente esses

autores estimados por ele "os três príncipes do direito natural das

gentes."

Hobbes

Um pensador cujo caráter filosófico é mais preciso e cuja

mente é mais aguda do que Grócio é o inglês Tomás Hobbes

(1588/1679), um dos mais importantes escritores de Filosofia do

direito. Suas obras principais são De cive (1642) e Leviathan

(1651).

Viveu em tempos turbulentos para a Inglaterra agitada por

lutas internas. É necessário ter isso presente para entender a

doutrina de Hobbes, o qual via a salvação do Estado somente em

um poder que fosse capaz de dominar com plena autoridade todas

as lutas e paixões individuais. É ele, por isso, um teórico do

absolutis

75

Page 39: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

mo, e o seu pensamento é, nesse sentido, bastante afim do de

Maquiavel e do de Bodin. As obras desses três autores

correspondem igualmente ao esforço, nem sempre satisfatório,

por formar ou consolidar a monarquia dos respectivos países.

As premissas filosóficas das quais se vale Hobbes para a

dedução de suas doutrinas políticas são: o homem não é

sociável por natureza: homo ad societatem non natura, sed

disciplina aptus

factus est ( = "o homem não é feito para a sociedade pela natureza,

mas pela disciplina"); o homem é naturalmente egoísta, busca

apenas o seu bem, é insensível ao bem dos outros; considera-se

governado somente por sua natureza, vive como se devesse

reconhecer inevitável uma guerra permanente entre todo indivíduo e

os seus semelhantes, razão pela qual cada um procura levar

vantagem com prejuízo dos outros (homo homini lupus = "o homem

é um lobo para o homem") 5.

A condição do homem, como era antes da insttituição dos governos,

e como seria se não existissem os governos é, portanto, uma gueITa de

todos contra todos (bellum omnium contra omnes). Nesse estado da

natureza o direito é individual e ilimitado; existe,então, um jus

omnium in omnia ( = "direito de todos contra tudo").

5 É digno de nota (se bem que não se advirta, de costume) que esta fórmula típica do sistema

hobbesiano deriva de um trecho de Plauto: Lupus est homo homini, non homo, quom, qualis

sit non novit = "o homem é lobo e não homem, para o homem, visto que o não conhece

como tal" - ASINARA, A. 11, século IV, v. 88). Podem-se recordar ainda as palavras de

Ovídio (que não se referem, porém, aos homens em geral, mas àqueles entre os quais

vivera): Vix sunt homines hoc nomine digni// Quamque lupi, saevae plusferitatis habent = "Poucos são os homens dignos deste nome; como lobos, têm mais de fera cruel" (Tristia, L.

V, Eleg. VII, v. 45/46). Desse trecho (não referido com exatidão) tirou argumento F. de

Vitória, escrevendo: 'Contra jus naturale est, ut homo hominem sine aliqua causa

adversetur. Non enim homini homo lupus est', ut ait Ovidius, 'sed homo' = "É contra o

direito natural que o homem hostilize o homem sem qualquer motivo. Pois o homem não é

lobo para o homem", como diz Ovídio, "mas homem" (Relectiones Theologicae, De lndis,

sect. m, 3" ed. Classics of lnternational Law, p. 259). A mesma frase, como termo de uma

antítese, vê-se em Erasmo de Rotterdam: Homo homini aut deus, aut lupus = "O homem ou é deus,

ou é lobo, para o homem" (Addagia, 1500). E depois em

76

~

....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Hobbes afirma, porém, a conveniência de todo homem sair

desse estado de natureza, mísero e odioso, por causa dos perigos que

a contínua guerra leva consigo. Mas isso somente é possível

mediante um contrato, que tenha por conteúdo a renúncia de todos

àquela liberdade sem freios própria do estado de natureza. Tal

renúncia deve ser inteira, incondicionada, para que, de outra forma,

não recaia na anarquia primitiva, em poder do desenfreado egoísmo

individual. Por isso, todos os homens devem despojar-se de seu

direito originário e deferi-Io a um soberano, que imponha as leis e

defina o justo e o injusto, o lícito e o ilícito.

O Estado é, pois, uma criação artificial, uma máquina

onipotente, que tem um poder ilimitado sobre os indivíduos.

Nenhum cidadão pode alegar direito contra ele. O Estado, dotado de

autoridade absoluta, é necessário para impedir a guerra entre os

indivíduos. Hobbes realça o poder do Estado também perante a

Igreja, não admitindo que ela possa opor-se com seus preceitos aos

do Estado, nem que a paz pública possa ser perturbada por causas

religiosas.

Assim, tanto para Hobbes com para Grócio, o contrato social

é produto de um ordenamento pacífico. Mas, enquanto Grócio tinha

concebido o contrato como formado para o arbítrio, e até

indefinidamente mutável de acordo com as situações, Hobbes, ao

contrário, confere ao contrato um conteúdo fixo e determinado,

afirmando que ele não pode consistir em outra cousa se não na

subordinação incondicionada dos indivíduos a uma autoridade que

os represente, e concentre apenas em si todo o seu poder.

Owen: Homo homini lupus, homo homini deus = "O homem é lobo para o homem; o

homem é deus para o homem" (Epigrammata, 1606, m, 23); daí também em Bacon:

Justitiae debetur; quod homo monini sit Deus, non lupus (De dignitarte et augmentis scientiarum, 1623, L. VI, C. m, Exempla antith. XX). O outro termo da antítese (Homo

homini deus) tem, também, origem antiga, chegando a um provérbio grego (éiv'6púmoç

av'6po:m:oD Oatl-l°vwv = O homem é o demônio do homem); também escreveu Cecílio

Stazio: Homo homini deus est, si suum officium sciat = "O homem é um deus para o

homem, se sabe o seu ofício" (SIMMACO. Epistolae, IX, 114, 1; cf. OITO, A. Die Sprichworten und sprichwortlichen Redensarten der Romer. Leipzig, 1890, p. 109,201).

77

Page 40: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Enquanto, pois, para Grócio, uma renúncia total a todo direito

individual não é senão uma das infinitas espécies possíveis de

Contrato Social, para Hobbes aquela absoluta rendição é

conseqüência de uma razão objetiva que faz dela pressuposto

necessário e fundamental de qualquer constituição política.

Portanto, segundo Hobbes, a irrestrita submissão dos

indivíduos ao poder público, que é o objeto do contrato social,

mostra-se como vínculo indissolúvel, em qualquer sentido em que

manifeste o poder a sua atuação, isto é, mesmo quando ofenda, ao

invés de proteger a segurança e a paz dos súditos. Com este

entendimento, Hobbes apresenta-se como típico representante do

absolutismo.

a erro de Hobbes está na raiz, e consiste na limitação

arbitrária da natureza humana ao egoísmo. Ora, os estudos

modernos demonstram sempre mais claramente que o altruísmo é

tão natural quanto o egoísmo; que, além do instinto de conservação

própria, está, também, radicado em todo ser vivente, aquele de

conservação da espécie e da compaixão pelos outros; mostram que a

vida social, com todas as suas exigências, isto é, com as limitações

que impõe aos indivíduos, é a primeira condição necessária para que

o homem possa existir.

a homem leva, arraigado consigo, o instinto social. Também

em épocas primitivas, e entre os povos selvagens, não mais

encontramos nunca um estado de guerra entre indivíduo e indivíduo

(como supõe Hobbes), mas dominam sempre, ao menos em uma

certa esfera, os sentimentos sociais (a guerra existe só entre grupos).

Até os animais têm instintos sociais (como foi observado por

Darwin), sem os quais a espécie se extinguiria.

No aspecto juódico-político, a objeção fundamental, que pode

ser feita ao sistema de Hobbes, é que ele tende a satisfazer a uma só

exigência: a exigência da ordem, da tranquilidade; sacrifica a esta,

inteiramente, a liberdade.

Nós, ao contrário, damos valor à tranqüilidade porque nos

permite desenvolver, numa certa medida, a liberdade. Rousseau, ar

78

,..

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

gutamente, observava a propósito, que se vive tranqüilo também nas

prisões (on vive tranquille aussi dans les cachots). Por temor da

licença, ou da anarquia, Hobbes suprimiu de todo a liberdade; donde

se poderia igualar o seu sistema a um contrato de garantia, no qual o

prêmio fosse superior ao valor da coisa assegurada.

As doutrinas de Hobbes, especialmente no campo da moral,

foram combatidas na própria Inglaterra, por Locke, do qual fa

laremos dentro em pouco, por R. Cumberland (1631/1718), na obra

De legibus naturae, 1672, e ainda por A. Shaftesbury (1671/1713), em Inquiry conceming virtue, 1699, etc., e por outros.

Espinosa

Um pensador que teve muita afinidade com Hobbes é

Benedito Espinosa, holandês (1632/1677). Suas obras que

concernem àFilosofia do direito são o Tratactus theologico-politicus

(1670) e a Ethica (1677), além do Tractatus politicus, que ficou

incompleto.

A importância de Espinosa é mais para a Filosofia geral do

que para a Filosofia do direito. Seu sistema funda-se no conceito de

um monismo absoluto (exerceu depois notável influência sobre

Schelling e sobre Hegel).

Espinosa sustenta que só existe uma substância, que chama

Deus sive natura (= "Deus ou a natureza"). Tudo o que acontece no

mundo é expressão dessa substância e é absolutamente perfeito. Mas

ta, então, todas as diferenças de avaliação ou de opinião. O que para

nós é imperfeito apenas é determinado ex necessitate divinae

naturae, e é mesmo perfeito na ordem da natureza.

Coerentemente com esse pensamento, Espinosa busca

identificar o direito natural com o poder físico e se aproxima, nesse

ponto, de Hobbes. Nada pode existir nada abolutamente injusto no

mundo; na ordem natural, tudo o que é querido e possível é também

justo (sub solo naturae imperio injuria non potest concipi = "sob o exclusivo império da natureza, a injúria não pode ser concebida").

79

Page 41: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

É fácil observar que, sendo identificado o direito natural

com a potência e a necessidade física, tal identificação

equivale à pura e simples negação daquele direito.

A total elisão dos valores jurídicos, a ausência de todo

critério e de toda regra de agir, tem como conseqüência a

redução do ser humano ao conceito de necessidade universal.

Para reencontrar o princípio da vontade jurídica,

Espinosa deve supor que em certo ponto ocorra a cessação do

status naturalis, pelo acordo recíproco entre os homens de agir

ex solo rationis dictamine (= "pelo só ditame da razão").

Essa transição (do estado da natureza para o estado

jurídico) ocorreu pela força da causa fundamental do ânimo

humano, que é a conservação de si mesmo (Conatus proprium

esse conservandi = "ser próprio do instinto de conservar-se").

Para obviar o perigo nascente do uso ilimitado da força

de cada um, os homens concordaram em viver apenas de

acordo com a razão, respeitando-se reciprocamente, e deram,

assim, origem ao Estado, ou seja, a um poder unitário, árbitro

dos direitos de todos.

Mas pode-se perguntar: qual será o valor de tal acordo e

como poderá ele constituir uma obrigação, se os homens estão

sempre determinados pela natureza a agir como agem, de

acordo sempre com o seu maior interesse?

Essa dificuldade foi divisada por Espinosa, que cria

superáIa subordinando o valor do hipotético pacto à vantagem

que cada um tenha visto nele; admitiu, também, depois,

explicitatmente, o

direito que cada um teria de rompê-Io sempre que isso lhe

parecesse útil.

Tal reserva, se salva a lógica do sistema, retira, porém,

do suposto acordo toda a sua consistência, tomando-o mais que

caduco, irrisório.

Retirada a validade objetiva do pacto, cai, também, o

edifício jurídico que deveria fundar-se sobre ele, e o direito

reduz-se,

80

, ..--

.......

HISTÓRIA J!>A FILOSOFIA DO DIREITO

então, a relações de mero fato, a estipula5:ões arbitrárias,

delimitadas tão-só pela força de cada um.

Segundo suas premissas, Espinosa sustenta que o Estado

domina os cidadãos porque é mais forte, e a sua autoridade só é

legítima enquanto tem força para fazer-se valer.

Disso deduz Espinosa uma conseqüência importante: o

Estado não pode impor limites à cbnsciência, ao pensamento, e isso,

não por impossibilidade jurídica ou racional, mas material, porque o

pensamento é, de sua natureza, incoercível; tem-se, então, liberdade,

pela impossibilidade de violá-Ia.

Esta fundamentação da liberdade de pensamento é

insuficiente (embora tenha importância histórica como tentativa).

Basta observar que, se aquela liberdade fosse materialmente

inviolável, a sua reivindicação contra as seculares opressões teria

sido supérflua. Se o pensamento não é atingível em si mesmo, pode-

se, contudo, compeli-Io em suas manifestações, no seu substrato de

ordem física, e na própria vida do sujeito pensante.

Em todo caso, Espinosa tem o mérito de ter insistido sobre os

limites naturais do poder do Estado, preparando a distinção entre

moral e direito, que devia ser afirmada pouco depois por

Thomasius.

Pufendorf

Saímos, agora, do âmbito dos sistemas que identificam

em um mesmo conceito o direito e a força.

Entre aqueles que, contra as doutrinas de Hobbes e de

Espinosa, mantinham o princípio da sociabilidade do homem,

é de ser lembrado Samuel Pufendorf, alemão (1632/1694),

professor, em 1661, em Heidelberg (onde foi instituída por ele

a prirneira cadeira de direito natural e das gentes), de lá, na

Universidade sueca de Lund.

81

Page 42: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

É um dos mais célebres escritores da escola do direito

natural; todavia, não se pode dizer que lhe tenha levado uma

contribuição de grande originalidade.

Suas obras: Elementajurisprudentiae universalis (1660), De

jure naturae et gentium (1672), De officio hominis et civis (1673),

das quais a primeira constitui uma introdução, a segunda um

completo sistema, e a terceira, um compêndio do mesmo, não

modificando substancialmente os princípios antes neles

estabelecidos, mas representando, de ceto modo, a fusão das teorias

de Grócio e de Hobbes.

O homem é levado a associar-se por instinto social (analogia

com Grócio), mas esse instinto é considerado como derivação do

interesse (analogia com Hobbes). O fim do Estado é a pax et

securitas communis (= "a paz e a segurança comum")

Pufendorf desenvolve longamente a teoria do estado da na

tureza (isto é, anterior à convivência política), no qual todos os

homens eram livres e iguais. Todavia, não havendo nenhuma

garantia para seus direitos, estando expostos a vexames, deviam

submeterse a um soberano, constituir o Estado.

Também aqui se encontra a mesma confusão no conceito de

estado da natureza, pelo qual se entende: a) uma sociedade, um

período histórico anterior àquele da existência do Estado; b) uma

idéia do que seria a condição do homem sem o Estado.

No primeiro sentido, tem-se uma narração histórica

insustentável; no segundo, um princípio hipotético, racional. Ainda

nesse segundo significado, a idéia do estado da natureza pode ser

acolhi

da como expediente dialético porque nos permite clarear as razões

que tomam necessário o ordenamento social.

Mas todos os escritores jusnaturalistas (entre eles Pufendort)

oscilam entre os dois diferentes significados, e isso toma falhas e

facilmente refutáveis suas doutrinas, não obstante a parte de

verdade que encerram.

82

,....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Os jusnaturalistas seguem um método ambíguo, e porisso

imperfeito: dão forma de narrativa histórica aos postulados ideais, e

não ousam afirmar esses postulados sem buscar alguma comparação

histórica. Também eles são semi-idealistas, e, podemos dizer ainda,

pseudohistóricos.

Com Pufendorf a Escola do direito natural apresenta-se em

forma típica, com um dos sistemas mais completos e elaborados.

Pufendorf antes de tudo confirma a distinção entre o direito e a

teologia; além disso, distingue o direito natural do direito positivo,

estabelecendo uma clara antítese entre eles. O primeiro tem a

supremacia: existe antes do Estado, conserva sempre o seu império;

e o direito positivo deve com ele conformar-se. O direito natural

oferece as normas diretivas da legislação.

Pufendorf distingue, ainda (coerentemente, aliás), os direitos

congênitos, dos direitos adquiridos. Aqueles são próprios do homem

isolado, antes de tomar-se "sócio", isto é, antes de pertencer a

alguma associação; estes são os direitos que se agregam ao homem

enquanto partilha uma sociedade (a fanu1ia, o Estado). Nessa

concepção, é característica a prevalência ajustada dos direitos sobre

os deveres. Esse caráter é comum a toda escola do direito natural

(até todo o século XVIII).

Como dissemos, Pufendorf não mostra muita originalidade no

seu sistema, e alguém fez dele um juízo severo (Leibnitz, por

exemplo, disse: Vir parum jurisconsultus et minime philosophus (=

"homem que era pouco jurisconsulto e minimamente filósofo").

Pufendorf é, porém, claro e distendido em suas deduções; e

foi lido também por seu ecletismo, e dominou nas escolas, por

muito tempo. Acham-se de certo modo resumidas, em suas obras,

quase todas as doutrinas que constituem o patrimônio da escola do

direito natural.

83

Page 43: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Locke e outros escritores ingleses

Na Inglaterra, especialmente até o fim do século XVI e

durante todo o seguinte, apareceram manifestações importantes do

pensamento político. Tais manifestações não tiveram, porém, em

geral, caráter puramente especulativo, mas objetivos determinados,

com referência às condições e aos problemas do tempo. Das

disputas teológicas traça a origem o tratado Ofthe laws of

ecclesiastical polity, de Ricardo Hooker (1554/1600), cujos

primeiros livros foram publicados em tomo de 1594. Nessa obra,

Hooker procura definir as relações entre o Estado e a Igreja,

atribuindo ao Rei da Inglaterra o poder supremo em matéria

eclesiástica.

Para chegar a essa conclusão, parte de uma análise das leis

em geral, análise conduzida com método escolástico, mas onde

afIoram, todavia, idéias modernas. Assim, afirma que pela lei

natural, conforme a vontade divina, o poder político funda-se no

consenso de toda a sociedade, porque nenhum homem tem, pela

natureza, o poder de comandar uma multidão de homens; se falta o

consenso, o poder é ilegítimo. Esta referência contratualística foi

depois retomada e desenvolvida por Locke.

No século XVII, aconteceu a grande revolução inglesa

(1688), pela qual se afirmaram e se consolidaram os direitos do

povo e do Parlamento perante a Coroa. Deste modo, vem-se

formando, por meio de múltiplas lutas, aquela constituição política,

que serviu depois de modelo às da Europa continental.

Os estudos dos autores ingleses desse tempo foram

geralmente conexos com o movimento histórico, talvez inspirados

por eles, talvez inspiradores deles. Hobbes, do qual falamos,

representa a tendência absolutística; do mesmo modo Roberto

Filmer (1610/1688), autor do Patriarcha (1680). Milton, Sydney e

Locke representam, ao contrário, a corrente liberal.

João Milton (1608/1674), escritor político, além de poeta, é

autor da Pro populo anglicano defensio (1651). Esse escrito é

84

"........-

..

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

uma resposta ao humanista francês Claudio Saumaise (Salmasio),

que tinha defendido o Rei Carlos I, condenado à morte e

decapitado em 1649, depois de longas lutas com o Parlamento

(Defensio regia pro Carolo I, 1649). Milton sustenta a liberdade de

consci

ência e a liberdade de imprensa, e justifica a morte do tirano. A

polêmica entre os dois escritores desenvolve-se ainda com sucessivas

réplicas.

Algernon Sidney (1621/1683) é autor dos Discorsi sul

governo, publicados em 1698, alguns anos após a sua morte,

ocorrida no patíbulo. Nesses discursos ele defende a soberania

popular, e refuta Filmer, que tinha sustentado, no Patriarcha, a tese

segundo a qual o poder político derivaria de Adão, isto é, teria sua

origem no poder paterno, e teria sido transmitido ao rei por

herança. Essa absurda tese foi depois refutada também por Locke, e

a ela referiu-se ironicamente Rousseau no princípio do Contrat

social. Sidney merece ser recordado, também como pensador e

mártir de suas idéias, também como um dos inspiradores de

Rousseau.

João Locke (1632/1704), que personifica de modo conspícuo

a tendência democrática e liberal oposta à absolutista de Hobbes, é

o escritor mais importante, pois nele se direciona ao senso racional

toda a doutrina do estado de natureza e do contrato social.

Locke difere de Hobbes no espírito e nas conclusões. Se

Hobbes tinha-se valido das hipóteses do estado de natureza e do

conseqüente pacto social, para fundamentar o absolutismo do

Príncipe, Locke vale-se das mesmas hipóteses para demonstrar os

limites jurídicos do poder soberano. Com os seus Dois tratados

sobre o governo (Two treatises of government, 1690), Locke

retoma a revolução inglesa, como mais tarde Rousseau, com seus

escritos análogos, anuncia e prepara a Revolução Francesa.

Locke tem grande importância também na Filosofia geral,

especialmente por intermédio da teoria do conhecimento, que ele

tratou, por primeiro, propositadamente.

85

Page 44: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

No Ensaio sobre o intelecto humano (Essay conceming

human understanding, 1690), sustenta que o conhecimento

advém da sensação e da reflexão (elaboração dos dados

sensitivos): estes seriam os dois únicos poderes cognoscitivos

(Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu (= "Nada

existe no intelecto que não esteja antes no sentido").

A teoria de Locke opõe-se especialmente à doutrina das

idéias congênitas.

Em suas obras políticas, Locke dá uma justificativa

teórica do que se vinha realizando então na Inglaterra. Contra

o ensinamento de Hobbes, sustenta, antes de tudo, que o

homem é naturalmente sociável, não existe estado de natureza

sem sociedade; ao contrário, para o homem o estado de

natureza é exatamente a sociedade. Aquele estado de bellum

omnium contra omnes (= "guerra de todos contra todos"), que

Hobbes tinha fantasiado, é contrário à realidade. No estado de

natureza, qual concebido por Locke, o homem temjá certos

direitos, por exemplo, o direito à liberdade pessoal e o direito

ao trabalho, conseqüentemente à propriedade (que para Locke

funda-se, precisamente, no trabalho).

O que falta é a autoridade que possa garantir estes

direitos. Para assegurar-se tal garantia, isto é, para organizar-

se politicamente, os indivíduos devem renunciar a uma parte

dos seus direitos naturais, consentir em certas limitações; a

isso chega por meio de contrato. Mas aquele que é investido

da autoridade pública

não pode valer-se dela ao seu alvedrio, porque a própria

autoridade lhe é confiada para a tutela dos direitos de cada

um. Se dela abusa, viola o contrato, e o povo retoma, ipso

facto, a sua soberania originária.

O vínculo de obediência dos súditos é, em suma,

subordinado à observância do contrato social por parte dos

govemantes. O espírito da teoria contratualística de Locke

(como, depois, da teoria de Rousseau) está seguro no conceito

de reciprocidade ou bilateralidade da obrigação política.

86

.,..........

......

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

O Estado, para Locke, não é, pois, uma negação, mas uma

reafirmação, sob certos limites, da liberdade natural, que encontra

nele a sua garantia. Os indivíduos sacrificam apenas aquele tanto de

direito e de liberdade, que toma possível a formação do Estado

como órgão superior de tutela.

Assim, embora para Locke o contrato social seja ainda

apresentado como um fato ou evento histórico, esse fato é, por

assim dizer, racionalizado. Aparentemente, o método não difere

daquele de Grócio e de Hobbes: para demonstrar que a atividade do

Estado deve informar-se de certos princípios, não se deixa de

fundamentálos na pura razão, mas se quer descobri -los no

momento de origem do Estado, e apresentá-los como resultado

dessa origem.

O problema da formação histórica do Estado confunde-se,

assim, com aquele do ideal que o Estado deve buscar. A concepção,

que tem em Locke um dos seus maiores representantes e que

já muito antes (como vimos) tinha começado a fazer-se valer,

manifesta de modo típico o esforço para elevar o fato à dignidade de

princípio, ou, mais propriamente, de dar forma de evento empírico

ao que é exigido pela razão.

Com certeza, o contrato social é descrito por Locke como um

fato; porém, como o mais racional dos fatos. Os homens não se

supõem ignorantes ao se reunirem sob um regime político para certa

necessidade exterior que os aflija, nem as diferenças e os perigos do

estado de natureza são imaginados tais que cheguem a tolher a sua

possibilidade de detectar condições ou de fixar limites à autoridade,

à qual se submetem.

A submissão ao poder público não é, então, incondicionada,

e suas condições são representadas precisamente por aquelas

exigências fundamentais, para cuja satisfação todo indivíduo

entrou em regime de convivência política. As próprias exigências

permanecem, porém os fundamentos irremovíveis desse regime.

O atribuir ao consenso dos cidadãos a instituição do poder

público abre espaço, antes de tudo, à tese de que aquela mesma

87

Page 45: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

vontade, por intermédio da qual foi uma vez instituído tal poder,

conserve um predomínio sobre este, e possa, em qualquer tempo,

revogá-Io ou modificar-lhe o ordenamento.

A vontade popular afirma-se, assim, como soberana em geral,

e a legitimidade de um governo é medida pelo consenso popular.

De outro lado, a hipótese de que os indivíduos tenham

fundado o Estado com um ato de vontade, para buscar nele certos

fins determinados, serve de argumento para sustentar que o poder

público esteja ligado ao cumprimento desses fins, e não possa

exercitar-se além ou contra eles. A hipótese do contrato social

assume, assim, caráter de norma ideal. O Estado não é mais mera

expressão de poder, de arbítrio, mas deve, necessariamente, por sua

natureza, estar voltado para garantir os direitos individuais.

Locke tem o mérito de ter determinado a sua doutrina

também nas questões particulares, isto é, de ter construído um

verdadeiro sistema constitucional. Ele traça a doutrina da divisão

dos poderes, que depois será reelaborada por Montesquieu, e expõe

os direitos do povo como unidade e dos cidadãos como indivíduos.

É o maior precursor de Rousseau, o qual declarou expressamente

que Locke tinha tratado do contrato social "segundo os seus próprios

princípios".

Assim, aquela direção, que se tinha iniciado com Marsílio de

Pádua e com os monarcômacos, a cujo respeito as doutrinas de

Hobbes e dos outros absolutistas representam em parte um desvio,

encontra sua síntese e explicação racional em João Locke.

Recordemos, ainda, que Locke fez-se propugnador da

tolerância religiosa, derivando tal conceito da separação entre o

Estado e a Igreja.

De menor importância para a Filosofia do direito é a obra,

sob outros pontos assaz relevante, de David Hume (1711/1776),

que teve, como veremos, certa influência sobre o pensamento de

Kan t.

88

,....

..

.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Dentre seus escritos recordemos: A treatise on human nature

(1739/1740); o terceiro livro dessa obra foi relaborado mais tarde

com o título: Enquiry conceming the principIes ofmorals, 1751);

Essays moral, political and literary (1741/1742).

As teorias de Hume denotam certa inclinação para o

ceticismo, sem incorrer, porém, nos extremos dessa doutrina, e se

distinguem pela fineza de certas análises.

A seu ver, ajustiça não deriva de um sentimento originário,

mas da reflexão e da estimativa de sua utilidade. Todavia, Hume

rejeita as doutrinas de Hobbes e admite que a sociedade tem um

fundamento natural na alma humana.

Às doutrinas de Hume opõe-se especialmente a chamada

escola escocesa, que teve por mentor Tomás Reid (1710/1796:

Inquiry into the human mind on the principIes of common sense,

1764, etc.). Assinale-se que escocês era também Hume.

Essa escola sustenta o valor da verdade atestada pela

consciência comum (principIes of common sense), tanto no campo

teórico quanto no campo ético. Pode-se notar que tal atitude

corresponde, no máximo, àquela manifestada por Cícero contra os

céticos do seu tempo.

A escola escocesa recebeu, porém, subsídios de notável

amplitude, também por obra de outros pensadores, como D.

Steward, J. Mackintosch, etc.6

Leibniz, Tomásio e Wolff

Leibniz - Com Goffredo Guilherme Leibniz

(1646/1716) pode-se dizer que tem início o florescimento da

filosofia alemã. Leibniz foi um pensador vigoroso, que

aplicou sua vasta inteligência a todos os problemas da

Filosofia. Porque se referiu à teoria do

6 Mencionaremos, mais adiante, alguns escritores ingleses também desse período, em

relação a temas particulares, além daqueles da época seguinte.

89

Page 46: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

conhecimento, de foi antagonista de Locke, e contra a sua doutrina

escreveu (em francês) os Nouveaux essais sur l' entendement

humain (1704). Locke tinha combatido, como vimos, a doutrina das

idéias inatas, afirmando que o conhecimento existe só por meio da

sensação e em seguida, funda-se na experiência. Leibniz não

aceita o princípio Nihil est in intellectu, quod non fuerit in sensu, e

sustenta contra o sensismo a existência de atitudes originais do

intelecto; chega, porém, à fórmula "Exclua, salvo o próprio

intelecto" (Excipe: nisi ipse intellectus), o qual tem suas formas

próprias, onde brotam certas idéias (as verdades necessárias), que

não poderiam derivar da experiência.

Em sua obra principal, a Monadologia, Leibniz tenta uma

contemplação cosmológica e afIrma a harmonia preestabelecida do

universo. Em tudo isso há uma razão, e tudo é bom (o mundo

existente é "o melhor dos mundos possíveis", o que, como

observado

por um pessimista, não prova ainda que ele seja bom).

Em outro lugar propõe-se a resolver vários problemas que

derivam de seus princípios fIlosófIcos. Por exemplo, na Teodicéia,

examina como se possa conciliar a presença de um ser divino,

onipotente e benéfico, com os males e as dores da vida; tenta,

também, a justifIcação da divindade.

Deixando de ocupar-nos desses problemas e da obra de

Leibniz, que pertence à FilosofIa geral, apenas nos ateremos àquela

parte que se refere à nossa matéria.

Leibniz foi também jurista e escreveu sobre a jurisprudência

um pequeno livro, em idade ainda muito jovem, visando ampliarlhe

o campo e a melhorar-lhe o método (Nova methodus discendae

docendaeque jurisprudentiae (= "Novo método de aprender e de

ensinar a jurisprudência", 1667).

Nessa obra, Leibniz propõe, entre outras, uma pesquisa do

direito comparado, recolhendo as leis de todos os povos da terra.

Além disso, tentou (cf. o prefácio do Codex juris gentium

diplomaticus, 1693) uma classifIcação da FilosofIa prática, ou seja,

90

~

...

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

das normas do agir, onde se inclina mais a alargar o campo do

direito, que a restringí-Io.

A moral é considerada quase como um direito mais amplo.

Leibniz distingue três graus do bem, consoante o bem diga respeito

a Deus, à humanidade ou ao Estado. O primeiro grau constitui a

probitas ou a pie tas; o segundo, a aequitas, e o terceiro, o jus ou o

jus strictum.

Evocando conceitos aristotélicos, Leibniz denomina essas

divisões de mundo ético:justitia universalis,justitia distributiva

ejustitia commutativa. A isso corresponderiam, ainda,

respectivamente, os três preceitos do Direito romano (Honeste

vivere, suum cuique tribuere, neminem laedere = "Viver

honestamente, dar a cada um o que é seu, e não lesar a ninguém").

Em toda essa grandiosa doutrina se busca, porém embalde,

uma nítida distinção do direito, da Moral, e da Teologia; antes,

renova-se entre esses termos uma confusão, que outros autores (por

exemplo Pufendorf, contra o qual Leibniz polemiza) tinham já

tentado superar. Em outra parte, o direito é defInido por Leibniz

como potentia moralis, em contraposição ao dever, defInido como

necessitas moralis.

É, porém, notável que Leibniz reconheça que o direito (em

sentido estrito) seja concebível, anunciando, assim, um conceito,

que deveria assumir, depois, grande relevo.

Tomásio - O mérito de ter tentado o problema da distinção entre o

direito e a moral com propósitos sistemáticos pertence a Cristiano

Tomásio (1655/1728), mesmo que os elementos da sua doutrina

possam encontrar-se em escritores anteriores, por exem~ pIo, em

Marsílio de Pádua, e até, em parte, em Aristóteles.

Tomásio tem importância notável na história da cultura,

como representante do Iluminismo (Aufkliirung), isto é, daquele

movimento que tendia a divulgar a ciência, com o objetivo de que o

povo dela tirasse proveito, e a sociedade tirasse proveito da

libertação dos preconceitos.

91

Page 47: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Tomásio levou a Filosofia a fins práticos segundo o espírito

do Iluminismo (Aufkliirung). Em seus escritos e em suas lições (nas

quais a língua alemã substituiu a latina, até então predominante)

combateu o método escolástico silogístico, aplicou-se em separar a

ciência, da Teologia, e defendeu a liberdade da ciência com tal

ardor, ao ponto de semear inimizades e perseguições, e de deixar sua

cidade natal, Lipsia, e refugiar-se em Halle, onde ajudou a fundar a

Universidade, na qual foi mestre.

De início, na sua obra lnstitutiones jurisprudentiae divinae

(1688), seguiu as idéias de Pufendorf. Em 1705, publicou outra

obra, Fundamenta juris naturae et gentium, onde o problema da

separação do direito, da moral, é diretamente atacado e tratado com

critérios rigorosos.

O objetivo de Tomásio era principalmente político: propunha-

se traçar os limites da autoridade legítima do Estado, reivindicando

a liberdade de consciência individual, arbitrariamente violada pela

coerção jurídica. Combateu a tortura, os processos contra as bruxas

e os heréticos, propugnou pela liberdade religiosa e de consciência,

e a este propósito conduziu seus ensinamentos; quis dar uma

demonstração científica dos ideais pelos quais lutava na

prática, e assim esclarecer que existem campos nos quais a

ingerência do Estado não pode ter lugar.

Tomásio distingue as normas do agir e as ciências

correspondentes em três espécies: a Ética, a Política, a

Jurisprudência. Essas três disciplinas têm, todas, embora distintas,

um fim único, a felicidade ifacienda esse quae vitam hominum

reddunt et maxime diuturnam et felicissimam, et vitanda quae

vitam reddunt infelicem et mortem accelerant (= "devem ser feitas

aquelas coisas que tomam, ao máximo, a vida dos homens

constante e felicíssima, e devem ser evitadas as que a tornam

infeliz, e apressam a morte").

Nisso, como se vê, Tomásio não tem idéias muito elevadas

nem originais. Mais importante, porém, é a repartição das normas

92

,...

...

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

tendentes a esse último fim. A ética tem por princípio o honestum; a

política, o decorum; o direito, o justum.

O preceito fundamental do honestum, e mesmo da ética, é:

Quod vis, ut alii sibi faciant, tute tibi fácies, isto é, "Farás tu mesmo

a ti o que queres que os outros façam a si". Então, deve-se querer

não como indivíduo, mas como se fosse outro homem. É um

processo de generalização e de purificação da vontade (como uma

forma antecipada e um pouco grosseira do imperativo categórico de

Kant). O preceito do decoro é: "Faze aos outros aquilo que queres

que os outros façam a ti"(Quod vis ut alii tibifaciant, tu ipsisfacies);

é um preceito prático de conveniência ou utilidade. Enfim, o justo

(justum) exprime-se com a máxima (já enunciada nos textos

bíblicos, e também de Confúcio) : Não fazer aos outros o que não

querias fosse feito a ti. Conceito negativo. Enquanto a moral e a

política querem se favorecer, operar positivamente, o direito

prescreveria apenas: não prejudicar.

Não obstante a tricotomia, a antítese principal é aquela

estabelecida entre a ética (ou moral) e o direito.

O pensamento de Tomásio é, em substância, este: a ética

referese exclusivamente à consciência do sujeito, tende a procurar a

paz interna. O direito, ao contrário, regula as relações com os

outros, em seguida estabelece um regime de coexistência e tem

como princípio fundamental a obrigação de não ofender aos outros.

Por isso Tomásio traz como conseqüência que os deveres

morais referem-se somente à intenção, ao foro interno; enquanto o

direitopois que tende à paz externa - concerne apenas à

exterioridade das ações iforum extemum), visando impedir os

conflitos que podem nascer da convivência. Daí seguiria, ainda

segundo Tomásio, que os deveres jurídicos podem fazer-se valer

com a força.

Tudo quanto se desenvolve no âmbito da consciência é

incoercível, porque ninguém pode usar violência em si mesmo.

Não existem também deveres jurídicos para si, nem com res

peito a ações internas. Nesse campo domina só a legislação moral.

93

Page 48: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Portanto, o Estado, que é o órgão do direito, não pode penetrar nas

consciências nem impor alguma crença determinada. Ao contrário,

os deveres jurídicos são coercíveis, porque a coerção é possível com

respeito aos outros, quando se trate de ações externas. Tomásio

chama deveres perfeitos os jurídicos; imperfeitos os morais, porque

não coercíveis.

Temos, portanto, nesses elementos, quase todos os caracteres

diferenciais do direito e da moral, como foram depois expostos por

outros escritores (Kant não fez a não ser repeti-Ios, em substância).

Isso, porém, não significa que tais princípios, como formulados por

Tomásio, sejam em tudo exatos.

Não cremos aceitável, antes de tudo, a distinção absoluta en

tre as ações internas e as externas, porque todas as ações são a um

mesmo tempo internas e externas, isto é, têm um elemento psíquico e

um físico. Não se pode, porém, admitir que as ações internas sejam

reguladas apenas pela moral e as externas, tão-só pelo direito.

O que é verdade é que o direito e a moral são, ambos,

normas universais, que compreendem todas as ações. Assim, a

moral começa a considerar o momento interno da ação, mas

termina considerando também o seu momento externo.

O direito, ao contrário, desenvolve-se, primeiramente, no

aspecto físico ou externo das ações, mas depois remonta à intenção,

ao momento psíquico ou interno, o qual tem, todavia, grande

importância no campo do direito (o direito não é um ordenamento

puramente mecânico das ações).

É real o princípio da coercibilidade do direito; mas isso se

deduz por outra via, partindo do conceito da bilateralidade, que é

essencial ao direito. Nem é próprio chamar os deveres morais

imperfeitos porque incoercíveis; a coercibilidade é só uma forma

de sanção Plli'iicular do direito.

Mas também os deveres morais têm uma sanção - a da

consciência e da opinião pública - e são, por isso, perfeitos por si

mesmos.

94

,...

li

..

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Wolff - Cristiano Wolff (Wolf, Wolfius; 1679/1754) é o

mais célebre dos discípulos de Leibniz. Escreveu numerosos

volumes de caráter enciclopédico, desenvolvendo e vulgarizando a

Filosofia do mestre, que mantém, na Alemanha, o predomínio, até

a chegada da crítica de Kant, que iniciou uma nova era. Wolff

escreveu, dentre outros, uma obra em oito volumes, Jus naturae

methodo scientifica pertractatum (= "Direito natural tratado pelo

método científico", 1740/1748), que é um dos mais vastos e

complexos sistemas da nossa disciplina. Nele predomina, porém, o

caráter escolástico e dogmático, contra o qual devia voltar-se a

crítica kantiana.

O princípio fundamental da Filosofia prática (isto é da moral

e do direito) é para Wolf a idéia do perfeccionismo: o homem tem

o dever de aperfeiçoar-se e de promover o aperfeiçoamento dos

outros. E esse dever é também um direito. Acolhendo os princípios

de Leibniz (que entendia o direito como potencia moralis e o dever

como necessitas moralis), Wolff afirma que o direito não ésenão a

faculdade de cumprir o próprio dever; enquanto o direito permite, a

moral, ao contrário, ordena.

O direito é lex permissiva; a moral é lex praeceptiva. Mas

essa doutrina oferece flanco à crítica, porque tende a confundir

dever moral e dever jurídico; muitas coisas são permitidas pelo

direito, as quais a moral veta. Não se pode, por isso, fazer coincidir

o lícito jurídico com a obrigação moral. De outra parte, o direito

tem

também natureza imperativa, e não simplesmente permissiva. A

verdadeira distinção entre o direito e a moral foi negligenciada por

Wolff, como já tinha sido já por Leibniz.

No seu amplo tratado, Wolff segue, de resto, as doutrinas

tradicionais da Filosofia do direito: a sociabilidade do homem, o

contrato social, etc. Distingüe entre direitos inatos (do estado

natural) e direitos hipotéticos ou adquiridos (do estado sodal). Os

direitos inatos correspondem aos deveres universais, que o homem

tem em razão da sua própria natureza.

95

Page 49: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

É característica de Wolff o abuso da dialética e do

método racional. Com esse método (continuo ratiocinationis filo = "sempre com a tessitura do raciocínio"*). Wolff presume

deduzir a priori também os dados empíricos, ou seja, aqueles

conhecimentos que podemos recolher da observação dos fatos,

da experiência. Chega, portanto, um pouco tarde uma reação

contra o racionalismo, que, com mais justiça, deveria ter-se

dirigido contra os abusos ou as deficiências do mesmo.7

Vico e Montesquieu

Como vimos, os escritores até agora examinados

discutem principalmente o problema do fundamento racional

do direito. Eles negligenciam, todavia, o problema histórico,

genético; não se ocupam do direito como fenômeno histórico e

positivo, mas apenas como idéia e princípio especulativo;

consideram o que o direito deve ser, de preferência, ao que é.

O problema histórico toma-se predominante só no início

do século XIX e o acompanha ainda uma revolução em todas

as doutrinas da Filosofia do direito. No fim do século XVIII,

porém, al

* N. T. - Assim como na tessitura se vai de maneira lenta e contínua até chegar ao

objeto tecido, de maneira igualmente lenta e contínua labora o raciocínio, até que

se

chegue ao pensamento, à idéia.

7 Em razão do caráter sumário desta exposição histórica, deixamos de nos deter a respeito autores de menor importância, especialmente os numerosos jusnaturalistas que nos

séculos XVII e XVIII se ativeram, mais ou menos estritamente, às doutrinas de Grócio, de

Pufendorf, etc. Entre eles (além de Barbeyrac, que já tivemos ocasião de mencionar), recordemos, por exemplo, Burlamaqui (nascido em Genebra em 1694 e morto em 1748), de

família oriunda da Itália (Burlamachi ou Burlamacchi,

de Lucca), emigrada em razão de confrontos religiosos. Suas obras (Principes de droit naturel. 1747; Principes du droit politique, 1751, etc.) tiveram numerosas edições,

quase todas póstumas, também em italiano e em outras línguas. Lembramos ainda a obra do

alemão J. G. Heineccius (1681/1741), Elementajuris naturae et gentium (= Elementos de direito natural e das gentes, 5. ed., 1735, 1768, que teve, também,

várias versões italianas).

96

..,......

.....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

guns escritores, dois sobretudo, antecipam, em certo modo, a

visão desse problema: Vico e Montesquieu.

Giovanni Baptista Vico, napolitano (1668/1744),

escreveu várias obras, dentre as quais especialmente

importantes são: um tratado latino, De universi juris uno

principio et fine uno (1720), e Principi di una scienza nuova

intorno alia comune natura delie nazioni (1725; outras duas

edições di versas dessa obra capital vêm publicadas em 1730 e

1744, a última saiu poucos meses depois da morte do autor).

A mente de Vico é vasta e genial, mas o seu tratado é

muito confuso. Em meio a tesouros de doutrina, a grandes e

profundas verdades, existem também muitos erros, devidos,

em parte, aos escassos conhecimentos históricos de seu tempo.

O intento fundamental de Vico é a conciliação da Filosofia

com a Filologia (esta palavra ele a usa em sentido especial,

não como doutrina meramente literária, mas como ciência dos

fatos humanos, que compreende todos os produtos históricos,

todos os documentos da cultura de qualquer gênero). A

Filologia é a ciência do fato; a Filosofia é a ciência do vero, do

eterno, do racional, do que não muda, do não contingente.

Entre essas duas direções do pensamento, Vico quer

demonstrar que existe uma necessária correlação; reprova em

seus predecessores terem cultivado a Filosofia e negligenciado

a Filologia, isto é, terem-se ocupado mais do abstrato do que

do concreto, mais da idéia do que do fato (assim, nos escritores

do direito natural ele critica a ausência de senso histórico).

Para Vico a conciliação dos dois termos (verum etfactum

convertuntur) é possível porque a mente humana está na raiz

das

duas atividades, ou seja, produz a teoria, tende ao vero

filosófico, enquanto produz também o vero histórico (o

direito natural, diz ele, é uma idéia humana, e é também um

fato humano). Ela apresenta o seguinte princípio ou degnità

(axioma) como base de toda a sua ciência nova: "Este mundo

civil foi certamente feito pelos homens,

97

Page 50: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

porém seus princípios devem ser encontrados em nossa própria

mente humana".

Nossa mente é um reflexo da inteligência transcendente e, ao

mesmo tempo, imanente no mundo, que Vico chama de

"Providência". O desenvolvimento das vicissitudes humanas tem

também

caráter necessário, prefixado, e um significado ideal, além de real.

As verdades eternas, que a razão vem descobrindo, são

atuadas necessariamente pela humanidade no seu curso histórico.

Segue daí que, para Vico, não pode existir radical contraste entre

direito natural e direito positivo. Esses termos designam só os dois

aspectos de uma mesma realidade. No direito Vico distingue

exatamente dois elementos, que chama o vero e o certo; o vero é o

elemento racional; o certo, o elemento positivo, que corresponde à

autoridade.

A natureza humana compreende, segundo Vico, três

faculdades: um conhecer (nosse), um querer (velle), um poder

(posse). O homem é "um nosse, um velle, um posse finito que tende

ao infinito".

Como existe uma mente individual, assim há uma "mente

comum das nações". Vico encontra um paralelismo constante entre o

desenvolvimento da mente humana e as vicissitudes comuns das

nações. Apanha, com síntese extraordinariamente vasta, apesar de,

às vezes, confusa, todos os elementos da vida dos povos, nas

linguagens, nas leis, nas religiões, nas artes, no comércio; quer

compor uma história psicológica da humanidade e lança o olhar,

embora de muito fugazmente e sem ordem rigorosa, em todo lugar e

em todo tempo; descobre, ou crê descobrir leis históricas, e as afirma

com segurança, agarrando-se a suas intuições, muito maravilhosas,

mas não raro falazes.

Na verdade, nele prejudica o exagerado sistematismo, isto é, o

intento de comprimir em leis fixas, em sistema rígido, fatos diversos.

Suas interpretações dos documentos históricos são, por isso, de

serem acolhidas com muita cautela. A preocupação constante de

conciliar a história com a idéia, o fato com a razão, leva a sínteses,

aqui e ali, inexatas por sua própria rigidez.

98

..,.........

"'

"

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Assim, ele nega, por exemplo, a transmissibilidade histórica

do direito, em obséquio ao princípio da uniformidade do espírito

humano. Esse princípio deve, a seu aviso, ser suficiente para

explicar todas as semelhanças das leis e dos costumes.

Vico exclui, portanto, toda recepção, e nega, dentre outros,

que os romanos tenham derivado dos gregos os preceitos jurídicos

das Doze Tábuas. Nisso, provavelmente, ele teve razão, ao menos

em parte, pois a influência grega sobre a lei das Doze Tábuas, se em

verdade não é mera legenda, foi, certamente, assaz limitada. 8

Mas, prescindindo dessa questão particular, observamos que

a transmissibilidade ou comunicabilidade do direito historicamente

sempre se verificou em certa medida. Isto não retira o valor do

princípio da uniformidade do espírito, antes o reforça, enquanto o

fato mesmo da transmissibilidade supõe necessariamente certa

igualdade fundamental do espírito humano. Se esta faltasse, os

institutos de um povo não poderiam valer fora dele, nem aplicar-se

a outro povo.

Considerando a história como um movimento cíclico, que se

realiza em um sentido uniforme, Vico chega a conceber a teoria,

tornada famosa, dos "cursos e recursos" da Humanidade, segundo a

qual existem três espécies de idades: a divina, a heróica e a humana,

às quais correspondem as formas políticas da teocracia, da

aristocracia e da democracia. Elas retomam periodicamente, e é

necessário que a humanidade passe sucessivamente por essas três

fases.

Vico robustece essa sua concepção com uma ampla coleção

de analogias e confrontos históricos, aproxima toda a história

moderna da antiga, vê no princípio da Idade Média uma idade

divina, no feudalismo uma nova idade heróica (a vassalagem

corresponderia, por exemplo, à clientela romana), etc.

8 Cf. sobre esta ainda discutida questão VOLTERRA, E. Diritto romano e

diritti orientali, 1937, p. 175 et seq.; BALOGH, E. Cicero and the greek law. In:

FERRINI, C. Scritti in onore de C. Ferrini. Milano, 1948, v. m, p. 2 et seq.

99

Page 51: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

É claro que essa teoria dos cursos e recursos concilia-se mal

com a idéia do progresso e se inspira em uma espécie de fatalismo,

que não atende nem as exigências da razão prática (pelas quais todo

povo, como todo homem, é o artífice da sua sorte), nem aos dados

da observação histórica conduzida objetivamente.

Contudo, a obra de Vico tem alto valor pelo desenho que

oferece de uma grandiosa Filosofia da história humana, sob bases

principalmente psicológicas. Contém também numerosas

antecipações de doutrinas modernas. Os sociólogos indicam mesmo

Vico como seu precursor, enquanto a ciência nova, divinizada por

ele, seria exatamente a Sociologia. Mas em verdade é glorificar

muito a hodierna Sociologia empírica considerar Vico um seu

predecessor; ele foi, sobretudo, um filósofo do espírito.

***

Carlos de Montesquieu (1689/1755) é um escritor

comparável, sob certo aspecto, ao nosso Vico, por representar, em

verdade, uma antecipação do método histórico, em antítese ao

dedutivo então predominante.

Sua obra, De [' esprit des [ais (1748), conquistou

rapidamente grande nomeada, quiçá maior que a Ciência nova de

Vico, apesar de não ser maior que esta no mérito.

Entre esses dois escritores existe, todavia, uma diferença

notável. Montesquieu é mais exato na consideração dos particulares,

mais elegante, mas menos profundo nos princípios do que Vico.

Montesquieu é mais analítico; Vico, mais sintético. A obra de

Montesquieu é quase fragmentária, sem um vasto desenho orgânico.

Ele parte do princípio de que as leis são "as relações

necessárias que derivam da natureza das coisas". Porém, em geral,

não trata dessas relações, mas desce firme ao exame de cada lei e de

cada instituição, tentando uma explicação delas sob base de fatos e

circunstâncias particulares. Estuda as instituições jurídicas dos

vários povos como produtos históricos e difunde-se em uma série

nume

100

.,......

.....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

rosa de análises em tomo das leis, dos costumes, dos ordenamentos

políticos e sociais, para demonstrar as razões e os motivos que os

determinaram.

Passa, em seguida, a uma resenha, junto aos mais diversos

povos (entre eles alguns orientais, por exemplo, os chineses) e

vários campos da legislação, e faz observações de muita delicadeza,

atribuindo grande importância, na gênese do direito, aos fatores

naturais, especialmente ao clima. Busca descobrir a formação

natural do direito, observar como isso surge na vida social e como

deva adaptar-se às condições do ambiente. O mérito maior de sua

obra está no ter largamente usado o método histórico. Mas a maior

nomeada lhe vem do fato de referir-se a doutrinas políticas.

Montesquieu distingue três formas de governo: República,

Monarquia e Despotismo. (Como se vê, esta repartição não

corresponde à de Aristóteles; o Despotismo, como forma

degenerada, devia ser posto à parte, segundo o conceito aristotélico.)

A cada uma de tais formas de governo Montesquieu atribui

um princípio particular, que é como a sua força motriz, a saber,

respectivamente: virtude, honra, temor.

A República tem por pressuposto a dedicação dos cidadãos ao

bem público, isto é, à virtude, e se distingue em democracia e

aristocracia, segundo que o povo inteiro, ou uma parte dele, tem o

poder soberano.

A Monarquia tem por fundamento ou propulsor psicológico o

amor pelas distinções e privilégios, que Montesquieu chama honra.

O Despotismo funda-se na força e tem, por isso, como sustentáculo

o temor que ela incute. Essa partição, um tanto artificiosa, parece

admirável e dá lugar a discussões tanto múltiplas quanto inúteis.

