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GOIACIRA NASCIMENTO SEGURADO MACÊDO A construção da relação de gênero no discurso de homens e mulheres, dentro do contexto organizacional Orientadora: Drª Kátia Barbosa Macêdo Universidade Católica de Goiás 2003

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  • GOIACIRA NASCIMENTO SEGURADO MACDO

    A construo da relao de gnero no discurso de homens e mulheres, dentro do contexto

    organizacional

    Orientadora: Dr Ktia Barbosa Macdo

    Universidade Catlica de Gois 2003

  • GOIACIRA NASCIMENTO SEGURADO MACDO

    A construo da relao de gnero no discurso de homens e mulheres, dentro do contexto

    organizacional

    Este trabalho foi apresentado como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia Social, Universidade Catlica de Gois, sob a orientao da Prof Dr Ktia Barbosa Macdo.

    Universidade Catlica de Gois 2003

  • Dedico este trabalho ao meu esposo, Welsom, e a meus filhos, Renan e Eloah, pela compreenso, cumplicidade e companheirismo, com minhas desculpas por tantas horas roubadas de seus convvios. Os fins justificam os meios diz Maquiavel, e o amor justifica suas existncias.

    AGRADECIMENTOS

  • Sem dvida na hora dos agradecimentos que a gente se d conta de que um trabalho, aparentemente solitrio, fruto do apoio e colaborao de vrias pessoas. O sabor da vitria s tem sentido se pudermos compartilh-la com aqueles que nos ajudaram na caminhada e, neste momento, queremos expressar os nossos agradecimentos:

    minha famlia e, mais especificamente, ao meu pai Goiaz e a minha me Jenecy, que me ensinaram valores e virtudes, como tica, companheirismo, comprometimento social e coragem e me fizeram acreditar que os estudos eram a grande herana que eles deixariam para mim.

    Dr Ktia Barbosa Macdo, minha orientadora, que, com sua sabedoria e pacincia, soube valorizar o desejo de uma orientanda, ensinando-me que o processo de construo do saber se faz na cotidianidade do fazer. A voc que demonstrou que afeto e competncia esto intrinsecamente ligados ao processo de aprendizagem e de criatividade, agradeo por ter tido a oportunidade de caminhar ao seu lado.

    Dr Anita Cristina Rezende, pela participao na banca de qualificao deste trabalho, e por ter compartilhado comigo os primeiros passos deste estudo, quando era ainda uma inteno esboada em um projeto de pesquisa, e por ter ajudado a aprimorar as minhas idias. Suas sbias discusses me proporcionaram momentos de maior lucidez e sabedoria, que me orientaram em direo ao meu objeto e na produo deste conhecimento cientfico.

    Aos professores do mestrado em Psicologia Social que, com suas discusses e contribuies tericas propiciaram um espao de transposio do senso comum ao conhecimento cientfico, construindo uma relao de ensino aprendizagem participativa, reflexiva e crtica.

    Aos colegas de mestrado, em especial, Cssia e Daniela, que tanto me instigaram e me ajudaram com suas reflexes e questionamentos a definir um melhor recorte para minha pesquisa.

    Ao meu amigo e professor de ingls Hermes, que me apoiou e me incentivou a perseguir esse sonho. Agradeo por ter me ensinado que preciso ousar e se superar a cada instante, quando se deseja conquistar e concretizar os desejos.

  • organizao na qual esta pesquisa foi realizada, especialmente diretoria e aos colaboradores, homens e mulheres que, ao concordarem em participar e colaborar, viabilizaram a realizao deste estudo.

    Fundao Carlos Chagas, particularmente Vivian, bibliotecria, que no mediu esforos para me atender, conseguindo os materiais de consulta solicitados.

    Universidade Catlica de Gois, especialmente ao Programa de ps-graduao em Psicologia.

    A todos aqueles que direta ou indiretamente acompanharam o desenvolvimento deste trabalho e torceram pelo seu xito, que por ventura no tenham sido aqui citados.

    A Deus, que me deu a vida e com ela a riqueza dos seus dons, tais como, a inteligncia e a sensibilidade, sem os quais este trabalho no seria possvel.

  • AGRADECIMENTO ESPECIAL

    Ao meu esposo, Welsom, que no mediu esforos para me auxiliar na confeco dos grficos apresentados neste trabalho, desenvolvendo para isto um programa especfico, procurando resolver cada problema que, por ventura, surgia no Windows e que s vezes fugia da minha competncia. Por sua pacincia infindvel nos meus momentos de angstia, procurando sempre me valorizar e encorajar. Pela compreenso e pelo respeito com relao ao meu percurso escolhido.

  • SUMRIO

    Dedicatria ....................................................................................................................... i Agradecimentos............................................................................................................... ii Agradecimentos Especiais ............................................................................................. iv Sumrio............................................................................................................................ v Resumo............................................................................................................................ ix Abstract............................................................................................................................ x

    INTRODUO............................................................................................................... 1

    Captulo I Do Feminismo ao Gnero: A Construo e Conscincia de um Objeto de

    Estudo ................................................................................................................... 11 Percurso de uma Histria (In) Visvel ................................................................... 12 O Movimento Feminista no Brasil ........................................................................ 21 Construo Histrica da Categoria Gnero ........................................................... 23 Principais Abordagens de Estudos de Gnero....................................................... 27

    Captulo II Gnero e Trabalho ........................................................................................................ 31

    Trabalho: uma categoria de anlise ....................................................................... 32 Trabalho Feminino: novas conquistas e/ou velhas discriminaes....................... 41 Diviso Sexual do Trabalho e Precarizao .......................................................... 49

    Captulo III O Reflexo da Cultura no Contexto Organizacional................................................... 55

    A Cultura na Constituio das Prticas Organizacionais ...................................... 56 Ideologia: discurso naturalizador e o processo de excluso social ....................... 66

  • Captulo IV Consideraes Metodolgicas ...................................................................................... 77

    Explicitao do Caminho Metodolgico Percorrido na Pesquisa ......................... 78 Espao da Pesquisa................................................................................................ 81 A Populao Pesquisada........................................................................................ 83 Procedimentos ....................................................................................................... 86 Tcnica de Anlise de Dados ................................................................................ 88

    Captulo V A Construo de Gnero no Discurso de Homens e Mulheres no Contexto

    Organizacional..................................................................................................... 93

    CONSIDERAES FINAIS ..................................................................................... 135

    REFERNCIAS.......................................................................................................... 144

    ANEXOS...................................................................................................................... 159 Anexo 1 ............................................................................................................... 160 Anexo 2 ............................................................................................................... 161

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela I ........................................................................................................................... 95 Tabela II .......................................................................................................................... 96 Tabela III......................................................................................................................... 96 Tabela IV ........................................................................................................................ 99

  • LISTA DE GRFICOS

    Grfico I.......................................................................................................................... 98 Grfico II....................................................................................................................... 101 Grfico III ..................................................................................................................... 102

    Grfico IV ..................................................................................................................... 103 Grfico V ...................................................................................................................... 106 Grfico VI ..................................................................................................................... 108 Grfico VII.................................................................................................................... 110

    Grfico VIII .................................................................................................................. 112 Grfico IX ..................................................................................................................... 113

    Grfico X ...................................................................................................................... 115 Grfico XI ..................................................................................................................... 116 Grfico XII.................................................................................................................... 118 Grfico XIII .................................................................................................................. 120

    Grfico XIV .................................................................................................................. 123 Grfico XV ................................................................................................................... 125 Grfico XVI .................................................................................................................. 126 Grfico XVII................................................................................................................. 127

    Grfico XVIII ............................................................................................................... 129 Grfico XIX .................................................................................................................. 131

  • RESUMO

    Considerando o crescente aumento da insero da mulher no mundo do trabalho, realizou-se esta pesquisa com o objetivo de buscar apreender como a relao de gnero construda no discurso de homens e mulheres dentro do contexto organizacional, bem como analisar as construes ideolgicas baseando-se na constituio desses discursos, o papel da cultura organizacional dessas constituies e como as relaes de poder se manifestam dentro do contexto organizacional. Tratou-se de um estudo de caso realizado com trabalhadores/as de uma indstria farmacutica, em decorrncia de a mesma absorver um grande nmero de mulheres em seu quadro operacional. Participaram da pesquisa dezesseis empregados, sendo oito (8) do sexo masculino e oito (8) do sexo feminino, distribudos nos cinco nveis hierrquicos da organizao. Quanto aos aspectos metodolgicos da pesquisa, os instrumentos utilizados foram documentos institucionais e entrevista semi-estruturada. Para anlise dos dados qualitativos, foi utilizada a tcnica de anlise grfica do discurso de Lane (1985). As anlises dos dados apontaram para o fato de que, apesar da existncia da legislao garantindo igualdade no tratamento para ambos os sexos no mundo do trabalho, a segmentao dos postos de trabalho na organizao exprime desigualdades nas relaes de gnero e constri guetos femininos de ocupaes, sem nenhuma visibilidade no que diz respeito ao se pensar estrategicamente a organizao ou participao no processo decisrio. Assim, as relaes de poder so caracterizadas por relaes assimtricas. O que se percebe uma cultura baseada em princpios machistas, em que o discurso construdo em cima da naturalizao das diferenas biolgicas, o que resulta em discriminao da mulher. Pde-se perceber que na organizao ainda se utilizam formas de constrangimento, tais como o assdio, como um caminho para a ascenso profissional do sexo feminino.

    Palavras chave: Relaes de gnero e de trabalho.

  • ABSTRACT

    Considering the high increasing of the insertion of the woman in the work world, the objectives of this research were to understand how the gender relation is build in the men and women speech within an organizational context, to analyze the ideological constructions starting from the formation of these speeches, the role of the organizational culture in these formation and how the relation of power appears in this organizational context. The case study presented took place in a pharmaceutical industry where there is a large number of women as part of the staff. Eight male and eight female workers participated on this research, a total of sixteen workers. The findings collected by means of institutional documents, observations and semi-structured interviews. The procedure and data-finding of a qualitative nature was done using a Lanes discourse graphic analyzes technique (l985). It was also possible to analyze that besides the legislation which guarantee equality of treatment for both sexes in the work world, the segmentation of the positions in the organization shows difference in the relation of gender and builds female ghettos of positions without any possibility to participate on the deciding process or to strategically think about the organization. Thus the relation of power are characterized by asymmetric relations. It was possible to notice that the culture is based on male principles where the speech is build over the naturalization of biological differences which results on woman discrimination. Furthermore, was possible to evaluate that the organization still using constraint ways to the female sex, such as siege, as a way to get a professional ascension.