Entanto, a maior celebridade do Esprit des [ais derivou da

teoria da divisão dos poderes.

Tratando da Constituição inglesa, Montesquieu teve a

oportunidade de destacar que na Inglaterra existia verdadeiramente

um regime de liberdade política (que era o ideal das nações, em

espe

101

Page 52: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

daI da França, então nas vésperas da revolução). Ele se colocou o

problema a respeito de que dependeria essa liberdade, quais seriam

as condições e os fatores que a tinham tomado possível, e entendeu

que o segredo estava no princípio da divisão dos poderes. E enuncia,

então, a máxima: "Para que não se possa abusar do poder, é preciso

que o poder contenha o poder". É preciso, portanto, que os poderes

do Estado sejam organizados de tal modo a frei aremse mutuamente;

que exista um sistema de freios recíprocos (sistema dito também de

pesos e contrapesos). Distingue, portanto, três poderes do Estado:

Legislativo, Executivo e Judiciário; e sustenta que esses poderes

devem estar divididos, independentes um do outro, e confiados a

pessoas diversas, exatamente como acontece na constituição inglesa,

considerada modelo.

É de notar-se, porém, que a análise da Constituição inglesa,

feita por Montesquieu, não é inteiramente exata. Inexato é, também,

como Montesquieu entendeu a divisão dos poderes.

Antes de tudo, não é possível uma divisão rígida, que seria

inconciliável com a unidade da soberania. Em verdade, e a bem

dizer, não se trata de diversos poderes, mas de diversos órgãos, que

devem ser distintos segundo suas respectivas funções, e, mesmo

assim, não no modelo absoluto entendido por Montesquieu.

O princípio impropriamente dito da divisão dos poderes

contém, porém, em si, uma verdade, de resto não nova (Locke e

atéAristóteles tinham acenado para ela). Devemos entender a teoria

assim: das três funções (legislativa, executiva ou administrativa e

judiciária), com as quais se manifesta a vontade do Estado, as duas

últimas devem estar subordinadas à primeira, que tem importância

maior, como expressão direta da soberania. Porém, deve ser

instituída uma tal distribuição das funções que tome possível fazer

valer a lei, por meio dos órgãos judiciários, mesmo contra os atos

eventualmente ilegítimos do governo, que exercita a função

executiva ou administrativa.

O princípio da "divisão dos poderes" tende, sobretudo, a fazer

com que ao órgão que estabelece a lei não compita igualmen

102

..,......-

i....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

te a função de aplicá-Ia e de fazê-Ia executar, o que seria um perigo

para a liberdade dos cidadãos.

Em que pesem suas inexatidões, a doutrina de Montesquieu

tem, pois, o mérito de ter chamado a atenção para um princípio que

se tomou fundamental para as constituições modernas.

Montesquieu traçou, depois, um quadro completo da

monarquia constitucional, contribuindo muitíssimo para tomar

populares no continente europeu as idéias inglesas nessa matéria.

Por isso, ele foi chamado "o pai do constitucionalismo".

Segundo o exemplo inglês, Montesquieu sustenta que o

Poder Legislativo deve estar entregue aos representantes do povo e

a uma assembléia de nobres; ao contrário, o Poder Executivo, a um

monarca inviolável, mas cercado de ministros responsáveis.

Rousseau e a Revolução Francesa

Se Montesquieu tem importância notável na história do

pensamento político do século XVIII, como liame das idéias

inglesas no continente, mais importante ainda é J ean-J acques

Rousseau, de Genebra (1712/1778), que deu forma clara e racional

a tudo o que se agitava confusamente na consciência pública

daquele século. Seu pensamento e seu engenho fizeram que

representasse de modo típico a sua época; fez-se intérprete, como

nenhum outro, das necessidades ideais de seu tempo.

Seus caracteres peculiares foram de uma profunda

sensibilidade, um entusiasmo permanente pelos ideais de justiça

(um "ódio soberano contra a injustiça", como ele escreveu) e, em

geral, uma consciência vivíssima do dissídio entre o ser e o dever

ser, uma espécie de nostalgia daquilo que cada homem deveria ser,

e a diferença do que é.

Em todos os seus escritos, em estilo apaixonado, Rousseau

revela um anseio vigoroso pelo estado de natureza perdido, uma

aspiração inexaurível por um destino superior da humanidade, à

103

Page 53: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

qual os fatos não correspondem. Sua obra tem mesmo o caráter de

um aposto lado.

A atividade de Rousseau desenvolve-se em diversos campos;

por exemplo, também na Pedagogia, com o Emílio (Émile), uma de

suas maiores obras, que tende a reformar os sistemas de educação

das crianças, de conformidade com a idéia de retomar à natureza, de

abandonar tudo o que é falso, fictício, etc.

Vamos restringir nossas considerações às obras que

concemem à Filosofia do direito, especialmente ao Discurso sobre a

origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens

(Discours sur I' origine et les fondements de I 'inégalité parmi les

hommes, 1753), e ao Contrato social (Contract social, 1762), obras

que se interligam e se completam.

A primeira pretende ser uma história (em grande parte

conjectural) do gênero humano e desenvolve a tese de que os

homens teriam sido, originariamente, livres e iguais, vivendo com

extrema simplicidade, nos bosques, apenas segundo os ditames da

natureza (no chamado "estado de natureza"). Nessa primeira fase, o

homem não tinha sido ainda deteriorado pela degeneração da

civilização; era bom, uma vez que o homem nasce bom, como tudo

o que vem da natureza; e era feliz.

Como aconteceu que esse estado de felicidade acabou por

ser perdido?

Rousseau procede, aqui, por hipóteses: chega a examinar a

origem da civilização, que para ele é um desvio, uma corrupção do

estado de natureza. Alguns homens mais fortes impuseram-se aos

outros. "Aquele que por primeiro fechou um campo e disse: 'este é

meu' foi o primeiro ator da infelicidade humana". À propriedade

privada agregou-se a dominação política; e assim, pelo domínio de

certas paixões, um regime artificial de desigualdades pôs os

homens em uma relação de dependência recíproca, contrária aos

princípios naturais do seu existir. Determinou-se, em suma, uma

antinomia profunda entre a constituição natural do homem e a sua

condição social.

104 .&....

~~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

o Discurso termina com uma viva pintura dos males e

das injustiças que afligem os homens, isso não sem um particular

aceno para as condições políticas daquele tempo.

O Contrato social prossegue essa ordem de pensamentos, e

começa onde o Discurso sobre a desigualdade termina.

O Discurso tinha sido todo ele uma nostalgia do estado de

natureza. No Contrato social, Rousseau busca a solução do

problema prático. Reconhece que um retomo puro e simples ao

estado de natureza, depois de atingido o estado de civilização, é

impossível, "da mesma forma que não é dado a um velho retomar

àjuventude". A sociedade política deve aceitar-se como um fato

iITevogável.

Rousseau mesmo não preconiza o retomo ao estado primitivo

"de natureza", mas busca um equilíbrio, um substitutivo do retomo.

Em substância - observa ele -, o que constituía a felicidade primitiva

era o gozo da liberdade e da igualdade. O que importa é, pois,

encontrar um modo para restituir ao homem seI vagem o gozo

desses direitos naturais, para modelar, com base neles, a

Constituição política. Para essa finalidade, ele recorre à idéia do

contrato social, seguida ao seu tempo.

Para Rousseau, porém, o contrato social deve ter um conteúdo

preciso e determinado. Deve oferecer exatamente a solução do

problema. Os termos dessa solução são assim enunciados por

Rousseau: Trouver une forme d'association, qui defende et protege

de toute Ia force commune Ia personne et les biens de

chaque associé, et par laquelle chacun, s 'unissans à tous, n'

obéisse, pourtant qu' à lui même et reste aussi libre, qu ' auparavant

(= "Encontrar uma forma de associação, que defenda e proteja de

toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pelá qual

cada um, unindo-se a todos, obedeça, assim, a si mesmo, e

permaneça livre daí por diante" ).

O contrato social representa, segundo Rousseau, a forma ideal

de garantia, na qual a inserção em um corpo político não des

105

Page 54: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

trói a liberdade de cada um. Por isso o conteúdo do contrato é

determinado a priori; não é qualquer coisa de contingente (como,

por exemplo, para Grócio), mas pode significar apenas, e

necessariamente, a consagração política dos direitos de liberdade e

de igualdade próprios do homem no estado de natureza.

Portanto, o contrato não se refere à gênese histórica do

Estado, nem pretende representar a estrutura real dos Estados

existentes. Se fosse assim, compreenderia menos o escopo essencial

da obra, que é precisamente contrapor à realidade um ideal.

Rousseau bem sabia que um contrato social, como ele o

descrevera,jamais aconteceria; que, ao contrário, os fatos observados

contrastavam com ele; mas, por isso mesmo, ele escrevera o

Contrato social. Com o Contrato, quis afirmar categoricamente uma

necessidade racional: indicar como a ordemjurídica deve ser

constituída, por que devem ser conservados socialmente íntegros os

direitos que o homem já possui da natureza.

Para Rousseau, o contrato social é, em suma, um postulado

da razão, uma verdade não histórica, mas normativa e reguladora.

O erro de muitos escritores precedentes, que tinham

considerado o contrato social como um fato acontecido, estava bem

afastado da mente de Rousseau. Ele pretende ditar leis justas

ifoederis aequas leges = "leis equitativas de aliança"), movido pelo

Contrato social, depois de ter declarado explicitamente que as leis

vigentes (positivas) eram injustas.

Não se pode, pois, cometer maior erro do que interpretar o

Contrato social como um fato histórico, ou criticá-Io como se fosse

tal.

O direito natural de liberdade e de igualdade constitui o ponto

de partida e a base da construção política de Rousseau. O Estado

existe somente para a atuação desse princípio; portanto, somente

quando o seu ordenamento se conforma com isso, ele é um

verdadeiro Estado, ou seja, natural e racionalmente legítimo.

Porque a liberdade e a igualdade devem ser conhecidas no

Estado, não se segue que o Estado tenha tido origem no contrato;

106

"",..-

.....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

mas, ao contrário, o Estado deve-se supor originado do contrato para

que aqueles direitos fundamentais sejam nele reconhecidos.

O ponto de vista empírico é assim superado: o contrato social

não é mais um fato, nem depende do arbítrio de qualquer um; mas é

o resultado necessário de termos dados objetivamente e fixados pela

natureza das coisas; é a interferência ideal dos direitos conaturais do

indivíduo.

Assim, a máxima do contrato tem para Rousseau um

significado eminentemente regulativo, ou seja, deontológico: é o

tipo universal da Constituição política, que a razão revela como

conforme à substância do homem, e serve por isso como critério

para avaliar as Constituições existentes.

Para Rousseau, o contrato social deve ser concebido do

seguinte modo: é necessário que os indivíduos, em determinado

momento, confiram os seus direitos ao Estado, o qual depois os

retoma a todos, mudado o nome (não serão mais direitos naturais,

mas direitos civis).

Desse modo, concluindo todos igualmente o ato, nenhum será

privilegiado; é assegurada, assim a igualdade.

De outro lado, cada um conserva a sua liberdade, porque o

indivíduo toma-se súdito unicamente com respeito ao Estado, que é

a síntese das liberdades individuais. Por essa espécie de novação, ou

transformação dos direitos naturais em civis, os cidadãos têm

assegurados pelo Estado aqueles direitos que já possuíam por

natureza.

Rousseau não entende, pois, que pelo contrato social exista

uma real alienação da liberdade individual. Esta liberdade, di-Io

expressamente, é inalienável, porque constitui a natureza humana

mesma, e o homem não pode renunciar à sua natureza. (Um contrato

pelo qual o homem se privasse da liberdade seria nulo.)

O contrato social representa apenas o procedimento dialético

pelo qual os direitos individuais convergem no Estado e por ele de

novo voltam reforçados e reconsagrados. O efeito é exatamente que

todos os homens se tornam livres e iguais como

107

Page 55: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

.."

GIORGIO DEL VECCHIO

'11:1

no estado de natureza, enquanto seus direitos adquirem uma

garantia tuteladora, que faltava naquele estado. Os indivíduos

são súditos unicamente da vontade geral, que eles mesmos

concorrem a formar.

Para Rousseau, a lei não é outra coisa que não a

expressão da vontade geral; não é, pois, um ato de comando

arbitrário. Nenhum comando é legítimo se não se funda sobre

a lei, isto é, sobre a vontade geraL Nesta vontade geral

consiste a verdadeira soberania, que não pode, portanto,

atentar para um indivíduo, ou para uma corporação particular,

mas sempre e necessariamente para o povo enquanto constitui

um Estado.

Posto assim o princípio da soberania popular, Rousseau

aferrava-se tanto no seu rigorismo que não admitia nem

mesmo uma representação do povo, mas queria o exercício

direto da soberania. (Esta sua concepção tem uma certa

analogia com o que se pratica hoje, por meio do referendum,

na terra de Rousseau, em Isvizzera.)

A soberania é inalienável, imprescritível e indivisível.

Se o próprio governo, ou poder executivo, é afeto a

determinados órgãos ou indivíduos, a soberania conserva

sempre a sua sede no povo, que pode, a qualquer momento,

revocá-Ia a si.

Sob tais princípios fundou-se o programa da Revolução

Francesa, no qual teriam alguma influência as doutrinas de

Montesquieu e de outros. Mas idéias de Rousseau tiveram

maior eficácia, pois naquela época tudo concorria para a

valorização das teorias do direito natural, de que Rousseau era

o último e o mais eloqüente intérprete.

Aquelas idéias, com algumas modificações,

transformaramse em sistema positivo com as Declarações dos

direitos do homem e do cidadão que, aprovadas em 1789,

figuraram como preâmbulo da Constituição de 1791 e, depois,

com algumas alterações, das outras Constituições francesas

que se seguiram àquela.

Em parte, os princípios das Declarações foram

acolhidos também no nosso Estatuto de 1848 (que teve como

fontes próximas as Cartas constitucionais da França e da

Bélgica, para onde aqueles 108

.. HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

princípios, com certas adaptações, tinham sido transferidos), e daí na

nova Constituição da República italiana. A eles é preciso voltar para

encontrar a origem histórica das modernas Constituições.

Advirta-se que a idéia de uma Declaração de direitos não era

nova. Já havia precedentes na Inglaterra, especialmente no bill of

rights de 1688, com o qual se punham as bases das garantias

constitucionais perante o poder da Coroa. Em seguida, nas colônias

inglesas da América do Norte, com os bills of rights pelos quais (no

ano de 1774 e nos seguintes) as próprias colônias reivindicaram seus

direitos ante a mãe pátria, para se tomarem independentes.

É fora de dúvida que esses precedentes legislativos

influenciaram na Declaração dos direitos na França. Com efeito,

eram ali bem conhecidas as lutas pela independência da América,

nas quais alguns franceses tinham tomado parte com La Fayette; e

eram também conhecidos, em especial dos membros da Constituinte,

os bills of rights. Mas isso não retira a importância da Declaração

dos direitos franceses, na qual, mais que nos bills de tipo inglês, se

têm formalizações gerais, referentes não só a determinado povo, mas

a toda a humanidade.

De resto, e em última apálise, tanto a Declaração francesa

como os bills ingleses e americanos têm uma fonte comum: os bills;

são o reflexo das teorias da escola do direito natural. A Declaração

francesa pode ser considerada uma derivação extrínseca dos bills

americanos, mas intrínseca das teorias de Rousseau. Note-se que

Rousseau precede de muito também os bills americanos (1774) com

o Contrato social, que é de 1762, e teve, na formação daqueles,

alguma influência, pelo menos indireta, juntamente com Locke e

outros autores da escola do direito natural.

Kant

Na ordem especulativa, Emmanuel Kant (1724/1804)

fez qualquer coisa de semelhante ao que, na ordem política,

tinha feito Rousseau. O sujeito, reconhecido como o princípio

na ordem po .. 109

Page 56: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

lítica, é também reconhecido como o princípio na ordem do

conhecimento; e Kant representa, exatamente, como veremos, essa

conquista especulativa.

Na Filosofia do direito, Kant não foi grande inovador. Apenas

percorreu e clareou, com método rigoroso, o antigo procedimento da

escola do direito natural. Na verdade, aquela escola tinha afirmado

um justo princípio, isto é, que a base do direito está no homem. Mas

tinha dado (ao menos aparentemente) um significado histórico

àquilo que era, ao contrário, um princípio racional; tinha

representado como processo empírico aquilo que era um processo

ideológico.

A escola do direito natural gerou também quase uma

mitologia, que ofereceu, depois, matéria à zombaria. Mas a idéia de

partir do homem para chegar ao Estado, entendendo este como

síntese dos direitos fundados na natureza humana, tem uma razão

profunda; nem foi ela, jamais, em verdade, refutada, nem mesmo da

parte daqueles que criam demolir o contrato social com argumentos

históricos.

Na Filosofia do direito, Kant tem o mérito de ter removido

aquela confusão entre o histórico e o racional, afirmando o valor

puramente racional (relativo) dos princípios do direito natural.

De resto, já em Locke e em Rousseau, bem que de forma a

recordar o antigo equívoco, vive latente essa concepção. Kant o

afirma explicitamente, e concebe o contrato social como pura idéia

que exprime o fundamento jurídico do Estado, o seu arquétipo

racional, não um fato realmente acontecido.

Costuma-se exprimir essa correção de método dizendo que

com Kant termina a escola do direito natural (Naturrecht) e começa

a escola do direito racional (Vernunftrecht). O direito natural torna-

se direito racional.

Mas não é necessário recordar que Kant não fez outra coisa

que cumprir um processo de correção metodológica, já iniciado

havia muito, e fora quase complementado na obra de Rousseau. Se

não é o fundador da Filosofia moderna (que remonta a Descartes e a

Bacon), Kant é, certamente, o seu renovador.

110

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Com Kant tem início, na Filosofia, um novo período, e para

ele convergem as diversas correntes filosóficas como o idealismo, o

empirismo, o positivismo, enquanto buscam nele as próprias

premissas e os germes do seu ulterior desenvolvimento. Ele é, sem

dúvida, o maior filósofo de nossa era e, talvez, de todos os tempos.

Toda a sua existência foi dedicada unicamente ao pensamento.

Em sua vida, que se passou por inteiro na nativa Konigsberg,

seguiu Kant uma rígida disciplina, dedicado exclusivamente à

meditação e à Filosofia; compôs um sistema vastíssimo e profundo,

tratando de todos os mais difíceis problemas. A sua importância vai

muito além dos limites da nossa disciplina. Assim, como já acena

mos, Kant foi mais inovador na Filosofia teórica e, em especial, na

Gnoseologia, do que na Filosofia do direito. Suas obras principais

são: Crítica da razão pura (1781), Fundações da meta física dos

constumes (1785), Crítica da razão prática (1788), Crítica do juízo

(1790). Além disso, e especiamente importantes para a nossa

matéria, os escritos Sobre a paz perpétua (1795) e Pincípios

metafísicos da doutrina do direito (1797).

Na Filosofia teórica, Kant répresenta um novo rumo, o

criticismo, que se distingue tanto do dogmatismo quanto do

ceticismo, e supera a ambos.

Kant havia crescido, primeiramente, sob a influência da

escola racionalística wolfiana, isto é, de uma Filosofia dogmática,

com uma fé cega no poder da razão, da qual tudo cria poder extrair

deduti vamente, pela reflexão (continuo ratiocinationis filo).

Julgava conhecer todo esse racionalismo dogmático e

raciocinava sobre a alma, sobre o mundo, sobre Deus, sem

preocuparse com os limites da razão humana. Daí suas afirmações:

"A alma éimortal, o mundo é infinito", etc., afirmações não

demonstradas, mas aceitas como tais.

Depois de ter seguido por certo tempo essa Filosofia, foi

abalado em sua fé pela tendência empírica manifestada na Inglaterra

e na Escócia, especialmente pela Filosofia cético-empírica de D.

111

Page 57: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Hume, o qual havia levantado fortes dúvidas sobre o valor de nossas

idéias racionalistas e, antes de tudo, do princípio da causalidade, que

é fundamental para a ciência. Tem esse princípio um valor objetivo?

O exame dos fatos nos permite afirmá-Io com certeza? Na realidade

a observação externa nos apresenta apenas uma sucessão de fatos,

não um liame necessário; mostra que acontece alguma coisa, mas

não exclui que poderia também acontecer de modo diverso. A

necessidade não pode, portanto, ser extraída dos fatos, ou seja, da

experiência (Kant dirá depois que se tal princípio não pode ser

extraído dos fatos, pode sê-Io do intelecto).

Daqui o ceticismo de Hume, que sacode Kant do seu "sono

dogmático" (como ele escreveu), e o impulsiona a procurar e a

elaborar um sistema direcionado para superar criticamente tanto o

dogmatismo tradicional, como o empirismo cético.

Kant propõe-se a indagar as condições e os limites do nosso

conhecimento, determinar-lhe a possibilidade e o valor. Não o move

nem a fé cega na nossa razão nem o preconceito de que a nossa

mente seja passiva diante da experiência e incapaz de chegar à

universalidade.

Antes de tudo, ele distingue um elemento subjetivo e um

elemento objetivo. Todo conhecimento implica uma relação entre

um dado objetivo e um sujeito (toda experiência supõe alguém que

experimenta). Não se pode dizer que a realidade passe com certe

za em nosso espírito, em nossa mente, sem receber alguma marca.

A realidade, enquanto conhecida por nós, sofre as

modificações e as leis da nossa mente; enquanto apresentada por

nós, não se nos apresenta a não ser nas formas da nossa apreensão.

O modo de apreensão marca o objeto mesmo conhecido, como a

mão à neve que aperta.

Da premissa de que todo conhecimento implica a devida

relação, segue-se que não se pode falar de uma realidade conhecida

em si mesma, fora das formas subjetivas. Em outras palavras, a

"coisa em si", o absoluto, o noumeno, é inconcebível. Conhece

112

~

Jii..

.

HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

mos o ser somente enquanto ele se nos aparece, vale dizer, como

fenômeno (que significa exatamente aparição).

Kant distingue as formas (subjetivas) da matéria, do

conhecimento. Entre as formas, distingue aquelas que tomam

possível a percepção dos sentidos (formas de intuição) e aquelas que

tomam pos

síveis as operações lógicas, ou seja, os juízos (formas do intelecto).

As formas que fazem possível a intuição sensível são o

espaço e o tempo, que não são objetos existentes fora de nós, mas

apenas condições do pensamento. Com efeito, todos os dados do

mundo sensível são finitos: o espaço e o tempo são, ao contrário,

infinitos, não derivam da experiência, mas são pressupostos da

experiência. Se eles fossem objetos, deveríamos senti-Ios e

conhecê-Ios, colocando-os em um outro espaço e outro tempo, o

que é absurdo.

Além dessas formas de intuição sensível, existem as

categorias, ou formas do intelecto. Kant compilou uma tábula dessas

categorias, reduzindo-as a quatro espécies (quantidade, qualidade,

modo e relação). Cada uma delas compreende três; assim, as

categorias seriam doze. A principal entre elas é a da causalidade, a

qual, segundo um grande filósofo kantiano, Schopenhauer, é a única

verdadeira categoria, a qual toma possível a ciência natural.

É verdade que a experiência, por si só, não nos dá o princípio

da causalidade, mas isso não impede que ele seja um modo

funcional para apreender, colocar e coordenar os dados da

experiência. Assim se supera a posição cética de Hume.

Kant distingue duas espécies de juízos: analíticos e sintéticos.

Os juízos analíticos são aqueles nos quais o predicado pertence ao

sujeito, como implicitamente contido no seu conceito; portanto, o

predicado não acarreta nada de novo, mas apenas esclarece a noção

já dada. Exemplo: todo corpo é extenso. Este é um juízo analítico

porque o predicado extenso está já compreendido na noção do

sujeito corpo.

Nos juízos sintéticos, ao contrário, o predicado está fora do

conceito do sujeito, apesar de, no juízo, estar ligado com ele. Exem

113

Page 58: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

pIo: todo corpo é pesado. Este é um juízo sintético, porque o

predicado pesado agrega qualquer coisa que não está compeendida

na noção do sujeito corpo.

Kant distingue ainda os juízos segundo se completam

independentemente da experiência, a saber: por meio do pensamento

puro (a priori) ou da experiência (a posteriori). Os juízos a

posteriori são sempre sintéticos, isto é, por intermédio da

experiência, mostram algo de novo, que não está implícito no

sujeito. Os juízos analíticos são sempre a priori (não é necessária a

experiência para conhecer o que está inserido em dado conceito).

Ora, pergunta-se (e é este o problema capital): podem darse

juízos sintéticos a priori? Isto é, pode o intelecto, ele só, por si

mesmo, sem a experiência, chegar a conhecimentos novos?

Kant responde afmnativamente, mas só mediante noções

formais. Assim, a matemática, a geometria, são ciências a priori,

que contêm, além de juízos analíticos, também juízos sintéticos. As

ciências naturais compreendem apenas noções a priori, ou seja,

verdades universais e necessárias.

Os elementos subjetivos formais, que não derivam da

experiência, mas a precedem e a tomam possível, têm os caracteres

da

necessidade e da universalidade, enquanto os elementos materiais

do conhecimento, que derivam da experiência, têm os caracteres da

particularidade e da acidentalidade. Como dissemos, porém, é esta

a conclusão mais importante da crítica da razão pura: os elementos

formais valem só enquanto se referem a uma experiência

possível. O absoluto ou, como diz Kant, o noumeno, não pode ser

sujeito de conhecimento. Conhecer qualquer coisa in se é

impossível, porque o conhecimento implica sempre uma relação.

Nossos

juízos não são válidos, cientificamente, se transcendem a

possibilidade de alguma experiência.

Kant admite, porém, além das formas de intuição sensível e

as do intelecto (categorias), os princípios da razão, isto é, as idéias

da alma, do mundo e de Deus. Mas essas idéias, apenas tendo na

114

"".....-

i..

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

ordem dos conhecimentos uma certa função unificadora, não podem

chegar ao seu objeto, que permanece ao de lá da experiência

possível: são, pois (na linguagem kantiana), princípios regulativos,

mas não constitutivos.

Sendo assim, em sede puramente teórica ou científica, não

estamos em condições de resolver questões como estas: a alma é

imortal? O mundo teve um princípio no tempo e terá um fim? Existe

uma vontade livre? Existe uma divindade?

A todas essas perguntas podemos responder de modo

contraditório. Podemos desenvolver com igual razão tanto uma

resposta afirmativa quanto uma negativa. Isto porque não é possível

o experimento a respeito das idéias metafísicas.

Com efeito, Kant passa a demonstrar, para cada um desses

problemas, tanto teses quanto antíteses (Exemplo: o mundo tem um

princípio no tempo e um limite no espaço; o mundo é infinito seja

quanto ao tempo, seja quanto ao espaço), para concluir que não pode

existir verdadeiro conhecimento dessas coisas em si, mas apenas dos

fenômenos, e que a estes apenas são aplicáveis às categorias do

intelecto.

O conhecimento é, pois, relativo. Por outro lado, esta

afirmação não é, porém, cética, pois Kant sustenta que o

conhecimento, nos seus próprios limites, é necessariamente

uniforme e perfeitamente válido para todos os seres pensantes.

Portanto, também para Kant o homem é a medida de todas as coisas,

mas o homem entendido como sujeito de conhecimento, o homem

universal. O sofista Protágoras, ao contrário, afirmava que cada

homem (indivíduo) é a medida de todas as coisas, o que conduz a

negar inteiramente a possibilidade do conhecimento, por substituí-Io

pela arbitrária e mutável opinião individual.

Vamos agora à parte prática, à Ética em geral, no sistema

de Kant.

Os homens têm não só faculdade cognitiva, mas também ati

Va. Enquanto o conhecimento teórico do absoluto é impossível,

115

Page 59: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

li

.

.

li~ I!II

:1

GIORGIO DEL VECCHIO

mediante a prática, o ser subjetivo encontra-se em uma condição

melhor e tem uma certeza absoluta que o conhecimento teórico não

lhe poderia dar. No mundo prático, estamos como iluminados, temos

consciência de um dado a priori, que tem para nós um valor

inconcusso, um princípio que não está posto propriamente no

conhecimento, que é mais uma revelação do que um conhecimento;

éo vislumbre de uma verdade transcendente, que nos ensina

imperiosamente o que devemos fazer e o que não devemos fazer.

Este

princípio é a lei do dever.

Assim Kant afIrma o primado da razão prática sobre a

teórica. O homem, como ser ativo, está em contacto com o absoluto

mais que como ser cognoscitivo. (Não devemos confundir os títulos

das obras de Kant, diferentemente abreviados; os títulos completos

deveriam ser: Crítica da razão teórica pura, Crítica da razão

prática pura. A razão pura, ou seja, independente da experiência,

existe, segundo Kant, tanto teórica quanto praticamente.)

Na Crítica da razão prática Kant refuta antes de tudo os

sistemas de moral fundados sobre a utilidade (eudaimonismo). Nega

que a regra suprema do agir seja a propensão para a felicidade,

sendo este um elemento variável.

Ao contrário, a moral distingue-se radicalmente do útil e do

prazer. Se se age por causa do útil, a ação perde o seu caráter moral.

A moral é independente, é superior à utilidade. Ela comanda de

modo absoluto. É como uma voz sublime que impõe respeito, que

aconselha invisivelmente, ainda que se queira fazê-Ia calar, e

nos preocupemos em não ouvi-Ia. Ela quer que nossas ações

tenham um caráter universal. A isso se reduz a lei moral, que Kant

chama "imperativo categórico" e assim formula: "Age de modo que

a máxima da tua ação possa valer como princípio de uma legislação

universal".

Isso signifIca que nossa ação não deve ser movida por impul

sos particulares, não deve existir contradição entre a nossa ação

individual e aquilo que deve ser possível a todos.

116

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Este é um princípio puramente formal, não fornece preceitos

de ética material, não diz o que se deve fazer, mas como, com quais

intenções se deve agir.

Ocorre, portanto, em razão desse princípio, que se deve agir

com a consciência do dever, de modo que seja possível uma

legislação universal conforme a atuação particular. Por exemplo: o

furto é logicamente uma contradição, porque com ele se pretende

adquirir a propriedade, enquanto ele é a negação da propriedade; daí

não poder ser colocado como princípio universal, pois é contrário à

lei moral.

Lembre-se de que, neste particular, Kant não afirmou nada de

verdadeiramente novo: a lei moral por ele formulada não é

substancialmente diversa daquela que já se encontra enunciada nos

antigos pensadores, especialmente na doutrina cristã ("Não fazer aos

outros", etc.). É, porém, muito abstrata e desenvolvida na sua

expressão.

O próprio Kant, quando se lhe objetou a pouca novidade do

seu conceito sobre a lei moral, mostrou-se satisfeito com tal

observação, pois lhe teria parecido estranho que se esperasse dele a

invenção de uma nova moral, como se ela não devesse ser a mesma

em todo tempo e sentida igualmente por todos.

A originalidade de Kant está no modo de conceber o valor

desse imperativo categórico. "Duas coisas", escreve ele, "enchem a

alma de sempre nova admiração e reverência: o céu estrelado sobre

mim, e a lei moral em mim".

Esta lei, o dever, é a maior certeza que temos. De tudo

podemos duvidar, menos disso.

Em geral os moralistas antes de Kant tinham posto primeiro o

conceito de liberdade, daí o de dever, ou seja, da lei moral, que

impõe certo uso da liberdade. Freqüentemente, ainda, os moralistas

partiam do postulado da existência de Deus, para fundar sobre ele a

lei moral. Kant inverte tudo isso e parte do imperativo categórico,

como da primeira certeza. A liberdade não precede o dever, mas é

uma conseqüência dele; sem ela o imperativo categórico

117

Page 60: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

III~ 111I 111

GIORGIO DEL VECCHIO

!!lI

I l i !,' li

se tomar absurdo; então, devemos admiti-Ia como corolário do

imperativo.

A liberdade é noção metafísica, e não se pode dar dela

demonstração teórica (que requereria o conhecimento do absoluto).

Portanto, na ordem prática devemos crer-nos livres, porque sem essa

crença não se explicaria a consciência do dever.

Destarte, a liberdade, que a crítica da razão pura teórica tinha

deixado em suspenso, é reafirmada na ordem prática como exigência

da nossa conciência moral.

Analogamente, como corolário do imperativo, Kant chega a

admitir a existência de Deus e a imortalidade da alma, porque a

razão exige necessariamente, como afirma Kant, o prêmio ou a pena

para as ações. E essas penas e essas recompensas não poderiam atuar

sem a existência de Deus e sem uma vida ultraterrena. Mas o

fuÍiâamento do sistema permanece sempre o imperativo categórico,

que é como um sinal do absoluto vivo no nosso ânimo,

incomparavelmente superior a qualquer conhecimento dos

fenômenos.

Depois de vermos os caracteres gerais da ética kantiana,

vejamos suas divisões.

Kant estabelece uma antítese clara entre moral e direito,

fundando-se sobre a distinção entre os motivos do agir (que Kant

chama "ações internas") e o aspecto físico do agir (que Kant chama

"ações externas").

Para a Moral, o que importa é apenas o motivo da ação,

enquanto o efeito físico dela é de todo indiferente: uma ação é boa

quando é realizada com intenção moral, isto é, tem por motivo o

respeito da lei moral. O essencial é, pois, agir com a consciência do

dever (princípio formal). Conseqüentemente, a mesma ação feita

por outro motivo, que não o respeito da lei, é de ser reprovada. É

imoral agir por uma paixão, por um impulso, por um sentimento.

Como de repente se vê, esta doutrina kantiana tem, pelo

menos aparentemente, qualquer coisa de rude, já que não faz

nenhuma distinção entre motivos superiores e inferiores, altruísticos

e

118

,...

Ir

..

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

egoísticos, nobres e ignóbeis. Por exemplo, o sentimento da

compaixão pode determinar-se para ações que não consideramos

imorais; nem o afeto pelos amigos, onde somos levados a

beneficiálos, pode ser equiparado a sentimentos baixos ou egoístas.

Todavia, esses vários movimentos das ações seriam, todos eles,

segundo Kant, reprováveis. A moral exige o superamento de toda

afeição sensível, a pura autonomia, ou seja, a determinação segundo

a lei universal do dever.

A esse respeito característico da moral kantiana não se tem

economizado críticas. Recordemos apenas o famoso epigrama do

poeta Schiller (o qual era, todavia, sequaz de Kant na Filosofia em

geral): "Sirvo de bom grado os amigos, mas, desgraçadamente o

faço com interesse, e por isso me punge o remorso de não ser

virtuoso" .

Pode-se responder brevemente a essa ironia observando que o

afeto é um guia mendaz. A amizade deve estar subordinada à

justiça, e não se deve favorecer sempre os amigos só por serem

amigos. A máxima do dever é mais alta do que todo motivo

particular.

Kant chegou, porém, a extremos de rigorismo. Ressurgindo

um caráter da moral histórica, traçou uma separação absoluta entre

o que é dever e o que não o é, ou seja, entre o bem e o mal, sem

levar em conta nenhum grau intermédio. Todavia, mesmo

admitindo-se a supremacia da lei moral como princípio formal, deve

ser possível distinguir as paixões segundo sejam mais ou menos

egoístas, e até segundo o seu diverso valor moral (isto mostraram

particulannente J. Stuart Mill e outros filósofos ingleses).

O outro ramo da ética é o direito. Este, segundo Kant,

contempla apenas o aspecto físico do agir, ou seja, considera

somente se a ação realizou-se, ou não, prescindindo dos motivos

que a tenham determinado. Tal concepção mecânica do direito, de

resto não nova (recordem-se as teorias de Thomasius), é, porém,

insustentável, pois que o direito não prescinde inteiramente dos

motivos. Pode-se observar que se Kant tivesse sido jurista teria

compre

119

Page 61: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

..

I

. . GIORGIO DEL VECCHIO

endido de quanta importância é o respeito ao animus em todo ramo

do direito; e certamente se teria resguardado de fundar a distinção

entre moral e direito sobre aquelas premissas.

Se eventualmente o direito deixa certa latitude aos motivos,

isso não significa que ele não resguarde, em alguma medida, o

elemento psíquico. Nenhuma valorização jurídica de uma ação seria

possível sem volver às intenções. É verdade que a moral parte da

consideração do motivo para chegar a considerar o aspecto físico; lá

onde o direito segue um procedimento inverso; mas, em um e outro

caso, trata-se apenas mais de precedência, ou prevalência na

consideração, do que de exclusividade. E nesse sentido cremos deva

ser retificada a doutrina kantiana.

Estabelecido que o direito se ocupa apenas do mundo físico,

isto é, do efeito extrínseco do agir, Kant afirma que o direito, à

diferença da moral, é essencialmente coercível, pois sob as

intenções não se pode exercer violência, e a consciência é uma

fortaleza inacessível. O pensar é livre, de sua natureza, enquanto

direito e possibilidade de constrição são uma só coisa.

Nós nos associamos a estas conclusões, mas a elas chegamos

por outras considerações, que se referem essencialmente ao caráter

bilateral do direito. (O direito é uma relação que põe frente a frente

pelo menos dois sujeitos, lirnitando-Ihes o agir recíproco. Por isso

mesmo as fixações jurídicas implicam sempre a possibilidade de se

fazerem valer contra um outro.)

Portanto, o direito, segundo Kant, se reduz a regular as ações

externas dos homens e a tomar possível a sua coexistência. Kant

assim o define: "O direito é o complexo das condições pelas quais o

arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros,

segundo uma lei universal de liberdade".

Nesta definição (ou "máxima da coexistência") reafirma-se o

conceito da liberdade como supremo valor ético. O homem deve ser

respeitado na sua liberdade, isto é, não deve ser considerado

120

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

ou tratado como coisa, como instrumento ou meio, mas como fim

em si mesmo (Selbstzweck). A liberdade é um direito natural, inato

(a distinção entre direitos naturais e direitos adquiridos, feita pelos

precedentes escritores do direito natural, foi aceita por Kant).

Assim, todos os direitos naturais se compendiam, segundo Kant, no

direito de liberdade.

Na verdade, a liberdade é o valor supremo que coloca o

homem sobre o mundo dos fenômenos. Se o homem fosse apenas

um fenômeno, seria determinado, como tudo o que pertence à

natureza. Ora, ele pertence, sim, à natureza enquanto tem um

aspecto inferior, e é por isso determinado, e pode-se demonstrar

que toda ação, como fenômeno, promana, necessariamente, de

certas causas. (Nesse sentido, Kant é, com razão, determinista.)

Mas, de outra parte, o homem tem em si um modo de de

terminar -se superior ao da causalidade natural.

A deliberação, por proceder do ser autônomo do sujeito,

tem um significado que vai além do mundo dos fenômenos.

O homem é livre enquanto determina segundo a lei moral,

que é um princípio absoluto, implícito no seu próprio ser.

Produzida que seja a ação, ela pertence à ordem dos fenômenos, e

como tal aparece determinada. Assim se conciliam a liberdade e o

determinismo.

Na valorização do direito de liberdade, Kant recebe, de re

pente, influência de Rousseau, como se deduz da substância mesma

do seu sistema filosófico, e também de uma explícita confissão sua.

(Ele escreveu: "Houve um tempo no qual acreditei que o maior valor

consistisse na inteligência, e que o escopo supremo da vida fosse o

conhecimento. Rousseau me fêz mudar de opinião, e me persuadiu

de que existe coisa superior, a liberdade e a moralidade".) Daqui a

doutrina kantiana do primado da razão prática sobre a teórica.

Também na concepção do Estado a derivação de Rousseau é

evidente.

121

Page 62: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

"I

GIORGIO DEL VECCHIO

A teoria do contrato social é aceita expressamente por Kant,

que define o Estado como "a reunião de uma multidão de homens

sob o comando de leis jurídicas".

Mas essa multidão deve ser concebida como associada em

virtude de um contrato, pela vontade de todos.

Nesse sentido o contrato se transforma em um princípio

regulativo, isto é, um fato não histórico, mas um critério para

valorizar a legitimidade de um Estado.

E não há dúvida de que este fosse o sentido que também

Rousseau atribuía à sua teoria. Todavia, Rousseau não foi um

técnico da Filosofia, mas um amador, por assim dizer, romântico.

No seu desprezo pelas sutilezas escolásticas e pelo

tecnicismo dos filósofos de profissão, falou mais pelo sentimento

do que pela reflexão sistemática, donde talvez caia em aparente

contradição, e

não formulou exatamente a sua teoria.

O mérito da formulação precisa pertence a Kant.

Lendo Rousseau, talvez se possa ter a impressão de estar

lendo um conto mitológico.

Na verdade, em tempo algum os homens estiveram unidos

por contrato, e a sociedade (máxime nas origens) independe de

deliberação. Mas Rousseau quer efetivamente exprimir apenas um

princípio de valorização, que é: para todo Estado devem-se

pressupor o consenso e o acordo livre de seus membros.

Tudo isso Kant explica claramente, afastando todo equívoco

e afirmando que o Estado deve ser (não foi) constituído segundo a

idéia de um contrato social. (O contrato é a base jurídica, o pressu

posto ideal do Estado, que se deve organizar como fundado sobre o

reconhecimento dos direitos da pessoa, ou seja, como síntese da

liberdade humana.)

Kant aceita, também, a doutrina dos filósofos

constitucionalistas (Locke, Montesquieu, Rousseau) sobre a divisão

dos poderes. O Poder Legislativo não deve ser confundido com o

Poder Executivo. Aquele diz respeito ao povo (soberania

122

-,....

11

0

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Jopular); este, pode ser delegado a órgãos governamentais.

Sonente com a divisão dos poderes e com a atribuição do

Poder :"egislativo ao povo a Constituição é legítima ou, na

expressão (antiana, "republicana" (com esta locução Kant não

pretende, aliis, designar uma forma particular de governo).

Ainda a respeito da pena, Kant é contrário às doutrinas

~udaimonísticas, que justificam a pena mediante um fim

utilitário (para defender a sociedade, ou seja, para educar o

delinqüente). Segundo Kant, a pena é um bem em si mesma,

como reafirmação eticamente necessária da lei do dever

violada (teoria absoluta da penalidade, em confronto com as

outras teorias relativas).

É ainda importante o breve tratado, publicado por Kant

em 1795, intitulado Sobre a paz perpétua, que concerne aos

princípios filosóficos do direito internacional.

Kant sustenta que a vocação da humanidade é formar

um Estado único. O tempo no qual todos os povos se reunirão

desse modo é remoto, mas nem por isso se pode negar que a

tendência seja nesse sentido, nem duvidar que esse objetivo

venha a ser alcançado.

Também nesse caso trata-se de um princípio regulativo,

isto é, de um critério racional, que serve como ponto de

referência para a interpretação da realidade.

Kant observa que a formação do direito internacional é,

em certo modo, análoga àquela do direito interno do Estado. O

Estado atual é o efeito de uma síntese de elementos a um

tempo discordantes: os indivíduos se combateram por longo

tempo (e nós com maior exatidão histórica diremos, antes, dos

indivíduos, os grupos humanos, as gentes, os clãs), até que foi

possível a instauração de um poder unitário sobre os

elementos isolados, em contraste entre eles.

Kant, segundo a terminologia do seu tempo, diz que,

como o estado de natureza foi vencido pelos indivíduos,

porque o imperativo categórico os obrigou a se associarem em

um regime de convivência civil, assim tempo virá em que

também os Estados terão

123

Page 63: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

superado tais condições, eis que também para eles vige o mesmo

imperativo. Isso assinalará o fim de toda guerra, da mesma maneira

que a formação do Estado assinalou o fim das frenéticas lutas

individuais.

Em suma, os Estados devem sair do estado de natureza

(estado quase pré-jurídico, no qual atualmente se encontram), para

seguir o imperativo categórico: "Não deve existir guerra", e

constituir, assim, um Estado cosmopolítico.

Não se limitou Kant apenas a indicar esse longínquo ideal de

unificação jurídica da humanidade, mas quis ainda apontar os meios

que poderão acelerar esse atingimento. Enuncia, para tanto, os

artigos de uma espécie de tratado internacional, que deve assegurar

àhumanidade a paz perpétua. Além dos "artigos definitivos",

enuncia ainda alguns "artigos preliminares" ou provisórios desse

tratado, ou seja, uma série de máximas dirigi das ao escopo de evitar

as contendas internacionais e, quando não seja possível evitá-Ias, de

assegurar-Ihes certo caráter jurídico.

Por esse lado, Kant une-se àquelas tradições da Filosofia do

direito, em especial à obra de Grócio, trazendo, também ele, um

notável impulso aos avanços positivos do direito das gentes.

Afirma ele, em substância, que também no estado de guerra

deve ser mantida a possibilidade da paz; nem aí deve estar ausente a

boa-fé. Ainda, devem ser respeitados os tratados (por exemplo, os

armistícios). Também, e ainda, não podem ser usados meios de

guerra que afetariam a estima recíproca dos beligerantes, como a

traição, o assassínio dos chefes adversários por meio de sicários, a

difusão de doenças infecciosas, a poluição das águas, etc.

E acrescenta que nas relações entre os Estados devem sempre

valer certos princípios jurídicos, como, por exemplo, o Estado não

pode ser mais considerado uma propriedade, e também não pode ser

adquirido por hereditariedade, nem por venda ou permuta; mais: que

a nenhum Estado é permitido imiscuir-se com violên

124

.......

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

1

cia no governo de outro Estado (princípio da não intervenção),

princípio hoje quase universalmente reconhecido.9

Kant levava fé no progresso da humanidade em um tempo em

que outros (por exemplo, M. Mendelssohn) sustentavam o contrário:

que só o indivíduo, não o gênero humano, pode progredir.

A essa opinião Kant opõe um raciocínio característico. Se

nós, diz, temos o dever de cooperar para o maior bem da

humanidade, devemos acreditar que os nossos esforços não sejam

vãos. Destarte, como corolário do nosso dever, devemos aceitar a

crença na perfectibilidade do gênero humano. Ao contrário, seria

insensato sentirmo-nos ligados a um dever, se não crêssemos na

eficácia, ainda que remota, do seu cumprimento.

Fichte e a escola do direito racional

Kant teve um discípulo direto em Giovanni Amedeo Fichte,

que, todavia, no sucessivo desenvolvimento de seu pensamento,

distanciou-se notavelmente dos ensinamentos do mestre. Viveu de

1762 a 1814.

Na teoria do conhecimento, Kant havia deixado subsistir um

grave dualismo, como, de resto, dualística é toda a sua Filosofia.

Para Kant, de um lado se é sujeito e, de outro, objeto. O

conhecimento é uma relação entre qualquer coisa de subjetivo, isto

é, a mente, e qualquer coisa de objetivo, de independente do sujeito,

a saber, a coisa em si.

Esse dualismo é rejeitado por Fichte, que concebe uma só

realidade, a do eu, da mente subjetiva. E, na verdade, o sistema de

9 É Oportuno advertir que o princípio da não intervenção não tem propriamente um valor absoluto, mas encontra, ao menos a nosso ver, um limite racional no pressuposto de

que os direitos elementares da humanidade sejam tutelados em cada Estado). Isto demonstra que doutrinas dessa espécie não são meros exercícios dialéticos, mas também

fatores históricos, que acompanham e regulam o progresso real.

.. 125

Page 64: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Fichte pode, por isso, dizer-se do idealismo subjetivo, em

contraste com o sistema de Schelling e de Regel, dito do

idealismo objetivo, porque apóia, como veremos, sobre outro

extremo da antítese.

Para Fichte a realidade é o eu, o ser consciente; fora

dessa esfera nada pode existir.

Observa ele que, se partimos, como fez, por exemplo,

Espinosa, do conceito do ser, não poderíamos chegar ao

conceito do pensamento, porque há um abismo entre esses

termos. Partin

do, ao contrário, do conceito de consciência, ou do ser

consciente, está, per se, implícito o conceito de ser, onde se

deduz que a pri

meira noção deve ser a do eu.

O eu põe, antes de tudo, a si mesmo, e por isso, no ato

mesmo, põe exatamente um não eu, ou seja, contrapõe

qualquer coisa a si. Mas este termo de contraposição é sempre

gerado pelo eu, do qual é como uma projeção. Enfim, o eu

estabelece uma relação entre si e aquilo que é diverso de si,

isto é, limita-se a si mesmo, nas suas relações com o não eu.

Isso acontece em um

duplo sentido: o eu pode considerar-se a si mesmo como

determinado pelo mundo externo, e então se põe como ser

cognoscente; ou como determinante do mundo externo, e

então se põe como ser

operante, como sujeito não de conhecimento, mas de ação.

Daqui a divisão fichtiana da Filosofia em teórica e prática.

É verdadeiramente característico, em todo o

procedimento de Fichte, o esforço de deduzir de um só

princípio (a

autoconsciência) as várias formas da atividade espiritual, as

quais, ao contrário, Kant havia simplesmente elencado como

se não se tratasse se não de enumerá-Ias.

Em outras palavras: Kant distinguia o conhecimento, a

von

tade, etc., como qualquer coisa separada, sem remontar a um

princípio único. Fichte, ao contrário, quer dar ao sistema

kantiano uma base unitária, remontando àquilo que, segundo

ele, era um tácito pressuposto dele. Diz, por isso, que a

Filosofia de seu mestre me

lhor se compeende apoiando-a sobre aquele princípio

fundamen 126

~

.li.

-.....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

tal, e que só por erro ela admite a existência de uma coisa

radicalmente diversa do eu. A coisa em si, segundo Fichte, não

éincognoscível, mas é o eu mesmo; a natureza é o limite que o eu

dáa si mesmo; é um produto, um campo que o eu se cria para poder

ali desenvolver a sua atividade. E isso é o cumprimento extremo do

sistema idealístico, no sentido subjetivo.

Se não existe a não ser o eu, o eu é livre (não depende de

outro, tão só de si mesmo), e por isso qualquer limitação aparente da

liberdade é efeito da subjetividade mesma, é uma autolimitação.

Assim, as nossas ações aparecem determinadas, com certeza,

pelas causas ou motivos, portanto não são livres, donde o temor de

vir o livre-arbítrio a ser sacrificado. Mas esta lei de determinação da

causa pelo efeito é puramente intelectiva, que o homem impõe a si

mesmo, e por isso ela não destrói nem diminui, de nenhum modo, a

liberdade. Eis, portanto, a liberdade defendida pela metafísica; e

mais, conciliada com o determinismo.

Não é inoportuno observar aqui que o caráter geral da

Filosofia fichtiana harmoniza-se com o caráter pessoal do autor.

Fichte tinha uma natureza entusiástica. Era apaixonado pela

liberdade. A sua Filosofia foi a da ação, uma espécie de

pragmatismo absoluto, e toda a sua obra tem significado de

apostolado, de reivindicação de liberdade em todas as esferas.

Entre os primeiros escritos de Fichte, é notável o de 1793,

intitulado Contribuição para a retificação dos juízos do público

sobre a Revolução Francesa, todo cheio de entusiasmo por aquela

revolução, considerada como a proclamação histórica dos direitos

naturais do indivíduo.

A Revolução Francesa, saudada de início com glória por

todos os espíritos liberais da Alemanha e da Europa em geral,

perdera muitas simpatias depois que degenerou em excessos

sangrentos, especialmente em 1793 (o ano do Terror).

Surgiram, então, severas críticas, largamente seguidas. Contra

elas opôs-se Fichte, sustentando a legitimidade da Revolução

127

Page 65: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Francesa, e da revolução em geral, porque todo povo tem o direito

de dar-se o governo que corresponda às suas aspirações, e isso

também com a violência, quando não seja possível de outra forma.

Também ele, nesse ponto, liga-se a Rousseau, e lhe

interpretajustamente a teoria do contrato social, considerando este

como princípio jurídico ou deontológico, como critério da

legitimidade dos governos.

Outras obras de Fichte são: Fundamento da doutrina da

ciência (1794), Lições sobre a missão do douto (1794) e,

especialmente importante para a nossa disciplina, Fundamento do

direito da natureza (1796), que é uma exposição sistemática da

teoria do direito natural segundo os princípios e os precedentes há

pouco indicados.

Especialmente manifesta é a influência de Kant. Para Fichte,

o imperativo jurídico supremo é: "O eu deve limitar a sua liberdade

individual, mediante o conceito da possibilidade da liberdade alheia,

com a condição de que os outros façam o mesmo". Não posso

reconhecer a mim mesmo uma liberdade sem reconhecê-Ia aos

outros. Também aqui, portanto, o fundamento do direito encontrase

no princípio da coexistência das liberdades.

Nessa obra encontramos também exposto o caráter diferencial

entre moral e direito segundo a visão kantiana, mas de modo a

acentuar ainda mais a antítese.

Ainda nesta obra Fichte trata, de acordo com Kant, de outras

matérias fundamentais, como noção do Estado, dos direitos

individuais, etc. Porém, em seguida, nota-se um progressivo

distanciamento do pensamento de Fichte em relação ao do seu

mestre.

As primeiras conseqüências importantes dessa evolução

aparecem no seu livro O Estado comercial fechado (1800), onde se

abandona o conceito do Estado como mera emanação dos direitos

individuais, direcionada apenas ao escopo de garantir aqueles

direitos, e se lhe atribui além disso uma função econômica.

128

".... HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

O Estado deve representar a vida perfeita e deve bastar-se a

si mesmo, ou seja, ter em si todos os elementos necessários e

suficientes (é o conceito platônico e aristotélico da autarquia que

renasce); deve fazer-se organizador e distribuidor do trabalho,

regulador das trocas, constituindo uma barreira diante do exterior,

até o ponto de proibir as trocas internacionais. O Estado deve ser

fechado não só juridicamente, mas também economicamente; e

deve assegurar a cada um a possibilidade de viver com o próprio

trabalho.

Por esta sua obra, Fichte foi depois incluído entre os

precursores do moderno socialismo de Estado.

Nos escritos posteriores, Fichte atribui ao Estado, além da

função jurídica e econômica, também a função de moralizador e de

promotor da cultura. Com isto ele se distancia muito da doutrina

kantiana.

Notemos, por último, que o pensamento de Fichte teve

importância especial também para as condições históricas daquele

tempo: concorrer para reerguer o espírito germânico, deprimido

pela conquista de Napoleão, em especial com os seus Discursos à

nação alemã (1808), onde, porém, o exasperado amor à pátria leva

às vezes o filósofo a expressões de cru e tacanho nacionalismo.

O ensinamento de Fichte encontra paralelo nas obras de

outros pensadores e patriotas, quais, por exemplo, entre os

italianos, Gioberti. Houve entre eles quem, como Romagnosi e

sobretudo

Mazzini, soube desenvolver o seu apostolado em um sentido ainda

mais alto e universal, propugnando a um tempo pela ressurreição e

pela liberdade de sua pátria e de todas as outras.

A escola do direito natural, tornada mais precisamente escola

do direito racional sobretudo pela obra de Kant (cf. supra), atingiu

com Fichte, na primeira fase de seu pensamento, o mais alto

fastígio.

Entre os numerosos seguidores dessa escola, devem-se re

cordar também, pela eficácia e difusão que tiveram suas obras: F. v.

Zeiler (1751/1828); professor em Viena, onde tinha sido discípulo

do trentiano C. A. Martini (1726/1800), seguidor de Wolff, e

lI

õ 129

Page 66: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

lil~

I1I

ir

I l

i I!

I

' IIj

GIORGIO DEL VECCHIO

autor, ele também, de notáveis escritos de Filosofia do direito; o

Direito privado natural, de Zeiller, foi editado muitas vezes também

em italiano; l.E Fries (1773/1843), que, apesar de dissentir, em parte

de Kant, acatou-lhe, em substância, os princípios; P. 1. A. Feuerbach

(1775/1833), conhecido sobretudo como penalista, mas importante

também por suas doutrinas filosófico-jurídicas; K. Gros, K.

Zachariae, A. Bauer, W Krug, C. Droste-Hülshoff, C. v. Rotteck

(1775/1840), a quem devemos um dos mais elaborados tratados da

matéria (Lehrbuch des Vernunftrechts und der

Staatswissenschaften, 4. v., 1829/1835), etc. À mesma escola

pertenceram ainda alguns italianos, como, por exemplo: P. Baroli

(1797/1878, professor em Pávia: Direito natural privado e público,

6 v., 1837); G. P. Tolomei (1814/1893, professor em Pádua, Curso

elementar de Direito natural ou racional, 2. ed., 1849; 1855, e

outras edições sucessivas, 2 v.), etc. e obras que merecem ser

estudadas.

Ligam-se ainda a essa escola outros notáveis pensadores,

como Rosmini e Taparelli (ao qual faremos menção mais adiante),

embora tenham eles dado a suas doutrinas fundamento

prevalentemente teológico.

Todos esses autores sustentam o princípio de que existe um

direito ideal antes do direito positivo; o conceito de justo e de

injusto é anterior ao Estado, o qual, por isso, não pode fixar-lhes

arbitrariamente os limites, mas deve reconhecer e garantir os

direitos individuais, presconstituídos pela natureza e demonstrados

pela ra

zão. Daqui uma espécie de esquematismo lógico e um caráter que,

às vezes, pode parecer muito estreitamente individualístico no trato

dos problemas sociais.

Somente o Fichte "da segunda maneira" modifica tal

posição, que permanece, contudo, característica, para escola do

direito racional propriamente dito.

Seja como for, essa escola tem o mérito de ter mostrado

verdades essenciais em tomo do direito, recolhendo e aperfeiçoan

130

~

....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

do os frutos das indagações precedentes e evitando, de outra parte,

os erros metodológicos de Grócio e dos primeiros jusnaturalistas.

Assim, ela abandonou a mitologia do estado natural, somente

recordando a velha fórmula como mera hipótese, com escopo

demonstrativo.

Deve-se ainda assinalar como mérito dessa mesma escola o

zelo por ela desenvolvido no ilustrar, além da idéia do direito em

geral, cada um dos institutos do direito privado e público,

procurando recolher, à luz da razão, o fundamento intrínseco de

cada um deles, para assinalar ainda, precisamente, os defeitos da

legislação positiva e promover-lhe a oportuna reforma. A obra da

escola foi, na realidade, útil, tendo efetivamente contribuído para os

avanços legislativos, em especial na preparação dos Códigos em

vários Estados; e mais teria podido ajudar se a ela não se tivesse

oposto àescola do historicismo, em suas variadas formas.

o historicismo

A escola do direito racional foi objeto de fortes críticas

da parte de uma diversa tendência de pensamento, que se

divide em vários ramos, mas que tem um significado

fundamental de oposição ao raciocínio puro e abstrato. Na

verdade, os pensadores daquela escola tinham produzido,

prevalentemente, com método dedutivo, ex ratiocinatione

animi tranquilli (= "pelo racicínio de alma tranquila", como

dizia Thomasius).

A esse tranqüilo raciocinar acompanhava às vezes certa

negligência com o material histórico, um insuficiente exame

dos fatos. Daí a reação que se anuncia em nome do resguardo

devido àhistória. Com o nome de historicismo designam-se

justamente as várias oposições surgidas contra as doutrinas ora

expostas e qualificadas como racionalismo. Mas a

denominação comum não de

verá impedir de distinguir no historicismo três correntes

distintas: o historicismo filosófico de Schelling e de Hegel, o

historicismo 131

Page 67: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

1

GIORGIO DEL VECCHIO

político dos filósofos da Restauração, que se opõe à Revolução

Francesa, e, por fim, o historicismo jurídico, ou escola

histórica dos juristas alemães.

o historicismo filosófico ou idealismo objetivo

(Schelling, Rege!)

o idealismo objetivo é representado pelos sistemas de

Schelling e de Regel, muito parecidos entre si. Pode-se dizer que

pertence ao de Schelling a idéia fundamental, mas genérica; e ao de

Regel, toca o mérito de tê-Ia aperfeiçoado e desenvolvido em um

sistema rigoroso e completo.

Esta relação entre os dois sistemas é especialmente manifesta

no que se refere à nossa matéria, porque Schelling tratou

escassamente da Filosofia do direito, enquanto Regellhe dedicou

uma de suas maiores obras.

Federico Schelling (1775/1854) iniciou muito jovem a sua

atividade filosófica. Em 1795 publicou um breve escrito de Filosofia

do direito, com o título Nova dedução do direito natural, que é,

todavia, mais que outro, um reflexo da doutrina fichteana. Em 1800

publicou o Sistema do idealismo transcendental e, em 1803, as

Lições sobre o método do estudo acadêmico, obra notável

também porque esclarece as idéias políticas do autor.

Vamos traçar uma suma da sua posição especulativa.

Até então, o espírito tinha sido considerado como qualquer

coisa de subjetivo. A mente, o eu de Kant e de Fichte, eram

essencialmente qualquer coisa de pessoal. Com Schelling, o espírito

torna-se objetivo, e a sua primeira revelação é a natureza.

Isto porque a natureza já não é concebida (como queria

Fichte) como qualquer coisa morta, como um limite, mas como um

princípio ativo, um todo animado, um espírito que se transforma. E a

evolução da natureza afigura-se como uma série incessante de

tentativas para produzir o eu. O homem é a meta da natureza, ou

132

-" ...... ,

....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

seja, o olho pelo qual a natureza contempla-se a si mesma. E

aqui Schelling se põe a distinguir a natureza corno sujeito e

corno objeto.

Advirta-se, porém, que a distinção já tinha sido feita

pelos escolásticos e por Espinosa, com terminologia própria.

De fato, eles falavam de natura naturans e de natura naturata

(natureza enquanto produz, e natureza enquanto é produzida).

A natureza corno sujeito está em infinita produtividade,

que

Schelling chama também alma do mundo (Weltseele): ela está

a exteriorizar-se primeiro no mundo físico (vegetal, animal) e,

depois, no mundo do espírito. Corno existe urna alma do

mundo, assim existe, também, urna alma do povo

(Volksseele). De início inconsciente ou subconsciente. É essa

alma que determina a constituição social e política.

Como se vê, acena-se em Schelling, pela primeira vez,

para o conceito de espírito popular ou coletivo, que devia

depois tornar uma importância notabilíssima, especialmente

na escola histórica

dos juristas (para a teoria do costume).

Dissemos que esse conceito foi apenas acenado;

porque,

na verdade, ele foi desenvolvido por Regel. Para ambos os

pen

sadores, o Estado é a mais perfeita criação do espírito. Toda a

Filosofia de Schelling (corno de resto a de Regel) ressente-se

de certa veneração do Estado e, mais em geral, para com o fato

estabelecido. Assim, em seus escritos encontramos, por

exemplo, estas fórmulas tão imprecisas quanto dogmáticas: "O

Estado é a união do ideal e do real"; "O Estado é a reunião da

liberdade e da necessidade", etc.

Ao lado do Estado existe ainda um outro organismo, a

Igreja. O Estado tem mais de real lá onde a Igreja tem mais de

ideal, mas arnbas as organizações possuem um e outro

elemento. Schelling aproxima, por essa via, o Estado da Igreja,

dando àquele um caráter teológico. Isto, sob o ponto de vista

crítico, não se pode considerar como um progresso, porque se

retoma, desse modo, a uma confusão de domínios e de

competências, já superada e corrigida pela Filosofia política

precedente. rn

Page 68: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Jorge Hegel viveu de 1770 a 1831. Menos precoce do

que Schelling, publicou suas obras depois deste. De fato, a sua

Fenomenologia do espírito é de 1807, e a Filosofia do direito,

de 1821.

O pensamento fundamental de Hegel é o idealismo

absoluto em sentido objetivo. Ele nega dogmaticamente

qualquer limite ao conhecimento; também o absoluto é

cognoscível. Para Kant, essa idéia era absurda e contraditória,

uma vez que, quando o absoluto viesse a ser conhecido, por

isso mesmo não seria mais absoluto, mas relativo. Mas Hegel

não cuida da obra analítica, prudente e sagaz de Kant, para

procurar os limites do conhecimento; por ela mostra até certo

desdém. Aí, o dogmatismo é um primeiro caráter da Filosofia

hegeliana.

Outro caráter (que se poderia indicar com o nome de

intelectualismo ou também de panlogismo) é constituído pela

identificação do pensamento e do ser.

Tudo é pensamento, e nada existe fora dele. As coisas

são como são pensadas; as formas subjetivas do conhecimento

são também as formas objetivas da realidade. Assim, por

exemplo, as leis astronômicas são também leis do pensamento

(matemáticas), são razões objetivadas; tudo o que acontece é

um movimento da idéia, ou seja, a idéia que se move. Um

passo célebre do prefácio da Filosofia do direito diz: "Tudo o

que é real é racional, e tudo o que é racional é real".

Surgia aí a impossibilidade de uma discordância entre o

ser e o dever ser, enquanto a consciência deste contraste tinha

sido o tormento e, juntos, a grandeza dos pensadores

precedentes, e tinha promovido tantos e nobres esforços para o

progresso das coisas humanas.

Para Hegel o fato é divino, é digno de adoração, porque

se

identifica com a idéia. Daí o significado também político da

Filosofia de Hegel, significado verdadeiramente otimista,

porque nenhuma injustiça, nenhuma violação de direito é, em

termos absolutos,

134

."...

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

possível. E como pelo caráter e pela posição dogmática Hegel

contrapõe-se a Kant e a Fichte, assim também pelo seu

otimismo diferencia-se dos críticos idealistas (dentre os quais

Schopenhauer), geralmente propensos ao pessimismo.

Outra peculiaridade da Filosofia de Hegel é o

evolucionismo. "Nada existe, tudo se transforma". "A luta é a

lei de todas as coisas". Este pensamento tinhajá sido expresso

por Erác1ito na antiguidade grega: "Tudo passa" (návT<x PÊi)

e "A guerra é a mãe e rainha de todas as coisas".

Para Hegel, o absoluto (isto é a idéia) transforma-se

através de contradições, contrastes, vicissitudes de luta. O

absoluto écognoscível só mediante um sistema de conceitos,

não por um conceito, que é necessariamente unilateral, parcial.

Como a realidade é essencialmente progresso, movimento,

assim também o sistema dos conceitos deve ser móvel,

composto de pensamentos em movimento.

Eis o método dialético, característico do hegelismo: todo

conceito é unilateral porque põe o seu contrário, suscita uma

contadição; de uma tese procede uma antítese; onde a

necessidade de um novo conceito, que apóia os dois conceitos

precedentes, os superiores, e elimina a contradição. Mas esse

conceito

superior, à sua vez, cai no seu contrário: por isso, outra vez

tese, antítese, síntese, e assim por diante.

Hegel quer aplicar a toda realidade esse método

dialético, procedendo sempre por via de contradições e de

superamento das contradições. Todo conceito sucessivo é

mais rico que os precedentes, porque os contém em si. O grau

superior é a verdade do inferior.

O primeiro conceito é o mais vago, o mais abstrato - é o

conceito do puro ser. O último é o mais cheio, o mais

completo - é a idéia que se pensa a si mesma, ou seja, o

pensamento do absoluto.

Expostas assim as caracteristicas gerais da especulação

hegeliana, convém observar mais de perto a estrutura do

sistema.

135

Page 69: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

IIIII I!IIII

~ I

GIORGIO DEL VECCHIO

o sujeito do processo mundial chama-se idéia. A idéia, diz

Regel com uma terminologia muito pessoal, está, antes, em si, isto é,

representa um reino de verdades abstratas. Em um segundo

momento, a idéia está fora de si, exterioriza-se nas formas do espaço

e do tempo (como natureza). Em um terceiro momento, a idéia está

em si e por si, isto é, entra em si mesma, toma-se espírito.

Começa, assim, um novo processo, distinguindo-se em

espírito subjetivo, espírito objetivo e espírito absoluto. À sua vez,

cada um desses tem três graus (ou formas). O espírito subjetivo

distingue-se em alma, consciência e razão. O espírito objetivo se

apresenta nas três formas do direito, da moralidade e do costume

(também estes termos têm, como já veremos, um significado

especial).

Por último, o espírito toca o mais alto estágio do absoluto em

outras três formas: a arte, a religião e afilosofia, formas supremas

nas quais o espírito concilia-se consigo mesmo; e tem-se a

identidade perfeita entre sujeito e objeto. A arte e a religião são,

todavia, apenas os pródromos da filosofia, são filosofia que se

transforma. A relação que se estabelece entre estes três termos é

análoga à relação entre instituição, representação e conceito.

Devemos agora acrescentar algum esclarecimento da parte do

sistema que mais concerne à nossa disciplina, ou seja, do espírito

objetivo. Este reside sobretudo, como dissemos, no direito. O direito

é, segundo Regel, "a existência do livre querer".

Em outras palavras, é a liberdade que se põe externamente, é a

existência externa da liberdade. O querer do homem é

essencialmente livre; é livre enquanto é querer. Deste modo o

problema da

liberdade do querer, que afadigou tantos filósofos, é quase omitido,

ou seja, eliminado com uma simples identificação.

Mas, prossegue Regel, a liberdade, que é realizada nas formas

externas do direito, é falha porque se oculta em si mesma; e tem-se,

então, a moralidade (consciência moral), ou seja, o mo

mento subjetivo do dever que, à sua vez, é incerto e insuficiente.

136

..,.......

.&.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Seguindo sempre o método dialético, a essa contradição deve

seguir-se a síntese; e tem-se o costume, o Ethos objetivo. Este, na

linguagem de Regel, significa a vida ética efetiva, concreta, como

síntese das categorias abstratas do direito e da moral. Aqui (no

costume) encontram-se três formas de organização: a famrlia, a

sociedade civil, o Estado.

Antes de Regel, ninguém tinha distinguido tão nitidamente

sociedade e Estado, figurando aquela como forma de organização

espontânea e este como forma de organização especial jurídica.

Regel porém, atribuiu erroneamente à sociedade muitos caracteres

jurídicos.

Também Regel, como Schelling, faz um panegírico do

Estado. O Estado é o grau mais alto do espírito objetivo. É o espírito

que desperta, enquanto se revela adormecido na natureza; é a

manifestação suprema da liberdade. Acima do Estado, apenas o

absoluto. Daí a importante conseqüência: todos os Estados estão em

condições de igualdade; não pode haver jurisdição humana sobre

ele. Assim se vem a justificar sistematicamente a guerra. Uma vez

que os conflitos entre Estados não podem ser solucionados ou

decididos por uma jurisdição superior, devem ser regulados, em

última análise, com a guerra, que é uma espécie de juízo divino.

A esse propósito Regel faz sua (talvez exagerando arespeito,

quanto ao sentido) uma máxima do poeta Shiller: "A história do

mundo é o tribunal do mundo". Isto é, os povos recebem na história

a sua justa sentença.

Portanto, Regel não admite a possibilidade de uma invasão

injusta ou de uma conquista ilícita: na guerra vence quem deve

vencer, e todo povo, como todo governo, tem a sorte que merece.

O espírito do mundo é superior ao espírito dos Estados, e

pronuncia irrevogavelmente sobre eles as suas sentenças.

O espírito do mundo atua por intermédio dos Estados,

fazendo-se representar ora por um povo, ora por outro. O Estado

que, em determinado momento, representa o espírito do mundo, é o

dominador dessa época.

137

Page 70: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Regel enumera quatro tipos de Estados, que teriam

representado, sucessivamente, como graus, o progressivo

transformarse do espírito do mundo: o Oriental, o Grego, o Romano

e o Germânico (isto é, Prussiano).

Assim, para Regel, o ideal último do Estado concretizar-seia

no Estado alemão e, mais especialmente, no Estado monárquico

prussiano. Entre eles não reconhece uma missão histórica universal

para a Itália, para a Inglaterra, ou para a França.

O caráter otimista e, mesmo na prática, conservador da Filo

sofia hegeliana lhe rendeu muita adesão, e foi, por certo tempo, a

Filosofia oficial do Estado prussiano.

Após várias vicissitudes, o filósofo obteve uma cátedra na

Universidade de Berlim, e ali pontificou como supremo árbitro da

Filosofia entre a admiração quase geral, até 1831, ano de sua morte.

Mas esse mesmo caráter oficial da sua Filosofia, que foi mo

mentaneamente um fator de sucesso, causou-lhe, mais tarde,

especialmente depois de 1848, ano de revoluções e de crises

políticas, não de todo sem razão, certo descrédito.

Notemos, enfim, que o sistema hegeliano apresenta-se sob

uma forma de idealismo. Efetivamente, identificando o real com o

ideal, ele é ao mesmo tempo um realismo. Por isso, não estranha

que do seio da Filosofia hegeliana tenham surgido também sistemas

materialistas. De lá, por exemplo, Marx extraiu o conceito de

necessidade histórica, entendendo esta, restritivamente, como

determinismo econômico (materialismo histórico).

o historicismo político ou a Filosofia da

Restauração

Já vimos como os sistemas de Schelling e de Regel

representaram uma espécie de historicismo filosófico, ou também

ideológico, enquanto identificam exatamente o tato histórico com o

ideal, e se reúnem na glorificação do fato mesmo. Todavia, esse

caráter

138

",.,...

&.

-...

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

pertence a uma outra tendência que, não obstante certas

diferenças, podemos chamar de historicismo político. Essa,

aliás, teve vida efêmera, enquanto que retirava origem de

circunstâncias e contingências particulares, isto é, de uma

reação contra a teoria e a prática da Revolução Francesa.

Inspirara-se, no seu programa, na escola do direito natural que,

desenhando uma antítese entre o direito positivo e o natural,

tinha aberto espaço à critica das instituições vigentes e às

reivindicações políticas no sentido liberal.

Já, até o início da revolução, manifestaram-se oposições

ao programa dela, expresso na solene Declaração dos direitos

do homem e do cidadão (cf. supra). Assim, por exemplo, da

parte do inglês Burke, do qual trataremos em pouco.

Mas sobretudo os trágicos acontecimentos

sucessivamente ocorridos, em especial a decapitação do rei

Luiz XVI, suscitaram uma vasta e violenta polêmica contra a

pretensa "metafisica revolucionária ", imputando-se

inteiramente às teorias jusnaturalísticas até os excessos das

mais baixas paixões.

Este modo de reação visou praticamente restaurar as

monarquias absolutas, abatidas ou abaladas pelo grande

catac1isma da revolução. A "Santa Aliança", que os soberanos

da Áustria, Prússia e Rússia contraíram em 1815, para a defesa

de seus tronos ameaçados, é a manifestação concreta mais

característica da referida tendência. Nesse mesmo tempo, no

campo especulativo, produzse uma florescência de escritos,

tendentes analogamente a exaltar a

autoridade dos poderes estabelecidos e consagrados, há

muito, contra as pretensões inovadoras da razão individual. A

esta forma de historicismo foi, por isso, dado o nome de

"Filosofia da Restauração" .

Segundo as teorias dessa escola, o direito não é

qualquer coisa de abstrato, que possa ser descoberto

dedutivamente, excogitado pelo pensamento de quem quer

que seja. É, ao contrá

rio, um fato histórico, que supõe uma longa elaboração, e

deve ainda ser transmitido de geração em geração. 139

Page 71: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Conseqüentemente, também as Constituições políticas devem

ter uma base segura na tradição e não podem ser ciradas nem

reformadas, ex novo pela obra de cada pensador nem de um grupo de

doutrinadores.

Esta última tese tem particular referência aos fatos daquele

tempo, dado que exatamente no período da Revolução Francesa

teve-se (não só na França, mas também na Itália) uma série

copiosíssima de projetos de constituições políticas. Tanto que até

foram anunciados concursos com tal finalidade, e quase todo

cidadão se cria capaz de propor um sistema de governo para

substituir o existente. É óbvio, aliás, que observar o excesso nesse

sentido não significa provar a verdade da tese oposta, que tenderia a

fechar o uso da razão.

O historicismo político assume, prevalentemente, caráter

teocrático, tendo mesmo buscado convalidar a autoridade da tradição

com o dogma da investidura divina, em favor dos soberanos

absolutos. Retoma-se, com isso, às formas próprias do pensamento

medieval, para subtrair os regimes políticos da crítica dos povos e

dos filósofos.

A escola histórica tem, portanto, alguma coisa de retrógrado,

de anacrônico, que se revela sobretudo na acérrima hostilidade

contra as idéias liberais, mesmo quando elas representavam

progresso e uma conquista, em geral não repudiáveis, da consciência

dos tempos novos.

Isso não impede que alguns escritores dessa escola tenham

revelado dotes elevados de pensamento e também de eloqüência.

Relembremos entre os mais notáveis: L. De Bonald

(1754/1840, Teoria do poder político e religioso na sociedade

civil, 1796; Legislação primitiva, 1902; Ensaio analítico

sobre as leis naturais da ordem social, 1817, etc.) de tal

modo inclinado ao absolutismo político, a ponto de preferir,

por exemplo, a antiga constituição egípcia à inglesa;

Giuseppe De Maistre (1753/1821), nascido em Sabóia,

quando essa região fazia parte do reino da Sardenha.

140

~

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Fez seus estudos universitários em Turim, onde morreu, depois de

ter sido ministro do Rei Vitório Emanuel I na Rússia. Obras

principais: Considerações sobre a França, 1796; Ensaio sobre o

princípio gerador das constituições políticas, 1810; Do Papa, 1819;

As tardes de São Petersburgo,1821). Também feroz adversário do

contratualismo e do racionalismo, fautor da teocracia e entusiasta da

Idade Média; o suíço c.L. v. Haller (1768/1854), autor de uma obra

respeitável pelo seu caráter sistemático, intitulada Restauração da

ciência política (6 v., 1816/1825), tendente da mesma forma a

combater as ideologias revolucionárias e os princípios do

liberalismo em geral; os alemães F. v. Gentz (1764/1832), J. Gorers

(1776/1848), A. Müller (1779/1829) e K. Jarcke (1801/1852), cujo

pensamento, em especial dos dois primeiros, teve diferentes fases;

enfim, e não menos notável, o italiano Clemente Solaro della

Margarita (1792/1869), que foi ministro do rei Carlos Alberto de

1835 a 1847 e tentou em vão, opor-se à concessão do Estatuto,

sustentando inflexivelmente também, com seus escritos

(MemorandD histórico-político, 1851/1852; Acontecimentos

políticos, 1853; O homem de Estado orientado para para o governo

da coisa

pública, 1863/1864), os princípios do absolutismo e do legitimismo

tradicional.

o historicismo jurídico ou a escola

histórica do direito

Bem maior importância tem uma terceira corrente, ou espécie

do historicismo, que podemos chamar de historicismo jurídico, e

que comumente se chama escola histórica do direito.

Diferentemente das outras tendências mencionadas, ela não

tem propósito filosófico direto nem político, porém suas doutrinas

interligam-se mediante certas premissas filosóficas e também por

meio do programa da restauração política. Isso aparece também na

origem da escola, que, não diversamene da Filosofia da Restau

141

Page 72: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

ração, foi determinada em parte pela reação contra a

Revolução Francesa.

Um dos inspiradores da escola histórica do direito foi,

em verdade, o inglês Edmundo Burke (1729/1797), com sua

obra intitulada Reflexões sobre a revolução da França (1790).

Nela o autor, opondo-se resolutamente às teorias

jusnaturalísticas (em especial às de Rousseau), que tinham

então inspirado o trabalho legislativo da Constituinte, sustenta

o princípio da continuidade histórica.

As instituições políticas fundam-se, a seu ver, na

história e nas tradições de cada povo, e é por isso um grave

erro querer mudá-Ias subitamente por meio de raciocínios

abstratos, de caráter uni versal. Assim, critica a Declaração

dos direitos do homem e do cidadão, qualificando-a como um

"digesto da anarquia".

Th. Paine (1737/1809) respondeu a Burke defendendo

os princípios da Revolução Francesa (Direitos do homem,

1791/ 1792), como já havia defendido os mesmos princípios

da revolução americana (Senso comum, 1776).

Idéias semelhantes às de Burke foram sustentadas em

seguida por escritores italianos, especialmente por Vincenzo

Cuoco, no seu Ensaio histórico sobre a revolução de Nápolis

(1801).

Mas, se Burke é quase um precursor ou inspirador da

escola histórica do direito, seus verdadeiros chefes e

fundadores foram três grandes juristas da Alemanha (onde a

escola floresceu sobremaneira), a saber Hugo, Savigny e

Puchta.

O primeiro, Gustavo Hugo (1764/1844), destacou

alguns fundamentos do programa em um escrito de 1790, mas

incidentalmente, enquanto seu pensamento se desenvolveu

exata

mente por outras vias, com caracteres próprios, que seria supér-

.

fluo examinar. A compilação completa e sistemática foi feita,

todavia, por Federico Cado v. Savigny (1779/1861), em um

célebre opúsculo de 1814, voltado a um fim polêmico contra

Antônio Thibaut. Este (professor, como Savigny, em

Heidelberg), tinha 142

~

&.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

publicado, em 1814, um libreto intitulado Da necessidade de

um direito civil geral para a Alemanha, no qual sustentava que

se deveriam unificar todas as leis vigentes nos vários Estados

alemães, formando um só código.

A idéia da codificação não era nova, uma vez que

contava já em seu favor com experiências em alguns Estados

italianos, na Prússia, na Áustria e especialmente na França,

cujo Código Civil, preparado durante a revolução, teve o selo

de Napoleão.

A tendência à unificação legislativa era, de resto,

resultado lógico da orientação racionalística. Não era por acaso

que, depois da proclamação dos direitos do homem e do

cidadão (1789), passaram os homens da Revolução Francesa a

se dedicarem à elaboração de normas do direito privado, para

reuni-Ias na unidade sistemática do Código que, aprovado em

1804, é ainda hoje vigente na França.

Thibaut fizera-se representante, na Alemanha, dessa

tendência racionalística, aduzindo em sustentação da

codificação, razões tiradas, preferentemente, da prática. Assim,

fazia notar os inconvenientes produzidos pela disparidade das

leis e dos costumes e ainda chamava a atenção para a

importância nacional que a unificação do direito privado

assumiria nas relações entre os vários Estados alemães.

Savigny opôs-se a Thibaut com o célebre opúsculo Da

vocação do nosso tempo para a legislação e para a

jurisprudência, publicado no mesmo ano de 1814. Declara-se,

aí, contrário não só a toda codificação, mas também, sob certo

sentido, à legislação em geral, porque as leis (e a fortiori os

códigos) são enrijecimentos do direito, constituem qualquer

coisa de morto, que lhe impede o desenvolvimento ulterior. O

direito, sustenta Savigny, vive na prática e no costume, que é a

expressão imediata da consciência jurídica popular.

A "consciência jurídica popular" tem um conceito

característico, que a escola histórica do direito derivou do

historicismo filo

143

Page 73: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

sófico de Shelling e de Rege!. (Em verdade, toda essa corrente está

em estreita conexão com o historicismo filosófico, e até se pode

chamá-Ia uma aplicação particular dele no campo do direito.)

Segundo a escola histórica, todo povo tem um espírito, uma

alma sua, que se reflete em uma numerosa série de manifestações:

moral, direito, arte, linguagem, são produtos espontâneos e

imediatos, todos, desse espírito popular (Volksgeist).

Especialmente notável, nesse propósito, o paralelo entre o

direito com a linguagem: como a linguagem surge e se desenvolve

espontaneamente, sem o trabalho dos gramáticos, que só

posteriormente lhe fixam os princípios e as regras, extraindo-os do

fato da sua existência, assim o direito não é criação do legislador,

mas uma produção instintiva e quase inconsciente, que se manifesta

no fato, e só em uma fase posterior aceita a elaboração reflexiva por

meio dos técnicos, que são os juristas.

Ao trabalho dos juristas segue-se, depois, a legislação, que

se funda, porém, sobre costumes preexistentes.

Portanto, as leis, segundo Savigny, têm uma função de todo

secundária, nada mais fazem que fixar (e quase imobilizar,

cristalizar) os princípios já elaborados pela consciência j urídica

popular.

Somente esta é a fonte autêntica e genuína do direito. Daí a

aversão de Savigny (e em geral da escola histórica) contra a

codificação. Sendo sínteses sistemáticas de leis, os códigos têm

maior estabilidade e podem, a longo prazo, até conter a evolução

espontânea do direito.

Com a obra de Savigny conecta-se a de Giorgio Puchta

(1798/1846), da qual é de ser recordado sobretudo o tratado sobre

Direito consuetudinário (2 v., 1828/1837), de acordo com os

mesmos princípios.

Essa tendência doutrinária, que visava convergir toda atenção

para o estudo da consciência popular e dos seus produtos

imediatos, renunciando a toda inovação legislativa, foi benéfica por

promover o

144

,,-

~

.....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

estudo do fato histórico do direito e induzir a considerar o surgir do

direito em relação às condições particulares de cada povo.

Por esta parte a escola histórica representa um progresso

relativamente às concessões precedentes, que descuravam o lado

positivo, histórico, do direito, mas tem, todavia, defeitos, que vieram

mais assinaladamente à luz com o progresso ulterior da ciência.

Antes de tudo, o estudo do direito positivo, justamente

propugnado pela escola histórica, não deve excluir a especulação

ideal da justiça. Segundo a doutrina daquela escola, devemos tomar

uma posição passiva diante de todo produto histórico. Mas essa

adoração do fato consumado contradiz a exigência crítica da nossa

consciência e é negação de todo progresso jurídico. Se identificamos

sistematicamente o real com o ideal, negamos a possibilidade do

progresso. Eis o ponto no qual permeia o erro de todo o historicismo

e em que se revela, de outro lado, a superioridade das escolas

racionais clássicas. A simples observação do fato, propugnada pelo

historicismo, não basta. O fato não pode conter a noção do direito;

antes, a escolha dos fatos pressupõe um intuito ideal, porque, para

recolher os fatos ou fenômenos jurídicos, devemos, antes de tudo,

ter os critérios distintivos do jurídico do não

jurídico.

A teoria tratada é falha também quanto ao costume e às fontes

do direito em geral, porque contempla só a fase originária da

evolução jurídica, enquanto está em contraste com as fases que se

seguem.

Na verdade, se é certo que o direito surge mediante o costume,

não é menos verdadeiro que o costume é depois, gradativamente,

absorvido pela lei.

Se é verdade que o costume é a fOl1lla primitiva,

rudimentar, tosca, do direito, é igualmente verdade que a

elaboração legislativa é uma fOl1lla superior, uma vez queadmite e

supõe uma crítica, uma discussão, uma consciência "toda atenta".

145

Page 74: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

A mais, se a lei, em sua origem, não tem outra eficácia que a

de estabelecer e fixar os produtos do costume, mais tarde ela se

constitui como fonte autônoma, afirma-se como inovadora, também

a respeito do costume.

A teoria da escola histórica tem, em suma, o defeito de ter

dogmatizado a fase inferior do desenvolvimento. Daí se poder dizer

que aquela teoria recebe tanto o desmentido dos fatos, quanto mais

avançados são os estágios da civilização.

O cotejo do direito com a linguagem é também verdadeiro

apenas em parte (em grau inferior). Entendido em absoluto, conduz

a desconhecer a eficácia que nos graus superiores de evolução

jurídica tem a livre e consciente discussão em tomo das leis de

sanção ou de reforma.

Outro defeito da escola histórica é a concepção romântica do

desenvolvimento do direito. Quanto de nebuloso, de fantástico, e,

digamos mesmo, de ichlico o domina! A consciência popular

deveria ser algo de misterioso, de infalíveL Mas essa é uma

expressão mítica que não corresponde à realidade; é romantismo, é

mitologia.

A verdade é que a consciência e a vontade de um povo são

certamente mais que a síntese das consciências e das vontades

individuais. Aí, não sem erro, Ihering contrapunha à concepção

romântica da escola histórica, a realista da luta pelo direito, como

uma das formas da luta pela vida.

Efeti vamente, quando se trata de estabelecer uma norma de

direito, freqüentemente não existe acordo absoluto nem inspiração

uniforme, mas têm-se discussões e contrastes. A norma jurídica

positiva representa apenas a resultante das várias opiniões e

tendências, ou seja, exprime a vontade social que em um certo

momento predomina.

Característica da escola histórica é, além disso, um culto até

excessivo do direito romano, o que faz com que ela contradiga, às

vezes, os princípios por ela mesma afirmados. Os juristas da escola

histórica foram, em geral, rornanistas; consideravam o direito ro

146

"... HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

mano como protótipo de todos os direitos, válido de certo

modo para todos os povos. (Isso contrasta com a máxima da

mesma escola, segundo a qual todo povo teria um espírito

próprio, e a todo espírito popular corresponderia um certo

direito.)

Também, em razão desse culto unilateral do direito

romano, a escola histórica não deu, efetivamente, às pesquisas

históricas aquele impulso que dela se teria podido esperar e

que em nossos tempos foi dado pela escola etnológica e

comparativa, destinada

verdadeiramente a ilustrar, sem preconceitos restritivos, o

direito

de todos os povos. Observou-se justamente que, sob certo

aspecto, o direito romano tomara-se para a escola histórica

um sucedâneo do direito natural, combatido por ela.

Todavia, a teoria da escola histórica, salvo retificações

particulares, e o abandono de certos termos e caracteres

extrínsecos (que se vinham perdendo à medida que a doutrina

se difundia),

pode ser considerada ainda hoje predominante, com seus

méritos e com seus defeitos. São geralmente admitidos os dois

princípios da historicidade e da relatividade do direito. E assim

mesmo a opinião dominante é no sentido de que se deva voltar

a atenção apenas para o direito positivo, e não para o direito

naturaL

Essa tese, enquanto visa restringir o campo da Filosofia

do direito, excluindo a pesquisa pura da justiça, constitui um

erro assaz pernicioso. Mas ela é, sem dúvida, uma fase

passageira do pensamento, a qual, como se vê de alguns

sintomas de salutar reação, está já para ser superada. ***

Terminaremos esta breve exposição histórica acenando para

os escritores mais recentes; primeiro, os italianos e a seguir, os de

outras nações.

&. 147

Page 75: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

~ I

I

I;

I

r I

II I 1

, VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO /

NAITALIA,NOSTE~OSRECENTES

1. Da época de Vico a 1870, mais ou menoslO

A Itália, que assinalou um rasto glorioso na história da

Filosofia do direito, tem atravessado, todavia, períodos de

depressão intelectual. Vico, uma luminosa exceção, com

poucos outros, em um desses períodos obscuros, não foi por

isso plenamente compreendido por seus contemporâneos.

Dessa depressão a Itália vem-se recuperando, por

virtude própria e, em parte, também pelo influxo do

pensamento de outras nações; e a vemos participar com

honras, no século xvm, daquele movimento de estudo e de

pensamento, dito do iluminismo, que se desenvolve então na

Germânia e depois em França, por obra dos encic1opedistas.

Na Itália temos igualmente uma série de escritores que

tentam exaltar o grau de cultura da nação e de melhorar-lhe a

ordem política. Antes de puros filósofos, esses escritores são

mais publicistas, historiadores, economistas e também juristas.

Prosseguem o trabalho de liberação do espírito dogmático e

absolutístico, que tinha imperado na Itália por muitos séculos.

Contemporâneo de Vico foi Ludovico Antonio Muratori,

de Vignola, no Módeno (1672/1750) que, além de dar

poderoso impulso aos estudos históricos, escreveu várias obras

de temas moral e político (Da caridade cristã, 1723; A

filosofia moral, 1735;

I

10 Alguns dos escritores italianos desse período, como C. A. Martini, Solara della Margaritta,

etc.,já foram mencionados acima, incidentalmente, nos lugares oportunos.

& 149

Page 76: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

II

GIORGIO DEL VECCHIO

Dafelicidade pública, 1749, etc.), não ricas de originalidade, mas

animadas de um vivo amor do bem, e um ensaio, Dos defeitos da

jurisprudência (1742), direcionado para a promoção da simplifi

cação das leis, seu recolhimento em códigos e a sua reta aplicação.

Este livro exerceu notável influência sobre escritores italianos e

estrangeiros (por exemplo, sobre o português L. A. Vemey), como

também sobre as primeiras tentativas de codificação que ocorreram

em vários Estados italianos na segunda metade do mesmo século.

Também exerceram atividade mais de historiadores que de

filósofos dois outros grandes contemporâneos de Vico:

Gianvincenzo Gravina, de Rogiano, na Cal abria (1664/1718), e

Pietro Giannone, de Ischitella, em Puglie (1676/1748); um e outro

porém, tentando,

por vias diferentes, retirar dos fatos particulares as razões mais ge

rais da vida do direito e do Estado.

Entre os escritores políticos desse tempo deve também ser

recordado Scipione Maffei, de Verona (1675/1755), que na obra

Conselho político (escrita em tomo de 1736, e publicada postu

mamente, em 1797) expôs considerações análogas às de

Montesquieu, especialmente sobre a Constituição inglesa. É, po

rém, muito duvidoso que ele possa ser visto (como parece a alguns

esdudiosos) como precursor de Montesquieu, pois que a obra sobre

o Espírito das leis, apesar de completada só em 1748, foi

iniciada pelo menos vinte anos antes; e também porque a estada de

Montesquieu na Inglaterra (1729/1731) é anterior ao de Maffei

(1736). Sob certos aspectos, além de caber a Vico, o título de

precursor cabe a Gravina.

Em Vico inspirou-se Jacopo Stellini, de Cividale deI Friuli

(1699/1770), que no livro De ortu et progressu mo rum (= "Do

nascimento e do progresso dos costumes" - 1740) e nas

lições de

Ética (dadas na Universidade de Pádua e publicadas postumamen

te, 1778/1779) combinou de certo modo, sem todavia aprofundálos,

os princípios viquianos com os aristotélicos, buscando deduzir

a diversidade dos costumes das diversas faculdades da alma

humana, enquanto a virtude consistiria no equi1fbrio delas.

150

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Com Vico identifica-se também Emanuele Duni, de

Matera (1714/1781), que em suas obras Ensaio sobre

jurisprudência universal (1760), Origens e progressos do

cidadão e do governo civil de Roma (1763) e A ciência do

costume ou seja sistema sobre o direito universal (1775)

reproduziu, muitas vezes de forma servil, as doutrinas do

grande napolitano, sem, aliás, entenderlhe verdadeiramente o

profundo significado.

Contra Duni, e contra o próprio Vico, voltou-se o jesuíta

Giovani Francesco Finetti, de Gradisca (1705/1782), na obra

De principiis juris naturae et gentium (= "Dos princípios do

direito natural e das gentes", 1764), acusando-o de impiedade,

por haver contraditado a Sagrada Escritura com a doutrina do

primitivo estado ferino dos homens. Seguiram-no uma longa

réplica de Duni (1765; em obra complementar de 1845, v. li),

e, a seguir, um opúsculo de Finetti (com o pseudônimo de

Filandro Misoterio), Apologia do gênero humano acusado de

ter sido certa ocasião uma besta (1768), e ainda outras

referências polêmicas de Duni na Ciência do costume, e de

Finetti na segunda edição de sua obra De principiis juris

naturae et gentium (1777).

Maior importância tem Antônio Genovês, de Castiglione

de Salemo (1712/1769), que ensinou Ética e Economia Política

na Universidade de Nápoles, e foi mesmo o primeiro a iniciar,

na Europa, o ensino de Economia Política, em 1754. Antônio

Genovês escreveu uma obra sobre direitos e deveres dos

homens institulada Da diceosina, ou seja da Filosofia do justo

e do honesto (1767), que se inspira em certo ecletismo e, em

particular, nas doutrinas de Wolff. Valiosos são ainda seus

tratados sobre o comércio, que se tomaram clássicos.

Também Giovanni Maria Lampredi, de Rovezzano,

próximo de Florença (1732/1793), inspirou-se nas doutrinas de

Wolff, que escreveu um tratado de Filosofia do direito com o

título Juris publici universalis, sive juris naturae et gentium

theoremata (= "Teoremas de direito público universal, ou de direito natural e

das .. 151

Page 77: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

gentes", (1776/1778, trad. it. de D. Sacchi, "Direito público

universal ou seja Direito da natureza e das gentes", 2 ed., 1817,

1828). Esta obra serviu de texto às lições dadas pelo autor na

Universidade de Pisa (até 1791); um dos seus discípulos, o célebre

penalista Giovanni Carmignani, dedicou-lhe um amplo exame

crítico na sua História da origem e dos progressos dafilosofia do

direito (ed. póstuma, 1851, v. III, p. 175/197).

Escritor de notável eficácia social foi César Beccaria, milanês

(1737/1794), o qual em 1764 publicou aquele célebre libretoDos

delitos e das penas, que, traduzido em muitas línguas, propiciou ao

autor uma fama talvez superior aos seus méritos.

Em verdade, Beccaria foi mais que uma mente especulativa,

um espírito filantrópico, um verdadeiro representante do

iluminismo. Sem tentar remontar aos sumos princípios da Filosofia,

fez-se promotor de uma reforma humanitária do direito penal. Ele

parte do conceito de que as penas devem ser, o quanto possível,

menores, isto é, reduzidas só ao necessário. Enquanto, aceitando a

teoria do contrato social, opina que por esse contrato os homens

tinham renunciado ao mínimo possível de sua liberdade. Daqui a

regra que a

pena é tanto mais justa quanto menos exceda os limites da pura

necessidade.

Adentrando no exame de cada uma das penas, Beccaria

demonstra não necessária, nem mesmo justa, em tese, a pena de

morte; combate também a tortura, então praticada em toda a

Europa, observando que ela leva a condenar "os inocentes débeis",

e a absolver os "celerados fortes". A ele pertence o mérito de ter

fixado claramente alguns princípios cardiais do moderno direito

penal, como, por exemplo, aquela regra segundo a qual ninguém

pode ser

punido por um fato que não esteja previamente qualificado como

crime pela lei (nullum crimen sine lege). Fixou atenção sobre a

necessidade de vetar interpretação extensi va das leis penais e so

bre a impossibilidade de raciocinar por analogia em tal matéria; e

insistiu igualmente que as leis devem contemplar os crimes por

categorias inteiras, e não por casos singulares determinados.

152

~

.i..

-....

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

o livrinho de Beccaria foi amplamente discutido,

celebrado por muitos, combatido por outros, por exemplo, por

Kant, que reprovou nele o humanitarismo sentimental.

Entende-se facilmente o contraste: enquanto Beccaria

assinala para a pena um fim utilitário, reduzindo-o ao estrito

necessário para preservar a sociedade (nec peccetur = "não se

pecará"), Kant segue, ao contrário, o conceito da penalidade

fundada sobre justiça absoluta (quia peccatum est = "porque é

pecado"), ou seja, considera a pena como expiação necessária para

copensar o mal moral do delito.

Pedro Vem (1728/1799), cultor de várias ciências, e o irmão

menor, Alessandro (1741/1816), foram concidadãos e amigos de

Beccaria, ao qual deram estímulo e matéria para a sua obra, que

depois defenderam contra as críticas por ela suscitadas.

Os dois irmãos Vem, com Beccaria, Gian Rinaldo Carli (de

Capodistria, 1720/1795) e outros, todos inspirados por ideais de

liberdade e de progresso civil, colaboraram no periódico O Café,

que, sob a direção de Pedro Verri, saiu por dois anos (1764/1766)

em Milão e foi o órgão do novo movimento intelectual. Entre as

obras de Pietro Vem recordamos Meditações sobre economia

política (1771), e o Observações sobre a tortura (1777), no qual ele

também, como Beccaria, combateu esta cruel prática arraigada.

Pode-se aqui lembrar também o nome, então célebre e hoje

esquecido, do abade Pietro Tamburini, de Bréscia (1737/1827) que

foi professor na Universidade de Pávia, e nas suas Lições de

Filosofia moral e de direito natural e social (1803, nova edição em

1833) tratou com largueza de vista e espírito humanitário numerosas

questões de Ética aplicada às matérias sociais e políticas. Em outras

obras (especialmente nas Letras teológico-políticas sobre a presente

situação das coisas eclesiásticas, 1794) sustenta as razões do poder

civil em face do eclesiástico, o que lhe acarretou não poucos

confrontos.

153

Page 78: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

1 11

"I

Francesco Mário Pagano, nascido em Brienza (Lucânia), em

1748, e morto em 1799, foi um espírito nobilíssimo de cientista e

patriota, tendo também associado, como freqüentemente acontecia

naqueles tempos de grandes manifestações políticas, a atividade

prática e os estudos teóricos. Foi decapitado em razão do partido que

tomou no movimento revolucionário que produziu a República

Partenopéia*, quando esta caiu.

Pagano tem um lugar notável na história do pensamento

italiano por um estudo sobre o processo criminal, onde invoca os

princípios mais justos e humanos, seguindo a posição de Beccaria; e

especialmente por seus Ensaios políticos, publicados em 1783.

Nesse tratado conduziu-se como discípulo de Vico, ao qual se refere

muitas vezes expressamente. Quis traçar um quadro das origens da

sociedade, de seu progresso e de sua decadência, isto é, quis fazer

obra de Filosofia da história, segundo o grande projeto viquiano.

Também ele, como Vico, distingue três períodos na história

humana. Também ele ensina que a humanidade saiu da barbárie; e

considera especialmente a importância dos fenômenos naturais na

mentalidade primitiva; a origem dos mitos e das religiões é por ele

posta igualmente nos cataclismas e principalmente nos terremotos;

para a prova de suas teorias examina (no prefácio da primeira edição

do seu Ensaios políticos) os efeitos morais do terremoto ocorrido

então (1783) na Calábria, que foi um dos mais catastróficos de que

se tem memória. Pagano, porém, diferencia-se de Vico por uma

certa inclinação ao materialismo.

Foi forte sobre ele a influência da Filosofia sensística, que

então ingressara na Itália vindo da França. Com efeito, aceita o

conceito mecânico da vida e concebe o ser humano como uma

máquina submetida a leis invariáveis.

* N. T. - República proclamada em Nápoles pelo francês Championet. Teve vida

efêmera. Uma coalisão de forças (ingleses, russos e turcos) promovida pelo Papa

retomou Nápoles e rechaçou os franceses além do Vale do Pó.

154

~ HISTÓlUA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Para Vico, a utilidade e a necessidade são apenas motivos

ocasionais que induzem o homem a "celebrar a sua verdadeira

natureza" (bona occasio est utilitas). Ao contrário, para Pagano,

tOdas as ações e fatos históricos se explicam com a só considera

ção das necessidades, dos impulsos; e as razões ideais teriam uma

importância subordinada.

Pode-se dizer que, sob esse aspecto, sua vida foi mais nobre

do que sua doutrina.

Ao lado do nome de Pagano pode-se também recordar o de

Vincenzo Russo, nascido em Palma Campania, perto de Nápoles,

em 1770, e morto, também, no patíbulo em 1799, vítima da reação

burbônica em razão das idéias audaciosamente inovadoras por ele

professadas. Na sua obra intitulada Pensamentos políticos ele

propõe vastas reformas de caráter social.

Espírito nobilíssimo foi, também, Gaetano Filangieri, que,

nascido em Nápolis, em 1752, morreu prematuramente em 1788,

deixando incompleta sua grande obra Ciência da legislação, que,

no entanto, permanece como uma das obras mais respeitáveis sobre

Filosofia civil e política.

Filangieri inspirou-se principalmente em escritores franceses

do seu século, e na Ciência da legislação o influxo de Montesquieu e

de Rousseau aparece evidente. Em certo sentido, a sua obra é

análoga à de Montesquieu sobre o Espírito das leis.

Onde, porém, Montesquieu foi antes um filósofo analítico,

inclinado a observar o fato existente, Filangieri quis ser antes de tudo

um reformador: nos seus escritos os desenhos do futuro prevalecem

sobre representações do passado. Suas idéias são liberais. Põe como

princípio que a liberdade é inalienável, e o Estado deve, em primeiro

lugar, garantir esta liberdade. Quer, não obstante,

estender as funções do Estado, a fim de conseguir, com a sua

autoridade, o maior bem da sociedade.