    KEY WORDS: Gender relation and of work.

  • INTRODUO

    A leitura liberta ou oprime. Ela me oprime quando ela me condiciona ao que eu sou; me liberta quando me move de onde estou, me faz caminhar, prosseguir a caminhada na compreenso do que eu sou e do que me cerca. A leitura libertadora, emancipadora, nos faz sair dela diferentes de quando a iniciamos (GADOTTI, 1983, p.175).

  • A palavra gnero no surge do nada, ela resultado da construo social que se constitui na histria. Para falar

    dessa construo, faz-se necessrio retornar prpria constituio do movimento feminista.

    A questo de gnero toca as noes individuais de masculinidade e feminilidade, o que ser masculino ou feminino, como educar e ser educado como menina ou

    como menino e chegar idade adulta com uma identidade produzida pela cultura e pela sociedade, impregnada de atributos, privilgios e limitaes, baseando-se no que

    biolgico. Os processos sociais e individuais de aquisio de identidade de gnero so importantes pontos de partida

    para se enfrentar a idia corrente de que mulheres e homens so naturalmente talhados para certas tarefas e que a biologia quem melhor define quem deve fazer o

    qu.

    A palavra gnero implica o surgimento de uma srie de questes, tais como: gnero refere-se apenas s

    mulheres ou tambm trata de homens? Gnero considera todas as mulheres como se fossem iguais? Gnero divide

    homens e mulheres ou os une? Talvez como uma forma de

  • melhor compreenso, deva-se refletir com base no aspecto do que gnero no ou no trata. Pensando por esta

    perspectiva de negativa, o termo gnero no sinnimo da palavra mulher, como tambm no uma forma abreviada

    para designar mulheres e homens.

    O uso da palavra gnero no um modo de diferenciar trabalho com mulheres de feminismo, nem

    uma maneira de disfar-lo. Gnero no uma categoria homognea, nem uma categoria exclusiva, nem um

    conceito esttico, congelado no tempo e no espao. O estudo das relaes de gnero no se concentra nos

    conflitos entre mulheres e homens em termos individuais ainda que se possa lev-los em considerao. Tampouco

    envolve um determinado movimento social, tal como fazer com que os homens passem a lavar louas, pois no

    compreende e no se submete viso simplista de inverso de papis culturalmente definidos por sexo.

    Em 1981, Delphy j situava muito bem a questo do gnero ao afirmar que:

    Para resumir de maneira muito esquemtica nosso trabalho, ns pensamos que o gnero, as posies sociais respectivas de mulheres e homens, no construdo sobre a categoria (aparentemente) natural do sexo; mas, ao contrrio, o sexo tornou-se um fato pertinente, e, portanto uma categoria da percepo, a partir da criao da categoria de gnero, isto , da diviso da humanidade em dois grupos antagonistas,

  • dos quais um oprime o outro, os homens e as mulheres (Delphy, 1981, p.65).

    Diante do exposto, importante assinalar que as questes de gnero no esto necessariamente atendidas quando os homens se tornam datilgrafos e quando as mulheres rompem barreiras consideradas basicamente

    intransponveis. Farr e Chitiga afirmam que Trocar um

    papel de gnero de um para outro sexo, no significa, por si s, um sinal de conscientizao de gnero (Farr e

    Chitiga, 1991, p.25). Segundo eles,

    Homens e mulheres podem executar diferentes tipos de trabalhos e serem iguais, como tambm podem desempenhar funes idnticas e serem desiguais. O problema no se refere tanto sobre quem faz o qu, mas quem define os papis do outro e se, tanto homens quanto mulheres, tm escolha (Farr e Chitiga, 1991, p.25).

    Para Scott, a anlise das relaes de gnero tambm implica a anlise das relaes de poder; e neste sentido, ressalta que essa relao permite a apreenso de duas

    dimenses, a saber: o gnero como elemento constitutivo das relaes sociais, baseado nas diferenas perceptveis

    entre os sexos e o gnero como forma bsica de representar relaes de poder em que as representaes

    dominantes so apresentadas como naturais e inquestionveis (Scott, 1987, p.106).

  • Para a referida autora, diferentemente do sexo, gnero um produto socialmente elaborado e

    representado; o desafio analtico proposto passa a ser, identificar em cada prtica a relao social concreta, a produo tanto das subordinaes como das formas de

    resistncia nas relaes de gnero. Mais precisamente, na dcada de 1980, gnero comeou a ser estudado por

    vrias estudiosas feministas que, convencidas da potencialidade terica de tal conceito, passaram a utiliz-lo.

    Em meados dos anos 1980, a historiadora Scott elaborou uma definio segundo a qual: Gnero um

    elemento constitutivo de relaes sociais fundadas sobre diferenas percebidas entre os sexos, e o primeiro modo de dar significado s relaes de poder (Scott, 1990, p.14).

    Outras autoras, tais como Sorj (1992), Bruschini (1992) e Grossi (2000), dentre outras, tambm compreendem e trabalham gnero como sendo um produto social aprendido, em que o poder que permeia tal relao desigualmente distribudo. Rejeitam completamente o determinismo biolgico.

    A questo aqui, como j foi levantada anteriormente, muito mais profunda do que uma simples substituio de uma palavra: optar pelo conceito de gnero, significava uma deciso de ordem epistemolgica, implicava em opo terica (Louro, 1996, p.08). Era necessrio instituir um novo sentido para a palavra, considerar que gnero no pretende significar o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere identidade biolgica de uma pessoa, gnero est ligado sua construo social como sujeito masculino ou feminino (Louro, 1996, p.08).

    Saffioti relata que se opta por trabalhar com o conceito de relaes de gnero, ao invs de relaes

    sociais de sexo porque,

    O termo gnero est lingisticamente impregnado do social, enquanto necessrio

  • explicitar a natureza social da elaborao do sexo. O conceito de relaes de gnero deve ser capaz de captar a trama de relaes sociais, bem como as transformaes historicamente por ela sofridas atravs dos mais distintos processos sociais, trama esta na qual as relaes de gnero tm lugar (Saffioti, 1990, p.6-8).

    O tema das relaes de gnero ganhou espao e legitimidade nas anlises sociais e polticas. O uso dessa categoria no incio da dcada de 1990 era restrito ao mundo acadmico e aos grupos feministas e de mulheres. Hoje, encontra-se disseminado em vrios contextos e lugares. Substituir os estudos de mulher pelos de gnero significa, dentre outras coisas, valorizar a diferena, ressaltar a eqidade e destacar a relao de poder, visto que o exerccio da autoridade masculina to universal que chega a ser aceito por muitas mulheres e homens como natural. Mas, embora freqentemente reforada pela fora fsica, a autoridade no um atributo biolgico. um comportamento aprendido, um privilgio, uma recompensa, uma conquista legtima ou arbitrria, dada ou tomada. Os homens so socializados para exerc-la, as mulheres so socializadas para se submeter a ela.

    De acordo com Grossi (2000), pesquisadoras norte-americanas passaram a usar a categoria gender para falar

    das origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres. No existe uma

    determinao natural dos comportamentos de homens e mulheres, apesar das inmeras regras sociais calcadas numa suposta determinao biolgica diferencial dos sexos, usadas nos exemplos mais corriqueiros como

    mulher no pode levantar peso ou homem no tem jeito para cuidar de criana.

    Seguindo esse raciocnio, gnero serve para determinar o que social, cultural e historicamente

    determinado, uma vez que nenhum indivduo existe sem relaes sociais, desde que nasce.

  • Dentro desta perspectiva que trata gnero como uma construo social, em que as relaes so norteadas pelo poder, os papis de gnero so tomados como um sistema de papis e de relaes entre mulheres e homens, os quais no so determinados pela biologia, mas pelo contexto social, poltico e econmico. Baseando-se nisto, diz-se que o sexo biolgico de uma pessoa dado pela natureza, mas o gnero construdo.

    Seguindo essa linha de pensamento, Kabeer afirma que gnero pode ser visto como o [...] processo atravs do qual indivduos que nasceram em categorias biolgicas de machos ou fmeas tornam-se categorias sociais de mulheres e homens pela aquisio de atributos de masculinidade e feminilidade, definidos localmente (Kabeer, 1990, p.9).

    Adotar uma perspectiva de gnero ento, [...] distinguir entre o que natural e biolgico, o que social e culturalmente construdo e, no processo, renegociar as fronteiras entre o natural e, por isso mesmo, relativamente inflexvel e o social relativamente transformvel (Kabeer, 1990, p.9). Do mesmo modo que mulheres e homens possuem diferenas sexuais biologicamente determinadas, tambm lhes foram impostos pela sociedade geralmente de forma arbitrria diferentes papis, baseados em seus sexos. Este fenmeno conhecido como papis de gnero, ou seja, modos de ser e de interagir como mulheres e homens, que so moldados pela histria, ideologia, cultura, religio e pelo desenvolvimento econmico.

    Money foi o primeiro a usar, em 1955, o termo papis de gnero em substituio a papis sexuais, para descrever condutas atribudas a homens e mulheres no contexto das diferentes culturas. Gomriz (1992), por sua vez, afirma que sexo se refere ao conjunto das caractersticas biolgicas (cromossmicas, hormonais, genitais) e que papis sexuais so aqueles que a espcie realiza em funo de sua diferenciao sexual, que possibilita ao homem o papel fecundante e mulher o de gestar, parir e amamentar.

    Os papis de gnero so aprendidos e diferem-se de uma sociedade para outra, de um lugar para outro, e variam de acordo com a poca. Fatores passageiros como a moda, e to complexos como as relaes desiguais de poder determinam as particularidades dos atributos de gnero numa dada cultura. As caractersticas sexuais so determinadas no tero, no momento da concepo. A identidade de gnero desenvolvida durante a infncia e na vida adulta. A construo dos papis e das relaes de gnero um processo permanente. Os pais e as mes, as irms e os irmos, os parentes e os amigos, todos desempenham um papel no reforo ou desestmulo de certos comportamentos para meninos e meninas. As escolas, assim como a mdia e outras instituies relacionadas s famlias tm esse papel formativo, transmitindo valores, modelos de papis e esteretipos de gnero.

    O ambiente domstico freqentemente considerado como a primeira arena das relaes de gnero. No entanto, homens e mulheres interagem nos servios burocrticos, nos negcios, nos partidos polticos e em outras esferas, imbudos de atitudes, aptides e condicionamentos que lhes so impostos com base no gnero, repetindo e reformulando esses modelos e esteretipos.

    Tomando-se por base as diferenas sexuais, a sociedade define o que ser homem e o que ser mulher, o que masculino e o que feminino, estabelecendo assim as representaes de gnero. Estabelece tambm como deve ser a relao no s entre homens e mulheres, mas a relao entre as mulheres e a relao entre os homens, definindo a relao de gnero.

  • O fato que a diferena sexual usada para, arbitrariamente, limitar a autonomia feminina, suas

    atividades econmicas e o seu acesso ao poder poltico. Essas relaes sociais, que dividem os sexos, propiciam diferentes oportunidades para homens e mulheres. Em

    todo o mundo, as mulheres enfrentam obstculos estruturais, restries legais, sociais e culturais que se

    traduzem em discriminao, tanto visveis quanto invisveis. Ou, como Mongella, Secretria Geral da IV

    Conferncia sobre a Mulher afirmou: Os problemas das mulheres no diferem de pas para pas. Diferem apenas de

    intensidade (Naes Unidas, 1994, p.3). Desta forma, gnero implica uma relao que, na

    maioria das vezes, o que masculino tem mais valor, conseqentemente, as relaes de gnero acabam por

    produzir uma distribuio desigual de poder, autoridade e prestgio entre as pessoas, de acordo com o seu sexo. Isto confirma que as relaes de gnero so relaes de poder

    que se constroem constantemente ao longo da histria e no dia-a-dia entre homens e mulheres, mulheres e mulheres,

    homens e homens.

  • Matos (1994) analisa que a construo de um conhecimento dialtico no campo movedio dos estudos de gnero tem buscado

    [...] recuperar a historicidade das relaes entre os sexos, desvendar suas caractersticas, estabelecer relaes e articulaes entre amplas dimenses. Assim, destacar as diferenas a partir do reconhecimento de que a realidade histrica social e culturalmente constituda tornou-se um pressuposto do pesquisador que procura incorporar essa categoria, permitindo perceber a existncia de processos histricos diferentes e simultneos, bem como abrir um leque de possibilidade de focos de anlise (Matos, 1994, p.26).

    Segundo Louro (1998), enfatizar o aspecto social no significa necessariamente negar que o gnero se constitui em corpos sexuados. No pretende com isto negar a biologia, mas focar intencionalmente a importncia da construo social e histrica produzida sobre as caractersticas biolgicas. Argumenta que as justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas no nas diferenas biolgicas, mas sim nos arranjos sociais, na histria, nas condies de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representao (Louro, 1998, p.22). A referida autora sustenta:

    necessrio demonstrar que no so propriamente as caractersticas sexuais, mas a forma como essas caractersticas so representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histrico (Louro, 1998, p.21).

    Enfim, de acordo com a autora, para que se compreendam o lugar e as relaes de homens e mulheres numa sociedade observou-se no exatamente seu sexo, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate se constituiu, ento, atravs de uma nova linguagem, na qual gnero tornou-se um conceito fundamental.

    Este trabalho busca esclarecer como o objeto de estudo a construo da relao de gnero est sendo aqui tratado, ou seja, traz a idia da construo social entre os sexos, critica a viso determinista biolgica, aponta para as relaes norteadas pelo poder e para diferenas que tendem a se naturalizar e reforar uma relao de desigualdade entre homens e mulheres.

    O presente estudo procura responder o seguinte problema: como se constri a relao de gnero dentro do contexto organizacional com base no discurso de homens e mulheres? Quanto aos objetivos, buscou-se compreender como homens e mulheres constroem seus discursos relacionados questo de gnero na organizao do trabalho, evidenciando a complexa e contraditria trama de relaes sociais presentes na diviso sexual do trabalho. Procurou-se tambm analisar as construes ideolgicas valendo-se dos discursos e do papel da cultura organizacional nessas construes, assim como as relaes de poder.

    O mtodo utilizado para a realizao da pesquisa foi o estudo de caso histrico-organizacional (Bogdan, 1982), em que o interesse da pesquisadora recaiu sobre uma nica organizao, baseado no conhecimento pr-existente sobre a organizao pesquisada.

  • Atualmente a categoria gnero est sendo estudada atravs de diversos mtodos, e existe um nmero significativo de pesquisas que, dependendo da delimitao de seu problema, tem privilegiado especificamente o mtodo de estudo de caso.

    O espao da pesquisa foi uma Indstria Farmacutica, de capital nacional, sediada no Estado de Gois, com administrao familiar. A escolha da referida organizao foi intencional, visto que a mesma apresenta naturalmente aspectos que so considerados de grande relevncia para o desenvolvimento deste estudo, aspectos estes que puderam ser observados em decorrncia de uma experincia de oito (8) anos de trabalho da pesquisadora, na rea de Recursos Humanos dessa organizao.

    A populao pesquisada foi definida aps o cruzamento de quatro aspectos: sexo, cargo, antigidade e escolaridade. Esses aspectos foram selecionados por terem sido considerados relevantes para o desenvolvimento do estudo em questo. Dezesseis (16) pessoas foram entrevistadas, sendo oito (08) do sexo masculino e oito (08) do sexo feminino. A definio por se trabalhar com ambos os sexos, nesta pesquisa, deve-se ao fato de que o presente estudo buscou investigar justamente a construo da relao de gnero baseada no discurso do homem e da mulher da organizao. As dezesseis (16) pessoas entrevistadas estavam distribudas nos cinco nveis hierrquicos existentes na organizao.

    Os instrumentos utilizados para coleta de dados foram a anlise documental e a entrevista semi-estruturada, entrevista esta organizada em quatro blocos temticos.

    A tcnica utilizada para a anlise dos dados obtidos foi a anlise grfica do discurso de Silvia Lane (1985). Essa tcnica foi utilizada para estudar e analisar o material qualitativo, buscando-se melhor compreenso do discurso, bem como aprofundar as caractersticas ideolgicas e aspectos relevantes da fala das pessoas envolvidas.

    Quanto aos resultados obtidos, pode-se dizer que a anlise das relaes de gnero observada neste trabalho possibilitou compreender a potencialidade racionalizadora de que as relaes de gnero so portadoras no espao do trabalho. Tais resultados revelam-se antigas discriminaes em relao ao trabalho da mulher e seus mltiplos papis sociais no espao privado (me, esposa), determinando, assim, a insero dessas trabalhadoras no espao do trabalho semiqualificado.

    A segmentao dos postos de trabalho nessa organizao estudada exprime desigualdades nas relaes de gnero e constri guetos femininos de ocupaes. O que se percebe uma cultura norteada por princpios machistas, em que o discurso dos homens baseado na naturalizao das diferenas biolgicas, diferenas essas que se convertem em desigualdades. As relaes de poder no trabalho no revelaram novas formas de relaes sociais nas relaes de gnero, e sim a permanncia de antigos papis considerados femininos.

    Por fim, a organizao estudada busca reforar o mito da funo natural das mulheres, o das tarefas domsticas, utilizando para isto o discurso ideolgico, reforando e reproduzindo a cultura da subordinao feminina.

    Para efeito de organizao do trabalho e composio do texto, esta dissertao foi dividida em captulos. O primeiro captulo apresenta o percurso de uma histria (in) visvel das mulheres, recorrendo para tanto ao movimento feminista mundial e nacional. Desenvolve ainda a construo histrica da categoria gnero e aponta as principais abordagens de estudos sobre o tema.

    O segundo captulo trata das relaes entre gnero e trabalho e procura desenvolver a questo do trabalho enquanto uma categoria de anlise, apontando para as relaes de trabalho dentro das organizaes. Aborda tambm o trabalho feminino,

  • buscando verificar a ocorrncia ou no de novas conquistas e/ou a permanncia de velhas discriminaes. Alm disto, discute a diviso sexual do trabalho e a precarizao que da advm.

    O terceiro captulo apresenta o tema cultura na constituio das prticas organizacionais. Discute o conceito de cultura e de ideologia como mediadores para se chegar cultura organizacional e ideologia organizacional.

    O quarto captulo apresenta as consideraes metodolgicas sobre o estudo de caso, que utiliza como tcnica de anlise dos dados a anlise grfica do discurso, desenvolvida por Silvia Lane. Uma descrio detalhada do espao da pesquisa, da populao pesquisada, da coleta dos dados, bem como da prpria tcnica de anlise dos dados apresentada neste captulo.

    No quinto captulo so apresentados e analisados os dados coletados, ou seja, delineada a relao de gnero com base no discurso de homens e mulheres entrevistados.

    O ltimo captulo destina-se s consideraes finais, no qual aparecem as concluses, bem como as relaes entre os dados encontrados e as teorias utilizadas para embasar este estudo.

    DO FEMINISMO AO GNERO: A CONSTRUO E CONSCINCIA DE UM OBJETO DE ESTUDO

  • A questo no fazer um catlogo de erros, mas aprender a possuir o passado, lembrar como pensvamos de determinado modo pela primeira vez, e continuamos pensando, e a dificuldade que tnhamos em agir pensando daquele modo. Essa , parece-me, a nica maneira de aprender a ser passado e ao mesmo tempo no o ser, pois cada novo esforo em compreender o que foi pensado e feito cria um novo passado e um novo futuro (NYE, 1995, p.16-7).

  • Percurso de uma Histria (In) Visvel

    No dicionrio Aurlio Bsico da Lngua Portuguesa (1988), a palavra invisibilidade est diretamente relacionada, entre outros, aos termos, que no se v; que se esconde; o que no se deixa ver.

    Assim sendo, pode-se dizer que invisvel aquilo que existe, mas que no est em foco, aquilo que no est em evidncia. Para ver o invisvel necessrio olhar com mais cautela, desconfiando do que est em cena e indagando sobre o que est desfocado. Como em fotografia, parece natural focar aquilo que est em evidncia e no natural mostrar o que sutil. Uma mudana de perspectiva, de posio, de ponto de vista, revela que o que parecia natural resultado da forma como os elementos de uma paisagem esto arranjados. E dentro desta dialtica visibilidade/invisibilidade que se consolida a trajetria da mulher na sociedade.

    A histria das mulheres na Histria to antiga quanto a humanidade, j a histria do feminismo mais recente. Como movimento em prol dos direitos das mulheres, tem origem no pensamento Iluminista dos sculos XVIII e XIX e est relacionado s revolues americana e francesa e ao nascimento das Cincias Humanas.