Além de tratados gerais sobre governos, Filangieri fez

profundas considerações sobre vários objetos legislativos e adminis

155

Page 79: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

r

GIORGIO DEL VECCHIO

trativos, como, por exemplo, sobre a instrução pública e o

ordenamento das escolas, universidade, etc., tratados

verdadeiramente maravilhosos pela clareza e modemidade das

idéias, que deveriam ser ainda hoje meditadas.

Filangieri ocupa-se, também, das funções do Estado a res

peito do comércio e, em geral, sobre todas as formas da vida civil.

O siciliano Nicola Spedalieri (1740/1795), autor da obraDos

direitos do homem (1791), é uma figura característica, que

pode

também parecer ambígua. De fato, ele foi abade e ao mesmo

tempo pregoeiro entusiasta dos princípios da Revolução Francesa.

Quis conciliar a liberdade com a teocracia, as doutrinas do

racionalismo democrático com os dogmas da Igreja, o que denuncia

certo dissídio em suas idéias. No primeiro capítulo da obra citada é

sustentada a

teoria do contrato social, e são reivindicados os direitos naturais do

homem (na verdade sem muita originalidade, porque é manifesta a

derivação das teorias de Rousseau e de outros escritores, especial

mente franceses).

A seguir, nos sucessivos capítulos, Spedalieri quer demons

trar que o melhor protetor desses direitos é a Igreja. E,

prosseguindo por essa via, chega a anular em parte as doutrinas de

liberdade antes sustentadas. Mantém, ao contrário, a intolerância

religiosa, legitima a censura episcopal e outros institutos análogos,

exatamen

te nos quais se apoiavam aquelas doutrinas.

Resulta do sistema como Spedalieri tinha desenhado uma

reforma da política eclesiástica em sentido liberal. Isso explica as

várias interpretações e discussões, até apaixonadas, que se fizeram

mesmo em tempos recentes em tomo da obra de Spedalieri. Dele

pode-se dizer verdadeiramente que teve a sorte de ser combatido

por todos: pelos conservadores ortodoxos, por causa dos princípios

revolucionários contidos na primeira parte da sua obra; e pelos

liberais democráticos, por causa de suas conclusões teocráticas e

pelo ilimitado poder civil por ele atribuído à Igreja.

De resto, tal fenômeno não é sem precedentes nem sem

sucessor na história do pensamento. Já vimos que muitos

monarcomatas

156

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

eram jesuítas e com sua teoria democrática e revolucionária visavam

diminuir o poder dos príncipes e aumentar os da Igreja.

Qualquer coisa de semelhante apresenta Spedalieri, com o

que, não sem razão, foi definido como um monarcômaco atrasado.

De outra parte, ainda em nossos tempos, não faltaram tentativas de

introduzir um espírito inovador na política da Igreja. Quanto a essas

tentativas, Spedalieri talvez pudesse ser considerado precursor.

Outros notáveis pensadores meridionais são Vincenzo Cuoco,

de Civitacampomarano, no Molise (1770/1823), que, entre outras

obras, escreveu um Ensaio histórico sobre a revolução de Nápolis

(publicado em 1801); e CataldoJannelli, de Brienza (1781/1841),

que em 1817 publicou o ensaio Sobre a natureza e a necessidade da

ciência das coisas e das histórias humanas, ambos inspirados

principalmente em Vico.

Em Cuoco é especialmente notável o profundo senso

histórico, que o induziu a uma crítica talvez até excessiva das

ideologias revolucionárias, crítica análoga, como acenamos acima, à

do inglês Burke.

O pensamento de Cuoco se contrapõe nisso ao dos gloriosos

mártires Pagano e Russo, dos quais ele foi também amigo. Jannelli,

alheio às questões políticas, meditou com intentos puramente

teóricos o grandeqJfojeto da Ciência nova, de Vico, e tentou

aperfeiçoá-Io, traçando os lineamentos programáticos de uma

"Historiosofia" e de uma "ciência das coisas humanas" que teria por

fim "o exato conhecimento do nexo e da subordinação das coisas

humanas entre elas". É fácil visualisar aí uma antecipação do

pensamento fundamental de Comte.

Gian Domenico Romagnosi, de Salsomagiore, em EmI1ia

(1761/1835), foi educado na escola do sensismo, difundida na Itália

depois da metade do século XVID, especialmente na região onde ele

nasceu, e também porque um dos chefes daquela escola, o filósofo

francês Condillac, foi a Parma como educador do príncipe na corte

burbônica, de 1758 a 1768.

Do Colégio Alberoni, de Piacenza, onde Romagnosi foi

educado, saiu também outro pensador de certa importância,

Melchiorre

.. 157

Page 80: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Gioia (1767/1829). Em uma obra juvenil (sobre o tema Qual dos

governos livres mais convém àfelicidade da Itália, 1797) Gioia

sustenta, com espírito liberal, a idéia de unidade da Itália, contra a

tendência federalista.

Em outras obras tratou de questões sociais e morais, e ainda

econômicas, como também da Estatística, uma ciência ainda em

formação (Novo prospecto das ciências econômicas, 1815/1819; Do

mérito e das recompensas, 1818; Filosofia da estatística, 1826).

Romagnosi, inteligência ainda mais vasta, aplicou a sua

atividade em várias ciências e em todas as partes da Filosofia. Seu

pensamento conservou sempre um caráter naturalístico, pelo qual se

pode dizer que ele antecipou o positivismo moderno.

De suas numerosas obras recordamos: Gênese do direito

penal (1791 ),Introdução ao estudo do direito público universal

(1805), Da constituição de uma monarquia nacional representativa

(1815, primeira parte da obra A ciência das consituições, publicada

intergralmente, após a sua morte, em 1848, Primeiro propósito da

ciência do direito natural (1820), Instituições de Filosofia civil ou

seja dejurisprudência teórica (1825; edição póstuma, 1839).

Como transparece ainda destes títulos, além de estudos de

pura Filosofia, Romagnosi aplicou o seu robusto engenho não só em

diversas ciências, mas também nas disciplinas jurídicas, em toda a

sua amplitude.

A terminologia usada por ele é talvez obscura e ambígua;

encontram-se mesmo nos seus escritos termos metafísicos

(derivados da escola de Wolff), que poderiam induzir em erro sobre

o verdadeiro caráter do seu pensamento. Na verdade, ele quer

excluir a noção do absoluto, seja sob o aspecto teórico, seja sob o

aspecto prático, dando um significado relativo também às idéias do

bem e do dever.

Romagnosi tem o mérito verdadeiramente grande de ter

aprofundado o conceito de sociedade. Concebeu a sociedade como

158

~

1.

.......

HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

um organismo que surge, desenvolve-se e decai por leis

próprias. Conceito análogo àquele sustentado depois por

Spencer.

Importante é o confronto entre Romagnosi e Spencer,

porque nas doutrinas desses dois autores encontram-se iguais

pontos de contato, naturalmente com vantagem para o

primeiro, que precede o segundo de mais de meio século.

O caráter geral da Filosofia de Romagnosi pode ser

compendiado nas palavras naturalismo e determinismo. Essa

tendência manifesta-se também no campo do direito penal,

como se pode ver em sua primeira obra, há pouco citada.

Romagnosi quer fundar o direito penal prescindindo da

idéia do livre-arbítrio. A pena é por ele considerada como uma

defesa da sociedade. Parte do conceito da motivação

psicológica: existem impulsos ou motivos que levam o homem

ao delito; contra esses motivos deve agir o motivo mais forte

da pena. À força impulsiva do delito deve corresponder a força

repulsi va da pena; ao impulso, o contra-impulso.

Outra parte importante do sistema de Romagnosi é a sua

doutrina do Estado constitucional, fundada sobre o princípio

da nacionalidade, ou "etniarquia"; desse princípio foi, talvez o

primeiro, indubitavelmente um dos primeiros defensores.

Ao sensismo francês e também italiano opõe-se o grande

filósofo Pasquale Galluppi, de Tropea, na Calabria

(1770/1846). Suas obras principais são: Ensaio filosófico

sobre crítica do conhecimento (1819), e Filosofia da vontade

(1832/1840). Galluppi sentiu principalmente a influência de

Kant, sem, todavia, aceitar-lhe todas as idéias. Ele é, em certo

sentido, o Kant italiano. Põe como princípio fundamental o

fato originário do eu, que sente o não eu.

Se não se parte da consideração do sujeito, não se pode

chegar ao objeto. Galluppi distingue dois poderes primordiais

no espírito humano: análise e síntese; e com eles quer explicar

todos os processos do conhecimento.

Na Filosofia prática Gàlluppi é ainda mais vizinho de

Kant porque, como este, combate a moral eudaimonística ou

utilitária, e 159

Page 81: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

sustenta o absolutismo da lei do dever e do princípio do bem. O

direito é por ele definido como "o poder moral de fazer o que a lei

não veda".

Enquanto Galluppi esteve imune às preocupações políticas, o

mesmo não se pode dizer de outros filósofos italianos, dentre os

quais os dois maiores, Rosmini e Gioberti.

Não obstante tenham polemizado entre eles (e mais ainda

polemizaram os seus respectivos discípulos), em um exame

objetivamente histórico suas figuras aparecem relativamente

vizinhas. Ambos foram sacerdotes e buscaram conciliar a Filosofia

com a Religião, a Igreja com o Estado. Mas por suas tendências

liberais foram talvez hostilizados também pela autoridade

eclesiástica, que proibiu algumas de suas obras e desconfiou de seus

sequazes, em especial dos de Rosmini.

Vejamos brevemente suas doutrinas.

Antônio Rosmini Serbati nasceu em Rovereto (Trentino) em

1797 e morreu em 1855. Entre suas obras principais recordaremos:

Novo ensaio sobre a origem das idéias(1830), Princípios da

ciência moral (1831), Filosofia da política (1839), Filosofia do

direito (184111843),A Constituição segundo ajustiça social (1848),

O comunismo e o socialismo (1849, republicado com o título

Ensaio sobre comunismo e socialismo, em Apêndice à 2.

edição da Filosofia da política, 1858). Rosmini é idealista. Afirma

que existe uma idéia a priori em nós. Esse ponto de vista é análogo

ao de Kant.

Mas onde Kant tinha tentado formular um elenco de noções

ou elementos a priori, Rosmini reduz tais noções a uma só: à idéia

do ser (isto é, do ser possível e indeterminadíssimo). Essa idéia não

pode ser dada pela experiência, porque a experiência mesma supõe

a idéia do ser.

A filosofia prática de Rosmini é estritamente análoga à

Filosofia teórica. Princípio fundamental ético, segundo Rosmini é:

"conformar as próprias ações ao grau de entidade dos objetos", ou

seja, "reconhecer praticamente o ser na sua ordem"

160

~

1.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Por isso, em primeiro lugar (eis uma aplicação característica)

tem-se o dever do respeito absoluto da personalidade, pois que na

personalidade o ser se manifesta na sua mais alta forma.

Rosmini esforça-se sempre para conciliar as doutrinas

filosóficas com os dogmas religiosos. E põe um cuidado especial no

conciliar o direito com a moral. Assim define ele o direito "uma

faculdade de operar o que agrada, protegida pela lei moral, que

impõe aos outros o respeito".

Distingue três espécies de sociedade: a teocrática, a doméstica e a

civil, e trata distintamente dos caracteres de cada uma. A política -

ensina - é a arte de conduzir a sociedade civil ao seu próprio fim. Mas

isso ela pode fazer somente com subordinação ao direito, ou seja,

àjustiça.

No traçar um projeto de "constituição segundo a justiça

social", declara ele que este projeto, compilado com vista à

monarquia, pode igualmente aplicar-se à forma republicana, quando

se troca o rei por um presidente. E coloca como princípio

fundamental que "os direitos da natureza e da razão são invioláveis

por todo homem".

As formas propostas por Rosmini (seguidas de considerações

explicativas) visam em parte ao Estatuto italiano de 1848, mas em

parte dele diferem (por exemplo, enquanto contemplam duas

Câmaras legislativas, ambas eletivas). Advirta-se que o escrito de

Rosmini remonta a 1827, apesar de publicado só em 1848.

Certamente teve presente o exemplo de outras Cartas

constitucionais.

As preocupações políticas tiveram parte notável, ainda que

como escapadelas da atividade filosófica, na vida de Vincenzo

Gioberti, torinense (1801/1852). Foi ele, em verdade, um dos

apóstolos do Ressurgimento italiano, e, muitas vezes, Ministro do

reino da Sardenha. Sua ideologia não difere profundamente da de

Rosmini. Também ele é idealista.

Porém, não parte, como Rosmini, do fato da consciência, mas

da revelação do ser absoluto, divino. Este ser é a causa criadora de

todas as coisas.

161

Page 82: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Gioberti recolhe sua Filosofia na fórmula: "O ente cria o

existente". As doutrinas filosóficas de Gioberti foram expostas por

ele principalmente nas obras Teórica do sobrenatural (1838),

Introdução ao estudo da Filosofia (1840), Protologia (edição

póstuma, 1857).

Muitas outras obras de Gioberti possuem conteúdo político.

Propôs-se a ressurgir o espírito italiano. Dirigiu para esse escopo

todo o livro publicado em 1843, Do primado moral e civil dos

italianos, escrito com um estilo um tanto enfático e empolado, mas

não privado de eficácia e eloqüência.

Esse livro suscitou grande entusiasmo; via-se nele um

auspício pelos destinos da pátria em um futuro não distante. Por

isso, mais que amá-Ia, devemos esquecer as desilusões pelos

acontecimentos de 1848 e de 1849. Desses fatos existe uma

descrição dolorosa na obra publicada por próprio Gioberti em 1851,

com o título Da renovação civil da Itália.

O ideal político de Gioberti (especialmente no Primado) foi o

dos guelfos, ou melhor, dos neoguelfos. Ele sonhou com a

unificação dos Estados italianos em forma de federação sob a

hegemonia do Pontífice, e muitos participaram também desse ideal.

As preo

cupações políticas e a brevidade da vida impediram o engenho

filosófico de Gioberti, que era, certamente, de primeiríssima ordem,

de dar todos os frutos que dele se podiam esperar. Ele teve, em

filosofia, vários seguidores, porém menos numerosos e notáveis do

que os de Rosmini.

Eclético pode ser considerado Terenzio Mamiani, de Pesaro

(1799/1885), que sofreu a influência sucessivamente de Galluppi,

de Rosmini e de Gioberti, e buscou ao final renovar o idealismo

platônico. Versou argumentos de Filosofia do direito nas obras: De

um novo direito europeu (1859), Teoria da religião e do Estado

(1868), Das questões sociais e particularmente dos proletários e do

capital (1882), etc. Digna de nota é a elevada discussão que

manteve com P. S. Mancini (de Castelbaronia, perto de Avellino,

162

~

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

1817/1889), sobre a Filosofia do direito e especialmente sobre o

direito de punir (1841).

Mamiani defende o projeto dogmático-idealístico e concebe a

pena como exigência absoluta.

Mancini inclina-se ao positivismo e entende a pena em

sentido relativo. É de ser recordado também, e sobretudo, o discurso

de Mancini, Da nacionalidade como fundamento do direito das

gentes (1851), que constituiu o programa da pretendida escola

italiana de direito intemacional,já anunciada por Romagnosi.

Foi o genovês Giuseppe Mazzini (1805/1872) um engenho

soberano, que teria podido apresentar singularíssima contribuição

também à especulação filosófica, se as lutas pela unidade e pela

liberdade nacionais não o tivessem ocupado constantemente.

Mazzini concebeu a vida como uma missão. Na sua doutrina,

o dever domina tanto na teoria quanto na ação. Assim, também a

idéia do direito é por ele subordinada à idéia do dever. Os seus

escritos são maravilhosos pela elevação e nobreza dos pensamentos

(recordemos, por exemplo, o livro Deveres do homem), mas, no

mais das vezes, de caráter político e também polêmico, voltados

para questões atuais. Contêm por si só esboços filosóficos bastante

sumários, entregues ao sentimento e à intuição, mais que à análise e

ao raciocínio sistemático.

Profunda e quase mística é a sua fé nos ideais de humanidade

e de progresso, que nele se sobrepuseram com os de pátria e de

soberania popular. Esses princípios diretivos são por ele afirmados,

em geral apoditicamente; mas a sua férvida e inflexível aplicação

prática é, por si mesma, uma demonstração eficaz deles. De grande

valor são ainda suas idéias sobre a solução da questão social,

mediante a colaboração e a solidariedade das várias classes que

compõem a nação.

Escritor de notável importância é também Carlo Cattaneo,

milanês (1801/1869), discípulo direto de Romagnosi, e, tal como

ele, inclinado ao naturalismo e ao positivismo. Projetou uma vasta

163

Page 83: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

obra sobre a Psicologia das mentes associadas, tema então

novíssimo, fazendo dela objeto de algumas conferências no

Instituto Lombardo (1859/1863). Apreciável, apesar de

incompleto, é, ainda, o ensaio Do direito e da moral (1863,

edição póstuma, 1892). Em política, sustentou a idéia de uma

república federal, pondo-se em certa contradição não só com

as tendências monárquicas, mas também com o programa

unitário mazziniano.

De Romagnosi deriva igualmente Giuseppe Ferrari,

também de Milão (1812/1876), que teve entre os seus méritos

o de cooperar validamente a fim de que fossem estudadas e

apreciadas as doutrinas de Vico (Cuidou de uma edição, em

seis volumes, das obras de Vico, anotando-as e permeando-as

com um valioso ensaio sobre a mente de Vico). Escreveu com

vigoroso engenho, nem sempre com método rigoroso,

Filosofia da revolução (1851) e Curso sobre escritores

políticos italianos (1862), etc. Também, como Cattaneo, foi

tenaz defensor do federalismo. A sua fama de filósofo da

história é devida principalmente à sua obra Teoria dos

períodos políticos (1874).

Segundo essa teoria, todo desenvolvimento social

cumprese em quatro períodos, correspondentes à duração de

uma geração (cerca de trinta anos) cada um, períodos que

Ferrari chama dos precursores, dos revolucionários, dos

reacionários, dos que decidem.

Estes últimos completariam as coisas em ordem

estabilizada,

e então começaria novo ciclo.

Esta esquematização filosófica da história, como todas

as outras análogas, tem uma parte de verdade e uma parte de

erro, porque até mesmo a história refuta semelhantes

esquemas fixos.

Digno de memória é também o palermitano Emerico

Amari (1810/1870), por sua obra Crítica de uma ciência das

legisla. ções comparadas (1857), que prossegue e dirige a

novos desenvolvimentos, modificando em partes o

pensamento viquiano a res 164

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

peito da Filosofia da história e especialmente do direito, com

particular atenção ao direito comparado.

São igualmente de serem recordados, na história do

pensamento filosófico italiano, alguns seguidores do hegelismo, e

em especial dois: Augusto Vera, de Amelia, na Úmbria

(1813/1885), que representa o hegelismo ortodoxo intransigente; e

Bertrando Spaventa, de Bomba, perto de Chieti (1817/1883), que

promoveu eficazmente o estudo da Filosofia alemã em geral e

também se ressentiu da influência da crítica kantiana. O seu

hegelismo é combinado de certo modo com o kantismo. Seus

Estudos sobre a ética de Hegel (1869) são importante reelaboração,

não desprovida de originalidade, das doutrinas hegelianas, também

sobre a Filosofia do direito.

Contribuições apreciáveis para a escola do direito racional

deram vários pensadores italianos, além de Baroli e de Tolomei, dos

quais fizemos acima referência. As obras desses pensadores não se

distinguiram por grande originalidade, mas continuaram não sem

méritos uma outra tradição do pensamento, e não merecem, por isso,

o esquecimento no qual vieram a cair. Tais são: C. BonCompagni

(Introdução à ciência do direito para uso dos italianos, 1848); B. D'

Acquisto (Curso de direito natural oufilosofia do direito, 1852); I.

Pizzarelli (Curso elementar de direito natural ou filosofia do

direito, 1859); P. Fiorentino (Programa de um curso de direito

filosófico ou seja princípios racionais do direito expostos segundo a

ordem lógica, 1859); M. A. Raibaudi (A ciência da justiça natural

entre os privados, 1860); A. CataraLettieri (Introdução àfilosofia

moral e ao direito racional, 1862, 2. ed., 1872); Vincenzo Pagano

(Novos elementos de direito racional ou universal, 1863); F. A. De

Luca (Afilosofia do direito ou seja instituição completa de direito

natural e direito público, 1863/1864. Também não é fora de

oportunidade recordar que o ensaio de B. Grisafulli Zappalà

(Autoridade dos italianos sobre a ciência do direito, 1862), que se

atém a semelhantes critérios na

1,. 165

Page 84: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

valorização da contribuição do pensamento italiano aos

progressos da Filosofia do direito.

Da mesma forma devem-se recordar alguns escritores

que, se não pertenceram estritamente à dita escola, seguiram-

lhe em grande parte os princípios e os métodos, como:

Giovanni Carmignani (1768/1847) que, além da obra histórica

já citada (História da origem e dos progressos da Filosofia do

direito), e uma monografia ainda inédita, intitulada Juris

philosophiae lineamentaII, escreveu uma Teoria das leis da

segurança social (1831/1832) direcionada especialmente a

fundar sobre bases filosóficas o direito penal, em cuja

exposição teve como discípulo o grande jurista F. Carrara; P.

L. Albini (1807/1863), Ensaio analítico sobre direito e sobre a

ciência e instrução político-legal, 1839; Do princípio supremo

do direito, 1854; Princípios de filosofia do direito, 1857, que

buscou distinguir o "direito filosófico" do "direito da razão" e

do "direito positivo", avizinhando-se de Rosmini,

especialmente nos últimos escritos; F. DeI Rosso (Dever e direito - Ensaio de filoso

fia moral, 1845/1847), que analisou sobretudo a noção do

dever, dele fazendo derivar o direito; L. Ambrosoli

(Introdução àjurisprudência filosófica, 1846), que seguiu em

parte as pegadas de Romagnosi, e tentou conciliar a escola

racional com a histórica. Também Alessandro De Giorgio,

conhecido sobretudo pela edição, de sua responsabilidade, das

obras de Romagnosi, esmerou-se, com grande, mas pouco

frutífero, resultado, em interpretar a seu modo e corrigir as

doutrinas desse autor, conciliando-as com o espiritualismo;

escreveu, ainda, um Ensaio sobre princípios fundamentais de

direito filosófico e em particular sobre a teoria do direito

penal (1852), no qual aparecem elementos romagnosianos

confundidos com outros assaz heterogêneos. De De Giorgi

pode-se recordar ainda

11 O. Scalvanti deu um amplo resumo desta obra (Ensaio sobre algumas obras inéditas de G. Carmignani. Perugia, 1892). Cf., também, CANUTI, G. G. Carmignani e

seus escritos defilosofia do direito. Grottaferrata, 1924.

166

~

.&

.

......

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

uma longa e severa crítica, do ponto de vista católico, do sistema de

Ahrens (Exames do curso de direito natural do prof H. Ahrens,

1853), e um ensaio sobre Afilosofia do direito e a escola histórica

(1863). Com a tradição romagnosiana, largamente entendida (e

mantida particularmente viva na Universidade de Pávia), ligam-se

também os Prelúdios, de Alessandro Nova (Afilosofia, afilosofia do

direito, etc., 1862). .

Notáveis manifestações de atividade deu a escola católica do

direito natural, à qual substancialmente aderiram também alguns dos

autores já nominados, e assinaladamente Rosmini, também por

originalidade própria do seu pensamento.

Dentre os principais representantes de tal escola nesse

período, além do próprio Rosmini, devem ser enumerados: Luigi

Taparelli, de Torino (1793/1862), ao qual se deve um dos mais

amplos e elaborados desenvolvimentos filosóficos sobre direito em

geral e seus vários ramos (1840/1843), além de uma síntese do

mesmo tratado (Ensaio teórico de direito natural apoiado sobre o

fato - 1840-1843 -, alínea de um resumo do mesmo Tratado, (Curso

elementar de direito natural para uso das escolas, 1845), e de uma

outra importante obra que se pode considerar como apenso ou

comentário da primeira (Exame crítico das ordens representativas

na sociedade moderna, 1854); Matteo Liberatore (Ethicae etjuris

naturae elementa = "Elementos de ética e de direito natural", 1846);

Guglielmo Audisio (Juris naturae et gentium privati et publici

fundamenta, 1852 = "Fundamentos de direito natural e das gentes

privado e público").

Segundo os mesmos princípios, mas com singular vivacidade

e amplitude de idéias, discutiu os problemas fundamentais do direito

público P. Giorcchino Ventura, de Palerma (1792/1861; em O poder

político cristão, 1858, e no Essai sur le pouvoir public ou exposition

des lois naturelles de I' ordre social, 1859; as edições italianas dessa

obra apareceram em 1860).

167

Page 85: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Seguidores de Rosmini foram Francesco Melilo (Instituições

de direito da natureza e das gentes, 2. ed., 1846, 1856; Manual de

filosofia do direito para uso da Juventude italiana, 1869), e U golino

Fasolis (Elementos da filosofia e história do direito, 1867). E quanto

a Luigi Rossi (Da filosofia do direito, 1853) e ao abade Felice

Toscano, no seu valioso Curso elementar de filoso

fia do direito (1860, 3. ed.,1869), ativeram-se, prevalentemente, a

Gioberti.

Convém advertir que não só os autores acima citados, mas

ainda quase todos os outros indicados antes e os que indicaremos a

seguir, acolheram, explicita ou implicitamente, em suas doutrinas,

os princípios essenciais da ética cristã, aceitando-os a priori ou a

eles chegando por vias diversas. Esses princípios, conjugados com a

clássica tradição greco-romana, são por isso, e não sem razão,

considerados como elementos de umaphilosophia perenis. Estri

tamente ligada à escola católica é, em especial, a do direito

racional, e não é exagerado dizer que os programas das duas

escolas coincidem, em muitas partes, como facilmente se vê, se se

confrontam as obras acima citadas.

2. De cerca de 1870 até os nossos dias

Também em época mais recente, os estudos de Filosofia do

direito tiveram na Itália estímulos e progressos consideráveis.

Alcançada a unidade da pátria com Roma feita Capital, meta

de seculares esforços e também de trabalhos do pensamento, as

mentes dos melhores italianos não foram mais desviadas, ou o foram

em menor proporção, da atividade científica e filosófica, por causa

das lutas políticas.

Aquela atividade, já espalhada em diversos centros de

cultura com escassa comunicação entre eles, vem-se encaminhando

mesmo para uma certa unificação, vale dizer, para um maior

coordenamento, sem prejuízo, bem se entende, da variedade das

escolas e das opiniões.

168

~

...

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Em igual tempo o pensamento italiano entrou em

comunicação mais freqüente e ativa com o de outras nações. Na

época precedente, apesar de representado por grandes, talvez

grandíssimos, engenhos, ele era mais isolado; por isso a influência

italiana sobre o pensamento europeu, depois do Renascimento, não

foi tão grande como devera ter sido.

Só em tempos mais recentes buscou-se unir a Filosofia

italiana à européia; especialmente o abruzzese B. Spaventa, acima

recordado, e o bolonhês Luigi Ferri (1826/1895, professor em Roma

desde 1871), ocuparam-se em fazer conhecer melhor entre nós os

grandes sistemas filosóficos estrangeiros, e também em divulgar

além dos Alpes o nosso pensamento (cf., por exemplo, de Ferri o

Essai sur l' histoire de la philosophie en ltalie au dix-neuvieme

siecle, 2 v., Paris, 1869.)

A crítica kantiana, fundamental para o desenvolvimento da

Filosofia moderna, foi divulgada entre nós particularmente por Carlo

Cantoni (1840/1906) e também por Felice Tocco (1845/1911),

Filippo Masci (1844/1923) e outros. As doutrinas evolucionísticas

de Spencer tiveram, por obra de muitos, difusão ainda maior. O

mesmo pode-se dizer de muitas outras doutrinas, também no campo

especial c;la Filosofia do direito.

Indicaremos agora, sumariamente, os autores italianos que,

por volta de 1870, deram contribuições de algum valor aos estudos

da Filosofia do direito, buscando reagrupá-Ios, o quanto possível,

segundo a respectiva afinidade; isto, todavia, não sem advertir que

uma classificação rigorosa é impossível, tendo todo pensador

caracteres próprios, nem sempre bem definidos e nem sempre

redutíveis a uma única denominação.

Embora permanecendo vivas ainda nesse período todas as

diferentes escolas já desenvolvidas na época anterior, uma delas teve

grande deserivolvimento e radical renovação, a pon

to de poder ser anunciada como expressão típica do pensamento

moderno e tornar-se realmente predominante, do final do sé

lhQ

Page 86: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

culo XIX até os primeiros lustros do século presente: a escola

positivista.

Na história do pensamento italiano, essa escola tinha

precedentes distantes (por exemplo, em Galilei) e

relativamentepróximos (Romagnosi e Cattaneo). Mas o maior

impulso derivou-lhe das obras de Comte, de Darwin e de Spencer,

largamente difundidas e acolhidas com muito grande favor, também

por trazerem temas de crítica contra as doutrinas tradicionais. O

principal representante do positivismo italiano foi Roberto Ardigà,

de Casteldidone, perto de Cremona (1828/1920), que elaborou um

completo sistema, não sem caráter original, e teve numerosos

discípulos, dentre os quais G. Tarozzi, G. Marchesini, E. Ferri, A.

Groppali.

De suas muitas obras, recolhidas em onze volumes, é

especialmente de ser recordada aA moral dos positivistas

(1878/1879), compreendendo na origem também a Sociologia

(depois reelaborada e publicada também à parte).

Tanto a moral como o direito são considerados por Ardigà no

seu aspecto empírico ou fenomênico, ou seja, como fatos, dos quais

ele estuda exatamente (segundo sua fórmula preferida) a "formação

natural" mediante a passagem "do indistinto ao distinto".

Ele admite também um "direito natural" sobre o direito

positivo

(que se identifica com o "fato do poder"). Mas entende essa

fórmula como simples idealidade ou atualidade psicológica, que

prepara o direito do porvir, o qual deve vencer o direito do passado.

"O ideal absoluto do direito", afmna, ele, "não existe realmente", o

que é certamente exato, se a realidade se faz consistir só no relativo.

Permanece, de qualquer modo, digno de nota que Ardigó

reconheceu (porquanto lho consentiam seus princípios) a idealidade

da justiça, definida por ele como "a força específica do organismo

social".

Deixando de ocupar-se dos outros positivistas, que têm

menor importância para nossa disciplina (por exemplo, o pugliese

Andrea Angiulli (1837/1890, autor de um notável livro sobre A

170

-".... --..

HISTÓRIA DA fILOSOFIA DO DIREITO

filosofia e a escola, de 1888), façamos um esboço dos

defensores das doutrinas positivistas no campo especial da

Filosofia do direito.

O mais autorizado entre eles é Icilio Vanni, de Citá della

Pieve, na Umbria (1855/1903), que dedicou, ao lado de seus

escritos, todos assaz meditados, aos problemas metodológicos

(Primeiras linhas de um programa crítico de sociologia, 1888;

O problema da filosofia do direito na filosofia, na ciência

ê na vida nos nossos tempo, 1890; A função prática da

filosofia do direito considerada em si e em relação ao

socialismo contemporâneo, 1894; O direito na totalidade de

suas relações e a procura objetiva, 1900; A teoria do

conhecimento como indução sociológica e a exigência crítica

do positivismo, 1902.

Ao seu arguto espírito científico não podiam escapar de

todo as fraquezas, em verdade irreparáveis, do programa

positivista, ao qual ele se filia por inteiro; especialmente a de

retirar da experiência os critérios que tornam possível a

experiência mesma e a de estabelecer os valores éticos ou

deontológicos sobre a base dos fatos mesmos que se pretenda

valorizar.

Fez-se, ele, por isso, defensor de um "positivismo

crítico", ou seja, de um "conúbio do positivismo com a

crítica", conúbio que devia porém permanecer estéril, o ao

menos escassamente fecundo, pela profunda heterogeneidade

dos seus termos. Os escritos de Vanni (dentre os quais

mencionaremos ainda a monografia sobre Os estudos de H. S.

Maine e as doutrinas da filosofia do direito, 1892 12 e as

Lições de filosofia do direito, editadas só depois da prematura

morte do autor, em 1904) têm, todavia, um alto valor, pela

escrupulosidade das indagações, pela completude da

informação e pela lucidêz da forma.

12 Essa monografia, com as abaixo recordadas, e outras foram republicadas nos dois

volumes póstumos Ensaios de filosofia social e jurídica, 1906/1911.

.... 171

Page 87: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Por esses seus dotes ele foi também um excelente mestre, e

na sua escola formaram alguns dos sucessivos professores da

matéria, os quais lhe conservaram reverente reconhecimento, mesmo

discordando de suas doutrinas.

O positivismo mais rigoroso e intransigente, dirigido a uma

pura fenomenologia do espírito por meio da pesquisa

genéticoevolutiva, é representado por Salvatore Fragapane, de

Licódia Eubéia, perto de Catânia (1868/1909), que sustenta por isso

uma alongada e vivaz polêmica contra as doutrinas de Vanni,

julgadas

por ele ec1éticas. Suas obras (Contratualismo e sociologia

contemporânea, 1892, O problema das origens do direito, 1896,

Dafilosofiajurídica no presente ordenamento dos estudos, 1899;

Objeto e limites da filosofia do direito, v. I, Os critérios de uma

limitação positiva da filosofia do direito, 1897, v. 11, As relações

gnoseológicas e práticas da filosofia do direito, 1899, v. 111,

Desenho de uma purafenomenologia do direito como filo

sofia; este último volume foi publicado somente em parte, em 1902,

e permanece, pesarosamente, incompleto) atestam um vigoroso

engenho, que outros frutos teria podido oferecer, se também ele

(como jáVanni e depois Petrone) não tivesse sido atingido de

prematura morte.

À escola positivista pertencem ainda 13;

R. Schiattarella (Os pressupostos do direito científico e

questões afins de filosofia contemporânea, 1881,2. ed., 1885);

G. Vadalà-Papale (Moral e direito na vida, 1881; Darwinismo

natural e darwinismo social, 1882; V. Vautrain Cavagnari (O

ide

al do direito, 1883; As leis da organização social, 1890); P.

Cogliolo (Filosofia do direito privado, 3. ed., 1888, 1936); G.

D' Aguanno (A gênese e evolução do direito civil segundo as

13 Tenha-se presente que dos autores citados indicamos, de regra, alguma entre as obras mais significativas. Uma completa bibliografia sairia manifestamente do quadro desses sumários esboços.

172

~

"'"

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

resultâncias das ciências antropológicas e histórico-sociais, 1890);

A. Majorona (Teoria sociológica da Constituição política, 1894,2.

ed.); M. A. Vaccaro (As bases do direito e do Estado, 1893); V.

Miceli (Estudos de psicologia do direito- As bases psicológicas do

direito, 1902; As fontes do direito do ponto de vista psíquico-social,

1905; A norma jurídica, 1906; Princípios defilosofia do direito, 2.

ed., 1914, 1928, que em suas numerosas obras considerou o direito

especialmente sob o aspecto psicológico, como fenômeno de crença

coletiva; G. Dallari (Dos novos

fundamentos da filosofia do direito, 1896; A exigência do

positivismo crítico pelo estudo filosófico do direito, 1903, O

novo contratualismo na filosofia social e jurídica, 1911); A.

Groppali (Os caracteres diferenciais da moralidade e do direito

segundo a escola positiva inglesa, 1901; Lições de sociologia, 1902;

O problema do fundamento intrínseco do direito no

positivismo moderno, 1904; Filosofia do direito, 1906, nova edição,

totalmente reelaborada,1944); F. Puglia (A função do direito na

dinânica social, 1903; A luta pelo direito e a evolução soci

al, 1903; Linhas gerais de um sistema de filosofia do direito,

1907); T. Labriola (Imperativo jurídico e adesão espontânea, 1905;

Razão, função e desenvolvimento da filosofia do direito, 1906; Da

idéia de justiça, 1906); A. Falchi (As exigências metafísicas da

filosofia do direito e o valor dela a priori, 1910)

A teoria do direito no sistema da filosofia jurídica, 1926), que

discute particularmente, com o propósito de refutá-Ias, as objeções

colocadas contra o positivismo jurídico; Alessandro Levi (Por um

programa de filosofia do direito, 1905; Contributos para uma teoria

filosófica da ordem jurídica, 1913; Filosofia do direito e tecnicismo

jurídico, 1920; Ensaios de teoria do direito, 1924) que,

ultrapassando a esfera dos dados empíricos, realizou notáveis

estudos sobre a natureza lógica do direito; C. Nardi-Greco

(Sociologia jurídica, 1907); F. Cosentini (A reforma da legislação

civil, 1911; Sociologia, 1912; Filosofia do direito, 1914; G.

173

Page 88: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Mazzarella (As unidades elementares dos sistemas jurídicos, 1922),

que se atém especialmente a estudos de Etnologiajurídica; R. Vacca

(O direito experimental, 1923), que, mesmo atendo suas pesquisas

originais a um método rigorosamente indutivo, deixou em aberto as

prospectivas por uma diversa consideração filosófica do direito.

Se não de modo específico, trataram do direito como parte da

fenomenologia social, segundo a tese positivista, vários economistas

e socilólogos, como: A. Loria (A teoria econômica da Constituição

política, 1886, obra sucessivamente ampliada com o título: As bases

econômicas da Constuição social, 4 ed., 1913: A sociologia, o seu

objeto, suas escolas, 1901); V. Pareto (Tratado de sociologia geral,

2. ed., 1916, 1923); A. Asturo (A sociologia, seus métodos e suas

descobertas,2. ed., 1896, 1907; O materialismo histórico e a

sociologia geral, 1904; Sociologia política, 1911); E. De Marinis

(Sistema de sociologia, 1901); F. Squillace (As doutrinas

sociológicas, 1902), etc. Numerosíssimos estudos sob este assunto,

atinentes ainda ao direito, foram elencados na Revista Italiana de

Sociologia (1897/1920).

Os fenômenos da vida social ligados com a criminalidade

foram amplamente estudados pela nominada escola positiva do

direito penal, fundada por C. Lombroso (1835/1909): O homem

delinqüente, 5. ed., 1876, 1896/1897; O delito político e as

revoluções, 1890, etc.) e prosseguida especialmente por E. Ferri

(Sociologia criminal, 5. ed., 1929/1930; ampliamento da obra

publicado em 1881: Os novos horizontes do direito e do processo

penal), R. Garofalo, S. Sighele, etc. Esta escola foi, sem dúvida,

uma das mais vigorosas e eficazes manifestações do positivismo

italiano e encontrou consenso, ao lado de oposições, em toda parte

do mundo. Pode-se mesmo notar que algumas de suas conclusões

práticas por uma racional reforma dos institutos penais e dos meios

de prevenção e defesa contra a delinqüência puderam, igualmente e

talvez melhor, deduzir premissas filosóficas assaz diversas.

174

~

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Ligada à tendência positivista, porque igualmente inclinada

ao estudo dos fatos, mas distinta dela por uma diferente

consideração dos fatos mesmos, é a historicista ou neo-historicista,

representada principalmente por Carle.

Essa tendência trazia origem e alimento da tradição viquiana,

nunca extinta ou interrompida na Itália. A ela se ajuntavam alguns

elementos derivados do sistema romagnosiano, especialmente os

contributos recolhidos da "escola histórica dos juristas", de lá

também, ao menos indiretamente, do idealismo objetivo de

Schelling e de Rege!.

Mais que de uma verdadeira escola, trata-se mesmo, repitase,

de uma tendência, da qual se encontram traços também em

pensadores de caráter eclético ou aderentes a diversas escolas. Para

o "elemento histórico" que deve ser introduzido na ciência filosófica

do direito "como princípio essencial", apelou,por exemplo, em

várias de suas obras, A. Cavagnari (Hodierno caminho da filosofia

do direito, 1870; conferir, do autor, Ensaio de filoso

fia jurídica segundo os cânomes da escola histórica, 1865;

Elementos naturais, históricos e filosóficos do sistema do direito,

1876; Curso moderno de filosofia do direito, v. 1, 1882, v. II, 1892,

v. III, com o título Princípios críticos de ciência política do Estado,

1907), que enfeixou, aliás, fórmulas e conceitos assaz heterogêneos,

sem se cuidar de compô-los em unidade orgânica de um sistema.

Não imune também de um certo ecletismo, mas muito

vigoroso e coerente em suas afirmações, foi Giuseppe Carle, de

Chiusa de Pesio, no Piemonte (1845/1917): Prospecto de um ensino

de

filosofia do direito, 1874; Ensaios de filosofia social, 1875; A vida

do direito nas suas relações com a vida social, 1880, 2. ed. 1890;

Afilosofia do direito no Estado moderno, v. I, 1903, obra

incompleta), benemérito dos estudos de Filosofia do direito, além de

o ser por seus importantes escritos e pela docência longamente

distribuída na Universidade de Turim.

17"

Page 89: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Em obras de largo descortino, inspirando-se sobretudo nas

tradições do pensamento jurídico e filosófico italiano (com

particular atenção para o direito romano e para as doutrinas de Vico

e de Romagnosi), e buscando desenvolvê-Ias em harmonia com o

pensamento europeu, de seu tempo, Carle estudou a gênese e o

desenvolvimento histórico tanto das outrinas relacionadas com o

direito quanto das instituições sociais e jurídicas positivas.

Em suas pesquisas revelou um espírito antes sintético que

analítico, antes construtivo e assimilador, que dialético e crítico.

Nem se pode dizer que tivesse meditado verdadeiramente o

significado profundo da crítica kantiana. Seguiu em parte as teorias

de Comte e de Spencer, distinguindo-lhes a originalidade e

procurando superáIas com uma visão integral dos vários elementos,

especialmente psicológicos, que determinam a vida da sociedade e

do direito.

A obra de Carle foi dignamente prossegui da, na cátedra e em

escritos, por seu discípulo Gioele Solari, que dedicou à mesma obra,

aos seus precedentes e às suas conexões, uma preciosa monografia

(A vida e o pensamento civil de G. Carle, 1928).

Mais profunda e diretamente informado que Carle dos

grandes sistemas da Filosofia moderna, em especial do sistema

hegeliano, Solari ressentiu-se um pouco da sua influência no seu

posicionamento, sempre marcado pelo historicismo.

Numerosas e notáveis são as contribuições dadas por Solari à

história da Filosofia do direito, nos quais a pesquisa erudita

acompanha-se freqüentemente de uma severa crítica (A escola do

direito natural nas doutrinas ético-jurídico dos séculos XVII e

XVIII, 1904; A idéia individual e a idéia social no direito privado,

Parte. I, 1911; Historicismo e direito privado, 1940; Estudos

históricos de filosofia do direito, 1949).

A escola hegeliana propriamente dita, que se mantém

especialmente na Itália meridional, teve a principal representante,

depois de A.Vera e B. Spaventa,já lembrados os seguintes

escritores: A. C. De Meis (1817/1891), que foi discípulo de B.

Spaventa

176

~

-l

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

e escreveu, entre outros, alguns ensaios de Filosofia política (O

soberano, 1868; nova edição, deI Croce, 1928; O Estado, 1869); P.

D'Ercole (1831/1917); A pena de morte e a sua abolição,

1875); e R. Mariano (1840/1912; A liberdade de consciência,

1875; O indivíduo e o Estado no relacionamento econômico e

social, 1876).

A maior parte da atividade desses escritores, e de outros da

mesma escola, foi porém, dedicada mais aos problemas da

Filosofia teórica, do que aos da Filosofia moral e jurídica.

Mas as teorias de Regel tiveram exatamente uma eficácia

considerável, apesar de não exclusiva, na formação intelectual de

alguns juristas e filósofos do direito, entre os quais são de serem

recordados, precipuamente, Filomusi Guelfi e Miraglia. Francesco

Filomusi Guelfi, de Toco Casauria em Abruzzo (1842/1922), foi

discípulo de Bertrand Spaventa e trouxe inspiração também do seu

irmão, o pratriota e estadista Sílvio (1822/1893), em especial pela

sua concepção do Estado.

Reteve ele longamente, com suma dignidade e altura de

pensamento, a cátedra de Filosofia do direito e a de Direito civil na

Universidade de Roma. Elementos viquianos e kantianos,

juntamente com os hegelianos, unem-se em suas doutrinas

fundamentais, expostas especialmente na parte introdutiva da sua

excelente Enciclopédiajurídica (7. ed., 1873, 1917).

Notemos entre os outros seus escritos, geralmente breves

mas todos profundamente meditados e valiosos também pela

clássica nitidez de estilo, notemos: A doutrina do Estado na

antiguidade grega nas suas relações com a ética (1873); Do

conceito de direito natural e do direito positivo na história da

filosofia do direito (1874); Do conceito da Enciclopédia do Direito

(1876).

O direito é concebido por ele como princípio de organização

e de desenvolvimento, que determina a coexistência da liberdade. A

idéia suprema do direito - afirma - é universal e absoluta. Realiza-se em

forma concreta e histórica, como direito positivo, no qual é, po

177

Page 90: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

rém, sempre, ao lado de um caráter de relatividade, um elemento

ideal. Da idéia do direito deriva um sistema de "exigências

racionais", que devem encontrar satisfação no próprio direito

positivo. O Estado, segundo Filomusi Guelfi, é um "organismo

ético" e, ao mesmo tempo, um "organismo jurídico". Também nesta

tese são manifestas as várias fontes de inspiração acima apontadas.

Substancialmente semelhantes, embora com maior inclinação

ao historicismo, são as doutrinas de Luigi Miraglia, nascido em

Regio, da Calábria (1846/1903), que foi por muitos anos professor

de Filosofia do direito na Universidade de Nápólis. A ele devemos

um amplo e sábio tratado desta matéria (Filosofia do direito, 3. ed.,

1885, 1903, sempre como v. I, não seguido de outro), no qual

também vem refundindo alguns dos seus escritos menores (Por

exemplo, o ensaio sobre Os princípios fundamentas dos diversos

sistemas de filosofia do direito e a doutrina ético-Jurídica de G. G.

F. Hegel, 1873).

Particularmente valiosos são nessa obra as considerações

sobre cada instituto do direito privado. Nas partes mais gerais,

inspiradas sempre pelo propósito de harmonizar o elemento ideal ou

racional com o positivo, destaca-se o esforço de conciliar sistemas

opostos, para recolher de cada um uma parte de verdade, esforço

que, aliás, não aproveita, antes prejudica o real aprofundamento da

pesquisa especulativa. .

Pode-se aqui acenar ainda para o singularíssimo

pensador

que foi Giovanni Bovio, de Trani (1841/1903): O verbo novo,

sistema de filosofia universal, 1864; Ensaio crítico do direito

penal, 1872; Curso de ciência do direito, 1877, republicado

com o título de Filosofia do direito em 1885,4. ed., 1894;

Sumário da história do direito na Itália da origem de Roma

aos nossos tem

pos, 2. ed., 1883, com o título Desenho de uma história, etc.

1895). Tentou construir um sistema, por ele dito do

"naturalismo matemático", com o qual presumia superar

também o hegelismo, declarando-se, em um sentido seu,

próprio, positivista. Mas do

178

r

1

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

positivismo ele estava realmente distante, pela sua tendência à

especulação abstrata e logicisante, que o aproxima, ao

contrário, bem que a contragosto, do racionalismo dogmático

de Hegel. (Ele mesmo escreveu, por exemplo, em 1864: "Se a

filosofia de Hegel não éverdadeira, nenhuma outra a vence de

verdade, nenhuma a iguala em coerência", etc.)

Assim ele sustenta a idéia da evolução, porém mais

como esquema dialético do que como resultado da experiência

("A Natureza faz-se Pensamento, o Pensamento faz-se

História"). Também nas obras concernentes ao direito

abundam as fórmulas conceituosas e, por assim dizer,

lapidares (mesmo apesar de paradoxais, por exemplo, "O

Estado é um meio proporcional geométrico entre a Igreja e o

Ateneu"). Mas, faltam-lhe a análise e a elaboração científica

verdadeira e própria. Por isso, embora tendo tido numerosos e

férvidos admiradores também por sua exemplar retidão, ele

não teve, nem pôde ter, continuadores.

Sucessivamente, inspiraram-se nas doutrinas hegelianas

dois entre os mais notáveis pensadores italianos

contemporâneos, Benedetto Croce, de Pescasseroli, no

Abruzzo (n. em 1866), e Giovanni Gentile, de Castelvetrano,

na Sicília (1875/1944, ambos benemérios pelos contributos e

pelos impulsos dados aos estudos históricos e filosóficos. Não

aprofundaram, porém, as pesquisas sobre direito e não lhe

penetraram a natureza. Croce (Redução da

filosofia do direito àfilosofia da economia, 1907, nova edição em 1926; Filosofia da prática - Econômica e ética, 5. ed., 1909,

1945; Elementos de política, 1925) desconhece inteiramente o

caráter ético e normativo do direito, na sua tentativa de reduzi-Io à

Economia, onde é fácil demonstrar a falha desta tese (cf., por

exemplo, as nossas observações na Revista Internacional de

Filosofia do Direito, XV, p. 617/622, 1935; XVI, p. 567/569, 1936).

É verdadeiramente singular que Croce, estudioso profundo de Vico,

não tenha apreendido nele que o direito é uma manifestação própria

e distinta do espírito humano (isto é uma verdadeira categoria),

179

Page 91: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

nem mais nem menos do que a moral, e tem, por isso, ao lado desta,

o caráter de universalidade.

Considerando como fundamento único do direito a

conveniência econômica, Croce repeliu e combateu a idéia do direito

natural, negou, ainda, que aos homens caibam direitos inatos,

naturais e inalienáveis; afirmou a "amoralidade da política", a

"anterioridade da política em relação à moral"; sustentou que o

Estado deve ser concebido "como poder e não como justiça", e que

se deve considerar "morta a falaz idéia do direito internacional como

de uma legislação moral da humanidade". Estas suas doutrinas não o

impediram, contudo, de de se qualificar como liberal, e de ser

reputado por muitos como precursor do liberalismo.

Gentile (Os fundamentos da filosofia do direito, 3. ed., 1916,

1937; d. a obra póstuma Gênese e estrutura da sociedade, 1946)

define o direito como o "querer já querido", em antítese à moral, que

seria a vontade em ato. Ao que é fácil opor que o direito não é

apenas conformidade com uma norma dada, mas é, antes de tudo,

criação da mesma norma, na sua natureza específica, ou seja:

determinação do critério fundamental pelo qual se distingue o lícito

do ilícito nas relações entre mais sujeitos. Também essa doutrina

desconhece, pois, o caráter originário e sui generis, que é próprio do

direito como produto necessário do espírito humano.

Essas evidentes e estranhas falhas (que fazem repensar o dito

ciceroniano: Nihil tam absurde dici potest, quod non dicatur ab

aliquo philosophorum (= "Nada se pode dizer tão absurdamente que

não tenha sido dito por algum dos filósofos") não impediram que as

doutrinas ora mostradas encontrassem algum eco e exercessem

alguma influência (talvez pela fama adquirida por seus autores nos

diversos campos do saber) sobre alguns cultores da Filosofia do

direito, nenhum dos quais, porém, a bem da verdade, as aceitou sem

reservas, correções ou integrações.

Assim, mesmo tendo dedicado àquelas doutrinas uma

atenção, a nosso parecer não merecida, souberam desenvolver o

pró

180

~

i

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

prio pensamento em trabalhos dignos de nota: Giuseppe Maggiore

(A unidade do mundo no sistema do pensamento, 1913; O direito e

o seu processo ideal, 1916; Filosofia do direito, 1921; A eqüidade e

o seu valor no direito, 1923); W. Cesarini Sforza (O conceito do

direito e ajurisprudência integral, 1913; "Jus" e "directum ",1930;

Objetividade e abstração na experiência jurídica, 1934; Guia ao

estudo dafilosofia do direito, 2. ed., 1945, 1946); A. E. Cammarata

(Contributos para uma crítica gnoseológica da jurisprudência - O

problema do direito em relação ao conceito do Estado, 1925; O

conceito do direito e a "pluralidade dos ordenamentos

jurídicos", 1926; O significado e afunção do "fato" na experiência

jurídica, 1929; Limites entreformalismo e dogmática nas figuras de

qualificação jurídica, 1936).