    Para melhor compreenso da trajetria da construo da categoria gnero, importante ressaltar alguns marcos referenciais da luta feminista. Segundo Gomriz (1992), o feminismo surgiu nos marcos do Liberalismo, do Estado moderno, com a formulao das noes de Direitos Universais. Essa foi uma longa luta travada no seio da Revoluo Francesa, de um lado, e da Revoluo Americana, de outro. Os idelogos da Revoluo Francesa discutiam de forma ambgua a respeito da condio da mulher: Rousseau e Montesquieu eram manifestamente contrrios a que as mulheres tivessem direitos iguais aos dos homens. A inglesa Mary Wollstonecraft foi defensora do princpio de direitos naturais do indivduo, destacou-se como uma das mais relevantes vozes da histria do feminismo e escreveu um livro intitulado Defesa dos Direitos da Mulher, no qual denunciou as idias de Rousseau com relao mulher.

    Elizabeth G. Sledziewski considera a Revoluo Francesa como um marco no processo de mudana na histria das mulheres e ressalta que,

    Essa mutao foi a ocasio de um questionar sem precedentes das relaes entre os sexos. A condio das mulheres no mudou apenas porque tudo mudava ento e porque a tempestade revolucionria deixaria intacta. Mas profundamente, a condio das mulheres mudou porque a Revoluo levantou a questo das mulheres e inscreveu-as no prprio corao de seus questionamentos polticos da sociedade. [...] A Revoluo Francesa o momento histrico em que a civilizao ocidental descobre que as mulheres podem ter um lugar na cidade (Sledziewski, in: Bicalho, 1998, p.28).

    interessante perceber que vrios autores sustentam que, o slogan liberdade, igualdade, fraternidade nascera mutilado, uma vez que no se estendia a todos os cidados, pois exclua as mulheres. Como, alis, tem ocorrido desde a antigidade clssica grega, o parmetro de cidadania o cidado homem (gnero masculino) e livre; s os homens so iguais entre si. No pensamento grego, que condicionou a cultura ocidental, o homem o criador da ordem e da lei, enquanto a mulher est associada ao desejo e desordem, ou seja, um ser inferior pela sua natureza.

    Muito se tem escrito sobre as mulheres, a partir do sculo XX, devido, certamente, sua maior participao no processo produtivo aps a primeira Guerra Mundial. Essa guerra significou para os pases, diretamente envolvidos no conflito, a

  • sada em massa da mulher para o mundo do trabalho fora de casa. Thbaud afirma:

    A guerra: um parntese antes do retorno normalidade, um teatro de sombras em que as mulheres, na retaguarda, s aparentemente desempenham os papis principais. [...] 1914 teria podido ser o ano das mulheres, mas foi o ano da guerra, que veio repor cada sexo no seu lugar (Thbaud, 1991, p.33-5).

    Em virtude de um grande nmero de homens terem ido para a guerra, as mulheres assumiram papis at ento exclusivamente masculinos, tais como: chefes de famlia, operrias de fbricas de munio, dentre outros. Com o fim da guerra, a mulher se viu obrigada a retomar suas atividades anteriores. importante ressaltar que, com a ausncia do homem em decorrncia da guerra, a mobilizao da mulher para o trabalho fora do lar no aconteceu sem conflitos ou de forma amena dentro da sociedade.

    Trabalhos como os de enfermeira ou madrinha de guerra foram considerados, pela sociedade, como algo digno para mulheres. Simbolicamente, a guerra revivifica os mitos da mulher salvadora e consoladora, mais do que comprova as capacidades femininas (Thbaud, 1991, p.46).

    Assim, a guerra favoreceu o acesso da mulher ao mundo do trabalho extra-lar, ou seja, ao culturalmente estabelecido como sendo masculino.

    O movimento das mulheres, tambm conhecido como movimento feminista, teve inicio no sculo XIX, na Europa e nos Estados Unidos, arremessado ao centro dos acontecimentos, principalmente, pela classe mdia americana aps a 2 Guerra Mundial, e eclodiu nos anos 1960. A luta contra preconceitos e a busca por assumir seu lugar na histria, fizeram com que as mulheres utilizassem as mais diversas formas para divulgar suas idias e tornarem-se visveis.

    Segundo Portella (1992), durante todo o sculo XIX, desenvolveram-se teorias que viriam a ser expresso das cincias naturais e sociais. O positivismo de Comte e as teorias evolucionistas de Darwin no contriburam muito para a posio feminista, uma vez que a partir desse contexto naturalista, foi extrada toda a argumentao acerca das diferenas sexuais, enfatizando a inferioridade da mulher, argumento que encontra ressonncia at os dias de hoje e que sustenta a desigualdade. O mito da inferioridade da mulher percorreu uma longa e dura trajetria.

    importante ressaltar que a conscincia dessa situao de inferioridade impulsionou o surgimento de um movimento feminista no sculo XIX, na maioria dos pases europeus e nos Estados Unidos.

    Em Reivindicao dos Direitos da Mulher, um dos primeiros documentos feministas de que se tem notcia, publicado originalmente em 1792, Mary Wollstonecraft, jornalista e escritora inglesa que viveu em Paris, denunciou essa situao de subordinao das mulheres, fazendo uso da doutrina liberal dos direitos inalienveis do homem para reivindicar os direitos da mulher. Ao identificar a subordinao da mulher como resultante do processo de socializao e estancamento do seu crescimento intelectual pela falta de acesso e incentivo educao, Wollstonecraft (1792) prenuncia o que se tornar uma das primeiras bandeiras de luta do feminismo: o direito educao.

    A clebre frase de Beauvoir no se nasce mulher, torna-se mulher, inaugurou uma nova era para o feminismo, pois se compreendeu que o ser mulher uma construo cultural. Argumentos foram utilizados para desconstruo da premissa da fragilidade natural da mulher. No natural a desigualdade e sim a diferena biolgica. Na dcada de 1960, o feminismo lutou pela igualdade de forma radical, com Betty

  • Friedman, nos Estados Unidos, com a queima de soutiens em praa pblica. Esse movimento levou mulheres s ruas e abriu caminhos para outros movimentos na dcada de 1980, perodo em que o pensamento feminista construiu um novo caminho que teve sua inspirao em Beauvoir, quando as feministas construram o pensamento viver as diferenas na igualdade.

    No sculo XX, Beauvoir escreveu O Segundo Sexo e criou o feminismo existencialista. Sua obra nega a existncia do matriarcado, ou seja, que a mulher tivesse tido poder em determinado momento da histria humana, como defendeu Engels: a existncia do poder da mulher, antes da existncia da propriedade privada. Para ela o patriarcado a constante universal em todos os sistemas polticos e econmicos (Beauvoir, 1980, p. 123).

    Uma das principais lutas das mulheres no sculo XIX e incio do sculo XX foi pelo direito ao voto, incentivada pelo liberalismo democrtico que pregava a igualdade e liberdade: Todos os homens so iguais e devem ser portadores dos mesmos direitos. Entretanto, quase todos vo considerar as mulheres menos iguais:

    Nenhum dos lderes da Revoluo Francesa, exceto Condorcet, exigiu o direito ao voto para a mulher. Filsofos como o ingls John Loocke, que argumentavam contra o poder absoluto do rei a favor das relaes contratuais livres, entre homens, no incluram mulheres como participantes da sociedade (Nye, 1995 p.19).

    A ttulo de melhor esclarecimento, o sufrgio universal foi uma das principais conquistas dos homens da classe trabalhadora, no sculo XVIII. Tal conquista, no entanto, no inclua o sufrgio feminino, que foi uma luta especfica e se estendeu para os sculos XIX e XX. Nos Estados Unidos, aps muitos conflitos, somente em 1920 foi concedido o voto s mulheres, dando fim a uma luta iniciada 72 anos antes. Na Inglaterra, a luta pelo direito ao voto processou-se de forma semelhante americana tendo, no entanto, se revestido em sua etapa final de caractersticas mais violentas.

    Por volta de 1913, as sufragistas inglesas se dividiram entre as pacifistas, e as chamadas suffragettes que, atuando de uma forma cada vez mais radical, passam a efetuar atos de danos propriedade e bens materiais como forma de chamar ateno. O que elas queriam era um direito que, em tese, era defendido pelas idias liberais, mas recusado, na prtica, pelo prprio Governo Liberal. S alcanaram esse direito em 1928, depois de um longo processo de lutas que se estendeu por mais de seis dcadas.

    No Brasil, a luta pelo voto feminino iniciou-se bem mais tarde, em 1910. Em 1927, o estado do Rio Grande do Norte inclui em sua constituio um artigo permitindo o exerccio do voto s mulheres. A partir da, o direito de voto foi sendo, gradativamente, alcanado. E, em 1932, promulgado por decreto-lei o direito de sufrgio s mulheres brasileiras, porm, esse direito j era exercido em outros estados.

    O dia 8 de maro considerado um marco fundamental na histria do movimento feminista mundial. Fazendo uma retrospectiva histrica, esta data foi sugerida pela socialista alem Clara Zetkin, no ano de 1910, em memria a 129 operrias queimadas vivas, em Nova York, por realizarem greve por direitos trabalhistas. Em 1975, a ONU incluiu o dia 8 de maro em seu calendrio oficial.

    O feminismo enquanto definio tomado como um movimento social cuja finalidade a equiparao dos sexos relativamente ao exerccio dos direitos civis e polticos (Oliveira, 1996, p.424); uma estrutura bsica de conscincia (Lamas, 1995) ou, ainda, como refere Pintassilgo,

  • [...] a denncia e a luta contra as prticas sexistas [...] isto , as atitudes, prticas, hbitos e, em muitos casos, a prpria legislao, que fazem das pessoas pertencentes a um sexo, e s por esta razo, seres humanos inferiores nos seus direitos, na sua liberdade, no seu estatuto, na sua oportunidade relacional de interveno na vida social (Pintassilgo, 1981, p.12).

    Kristeva (1979), em seu livro Le temps des femmes, diferencia trs geraes ou trs configuraes do pensamento feminista. A primeira como aquela que reivindicou o igualitarismo de direitos entre homens e mulheres; a segunda, ps 1968, que defendeu a diferena radical e/ou especificidade entre feminino e masculino, ou seja, defendeu uma oposio antagnica entre os sexos, e conseqentemente, uma prtica separatista e sexista. A terceira gerao defendeu a manuteno da diferena entre sexos, bem como a alteridade. Tal perspectiva recusa a possibilidade de se compreender o feminino por uma ptica pura e simplesmente feminina, e sustenta que o feminino se define tambm em relao ao masculino.

    Tambm em Fonseca (1996a), as principais abordagens decorrentes dos movimentos feministas e de mulheres podem ser resumidas em trs vertentes tericas:

    [...] a primeira tenta explicar as origens do patriarcado; a segunda, de orientao marxista, prope uma abordagem histrica tentando encontrar uma explicao material para o gnero ou propondo uma soluo baseada nos sistemas duais, compostos pelos domnios do patriarcado e do capitalismo e a terceira, mais recente, dividida entre o ps-estruturalismo francs e as teorias anglo-americanas das relaes de objeto, inspira-se nas vrias escolas da psicanlise para explicar a produo e a reproduo da identidade de gnero dos sujeitos sociais (Fonseca, 1996a, p.12).

    Assim como Kristeva (1979) e Fonseca (1996a), Kaplan (1992) assinala que possvel identificar a existncia de trs momentos diferentes do feminismo, os quais definiu como de trs vagas, em que a primeira se situa no meio do sculo XIX, a segunda associada aos movimentos ps-segunda Guerra Mundial e a terceira vaga, a atual, designada por muitos de ps-feminismo.

    O incio da primeira vaga do feminismo normalmente situado em meados do sculo XIX. A emancipao das mulheres de um estatuto civil dependente e subordinado e a reivindicao pela sua incorporao no estado moderno industrializado, como cidads nos mesmos termos que os homens, foram as preocupaes centrais desse perodo da histria do feminismo.

    Segundo Kaplan (1992), as principais reivindicaes dessa vaga foram essencialmente pelo direito ao voto, pelo qual o movimento sufragista se caracterizou, e pelo acesso ao estatuto de sujeito jurdico.

    Quando se fala de segunda vaga, fala-se da poca que se situa por volta dos anos 1960 e que prolongou mais ou menos at meados dos anos 1980. Apontam-se vrios fatores para o desenvolvimento do feminismo nessa poca. A euforia empresarial resultante da exploso econmica posterior ao ps-guerra e o rpido e conseqente aumento dos padres de vida em alguns pases, deu s mulheres e ao seu trabalho uma imagem completamente diferente. As mulheres foram chamadas a participar no mercado de trabalho, convite substancialmente distinto daquele feito durante a segunda guerra mundial, j que naquela altura apenas lhes era pedido um esforo de trabalho circunstancial.

    Para Nogueira (2001), o que preocupava as feministas desse perodo

  • denominado de segunda vaga era a percepo das mulheres como seres dependentes, subvalorizados e freqentemente isolados, essencialmente aquelas que se dedicavam famlia em tempo integral. A existncia da famlia nuclear, como uma instituio imutvel, natural e necessria, sugeria que esta ideologia representava apenas uma mera glorificao hipcrita da maternidade, que acarretava desigualdades de poder entre os membros de um casal. Assim, depois do ataque promovido pelas ativistas dessa referida vaga, as crticas famlia, como uma unio sancionada pela lei e pela igreja, aceleraram de forma violenta. O nmero de pessoas que questionavam o valor do casamento como uma instituio, a formalizao do amor, assim como as questes parentais foram sendo cada vez maiores.

    De acordo com Kaplan (1992), em meados da dcada de 1980, o feminismo comeou a ficar fora de moda, e essa informao foi sistematicamente veiculada pelos meios de comunicao social, que divulgavam que as populaes mais jovens estavam completamente indiferentes ao feminismo e s lutas que tiveram de ser travadas no passado. Esta apenas uma das razes, entre muitas, para se designar a terceira vaga por ps-feminismo.

    Segundo Sardenberg e Costa (1994), duas tendncias principais dominaram o feminismo internacional por mais de um sculo, passando por momentos de grande efervescncia, como nas lutas pelo sufrgio, encabeadas principalmente pelas feministas burguesas, e as lutas pacifistas das socialistas durante a I Guerra Mundial. Passaram tambm por momentos de quase completa desarticulao, como nas dcadas de quarenta, cinqenta e parte de sessenta, quando as sufragistas, aps conquistarem o direito ao voto, retornaram a suas casas. Essas tendncias, em suas linhas gerais, prevaleceram at o momento em que a onda contestatria dos anos 1960 sacudiu todos os valores estabelecidos, questionando padres, prticas e comportamentos. Foi nesse contexto que surgiu um novo feminismo, ou ps-feminismo como denominou Kaplan (1992).

    Apesar de fortemente influenciado pelo movimento negro, pelo movimento hippie e por todos os movimentos de contestao social que culminaram com os acontecimentos de 1968, o feminismo que ressurgiu nesse momento trouxe algo de novo ao romper com as velhas prticas machistas, tambm presentes no prprio cotidiano desses movimentos. Novo, porque se propunha a ir alm da luta por igualdade jurdica de direitos, o que o distinguiu tambm do movimento feminista anterior.

    Trata-se hoje de um movimento que questiona o papel da mulher na famlia, no trabalho e na sociedade, luta por uma transformao nas relaes humanas e pela extino das relaes baseadas na discriminao social e de gnero. Nestes termos, consiste em um movimento que, baseado no questionamento tanto das relaes da produo material, como das relaes afetivas e sexuais entre os seres humanos, prope-se a lutar por mudanas histricas.

    O mundo capitalista levou as mulheres ao mercado de trabalho extra-lar. Foram dificuldades econmicas, a

    misria e as guerras mundiais que empurraram as mulheres para as fbricas, onde receberam os piores

  • trabalhos e os menores salrios e onde, conseqentemente, vivenciaram situaes de opresso e subalternidade.

    Assim sendo, Oliveira afirma que,

    [...] ao dar origem a uma mo-de-obra feminina, a Revoluo Industrial introduz uma primeira ruptura no paradigma da diferenciao de mundos, na medida em que separa a casa do lugar de trabalho e confronta homens e mulheres s mesmas mquinas, ritmos e exigncias da produo fabril (Oliveira, 1992, p.43).

    A mulher conquistou, no mundo moderno, o direito civil que o antigo regime lhe havia negado: direito liberdade, propriedade, segurana e resistncia opresso. Apesar destas conquistas, Powell (1993) afirma que a questo das diferenas biolgicas serviu para manter as mulheres nos seus devidos lugares, isto , na esfera familiar e nas relaes de suporte afetivo, j que os traos como independncia, agressividade e dominncia continuam a ser associados aos homens, e a sensibilidade, emocionalidade e gentileza s mulheres.

    Strey (2002) complementa esse pensamento ao afirmar que as pesquisas transculturais revelaram que os homens seriam tidos como mais ativos, com mais necessidades de realizaes, de domnio e autonomia, sendo vistos como mais agressivos. Porm, as mulheres seriam tomadas como mais fracas, menos ativas, mais preocupadas com suas necessidades afiliativas e de afeto. E a referida autora ressalta a necessidade de cautela por parte de pesquisadores (as) quanto generalizao desses resultados, uma vez que existe uma grande variabilidade considerando-se as diferenas culturais.

    Nas dcadas de 1980 e 1990 ganhou fora a concepo da cultura e a busca por novas referncias ideolgicas, reflexes e debates. A nova configurao do pensamento feminista apresenta como caractersticas principais a rejeio das justificativas biolgicas e da naturalizao das desigualdades, alm da incluso e nfase nas causas culturais da subordinao feminina. Porm, se faz necessrio ressaltar que

    O pensamento feminista no se constitui propriamente enquanto uma teoria tampouco como uma disciplina. Por ser uma anlise gestada no cruzamento entre movimento social e diferentes perspectivas acadmicas, o feminismo tem se valido tanto de diferentes fontes tericas, como o marxismo, o estruturalismo, o ps-estruturalismo ou o funcionalismo, como o instrumental de diferentes disciplinas acadmicas, como a sociologia, a antropologia, a psicanlise, a psicologia, a pedagogia e a filosofia por exemplo. (Portella e Gouveia, 1992, p.17).

    O movimento ps-feminista, como denominou Kaplan (1992), aponta para a questo de gnero e traduz a luta das mulheres contra a identificao de sua situao de subordinao e excluso do poder, e busca,

    Construir uma proposta ideolgica que reverta esta marginalidade. Sua concretizao se d a partir da construo de uma prtica social que negue aqueles

  • mecanismos que impedem o desenvolvimento de uma conscincia como ser autnomo e que supere a excluso. As feministas fazem do conhecimento e da eliminao das hierarquias sexuais seu objetivo central [...] (Soares, 1994, p.17).

    Hoje, no mundo contemporneo, ainda se identifica a mulher como a procriadora, sem lhe garantir outras funes muito alm dos servios domsticos. como ocorre ainda no Afeganisto, em que se decide pela proibio do trabalho produtivo para as mulheres; obrigando-as, em pleno sculo XXI, a ainda voltarem para o mbito domstico, no mais por leis impostas, mas por comportamento culturalmente aprendido e esperado.

    E como cita Amncio (1998), Embora a mitologia da diferena entre os sexos seja muito antiga, permanncia ao longo do tempo no explica e muito menos legitima as desigualdades atuais, ao contrrio do argumento freqentemente evocado pelos defensores de uma postura passiva e fatalista perante esta questo, e que assim pretendem salientar o naturalismo e a imutabilidade das desigualdades baseadas nos sexo (Amncio, 1998, p.80).

    Por fim, mesmo que a mulher tenha alcanado espaos no mundo do trabalho extra-lar, ainda necessrio reconhecer o processo de opresso e discriminao sofrido por ela, tanto no mundo pblico como no privado onde a cincia ficou sendo privilgio quase exclusivo do masculino. Assim, muito do que se escreveu sobre a mulher faz parte do que os homens pensaram sobre elas, numa cultura patriarcal, no desenvolvimento da sociedade humana. Segundo Arajo e Ferreira (2000), a modernidade faz um convite s mulheres para participarem da vida social e, ao mesmo tempo, as rejeita. O Movimento Feminista no Brasil

    O movimento feminista no Brasil teve sua origem no final do sculo XIX, com as lutas das mulheres pelo direito educao e ao voto. O direito ao voto, passo importante para a posio de cidad, foi estendido s mulheres em quase todos os pases ocidentais na primeira metade do sculo XX. No Brasil, as mulheres conquistaram esse direito a partir da Constituio de 1934.