Com tradição constante, mas sem progressivo

desenvolvimento, continuou, nesse período, a obra da escola

católica de Filosofia do direito, a qual, embora diante da

proliferação de doutrinas opostas, sustenta inflexivelmente a grande

idéia do direito natural. Este, segundo a mesma escola (que

concorda neste ponto com a concepção clássica), é o fundamento

do direito positivo; enquanto a lei natural, à sua vez, funda-se sobre

a vontade e a sabedoria divinas.

Foram representantes dessa escola, imediatamente depois

daqueles já citados, principalmente: Giuseppe Prisco (1836/1923),

arcebispo de Nápolis: Metafísica do direito sobre bases éticas,

1872, O Estado segundo o direito e segundo os ensinamentos de

Leão XIII, 1886; Giulio Costa-Rossetti (nascido em Veneza em

1841, morto em Presburgo, em 1900: Philosophia moralis, seu

lnstitutiones ethicae etjuris naturalis, 1886,2. ed.,1892) e Felice

Cavagnis (de Bergamo, 1841/1906: Noções de direito público

natural e eclesiástico, 1886, também em várias edições latinas). A

eles seguiram-se numerosos outros escritores, os quais, embora

fundando-se sobre os mesmos princípios, deram, todavia, aos seus

tratados um caráter menos dogmático, com vista ainda a doutrinas

de diferentes escolas e a problemas da vida moderna.

181

Page 92: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Isso se pode dizer, em certa medida, também de um

contemporâneo dos autores ora nominados, o abade pugliese

Vincenzo Lilla (1837/1905, em 1866 professor em Medina:Teorias

fundamentais dafilosofia do direito, 1877, Filosofia do direito,

1880, Crítica da teoria ético-jurídica de J. S. Mill, 1889; Manual de

filosofia do direito, 1903). São também notáveis: A. Burri (As

teorias políticas de S. Tomás e o moderno direito público, 1884); V.

Rivalta (A renovação da jurisprudência filosófica segundo a

escolástica, 1888; Direito natural e positivo - Ensaio histórico,

1898); G. B. Biavaschi (Origem da força obrigatória das normas

jurídicas, 1907; O problmema da autoridade civil no direito público

vigente, 191O;A crise atual da filosofia do direito, 2. ed., 1913,

1922; A concepção filosófica do Estado moderno, 3. ed., 1918, com

o título A moderna concepção filosófica do Estado, 1924); F.

Aquilanti (Filosofia do direito, v. I, Pressupostos, História, v. 11,

Teoria, 1916); M. Cordovani (O direito natural na moderna cultura

italiana, 1924, nova edição no v. Catolicismo e idealismo, 1928;

Lineamentos tomísticos de uma filosofia do direito, 1934; O

cidadão e o Estado nafilosofia de S. Tomás de Aquino, 1944); F.

Olgiati (O renascimento do direito natural na Itália, 1930; A

redução do conceito filosófico de direito ao conceito de justiça,

1932; O conceito de jurisdicidade e S. Tomás de Aquino, 1943; G.

Gonella (Classificação dos conceitos de natureza na filosofia do

direito, 1933; A pessoa na filosofia do direito, 1938; Pressupostos

de uma ordem internacional, 1942; Princípios de uma ordem social,

1944); V. Viglietti (Corporativismo e cristianismo, 1934; O

ensinamento de um mestre, 1934; Idéia e conceito do direito, 1935;

As premissas meta físicas da doutrina, etc. 1938); S. Romani{As

bases da moral e do direito, 1935; De normajuris, 1937); A.

Brucculeri (As doutrinas sociais do catolicismo: A justiça

socia~;Afimção social da propriedade; O Estado e o indivíduo; A

ordem internacio

182 .l.

r HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

nal, etc., 1936/1942); A. Messineo (Justiça e expansão colonial,

1937; O direito internacional na doutrina católica, 2. ed., 1942,

1944); G. DellaRocca (O estado ético, 1938). G. Graneris (A

amoralidade do direito ante a doutrina de S. Tomás, 1940; Os

caracteres do direito natural no "Ensaio" de P. Taparelli, 1941;

Philosophiajuris, 1943; Gnoseologia e ontologia no pensamento de

G. B. Vico, 1945). Esses escritos, e não poucos outros, embora às

vezes de pequena dimensão, nem todos, mas de igual importância,

demonstram viva (e em conjunto valiosa) a atividade do pensamento

católico italiano sobre problemas da Filosofia do direito. Vale aqui,

todavia, e de resto, a advertência já feita sobre a

efetiva adesão dada às vezes aos mesmos princípios e, sobretudo, às

mesmas conclusões, por pensadores de diferentes escolas.

É, pois, supérfluo recordar, sendo isso conhecido universal

mente, que as máximas fundamentais do cristianismo sobre o

direito, no Estado e na sociedade dos Estados, tiveram recentemente

o maior relevo e as mais claras expressões, em face também das

circunstâncias presentes, nas mensagens do Pontífice Pio XII (às

quais particularmente se referem, com largos comentários, as duas

últimas obras de Gonella citadas acima).

Se as escolas e tendências, às quais nos referimos há pouco

tiveram na Itália predomínio quase exclusivo durante o último

trintênio do século XIX, continuando a afirmar-se ainda no nosso

século, existiram, todavia, no mesmo tempo, escritores que tratam

de Filosofia do direito sem pertencerem propriamente a qualquer

uma delas. Suas obras têm, porém, em verdade, caráter eclético, e

se ligam em vários pontos com as doutrinas da época precedente.

Temas rosminianos, não afastados de alguma crítica ao

próprio Rosmini, encontram-se, por exemplo, na obra vasta e

valiosa de Luigi Mattirolo (Principios de filosofia do direito

privado e

público, 1871), que tentou conciliar a escola jurídico-filosófica, ou

seja, racional, com a histórica. Um abstrato e vazio dogmatismo

lR1

Page 93: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

ideológico, que parece ignorar os problemas suscitados no

pensamento moderno da crítica kantiana, se delineia ao contrário na

obra de Augusto Conti (O bom no vero ou Moral e direito natural, 2.

ed., 1873, 1884).

Às doutrinas da escola racionalista, de envolta com um vago

evolucionismo naturalístico, reporta-se Luigi Lucchini, que depois se

toma célebre como penalista, em uma obrajuvenil (Afilosofia do

direito e da política sobre bases de evolução cósmica, 1874). Às

tradições da Filosofia, diante do nascente evolucionismo, faz apelo

G.S.Tempia (De alguns lineamentos da idéia da leijurídica, 1880,

republicado em edição póstuma de seus Escritos vários jurídicos e

sociológicos, com prefácio de C.F.Gabba, 1891), a quem a brevidade

da vida (1855/1889) impediu mais amplo e preciso desenvolvimento

de seu pensamento.

Pobre de conteúdo filosófico e demasiado confusa é a obra

deD.Lioy (Da filosofia do direito, 3. ed., 1887/1888;4. ed., 1907, 2

v.), largamente difundida também em várias línguas estrangeiras,

mas certamente não a ponto de de ilustrar o pensamento italiano.

Não são melhores, por exemplo, os escritos de G. Abate Longo

(Introdução ao estudo da filosofia do direito, 1880; Princípios de

filosofia do direito, 1881; Afilosofia do direito na sua orientação

moderna, 1885; A lei do direito, 1888), nos quais aparecem

fórmulas de certo modo entrelaçadas, fórmulas de doutrinas opostas,

com prevalente inclinação ao positivismo, mas sem real

aprofundamento da matéria.

Assaz dignos de memória e de estudo são os escritos de

Francesco Fisichella, que, se não nos deu um tratado completo de

Filosofia do direito, discutiu agudamente várias partes dela, e

questões a ela pertinentes, de acordo com um método crítico e

racional

(Sobre ofundamento do direito de propriedade, 1883; Das relações

entre moral e direito, 1886; Das obrigações naturais, 1889; A

teoria dos contratos na filosofia do direito, 1890, etc.).

184

"..

-1.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Mas uma verdadeira renovação nos estudos italianos de

Filosofia do direito foi iniciado por um pensador, que supera em

muito, pela importância, não só os escritores indicados por último,

mas também todos, ou quase todos, os precedentes, a saber: Igino

Petrone, di Limosano, em Molise (1870/1913).

Dotado de finíssimo espírito crítico e de genial intuito

especulativo, viu e assinalou com admirável clareza os defeitos do

positivismo jurídico, e propugnou com fervente palavra, não imune,

por vezes, de alguma ênfase, a necessidade de uma concepção alta,

capaz de penetrar além do fato nu a natureza eminentemente

espiritual e ética do direito, concepção que chamou de "idealismo

crítico" . Entre seus escritos, todos notáveis, são particularmente

importantes: Afase recentíssima dafilosofia do direito na

Alemanha (1895); Afilosofia do direito à luz do idealismo

crítico (1896); O valor e os limites de uma psicogênese da

moral (1896; este ensaio e o precedente foram republicados,

com outros, no volume: Problemas do mundo moral deditados

por um idealista, 1905); Contribuição à análise dos

caracteres diferenciais do direito (1897); A história interna e

o problema presente da Filosofia do direito (1898); Os limites

do determinismo científico (2. ed., 1900, 1903) O direito no

mundo do espírito (1910).

Especialmente nesta última obra, não apenas submeteu à

crítica perspicaz doutrinas de outros, mas tentou delinear, até

mesmo sumariamente, um sistema próprio, reconduzindo o

direito à sua gênese ideal, ou seja, surpreendendo-o no

momento em que ele germina da atividade produtiva do

espírito.

Esse princípio dialético consiste, à sua vez, na limitação correspectiva do ego e do alter, segundo a idéia geral comum do socius.

Supérfluo determo-nos aqui sobre 9 significado e sobre

os precedentes dessa doutrina, que se liga com a de Fichte e,

ainda, Com as modernas pesquisas psicológicas de Baldwin

sobre o desenvolvimento da consciência pessoal.

lR'i

Page 94: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Nas suas teses de caráter sistemático (por exemplo, sobre a

admissibilidade do direito natural), Petrone teve, em verdade,

alguma oscilação, ou incerteza, e também a sua orientação

especulativa em geral não foi sempre exatamente a mesma, tendo

atravessado diversas fases, do que o censuraram. Mas deve-se

reconhecer que os propósitos fundamentais do seu pensamento não

tiveram, em realidade, verdadeira mudança, estando ele

constantemente determinado à reivindicação crítica dos supremos

ideais éticos e jurídicos, em tempos não certamente propícios a um

tal programa, no que tanto maior é o seu mérito.

A singularidade do seu temperamento filosófico derivava de

ser ele ao mesmo tempo um hipercrítico e um místico. Versado nas

sutilezas da escolástica e da moderna gnoseologia, tinha ao mesmo

tempo profunda aspiração pela comunicação com o absoluto, uma

aspiração afanosa e quase patética ao que o intelecto não pode

compreender e a palavra não sabe expressar. Daqui o especial

caráter de seus escritos, nos quais a concitação lírica e apologética

sobrepõe-se às vezes ao rigor das demonstrações.

Perda foi não leve para os estudos italianos, que a atividade

de um tão distinto pensador tenha sido turbada e interrompida por

grave doença, que o levou prematuramente à sepultura. A ele cabe,

todavia, lugar elevado na história da moderna Filosofia do direito.

De quanto visto resulta com expressão quais eram as

condições da Filosofia do direito na Itália no início do século XX.

Podese bem dizer que estava então ligada a um ponto crítico:

enquanto perduravam as correntes tradicionais de caráter

prevalentemente dogmático, erguiam-se contra elas, e apareciam

preponderantes as tendências positivistas. Viva estava ainda a

corrente hegeliana, dogmática na forma, mas empírica e até próxima

do positivismo, na substância; isto enquanto, não obstante, também

ambígua era a tendência historicista, que se atribuía até algumas

altas fórmulas de Vico, mas não lhe aceitava realmente a metafísica,

por avizinhar-se mais, também ela, do relativismo positivista.

186

T

1

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Do contraste entre estas correntes opostas devia derivar um

estímulo por uma solução crítica dos problemas da Filosofia do

direito, que conciliasse as exigências legítimas da corrente histórica

e positiva com aquelas igualmente legítimas da pura especulação,

vale dizer, com a consciência do absoluto valor da justiça.

Tal programa requeria, antes de tudo, uma revisão das

premissas gnoseológicas da matéria, revisão que não podia

prescindir da crítica kantiana, mas, sem se render a ela e procurando

antes, o quanto possível, integrá-Ia e superá-Ia.

Nesse propósito dirigem-se também os nossos modestos

estudos, dos ensaios sobre Sentimento jurídico (1902) e seus

Pressupostos filosóficos da noção do direito (1905) aos mais

recentes sobre Justiça, sobre Ética, direito e Estado, etc. Desses

estudos ("que por necessidade aqui se registra") cabe aos outros o

juízo.

Que tal fosse realmente a exigência dos tempos novos, resulta

do grande número de escritores que, nos primeiros decênios deste

século, se aplicaram ao desenvolvimento desse mesmo programa, ou

de outros semelhantes, com pesquisa e análise crítica sobre o

conceito do direito, e seus fundamentos e suas conexões.

Pode-se, por isso, falar de uma escola crítica, ou

neocriticista, da Filosofia do direito, a reunir-se às outras até aqui

mencionadas, embora tal designação, que denota mais o método

que os princípios e as teses fundamentais, seja um pouco genérica.

Poder-se-ia aceitar ainda a fórmula idealismo crítico, usadajá por

Petrone. É obvio, de resto, que, nesta matéria, as denominações,

como as classificações e os reagrupamentos, não podem ter senão

um valor relativo e aproximativo, devendo todo sistema ser julgado

por si.

Assim, não há dúvida de que a mesma exigência crítica, que

serve propriamente para assinalar o posicionamento especulativo de

um certo número de escritores, teve talvez eco e repercussões no

seio de diversas escolas, como tivemos já ocasião de notar.

Indicaremos agora os principais desses escritores, sem

alongar-nos em distinções e valorizações particulares, que não

seriam

187

Page 95: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

possíveis nesta resenha sumária, e devem, portanto, estar

reservadas a um outro lugar, ou a um outro tempo.

Esta remissão é necessária também por causa da

complexidade do pensamento de alguns autores, nos quais se

encontram vários elementos e influências, não sendo possível

dar deles com brevidade uma definição precisa.

E quanto aos vivos, especialmente aos jovens, o seu

pensamento está ainda em curso de desenvolvimento.

Citamos aqui, para todos os autores, somente alguma

das obras mais significativas. F. Masci (1844/1922): A

sociedade, o direito, o Estado, 1906/1908, ed. póstuma 1925);

A. Pagano (1874/1930: As prejudiciais da filosofia do direito,

1901; Afunção prática da filosofia do direito e o direito

natural, 1906; Introdução àfilosofia do direito, 1908; O

indivíduo na ética e no direito, 1912/1912); A. Bartolomei

(Lineamentos de uma teoria do justo e do direito, 1901; As

razões da jurisprudência pura, 1912; Lições de filosofia do

direito, 7. ed., 1942); F. B. Cicala (Relação jurídica, direito

subjetivo e pretensão, 2. ed., 1909, 1935; Filosofia e direito

- Os sumários, 1924/1927); A. Ravà (Por uma doutrina

geral do direito, 1911; O direito como norma técnica, 1911; O

Estado como organismo ético, 1914); G. De Montemayor

(1874/1939: Primeiro esboço de umajurídica -Do igual bem de cada

um, 1914); F. Orestano (1873/1945: Filosofia do direito, 1941); M.

Barillari (Direito e filosofia, 1910/1912: O ideal e o real do direito,

2. ed., 1916, 1932); E. Di Cado (Teoria pua e teórica empírica no

direito, 1912; Em torno de algumas questões de filosofia do direito,

1914; O direito natural na atual fase do pensamento italiano, 1932;

Filosofia do direito, 2. ed., 1940, 1946); B. Donati (O elemento

formal na noção do direito, 1907; O respeito da lei diante do

princípio dae autoridade, 1019; Fundação da ciência do direito,

1929; O princípio do direito, 1933); A. Bonucci (1883/1925): A

orientação psico

lógica da ética e da filosofia do direito, 1907; O fim do Estado,

188

T

1

"""

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

1915); S. Panunzio (1886/1944: O direito e a autoridade, 1912;

Direito, força e violência, 1921; Análise da experiência comum,

1930; O problema da ciência do direito, 1937); G. Perticone

(Lineamentos de filosofia do direito, 1931; A conceção especulativa

da atividade jurídica, 1932; Regime político e ordem jurídica,

1934/1935); P. Gentile (O essencial da filosofia do direito, 1919);

F. Costa (Ensaio filosófico sobre a natureza do direito, 1919;

Âncora sobre o problema central da filosofia do direito, 1926;

Tratado de filosofia do direito, 1947); C. Gray (O direito no

evangelho e a influência do cristianismo sobre o direito romano,

1922; O direito como idéia-força, 1924; Realidade e transcendência

na concepção do direito e do Estado, 1938; Por uma filosofia do

direito positivo, 1938); C. Goretti (O caráter

formal da filosofia jurídica kantiana, 1922; Os fundamentos do

direito, 1930; Contributos ao estudo da norma jurídica em relação

aos atos jurídicos, 1938); M. Ascoli (A interpretação das leis, 1928;

A justiça, 1930); F. Battaglia (A crise do direito natural, 1929;

Direito efilosofia da prática, 1932; Escritos de

teoria do Estado, 1939; Curso de filosofia do direito, 1943/1947, 3

v.); A. Poggi (Filosofia e direito, 19930); O. Condorelli (Direito e

autoridade, 1930; Eqüidade e direito, 1934); L. Caboara

(Considerações sobre o problema da justiça, 1930); A. Pekelis

(1902/1946; O direito como vontade constante, 1931); C.

Espósito (Lineamentos de uma doutrina do direito, 1932); E.

Paresce (Direito, norma, ordenamento, 1933/1935;Agênese ideal

do direito, 2. ed., 1938, 1947); R. Treves (O direito como relação,

1934; O problema da experiênciajurídica, 1938; Direito e cultura,

1947); N. Bobbio (O caminho fenomenológico nafilosofia social e

jurídica, 1934; Ciência e técnica do direito, 1934; A analogia na

lógica do direito, 1938; O costume como fato normativo, 1942); L.

Perego (O direito na consciência contem

porânea e o estado de eqüidade, 1934; Filosofia do direito, 1946);

A. Banfi (Ensaio sobre direito e sobre o Estado, 1935);

189

Page 96: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

I GIORGIO DEL VECCHIO

G. Giacomazzi (1891/1941: Problemasfundamentais do direito,

1935; Pelo conhecimento do direito, 1938); T.A. Castiglia (A

experiência jurídica e o conceito do Estado, 1935;A

experiênciajurídica e as regras da vida, 1938); v'Crisafulli (Sobre a

teoria da normajurídica, 1935); G. Marchello (O problema crítico

do direito natural, 1936; A metafísica do sujeito e o princípio

especulativo do direito, 1939; O problema da unidade social e o

direito, 1946); L. Secco (Ensaio sobre o problema da interpretação

da lei, 1937); Estudos filosóficos sobre a ciência do direito, 1939; A

certeza do direito, 1942; Compêndio de filoso

fia do direito, 1942); B. Leoni (O problema da ciência jurídica,

1940, Por uma teoria do irracional no direito, 1945); F. D' Antonio

(Sobre alguns conceitos fundamentais da doutrina do direito,

1940,); V. Palazzolo (Considerações sobre a natureza da ação e

sobre o caráter da experiência jurídica, 1941; A filosofia do direito

de J. Binder, 1947); L. Bagolini (O problema do direito, 1941;

D{reito e ciência jurídica na crítica do concreto, 1942; O

significado da pessoa na experiênciajurídica e social, 1946); C.

Foresu (O fundamento filosófico da relação entre direito e o Estado,

1941); G.Pottino (Sociedade e direito naformação da pessoa,

1942); A. Attisani ("Decorum ", e "justum"Contributo para a

teoria das relações entre moral e direito, 1945); G. Calogero (Ética,

jurídica, política, 1946); D. DeI Bo (O problema da vontade no

contrato do direito privado, 1947).

A tendência cética teve o seu principal representante em

Giuseppe Rensi (1871/1941; Lineamentos de filosofia cética, 2. ed.,

1919, 1921; A filosofia da autoridade, 1920), que, porém, em

precedentes fases do seu pensamento, tinha sustentado com vigor

uma espécie de espiritualismo absoluto, admitindo ainda a idéia do

direito natural (O fundamento filosófico do direito, 1912; O gênio

ético e outros ensaios, 1912).

À história das doutrinas filosóficas sobre direito e sobre o

Estado deram respeitáveis contribuições alguns dos autores já men

190

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

cionados, como G. Carmignani, G. Ferrari, F. Filomusi Guelfi, G.

Carle, G. Solari, etc. (cf. supra).

Numerosíssimas são as monografias dedicadas a esta

matéria, especialmente nos últimos tempos. Deve-se, porém

observar que (também por uma falha reforma didática) a história

das doutrinsas políticas foi cultivada neralmente assaz mais que a

das doutrinas jurídicas, embora a esta se devesse atribuir

logicamente o primado.

Indicamos algumas destas monografias, em achega àquelas

que já tivemos ocasião de recordar. Enquanto é de ter presente que

também não poucas obras sistemáticas de Filosofia do direito,

acima mencionadas, contêm igualmente tratados históricos, mesmo

que não notáveis: Ferri - Dafilosofia do direito em Aristóteles

(1855);

P. L. Albini; Das doutrinas filosóficas sobre direito de A. Genovesi

(1859); F. Cavalli -A ciência política na Itália (1865/1881, 4 v.); C.

Cantoni; G. B.Vico - Estudos críticos e comparativos (1867); G.

Levi -A doutrina do Estado de G. Hegel e outras doutrinas em tomo

do mesmo assunto (1880/1884); L. Rava; Celso Mancini - Ensaio

sobre doutrinas políticas italianas (1888); G. Cimbali, Nicola

Spedalieri (1888); L. Rossi - Os escritores políticos bolonheses (1888) e Dos escritos inéditos jurídico-políticos de

Giovanni da Legnano (1898); G. Laviosa - Afilosofia científica do

direito na Inglaterra (1897); G. D' aguanno - Compêndio

histórico da filosofia moral e jurídica no Oriente e na Grécia

(1900) e G.D. Romagnosifilósofo ejurisconsulto (1902/1906);

EE. Restivo - A filosofia do direito da natureza (1900); F.

Ruffini -A liberdade religiosa - História da idéia (1901);v'

Pareto - Os sistemas socialistas (1902); A. Bonucci -A lei

comum no pen

samento grego (1903) e A derrogabilidade do direito natural

na Escolástica (1906); A. Levi - Delito e pena no

pensamento dos gregos (1903), A filosofia política de G.

Mazzini (1917) e O positivismo político de C. Cattaneo

(1928); F. P. Fulei - A filosofia científica do di rito no seu

desenvolvimento histórico

(1906); A. Ravà - O socialismo de Fichte e suas bases filosófi I ~

1 Q1

Page 97: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

co-jurídicas (1907); E. Zoccoli -A anarchia (1907); A. FalchiAs

doutrinas modernas teocráticas (1908); A. Luzzatti - A liberdade

de consciência e de ciência (1909); R. Mondolfo - Entre o

direito natural e o comunismo (1909), Rousseau na formação da

consciência moderna (1912) e O materialismo histórico em F.

Engels (1912); G. De Montemahyor - História do direito natrual

(1911); B. Donati - Doutrina pitagórica e aristotélica da justiça

(1911), A crítica de Muratori à jurisprudência (1934) e Novos

estudos sobre afilosofia civil de G. B. Vico (1936); T. Persico - Os

escritores políticos napolitanos de 1400 a 1700 (1919); M. Barillari

- A doutrina do direito de G. Leibnitz (1913); E. Di Cado -

Contributos à crítica de recentes conceções filosófico-jurídicas

(1913) e A filosofia juridica e política de S. Tomás de Aquino

(1945); A. C. Jemolo - Estado e Igreja nos escritores políticos

italianos do seiscentos e do setecentos (1914); M. DeI Giudice - A

escola histórica italiana do direito e seus fundadores (1918); G.

Maggiore - Fichte (1921); A. Solmi - O pensamento político de

Dante (1922); G. De Ruggfiero - O pensamento político meridional

nos séculos XVII e XIX (1922) e História do liberalismo europeu (3.

ed., 1925, 1945); F. Battaglia - A obra de Vicenzo Cuoco e

aformaçção do espírito nacionalista na Itália (1925), Marsilio de

Pádova e a

filosofia política da Idade Média (1928), C. Thomasio, filósofo e

jurista (1935) e Lineamentos de história das doutrinas políticas

(1936); F. Ercole -A política de Machiavelli (1926), O pensamento

político de Dante (1927/1928) e De Barto all 'Althusio (1932); U.

Mariani - Escritores políticos agostinianos do século XIV(1927); R.

De Mattei -A política de Campanella (1927) eA história das

doutrinas políticas (1938); A. Gerbi -A política do setecentos

(1928); F. Costa - Delito e pena na história do pensamento

humano (1928); A. Passerin d'Entreves - A teoria do direito e

da política na Inglaterra no início da idade moderna (1929) e R.

Hooker (1932); E. Brundy - A idéia do direito nas

192

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

novas correntes dafilosofiajurídica na Itália (1929); L.

Caboara - A filosofia do direito de G. D. Romagnosi (1930) e

Afilosofia política de Romagnosi (1936); F. D' Antonio -

Afilosofiajurídica post-kantiana na Alemanha (1930); U.

Redanà - História das doutrinas políticas (1931); V. Beonio-

Breocchieri - Ensaios críticos de história das doutrinas

políticas (1931); G.MoscaLições de história das instituições e

das doutrinas políticas

(1932); C. Curcio - A política italiana do 400 (1932), Do Renascimento à Contrareforma (1934) e Mitos da política

(1940); A. Poggi - O conceito do direito e do

Estadonafiloso fia jurídica intaliana contemporânea (1933); G. Gonella - A

filosofia do direito segundo A. Rosmini (1934); A.

Beccaria - A fundação das doutrinas políticas na Grécia (1935) e O proble

ma do direito natural nafilosofia política (1940); L. Salvatorelli - O

pensamento político italiano de J 700 a J 870 (2. ed., 1935, 1941); P. M. Arcari -O pensamento político de F. Patrizi da Cherso

(1935) e História das doutrinas políticas italianas, v. I (1943), v.

TI, (1946); V. Mazzei-Afilosofiapolíticade G. Hwegel (1935) e O

socialismo nacional de C. Pisacane - P. 1(1943); G. Perticone -

Teoria do direito e do Estado (1937) e História do socialismo

(1945); B. Brunello - A política da caridade em L. A. Muratori

(1938) e O pensamento político italiao do setecentos (1942); F.

Collotti - Ensaio sobre o pensamento filosófico e civl de F. M.

Pagano (1939); G. Santonastaso - O pensamento político de Egídio

Romano (1939), Estudos do pensamento político (1939) e As

doutrinas políticas de Lutero e de Suarez (1946); B. Magnino -

História da Sociologia (1939) e Às origens da crise contemporânea - Iluminismo e revolução (1946); G. A. Belloni

Ensaios sobre Romagnosi (1940); L. Firpo - Introdução aos

aforismos políticos de T. Campanella (1941) e Resenhas

campanelianas (1947); N. Bobbio - A filosofia do direito na Itália

na segunda metade do século XIX (1942) e O direito natural no

século XVIII (1947); L. Bagolini - Humanidade do Es

ir

. 10~

Page 98: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

tado em Aristóteles (1942) e Experiência jurídica e política no

pensamento de D. Hume (1947); B. Barillari - Gianvincenzo

Gravina como precursor de Vico (1942); D. DeI Bo - Montesquieu -

A doutrinas jurídicas e políticas (1943); E. Opocher - G. A.

Fichte e o problema da inividualidade (1944); G. Ambrosetti -

Afilosofia das leis de Suarez (1948); G. Fasso - Os "quatro

autores" de Vico (1949). Merece ainda ser notado o fato de alguns cultores do direito

positivo (e mesmo entre os mais eminentes) terem versado talvez

argumentos de caráter geral, atinentes com os problemas da

Filosofia do direito, oferecendo, assim, na realidade, contribuições

ao desenvolvimento dessa disciplina, que, todavia, alguns deles

afetavam ignorar ou não ter em seu caminho. Isso confirma que,

como não se pode negar a Filosofia sem filosofar, assim não se pode

aprofundar o estudo de qualquer parte do direito positivo sem

defrontar conceitos e problemas fundamentais sobre a natureza do

direito em geral, que é exatamente o objeto da Filosofia do direito.

Citemos para exemplo: M. Pescatore - A lógica do

direito (1863) e FIlosofia e doutrinas jurídicas (1874/1879); C. F.

Gabba - Ensaio sobre a verdadeira origem do direito de sucessão

(1861) e Entorno a alguns mais gerais problemas da ciência social

(1876/1887,3 v.); E. Pessina- Fiosofia e direito (1868) e

Pensamentos sobre moral e sobre direito (1905); P. Nocito

Prolegômenos à filosofia do direito judiciário penal e civil (1867);

V. Scialoja - Do direito positivo e da eqüidade (1880); C. Nani -

Velhos e novos problemas do direito (1886); B. Brugi - Introdução

enciclopédica às ciências jurídicas e sociais (5. ed., 1891,

1928); D. Anzilotti -A escola do direito naturral na

filosofiajurídica contemporânea (1892) e Afilosofia do direito

e a sociologia (1892); D. Donati - O problema das lacunas do

ordenamento jurídico (1910); S. Perozzi - Preceitos e

conceitos na evolução jurídica (1912); G. Brunetti -Normas e

regras finais no direito (1913) e O direito natural na

legislação civil (1922); P. De Francisci - Os pressupostos

teóricos e o métodO

194

~

--1.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

da história jurídica (1916); P. Bonfante - O método naturalístico na

história do direito (1917); S. Romano - O ordenamento

jurídico (2. ed., 1918, 1945) e Fragmentos de um dicionário

jurídico (1947); F. Maroi - Reflexos de direito nas artes clássicas

figurativas (1927) e Tendências antigas e recentes verso unificação

internacional do direito privado (1930); F. Invrea - A parte geral do

direito (1935); F. Carnelutti - Teoria geral do direito (2. ed., 1940,

1946).

Sem acrescentar outras citações (as feitas podem, talvez,

parecer excessivas), notemos, enfim, que quase todos os cultores

italianos da Filosofia do direito colaboraram, juntamente com alguns

estrangeiros, na Revista Internacional de Filosofia do Direito

(fundada em 1921), a qual refletiu também o movimento das várias

correntes doutrinais no último trintênio.

Numerosas monografias de diversos autores foram recohidas

também em dois volumes de Estudos filosófico-jurídicos (publicados

em Modena, em 1930/1931).

O pensamento filosófico-jurídico italiano foi também não raro

apresentado em periódicos de outros países, por exemplo, o Archiv

für Rechtsund Wirtschaftsphilosophie (de 1907), a Revue

Internationale de Ia Théorie du Droit (de 1926) e o Archives de

Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique (de 1931).

Concluindo, pode-se afirmar que o pensamento italiano, em

tempos mais recentes, desenvolveu uma atividade considerável no

campo da Filosofia do direito. Não só se mantém viva uma

antiqüíssima tradição, que é um título de honra para o nosso país,

mas se busca mesmo renová-Ia e enriquecê-Ia com novas pesquisas.

É, por isso, lícito confiar nas futuras e progressivas

manifestações desse pensamento, em colaboração com o de outras

nações. Entretanto, é de augurar que, cumprindo um desejo antigo,

se trabalhe, por obra de um só ou de vários cultores da matéria, para

uma adequada História da Filosofia do direito na Itália, para a qual

as presentes breves notícias não podem oferecer mais que um

sumário e esquemático esboço.

lq"

Page 99: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

1

.".

VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO ;

NA FRANÇA, NA BELGICA, ETC.,

NOS TEMPOS RECENTES ;

(SECULOS XIX-XX)

Na França, depois dos autores já nominados, poderíamos

distingüir várias escolas. Existe, antes de tudo, uma escola

espiritualista, cujo chefe é Maine De Biran (1766/1824) e, mais

especialmente, Cousin (1792/1867). Essa escola tem por princípio a

liberdade do espírito e afirma, porém, com um certo ec1etismo, a

Filosofia metafísica idealística, opondo-se ao empirismo, ao

fenomenismo, ao positivismo. Em Psicologia esta escola segue o

método da introspecção (refere-se ao sentido interno), em Política

funda-se sobre o conceito de autonomia da pessoa humana. Estas

diretivas espiritualísticas correspondem a uma tradição constante do

pensamento francês, diferentemente do pensamento inglês, que foi

sempre mais inclinado ao positivismo naturalístico.

Desse grupo recordaremos: Th. Jouffroy (1796/1842), pelo

seu Curso de direito natural; J. Simon (1814/1896), que tratou

especialmente da liberdade e do dever; P. Janet (1823/1899), ao

qual se deve uma valiosa História da ciência política, dentre outras

obras. Mencionaremos em breve outros escritores com semelhante

orientação.

Não nos deteremos, porém, naqueles que, como Damiron,

Vacherot, Ravaisson, Barthelemy-Saint-Hilaire, etc., não obstante

beneméritos dos estudos filosóficos em geral, têm menor

pertinência com nossa disciplina. Todos devem a sua fama, mais

que a uma singular originalidade ou profundidade de pensamento,

ao são critério, à lucidez das idéias e à felicidade na exposição

delas.

197

Page 100: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

III

III

Grupo bem distinto é o dos escritores reformadores e

comunistas (entendida esta palavra em sentido lato), que se

inicia já com alguns publicistas do século XVIII, defensores da

igualdade dos bens entre os homens e, conseqüentemente, de

radicais transformações da sociedade (Morelly, autor do

Código da natureza, de 1755; Mably, 1709/1785; Babeuf, que

terminou no patíbulo em 1797). O principal entre os escritores

desse grupo é o conde de Saint-Simon (1760/1825), que foi

mestre de Comte; crente na perenidade do progresso humano,

fez-se defensor de uma nova "Filosofia positiva", fundada

sobre o estudo dos fatos; e, por último, também de um

Cristianismo renovado, ou religião do amor sem dogmas.

Segundo Saint-Simon, a Revolução Francesa teria ficado

incompleta, daí a necessidade de completá-Ia com uma série de

reformas sociais, com um certo caráter ético e religioso e

consistentes, sobretudo, na elevação das classes operárias.

Cado Fourier (1772/1837) pertence à categoria que se

pode chamar dos utopistas, os quais expressam suas idéias de

reformas sociais em projetos mais ou menos fantásticos, de

Estados perfeitos, traindo inspiração talvez ainda da República,

de Platão.

O nome de Utopia foi dado ao seu hipotético Estado

pelo Inglês Th. More ou Morus (De optimo reipublicae statu

deque nova insula Utopia, de 1516. O autor morreu

heroicamente no patíbulo, em 1535).

Análogos projetos foram traçados por alguns escritores

de diversos países, como os italianos Francesco Patrize da

Cherso (A Cidade feliz, 1553), T. Campanella (A cidade do

sol, de 1602, editada a primeira vês em latim em 1623) e L.

Zuccolo (O porto, ou seja, da república de Evandria, in:

Diálogos, 1625), os ingleses J.Harrington (The commonwealth

ofOceana, 1656) e R. Owen

(A new view of society, 1812; The book of the new world,

1820), etc. Fourier (Traité de l'association domestique

agricole, 1822, Le nouveau monde insdustriel et sociétaire,

1829, etc.) desenhou em minúcias um novo tipo de unidade

social (phalange),

198

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

com uma sede comum (phalanstere) e uma comum organização do

trabalho. Criticou especialmente o instituto da faffil1ia, e enunciou

uma série de profecias de todo gênero, muitas vezes assaz

extravagantes.

Nas obras de Fourier e em algumas outras, há pouco citadas,

inspirou-se um outro utopista francês, É. Cabet, autor do fantástico

Voyage en Icarie (1842), onde é descrita uma espécie de

comunismo, com propósitos filantrópicos e humanitários.

Grande ressonância tiveram o nome e a obra de P. J.

Proudhon (1809/1865, Qu'est-ce que Ia propriété?, 1840; De

lajustice dans Ia Révolution et dans l'Église, 1858, etc.), que

exercitou o seu engenho poderoso, mas rico em contradições e

paradoxos, em sentido mais negativo que construtivo, combatendo

sobretudo a propriedade privada e propugnando com veemência

polêmica, mais que com rigor de conceitos, um novo ordenamento

da sociedade e do trabalho.

Todos esses escritores, porém, mais que filósofos, foram

publicistas e reformadores políticos, e raramente se elevaram a

concepções puramente especulativas em tomo do direito.

Importância maior deve-se reconhecer ao grupo dos

positivistas, cujo chefe é um dos mais ilustres filósofos franceses,

Augusto Comte (1798/1857). A sua obra principal é o Cours de

Philosophie positive (1830/1842, 6 v.).

Comte é considerado o fundador do positivismo, e não sem

razão, desde que se entenda isso com discreção. Na verdade,

nenhuma ciência e nenhuma filosofia foram jamais fundadas

completamente ex novo por um homem. Assim, também neste caso,

é bem certo que os elementos da Filosofia positivista existiam antes

de Comte.

Alguns deles são visíveis, por exemplo, em Saint-Simon, e

também se poderia remontar aos princípios do método galileico e

aos da filosofia de Bacon.

Não há dúvida de que, especialmente na Inglaterra, pela

tradicional orientação do pensamento inglês, já se prenunciavam,

mui

199

Page 101: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

to antes, as mesmas exigências, em sentido realístico, que

determinaram o surgimento do positivismo. Mas nem por isso

queremos negar a Comte aquela qualificação, porque a ele pertence

o mérito de ter dado sistematição orgânica à doutrina.

O positivismo consiste essencialmente em um método que

quer ser oposto ao metafísico. Quer ele excluir toda especulação que

vá além da consideração dos fatos.

Todo raciocínio deve fundar-se, segundo o positivismo, na

observação empírica, sobre a experiência.

Pode-se também opor (como Kant havia demonstrado) que a

experiência não é qualquer coisa de originário, mas de derivado; não

qualquer coisa de simples, mas de complexo; ela é, em suma, uma

relação entre um sujeito e um objeto.

De mais, a experiência pode-nos dizer que as coisas são de

certo modo, mas não que não poderiam ser diferentes; ela nos dá

apenas noções particulares e contingentes, e não noções universais e

necessárias.

E ainda é claro que todas as noções fundamentais

matemáticas, geométricas, lógicas (por exemplo, o princípio da

contradição), e ainda as éticas, não podem depender da experiência;

nem é certo que enunciamos a lei de que a soma dos ângulos de um

triângulo é igual a duas retas porque tenhamos medido todos os

triângulos.

Note-se que não existem triângulos na natureza. Os nossos

desenhos das figuras geométricas são meras aproximações do que

existe apenas no pensamento.

Partindo do seu princípio metodológico, Comte distingue no

desenvolvimento da humanidade três períodos.

No primeiro (período teológico), o pensamento humano

reconduziria as forças da natureza ao conceito de uma ou mais

divindades..

Vencido esse estágio, advém o segundo período (meta físico

), no qual a mente humana personifica as forças da natureza, isto é,

imagina entidades abstratas, considerando-as existentes realmente

(por exemplo, o conceito de causa).

200

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Enfim, chega-se ao terceiro período (positivo), no qual se

observa objetivamente a realidade, sem personificações nem

abstrações: domina, aí, o método experimental.

É digno de nota que, para Comte, as condições reais da

sociedade dependem das idéias fundamentais daqueles que a

compõem. Só por esse aspecto o positivismo comtiano assume, pois,

e já, certo aspecto idealístico. As convicções teóricas determinam as

instituições sociais.

Em seguida, Comte, seguindo o critério de partir do mais

simples para chegar ao mais complexo, formula uma classificação

das ciências na seguinte ordem: Matemática, Astronomia, Física,

Química, Biologia, Sociologia.

É de notar-se, aqui, a omissão da Psicologia (omissão assaz

criticada em seguida, especialmente por Spencer). Tal omissão, de

resto, foi plenamente consciente, crendo Comte, dominado pelas

teorias de Gall, poder abolir a Psicologia, reduzindo-a à Biologia.

Todas estas ciências, segundo Comte, surgem e se desenvolvem

passando pelos três estágios já assinalados. Mas, até onde a

matemática, a astronomia, a física, a química e a biologia já

chegaram ao estágio positivo, a sociologia deve ainda atingir esse

estágio.

Comte atribui a si o encargo de conduzi-Ia até esse ponto, ou

seja, de constituir a verdadeira ciência da sociedade humana,

fundada sobre o critério metódico de observar os fatos, esquecendo

toda ideologia metafísica.

Verdadeiramente pode-se advertir que o próprio Comte não

ficou imune a preconceitos ideológicos: assim, por exemplo, a sua

lei dos três estágios tem um caráter metafísico.

Nem, de outro lado, se pode dizer absolutamente novo o

propósito de Comte: muito antes dele, Vico, Montesquieu e outros

ainda, começaram a etudar os fatos sociais em suas correlações, por

meio da observação e da análise racional.

Comte insiste especialmente sobre a unidade de todos os

fenômenos sociais. A sociologia, ou ciência geral dos fenômenos

201

Page 102: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

sociais, retira a sua razão de ser desta fundamental unidade ou

concexão, que ele chama consensus.

Um estudo parcial, que faça abstração dessa complexidade e

considere só um lado da fenomenologia social, é, necessariamente,

imperfeito. Daqui a aversão de Comte a cada uma das ciências

sociais (por exemplo, a Economia política) que, na sua concepção,

teria devido ser de certo modo absorvida pela única ciência geral da

sociedade.

Comte distingüe estática social de dinâmica social. Aquela

estuda os órgãos da sociedade; esta lhe estuda o movimento e o

progresso. A fé inabalável que tinha Comte no progresso humano

tem também caráter metafísico. Ela tinha sido já proclamada por

Saint-Simon e, antes ainda, por Condorcet, um dos chefes e das

vítimas da Revolução Francesa.

Segundo Comte, a Sociologia positiva deveria servir de base

à Política; a esta ele dedicou uma obra importante (Systeme de

politique positive, 1851/1854,4 v.). Nos últimos anos de vida, Comte

caiu em uma espécie de mania, produzida, além do trabalho

intelectual, pelas dolorosas vicissitudes de sua vida. E em sua mente

turbada o sistema do positivismo transmudou-se em uma religião,

com seus mártires, seus santos, seu calendário.

O positivismo comtiano teve numerosos seguidores,

especialmente na França. Recordemos Laffitte (1823/1903), que foi

o discípulo mais fiel de Comte; Littré (1801/1881), Taine

(1807/1893), Renan (1823/1892). Os dois últimos ocuparam-se

prevalentemente dos problemas históricos e de várias culturas,

visando, porém, sempre encontrar os nexos da fenomenologia

social. No campo específico da Sociologia, continuaram as

pesquisas segundo o caminho comtiano, mas não sem qualquer

originalidade de iniciativa: A. Espinas (1844/1922), autor de um

conhecido livro sobre Sociedade animal (1877); G. Tarde

(1843/1904), que em numerosas obras insistiu sobre o fator

psicológico e especialmente sobre a pretensa lei da imitação, como

base dos fatos sociais em geral; E. Durkeim

202

~

HISTÓlUA DA FILOSOFIA DO DIREITO

(1858/1917), que perquiriu com método realístico o conhecimento

coletivo como distinto daquele individual e tentou escrever os vários

fenômenos e tipos de organização social, repelindo todo critério de

valorização a priori (La division du travail social, 1983; Les regles

de Ia méthode sociologique, 1859; etc.).

Com semelhantes diretivas metodológicas discutiram os

problemas da Sociologia também R. Worms (1869/1926), que

estudou especialmente os princípios biológicos da evolução social,

1. Izoulet, E. de Roberty (nascido russo), o belga G. de Greef, L.

Lévy- Bruhl, L. Bourgeois, defensor do pretenso solidarismo, C.

Pouglé, G. L. Duprat, R. de Ia Grasserie, etc.

Dentre os pensadores franceses da segunda metade do século

XIX e do princípio do XX, emergem Ch. Renouvier (1815/1903),

autor de um completo sistema neocriticista, pelo qual podia ser

chamado, em certo sentido, o "Kant francês"; 1. Lachelier

(1832/1918), também ele kantiano; A. Foillée (1832/1912), que

tentou conciliar o idealismo platônico com o moderno

evolucionismo, e exerceu um certo influxo também na Itália (cf., por

exemplo, v.Wautrain Cavagnari, O ideal do direito, 1883); 1.M.

Guyau (1854/1888), que seguiu igual caminho evolucionístico; E.

Boutroux (1845/1921), filósofo da contingência; H.Bergson

(1859/1941), defensor de um novo espiritualismo; etc. Esses autores

porém (exceção para Foillée, que se ocupou largamente também de

Filosofia do direito, por exemplo, no livro L'idée moderne du droit,

1878) consideraram sobretudo os problemas mais gerais da Filosofia

teórica e da moral.

Dedicaram à Filosofia do direito obras valiosas outros

pensadores, que se contentaram, quase todos, mais ou menos estrita

mente, com a escola espiritualista lembrada no início desta resenha.

De modo especial devem ser recordados: É. Lerminier

(Philosophie du droit, 3. ed., 1832, 1853); 1. Oudot (Premiers essais

de philosophie du droit, 1846; Conscience et science du devoir,

1855/1856); W. Bélime (Philosophie du droit, 4. ed., 1844, 1881);

H.Thiercelin (Principes du droit, 2. ed., 1857, 1865); 1.

203

Page 103: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Bami (La morale dans la démocratie, 2. ed., 1868, 1885); A.

Franck (Philosophie du droit pénal, 2. ed., 1864, 1880;

Philosophie du droit ecclésiastique - Des rapports de Ia

religion et de l'État, 2. ed., 1864, 1885, Philosophie du droit

civil, 1886); J. Tissot (lntroduction philosophbique à l'étude

du droit en général, 1875); E. Carp (Probleme de morale

sociale, 1876); A. Boistel (Cours élémentaire de droit naturel

ou de philosophie du droit, 1870; Cours de philosophie du

droit, 1899), o qual se inspirou nos princípios do nosso

Rosmini; J. G. Courcelle Seneuil (Préparation à l'létude du

droit- Étude des principes, 1887); É. Beaussire (Les principes

du droit, 1888); Vereilles-Sommieres (Les

principesfondamentaux du droit, 1889); Ch. Beudant (Le droit

individuel et l'État, 1891); G. Richard (L'origine de l'idée de

droit, 1892; L'évolution des moeurs, 1925); 1. Lagorgette (Le

fondement du droit et de la morale, 1907); 1. Charmont (Le

droit et l'esprit démocratique, 1908; La renaissance du droit

naturel, 1910); P. de Tourtoulon (1867/1932), que foi

professor em Losanna (Principes philosophiques de l' histoire

du droit, 1908/1919, Les troisjustices, 1933); M. Leroy (La

loi, 1908); G. Davy (Le droit, l'idéalismo et l'expérience,

1922); G. Renard (Conférences d'introduction philosophique a

l' étude du droit, 1924/1927); La valeur dela loi, 1928; La théorie

de l 'institution, 1930); P. Cuche (Conférences de philosophie du

droit, 1928); L. Le Fur (1870/1943); La théorie du droit naturel

depuis le XVII'me siecle et la doctrine moderne, 1928); Les grands

problemes du droit, 1937); M. Réglade (Essa i sur lefondement du

droit, 1933; Les caracteres essentiels du droit, 1936); 1. T. Delos

(La théorie de l 'institution, 1931; Les buts du droit: bien commun,

sécurité, justice, 1938); P. Roubier (Théorie génerale du droit,

1946); J. Brethe de Ia Gressaye; M. Laborde- Lacoste (Introduction

générale à l' 'tude du droit, 1947), etc.

Dentre os que trataram a matéria de modo dogmático,

segundo os princípios da Filosofia escolástica, relembremos: L.

Bautain

204

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

(Philosophie des lois au point de vue chrétien, 1860); T. Roghe

(Traité de droit naturel théorique et appliqué, 1885/1912); A.

Valensin (Traité de droit naturel, 1922/1925); J.Lec1ercq, belga

(Leçons de droit naturel, 3. ed., 1927/1937, 1947/1948), etc. Nem

muito diferente é o método seguido por Vareilles-Sommieres, na

obra muito notável acima indicada.

Particular relevo, também pelas fecundas discussões que

suscitaram, merecem as doutrinas de L. Duguit e de F. Gény. O

primeiro (1859/1928, L' État, le droit objectif ela loi positive, 1901;

Le deroit social, le droit individuel et les transformations de l' État,

3. ed., 1908; Traité de droit constitutionnel, transformations de l'

État, 6. ed., 1911, 1927), tentou uma renovação das noções de

direito público no sentido positivístico, sob a base do princípio da

solidariedade social. O segundo (Méthode d'intérpretation et

sources en droit privé positif, 2. ed., 1899, 1919; Science et

technique en droit privé positiv, 1914/1924) ocupou-se

especialmente do problema das fontes e dos métodos de

interpretação jurídica, chegando, por esta via, a reafirmar o valor da

idéia do direito natural.

Os estudos filosófico-jurídicos se avantajaram grandemente

também na França, não só pelas aprofundadas e ampliadas pesqui

sas históricas (como as de N. Fustel de Coulanges, R. Dareste, Ch.

Letoumeau, etc.), mas também pela necessidade, geralmente

sentida nos nossos tempos, de submeter a uma revisão crítica os

con

ceitos das ciências jurídicas positivas.

Assim, elevaram-se a considerações importantes de caráter

geral, levados (como Gény) por investigações de direito privado: R.

Saleilles (École historique et droit naturel, 1902); É. Lambert

(Lafonction du droit civil comparé, 1903; L'enseignement du droit

como sicence sociale et comme science internationale, 1928); R.

Demogue (Les notionsfonrtamentales du droit privé, 1911); H.

Lévy-Ullmann (Éléments d'introduction générale à l'étude des

sciences juridiques, 1917/1928); H. Capitant

205

Page 104: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

(Introduction à l'étude du druoit civil, 5. ed., 1898, 1929); G. Ripert

(La regle rnorale dans les obligations civiles, 2. ed., 1925, 1927); J.

Cruet (La vie du droit et l'irnpuissance de lois, 1908); G. Morin (La

révolte desfaits contre le Code, 1920; La loi et le contrat, 1927; La

révolte du droit contre le Code, 1945); J. Bonnecase (La notion de

droit en France au dix-neuvierne siecle, 1919); lntroduction à I'

étude du droit, 1926, Science du droit et rornantisrne, 1928;

Hurnanisrne, classicisrne, rornantisrne dans Ia vie du droit, 1930;

Philosophie de l'irnpérialisrne et science du droit, 1932); L.

Josserand (De l'esprit des droits et de leur relativité, 1927); L.

Husson (Les transforrnations de Ia responsabilité, 1947), etc.; ou,

então, movidos (como Duguit) pelas investigações de direito

público: M. Hauriou (Príncipes de droit public, 11. ed., 1927; La

science sociale traditionnelle, 1896, Leçons sur le rnouvernent

social, 1899; La théorie de I 'institution et de Ia fondation, 1925); R.

Carré de Malberg (Contribution à Ia théorie général de l'État,

1929/1931); R. Mirkine-Guetzevich, russo (Droit constitionnel

international, 1933; Le droit contitutionnel et I' organisation de Ia

paix, 1934; Les nouvelles tendances du droit constitutionnel, 2. ed.,

1936).