    Para Toscano, o movimento feminista brasileiro [...] se apresentou desde o seu incio como um reflexo do que acontecia nas sociedades mais industrializadas da Europa e dos Estados Unidos, mas teve ao mesmo tempo, componentes que eram s nossos (Toscano, 1992, p.25). Isto devido a peculiaridades que se diferenciam de uma cultura para outra, j que no existe uma cultura universal e sim contextual.

    O pensamento feminista foi introduzido, no sculo XIX, por Nsia Floresta Brasileira Augusta, cujas obras Conselho Minha Filha (1842), Opsculo Humanitrio (1835) e A Mulher (1856), alm da traduo da obra pioneira de Mary Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Women (1832), e marcaram o despertar de uma conscincia crtica da condio feminina na sociedade brasileira. Todavia, apenas no sculo XX, o termo feminista passou a significar o conjunto de preocupaes e aes polticas que procuraram alcanar uma maior igualdade poltica, social e econmica para as mulheres.

    A emergncia do feminismo como movimento social foi o que criou as condies necessrias para legitimar a condio feminina como objeto de estudo. O

  • prprio movimento feminista sofreu transformaes quando sustenta que,

    Se o feminismo clssico se assentava na proposta da igualdade e na denncia da desigualdade e da discriminao, e se sua proposta e verdade se pretendiam universais, o ps-feminismo se pergunta sobre as diferenas e as relaes no s entre homens e mulheres, mas tambm entre mulheres, baseando-se especialmente nas diferenas entre culturas relativamente aos modelos de gnero e, portanto, na inexistncia de um modelo universal (Machado, 1992, p. 9).

    Para Sardenberg e Costa (1994), a mudana no movimento feminista caracterizada pelo debate das questes de gnero com recortes mais especficos de classe e raa. No Brasil, somente em 1981, os partidos e sindicatos de orientao socialista fizeram uma autocrtica quanto questo feminina, e reafirmaram que a opresso principal a opresso do capital sobre o trabalho, mas reconheceram outras formas especficas de opresso como a que sofrem as mulheres, os negros, os homossexuais e os deficientes fsicos.

    Tal movimento assumiu vrias formas de luta, diversas bandeiras e diferentes facetas. J foi sufragista, anarquista, socialista, comunista, burgus e reformista. J lutou no parlamento, nas ruas e nas casas para conquistar e garantir o acesso da mulher educao formal. De acordo com Saffioti (1979), enquanto as mulheres europias defendiam a cidadania com plenos direitos trabalho, educao e voto no Brasil a instruo da mulher no chegava a representar uma preocupao social. Poucas eram as que tinham acesso instruo e educao que, na poca, segundo princpio de segregao sexual, eram dirigidas de modo diferenciado parcela masculina da populao. S em 1930, as mulheres brasileiras conquistaram o direito de freqentar o curso superior.

    E, mais recentemente, com o ps-feminismo e as discusses em torno das questes de gnero, consolidou-se uma luta pela igualdade de salrios e condies dignas de trabalho, pela valorizao do trabalho domstico, pelo direito inalienvel de todas ao controle sobre o prprio corpo e gozo de sua sexualidade. Enfim, pela construo de uma sociedade mais justa e igualitria, em que a mulher possa realizar-se plenamente enquanto ser humano e cidad.

    Por fim, o movimento ps-feminista brasileiro colocou em xeque as relaes sexistas de dominao em diversos aspectos da vida social e uniu um conjunto heterogneo de mulheres na defesa de seus interesses, tornando-as sujeitos polticos. A construo desse novo sujeito foi um processo lento, iniciado com as lutas pela resoluo de problemas sociais que afetavam as mulheres, tais como a falta de servios pblicos (sade, educao, saneamento, creches, etc.), passando-se para a reflexo sobre a centralidade do trabalho domstico na vida da mulher e as implicaes desse fato em todas as esferas da vida social, chegando-se ao questionamento dos padres culturalmente construdos de feminilidade e masculinidade realizado nos dias atuais. Tais problemas variando em complexidade e intensidade ainda persistem na contemporaneidade, assunto abordado no prximo item. Construo Histrica da Categoria Gnero

    Gnero, enquanto uma categoria til para a anlise, de uso recente, cujo valor heurstico, ou seja, enquanto mtodo de perguntas e respostas para encontrar a soluo de vrios problemas, permite uma abordagem das dimenses scio-econmicas e das relaes existentes entre os seres humanos. Esta categoria de anlise, ainda em

  • construo, tem o propsito de desnaturalizar as categorias homem e mulher, no sentido de indicar uma rejeio ao determinismo biolgico.

    Autoras como Lobo (1991), Castro (1996) e Sorj (1992) consideram que as relaes entre homens e mulheres so permeadas pelo poder e fazem parte dos mecanismos da constituio dos poderes nas sociedades. Na dcada de 1970, as mulheres feministas, nas academias da Europa e Estados Unidos, introduziram a categoria gnero como tarefa das Cincias Sociais, na explicao das relaes entre homem e mulher, como construo scio-cultural, negando a desigualdade de papis sociais como naturais. Essa categoria de anlise chegou nas universidades brasileiras, na dcada de 1980.

    Segundo Grossi (2000), o campo de estudos que hoje, no Brasil, denomina-se de gnero ou relaes de gnero surgiu nos anos 1970/1980, em torno da problemtica da condio feminina. Inicialmente acreditava-se haver um problema da mulher que deveria ser pensado unicamente pelas mulheres, reflexo de uma das prticas do movimento feminista. Os grupos feministas convenciam-se de que era necessrio que as mulheres se reunissem sem os homens, pois haviam sido silenciadas ao longo da histria e a ausncia de homens era uma forma de garantir a palavra das mulheres. Porm, um dos primeiros estudos que, no Brasil, vieram enfatizar a condio feminina, iniciou com a tese defendida por Saffioti no final dos anos 1960, A Mulher na Sociedade de Classes, que apresentava como preocupao central estudar a opresso da mulher nas sociedades patriarcais.

    No final da dcada de 1980, observou-se um aumento no desenvolvimento de pesquisas sobre as mulheres brasileiras. Em muitas ps-graduaes foram oferecidos cursos sobre a questo, que resultaram em um grande nmero de teses. No entanto, apesar do avano em relao aos estudos sobre a condio feminina, nesse perodo, a referncia permaneceu quase que unnime a uma unidade biolgica das mulheres, ou seja, todas as mulheres, independente de sua condio social, se reconhecem pela morfologia do sexo feminino (vagina, tero, seios). O que os estudos de gnero problematizaram a partir da foi justamente essa determinao biolgica da condio feminina.

    Nesse sentido, vale ressaltar que, no Brasil, somente no final dos anos 1980 que as feministas comeam a adotar a designao estudos de gnero no lugar de estudos sobre a mulher. At bem pouco tempo, de acordo com Gonalves (1998), gnero tinha a mesma conotao de mulheres. Por uma simples transposio de termos, passou-se a designar aquilo que classicamente se chamava de questo da mulher para questo de gnero. O uso da categoria gnero comeou pela academia, redefinindo campos de pesquisas, buscando legitimidade para assuntos considerados marginais.

    Existem diferentes perspectivas analticas focando a questo de gnero que se caracterizam como fonte de debates e polmicas, mas que tm motivao e interesses comuns entre os pesquisadores. A emergncia de gnero como categoria de anlise tem facilitado o dilogo entre o feminismo e as cincias, especialmente as humanas. Ao analisar a construo da categoria gnero, Scott (1990) sublinha a efervescncia de discusses epistemolgicas do sculo XX e o esforo das (os) tericas (os) de gnero em encontrar terreno prprio de definio, frente incapacidade dos paradigmas tradicionais em explicar as desigualdades entre homens e mulheres. A investigao emprica e a construo terica de gnero deram-se no contexto da crtica cincia positivista.

    Castro & Lavinas (1992) identificam, no Brasil, pontos comuns entre o movimento crtico nas cincias sociais, quanto a seus paradigmas, e a constituio do

  • gnero enquanto campo de saber. Ressaltam que os estudiosos de gnero tm realizado a discusso sobre a importncia de se focalizar a dinmica da relao entre privado e pblico, poltico e pessoal, produo e reproduo.

    Com o advento do capitalismo e, como parte dele, da fora imperativa da acumulao regida pela busca constante e crescente de lucros, todas as relaes sociais, inclusive na famlia, assumiram caractersticas especficas, definidas e demarcadas pelas relaes sociais de produo necessrias ao desenvolvimento do sistema. A famlia perdeu seu carter de unidade produtiva, medida que deixou de produzir a maior parte dos meios de vida necessrios ao consumo de seus membros. Esses meios, no entanto, passaram a ser produzidos nas fbricas, estabelecendo-se, assim, uma separao entre o mundo do trabalho (o pblico) e o da famlia (o domstico ou privado), o que correspondia tambm uma ntida diviso sexual do trabalho. Bruschini e Rosenberg afirmam:

    [...] com a Revoluo Industrial, o trabalho passou a ser dividido em duas esferas distintas, de um lado a unidade domstica, de outro a unidade de produo. A essa fragmentao correspondeu uma diviso sexual do trabalho, cabendo ao homem o trabalho produtivo extra-lar, pelo qual passou a receber um salrio, enquanto mulher coube principalmente a realizao das tarefas relativas reproduo da fora de trabalho, sem remunerao. A ideologia se encarregou do resto, transformando essa rgida diviso sexual do trabalho em uma diviso natural, prpria biologia de cada sexo (Bruschini e Rosenberg, 1982, p.10).

    O homem, reconhecido socialmente como chefe da famlia, foi obrigado a vender sua fora de trabalho no mercado. Mas a mulher no ficou afastada desse processo. Ela se viu, de repente, tambm requisitada, em considerveis propores, para o trabalho na produo fabril. O avano tecnolgico que lastreou a Revoluo Industrial abriu caminho para uma participao massiva das mulheres na fora de trabalho. A condio de inferioridade, a qual j vinha atribuda mulher, foi um dos principais objetos de interesse da burguesia, vida em acumular riquezas. Sua passividade e submisso dentro do mundo domstico, desenvolvida durante uma longa histria de opresso, foram utilizadas para impor-lhe o pagamento de salrios inferiores aos dos homens e jornadas de trabalho excessivas e insalubres, o que ainda hoje acontece.