Sinal do reavivado interesse pelos estudos de Filosofia do

direito na França foi dado também pela fundação do Archives de

Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique (1931), que tiveram

por diretores Le Fur, acima recordado, com G.Gurvitch (oriundo da

Rússia, autor de notáveis obras, como: Le temps présents et l'idée du

droit social, 1931; L'idée du droit social, 1932; L' expérience

juridique et Ia philosophie pluraliste du droit, 1935), e outros. Esse

periódico tomou-se órgão do Instituto Internacional de Filosofia do

Direito e de Sociologia Jurídica, fundado em Paris, em 1933, com a

participação de estudiosos de vários países.

Podem-se, enfim, registrar, ao lado de escritores franceses, os

suíssos: E. Roguin (Le regle de droit, 1889; La science juridique

206

'T"

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

pure, 1923); C. Du Pasquier (Introduction à Ia théorie générale et à

Ia philosophie du droit, 3. ed., 1937, 1948); F. Guisan (Note sur le

droit naturel, 1940; La sicience juridique pure:Roguin et Kelson,

1940); e os belgas: F. Laurent (1810/1887), autor, além de um

conhecido tratado de direito civil, de uma ampla e valiosa obra

histórico-filosófica (Histoire du droit des gens et des relations

internationales - Études sur l'histoire de l'humanité, 18 v.,

1860/1870,2. ed., 1861/1880); E. Picard (Le droit pure, 1899; outra,

1908; Les constantes du droit, 1921); L. Hennebick (Philosophie du

droit et droit naturel, 1898; L'idée du juste dans l'Orient grec avant

Socrate, 1914); F. Mallieux (Prolégomenes à Ia science du droit,

1911); G. Comil (Le droit privé, 1924); H. de Page (De

l'interprétation des lois, 1925; À propos du gouvernement des juges

- L'équité en face du droit, 1931); J. Dabin (La Philosophie de

l'ordre juridique positij, 1929; La technique de l'élaboration du

droit positij, 1935); J. Haesaert (Contingences et régularités du droit

positij, 1933; Laforrne e le fon du juridique, 1934; Théorie générale

du droit, 1948), além

de De Greef e Leclercq, acima recordados.

207

Page 105: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

~ I

VISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO NA

INGLATERRA E NOS ESTADOS

UNIDOS, NOS TEMPOS RECENTES

Passando agora a uma breve resenha dos filósofos ingleses,

depois daqueles dos quais já demos notícia, notamos em geral como

o caráter empírico prevaleceu na Filosofia inglesa. Foi ela, em

outros termos, mais inclinada à observação e ao experimento que

àespeculação das idéias. Existem também algumas exceções, quem

sabe, gloriosas. Na Filosofia geral e na teoria do conhecimento

dominou o sensismo, ou seja, a tese segundo a qual dos dados dos

sentidos derivaria todo o saber. Na Ética e na Filosofia do direito

predominou o utilitarismo, isto é, a tendência a pôr no útil ou no

prazer a lei fundamental do agir.

Na Ética, esta orientação corresponde ao sensístico na

Filosofia teórica. Para superar a moral utilitária é necessário admitir

um princípio absoluto, uma verdade superiror à realidade empírica,

um bem e um dever que valham per se. Mas isso, evidentemente,

contrasta com a Filosofia sensística.

Portanto, enquanto nos grandes sistemas do idealismo

encontramos uma moral e um direito absolutos, nos sistemas do

sensismo encontramos, ao contrário, uma Ética relativa e, em

especial, utilitária.

Não é de crer, certamente, que o utilitarismo seja uma inven

ção do pensamento inglês. Pelo contrário, sistemas utilitários

tiveram fim na antiguidade, sobretudo e fundamentalmente, o

epicurista. Mas o utilitarismo comporta muitos aspectos, e a

doutrina utilitária foi na Inglaterra, melhor que em outro lugar,

sucessivamente afina

?OQ

Page 106: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

---

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

da e aperfeiçoada, com o fim de tomá-Ia pais sustentável, embora,

na verdade, não aceitável.

Pode-se dizer que o fundador do utilitarismo inglês foi

Geremia Bentham (1748/1832), autor de numerosas obras, dentre as

quais vamos recordar: Introdução aos princípios de moral e

legislação (publicada em 1789); Tratado de legislação civil e penal

(de 1802; notemos que Bentham foi especialmente cultor do direito

penal, e ocupa um posto notável nesse ramo das ciências jurídicas);

Livro dos sofismas (de 1824); e, enfim, Deontologia, publicado em

1834, dois anos depois de sua morte.

Em Bentham o utilitarismo aparece em uma forma quase rude

e primitiva. O prazer (tomado em sentido materialístico, como

satisfação sensíveil e vantagem pessoal) é o único fim da vida.

Portanto, só se procura o prazer. E a moral não é nada além do

cálculo dos prazeres.

Deriva daqui a pretensa "aritmética moral". É necessário

evitar o vício somente enquanto conduz à infelicidade, ou seja,

representa um erro de cálculo na busca da felicidade.

A virtude, sempre segundo Bentham, seria um egoísmo, bem

entendido, que exige também alguma renúncia, mas apenas para um

fim utilitário. Assim, por exemplo, o sacrifício do prazer menor pelo

prazer maior, a renúncia ao prazer presente, em vista do prazer

futuro.

Com isto se chegaria, evidentemente, à negação de uma

verdadeira moral, pois que se trataria, sempre, do prazer individual,

sem qualquer atenção ao bem de outrem.

Todavia, Bentham, como os outros utilitaristas, advertiu

sobre a necessidade de alguma correção ao seu rude princípio.

Recorre, para isso, ao coeficiente da simpatia: reconhecer a

necessidade, na qual nos encontramos, de participar de qualqeur

modo dos sentimentos do nosso próximo, e admite, em substância,

que não se possa ser feliz em meio a uma multidão de infelizes.

A esta, uma outra consideração se agrega: que, agindo

segundo o puro princípio egoístico, legitimaremos igual postura dos

outros contra nós e faremos em seguida, em última análise, o nosso

prejuízo.

De tudo isso surge uma certa mitigação da doutrina

originária. Tende-se a substituir o conceito de útil individual com

um conceito superior e mais vasto. O fim supremo não é mais o

prazer do individuo, mas "a felicidade máxima do máximo número".

Nisto consiste a pretensa "maximização do prazer". Bentham

acrescenta esta regra: "na repartição dos prazeres nenhum homem

deve ser excluído, e cada um deve contar por um".

Delineados assim os princípios fundamentais do sistema de

Bentham, não é difícil observar como todo esse edifício seja

defeituoso nas suas bases.

Antes de tudo, identificar o útil com o bem moral é

contradizer irreparavelmente o testemunho da consciência humana.

Freqüentemente surgem conflitos entre a utilidade e o dever.

Nós seremos impelidos pela utilidade a agir de certo modo, mas o

sentimento moral nos retém e nos impele a agir diversamente.

Calcular apenas a própria vantagem, o proveito individual das

próprias ações, não é mais agir moralmente. Antes, a lei moral exige

que nós superemos o nosso egoísmo e ajamos segundo uma máxima

universal, identificando em nós mesmos o ser de todo outro homem.

De mais, mesmo admitido o princípio, ele não conduz

exatamente às conseqüências que Bentham dele extrai. Se o prazer é

o único escopo da vida, não se compreende, em verdade, por que nos

deva preocupar a felicidade dos outros, o prazer "do máximo

número", por que se deva sentir o dever de "contar cada um por um".

Seria mais lógico um egoísmo desenfreiado, pelo qual cada um

buscasse o máximo prazer próprio, mesmo em prejuízo dos outros.

Chegar-se-ia, assim, a um anarquismo de ínfimo grau.

As razões adotadas por Bentham para justificar a trans

formação do seu princípio não parecem suficientes. Seria mais

conseqüente (segundo suas premissas) um egoísmo sem limites do

que uma conciliação ou um compromisso entre o egoísmo e o

altruísmo.

210 ? 11

Page 107: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Notamos ainda que existe certa ambigüidade no conceito

mesmo de prazer ou de felicidade.

Bentham e, em geral, os utilitaristas da sua escola partem do

conceito do prazer material. Compreendendo depois a

impossibilidade de limitar-se apenas à consideração dos prazeres

inferiores, freqüentemente dão àquele termo um significado mais

vasto, até compreender nele também as satisfações do intelecto e da

consciência.

Assim, pode-se chegar a conseqüências bastante plausíveis.

Todavia, modificou-se inadvertidamente o princípio fundamental, e

a coerência lógica do sistema é destruída.

Uma escala dos prazers foi admitida também por Platão (cf.

Filemon), que não era, certamente, utilitarista. Mas importa mesmo

advertir que entre os prazeres dos sentidos e os prazeres do intelecto

corre uma distância incomensurável, e que nada existe de comum

entre os prazeres inferiores ou sensíveis e o apagamento da

consciência moral, quando o homem que cumpriu o dever se sente

em harmonia consigo mesmo.

Subordinar as satisfações inferiores às superiores, eis o fim

ou a regra da moral. Mas não se poderá jamais chegar a demonstrar

a necessidade de uma tal subordinação partindo da premissa

utilitária.

Sobre as doutrinas de Bentham elevam-se, com certo avanço,

as de JoOO StuartMill (filho de Giacomo Mill, filósofo ele

também). Foi sem dúvida um dos maiores pensadores ingleses e

também figura nobilíssima de homem e de cidadão. Viveu de 1806

a 1873.

Entre os seus escritos recordaremos a Lógica indutiva e

dedutiva e os ensaios: Sobre a liberdade, Sobre o governo repre

sentativo e Sobre o utilitarismo. Pertence a Mill o mérito de ter

desenvolvido a doutrina utilitária, aperfeiçoando-a, e sobretudo o de

ter buscado na lei psicológica da associação de idéias um

desdobramento, se não suficiente, certamente notável, da formação

da consciência moral.

Mill reconhece que o cálculo, de que fala Bentham, é um absurdo

psicológico. Nós agimos, em geral, segundo as indicações

212

",. HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

do sentimento, e não em virtude de cálculos; temos uma faculdade

moral que preside a direção dos nossos atos. Esta consciência moral

como se explica?

Mill responde que o indivíduo, vivendo na sociedade, adquire

a persuação de que a vantagem prória é inseparável da vantagem de

outro. Por uma série de experiências nos persuadimos de que, para

alcançar o nosso bem, devemos querer o bem do outro. Isto,

entretanto, é efeito não de cálculo, mas de hábito psicológico, de

uma espécie de faculdade arraigada, que é exatamente a consciência

moral. Esta derivaria, então, do fato de que o indivíduo associa,

reúne, na sua mente, a idéia do seu bem particular com a idéias do

bem geral da sociedade da qual é parte. Por esse processo

psicológico operar-se-ia uma espécie de alargamento do conceito da

própria vantagem, até compreender nele o bem do próximo.

Busca Mill aperfeiçoar a doutrina de Bentham também em

outro sentido, isto é, como tentativa de uma distinção qualitativa dos

vários prazeres.

Bentham tinha distinguido os prazeres apenas segundo uma

medida quantitativa (tinha posto como fim último o "máximo", isto

é, a maior soma possível de prazeres). Mill, ao contrário, distingue

os prazeres mais nobres dos menos nobres, os prazeres que são

próprios do homem, dos prazeres que o homem tem em comum com

os outros animais, e considera os primeiros (ou seja os prazeres

intelectuais e morais) como superiores ante os outros.

De tais princípios Mill extrai conseqüências também jurídicas

e políticas. No máximo, sustenta os princípios do puro

individualismo, dando relevo sobretudo à idéia da liberdade. Mas a

legislação, segundo Mill, deve favorecer a associação mental entre o

bem do indivíduo e o bem da espécie, de modo que o indivíduo,

procurado o próprio bem, deve também necessariamente buscar o

bem da sociedade. Desse conceito serve-se Mill para dar um

desenvolvimento e uma justificação da pena. Quando a um ato

lesivo se comina uma pena, determina-se uma associação de idéias,

pela qual o delito deve ser considerado um mal também para quem o

comete.

213

Page 108: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Esta associação de Mill, embora engenhosa, não nos aplaca,

uma vez que ficará sempre a explicar como se chegou a assinalar

uma pena a um ato, se este não era antes (isto é, independentemente

da pena) objeto de censura ou reprovação pela consciência comum.

Na verdade, a teoria utilitária não tem com Mill um

fundamento sólido. Só com a teoria da evolução ela aparecerá um

pouco transformada e posta sobre bases menos frágeis.

Em Bentham e em Mill o esforço evidente de conciliar a

busca do bem individual com a consideração devida à convivência

social (consideração, porém, que exorbita da doutrina utilitária)

constitui por si quase uma confissão da insuficiência do egoísmo,

adotado como princípio, a fundar uma Ética. E, na verdade, se não

fosse possível um superamento do egoísmo individual, não nos seria

moral nem correto.

O "cálculo" de Bentham não é aceitável como lei ética,

também porque ele não poderia ser feito, a cada vez, pelo indivíduo;

e da mesma forma a "faculdade moral", de que fala Mill, não

poderia realmente formar-se (mesmo com a ajuda da associação de

idéias) mercê apenas dos elementos fornecidos pela experiência

individual.

A Ética de Mill não é senão um aperfeiçoamento da Ética de

Bentham; dela conserva, portanto, os defeitos fundamentais.

Um novo progresso na doutrina utilitária é trazido pela teoria

da evolução, cuja origem é ligada aos nomes de Darwin e Spencer.

O primeiro estudou a evolução no campo das ciências naturais e

precisamente no mundo orgânico; o segundo elevou o princípioo a

um significado universal, tentando explicar com ele toda a realidade.

Carlos Darwin (1809/1882) publicou em 1859 a sua obra

capital Sobre a origem das espécies mediante a seleção natural.

Com longas e pacientes pesquisas (fez mesmo, à sua custa,

uma viagem de circunavegação para estudar a vida animal),

observou que, para viverem, os animais devem sustentar uma luta

com o ambiente. Todo ser vivente deve realizar um esforço para

afirmarse diante das dificuldades naturais. Existe, então, uma luta

pela vida

,., 1 A

-....

1

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

(struglefor life). Como conseqüência dessa luta, alguns entre

os seres viventes, isto é, os mais adaptados (não os melhores,

como se diz, talvez erroneamente), sobrevivem. Outros, os

menos adaptados ao ambiente, sucumbem. Acontece, então,

uma seleção, uma escolha, uma seleção natural.

Toda a teoria darwiniana apóia-se sobre dois princípios:

luta pela vida e conseqüente seleção natural. Isto que acontece

com o indivíduo, acontece igualmente com a espécie. Por

efeito da seleção natural as espécies transformam-se,

adaptando-se, cada vez mais, às condições do ambiente. As

que não se adaptam, perecem.

Esses conceitos fundamentais Darwin os aplica também

ao homem.

O homem - observa Darwin - não poderia viver sem a

ajuda dos seus semelhantes; ele é, então uma espécie social, e a

sociabilidade é uma das suas condições de vida. Conseqüentemente,

o indivíduo inapto a viver na sociedade vai eliminado pela seleção,

enquanto os mais adaptados a conviver socialmente sobrevivem.

De tal modo se reforça, continuamente, o instinto social que

ele se identifica, para Darwin, com o instinto moral.

Esse mesmo critério da sociabilidade maior ou menor tem

correspondência nas lutas entre as nações.

Assevera Darwin que, encontrando-se dois povos, dos quais

um seja formado de indivíduos sociáveis, capazes de se sujeitarem

a uma disciplina comum e de se sacrificarem um pelo outro, e o

outro povo, ao contrário, seja composto de indivíduos não

sociáveis, egoístas, incapazes da subordinação social e do sacrifício

dis

ciplinado, o primeiro terá maior probabilidade de vencer.

Assim, as estirpes menos sociáveis serão eliminadas pouco a

pouco, e o instinto social tenderá a difundir-se no mundo.

Esses conceitos são desenvolvidos ulteriormente por Erberto

Spencer (1820/1903), que construi um sistema completo de

Filosofia sobre as hipóteses da evolução. Suas principais obras, que

compõem tal sistema são: Primeiros princípios, Princípios

71"

Page 109: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

de biologia, Princípios de psicologia, princípios de sociologia e

Princípios de ética. Esta última obra compreende várias partes,

dentre as quais os Dados da ética (ou Bases da moral), a Justiça e a

Beneficência.

Segundo Spencer, a vida do uni verso é um grande ritmo, um

movimento contínuo de formações e de dissoluções. O sentido desse

movimento é que constitui a evolução; e esta consiste precisamente

em uma passagem do homogêneo para o heterogêneo, do

indiferenciado para o diferenciado, do incoerente para o coerente.

Como o sistema solar, segundo a conhecida tese de Kant e de

Laplace, teve origem de uma massa sideral informe, de uma

nebulosa imensa, difusa e homogênea, da qual se destacaram, pouco

a pouco, em virtude do movimento, os astros e os corpos celestes,

assim na sociedade humana, e em toda outra ordem de realidade, de

uma masssa caótica, informe e difusa, destaca-se uma plural idade

de seres individuais, que se dispõem em relação harmônica entre

eles. E forma-se, assim, a pouco e pouco, uma distribuição e

sistematização de funções, uma especialização de atividades; nasce,

em suma, uma nova e superior unidade.

As ordens primitivas, compostas de indivíduos que exerci

tam todos as mesmas funções e vivem promniscuamente, mudamse

pela evolução em sistemas sociais, nos quais se desenvolvem as

diversas individualidaddes, se distinguem as várias funções, e a vida

da coletividade apresenta-se, então, como um todo harmonicamente

ordenado, composto de partes distintas e perfeitamente reunidas,

tendo cada um ofício próprio em relação ao todo.

A sociedade humana é, pois, concebida por Spencer à

semelhança de um organismo, isto é, como uma unidade vivente,

sujeita àlei da evolução. Em tal organismo distinguem-se várias

partes e funções, não menos que no organismo indi vidual, no qual

identificamos um tecido endodérmico que nutre, um tecido

mesodérmico que distribui o alimento, um tecido exodérmico que

protege e defende o organismo. Na sociedade correspondem ao

primeiro os componen

216

.....

l HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

tes da classe agrícola e industrial, ou seja, os produtores; ao segundo,

os comerciantes; ao terceiro, enfim, os soldados e os juízes, que

protegem e defendem a sociedade dos perigos externos e internos.

Tal concepção orgânica, como se vê, é fundada sobre uma

analogia simples com o organismo individual.

Todavia, o próprio Spencer distinguiu os limites dentro dos

quais se pode aceitar a concepção orgânica, advertindo que se trata

de analogia, e não de identidade. Na verdade, entre o organismo

individual e o organismo social existem diferenças notáveis.

O primeiro é um todo concreto, compacto, indivisível; o

segundo, um todo discreto, isto é, distinto, composto de partes

separadas ou separáveis.

Enquanto os elementos do organismo individual não têm

valor por si e servem apenas à vida do todo, os elementos do

organismo social (os indivíduos) têm valor e vida própria, são (para

usar uma lingagem kantiana) fins em si, e não apenas meios com

respeito ao todo.

A teoria orgânica, se aceita absolutamente, poderia conduzir à

negação do valor da existência individual. Longe disso, Spencer foi

em política resolutamente individualista e reconheceu (na obra da

Justiça) que o indivíduo tem para si mesmo uma série de direitos

naturais. Disso falaremos mais adiante.

Spencer tem o propósito de reformar o utilitarismo,

substituindo o utilitarismo empírico de seus predecessores pelo

utilitarismo

racional. Aceita o princípio tadicional da Filosofia inglesa, que o

útil é o fim do agir humano e a base da Ética. Mas atribui à

utilidade um significado não hedonístico (hedoné = prazer), também

biológico.

Não se refere Spencer ao prazer como sensação

subjetiva, nem ao cálculo dos prazeres, segundo a doutrina de

Bentham, nem à faculdade psicológica derivante de tal

cálculo, segundo a doutrina de Mill, mas, ao contrário, ao

equilíbrio biológico entre as condições do indivíduo e as

condições do ambiente. E desta maneira Spencer liga-se a

Darwin.

---1 ')1

'7

Page 110: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

""

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Expressão desse adaptamento ao ambiente, que se completa

no curso da evolução, é a Ética, que é também qualquer coisa de

variável e relativo: as regras do agir transformam-se à medida que

mudam as condições do ambiente, pois representam exatamente as

condições necessárias para a existência do indivíduo e da sociedade.

Estamos, portanto, em pleno relativismo.

Todavia, Spencer tenta elevar-se, depois disso, chegando a

uma Ética absoluta.

O significado da Ética é para Spencer a correção do egoísmo,

porque a primeira condição de vida para o homem é a sociabilidade,

o adaptamento à vida social, que representa um freio, uma limitação

imposta ao egoísmo. Admite, então, a formação de um sentimento

moral altruístico, pela virtude do processo biológico.

Segundo os mesmos conceitos darwinianos, o indivíduo que

não pudesse adaptar-se ao ambiente desapareceria, necessariamente,

pelo efeito da seleção natural. Sobrevivem só os mais adaptados. E

isto vale, além dos indivíduos, também para os povos.

Ao explicar esse processo de adaptação do indivíduo à vida

social, Spencer chega a outro critério importantíssimo - o da

hereditariedade. Segundo esse critério (que está, porém, ainda no

estado de hipótese), a adaptação não se realiza só na vida do

indivíduo, mas também, e sobretudo, na vida da espécie.

Os resultados das experiências (que forçam o homem a

dobrar o seu egoísmo, educando-o para a sociabilidade) acumulamse

e se transmitem hereditariamente de geração em geração.

Assim se explicaria o surgir dos instintos morais, que não têm

comparação adequada na experiência do indivíduo. Eles (segundo a

hipótese) seriam o fruto das experiências da espécie. O que parece

inato no indivíduo, seria adquirido com respeito à espécie. O

sentimento do dever e o do direito seriam os produtos das

experiências de utilidade de toda a espécie, tansmitidos e tomados

orgânicos em nós.

Spencer tentou uma conciliação análoga entre o empirismo e

o idealismo a respeito das categorias do intelecto, ou seja, das for

mas necessárias do conhecimento; também elas seriam adquiridas da

espécie, a posteriori, isto é, fruto das experiências acumuladas e

transmitidas, mas apareceriam a priori no indivíduo, que lhe entraria

na posse já ao nascer.

A nós não parece que esta tentativa de conciliação, embora

engenhosa, seja verdadeiramente aceitável, podendo-se fazer graves

objeções a ela.

Se o a priori (a forma subjetiva) é um elemento necessário

para o conhecimento, e em particular para a experiência, não se

compreende como isso possa ser o resultado de um certo acúmulo de

experiêcias. O suceder-se, o multiplicar-se das experiências, não

resolve o problema da condição, que permite (toma possível) as

experiências mesmas.

A mesma objeção pode-se fazer relativamente às faculdades

morais: é difícil admitir que o sentimento do dever e o do direito

possam depender de um acúmulo de experiências, quando estas

experiências pressupõem exatamente certa vocação ou atitudes

originárias da consciência individual. O dizer que esta atitude é a

resultante de um longo perpassar de experiências, e que trasmonta a

tempos remotos, é um expediente que prolonga, mas não resolve o

problema. A nosso parecer, em suma, Spencer não chegou a

encontrar o fundamento da moral e do direito. Isto, aliás, era

inevitável, dadas as suas premissas, pois que a só observação dos

fenômenos naturais não pode conduzir a descobrir a essência do

homem e as leis da sua consciência.

Segundo Spencer, a adaptação à vida social (na qual consis

te exatamente a moral) tende a tornar-se orgânica, isto é, a

transformar-se por efeito de imposições obrigatórias em hábito

espontâneo e quase instintivo. De conseqüência, o sentimento do

dever (ou de obrigação moral) seria um sentimento transitório,

próprio de um estado de adaptação incompleto.

O dissídio entre o impulso espontâneo e o sentimento do

dever e da obrigação chegaria, de mão em mão, a comparar-se com um

218 219

Page 111: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

, I

GIORGIO DEL VECCHIO

mais perfeito adaptamento à vida social. A moral estaria, então, em

via de regresso, tenderia a descer ao instinto.

Mas essa construção teórica de Spencer não corresponde à

realidade dos fatos. A experiência demonstra que com o progredir

da civilização o senso do dever cresce.

Nas fases originárias confunde-se o ser com o dever ser, isto

é, o que é sempre feito com o que se deve fazer, a força com o

direito. Nas fases mais progressivas, ao contrário, a antítese entre

esses termos desenvolve-se e se reforça a consciência do dever e do

direito; o sentimento de obrigação faz-se mais intenso, agudo e

consabido.

A adaptação à vida social tem também por efeito, segundo

Spencer, a tansformação do regime de convivência do tipo militar

para o tipo industrial.

Nisso ele renova a doutrina de Comte, que distinguia

exatamente dois tipos de sociedade: o militar e o industrial. O

primeiro seria próprio das sociedades primitivas, e denotaria menor

adaptação à vida social; a organização da sociedade estaria, pois,

preordenada inteiramente para este único fIm: a luta, o combate, a

guerra.

No seus Princípios de sociologia, Spencer traça amplas

descrições (valendo-se também das narrações de numerosos

exploradores) da vida das sociedades primitivas sobre a base de uma

organização militar e aponta como caracteres fundamentais delas a

hierarquia rigorosa, a restrição extrema da liberdade pessoal, a

restrição da iniciativa individual. Esses caracteres, próprios de todo

exército, estendem-se a toda a vida civil.

Com o proceder da evolução, a sociedade assumiria, pouco a

pouco, um tipo industrial: o indivíduo vai-se emancipando da

disciplina coercitiva e pode exercitar livremente a sua atividade,

pode desenvolver pacificamente suas iniciativas. O fIm supremo não

são mais os trabalhos de guerra, mas os de paz; alcança-se uma

mudança de todos os valores sociais, uma tansformação profunda

nas idéias e nos institutos. Esse esquema de evolução é, como todos

os outros esquemas fixos de FilosofIa da história, em parte verdadei

"' 220

...,

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

ro, em parte inexato; não pode ele, pois, ser aceito senão com muita

cautela.

Spencer propôs-se, ao final, este problema: o processo de

adaptação à vida social deve ser concebido como finito ou como

infinito? Pareceria que Spencer, coerentemente com o seu

empirismo, devesse limitar-se à simples observação do processo,

sem indicarlhe um término; se para ele a realidade é apenas relativa

e em movimento contínuo, uma parada da evolução parece

contraditória, e como tal foi na realidade considerado, também, por

muitos seguidores das teorias spencerianas. Contudo, Spencer

raciocinou sobre a hipótese de uma evolução completa, supondo

uma organização social perfeita, não mais dividida por contrastes,

nem debilitada por transgressões, mas em completa harmonia em

todas as suas partes, com uma plena conciliação entre altruísmo e

egoísmo.

Spencer contrapõe, portanto, a Ética absoluta à Ética relativa.

A primeira corresponde a uma perfeita adaptação do indivíduo à

vida social; a segunda, a determinado momento, a certo grau do

processo. Mas, na verdade, toda a Ética, segundo as bases da

concepção spenceriana, deveria ser relativa.

Por admitir, além dessa, uma Ética absoluta, passa a especular

um ideal que se funda sobre a razão, e não sobre a experiência. E

então nos separamos das bases da teoria de Spencer e entramos no

âmbito dos imperativos categóricos de Kant.

Essa parte da doutrina de Spencer dá lugar a muitas

dificuldades e foi confutada por seus próprios seguidores, os quais

observaram que, ao contrário, a evolução e, portanto, também o

processo de adaptação não podem admitir um termo final.

E, de outra parte, mesmo admitindo um termo da evolução,

como poderemos nós conhecer e afirmar preceitos absolutos? E

como se conciliaria a Ética absoluta com a Ética relativa? Qual se

ria, respectivamente, o seu valor? Parece que, ao menos por

enquanto, a Ética devesse ser apenas relativa, uma vez que não se

alcançou ainda a adaptação perfeita.

221

Page 112: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

-

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Por outro lado, Spencer afmna como válidos certos princípios

de Ética absoluta. Isto é, sem dúvida, uma ilogicidade. Mas é uma

ilogicidade, que aos nossos olhos toma-se preciosa, enquanto nos

mostra que o autor quis, com um salto de lógica, corrigir o defeito

originário do seu sistema.

É singular que Spencer, expoente máximo da reação

positivística contra o racionalismo na Filosofia jurídica, se tenha

tornado, por último, adepto dos princípios mesmos do direito

natural. Nisso está uma incoerência, que se pode também aceitar

como voluntária, preferindo uma ofensa à lógica do sistema, a uma

ofensa à verdade. Todavia, não deixa de ser, do ponto de vista

intrínseco, um defeito do sistema mesmo.

Os princípios de Ética absoluta, espostos por Spencer,

contemplam de modo particular o direito. Tem-se, então, nessa

matéria, uma contraposição nítida entre as regras da justiça

absoluta e as regras das várias legislações positivas.

O princípio jurídico fundamental, enunciado por Spencer é:

"Cada um pode fazer o que quer, desde que não ofenda a igual

liberdade dos outros". Este princípio não é novo, pois

substancialmente é o mesmo já sustentado pela escola do direito

natural (racional). Confronte-se, no caso, a fórmula da "igual

liberdade" de Kant. Essa coincidência evidente com o conceito

kantiano foi observada pelo próprio Spencer que, depois de declarar

que ignorava a obra de Kant, indicou algumas diferenças entre as

duas fórmulas.

Em substância, disse o seguinte: enquanto Kant deduz a má

xima de critérios apriorísticos, eu a retiro do resultado de

numerosas experiências sociais; onde Kant insistiu sobre o lado

negativo, eu, ao contrário, atribuo maior importância ao lado

positivo (liberdade positiva: cada um pode fazer o que quer).

Essas considerações não destroem, todavia, a concordância

fundamental. Entretanto, não nos parece que a fórmula de Spencer

possa verdadeiramente ser considerada como fundada sobre a

experiência ou retirada somente dela.

Ao princípio ora exposto Spencer acrescenta um outro

complementar, isto é, que "cada um deve suportar as conseqüências

da prória natureza e da própria conduta". Esta é exatamente uma

exigência absoluta da Justiça, superior às normas das legislações

positivas. Spencer dá depois um elenco dos direitos naturais do

homem, que resultam daqueles princípios (direito de mover-se

livremente, direito de propriedade, direito de livre troca, direito à

liberdade de crença, de culto, de palavra, de imprensa, etc.). É um

elenco análogo ao formulado, por exemplo, na Declaração dos

direitos do homem e do cidadão, de 1789. E é verdadeiramente

notável que tais verdades de ordem metafísica se encontrem em um

escritor de tendências opostas como Spêncer.

Com a justiça liga-se a filantropia. E assim vemos seguir à

Justiça uma outra obra sua, Beneficência negativa e positiva.

A beneficência é para Spencer um corretivo da justiça, que

tende a suprir certas conseqüências da justiça mesma. As ajudas aos

seres mais fracos, que se não são ajudados serão condenados a

morrer, a integração da pessoa deficiente, tudo isso está fora da

justiça e forma, ao contrário, o objeto da filantropia.

Basta pensar nas organizações familiares para reconhecer a

necessidade de não se seguir rigidamente a máxima que impõe a

todo indivíduo suportar as conseqüências da própria conduta. É

necessário que a benevolência mitigue os males ocasionados pelas

inferioridades temporáis ou permanentes.

Este é exatamente o campo da beneficência, o qual é,

portanto, uma forma secundária de altruísmo, enquanto a justiça lhe

é a forma primária.

Na luta pela vida, a beneficência é um freio interior, que

chega ao exterior porimposição da lei jurídica.

Em política Spencer foi, como acentuamos, resolutamente

individualista, conforme a tendência da sua pretensa escola liberal

clássica. Toda a sua doutrina política é dirigida contra a invasão do

Estado (cf., especialmente, o livro The man versus the State, ed.

222 223

Page 113: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

it., com o título O indivíduo e o Estado. Cf., sobre este livro o ensaio

de M. Minguetti, O cidadão e o Estado, no volume Escritos vários,

1896, p. 401-471).

Ao Estado deve pertencer só a tutela dos direitos individuais,

que quanto ela seja necessária. E tal necessidade deve decrescer

progressivamente, ou seja, deve diminuir a atuação do Estado, para

deixar espaço sempre mais largo à iniciativa individual.

Spencer mostra-se especialmente contrário à assunção pelo

Estado dos ofícios de beneficência. Vê nisso o perigo de o Estado

tirar de uns o que lhes pertence com justiça para dá-lo a outros sob a

forma de beneficência.

Segundo Spencer, esta deve ficar fora do Estado, como está

fora da justiça; deve ser espontânea, deixada à iniciativa individual,

e não obrigatória, forçada ou coagida.

É provável que tais reflexões lhe tenham sido sugeridas pelo

ordenamento da vida inglesa, onde a iniciativa individual exercitase

vigorosamente com a maior liberdade, e onde a beneficência tem

uma verdadeira e própria organização privada. Assim, também na

Inglaterra verificou-se o fato, comum na idade moderna, de maior

atividade do Estado, que sempre chamou a si novas funções e novos

ofícios. Exatamente contra tal tendência Spencer quer reagir,

afirmando energicamente os direitos do indivíduo.

Dentre os escritores ingleses do último século que tentaram

de vários modos superar o empirismo positivístico, merecem

menção: F. H Bradley (1846/1924) e B. Bosanquet (1848/1923).

Suas obras referem, prevalentemente, argumentos gerais de Ética e

apenas tocam problemas de Filosofia do direito.

Sobre esta matéria escreveram tratados, dentre outros, J.

Lorimer (The institues of law, a reatise of the principies of

jurisprudence as determined by nature, 1872) e W. G. Miller

(Lectures on the philosophy oflaw, 1884).

Depois das clássicas obras de W. Blackstone (1723/1780),

que, na base de suas considerações sistemáticas sobre o direito

224

T I

"esTÓRIA DA "LOSO"A DO D<R~O -l inglês, pôs elevada concepção do direito natural, as doutrinas

de J. Austin (1790/1859 são mais atinentes ao direito positivo,

mas não privadas de interesse filosófico. Ele é o chefe da

pretensa "escola analítica de jurisprudência", derivada de

Bentham, e sempre largamente seguida pelos juristas anglo-

saxões. Um deles, T. E. Holland (1835/1926), é notável além

de em razão de sua obra The elements ofjurísprudence (13.

ed., 1830, 1924), também por ter sabiamente reivindicado a

glória de Alberico Gentili. Valiosos são ainda os tratados de

F. Pollock (A first book of Jurisprudence, 6. ed., 1896,

1929), e de J. Salmond (Jurisprudence, 10. ed., 1902, 1947).

Com as doutrinas austinianas ligam-se especialmente os

estudos de W. Jethro Brown (professor na Austrália): The

Austinian theory of law, 1906, The underlying principies of

modern legislation,1912.

Entre as obras sistemáticas mais recentes sobre a teoria

do direito, são particularmente notáveis as de W. Friedmann

(Legal theory, 2. ed., 1944, 1947), C. K. Allen (Law in the

making, 4. ed., 1927, 1946), W. Buckland (Some reflections on

jurisprudence, 1945), G. W. Paton (A text-

bookofjurisprudence,

1946), J. Stone (The province and function of law, 1947), os

dois últimos professores na Austrália; ainda vários ensaios de

H. C. Gutteridge (Comparative law, 1946), A. H. Campbell e

outros.

De grande importância são as resenhas histórico-

comparativas de J. S. Maine (1822/1888; Ancien law, 1861,

etc.). Além de Maine, investigaram a vida social dos povos

primitivos J. F. Mac-Lennan, J. Lubbock, E. B. Taylor, J. G.

Frazer, L. T. Hobhouse, etc.

Também deram valiosas contribuiçõesa para a história

das doutrinas jurídicas e políticas R. Flint, L. Stephen, F.

Pollock, H. Sidgwick, J. Bryce, A. Dicey, F. W. Maitland, D.

G. Ritchie, J. N. Figgis, A. 1. Carlyle, G. P. Gooch, C. E.

Vaughan, F. Heamshaw, J. W. Allen, Ph. Doyle, etc.

n'i

Page 114: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

***

Os problemas próprios desta disciplina foram mais

considerados, sob vários apspectos, por F. Lieber (Manual of

political ethics, 2. ed., 1838, 1876), J. M. Baldwin (Social and

ethical interpretations in mental development, 1897, etc.), F.

H. Giddings (Principles of sociology, 1886), W. Willoughby

(An examination of the nature of the State, 1896), L. F. Ward

(Pure sociolgy,

1902), W. N. Hohfeld (Fundamental legal conceptions as

applied in judicial reasoning, 2. ed. 1913/1917, 1923), e,

mais recentemente, com notável incremento, por outros

eminentes cultores, quais, principalmente, 1. H. Wigmore

(Problems oflaw, 1920, etc.), A. Kocourek (Jural relations,

1927; An introduction to

the science of law, 1930), R. Pound (Outlines of lectures on

jurisprudence, 4. ed., 1928; The spirit ofthe common law,

1921; An introduction to the philosophy oflaw, 1922;

Interpretations of legal order, 1933, etc.), B. N. Cardozo (The

growth of the

law, 1927; The nature of the judicial process, 1928; The

paradoxes oflegal science, 1928), C. G. Haines (The reival of

natural law concepts, 1930), M. Radin (The nature of the

legislative act, 1931), etc.

Entre as contribuições americanas ao estudo das

organizações jurídicas primitivas, notamos as obras de L. H.

Morgan (Anciene society, 1878) e de R. H. Lowie (Primitive

society, 1920;

The origin ofthe State, 1927), e, entre as relativas à história das

doutrinas políticas, os tratados de J. W. Burges, W. Dunning,

C. Merriam, R. G. Gettel, W. C. Mac1eod, etc.

O impulso dado na América do Norte aos estudos

filosófico-jurídicos resulta também de publicações coletivas,

como: Modern legal philosophy series, evolutions oflaw series

(sob a responsabilidade de A. Kocourek e J. H. Wigmore,

1915/; 1918), Readins in jurisprudence (sob a

responsabilidade de J. Hall, 1938) e a recentíssima resenha de

ensaios em honra a R. Pound, Interpretations ofmodern legal

philosophies, 1947, com introdução de P. Sayre.

Dentre os recentes ensaios de Sociologia recordamos os de

M.Ginsberg, e, entre os de Filosofia política, as obras de H.J.Laski

(Studies in the problem of sovereignty, 3. ed., 1917, 1924, A.

grammar ofpolitics, 4. ed., 1925, 1938, Democracy in crisis,

1933, etc.). Escritos de vários autores, atinentes à Filosofia do

direito foram recolhidos, sob a responsabilidade de W. J. J ennings,

no volume Modern theories oflaw (1933).

Podem-se, ainda, recordar, aqui, alguns escritores que,

nascidos em diversos países, desenvolveram na Inglaterra sua

atividade filosófico-jurídica. Tais são, por exemplo, o finlandêz E.

Westrmarck (1862/1939), que estudou especialmente a formação

das idéias morais e jurídicas junto aos povos primitivos; o russo P.

Vinogradoff (1854/1925), que, tendo sucedido a Maine e a Pallock

na cátedra de Oxford, prosseguiu-lhes a tradição, aprofundando

também suas pesquisas de direito sob o aspecto histórico-

comparativo (Outlines of historical jurisprudence, 1920/1922, etc.;

o americano A. Goodhart, também ele professor em Oxford (Essays

injurisprudence and the common law, 1930, etc.).

Os estudos filosófico-jurídicos tiveram ainda, na idade

moderna, apreciável desenvolvimento nos Estados Unidos da

América do Norte.

Já no período do iluminismo (século XVIII) o

pensamento americano havia-se firmado com B. Franklin

(1706/1790), T. Jefferson (1743/1826), A. Hamilton

(1757/1804), etc., sobre argumentos éticos e políticos, mais

em conexão com as lutas pela independência, do que por

escopos puramente especulativos.

Os sucessivos sistemas de outros pensadores, como R.

W. Emerson (1803/1882), G. T. Ladd (1834/1916), C. S.

Peirce (1939/1914), W. James (1842/1910), J. Royce

(1855/1916), J. Dewey (n. em 1859), etc., têm maior

importância para a Filosofia teórica do que para a Filosofia do

direito. 226

227

Page 115: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

VISÃO DA FILOSOFIA DO

DIREITO NA ALEMANHA, ;

NA AUSTRIA E NA SUIÇA NOS

TEMPOS RECENTES

Já falamos de alguns dos maiores sistemas filosófico-

juridícos, nascidos na Alemanha até os primeiros decênios do

século XIX.

J. F. Herbart (177 6/1841) ocupou -se especialmente de

psicologia. Quanto à ética e, em particular, ao direito, ele tentou

reconduzir essas categorias à estética. Na verdade, ele parte do

princípio de que a luta desagrada, a contestação produz um

desprazer estético; e nisso encontra o fundamento do direito, como o

que busca evitar a luta e produzir a paz. Essa explicação é, porém,

certamente insuficiente.

Outra observação que se pode fazer a esse escritor é o fato de

ter confundido a moral com o direito, defeito comum, aliás, a muitos

escritores do último século e que representa uma reação ao rigor

com o qual a distinção tinha sido feita nos sistemas de Thomasius,

Kant e Fichte. Seguidores de Herbart foram, dentre outros, Geyer e

Thilo, autores de obras respeitáveis de Filosofia do direito.

K. Krause (1781/1832) foi filósofo espiritualista ligado a

Schelling, e autor de várias obras (entre elas uma Filosofia do

direito). Ele é notável também porque de sua escola saíram dois

autores assaz conhecidos: D' Ahrens (1808/1874) e Rõder

(1806/1879). A doutrina de Krause (e também a dos seus seguidores

e discípulos) tem caráter eclético. A exposição, obscura em Krause,

é, ao contrário, em Ahrens e Rõder, harmônica e clara (isso explica

a grande difusão de suas obras), apesar de, em geral, não muito

profunda. O conceito fundamental é que o direito é a condição do

desenvolvimento da sociedade.

229

Page 116: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Pensador de importância muito maior foi Arturo Schopenhauer

(1788/1860). De suas obras recordaremos a principal, O mundo

como vontade e como representação, publicada em 1819, e dois

breves mas profundos tratados, Sobre a liberdade do querer e Sobre

o fundamento da moral.

Schopenhauer opôs-se vivamente a certas tendências

especulativas do seu tempo e foi, particularmente, o grande

adversário de Hegel. Para Hegel, a essência das coisas é a idéia;

para Schoplenhauer, é a vontade. Daí que, se aquele pode dizer-se o

representante do intelectualismo, este se dirá o representante do

voluntarismo. A vontade é, em Schopenhauer, entendida, em

sentido muito extenso, como princípio independente da consciência,

como impulso que se encontra também no reino da física. O mundo

é uma vontade que tende a individuar-se. A vontade de viver é o

princípio informador do mundo: têm aí origem as formas

individuais.

A inteligência sobrevém em seguida, como uma faculdade

secundária.

A individuação é a grande desventura, a fonte de todos os

males, porque da vontade de viver individualmente nasce a

desproporção entre as aspirações e o ser; e isso é a dor.

Dadas estas premissas, a Ética tem um único princípio: a ne

gação da vontade de viver, a abnegação de si.

Ocorre aqui o mesmo pensamento fundamental da Filosofia

budística: em certo modo, Schopenhauer quis ser o intermediário

entre a sabedoria ocidental e a oriental.

A compaixão é, para Schpenhauer, a virtude primeira, o

fundamento da Ética, porque ela significa exatamente uma extensão

da vontade além da esfera individual, uma participação na vida de

outro, e até mesmo o reconhecimento da identidade fundamental de

todos os seres, contra as ilusões da nossa subjetividade.

Schopenhauer não se ocupou ex professo da Filosofia do

direito, mas, pela conexão entre os vários ramos da Filosofia, tratou

argumentos atinentes com ela.

Assim, por exemplo, é notável e original, apesar de, a nosso

ver, não aceitável a distinção que faz entre moral e direito.

Segundo Schopenhauer, a moral seria afirmativa ou positiva;

o direito, ao contrário, negativo. Isto é, a moral determinaria aos

homens ajudar aos outros, pelos princípios da abnegação e da

compaixão; o direito determinaria apenas o neminem nocere; todo o

direito se reduziria, então, no neminem laedere; e a moral

acrescentaria a este o immo juva.

Já dissemos que esta distinção não nos parece admissível. Na

verdade, tanto a moral quanto o direito, ordenam não só a abstenção

de certos atos, mas também o cumprimento de atos positivos, certas

prestações a favor dos outros ou da sociedade inteira.

Seria cômodo, mas supérfluo, fazer aqui um elenco de

obrigações jurídicas dessa natureza.

Schopenhauer exerceu certa influência sobre E. v. Hartmann

(1842/1906), que derivou algumas idéias também de Schelling e de

Hegel. Característica de seu sistema é a importância atribuída ao

inconsciente, para a explicação da vida em geral. Hartmann tratou

largamente da fenomenologia da consciência moral, sem porém

firmar-se nos problemas específicos da Filosofia do direito.

Federico Giulio Stahl (1802-1861) sentiu a influência de

Schelling, da Filosofia da Restauração e da Escola Histórica. Seu

sistema tem um caráter espiritualístico teocrático.

Notável pela profundidade da maneira de tratar, não obstante

o ponto de vista muito unilateral, é a sua Filosofia do direito

(publicada a primeira vez em 1830), onde é criticado severamente o

antigo direito natural. Um dos três volunes dessa obra é dedicado à

história da Filosofia do direito, e foi traduzido para o italiano.

Singular pensador foi Max Stirner (pseudônimo de J. C.

Schmidt), que viveu de 1806 a 1856, e no seu livro O único e a sua

propriedade (1845, trad. italiana de 1902) desenvolveu a teoria de

um extremo individualismo anárquico.

Afim, sob certos aspectos, é a teoria, cheia de paradoxos, de

Federico Nietzsche (1844/1900), que nos seus numerosos es

230 231

Page 117: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

critos (Como falou Zaratustra, 1883/1891, Ao de lá do bem e do

mal, 1886, Genealogia da moral, 1887, etc.) propôs-se a subverter

todos os valores éticos, combatendo a moral do amor, e exaltando,

ao contrário, a ilimitada "vontade de potência", como característica

própria do homem superior, ou "super-homem".

Estão em direto constraste com as doutrinas de Stirner e de

Nietzsche, inspiradas por um falso individualismo, as doutrinas

daqueles que, movidos por um conceito absoluto da sociabilidade,

sujeitaram a uma crítica radical os modernos ordenamentos

políticos, com o fim de elevar as condições de vida das classes

operárias.

Principal entre eles é Carlo Marx (1818/1883) que, com suas

obras Crítica da economia política (1859) e O capital (1867), pôs as

bases do socialismo moderno.

Segundo Marx, a estrutura econômica da sociedade

determina a superestrutura jurídica e política, às quais correspondem

as formas sociais da consciência. Essa teoria, dita do "materialismo

históri

co", abre flanco a graves objeções que não é oportuno repetir aqui.

Federico Engels (1820/1895) colaborou com Marx em vários

escritos (dentre os quais o Manifesto do Partido Comunista, de

1848), e compilou, sobre os apontamentos deixados por ele, o

segundo e o terceiro volume de O Capital (1885/1894).

Notável escritor e agitador político, de igual tendência, foi

Ferdinando Lassalle (1825/1864). A sua concepção do socialismo

difere, todavia, em parte, da de Marx e de Engels, tendo caráter mais

nacional que internacional.

Lassale inspirou-se, em Filosofia, sobretudo em Regel,

buscando desenvolver a sua doutrina com particular referência ao

direito. Na sua obra Sistema dos direitos adquiridos (1861), sustenta

a relatividade das leis e até dos direitos sancionados por elas,

enquanto as leis não são outra coisa que a expressão concreta da

consciência jurídica popular; consciência mutável no curso do tem

po. Retoma assim, nesta doutrina, um motivo característico da

escola histórica dos juristas.

J. R. v. Kirchmann (1802/1889) expôs uma

teoriaempíricorealística do direito (Os conceitos fundamentais do

direito e da moral, 1869), depois de já ter negado, em um famoso

opúsculo, todos os valores científicos à Jurisprudência (Die

Werthlosigkeit der Jurisprudenz ais Wissenschaft, 1848).

As doutrinas clássicas, em especial as aristotélicas, foram

renovadas por Adolfo Trendelenburg (1802/1872) na sua notável

obra Direito natural sobre a base da ética (2. ed., 1860, 1868, trad.

italiana, 1873).

Valiosos são, também os tratados de Enrico Ahrens (Curso de

direito natural ou de filosofia do direito, editado muitas vezes

também em italiano) e de Cado Roder (Elementos do direito natural

ou da filosofia do direito, 2. ed., 1856, 1860), para o qual já

acenamos.

Rodolfo v. Ihering (1818/1892) foi um dos mais geniais

juristas da idade moderna. Na sua obra principal, O espírito do

direito romano nos diversos graus de seu desenvolvimento

(1852/1865, trad. italiana só da primeira parte, 1855) tentou uma

análise profunda não só do direito romano, mas do direito em geral.

Suas premissas filosóficas mais restritas, inspiradas por um

certo positivismo, não o impediram de pôr em grande relevo os

elementos racionais e voluntários na produção do direito e na sua

evolução. Isto aparece principalmente no breve escrito, tomado

famoso, A luta pelo direito (1872, trad. italiana, 1875) e na obra de

vasto cenário, O fim no direito (1877/1883), que, todavia,

permaneceu incompleta.

Guilherme Wundt (1832/1920 desenhou um amplo sistema

que compreendia todos os ramos da Filosofia e também, em síntese,

os resultados das diversas ciências. Um volume é dedicado ao

direito, como parte da psicologia dos povos (Volkerpsychologie);

outro, à Ética, etc.

São idéias fundamentais de Wundt o monismo e o

evolucionismo. Delineia uma história psicológica do

desenvolvimento do direito, nos seus vários graus, e, embora o seu

conceito de evo

232 ?11

Page 118: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

lução não seja idêntico ao de Spencer, não se pode dizer que ele

tenha verdadeiramente superado o positivismo.

Deu-nos Adolfo Lasson (1882/1917) um dos melhores

tratados da nossa disciplina com o seu Sistema de filosofia do

direito (1882), onde são expostas com clareza e acuidade tanto as

doutrinas mais gerais quanto as aplicações a cada instituto. A

orientação especulativa de Lasson é rigorosamene hegeliana, e isso

dá ao seu sistema caráter um pouco dogmático. Mas mesmo quem

dissente das suas teses deve reconhecer o grande valor da obra e do

autor, que foi, além de verdadeiro filósofo, excelente mestre.

José Kühler (1849/1919), igualmente ele insigne mestre da

Universidade de Berlim, desenvolveu genial e larguíssima atividade

em todos os campos da jurisprudência. Na Filosofia do direito

inspirou-se exatamente em Hegel, declarando-se neo-hegeliano,

porém, sem ater-se estritamente aos princípios e às fórmulas

daquele filósofo, mas, seguindo, no considerar o direito como

"fenômeno de cultura", de preferência, um método histórico e

positivo. De suas numerosas obras recordamos: Filosofia do direito

e história universal do direito (In: Enciclopédia Jurídica de

Holzendorff, 5. ed., 1890, 6. e 7. ed., 1903/1913), e especialmente o

Manual de filosofia do direito (Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.

ed., 1909, 1923).

Kühler promoveu eficazmente, dentre outros, os estudos do

direito comparado (com particular atenção para os povos

primitivos); estudos que já tinham recebido, e receberão ainda, na

Alemanha, notáveis contribuições, especialmente de A. H. Post

(1839/1895), A origem do direito, 1876; Os inícios da vida

estatutária ejurídica, 1878; Jurisprudência etnológica, 1894/1895,

tradução italiana, 1906/1908,2 v., etc.). Liga-se com estes estudos

também a conhecida obra do suíço J. J. Bachofen (1815/1887) sobre

Matriarcado (Das Mutterrecht, 1861).