    A categoria gnero pode ser compreendida como um processo de mudanas e conquistas dos seres humanos, que tem lugar na trama das relaes sociais entre mulheres, entre homens e entre mulheres e homens. Para Saffioti (1990), as classes sociais se formam na e atravs das relaes sociais. Pensar esses agrupamentos humanos como estruturalmente dados, quando a estrutura consiste apenas numa possibilidade, significa congel-los, retirando da cena a personagem central da histria, ou seja, as relaes sociais.

    Esta categoria muito mais abrangente e, de acordo com Segnini (1995), possibilita a busca dos significados das representaes tanto do feminino quanto do masculino, inserindo-as nos seus contextos culturais e histricos.

    Dentro da questo da construo da categoria gnero, Scott (1995) sublinha: No espao aberto por este debate, posicionadas ao lado da crtica da cincia desenvolvida pelas humanidades e da crtica do empirismo e do humanismo desenvolvido pelos/as ps-estruturalistas, as feministas no s comearam a encontrar umas vias tericas prprias; elas tambm encontraram aliadas/os acadmicas/os e polticas/os. dentro deste espao que ns devemos articular o

  • gnero como uma categoria analtica (Scott, 1995, p.71-99).

    Desnaturalizar hierarquias de poder baseadas em diferenas de sexo tem sido um dos eixos centrais dos estudos de gnero. Estabelecer a distino entre os componentes natural/biolgico em relao a gnero foi, e continua sendo, um recurso utilizado pelos estudos de gnero para destacar essencialismos de toda ordem que, h sculos, sustentam argumentos biologizantes para desqualificar as mulheres, corporal, intelectual e moralmente.

    De acordo com Citeli (2001), muitos estudos de gnero, realizados nos sculos XIX e XX, dedicaram-se cuidadosamente a refutar as bases do determinismo biolgico, para demonstrar que preconceitos sociais baseados em gnero so tomados como imagens do corpo que se pretendem objetivas e cientficas. Entende-se aqui por determinismo biolgico o conjunto de teorias segundo as quais a posio ocupada por diferentes grupos nas sociedades, ou comportamentos e variaes das habilidades, capacidades, padres cognitivos e sexualidade humana derivam de limites ou privilgios inscritos na constituio biolgica.

    Muitos dos cientistas sociais e dos bilogos que discutem as limitaes das diversas vertentes do determinismo biolgico no esto apenas preocupados com os deslizes propriamente cientficos do determinismo, mas com as conseqncias sociais e polticas que advm dessas afirmaes.

    Assim sendo, Citeli afirma:

    Se as sensibilidades de nossa poca trazem um certo desconforto diante dos pressupostos sexistas e racistas presentes na obra de cientistas de dois sculos atrs, no podemos nos deixar levar pela idia de que, nos anos recentes, o avano inevitvel da cincia tenha banido de seus contedos os pressupostos que levam exagerada e seletiva ateno dedicada a identificar diferenas sexuais, que so projetadas como naturais e servem de base a metforas poderosas (Citeli, 2001, p.136).

    Gonalves (1998) assinala que os estudos de gnero se concentraram durante muito tempo na tica da mulher. Hoje, contudo, h importantes trabalhos sobre a tica de gnero no masculino, estudos sobre homens. Da mesma maneira que se descobriu no ser possvel falar de mulheres, pressupondo uma identidade universal entre elas, tambm se procurou indagar que tipo de homem est por trs de tantos discursos aparentemente niveladores.

    Do mesmo modo que se busca desconstruir os pilares de uma natureza feminina, deve-se desconstruir a crena em um sujeito masculino nico e universal. Tais modelos de homem e de mulher j h muito no correspondem quilo que necessrio e presenciado na realidade cotidiana, mas parecem insistir na afirmao de que so, apesar de todos os percalos, modelos teis. O otimismo feminista trouxe a inaugurao de um momento histrico tomando-se por base a existncia de sujeitos singulares e solidrios.

    Vale reafirmar, por fim, que o surgimento dos estudos de gnero est relacionado com a maior visibilidade obtida pela mulher nos anos mais recentes e aos movimentos de mulheres e feministas na sociedade ocidental, de tal forma que, atualmente, o olhar sobre o movimento tambm nos remete a esta categoria de anlise. Esta uma afirmao polmica que se instaura por entendimentos diferenciados acerca da questo, no campo dos estudos de gnero, mas acredita-se que a cincia influenciada pelo contexto ao mesmo tempo em que o influencia. Afinal, a produo cientfica est inserida no contexto scio-econmico-cultural onde surge e utilizada.

  • Com base nesses pressupostos, o prximo item tratar das diferentes formas ou reas da cincia que tm se proposto a estudar tal fenmeno, ou seja, a questo de gnero.

    Principais Abordagens de Estudos de Gnero

    Os estudos referentes mulher e, mais recentemente, os estudos acerca das relaes de gnero sempre tiveram por finalidade conhecer a situao de indivduos socialmente discriminados, com base em um determinismo biolgico, visando propor a superao desta condio. Reflexes de milhares de mulheres durante sculos, no tocante a condio de sua subordinao, constituram um corpo terico que acabou por inspirar a epistemologia e metodologia da pesquisa feminista e, conseqentemente, propiciou a pesquisa acadmica priorizando as relaes sociais entre os sexos.

    De acordo com Sorj (1992), a categoria de gnero envolve pelo menos duas dimenses: a primeira, compreendendo a idia de que o equipamento biolgico sexual inato no explica o comportamento diferenciado masculino e feminino observado na sociedade. Diferentemente do sexo, o gnero um produto social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das geraes. E segundo, envolve a noo de que o poder distribudo de maneira desigual entre os sexos, cabendo s mulheres uma posio subalterna na organizao da vida social.

    Desenvolvida em proximidade com o movimento feminista, a reflexo acadmica feminista teve, em geral, uma dupla motivao: reestruturar a tradio das Cincias Sociais, alterando conceitos e metodologias consagradas e formular um projeto de emancipao das mulheres. O interlocutor do pensamento feminista tem sido, sem dvida, o marxismo, embora o debate venha se ampliando para o campo da Psicanlise, das correntes ps-estruturalistas e ps-modernas.

    importante ressaltar, como salienta Fonseca (2000), que o eixo que orienta as discusses a respeito de gnero como categoria de anlise fundamenta-se no clssico conceito de Scott (1990). Esse conceito se desdobrou em suas implicaes polticas por meio de outros recentes estudos nacionais e internacionais, que o consideram como pedra fundamental para a resignificao das cincias sociais e humanas.

    As anlises baseadas no referencial terico de gnero esto se multiplicando e possibilitando, em diferentes reas do conhecimento, uma visibilidade maior das relaes sociais singulares que informam no apenas desigualdades, mas hierarquias nas relaes de poder entre homens e mulheres, em diferentes contextos sociais.

    Nesse sentido, Segnini (1995) ressalta que para a anlise das relaes de gnero no mundo do trabalho, os estudos de caso, que apontam singularidades setoriais ou regionais, adquirem relevncia e tornam-se necessrios em um momento histrico caracterizado por profundas mudanas nas relaes de trabalho, dentro de um contexto de reestruturao capitalista.

    A interlocuo constante de autores de estudos de gnero das mais diferentes disciplinas e o dilogo sempre constante e crtico com o pensamento feminista so responsveis pela constituio de um campo de saber com temticas construdas no interior e no entrecruzar dos saberes acadmicos, extremamente articuladas com as mudanas de seus paradigmas tericos.

    Diante disto, os estudos de gnero so importantes na Psicologia, na Antropologia, na Sociologia, na Histria, dentre outras cincias humanas, uma vez que

  • tal conceito proporcionara maior abertura para o conhecimento sobre a mulher e o homem, e viabilizou uma compreenso renovadora e transformadora de suas diferenas e desigualdades (Strey, 2002, p.184).

    No sculo XX, as contribuies da Antropologia e da Psicanlise deram um novo significado s pesquisas referentes mulher. Os estudos relativos ao parentesco, famlia, aos diferentes papis de homens e mulheres, nas diferentes culturas estudadas por Levi Strauss, Malinovski e Margaret Mead, ajudaram e complexificaram a construo de uma teoria feminista. No campo da Filosofia, o nome de Simone de Beauvoir uma importante referncia. O Segundo Sexo (1949) permanece um clssico da literatura feminista e foi considerado um dos livros de iniciao de um grande nmero de feministas no mundo inteiro.

    No fim dos anos 1980, especialmente a partir de 1987, no Brasil, na academia das Cincias Sociais e nos estudos de literatura e crtica literria, postulou-se a primazia dos estudos de gnero sobre os estudos de mulheres e a superao dos estudos dos papis sexuais pelos de gnero. A nova proposta acadmica dos estudos de gnero procurou afirmar duplamente que o conceito de gnero supera o papel sexual, por sua demarcao mais frontal contra o determinismo biolgico, e que esse conceito, por ser relacional, superou a idia das esferas separadas para um e outro sexo.

    Segundo Strey (2002), os temas de gnero dentro da Psicologia Social tinham pouca expresso e, no mximo, apareciam como sexo, indicando as diferenas encontradas entre homens e mulheres em experimentos de laboratrio ou de campo.

    Ainda de acordo com a referida autora, para ocorrer uma mudana nesse panorama, foi necessrio passar pela crise da Psicologia Social, e pelas crescentes presses advindas dos movimentos feministas. Strey afirma:

    Hoje gnero, embora seja um conceito que perpasse todas as reas de estudo da Psicologia e de outras reas do conhecimento, tem ntima afinidade com a Psicologia Social, principalmente a Psicologia Social que lana seu olhar para a histria, para a sociedade e para a cultura, no conseguindo entender o ser humano separado dessas instncias (Strey, 2002, p.181).

    As cincias humanas referem-se a gnero como a forma segundo a qual cada cultura trata as diferenas entre os sexos, alocando a cada um deles determinados atributos e a maneira como esses atributos so valorados socialmente. Para Gonalves (1998), o gnero se multifaceta em uma trama de redes simblicas que operam em muitos domnios do humano e do social. Portanto, no concebvel simplesmente pens-lo como um sistema fixo e linear de hierarquias definidoras do que ser homem e mulher, mas como produzindo e sendo produzido pela cultura. Nem se pode pens-lo como exclusivo das relaes homem-mulher num sistema binrio e polarizado, mas como um sistema de relaes sociais (e, nesse sentido, homem-homem; mulher-mulher; e homem-mulher), em que fatores como raa, classe, idade, etc. compem essa trama.