O conceito do direito e outros conceitos jurídicos

fundamentais foram objeto de atentas análises na obra de alguns

eminentes

234

.. HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

juristas, quais: Augusto Thon (1839/1912), Norma jurídica e

direito subjetivo, 1878, trad. italiana com introdução de

A.Levi, 1939), E. R. Bierling (1814/1919, Pela crítica dos

conceitosjurídicos fundamentais, 2 v. 1877/1883, Teoria dos

princípios

jurídicos, 1894/1917,5 v.), Carlo Binding (1841/1920), As

normas e as suas transgressões, com particular referência ao

direito penal, publicados em várias edições de 1872 a 1920,4

v.); Emesto Zitelmann (1852/1923, Conceito e essência das

pretendidas pessoas jurídicas, 1873; Erro e negócio jurídico,

1879; S. Schlossmann (1844/1909); Sobre a doutrina da

coação, 1874; O contrato, 1876); etc. Nem se deve esquecer

das contribuições dadas à discussão dos mesmos conceitos dos

maiores pandetistas, como K. A. Vangerow (1808/1870), B.

Windscheid (1817/1892), A. Brinz (1820/1887), F.

Regelsberger (1831/1911) e outros.

Adolfo Merkel (1836/1896) ocupou-se especialmente do

direito penal. Mas tentou também declinar o programa de uma

teoria geral do direito (positivo), distinta da Filosofia, e de

expor em breves sínteses os seus elementos (Sobre a relação

dafilosofia do direito com a ciência jurídica positiva e com a

parte geral dela,

1874, rist. em Gesamm. Abhandl, 1899, I; 1885, 2. ed. 1900;

Elementos da teoria geral do direito, na Enciclopédia Jurídica

de Holzendorff, 5. ed., 1890, e Gesamm. Abhandl, 11).

Pode-se, aqui, acenar, também para a obra de Guilherme

Schuppe (1836/1913) que, embora tenha dedicado a maior

parte da sua atividade à Filosofia teórica, sustentando sua

concepção de um criticismo sobre base empírica (dito também

Filosofia da imanência), deu igualmente contribuições à teoria

do direito (Fundamentos da ética e da filosofia do direito,

1882; O conceito do direito subjetivo, 1887; O direito

consuetudinário, 1890).

O conceito do Estado e os outros a ele pertinentes foram

estudados, também sob o aspecto filosófico, por vários

publicistas, dentre os quais é especialmente de ser lembrado

Jorge Jellinek (1851/1911), Sistema dos direitos públicos

subjetivos, 2. ed., 1892, 1905, trad. italiana, 1912; Doutrina

geral do Estado, 3. 235

Page 119: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

ed., 1900, 1914; rist. 1921, trad. italiana, com acréscimo de V E.

Orlando, 1921/1949, 2 v.).

Digna de nota é também a obra do austriaco Antônio Menger

(1841/1906), que no seu desejo de um Estado democrático do

trabalho, buscou sistematizar em forma jurídica os postulados

práticos do socialismo (Neue Staatslehre, 3. ed., 1902, 1906,

trad. italiana, com o título O Estado socialista, 1905, d. do

mesmo autor, os escritos precedentes: O direito ao produto

integral do trabalho, 3. ed., 1886, 1904, O direito civil e o

proletariado, 1890; 3. ed., 1904, trad. italiana, 1894).

A idéia do direito natural foi combatida, com profusa

erudição, mas sem argumentos válidos, por K. Bergbohm

(Jurisprudência efilosofia do direito, 1892) e por outros.

Notável, mais pela largueza de informações que por

aprofundamento de conceitos, é o Sistema de filosofia do

direito e da economia, de F. Berolzheimer (1904/1907,5 v.,

trad. parcialmente em italiano, 1916), de objetivo afim ao de

Kohler.

Cabe a Rodolfo Starnrnler (1856/1938) o mérito de

teriniciado uma revisão crítica das doutrinas filosófico-

jurídicas, que na Alemanha, como na Itália, divagavam

geralmente entre o dogmatismo positivista e o hegeliano. A

derivação de Kant (evidente, sobretudo, no escrito Sobre o

método da teoria histórica do direito, 1888), não impediu

Stammler de tentar caminhos em parte novos para resolver os

problemas da Filosofia do direito, tomados mais urgentes

pelos contrastes entre as várias doutrinas e pelos progressos

inegavelmente atingidos no campo das pesquisas históricas e

positivas.

Na sua obra Economia e direito segundo a concepção

materialista da história (4. ed., 1896, 1921) Stammler

distingue claramente a forma e a matéria da vida social e

conclui afirmando

como ideal supremo, ou fim absoluto desta, a comunidade de

homens que querem livremente (Gemeinschaft frei wollender M enschen).

Na outra obra, A teoria do justo direito (1902, nova edição

1926) buscou determinar, segundo a mesma máxima, o conceito do

direito justo (richtiges Recht), como uma espécie e ao mesmo tempo

um critério do direito em geral. A esse critério ele atribuiu um valor

puramente formal, apartando-se, assim, do antigo jusnaturalismo e

admitindo a positividade do direito e a sua variabilidade.

A doutrina de Stammler, exposta também em outras obras

suas, como a Teoria da ciência jurídica (2. ed., 1911, 1923) e o

Manual de filosofia do direito (Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.

ed., 1922, 1928) pôde levantar, e de fato levantou, várias objeções;

é, porém, uma das expressões mais respeitáveis da moderna

Filosofia do direito.

Júlio Binder (1870/1939), depois de ter dedicado um amplo

estudo crítico à doutrina de Starnrnler (Conceito do direito e ideal

do direito, 1915), afastou-se sempre mais dela para aproximar-se, ao

contrário, do pensamento hegeliano. E é, certamente, depois de

Lasson, o maior representante do hegelismo na moderna Filosofia

jurídica. Sua obra principal é afilosofia do direito (1925), depois

reelaborada com o título Sistema de Filosofia do direito (1937).

. Eugênio Ehrlich (1862/1922) iniciou uma nova série de

pesquisas sobre o que ele chamou de "direito vivente", isto é, o

direito que extrai sua origem imediatamente da sociedade, e não do

Estado. Sua visão sistemática sobre este tema foi por ele exposta

nas duas obras: Fundação da sociologia do direito (1913) eA

lógica

jurídica (1918).

Já em opúsculo precedente (Livre encontro do direito e livre

jurisprudência, 1903), tinha posto em relevo como decisões

jurídicas, não fundadas sobre leis prévias, criam novo direito

substancial. Essa tese foi retomada e desenvolvida por H.

Kantorowicz (1877/1940), que no escrito A luta pela ciência do

direito, publicado em 1906 com o pseudônimo Gnaeus Flavius

(trad. italiana, 1908) expôs o programa da pretendida livre criação

do direito (freie Rechtsschopfung) ou escola do direito livre.

236 237

Page 120: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Esse programa, que tende a pôr em segunda linha a

autoridade das leis em confronto com a prática judicial, encontrou

aderentes em vários países, mas, de outra parte, graves objeções.

Com frneza e originalidade de pensamento, Gustavo

Radbruch (1878/1949) deu várias importantes contribuições à nossa

matéria. Especialmente valioso é o seu tratado (Grundzüge der

Rechtsphilosophie) que, publicado em 1914, foi mais tarde

inteiramente reelaborado por ele (com o título Rechtsphilosophie, 3.

ed., 1932). Notável é, ainda, a sua breve mas conceituosalntrodução

à ciência jurídica (8. ed., 1910, 1929), como ainda, entre os escritos

mais recentes, a Propedêutica da filosofia do direito (Vorschule der

Rechtsphilosophie, 1948), que pode ser vista como complemento ou

desenvolvimento ulterior do mencionado tratado. O posicionamento

filosófico de Radbruch, fundado sobre a teoria do conhecimento,

compendia-se na palavra relativismo, que, todavia, não significa,

segundo entende, a negação dos valores absolutos, mas mais o

respeito a todas as suas possíveis afirmações.

Entre os melhores tratados sistemáticos da matéria, merece

distinção a de M.E. Mayer (Filosofia do direito, 1922), rica de

visões originais e inspirada por um criticismo, que termina na afir

mação da humanidade como supremo princípio ético.

Singulares, pela amplitude e pela riqueza de erudição, são os

tratados de W. Sauer (Bases da sociedade, 1924; Manual de

Filosofiajurídica e social, 1929,2. ed. reelaborada com o título

Sistema de filosofia jurídica e social em 1949;

Metodologiajurídica, 1940; etc.)

A filosofia jurídica neo-escolástica teve, também nos países

de língua alemã, numerosos e notáveis representantes, os quais

mantiveram assinaladamente alta a idéia do direito natural, como:

Th. Meyer, V. Cathrein (suíço), C. Gutberlet, G. v. Hertling, J.

Mausbach, 1. Haring, M. Grebmann, etc. Igual orientação revelam

em suas obras E. Holscher (Teoria moral do direito, 1928), K.

Petraschek (Sistema de filosofia do direito, 1932), etc.

De grande interesse, especialmente para a Filosofia do direito

público, são as doutrinas da pretendida escola de Viena, ou da

"teoria pura do direito", que tem por mentor Hans Kelsen.

Pretende essa doutrina definir a essência do direito

eliminando todos os elementos estranhos (psicológicos, éticos, etc.),

valendo como pura norma.

Rejeitada a concepção do direito natural e também a idéia de

justiça, que, enquanto distinta do direito, seria um "ideal

irracional", essa teoria limita-se a considerar o direito positivo

como é, recusando-se a valorizá-Ia.

Sob este ponto capital, conjuga-se então com o realismo ou

positivismo jurídico. Característica dessa teoria é a repulsa de todo

dualismo no campo do direito.

Assim, segundo Kelsen, as distinções entre direito objetivo e

subjetivo, entre direito público e privado, e também aquela entre

Direito e Estado.

Supérfluo relevar a gravidade dessas identificações, em

especial a última. O ordenamento jurídico, sempre segundo a mesma

teoria, deve ser concebido como construído por uma série de graus

(Stufenbau); e nesta série, sobre o direito dos Estados, existe o

direito da comunidade internacional, entendido igualmente como

direito positivo.

Essas doutrinas foram agudamente elaboradas, não só pelo

próprio Kelsen nas suas várias obras (Principais problemas da

teoria do direito estatal, 1911; O problema da soberania e a teoria

do direito internacional, 1920; Doutrina geral do Estado, 1925;

Teoria pura do direito, 1934, etc.) A mais completa formulação do

seu pensamento está no volume editado recentemente na América

do Norte, General theory of law and state, 1945), também por

outros autores que lhe aceitaram os princípios, destacadamente por

A.Verdross, que desenvolveu especialmente as doutrinas atinentes

ao direito internacional (A unidade da con

figuração jurídica do mundo, 1923; A constituição da comunidade

jurídica internacional, 1926).

238 239

Page 121: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Pertencem também a essa escola, ou a ela se ligam

estreitamnte, A. Merkl, F. Sander, F. Kaufmann, F. Schreier, J.

Kunz e outros escritores de diversos países, como o checo F. Wevr,

que antes ainda de Kelson tinha expressamente visão análoga; o

polaco S. Rundstein; o iugoslavo L. Pitamic; o húngaro B. Horváth;

o dinamarquês A. Ross; o japonês T. Otaka; etc. Adesões, não

separadas das críticas, à mesma escola têm sido encontradas

recentemente na América Latina. No que concerne à Itália, as

doutrinas em questão foramjá consideradas e discutidas por diversos

estudiosos.

Portanto, não nos deteremos para indicar, aqui, os valores e

os defeitos dessa doutrina. Notamos apenas que eles, não há dúvida,

deixam não resolvidos alguns dos maiores problemas da Filosofia

do direito.

Os estudos filosófico-jurídicos têm tido, na era moderna, na

Alemanha, na Áustria e na Suíça, tal desenvolvimento que este

breve sumário histórico teve necessariamente de limitar-se a acenar

para algumas das obras mais significativas.

Registramos aqui, ainda, os nomes de outros autores que, em

várias direções do pensamento, deram também contribuições ao

progresso destes estudos: L. A. Warnkõnig; J. Held; L. Knapp; F. A.

Schilling; W. Arnold; C. L. Michelet; Ferd. Walter; H. v. Treitscke;

F. Dahn; F. Harms; O. Bü1ow; L. Kühnast; P. Kloeppel; R.

Wallascheek; E. Lask; A. Hold v. Ferneck; J. Stern; L. Kuhlenbeck;

E. Hõlder; R. Loening; M. Rumpf; E. Bekker; A. Sturm; E. Jung; A.

Reinach; I. Kornfeld; F. Münch; W. Fuchs; G. Wielikowski; H.

Reichel; Th. Sternberg; L. Nelson; M. Rümelin; M. Salomon; M.

Wenzel; E. Beling; A. Baumgarten; F. Darmstaedter; C. A. Emge;

S. Marck; E. Swoboda; G. Leibhols; K. Wolff; E. Weigelin; 1.

Kraft; H. Kraus; K. Haff; L. Waldecker; W. Schõnfeld; R. Laun; F.

Müllereisert; H. Heller; K. Larenz; E. Voegelin; H. Dietze; H.

Coing; H. Thieme; A. Schwientek; etc. Entre os suíços, autores de

monografias não menos valiosas, recordamos (além dos já

anotados): J. C. Bluntschli; A. Affolter; M. Gmür;

E. Huber; W. Burckhardt; D. Schindler; H. Nawiasky; A. Simonius;

H. Nef; E. Brunner; etc.

São de caráter prevalentemente sociológico, mas não

privadas de interesse para a Filosofia do direito, as obras de K.

Vollgraff; A. Schaffle; F. Tõnnies; G. Ratzenhofer; G. Simmel; P.

Barth; M. Weber; A. Vierkandt; M. Scheler; O. Spann; O. Spengler;

F. Jerusalem; R. Thumwald; etc.

Para a história das doutrinas jurídicas e políticas são

preciosos os tratados de R. v. Mohl; C. v. Kaltenborn; O. Gierke; S.

Riezler; R. Stintzing; E. Landsberg; R. Hirzel; R. Schoz; F.

Meinecke; J. Sauter; E. Wolf; etc.

240 '>.1.1

Page 122: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

VISÃO DA FILOSOFIA DO

DIREITO NA ESPANHA, EM PORTUGAL, ; A

NA AMERICA LATINA, NA ROMENIA, ;

NA HUNGRIA, NA GRECIA, NA HOLANDA, ;

NA ESCANDINAVIA, ETC.,

Na Espanha, o domínio da Filosofia escolástica protrai-se

mais longe do que em outro lugar. Nem houve ali um verdadeiro

Renascimento, no sentido de um destaque do dogmatismo próprio

da Idade Média. Mas do seio mesmo da Escolástica surgiram ali

alguns pensadores que elaboraram as doutrinas tomísticas,

especialmente em tomo do direito natural, com grande finura e

profundidade, conduzindo-as a novos e mais originais

desenvolvimentos; isso para determinar o que foi chamado "um

renascimento da Escolástica". Já nos referimos a alguns desses

escritores, mas convém dizer alguma coisa a respeito deles, antes de

atentarmos para os mais modernos.

Notável sobretudo como um dos fundadores da ciência do

direito internacional é o dominicano Francisco de Vitória

(1483/1546), que nas suas Relectiones theologicae (publica das

postumamente, em 1557) discutiu com largueza de idéias e

profundo senso de humanidade o problema da licitude da guerra, e

em especial da que os espanhóis conduziam, muitas vezes

cruelmente, contra os indígenas do continente americano, havia

pouco descoberto.

Discípulo de Vitória foi Domingos de Soto (1494/1560), que

escreveu um amplo e excelente tratado, De justitia et jure (1556).

Sobre o mesmo argumento fundamental, sempre elaborando e

desenvolvendo os princípios da Escolástica, escreveram ainda obras

refletidas os jesuítas Luiz de Molina (1535/1600), e João de Lugo

(1583/1660).

243

Page 123: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Grande fama, por meio de fortes contrastes, conquistou o

jesuíta João Mariana (1536/1623) por sua obra De rege et regis

institione (1599), na qual é exposto um desenho da monarquia

representativa e defendida a tese Uá antes enunciada por outros, por

exemplo, por Molina) da legitimidade do tiranicídio.

Importância ainda maior tem o pensamento do jesuíta

Francisco Suarez (1548/1617), que com o seu Tractatus de legibus

ad Deo legislatore (1612) ofereceu-nos um dos tratados sistemáticos

mais completos da nossa disciplina.

Característico é que, embora sobre fundamento teológico,

Suarez põe, todavia, em enorme destaque a razão: assim, ele

sustenta a soberania popular e (dentro de certos limites), a

legitimidade da insurreição contra o tirano. Isso porque o príncipe

tinha recebido o poder do povo sob a condição ut politice, non

tyrannice regeret ( = "para que reinasse política e não tiranicamente").

A obra de Suarez é respeitável ainda por muitas doutrinas

particulares, que têm, ainda, vivo interesse, por exemplo, sobre a

interpretação das leis. Em outro escrito, Defensio fidei catholicae et

apostolicae (1613), retoma o exame dos argumentos fundamentais

da política e defende a supremacia da Igreja sobre o Estado,

limitada, porém, somente aos fins espirituais.

Depois de um longo período de depressão, que compreende

especialmente o século XVIII, o pensamento filosófico espanhol

explicou-se com certo vigor no século XIX e mais ainda no nosso,

ressentindo o influxo das várias correntes especulativas de outros

países e tentando, ainda, vias próprias.

Permaneceu sempre bem viva a tradição escolástica ou

neoescolástica.

Ligam-se a ela, por exemplo, as doutrinas sociais e políticas

de J. Donoso Cortés (1808/1853), com freqüência vivamente

polêmicas; e as mais altamente filosóficas, de J. L. Balmes

(1810/1848), e assim, sucessivamente, as de E. Gil y Robles (morto

em 1908:

Tratado de Derecho politico, 1899) e as de L. Mendizabal y Martin

(1859/1931), do qual o recente e amplo Tratado de derecho natural

(escrito, na sétima edição, em colaboração com o filho, A.

Mendizabal Villalba), representa uma típica tentativa de inserir na

velha trama escolástica os dados e os problemas da vida jurídica

moderna.

Quase todas as principais escolas filosóficas européias

tiveram, no último século, eco e reflexo na Espanha. Mas

particularmente é de ser assinalada a sorte que ali encontrou a

doutrina de Krause, pela obra de J. Sanz deI Rio (1814/1869). O

maior discipulo deste, F. Ginerde los Rios (1839/1915), conquistou

para si grande benemerência como promotor dos estudos filosóficos

jurídicos, além dos dedicados à educação e à instrução pública em

geral. Entre suas obras recordamos os Principios de derecho natural

(1873, nova edição, 1916) e especialmente o Resumen de

filosofia dei derecho (1898). Ambas estas as mostram também o

nome do seu discípulo e colaborador A. Calderón.

De caráter eclético é o Novíssimo tratado completo de filosofia dei

derecho o derecho natural, de C. Fernandez Elías (1874);

entrementes, têm marca mais histórica, ou sociológica, os estudos de

J. Costa (1846/1911); La vida dei derecho, 1876, etc.). N. Salmerón

(1838/1908), procedendo do krausismo, aproximouse, por último,

do positivismo. Este é representado principalmente por P. Dorado

Motero (1861/1919), que foi discípulo de Ardigà, inspirando-se, de

outra parte, também na escola de Krause (Roder), e recebendo então

o influxo do humanismo tolstoiano. Tratou especialmente os

problemas do direito penal. Notável é ainda a sua obra

póstuma de caráter geral: Naturaleza y función dei derecho (1927).

J. Ortega y Gasset, M. Garcia Morente, J. Xirau Palau

cooperaram eficazmente para o progresso dos estudos filosóficos

em geral, tocando às vezes também problemas de Filosofia social e

política.

No campo mais propriamente filosófico-jurídico, emergem as

figuras de A. Bonilla y San Martin (1875/1926), F. Pérez Bueno

(1877/1934), F. de los Rios Urruti, L. Recaséns Siches, F. Rivera

Pastor, L. Legaz y Lacambra, W. Roces, E. Luno Pena, M.

244 245

Page 124: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Puigdollers, F. Gonçalez Vicen, A. De Luna, A. Garcia Valdecasas,

J. Medina Echevarria, E. Galán y Gutierrez, J. Corts y Grau, E.

Gomez Arbeleya, F. Elias de Tejada Spinola, A. Truyol Serra, os

quais, com importantes trabalhos, aprofundaram os problemas da

nossa disciplina.

Obras respeitáveis sobre a teoria do Estado escreveram G. de

Azcárate (1840/1917), A. Posada, C. Ruiz deI Castillo, L. DeI

Valle, J. Beneyto Perez, F. J. Conde, L. Sanchez Agesta. Ocuparam-

se, entrementes, da Filosofia do direito penal, particularmente, Q.

Saldafía e L. Jiménez de Asúa.

Levaram contribuições à teoria jurídica geral também

eminentes cultores do direito privado, como M. Alonso Martinez, F.

Clemente De Diego, F. Sanchez Román, 1. Castan Tobefías, D. De

Buen.

Deve-se aos autores nominados, e a outros que aqui omitimos

por brevidade, ocupar a Espanha, presentemente, um posto muito

honroso no atual reflorescimento dos estudos de Filosofia do

direito.

peruanos, J. B. De Lavalle, J. De La Riva Agüero, J. Ayasta

González; entre os venezuelanos, E. Gil Borges e R. Pizani; entre os

colombianos, 1. R. Safíudo, P. Carrefío, C. Betancur, E. Nieto

Artelã; entre os bolivianos, J. Bustillo; entre os mexicanos, A. Caso,

J. Bremer, J. Rivera, E. Garcia Maynes, R. Preciado Hemandez;

entre os guatemaltecos, L. Beltranena e E. Viteri.

***

***

Em Portugal, como na Espanha, dominou, por longo tempo, o

método escolástico.

Na sua generalidade, o direito foi estudado sobre bases

teológicas, com intentos moralísticos e com a inclinação ao

absolutismo político, quase exclusivamente por obra de sacerdotes.

Tais foram, por exemplo, João Sobrinho, que pelo fim do século

XV, escreveu um livro, De justitia, e Diego Lopes Rebele, que no

mesmo tempo compôs uma obra, De republica, de escassa ou

nenhuma originalidade. O pensamento português, nesse período,

não aparece distinguido, com caracteres próprios, da corrente

tradicional. Isto se pode dizer também dos escritos sucessivos de

Amador Arrais (morto em 1600) e de Duarte Ribeiro de Macedo

(1618/1680).

Outros autores, também eles religiosos, demonstraram,

porém, vigor especulativo, especialmente Ferdinandus Rebellus

(Rebelo, morto em 1608), que escreveu uma obra notável, muito

discutida em seu tempo e hoje sem razão esquecida, sobre várias

espécies de deveres (De obligationibus justitiae, religionis et

charitatis, Lugduni, 1608; Venetiis, 1610); e Serafim de Freitas,

que, como já notamos, escreveu em oposição a Grócio uma

monografia para defender os direitos dos portugueses sobre os

mares asiáticos (De justo imperio lusitanorum asiatico adversus

Grotii mare liberum, 1625). Nas obras desses autores,

assinaladamente do primeiro, podese sentir um certo influxo dos

pensadores espanhóis, em especial de Suarez, o qual ensinou por

alguns anos (por 1597) em Coimbra, e escreveu ali a sua obra maior.

Também na América de língua espanhola tivemos, em nossa

época, numerosas e apreciáveis manifestações do pensamento

filosófico-jurídico, com prevalência o caminho sociológico e

positivo, mas não sem traços do criticismo e de outras tendências

especulativas. Relembramos, entre os mais notáveis escritores

argentinos: C. O. Bunge (1875/1918), W. Escalante, J. Ingenieros,

A. Dellepiane, E. Quesada, E. Martinez Paz, M. Saenz, A. J.

Rodriguez, C. MeIo, A. Fragueiro, R. A. Orgaz, C.Cossio, E. R.

Aftalión, F. Garcia Olano, J.Lozano Mufíoz, F. Legón, S. Linares

Quintana, A. E. Sampay, M. Ruiz Moreno.

Entre os do Equador, A. M. Paredes e J. Villagomez Yepez;

entre os chilenos, R. Femandez Conha, A. Alvarez, F. Vives, C.

Hamilton; entre os cubanos, M. Aramburo (autor de um amplo

tratado de Filosofia del derecho, 3 v., 1924/1928), P. Desvemine,E.

F. Camus, J. E. Casasús, A. S. de Bustamante y Montoro; entre os

?4tí 247

Page 125: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

o estudo filosófico do direito independentemente da Teologia

começou em Portugal só na segunda metade do século XVIII. Em

particular, com a refonna dos estudos universitários (de 1772),

efetuada pelo célebre ministro marquês de Pombal, foi dado o

devido lugar ao Direito Natural, como disciplina autônoma. O

iluminismo português, em tal período, foi representado

principalmente por Luiz Antônio Vemey (1713/1792), que viveu por

muito tempo na Itália e teve estreitas relações com L. A Muratori e

com Antônio Genovesi.

Foram então traduzi das para o português as obras de alguns

jusnaturalistas, entre os quais a do italiano C. A Martini (Positiones

de lege naturali, 1764), que foi adotada como texto na Universidade

de Coimbra até 1843. Nesse ano foi publicado e adotado como texto

em lugar do de Martini, o Curso de direito natural, de Vicente

Ferrer Neto Paiva (1798/1886), que neste e noutros de seus escritos

se inspirou nas doutrinas de Kant e de Krause, demonstrando

mesmo, todavia, em respeito a eles, certa independência de

pensamento.

Importantes, mas atinentes mais ao direito público que à

Filosofia do direito, são as obras (publicadas em parte em língua

francesa) de S. Pinheiro Ferreira (1769/1846).

Entre os cultores especiais da nossa matéria, depois de Ferrer

Neto Paiva, merecem menção: José Dias Ferreira (1837/1907),

Noçãesfundamentais e Filosofia do direito, 1864), que sustenta

idéias em parte afins com as de Hegel; J. M. Rodrigues de Brito

(1822/1873), Filosofia do direito, 2. ed., 1869, 1871), que se

inclinou ao positivismo, pondo como princípio do direito a

mutualidade dos serviços ou a solidariedade social; EM. de Faria e

Maia (1841/1923, Determinação e desenvolvimento da idéia do

direito, 1878), que tentou uma elevada síntese dos princípios ideais

do direito com os dados da experiência.

Sucessivamente, por alguns decênios, prevaleceram em

Portugal, como em outros lugares, as doutrinas positivistas e

evolucionistas,

derivadas dos pensadores franceses e ingleses. Podem-se recordar,

neste propósito, as obras de Theóphilo Braga (Sistema de

Sociologia, 1884), de Emídio Garcia e de Henriques da Silva.

Um novo e fecundo impulso aos estudos de Filosofia do

direito em Portugal foi dado em nossa época por Luís Cabral de

Moncada, ao qual se devem valiosas obras, tanto de caráter crítico e

sistemático (Do valor e do sentido da democracia, 1930; Direito

positivo e ciência do direito, 1944; A caminho de um novo Direito

natural, 1945; Filosofia do direito e do Estado, 1947) quanto de

caráter histórico (Subsídios para uma história dafilosofia do direito

em Portugal, 1938, Um iluminista português do século XVIII: L. A.

Vemey, 1941. De sua escola saíram todos ou quase todos os mais

recentes e valorosos cultores da Filosofia do direito nesse país,

dentre os quais citamos: ARodrigues Queiró (Osfins do Estado,

1938; Ciência do direito efilosofia do direito, 1942, A. de Brito

Lhamas (O problema da justiça,

1939), F. Pinto Loureiro (Individualismo e antiindividualismo no

direito privado, 1940); A. J. Brandão (Estado ético conta Estado

jurídico, 1941; O direito - Ensaio de ontologia jurídica, 1942;

Vigência e temporalidade do direito, 1944).

Contribuições para a Filosofia do direito deram também

cultores de ciências afins, como o históriador do direito P. Merêa,

que escreveu um ensaio sobre Suarez, Grocio, Hobbes (1941); o

constitucionalista M. Caetano; etc.

***

No Brasil, a Filosofia do direito teve numerosíssimos e

egrégios cultores, dentre os quais, especialmente: C. Beviláqua

(1859/ 1944), conhecido também como civilista e intemacionalista;

S. Romero, R. de Farias Brito, P. Lessa, J. Mendes, A. Diniz, J.

Serrano, Pontes de Miranda (autor de uma vasta síntese sociológica

?4R 249

Page 126: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

intitulada Sistema de ciência positiva do direito, 1922), J.Arruda,

M. Reale, C. Campos, P. Dourado de Gusmão, E. de Queiroz Lima,

Alves da Silva*, etc.

* N. T. - A resenha de Dei Vecchio é pouco abrangente, mesmo tendo em vista a

realidade da época. À parte a questão de ser ou não o Brasil a "raça mais refractária

à metafísica" (João Ribeiro, 1860/1934) ou a de "o Brasil não ter cabeça filosófica" (Tobias

Barreto (1839/1889), é certo que muito se cogitou e se cogita, entre nós, dos problemas

filosóficos. De 1938 (data da edição ora traduzida) para cá, o quadro alterou-se

significativamente, e não é difícil chegar a um elenco expressivo de nomes e títulos dedicados à investigação, à interpretação e à divulgação filosóficas. Os autores e obras a

seguir indicados (evidente que sem preocupação com a exaustão) mostram um painel

iIustrativo e deveras rico a respeito; Jônatas Serrano (História dafilosofia. Rio de Janeiro, 1944, p. 195-225; Pe. Leonel Franca (Noções de história da filosofia, a partir da 2" ed., VII

Parte, Rio de Janeiro, 1928); João da Cruz Costa (Contribuição à história das idéias no

Brasil. Rio de Janeiro, 1956; A doutrina de Kant no Brasil. São Paulo, 1949; Experiência intelectual brasileira. Instituto Cultural Brasil- Alemão, Boletim n. 2, Porto Alegre, 1957,

com edições no México -1957 - e na Alemanha -1957); Miguel Reale (Momentos decisivos

e olvidados do pensamento brasileiro. Porto Alegre; O contratualismo - Posição de Rousseau e Kant. São

Paulo, 1946; O estado moderno. São Paulo, 1936; De dignitate

jurisprudentiae. São Paulo, [s.d]; Formação da política burguesa. São Paulo, 1934; A doutrina de Kant no Brasil. São Paulo, 1946; Filosofia em São Paulo. São Paulo, 1962;

Pluralismo e liberdade. São Paulo, 1962; Teoria tridimensional do direito. São Paulo,

1973); Guilherme Francovich (Filósofos brasilenos. Buenos Aires, 1943); Djacir Meneses (Afilosofia no Brasil, Rio de Janeiro, 1957); Renato Cirell Csena (Panoramafilosófico

brasileiro. Anais do I Congresso Brasileiro de Filosofia, v. I, p. 232/259); Euryalo

Canabrava (A Cultura Brasileira e seus Equívocos, Rio de Janeiro, 1954; Idéias para a Filosofia no Brasil. Anais do i o Congresso Brasileiro de

Filosofia, v. 1, p. 159-169; A filosofia no Brasil. Rio de Janeiro, 1957); A. L. Machado

Neto (Formação e problemas da cultura brasileira. ISEB - Textos brasileiros de filosofia, 3. Rio de Janeiro, 1958); A. Álvaro Vieira Pinto (ideologia e desenvolvimento nacional,

ISEB, Rio de Janeiro, 1956); Alberto Guerreiro (introdução crítica à sociologia brasileira.

Rio de Janeiro, 1957); Jacob Gorender (Correntes sociológicas no Brasil. Revista de

Estudos Sociais, Rio de Janeiro, n. 34,

1958); Luis Washington (A filosofia atual no Brasil. Revista Brasileira de Filosofia,

Rio de Janeiro, v. VIII, 1958); Leonardo Coimbra (A meditação filosófica no Novo Mundo. Anais do Congresso internacional de Filosofia de São Paulo, v. III, p.

1.089-1.096); Pe. Henrique Vaz, SJ (O pensamento filosófico no Brasil hoje, em

Apêndice à 17" ed. de Noções de história dafilosofia, do Pe. Leonel Franca, SJ, Rio de Janeiro: Agir, p. 343-373); Antônio Joaquim Severino (Afilosofia contemporâ

nea no Brasil-Conhecimento, política e educação. Vozes, 1999; Política e Educa

ção, Ed. Vozes, 1999); Adolpho Cripa [Coord.]. As idéias filosóficas no Brasil Séculos XVIII e XIX. São Paulo, 1978; As idéiasfilosóficas no Brasil- Século XX,

250

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

***

Na România os inícios da Filosofia do direito coincidem com

o despertar do sentimento nacional unitário, fundado sobre a idéia

São Paulo. 1978.2 v.); Autores diversos (Conversa com filósofos brasileiros. São

Paulo; Editora 34, 2000).

De tão rico mealheiro é possível selecionar nomes que em nada esmaecem diante da constelação mostrada por Dei Vecchio, pelo menos em seus pontos menos culminantes, tais

como; Francisco Mont' Alveme (1784/1858; Compêndio de filosofia, póstuma; Obras

oratórias); Tobias Barreto (1839/1889, Questões Vigentes); Farias Brito (1862/1917;

Finalidade do mundo, 1894; A base física do espírito, 1912; O mundo interior,

1914); Sílvio Romero (Doutrina contra doutrina, 1894); Luís Pereira Barreto

(1840/1923; As três filosofias: a filosofia teológica, 1874; Filosofia meta física,

1889); Francisco Pontes de Miranda (A moral do futuro. Rio de Janeiro, 1912; A

sabedoria dos instintos. Rio de Janeiro, 1921; A sabedoria da inteligência. Rio de

Janeiro, 1922); Miguel Lemos (Pequenos ensaios positivistas, 1877); Graça

Aranha (Estética da vida; Espírito moderno); Jackson de Figueiredo (1891/1930;

Algumas reflexões sobre afilosofia de Farias Brito; Afirmações; A reação do bom

senso); Ivan Lins (introdução ao estudo dafilosofia); Caio Prado Júnior (Dialética

do conhecimento. São Paulo, 1955); Lydio Machado Bandeira de Mello (O

problema do real; Prova matemática da existência de Deus; A origem dos sexos;

Quadrados mágicos; Pí em função das menores figuras); Pe. Paschoal Rangel,

SDN (Emmanuel Mounier - Uma introdução ao personalismo mounierano. Belo

Horizonte: O Lutador, 1976); Carlos Campos (O mundo como realidade. Belo

Horizonte, 1961; Ensaios sobre a teoria do conhecimento; Sociologia e Filosofia

do Direito); Arthur Versiani Velloso (A filosofia e seu estudo. Rio de Janeiro,

1947); Antônio Paim (História das Idéias Filosóficas no Brasil, São Paulo, 1967);

Anísio Teixeira (A pedagogia de Dewey. São Paulo, 1959; A educação e a crise

brasileira. São Paulo, 1956); Edmundo H. Dreher (Problemas filosóficos.

Curitiba, 1975); João Camilo de Oliveira Torres (O positivismo no Brasil. Rio de

Janeiro, 1957; A libertação do liberalismo. Rio de Janeiro, 1949); Renato

Almeida (Fausto - Ensaio sobre o problema do ser; Figuras e planos); Vicente

Ferreira da Silva (1916/1963; Elementos de lógica matemática, 1940; Lógica

simbólica, 1940; Dialética das consciências, 1950; Ensaiosfilosóficos. São Paulo,

1948; Exegese da ação. São Paulo, 1949; Idéias para um novo conceito do

homem. Revista Brasileira de Filosofia I, v. I, fasc. 4, 1951; Teologia do anti-

humanismo. São Paulo, 1953; A filosofia da mitologia e da religião, 1954.

Destaque especial para o Padre Vaz (Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ. Ouro

Preto, 1921; Belo Horizonte, 2002). O Pe. Vaz marca, seguramente, época de

esplendor nos estudos filosóficos no Brasil. Sua obra, voltada, toda ela, para a

Filosofia e a Ética, revela uma mente forte, transparente e aberta à diafaneidade,

ilustrada ao máximo e com peculiaridades só encontradas nos realmente grandes

251

Page 127: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

da origem romana da nação. Essa idéia fora exposta com força

e orgulho pelos "cronistas" dos séculos XVII e XVIII, alguns

dos

quais foram verdadeiros filósofos do direito público. Inspirada por

aquela idéia foi também a primeira codificação do direito privado,

filósofos: uma acuidade rara de apreensão do pensamento filosófico que lhe é posto; uma

percepção (um pré-sentir) quase divinatório do sinal dos tempos (a Filosofia iluminando os caminhos do amanhã), e, sobretudo, uma autonomia e uma competência (talvez encontradas,

entre nós, apenas em Farias Brito), para tratar o pensamento filosófico de maneira crítica,

reduzindo-o à sua verdadeira expressão e significado, e abrindo horizontes para novas opções ou indicações conceituais. "A extensa obra científica do Pe. Vaz no campo da

filosofia ocupa posto de absoluto destaque no cenário filosófico brasileiro. Poucos como ele

têm logrado reunir em torno de si e de suas idéias uma plêiade de discípulos tão numerosos e devotados, muitos dos quais têm hoje uma presença significativa no meio universitário.

Seu pensamento tem sido objeto de teses e estudos monográficos. Seu nome e a análise de

sua obra têm um lugar assegurado nas publicações nacionais e internacionais dedicadas à filosofia no Brasil. Suas idéias e sua personalidade fizeram dele talvez o representante mais

destacado e o interlocutor mais respeitado, nos meios intelectuais e universitários do país,

do pensamento de inspiração cristã. Ainda recentemente não só foi incluído entre os 16 entrevistados pelos autores do livro Conversa com filósofos brasileiros (São Paulo: Editora

34, 2000), mas também é citado por vários deles entre os três ou quatro maiores expoentes

da filosofia brasileira na atualidade" (Danilo Mondoni, editor da Revista de Filosofia Síntese, de que foi o Pe.Vaz cofundador, Belo Horizonte, v. 29, n. 94, maio/ago. 2002,

/MG). Parece pouco o muito que se tem falado, no seu necrológio, diante de obras como:

Escritos de filosofia INII - Problemas de fronteiras. São Paulo, 1968; Ética e cultura. São

Paulo,

1997; Filosofia e cultura; Ética efilosofia. São Paulo, 1999; Introdução à ética filosófica I.

São Paulo, 2000; Introdução à eticafilosófica lI; Ontologia e história. São Paulo, 2000; Raízes da modernidade. São Paulo, 2002; e Ética e direito. São Paulo, 2002; etc.

No.campo específico da Filosofia do Direito, vale lembrar, dentre outros, e sem

preocupação com data e escola ou tendência: João Arruda (Filosofia do direito. São Paulo, 1942); Tristão de Athayde (Introdução ao direito moderno. Rio de Janeiro,

1933); Tobias Barreto de Meneses (Sobre uma Nova Concepção do Direito, Rio de Janeiro,

1882; Estudos de filosofia e crítica, Questões vigentes de filosofia e de direito, Estudos de direito.ln: Obras completas. Sergipe, 1925); Francisco de Paula

Batista (Compêndio de hermenêutica jurídica. Recife, 1860); Clóvis Beviláqua (A

fórmula da evolução jurídica. Recife, 1894; Estudos jurídicos - História, filosofia e crítica. Recife, 1916); Carlos Campos (Sociologia efilosofia do direito. Rio de Janeiro, 1943;

Hermenêutica tradicional e direito científico); Teófilo CavaIcanti Filho et ai (Estudos de

filosofia do direito. São Paulo, 1952; O problema da segurança no direito. São Paulo, 1964); F. Vicente Ferreira da Silva (Dialética das consciências. São Paulo, 1950); Tércio

Sampaio Ferraz Filho (Die Zweidmensionatistiit des Rechts ais Vorasssetzung für den

Mewthodendualismus von Emil Lask. Meinsenheim am Glau, 1970); Basileu Garcia (Instituições de direi

to penal. São Paulo, 1951); Pedro Lessa (Estudos de filosofia do direito. Rio de Janeiro,

1916); Hermes Lima (Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro, 1952); A. L. Machado Neto (Sociedade e direito. Bahia, 1959; Introdução à ciência do direito. São

Paulo, 1960); Edgar de Godoi da Mata Machado (Direito e coerção. Belo Horizonte, 1956;

Contribuição ao personalismo jurídico. Rio de Janeiro, 1954); Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito. Porto Alegre, 1933); José Mendes (Ensaios de

filosofia do direito. São Paulo, 1905); Djaci Menezes (Introdução à ciência do direito. Rio

de Janeiro, 1952); Evaristo de Moraes Filho (O problema de uma sociologia do direito. Rio de Janeiro, 1950); Francisco José de Oliveira (Instituições políticas brasileiras. Rio de

Janeiro, 1949); Luiz Pinto Ferreira (Princípios gerais de direito civil. Recife, 1947); Pontes

de Miranda (Sistema de ciência positiva do direito, Rio de Janeiro, 1922); Euzébio de Queiroz Lima (Sociolo

giajurídica. Rio de Janeiro, 1936); Vicente Rao (O direito e a vida dos direitos. São

Paulo, 1952); Artur Ramos (Introdução à psicologia social. Rio de Janeiro, 1952); Miguel Reale (Fundamentos do direito. São Paulo, 1940; Teoria do direito e do Estado. São Paulo,

1940; O Estado moderno. São Paulo, 1936; De dignitate jurisprudentiae. São Paulo, [s.d]);

Horizontes do direito e da história. São Paulo, 1956; Teoria tridimensional do direito. São Paulo, 1973; O direito como experiência. São

Paulo, 1968; Lições preliminares de direito. São Paulo, 1973); Sílvio Romero (Ensaio de

filosofia do direito, Rio de Janeiro, 1908); Edgard Landor (Prolegômenos à ciência do direito. Bahia, 1927); Ernildo Stein (Compreensão e finitude. Porto Alegre, 1967); lrineu

Strenger (Dogmáticajurídica. São Paulo, 1964); Gofredo Telles Jr. (A criação do direito.

São Paulo, 1953; Direito quântico. São Paulo, 1980); Lourival Vilanova (Sobre o conceito de direito. Recife, 1947); A. B. Alves da Silva (Introdução à ciência do direito, São Paulo,

1953); Tobias Aquiles Beviláqua (Teoria geral do direito civil, Rio de Janeiro, 1951);

Gustavo Corção (Lições de abismo. Rio de Janeiro, 1954); Helvécio de Gusmão (Introdução à ciência do direito, 1931); Cabral de Moncada (Filosofia do direito e do

estado I, São Paulo, 1950); Nelson de Souza Sampaio (Ideologia e ciência política. Bahia,

1953; Teoria do estado. Rio de Janeiro, 1960); Benjamim de Oliveira Filho (Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro, 1957); Pedro Aleixo (Imunidades parlamentares. Belo

Horizonte, 1961); Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (Natureza jurídica do estado

federal. São Paulo, 1948); Celso Antônio Bandeira de Mello (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo, 1978) Francisco Campos (Direito constitucional. Rio

de Janeiro, 1956,2 v.); Dalmo de Abreu Dallari (Elementos de teoria geral do estado. São

Paulo, 1972); Antônio Sampaio Dória (Direito constitucional. São Paulo, 1953); Fábio Lucas (Conteúdo social nas constituições brasileiras. Belo Horizonte, 1959); Luiz Pinto

Ferreira (Princípios gerais do direito constitucional moderno. São Paulo, 1983); Geraldo

de Camargo Vidigal Teoria geral do direito econômico. São Paulo, 1977); Augusto Teixeira de Freitas (1816/1883; Regras de direito. São Paulo: Lejus, 2000); A. Machado

Paupério (O conceito polêmico de soberania. Rio de

Janeiro, 1955; O estado e o pluralismo jurídico. Rio de Janeiro, 1953; Teoria geral do estado. Rio de Janeiro, 1958); etc.

?<:i? 253

Page 128: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

completada separadamente por Valachia e Moldavia no princípio do

século XIX, por obra de vários juristas, dentre os quais vale recordar

C. Flechtenmacher (1785/1843), e depois renovada em forma

unitária, especialmente por de C. Bosianu (1815/1882) e Boerescu

(1830/1883), após a revolução de 1848 e a reunião da Valachia e da

Moldavia em um só Estado, ocorrida em 1859.

Parte eminente, nesse período de renovação espiritual, teve o

transilvano Semeone Barnutiu (1808/1864), professor de Filosofia

do direito em J assy, que fundou o seu sistema de direito natural

privado e público (Dreptul natural privat, 1868), Dreptul natural

public, 1870) sobre o princípio da nacionalidade, ressentindose

também do influxo dos pensadores italianos contemporâneos.

No período imediatamente posterior, é notável a figura de T.

Maiorescu (1840/1917), autor de obras filosóficas (Crítica, 1874;

Lógica, 1876, etc.), inspiradas em parte por Kant, e de estudos

jurídicos e políticos, que tiveram larga acolhida. Entre os seus

disCÍpulos podem-se recordar: Pietre P. Negulescu, autor de estudos

sobre a vida dos partidos políticos e sobre a evolução da cultura

(Partidele politice, 1926; Geneza fonnelor culturei, 1934), r.

Petrovici (Certari filosofice, 1926; lntroducere in metafizica, 1929;

etc.), S. Zeletin (Neoliberalismul, 1927), etc.

Influxo considerável sobre a moderna cultura romena em

geral exerceu o grande historiador Nicola Jorga (1871/1940).

Deram contribuição à Filosofia do direito: P. Missir

(1856/1929), escreveu sobre A filosofia do direito e o direito

natural, 1904, com tendência positivista); G. Mironescu (Estudos

jurídicos, 1912; Curs de enciclopedia dreptului, 1915; etc., também

com orientação positivista, particularmente afinado com o russo

Korkunow, v. infra). E sobretudo Micea Djuvara (1886/1944), um

dos maiores pensadores contemporâneos no campo da Filosofia

jurídica (Le

fondement du phénomene juridique, 1913; Teoria generala a

dreptului, 1930, 3.v.; Considerações sobre método indutivo na

ciência jurídica, 1931; Drept rational, izvoare si drept pozitiv,

1833; Sources et normes du droit positij, 1934; Relatividade e

direito, 1935; etc.).

Djuvara, idealista crítico, formado sobre bases neokantianas,

distancia-se, todavia, do formalismo neokantiano mediante uma

análise profunda e original da realidade do direito vivo.

Notáveis, entre os mais recentes escritores da matéria, são,

também: E. Sperantia (Problemele sociologiei contemporane, 1933;

Perspectiva istoria in viata sociala, 1934; Lectiuni de enciclopedie

juridica cu o introducere istorica in filosofia dreptului, 1936;

Princípios fundamentais de filosofia jurídica, 1936); A.

Vallimarescu (Pragmatismul juridic, 1927; Studiu asupra

raporturilordreptului cu celelalte discipline, 1929; Teoria dreptului

natural, 1930); R. Goruneanu (Ideea de drept si procesul ei de

formatiune, 1931); v. Veniamin (Problematica generala a dreptului

privat, 1932; Viata si gândirea prof rof M. Djuvara, 1945); O.

Jonescu (La notion de droit subjectif dans le droit privé, 1931;

Consideratiuni asupra nonneijuridice, 1933); P. Georgescu

(Conceptul si idea dretului in doctrina lui R. Stammler, 1939;

Privire asuprafilosofiejuridice contimporane - 1- Pozitivismul,

1941; Cercetari de filosofie juridica, 1942).

Ocupou-se especialmente de Filosofia da História A. D.

Xénopol (1847/1920); La théorie de l'histoire, 1908; etc.). Sua tese

principal é que a história é uma verdadeira ciência, traduzível em

leis abstratas, das quais, porém, não se pode derivar a previsão dos

acontecimentos futuros.

Trataram de questões sociais, com referência também ao

direito: C. Dumitrescu-Jasi (1849/1923, Doua morale, 1908); S.

Haret (1851/1912; Mecanica sociala, 1910); D. Gusti, iniciador de

um método monográfico em Sociologia (Sociologia rasboiului,

1915; Sociologia militans, 1935), D. Draghicescu (Du rôle de

l'individu dans le détenninisme social, 1904; etc.; recentemente,

com caminho em parte modificado, La nouvelle cité de Dieu, 1929;

Phiolosofie du droit et droit naturel, 1935); G. D. Scraba

254 255

Page 129: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

(Sociologie, 1914; La dialectique historique, 1922); p. Andrei

(Sociologia revolutiei, 1921, Sociologie generala, 1936); etc. '

No campo do direito civil, elevaram-se a foqnulações

filosóficas: G. Danielopol (1837/1913); M. Cantacuzino

(1864/1925; Elementele dreptului civil, 1921; La vie, le droit

et la liberté, ed. póstuma, 1929); E. Antonescu (Beziehungen

zwischen Rechtswissenschaften und moderner

Rechtsphilosophie, 1898; Scrieri juridice, 1903); A.

Radulescu (Unificarea legislativa, 1927; Tendências romenas

para o direito italiano, 1931; A jurisprudência como fonte do

direito, 1933); T. Jonascu (L'évolution de la notion de cause,

1923; etc.); A. Angelesco (La technique législative en matiere

de codification civile, 1930).

No campo do direito público, além dos já recordados: C.

Dissescu (1854/1932), Dreptul constitutional, 1892;

Introducere la studiul dreptului constitional, 1911), C. Stere,

Paul N egulescu, A. Teodorescu, R.Boila, V. Pella (penalista),

etc.

***

(Ciência do direito natural, 1813, primeira obra de Filosofia do

direito em língua húngara) e a valiosíssirnadeAVITozsil (Jus

naturae privatum, methodo critica deductum, 1833,3 v.).

As grandes reformas promovidas e acontecidas, também no

campo do direito, pela metade do século XIX (por obra de S.

Széchenyi, J. Eütvos, L. Kosuth, etc.) tiveram, entre outros efeitos,

a substituição da língua húngara pela latina, até então geralmente

usada nos tratados jurídicos e filosóficos, analogamente ao que

tinha acontecido cerca de um século antes, na Germânia e em

outros lugares. Não poucas obras modernas húngaras foram

igualmente publicadas também em alemão ou em outras línguas.

Recordemos, entre as monografias mais importantes: a de J.

Eütvos, A influência das idéias dominantes no século XIX sobre o

Estado (em alemão, 1851/1854,2 v.), onde são discutidas

profundamente as idéias de liberdade, igualdade e nacionalidade.

Outro notável pensador, T. Pauler, publicou de 1851 a 1878 obras

semelhantes (em húngaro) sobre direito natural ou racional, em

sentido kantiano. Partidário do direito natural foi ainda A Esterházy

(Manual de jurisprudênciafilosófica, em húngaro, 1897), que

criticou severamente o positivismo jurídico.

As tendências positivistas são representadas especialmente

por A. Pulszky, sua maior obra, publicada em 1885 em húngaro e

em 1888, em inglês (The theory oflaw and civil society), atesta

porém um apreciável esforço para compreender, ao lado dos

fenômenos, o valor dos conceitos e dos ideais. Mas estritamente

aderente ao positivismo empírico e utilitário foi J. Pikler

(Introdução à

filosofia do direito, em húngaro, e em 1888 im inglês, 1892, Da origem

e evolução do direito, id., 1897).

F. Somló (1873/1920) passou do positivismo ao

neokantismo. Nele inspira-se sua iportantísima Juristische

Grundlehre (1917), que permanece uma das mais finas análises

críticas dos conceitos jurídicos fundamentais.

No caminho neokantiano está igualmente o maior

representante da hodierna Filosofia do direito na Hungria, Júlio

Moór, que

Na Hungria, o direito foi objeto de tratados importantes

também em séculos não próximos. A obra fundamental de S.

Werboezy (1460/1541, Tripartitum opusjuris consuetudinarii inclyti

regni Hungariae, 1517) é notável por seu caráter sistemático. As

doutrinas mais gerais são, aí, originárias do direito romano e

coordenadas com os costumes jurídicos nacionais. As sucessivas

vicissitudes políticas e militares foram prejudiciais ao

desenvolvimento dos estudos, que refloresceram depois da

libertação dos turcos. No século XVIII, numerosos tratados foram

dedicados ao direito natural (por exemplo, as obras de W. Bossánvi,

1706; S. KOleséry, 1723; G. Lakits, 1778; etc.). Depois das

reformas de Maria Teresa, as obras do trentino C. A Martini,

professor de direito natural em Viena, fizeram-se presentes também

na Ungria.

As doutrinas filosófico-jurídicas de Kant inspiraram novas

elaborações da matéria, dentre as quais recordaremos a de J. S.

Szilágyi

256 257

Page 130: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

com várias valiosas monografias elaborou um complexo sistema

(Força, direito, moral, em alemão, 1922, Introdução à Filosofia do

direito, em húngaro, 1923, O elemento lógico no direito, em

tedesco, 1928, Sobre a paz perpétua, ido 1930, Teoria pura do

direito, direito natural e positivismo jurídico, id., 1931, Criação e

aplicação do direito, em italiano, 1934, O problema do direito

natural, em alemão, 1935, etc.). Notáveis contribuições à nossa

disciplina deu também B. Horváth, tanto do fato histórico (A

doutrina da justiça dos pré-socráticos, em alemão, 1930, A

doutrina da justiça de Aristóteles, ido 1931, etc. como do

sistemático (A idéia da justiça, em tedesco, 1928, Justiça e verdade,

id.,

1929, Introdução à ciência do direito, em húngaro, 1932,

Sociologiajurídica, em alemão, 1934, etc.).

Mencionamos ainda o estudo de T. Vas sobre o Significado

da Lógica transcendental na Filosofia do direito, em alemão, 1935.

Exerce influência considerável nos estudos húngaros de

di

reito público o sistema de Política, de V. Concha (em

húngaro, 1894/1905,2 v.) que, movido pela premissa

hegeliana, sustenta o caráter ético do Estado.

Pode-se, aqui, anotar também o nome de E. Balogh,

como autor e promotor de estudos de direito comparado, não

privados de interesse para a Filosofia do direito (cf. Acta

academiae universalis jurisprudentiae comparativae,

1928/1935).

***

Na Grécia, a dominação turca foi, por quatro séculos, um

obstáculo ao desenvolvimento do pensamento filosófico. Todavia, a

luz do glorioso passado não se apagou, jamais, inteiramete.

Na primeira metade do século XIX, especialmente depois da

revolução de 1821/1828, trataram problemas de ética e de Filosofia

do direito, N. Vambas (1770/1855) e T. KaYris (1784/1853). Na

mesma época podem-se mencionar Ph. Joannou (1796/1880), autor

de uma obra sobre direito natural (publicada por um seu dis

258

T ] HISTÓRIA

DA FILOSOFIA DO DIREITO

cípulo, em 1879); N .Kazazis, que escreveu um tratado, Filosofia do

direito e do Estado (1891/1892,3 v.), inspirado pela Filosofia

idealística alemã; B. Antoniades, que ilustrou a doutrina tomística

do Estado (1890), etc.

Em época mais recente, publicaram trabalhos dignos de nota:

F. Vallindas, inclinado ao positivismo, sob a influência de Duguit (A

ciência jurídica positiva, 193); D. Vezanis (A teoria do Estado,

1932), com igual orientação; K. Triantaphyllopoulos, que tratou os

problemas fundametnais do direito privado com método racional; e

especialmente ConstantinoTsatsos, o maior representante da

hodiema Filosofia do direito na Grécia. Ele desenvolveu o seu

pensamento em valiosas obras sistemáticas, inspiradas nos

princípios do idealismo crítico (O conceito do direito positivo, em

alemão,

1928; O problema da interpretação do direito, em grego, 1932; A

missão da filosofia do direito na civiliação contemporânea, 1933;

etc.).

Recordemos, ainda, como atinentes direta ou indiretamente à

Filosofia do direito, os escritos de E. Anastasiades (Savigny,

Jhering, Bergson, 1916; Ensaios defilosofia do direito, 1927), de P.

Bisoukides (O processo de Sócrates, 1918); de N. Poli tis (Les

nouvelles tendances du droit international, 1927); de G. Maridaki

(As correntes contemporâneas do direito internacional privado,

1927); de T.Tsatsos, seguidor de Hegel (Introdução ao direito

público, 1928); de N. Coumaros (Le rôle de la volonté daris

l'actejuridique, 1931); de G. Cassimatis (O futuro do direito

privado, em italiano, 1934); de C. Periphanakis (La théorie grecque

du droit et le classicisme actuel, 1946); e os também notáveis de P.

Zepos, A. Svolos, C. Georgopoulos, etc.

***

A Holanda tem a glória de ter dado nascimento a dois

dos maiores escritores de Filosofia do direito Grócio e

Espinosa (cf. 259

Page 131: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

supra). Mas não se pode dizer que suas doutrinas filosófico-jurídicas

(substancialmente opostas) tenham tido na Holanda especial

seguimento ou que tenham dado origem, aí, a verdadeiras escolas.

Isso, apesar de se terem difundido, com bem variada fortuna, entre

os estudiosos de todos os países, graças também à universalidade da

língua latina.

Grócio pode ser ligado à escola de jurisprudência que floriu

na Holanda, nos séculos XVII e XVIII, apenas por algumas de suas

obras menores, concernentes ao direito romano e holandês.

Alcançaram elas, nos estudos romanísticos, a primazia a que que

tinham jáchegado as escolas italiana e francesa, então em

decadência.

Entre os grandes juristas holandeses dessa época reçordamos,

por exemplo: A. Vinnen (Vinius, 1588/1657), U.Uber (1636/ 1694),

G. Voet (1647/1714), G. Noodt (1647/1725), C. Bynkershoek

(1673/1743).

Em geral, os numerosos juristas dessa escola, tão beneméritos

pelas pesquisas históricas e exegéticas, não questionaram os

conceitos fundamentais do direito, a não ser para ilustrar as noções

clássicas e as definições romanas.

Houve, todavia, algumas exceções, especialmente notáveis,

no que concerne ao direito público: Huber, na obra De jure civitais

(1672), confutou o absolutismo holbesiano, delineando uma

concepção política liberal, que antecipa de certo modo aquela

sustentada, pouco depois, por Locke; Noodt, no seu discurso De

religione ab imperio jure gentium libera (1706), defendeu a causa

da liberdade de consciência e de religião, já propugnada, dentre

outros, por Espinosa; B ynkershoek discutiu agudamente problemas

de direito internacional, por exemplo, o da liberdade do mar (De

dominio maris, 1702), propondo uma solução a respeito, inter

mediária entre as duas antitéticas, de Grócio e de Selden.

Na época seguinte, especialmente depois da codificação de

1838, preveleceu no estudo do direito o método positivo ou

meramente exegético. A perquirição crítica e filosófica somente

mais

tarde ressurgiu, em tempos bem vizinhos de nós. A tendência

empírica, realística e sociológica é representada por H. l Hamaker

(1844/1911; O direito e a sociedade, 1888)e mais recentemente por

L H. Hijmans (O direito da realidade, 1910; O dualismo da ciência

jurídica, 1933). Uma vigorosa crítica dessa tendência foi feita por

W. van der Vlugt (1853/1928; Lutando pelo direito, 1889;

Introdução geral à ciência do direito, 1924), particularmente

benemérito dos estudos de Filosofia do direito na Holanda.

Valiosos são, ainda, os escritos de H.Krabbe (1857/1936; A

teoria da soberania do direito, em alemão, 1906; A idéia moderna

do Estado, 2. ed., 1919; Exposição crítica da teoria do Estado,

1930), onde a soberania do direito é sustentada em confronto com a

soberania do Estado e a consciência jurídica é afirmada como valor

fundamental. Ao lado dessa concepção coloca-se, considerando o

direito especialmente sob o aspecto psicológico, R. Kranenburg

(Direito positivo e consciência do direito, 2. ed., 1912, 1928;

Estudos sobre direito e Estado, 1926/1932).

P. Scholten (Pensamentos sobre o direito, 1924; Parte geral

[do direito civil], 1931; Direito e justiça, 1932; Princípios da vida

social, 1934; Princípios do direito, 1935), elaborou uma notável

teoria "personalista", que admite na consciência individual, ao lado

de elementos relativos, elementos absolutos, do que se seguiriam

certas uniformidades na vida do direito. A consciência pessoal,

segundo Scholten, é, de um lado, autônoma, mas, de outro,

"teônoma", ligada à ordem divina revelada pela ética cristã.

Entre os seguidores da Filosofia néo-escolástica recordamos

J. Hoogveld (Lineamentos principais da filosofia geral do direito,

1934), L. Bender (Philosophia iuris, 1947). A idéia do direito

natural em sentido católico foi defendida também por F. Sassen

(Direito e ética, 1927), W. J. Duynstee e E. lvan der Heyden;já a

escola calvinista é representada, nessa matéria, por H. Dooyeweerd

(Calvinismo e direito natural, 1925).

De caráter sociológico são os escritos de S. R. Steinmetz (A

filosofiadnguerra, em alemão, 1907; Introdução à sociologia, 1931;

260 261

Page 132: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Escritos de etnologia e sociologia, em alemão, 3 V., 1928/1935);

igual tendência manifesta-se também nos escritos, mais atinentes ao

direito, de J. J. von Schmid (As relações entre a coletividade e o

indivíduo na evolução do pensamento sociológico, em francês,

1936; Filosofia do direito, 1937; Estudos filosófico-jurídicos e

sociológicos, 1939).

O posicionamento neokantiano (ao qual se podem ligar

também alguns dos pensadores acima nominados) é representado

especialmente por L. Polak, que dedicou agudos estudos à Filosofia

do direito penal (O sentido da retribuição, 1921; Sobre a

justificação moral da pena, em alemão, 1930).

São ainda de serem recordados os estudos sobre As noções

fundamentais do direito civil (em francês, 1892), de P. van

Bemmelen; sobre A consciência jurídica (1913) de J. Boasson,

sobre os métodos da ciência jurídica de E. M. Meijers, e outros mais

notáveis de B. M. Telders, 1. H. Carp, F. Scheltema, A Stoop, 1.

Coebergh, M. van Praag, S. A van Wien, L Kisch.

Uma apreciável atividade desenvolveu a Sociedade

Holandesa de Filosofia do Direito (Vereeniging voor Wijsbegeerte

des Rechts), fundada em 1919 (com sede em Leida), que publicou

regularmente seus Atos (Handelingen), cujo primeiro presidente foi

Van der Vlugt, ao qual sucederam Steinmetz, Krabbe e Kranenburg.

***

no do direito), seguindo um método empírico ou positivo. Uma

diversa concepção, tendente a dar à norma ética um valor

objetivo, foi sustentada porC.N. Sarcke (1858/1926), ao qual

se deve ainda um valioso livro sobre A família primitiva, suas

origens e o seu desenvolvimento (1888, ed. francesa, 1891).

Contribuições várias à Filosofia do direito deram, no

século XIX e nos primeiros decênios do século XX, AS.

Oersted, C. Bomemann, C. Goos, A Kraft, S. Christensen, V.

Bentzon, F. Dah1, C.Torp.

Particularmente notável, entre os escritores mais

recentes, é AlfRoss que, depois da obra Teoria das fontes o

direito (em alemão, 1929), inspirada nas doutrinas de Kelsen,

escreveu outras (Crítica do pretenso conhecimento prático, em

alemão, 1933; Realidade e validade na teoria do direito, em

dinamarquês, 1934), analisando os juízos de valor e

sustentando a necessiade de superar aquele dualismo pelo qual

o direito se considera como atuação no mundo empírico de

valores pertencentes ao mundo supra-sensível. Segundo a sua

opinião (que substancialmente concorda com a do suíço A

Hagerstrom), tais referências metafísicas não podem ser

aceitas senão enquanto exprimem fatos de psicologia social.

Aos problemas das origens do direito, com particular

atenção ao direito romano, dedicou profundos estudos C. W.

Westrup, indagando, com método comparativo, a formação

das noções jurídicas elementares (cf. especialmente o v. lU de

sua obra lntroduction to early roman law, 1939).

Na Dinamarca, mais que a Filosofia do direito, foram

cultivados outros ramos da Filosofia. Pensador original, assaz

conhecido também na Itália, foi S. Kierkegaard (1813/1855), que

sentiu profundamente a tragicidade dos problemas da vida interior e

traduziu a sua ânsia em fórmula subjetiva, mas não construiu um

verdadeiro sistema.

Não menos conhecido, especialmente pela sua ótima História

da filosofia moderna (traduzida em italiano por P. Martinetti), é H.

Hoffding (1843/1931), que escreveu também obras respeitáveis de

psicologia e de moral (com algumas considerações em tor

***

Na Suécia, o estudo filosófico do direito tem tadições

bastante antigas (relembre-se que Pufendorf ensinou direito natural

e das gentes, de 1670 a 1677, na Universidade de Lund; e depois em

Estocolmo, onde permaneceu outros dez anos e onde escreveu a

maior par

26

2 7h1

Page 133: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO GIORGIO DEL VECCHIO

te de suas obras). Não consta, porém, que, antes do século XIX, o

pensamento sueco tenha produzido, nessa matéria, obras originais de

algum relevo. Foram ali bem acolhidas, e lá encontraram eco, as

principais doutrinas filosóficas inglesas, francesas e alemãs.

Merece anotado que no Código geral de 1734, foram

inseridas, como preâmbulo, as chamadas "regras do juiz"

(Domareregler), uma espécie de compêndio da sabedoria juridica

popular, que remonta ao antigo reformador sueco Olaus Petri (Oloz

Petersson, 1493/1552). Por exemplo: "Um juiz bom e prudente vale

mais que uma boa lei [...] Onde há um juiz mau e injusto, uma boa

lei não ajuda, porque ele a torce e a toma injusta a seu arbítrio".

Chr. Jac. Bostrom (1797/1866), notável pensador, floresceu

na época seguinte. É autor de um sistema de Filosofia idealística,

que exerceu grande influência sobre toda a cultura sueca. A sua

concepção da sociedade é afim com a da escola histórica, mas tem

caráter filosófico mais preciso, onde pode também confrontar-se

com as doutrinas de Schelling e de Hegel. A sociedade é, ao seu

aviso, um organismo vivo, animado por uma idéia pessoal, absoluta

ou divina. Essa idéia manifesta-se no mundo empírico como norma

e escopo da atividade dos indivíduos; daqui seguem os direitos e os

deveres, aos quais a sociedade pública, ou seja, o Estado, deve dar

forma racional.

O pensamento de Bostrom teve numerosos continuadores,

entre os quais recordaremos apenas K. Claison (1827/1859), que

tratou especialmene da teoria do direito, e C. Y Sahlin (1824/1917),

o qual, desenvolvendo conceitos sobre a sociedade e o Estado,

aproximou-se mais do idealismo hegeliano.

O mais respeitável e original mestre sueco de Filosofia do

direito em nosso tempo foi Axel Hagerstrom (1868/1939), conhe

cido também como romanista (Der romische Obligationsbegriff,

I, 1927, lI, 1941; entre suas outras obras recordamos: Estado e

direito, 1904; Sobre questões do conceito do direito objetivo, 1917;

alguns outros seus ensaios foram recolhidos no v. Socialfilosofiska

Uppsatser, 1939, com introdução de M. Fries).

O pensamento de Hagerstrom tem caráter essencialmente

critico; ao seu entender, nem os deveres juridicos nem os direitos

subjetivos têm uma verdadeira realidade: reais são apenas certas

representações psíquicas e certos estados de fato. Por isso, ele se

distancia tanto das doutrinas do direito natural, como daquelas do

positivismo juridico; enquanto admite aqueles conceitos, reputa-os

não imunes de elementos jusnaturalísticos. Fora de lugar seria

discutir essas idéias aqui.

Discípulo de Hagerstrom foi V. Lundstedt, que levou às

últimas conseqüências as doutrinas do mestre, negando todo valor

científico à Jurisprudência14 e, combatendo em particular as teorias

do direito intemacioal, as quais, ao seu entender, não só não

conduziriam à paz entre os povos mas, sem dúvida, produziriam o

efeito contrário. As obras de Lundstedt, algumas das quais foram

publicadas também em inglês e em alemão (Superstition or

rationality in action for peace ? - A criticism of jurisprudence, 1925;

Die Unwissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft, 1932/1936,

etc.), suscitaram várias discussões em vários países.

Outro pensador digno de nota é K. Olivecrona, também

discípulo de Hagerstrom. Na sua obra principal (edição inglesa, Law

asfact, 1939; edição alemã, Gesetz und Staat, 1940), tentou expor a

"realidade" (em sentido empírico) do ordenamento juridico, negando

a personalidade do Estado e considerando as normas juridicas como

imperativos não derivantes de um sujeito unitário, mas da

intermitente vontade de certos indivíduos (cf. também o seu ensaio

Der Imperativ des Gesetzes, 1942). Só a existência de uma

organização coercitiva em um território determinado constituiria a

unidade de um sistema.

Questões atinentes à Filosofia do direito trataram, ainda, V.

Norstrom, R. Kjellén, E. Tegen, O.Kinberg (penalista), etc.

14 Pode-se recordar que tese semelhante tinha sido sustentada no século precedente, como já

anotamos, por Kirchmann (Die Werthlosigkeit der Jurisprudenz ais Wissenschaft,

1848), que foi refutada por Rudorff e por Stahl.

264 265

Page 134: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

*** Chamamos a atenção ainda para os valiosos estudos de P.

Sokolowski (nascido na Letônia em 1860, professor na Rússia e na

Alemanha, morto em 1934), que na sua obra A filosofia no direito

privado (em alemão, 1902/1907) ilustrou amplamente a influência

das doutrinas filosóficas gregas sobre algumas concepões jurídicas

dos romanos; e na outra obra sobre O Estado (1932) indagou

agudamente sobre os laços entre as formações políticas e as

condições gerais da cultura nos vários tempos e junto de outros

povos.

M. Laserson (professor em Riga, depois em Tel-Aviv e em

New Y ork) escreveu uma Teoria geral do direito (em russo, 1930)

e vários notáveis ensaios sobre Recht, Rechtstsseitigkeit und

Geradheit, (1921); Revolution und Recht (1929); La philosophie du

droit de Mai'monide (1937); etc.

L. Sules (também professor em Riga) escreveu, dentre outras

obras, uma monografia sobre A teoria do mínimo ético (em letone,

com resumo em francês, 1936).

Na Noruega, os estudos filosóficos tiveram certo incremento

apenas na idade moderna, especialmente depois da fundação da

Universidade de Cristiania (Oslo), ocorrida em 1811.

Numerosas obras sobre vários ramos da Filosofia escreveu N.

Treschow (1751/1833), que desenvolveu parte de sua atividade na

Dinamarca e esteve entre os primeiros a difundir as doutrinas

kantianas. A Kant atém-se ele na Ética, propugnando também pela

idéia da paz perpétua. Doutra parte, concebeu uma teoria da

evolução, pela qual mereceu o nome de precusor, e se falou a

respeito dele como de "pré-darwiniano".

Contribuições especiais para a Filosofia do direito, na

Noruega, foram dadas mais tarde por A. Eriksen (Direito e moral,

1900); A. Aall (Força e dever, em alemão, 1902); N. Gjelsvik

(Introdução ao estudo do direito, 1912); E. Solheim (Direito e

errado, 1914); A. Hoel (O mondemo método jurídico, 1925); e

outros.

Particularmente notável é F. Castberg que, na sua recente

obra Problemas fundamentais da Filosofia do direito (1939),

investigou com método crítico as relações entre a Filosofia do

direito e as outras disciplinas jurídicas, o caráter normativo e a

validade do direito, etc.

Vários indícios deixam crer que o interesse pela Filosofia do

direito esteja para crescer tanto na Noruega quanto nos outros

países nórdicos.

***

Na Lituânia, escreveram obras dignas de nota P. Leonas

(História dafilosofia do direito, 1928/1936), A. Tamosaitis (A

escola histórica do direito, 1929), e especialmente M. Roemeris (O

Estado, 1934/1935), que, tratando do Estado, põe em relevo suas

funções sociais, considerando ainda o complexo problema da

estadualização do direito.

*** ***

Para alguns escritores de outras nações acenamos apenas

incidentalmente, como o finlandês E. Westermarck, autor das

importantes obras The history ofhuman marriage (1891, ed.

italiana, 1894, com prefácio de C. F. Gabba) e The origin and

development ofthe moral ideas (1906/1908,2. ed. do li v.,

1917).

Entre os escritores da Estônia, recordamos G.v. Glasenapp, a

quem se devem alguns ensaios de história do pensamento político

(Maquiavel e o Maquiavelismo, em italiano, 1925, etc.).

26

6 ?f.7

Page 135: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

~

I

1

VISÃO DA FILOSOFIA DO I

DIREITO NOS PAISES ESLAVOS A I I

(POLONIA, RUSSIA, CHECOSLOV AQUIA, I I

IUGOSLAVIA, BULGARIA)

Na Polônia, a Filosofia do direito tem antigas tradições,

também em razão dos fecundos contactos com o pensamento latino.

No século XV, P. Wlodkowicz (morto em 1435) publicou um

Tractatus de potestate papa e et imperatoris, no qual, seguindo a

ideologia teocrática predominante da Idade Média, sustenta a

superioridade do poder da Igreja sobre o Estado; mas já com G.

Ostrorog (1430/1501), que estudou provavelmente na Itália,

anuncia-se o Renascimento, tanto pelo método racional usado por

ele, como pelo conteúdo das suas doutrinas, direcionadas a

estabelecer o princípio da soberania do Estado.

No século XVI podem-se recordar: A. Frycz, ou Fricius

(1503/1570), cuja obra Commentariorum de Republica emendanda

libri quinque (1551) foi conhecida e citada por Bodin; S. Orichovius

(1513/1566), que, tratando do Estado polaco, se inspirou nas

doutrinas políticas de Aristóteles; A. Volan, ou Volanus

(1530/1610), que no seu notável livro De liberta te politica seu civili

(1572) remontou dos problemas do direito público aos princípios do

direito natural; L.Goslicki, ou Goslicius (1530/1607), que estudou

nas Universidades de Pádua e de Bolonha e escreveu uma obra, De

optimo senatore (publicada em Veneza em 1568), onde são

examinadas as funções e os fins do Estado; G. Zamoyski, ou

Zamoscius (1541/1605), que estudou também em Pádua e escreveu

uma obra, De Senatu romano (editada em Veneza em 1563, e em

Strasburgo, em 1608). Pertencem ao século XVII: L. Opalinski

(1612/1662), autor de um tratado, De officiis, e A. 01izarowski,

269

Page 136: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

ou Olizarovius (1618/1659), autor de um Sistema de direito natural

e político; enquanto nos numerosos escritos de U. Kollataj

(1750/1812) já aparece o método histórico aplicado aos problemas

do direito.

Um movimento característico de idéias, do qual participaram

filósofos e também poetas, e tomou o nome de "messianismo"

polaco, desenvolveu-se no início do século XIX, por obra

especialmente de G. Hoene Wronski (1778/1853), A. Mickiewicz

(1798/1855), A. Towianski (1799/1878), B. Trentowski (1808/

1869),1. Slowacki (1809/1849) e outros. Buscou ele antes de tudo

produzir uma profunda renovação da consciência individual, mercê

da "autocriação" ou "descoberta do absoluto", isto é, a revelação da

eternidade e indestrutibilidade do espírito; daí um renascimento da

vida das nações, fundado sobre a confiança de que a cada uma

delas havia sido atribuída, por um desígnio divino, uma missão

própria na vida da humanidade. Deve-se advertir que, nessa

doutrina, a nação é tomada como pura unidade espiritual, ou

sociedade de crentes, e isto em um signicado nítidamente distinto

do étnico e até contrário a ele. Tal complexo de idéias e

sentimentos (que tem pontos de contato com a doutrina de

Mazzini), apesar de certa variedade de tendências, assume

particular valor para a nação polaca, enquanto lhe sustenta por

muito tempo os esforços para a desejada

redenção política, finalmente alcançada depois.

Entre as obras representativas deste movimento espiritual

indicaremos só os seguintes, escritos em francês por G. Hoene

Wronski, que pode ser considerado o fundador do movimento:

Prodrome du messianisme, révélation des destinées de l' humanité

(1831); Métapolitique messianique (1839); Philosophie absolue de

l' histoire (1852); Nomothétique

messianique ou lois suprêmes du monde (obra póstuma, 1881).

A obra de A. Cieszkowski (1814/1894), Pai nosso (v. I.

1847; v. IIJIV; póstumos, 1899/1906, tradução italiana, com o

título Os caminhos do espírito, de A. Palmieri, 1923) participa do

caráter místico, que é próprio do messianismo, enquanto se liga

também com o sistema hegeliano. Movida por uma teoria

transcendente do espírito universal, ela representa uma tentativa de

interpretar a história humana como atuação da dialética divina. O

direito é nela considerado justamente como expressão do espírito

universal, que se concretiza nas relações de fanu1ia e nação, e se

traduzirá, finalmente, na "Igreja da Humanidade", ou "do Espírito

Santo", e isto na união e na paz eterna entre as nações.

Outros autores polacos, na era moderna, deram, em vários

sentidos, contribuições não descuráveis à Filosofia do direito. L.

Gumplowicz (1838/1909), professor em Graz, desenvolveu em

numerosas obras (Philosophisches Staatsrecht, 2. ed., 1877, com o

título Allgemeines Staatsrecht, 1897; Der Rassenkampf, 2. ed., 1883,

1909; Grundriss der Sociologie, 1885; Die socioligische Staatsidee,

2. ed., 1892, 1902, tradução italiana com o título O conceito

sociológico do Estado, de F. Savorgnan, 1904; etc.) uma concepção

naturalística do Estado, considerado como mero poder de fato,

resultante da luta entre raças diversas (a palavra "raça" foi entendida

por Gumplowicx primeiro no sentido antropológico, depois no

sentido mais lato de grupo ou unidade social). O direito exprimiria,

portanto, a relação de predomínio, estabelecido em virtude dessa

luta, a qual continuaria, porém, a desenvolver-se no Esdado, como

luta entre as diversas classes sociais.

L. Petrazycki (1867/1931; de 1899 a 1917, professor em

Pietroburgo e, em 1919, em Varsóvia) elaborou uma teoria do

direito sobre bases psicológicas, analisando especialmente os

motivos do agir humano e considerando a consciência jurídica

individual como fator da fenomenologia social. As idéias diretivas

de suas obras, escritas na maior parte em língua russa (Sumário de

filosofia do direito, 1900; Introdução à ciência do direito e da

moral, 3. ed., 1909; Teoria do direito e do Estado, 2. ed., 1907,

1909/1910), são compendiadas no breve ensaio Sobre os motivos do

agir e sobre

a essência da moral e do direito, publicado, além do russo, em

polaco e também em alemão (1907).

Entre os mais recentes cultores polacos da Filosofia do

direito, recordemos: E. Jarra (Teoria geral do direito, 2. ed., 1920,

270 271

Page 137: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

1922; História da filosofia do direito, 1923; etc.); A. Peretiatkowicz

(Afilosofiajurídica de J. J. Rousseau, 1913; Novas correntes na

jurisprudência, 1921; etc.); J. KoschembahrLyskowski, conhecido

também como romanista (A noção do direito, 1911); J. Reinhold (À

procura do direito igual, 1911); W. Maliniak (Contribuições à

metodologia e àfilosofia do direito, 1917); E. Krzymuski (História

dafilosofia do direito, 1923); J. Lande, seguidor das opiniões de

Petrazyki (Objeto e método da

filosofia do direito, 1916; Norma e fenômeno jurídico, 1925); S.

Rundstein, adepto da escola de Kelsen (A interpretação do direito e

ajurisprudência, 1916; Princípios da teoria do direito, 1924;

Direito internacional púlico efilosofia do direito, 1933;

Observations sur ia structure du "juridique", 1937); C.

Znamierowski (Noçõesfundamentais da teoria do direito, 1924;

Prolegômenos da ciência do Estado, 1930); H. Pietka (A eqüidade

na teoria e na prática, 1920); E. Bautro (O sentimento juídico,

1925), Z. Lubienski, autor de vários escritos sobre Hobbes; W.

Bitner (Princípios de direito, 1932); S. Drucks, S. Chelinski; etc.

Trataram especialmente da Filosofia do direito penal: 1.

Makarewicz (Introdução àfilosofia do direito penal, em alemão,

1906); W. Makowski (Fundamentos dafilosofia do direito pe

nal, 1917); B. Wroblewski (Introdução à política criminal, 1926;

Estudos sobre direito e ética, 1934); S. Glaser (A idéia de justiça

no direito penal, 1929); etc.

Também alguns eminentes cultores de vários ramos do

direito positivo, como S. Golab e W. Jaworski, deram contribuições

àFilosofia do direito (do primeiro recordamos, por exemplo, os

ensaiosAsformas das proposições jurídicas, 1920; A essência da

pessoa jurídica, 1916; Teroria e técnica da codificação, 1930.

Prevalentemente de caráter sociológico são os escritos de

W. M. Kozlowski (1859/1935).

Insta notar que alguns desses autores publicaram parte de

suas obras, ou compêndios delas, em alguma das línguas européias

mais geralmente conhecidas, inclusive a nossa.

272

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

***

Uma olhada, agora, nos autores russos.

A.W.Kunizin (1788/1840) escreveu uma obra sobre Direito

natural (1818/1820), inspirada nas doutrinas kantianas.

Mais original, não obstante certos influxos hegelianos, é a

obra de K. N. Njewolin (1806/1855; professor em Kiew e em

Pietroburgo) Enciclopédia da ciência jurídica (1839/1840) cujo

segundo volume contém uma história da Filosofia do direito. O

direito é definido como "a expressão da justiça, a qual consiste na

atuação do ser divino no mundo moral". No direito ele reconhece,

portanto, um elemento necessário e absoluto, ao lado de um

contingente e particular.

B. Cicerin (1828/1904), professor em Moscou, é

especialmente notável por uma História das doutrinas políticas

(1868/1877, 5 v.), além de outros escritos jurídicos e filosóficos

(Curso da ciência de Estado, 1897,3 v.; Sociologia, 1898; etc.).

W. S. Ssolowjew (1853/1900) escreveu várias obras

filosóficas, algumas das quais concernentes à Filosofia do direito

(História e futuro da teocracia, 1886; Direito e moralidade, 2. ed.,

1897, 1899), inspiradas em uma forma de misticismo ascético, que

encontra comparação na primitiva literatura cristã, mas nenhuma na

moderna Filosofia ocidental. É considerado o mais original dos

filósofos russos. Somente uma resenha de suas obras foi publicada

na França (1910) e na Germânia (1914, 1922).

A. Spir (1837/1890), tendo vivido muitos anos na Alemanha

e na Suíça, tratou com originalidade de visão, os maiores problemas

da Filosofia geral, tentando construir uma nova síntese, fundada

sobre a crítica do conhecimento. À Filosofia do direito dedicou uma

obra (Direito e errado, 1879), edição italiana, com o título A

justiça, 1930, inspirada em um racionalismo individualístico, de

derivação kantiana.

N. M. Korkunow (1853/1902; em 1878, professor em

Pietroburgo) escreveu, além de importantes obras sobre direito

público russo, uma História da filosofia do direito (4. ed., 1908, não

273

Page 138: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

traduzida) e um ótimo Curso de teoria geral do direito (5. 00., 1887,

1898, tradução francesa, 1903, inglesa, 2. ed., 1909, 1922). Nele os

principais conceitos juridicos são expostos com clareza e às vezes

com profundidade, prevalentemente na base da observação histórica

e positiva; falta-lhe, porém, um adequado conceito do direito

natural.

S. Pachmann (1825/1902), professor em Kasan, Charkow e

Pietroburgo, autor também de notáveis obras civilísticas,

particularmente sobre direito consuetudiário) defendeu, com a

monografia Sobre o presente movimento da cienciajurídica (1882,

também em edição alemã) a autonomia científica da jurisprudência

contra várias tendências naturalísticas e sociológicas.

A. D. Gradowski (1841/1889; professor em Pietroburgo), de

tendências hegelianas, tratou especialmente os problemas do direito

público e da nacionalidade, ressentindo-se, sob esse ponto, da

influência de Fichte.

S. Muromzeff (1850/1910, professor em Moscou), partidário

do positivismo, considerou o direito como fenômeno social, relativo

à tutela de certos interesses, avizinhando-se, assim, da teoria de

Ihering e buscando aperfeiçoá-Ia.

Semelhantes concepções foram sustentadas também por J. S.

Gambaroff e outros.

G.v. Plechanow (1856/1918) inspirou-se nas doutrinas de

Marx e tratou os problemas sociais e políticos mais sob o aspecto

econômico que sob o jurídico. M. Kowalewski (1851/1916), que, ao

contrário, em política representou o liberalismo progressista,

escreveu obras notáveis de sociologia e de direito comparado,

seguindo o método indutivo.

Embora não pretendesse elaborar conceitos jurídicos, as

doutrinas pacifistas e humanitárias do grande escritor L. Tolstoi

(1828/1911) exerceram certo influxo sobre cultores da Filosofia do

direito em diversos países (por exemplo, sobre o espanhol P. Dorado

Montero, adiante recordado). Culminavam em uma espécie de

moralismo antiestatal, que remonta aos princípios do cristianismo

para combater a violência em todas as suas normas.

274

....... I

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

É assaz diferente pelo método, mas igualmente movida por

aspirações humanitárias a obra sociológica de G. Novicow

(1851/1912), Crítica do darwinismo social (edição italiana, 1910,

etc.), que tende sobretudo a mostrar, sob a base de observações

históricas e econômicas, que a guerra deveria ser abolida e

substuída pela federação entre os povos.

Agitadores de idéias políticas em sentido diretamente

revolucionário foram A. Herzen (1812/1870), M. Bakunin

(1814/1876), P. Kropotkin (1842/1921). Suas atividades passaram

da lutacontra o regime czarista à luta contra os governos em geral;

também contra a idéia mesma do Estado. Em especial, os dois

últimos tentaram dar uma justificação teórica do anarquismo. Falta,

porém,

em geral, a esses pensadores aquela imparcial serenidade e aquela

ordem sistemática, que são condições preliminares de todo

verdadeiro filosofar.

Os problemas próprios e fundamentais da Filosofia do direito

foram recentemente tratados em obras também importantes mas

infelizmente conhecidas por nós apenas em parte ou indireta

mente -, dos seguintes autores russos: P. Novgorodzeff, professor

em Mosca e em Praga, morto em 1924 (Kant e Hegel nas suas

doutrinas do direito e do Estado, 1901; A crise da consciência

jurídica moderna, 1909; Ideais políticos do mundo antigo e

moderno, 1910; O ideal social, 1917; etc.), que sustenta o direito

natural; W. M. Hessen, professor em Pietroburgo, morto em 1919

(O renascimento do direito natural, 1902; A ciência do direito,

1903) e E. Trubetzkoi, professor em Moscou (Lições sobre a

Enciclopédiajurídica, 1907; Lições sobre história dafilosofia do

direito, 1909), igualmente defensores do direito natural; G.

Scersceniewicz, oriundo polaco (1863/1912) professor em Kasan e

em Moscou (História da filosofia do direito, 1907; Teoria do

direito público, 1910/1912); N. Palienko, professor em Charkow

(Soberania, 1908; Objeto e limites da teoria jurídica do Estado,

1912), que criticou o jusnaturalisno e também o psicologismo

juridico, representado em especial pelo polaco Petrazycki (então

professor em Pietroburgo; dele damos notícia entre os escritores

polacos);

275

Page 139: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

M. Reissner, professor em Moscou, morto em 1928 (A teoria

de L. Petrazycki; O marxismo e a ideolocgia social, 1908; O Estado,

2. ed., 1918), que, seguindo o método psicológico, tentou explicar a

gênese das ideologia sociais distinguindo em um mesmo Estado

diversos sistemas jurídicos coexistentes; W. A. Ssawalski, professor

em Varsóvia, morto em 1916, seguidor de um idealismo

neocriticista (As bases da filosofia do direito no sistema do

idealismo transcendental, Moscou, 1908); 1. W. Michailowski

(Lineamentos de filosofia do direito, 1913); B. Kistjakowsky, morto

em 1920, neokantiano (As ciências sociais e o direito, 1915); N.

Alexeiev, partidário de uma orientação fenomenológica (Introdução

ao estudo do direito, 1918; As bases dafilosofia do direito, 1923;

L'acte

juridique créateur comme source prima ire du droit, 1934); L Ijin

(Força e direito, 1910; Sobre a consciência jurídica, 1923), que

combateu as doutrinas de Tolstoi e o comunismo; B. Vycheslavzeff

(Os fundamentos da etica de Fichte, 1914; A ética do amor sublime

- A lei e a graça, 1931), que sustenta uma concepção mística e

neoplatônica; L. Karsawin (Filosofia da história, 1923), que se

fundou sobre conceito do "espírito popular", entendido,no sentido

metafísico. A. Gorovtseff (Estudos de principiologia do direito, em

francês, 1928), que analisou as noções de sujeito e de objeto do

direito; N. S. Timacheff (Introduction à Ia sociologie juridique,

1939), que estudou as transformações do direito e do poder como

fenômenos sociais.

Escritos de vários autores russos (N. Alexejev, N. Berdjajev,

etc.) estão recolhidos no volume Kirche, Staat und Mensch, editado

em Genebra em 1937.

Recordemos ainda os escritos, pertinentes especialmente ao

direito público, de A. Koulicher (La multiplicité des sources en

droit constitutionnel, 1934; etc.). Já acenamos para outros autores

de origem russa (como Vinogradoff, Gurvitch, MirkineGuetzévich,

De Roberty, etc.).

A revolução bolchevista turbou profundamento o

desenvolvimento da ati vidade científica e filosófica na Rússia,

constrangendo

276

~

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

numerosos pensadores (os já nominados e outros que nominaremos

mais adiante) a abandonar a pátria. Ao mesmo tempo, o novo

regime, instaurado sobre as ruínas do precedente, não parece que

tenha, até agora, pelo que sabemos, reflexos consideráveis e

verdadeiramente originais nas elaborações teóricas do direito.

O livro de N. Lenin (W. Uljanoff, 1870/1924), Estado e

revolução (1917), é de inspiração diretamente marxista. Todavia, as

tentativas de revisão das noções jurídicas, como as de P. L Stucka

(A função revolucionário a do direito e do Estado, 3. ed., 1924;

Introdução à teoria do direito civil, 1927) e de E. Paschukanis

(Doutrina geral do direito e marxismo, 3. ed., 1927, edição alemã,

1929), pressupõem, como demonstrada, a tese do materialismo

histórico ou determinismo econômico e têm um significado mais

negativo que construtivo, tendendo a uma desvalorização não só do

direito individual, mas do direito em geral.

Não obstante, com certeza, de esperar-se que um povo tão

altamente dotado, como o russo, reunirá outras grandes

contribuições, mesmo sobre a base das novas experiências sociais,

às jádadas para o desenvolvimento da Filosofia do direito.

***

Nos países que recentemente constituíram a

Checoslováquia, os estudos de Filosofia do direito tinham

alcançado certo incremento bem antes da unificação ao

Estado. Influências notáveis foram exercidas sobre o

pensamento da Boêmia já desde o Renascimento italiano. Em

seguida à Reforma (Rus), prevaleceu a influência germânica, à

qual se seguiu, em tempos recentes, a francesa e a inglesa

(positivismo). Em geral, as lutas religiosas, e especialmente a

rigorosa reação da Contra-Reforma, que predominou por três

séculos, foram de obstáculo ao formar-se e ao desenvolver-se

de uma tradição filosófica nacional; esta se delineia

claramente apenas na metado de século XIX.

Lugar eminente merece a obra, vasta e múltipla, de T.

G. Masaryk (1850/1937), que representa uma espécie de

síntese do 277

Page 140: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

positivismo ocidental com o misticismo eslavo. Entre os seus

numerosos escritos, recordemos aquele sobre as bases do marxismo

(Die philosophischen und sociologischen Grundlagen des

Marxismus, 1899), longamente discutido, dentre outros, por Antonio

Labriola (O materialismo histórico, 2. ed., 1902, p. 133-156). Os

problemas da FIlosofia do direito são tocados especialmente no

ensaio O direito natural e o direito histórico (1900), onde Masaryk

reagiu contra a exagerada importância atribuída à tradição histórica,

e afirma o direito natural como uma soma de ideais éticos humanos

(maximum etico) do atuar-se no direito positivo (minimum ético).

Com essa concepção liga-se o seu programa político, defendido mais

com fatos que com o pensamento, e inclinado antes

de tudo a reivindicar a liberdade nacional (como direito natural).

Dignos de nota são também os seus ensaios sobre democracia e

contra o bolchevismo (recolhidos no volume Les problemes de Ia

démocratie, 1924).

Ideais humanitários foram defendidos por F. M. Klácel

(1808/1882), que, emigrado da América do Norte, fundou uma

comunidade de caráter cosmopolítico (positivismo ético). Gustavo

Lindner (alemão de origem, 1828/1887), acolhendo a teoria da

evolução de Darwin e antecipando em parte Spencer, tratou de

Psicologia social (Ideen zu einer Psychologie der GeseUschaft,

1871), além de outros ramos da Filosofia, que aqui podemos deixar

de lado (pedagogia, etc.). 1. Durdík (1837/1902), inspirado

principalmente

em Herbart, traçou uma classificação das ciências, pondo de lado as

ciências do mundo externo e as do mundo interno, e rafirmando

então, em oposição a Comte, a necessidade da introspecção. A

doutrina da sociedade (Sociética) fundar-se-ia, ao seu entender,

sobre as

ciências de caráter normati vo e sobre a Psicologia.

A escola de Krause teve um notável representante em H. v.

Leonhardi (1809/1875), que, nascido na Alemanha, desenvolveu

em Praga a sua principal atividade, organizando ali também o

primeiro congresso internacional de Filosofia (1868). Desse

Congresso tirou oportunidade para defender a paz e promover uma

concilia

278

"""

11'

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

ção, também religiosa, entre os povos. Dedicou ele uma

monografia especial para demonstrar a importância, teórica e

prática, da Filosofia do direito (Die hohe Bedeutung der

neueren Rechtsphilosophie,1874).

F. Drtina (1861/1925), discípulo de Lindnere de

Masaryk, escreveu uma vasta obra sobre a evolução do

pensamnto europeu (1902), indicando especialmente no

Cristianismo as bases dos direitos do homem e dos ideais

éticos afirmados na era moderna. Não vamos nos deter em

outros pensadores (como F. Krejcí, F. Cáda, etc.), que têm

importância quase exclusivamente para a Fi10sofia teórica.

Deram importantes contribuições à Filosofia do direito,

em tempos recentes, F. Weyr e J. Kallab, ambos de tendência

neokantiana. O primeiro elaborou uma teoria do conhecimento

jurídico, que é intimamente relacionado com a "doutrina pura

do direito" de Kelsen. Já no seu escrito Sobre o problema de

um sistema jurídico unitário (em alemão, 1909), Weyr

combateu a distinção entre direito público e privado, visando

depurar a construção jurídica dos elementos históricos,

políticos e sociológicos estranhos a ela.

Tema fundamental é aquele segundo o qual o direito

pertence ao mundo do dever ser, nitidamente distinto do ser

(idealismo crítico). Esta concepção Weyr a desenvolveu nas

suas obras Fundamentos da filosofia do direito (em checo,

1920), La théorie normative (1925), La notion de processus

juridique dans Ia théorie pure du droit (1931), etc.

Também Kallab tratou especialmente dos problemas

metodológicos da ciência jurídica, sobre bases da Filosofia

crítica, em antítese aos métodos histórico e sociológico. Suas

divergências de Weyr são relativamente secundárias. Entre

seus escritos, são notáveis: A "natureza" na Filosofia do

direito do século XIX (em checo, 1915); Introdução ao estudo

dos métodos jurídicos (2 v. em checo, 1920/1921); O objeto

da ciência jurídica (em italiano, 1922); Quelques

renseignements sur Ia méthodologie

279

Page 141: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

des sciences juridiques puisés dans la doctrine de la classification

des sciences (1930); Le droit et la politique (1934); etc.

Ensaios valiosos escreveu também J. Sedlacek (O conceito

rea/ístico e o conceito normológico da norma jurídica, em italiano,

1933; Interprétation et application de la regle de droit, 1933; etc.),

com análoga orientação metodológica, que se pode dizer

caracteóstico da escola de Bmo, à qual pertencem os três pensadores

nominados pelo último.

Deu iguais contribuições à História da Filosofia do direito B.

Tomsa (A moderna filosofia do direito italiano, em checo, 1921; A

idéia dajustiça e do direito na filosofia grega, em checo, 1923;

Fundamentos filosóficos da teoria do direito e do Estado de Cícero,

também em checo, 1924), que, mais recentemente, tratou ainda

problemas de caráter sistemático (Teoria da ciênciajurídica, em

checo, 1946).

Poder-se-iam recordar ainda os trabalhos de Em. Svoboda (O

homem e a sociedade, em checo, 1926; A democracia como

concepção da vida e do mundo, também em checo, 1927, etc.) e de

outros, que omitimos por brevidade.

***

Damos agora um breve aceno aos povos que compõem a

atual luguslávia. Junto as Sérvios, uma certa reflexão filosófica

sobrfe o direito delinea-se, porém sem muita originalidade, no início

do século XIX, paralelamente à revolução que libertou a nação

sérvia dos Turcos (1804/1815).

Os autores desse período (B. Grujovic, J .Stejic) seguiram em

geral as doutrinas do direito natural. Sucessivamente se acrecenta a

influência da escola hegeliana e de outras, como a escola histórica

do direito, e a italiana, que teve por Chefe Mancini.

Como primeira obra sistemática de Filosofia do direito,

podese indicar o Tratado de T. Filipovic (1819/1876); Filosofia do

direito, 2. ed., 1839, 1863), que se inspira nas doutrinas germânicas.

280

,..

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Semelhante inspiração nota-se ainda na obra de D. Matic

(1821/ 1884), Princípios de dieito racional público, 1851).

***

Entre os croatas, merecem menção M. Mikulcic, autor de uma

Enciclopédia da ciência jurídica (1869), e especialmente V. Bogisic

(1834/1908), que, seguindo o método histórico-etnográfico, recolheu

os costumes jurídicos da Eslávia meridional.

Entre os eslovenos emerge, no início do século XVIII, o

estadista F. Pe1zhofer, que em várias obras (latinas) buscou

conciliar a Ética e a Política sobre base religiosa. Durante o século

XIX, tiveram certo acolhimento as teorias jusnaturalistas,

frequentemente em conexão com ideologias dos partidos políticos.

Desse movimento de idéias participou, dentre outros, G.

Krajnc (Krainz - 1821/1875), conhecido especialmente pelas

atividades que exerceu na elaboração do direito civil austríaco

(Sistema do direito privado austríaco, edição póstuma, em alemão,

1885).

Manifestações muito notáveis nas doutrinas jurídicas,

políticas e sociais teve ainda o pensamento neotomístico G. E. Krek

(O socialismo, em esloveno, 1901), A. Usenicnik (Sociologia, em

esloveno, 1910, etc.).

***

Nos anos mais próximos de nós, os estudos de Filosofia do

direito fizeram na luguslávia progressos consideráveis.

Entre os pensadores que trataram com independência e

espírito cótico os problemas desta disciplina, recordemos: G. Tasic

(A teoria moderna sobre conceito de direito subjetivo, em sérvio,

1926, Le réalisme et normativisme dans la science juridique, 1927,

O direito positivo como valor e o direito natural, em italiano, 1930,

Introdução à ciência do direito, em sérvio, 1933; Justice, intérêt

général et paix sociale, 1938); S. Jovanovic (O

281

Page 142: Giorgio Del Vecchio - Historia Da Filosofia Do Direito (2010) - SC

GIORGIO DEL VECCHIO

Estado, em sérvio, 1922; Platão, Maquiavel, Burke, Marx., em

sérvio, 1935); J. Peric (Um olhar para a escola evolucionista

na ciência jurídica, em sérvio, 1908; De la matérialisation des

droits privés, 1915; Sobre as escolas no direito, em sérvio,

1921; L'injluence du temps sur les rapports de droit, 1927; Os

elementos não jurídicos no direito, em italiano, 1934; e outros

escritos em prol do ideal da paz). L. Pitamic, que deu várias

contribuições à teoria pura do direito, segundo o

posicionamento de Kelsen; T. Givanovic (Sisteme de la

philosophie juridique synthétique, 1927; Les problemes

fondamentaux du droit criminel, 1929); S. Frank (Vida, direito

e filosofia, em croato,

1924); N. Katicic (Estado e direito, emcroato, 1927); B.

Markovic (Éssai sur les rapports entre la notion de justice et l'

élaboration du droit privé positif, 1930); B. Furlan (Os

princípios naturais do direito, em esloveno, 1931; O problema

da realidade do direito, em esloveno, 1932, etc.).

Podem, enfim, ser mencionadas, aqui, as obras

publicadas na Iugoslávia por dois pensadores russos para lá

emigrados, T. Taranovski (1875/1936); Enciclopediajurídica,

em sérvio, 1923, já publicada em russo, em 1917) e E.

Spectorski (História dafilosofia social, em esloveno,

1932/1933,2 v. ***

Na Bulgária a Filosofia do direito foi representada

principalmente por V. Ganev, que em numerosos trabalhos

submeteu a aguda análise a natureza e a formação das noções

jurídicas (normativas), distinguindo-as das noções científicas.

As noções jurídicas, segundo Ganev, consituem síntese

especial da realidade social, e pelos elementos ideais próprios

tendem a determinar a evolução futura desta realidade. De seus

escritos, além daqueles em língua búlgara (Noções jurídicas, 1904;

Relações jurídicas e institutos jurídicos, 1911; Curso de teoria

geral do direito, 1921/1926, etc.), recordamos os seguintes, editados

em italiano e em fracês: O Estado como realidade coletiva

~82

---.......

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

(1922); Síntese científica e síntese jurídica (1926); Les notions

juridiques (1930); Les sources du droit positif(1934); Lafinalité et

le droit (1938).

Valiosos são também os ensaios de Z.Torbov: Filosofia do

direito ejurisprudência (1930); O princípio fundamental do direito

- Diréito e justça (1940); Racionalismo e empirismo na ciência

jurídica (1943); Direito natural e filosofia do direito (1947); e o de

A.llkov, O problema da essência do direito (1940).

Entre os juristas búlgaros que se elevaram à consideração de

ordem filosófica, notamos o intemacionalista M. Popoviliev (Enci

clopédia e teoria geral do direito, 1905; Direito e justiça na

sociedade internacional, 1910; Naturezajurídica do direito in

ternacional, 1910; e o civilista L. Dikov (O direito civil e o futuro,

1931; Norma jurídica e vontade privada, 1934, estes dois trabalhos

editados em italiano).

Outros ensaios, concementes a várias matérias, mas não sem

pertinência com a Filosofia do direito, escreveram recentemente S.

Bolcev, W. Alexiev, L. Vladikin, S. Zancov, I. Apostolov,

D.B.Rainov, D. Liulinov, T. Gabrovski, etc.15

15 Estudiosos de todas, ou de quase todas, as nações têm participado das atividades do

Instituto Internacional de Filosofia do Direito e de Sociologia Jurídica, fundado, como

acima dissemos, em Paris, em 1933. Ele tem publicado trabalhos de suas três seções (os primeiros dos quais se deu em Paris, e a terceira, em Roma, em 1937)

sobre os seguintes temas: Le probleme des sources du droit positif(19~4), Droit, morale,

moiurs (1936), Le but du droit: bien commun, justice, sécurité (1938, edição síria). A atividade desse Instituto, como de todas as outras organizações análogas, foi

interrompida durante a Segunda Guerra Mundial. Mas a necessidade

da colaboração internacional, especialmente no campo dos estudos filosófico-jurí dicos, é tão manifesta, pela índole mesma dos problemas tratados, que essa coope

ração deverá, sem dúvida, ser retomada e desenvolver-se sobre bases ainda mais

amplas e com meios ainda mais eficazes do que os usados até agora.

283