    Diante do exposto, torna-se importante ressaltar que o pensamento social serve como norteador do presente trabalho, uma vez que evidenciou sua maior contribuio na discusso sobre as relaes entre gnero e poder, gnero e trabalho, gnero e famlia e gnero e classe. O presente estudo pretende abordar tais relaes, enfocando particularmente gnero, trabalho, cultural e poder.

    Dentro dessa linha do pensamento social, inmeros nomes se destacam na discusso das relaes de gnero no mundo do trabalho, entre os quais citam-se: Lobo, Bruschini, Saffioti, Sorj, Segnini, Costa, Hirata, Posthuma, dentre outras. Todas essas pesquisadoras, buscam focar e desenvolver estudos que apreendem a questo de gnero

  • e trabalho, bem como as suas nuances. Nesse sentido, esse primeiro captulo teve por objetivo delinear como a mulher

    foi percebida na sociedade, ao longo da histria, recorrendo a uma sntese dos movimentos feministas, bem como o delineamento da construo histrica da categoria gnero e suas principais abordagens de estudos. Isto exposto, no prximo captulo ser apresentada uma discusso terica sobre a questo do trabalho, enfatizando o trabalho feminino, bem como os aspectos culturais e ideolgicos que esto presentes dentro da organizao e que permeiam as relaes de gnero.

    GNERO e TRABALHO

    As prticas sociais, familiares, culturais e de trabalho das mulheres so simultaneamente aproveitadas nas relaes de trabalho propriamente capitalista ou no, formais ou no. Ao mesmo tempo, essas prticas so constantemente reformuladas pelas mulheres, como estratgias de sobrevivncia, mas tambm como estratgias de resistncia dominao e subordinao (SOUZA-LOBO, 1991, p.33).

  • Trabalho: uma categoria de anlise

    O trabalho est intrinsecamente ligado vida humana e tem sido abordado por vrios campos do

    conhecimento. Sob enfoques diferentes, o trabalho e seus efeitos na vida do indivduo so estudados pela Psicologia, Sociologia, Administrao, Histria, Geografia, Poltica, Filosofia, Medicina, Antropologia, Direito e Economia.

    Deste modo, o conceito de trabalho assumiu roupagens diferentes conforme poca, sistema cultural ou

    referencial adotado (Chaves, 1999, p.27). A partir da consolidao do capitalismo, o trabalho saiu do contexto da famlia e passou a ser executado em local especfico, e

    o homem foi dividido entre as instncias da famlia (privado) e do trabalho (pblico). Na viso do capital, o

    trabalho foi se revelando como fora de trabalho, alienada, indiferenciada no mercado, o que neutralizou a

    singularidade do homem.

    De acordo com Codo (1992), a idia inicial de trabalho apareceu na etimologia como sinnimo de

  • torturar, derivado de tripalium, que nada mais que um instrumento de tortura. E desta idia primeira de sofrer

    originou-se a idia de esforar-se, lutar, pugnar e, por fim, trabalhar, ou seja, ocupar-se de uma tarefa, exercer um

    ofcio. Para o referido autor, a palavra trabalho encontrada como sinnimo de atividade, ocupao, ofcio,

    profisso, tarefa, distinguindo-se de lazer e aparecendo ainda como resultado de uma determinada ao.

    Segundo Codo, em vrios idiomas a palavra trabalho aparece freqentemente com duplo significado: ao-

    esforo e molstia-fadiga/sofrimento. E destaca que, para

    Werner Sombard trabalho o desgaste de energia destinado a obter um objeto fora do homem. Em Schonberg: manifestao de uma fora, a fim de criar algo til. (...) Bachem Staatslexikon descreve trabalho como um esforo humano que implica sacrifcio e dor, molstia e sofrimento, e que determina a produo ou conservao de um bem ou de uma utilidade. Savtchenko define como atividade racional do homem na produo dos bens materiais e espirituais (Codo, 1992, p.86).

    Para esse autor, [...] o trabalho o momento significativo do homem, a possibilidade da felicidade, da liberdade, da loucura e da doena mental (Codo, 1992, p.267). J em Albornoz, trabalho o esforo e tambm seu resultado: a construo enquanto processo e ao, e o edifcio pronto (Albornoz, 1994, p.25).

    Bandeira (1998) afirma que o trabalho transformado em fora de trabalho e reduzido a uma mercadoria a ser vendida no mercado. As emoes/sentimentos so desconsiderados pelas organizaes, sendo vistos como algo que representa desadaptao estrutura do trabalho, no sendo analisadas as circunstncias ou as relaes de trabalho que os determinam.

    Bruschini traz o conceito de trabalho ampliado pelo IBGE que engloba todas e quaisquer

    Ocupaes remuneradas em dinheiro, mercadorias ou benefcios (moradia, alimentao, roupas, etc), na produo de bens ou servios; ocupaes remuneradas em dinheiro ou benefcios no servio domstico; ocupaes sem remunerao na produo de bens e servios desenvolvidos durante pelo menos uma hora na semana, em ajuda ao membro da unidade domiciliar, conta-prpria ou empregador, e em

  • ajuda a instituio religiosa, beneficente ou de cooperativismo, como aprendiz ou estagirio, e por fim, ocupaes desenvolvidas pelo menos uma hora por semana na produo e bens e na construo de edificaes e benfeitorias para o uso prprio ou de pelo menos um membro da unidade domiciliar (Bruschini, 2000, p. 426).

    No que diz respeito ao mercado de trabalho, um aspecto importante destacado por Bandeira (1998) a mudana no conceito que, antes dos anos 1970, era entendido apenas como trabalho produtivo. A incorporao da atividade domstica tambm como categoria analtica foi importante no sentido de conduzir a ampliao do debate sobre as vrias interfaces do trabalho, ou seja, trabalho realizado para o mercado, trabalho realizado no espao domstico, trabalho de homens e trabalho de mulheres.

    Segnini (2000) afirma que a qualificao para o trabalho uma relao social, muito alm da escolaridade ou da formao profissional, vez que esse conceito se refere a uma relao social (de classe, gnero, etnia, geracional), que se estabelece nos processos produtivos, no interior de uma sociedade regida pelo valor de troca e fortemente marcada por valores culturais que possibilitam a construo de preconceitos e desigualdades. Isso quer dizer que os conhecimentos adquiridos pelo trabalhador, atravs de diferentes processos e instituies sociais, tais como, famlia, escola, empresa, etc., agregados s suas habilidades, tambm adquiridas socialmente, somadas a suas caractersticas pessoais e sua subjetividade, sua forma de apreender o mundo, constituram um conjunto de saberes e habilidades, que significa para o trabalhador valor de uso. Esse s se transforma em valor de troca em um dado momento histrico, se reconhecido pelo capital como sendo importante para o processo produtivo.

    Para Hirata (1993), considerar o trabalho domstico e assalariado, remunerado e no remunerado, formal e informal, como sendo modalidades de trabalho implica o alargamento de conceito de trabalho e a afirmao de sua centralidade, da mesma forma que a dimenso comunicacional do trabalho no significa necessariamente a negao da importncia epistemolgica da categoria trabalho. Ainda de acordo com o seu pensamento, o questionamento do movimento de mulheres e da sociologia quanto ao determinismo exclusivamente econmico das relaes de explorao do trabalho, bem como a reconstruo conceitual empreendida contriburam para a renovao dos estudos desse campo, medida que apontaram para a centralidade das relaes intersubjetivas entre homens e mulheres.

    Antunes (2000) afirma: Se na formulao marxiana o trabalho o ponto de partida do processo de humanizao do ser social, tambm verdade que, tal como se objetiva na sociedade capitalista, o trabalho degradado e aviltado. [...]. O que deveria se constituir na finalidade bsica do ser social a sua realizao no e pelo trabalho pervertido e depauperado. O processo de trabalho se converte em meio de subsistncia. A fora de trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria [...]. Esta a radical constatao de Marx: a precariedade e perversidade do trabalho na sociedade capitalista. Desfigurado, o trabalho torna-se meio e no primeira necessidade de realizao humana (Antunes, 2000, p.125-6).

    Segundo Marx:

    O trabalhador s se sente junto a si fora do trabalho e fora de si no trabalho. Sente-se em casa quando no trabalha e quando trabalha no se sente em casa. O seu trabalho no , portanto, voluntrio, mas compulsrio, trabalho forado. Por conseguinte, no a satisfao de uma necessidade, mas somente um meio para

  • satisfazer necessidades fora dele (Marx, 1983, p.152-3).

    Desde os primrdios das civilizaes, o homem e a mulher utilizaram o trabalho para sobreviver. a partir do trabalho, em sua cotidianidade, que o homem torna-se ser social, distinguindo-se de todas as forma no humanas (Antunes, 2000, p.123). A concepo do trabalho vem

    sendo alterada com as diferentes concepes de sociedade.

    A evoluo histrica do trabalho assinala que h milhares de anos, no perodo neoltico1, o ser humano deu um salto qualitativo importante em sua histria, quando

    passou a influenciar seu ambiente, para dele tirar seu sustento, resultando em seu desenvolvimento econmico e

    social.

    Ao estabelecer-se geograficamente, o homem no s ampliou sua capacidade produtiva, como definiu novos

    contornos de relacionamento social. Surgiu a instituio da propriedade, no s geogrfica, mas tambm dos

    instrumentos e especialmente das tcnicas. O domnio dessas tcnicas apresentou a possibilidade de exercer certo

    controle sobre a natureza. Foi a partir da propriedade

    1 Segundo perodo da idade da pedra, ou seja, a idade da pedra polida.

  • desses bens que se originou uma profunda modificao na relao social, passou-se de uma comunidade de iguais

    para uma sociedade de classes.

    O avano da economia agrcola criou novas e crescentes necessidades de bens e servios, determinou o surgimento de um sistema que facilitasse a troca desses bens, o comrcio. Ao mesmo tempo em que ofereceu novas oportunidades, o comrcio trouxe alteraes no modo de vida da humanidade, uma vez que permitia a

    livre explorao de todos os meios e bens.

    Segundo Arendt (1987) a civilizao grega encontrou seu apogeu no sculo V a.C. e tornou-se a

    primeira sociedade na qual o homem teve a possibilidade de desenvolver-se em funo de si mesmo, questionando valores sociais, porm, ainda em meio a preconceitos e

    supersties.

    A idade mdia trouxe consigo alteraes em relao s pocas anteriores, principalmente no que diz respeito ao predomnio da economia com base agropecuria, qu