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 ORLANDO GOMES CONTRATOS 2 6 a  edição Coordenador: Edvaldo Brito Arualizadores: Antônio Junqueira de Azevedo Francisco Paulo De Crescenzo M arino JUSTIÇA  FEDERAL  DE 1° GRAU EM SÃO PAULO BIBLIOTEC CENTR L EDITORA FOR NS Rio de Janeiro 2008

GOMES, Orlando. Contratos. Forense, 26 Ed, 2008

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  • ORLANDO GOMES

    C O N T R A T O S

    2 6 a e d i o

    Coordenador : E d v a l d o Brito Arualizadores: Antnio Junqueira de Azevedo

    Francisco Paulo De Crescenzo M a r i n o

    JUSTIA FEDERAL DE 1 GRAU EM SO PAULO

    BIBLIOTECA CENTRAL

    E D I T O R A

    FORENSE Rio de Janeiro

    2008

  • Captulo 1

    INTRODUO

    Sumrio: 1. Conceito de contrato. 2. Formao histrica e pressu-postos ideolgicos. 3. O contrato no Direito contemporneo. 4. O contrato no Direito das Obrigaes. 5. Concepes de contrato. 6 . 0 contrato como norma. 7. O contrato em novo contexto. 8. A declarao de vontade dos contratantes. 9. Aspecto material e documentao do contrato. 10. Signifi-cado do contrato. 11. Funo econmica do contrato.

    1. Conceito de con t ra to . A renovao dos estudos jurdicos a convic-o crescente da necessidade de complet-los com os subsdios de ou-tras cincias humanas, notadamente a Sociologia, a Poltica e a Economia, induzem tratamento novo dos institutos jurdicos tradicionais que distinguem o Direito Privado, dentre os quais o contrato. Tanto significaria o aban-dono da posio manualistic' assumida nos compndios e cursos adotados nas escolas de ensino jurdico, at mesmo os de elaborao mais recente. Justifica-se at certo ponto essa orientao dos autores tais textos por ser verdadeira a observao de que ainda nos encontramos na poca da cincia jurdica que se inicia com Savigny. 2 O molo terico sobre o qual trabalham, sugerido pela disciplina legal c o d i f i c a ^ continua a ser, a despeito das alteraes que o deformam, aquele tctado pelos expoentes da escola das Pandectas. No possvel afast-l^Pteiraraen-te numa obra didtica, mas cumpre descrev-lo luz dos fajps que tm concorrido para a deformao, fazendo, quando-menos, ortopedia do ins-tituto que se analisa, se a natureza da obra desaconselha tratamento pu-ramente crtico.

    1 Bareellona, "Diritto Privato e Processo Econmico", passim Stato e Giuriste, com a colaborao de Couture.

    2 l arenz, Methodenlehre drRechtswissenschaft, na traduo italiana: Storia dei Mtodo nella Scienza Giuridica.

  • 4 Orlando Gomes

    O conceito de contrato , conforme o ensinamento dessa escola, o de uma categoria geral e abstrata reduzida unidade no sistema conceituai, segundo as regras da lgica formal. O sistema assemelha-se a uma pirmide em cujo vrtice se encontra u m conceito generalssimo ao qual se reconduzem os restantes conceitos, como outros tantos tipos e subtipos, levando esse mtodo do pensamento formal jurisprudn-cia dos conceitos.3 Na seqncia desse pensamento, Puchta estabele-ce a conexo lgica dos conceitos como a suprema tarefa db jurista, explicando que, para possuir a conscincia sistemtica, preciso es-tar em condies de acompanhar em sentido ascendente e descendente a provenincia de qualquer conceito atravs de todos os termos mdios que participam de sua formao. 4

    A escala na genealogia do conceito de contrato sobe ao negcio ju-rdico, (RA) conceito adotado pelo Cdigo Civil, 5 muito embora sem defi-nio legislativa expressa, da para o ato jurdico6 e, por fim, (RA) para o fato jurdico.

    Nessa perspectiva, o contrato uma espcie de negcio jurdico que se distingue, na formao, por exigir a presena pelo menos de duas partes. Contrato , portanto, negcio jurdico bilateral, ou plurilateral.

    D conexo entre os dois conceitos, o de contrato e o de negcio jur-dico, segue-se que o daquele contm todas as caractersticas do outro, por set um cpfigeito derivado. Eis por que as noes comuns a todos os neg-cios jrMfcbs, bilaterais ou Unilaterais, se estudam na parte geral ou introdutria do Direito Civi l 7 naqueles sistemas, como o nosso, em que os conceitos fundamentais da matria, a exemplo do Cdigo Civji alemo, so

    3 LarenZ, ob. cit., p. 21. 4 O ltMH]ili que d de tal escala conceituai o conceito de servido de trnsito, que

    em primeiro lugar um direito subjetivo; em seguida, um direito real, e depois um direi-to rlsobre a coisa alheia, de gozo, e assim por diante, conf. Manuale delle Pandette, t. I, p. 21.

    5 (RA) Arts. i 04 e segs. (RA). 6 (RA) O Cdigo Civil no se referia ao negcio jurdico, mas sim ao ato jurdico. Este

    vinha conceituado no (RA) art. 81, in verbis: "Todo ato lcito que tenha por fim ime-diato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos se denomina ato jurdico."

    7 V., do autor, Introduo ao Direito Civil, pp. 297 a 515. A categoria do negcio jurdi-co objeto atualmente de reservas por ser considerada de escassa utilidade para a dogmtica do Direito e porque as suas principais figuras (contrato, testamento, casa-mento) tm regulamentao diferente. A l i a r a , La Teoria Generaledel Contratto, p. 12.

  • Contratos 5

    sistematizados em artigos que precedem os livros especiais. Onde o neg-cio jurdico (ato jurdico) no instituto acolhido no Direito Positivo, a ci-so no tem cabimento.

    O tratamento do contrato sob esse enfoque no significa, porm, a acei-tao do mtodo da jurisprudncia dos conceitos. Nem que os institutos ju-rdicos concentrados em torno do contrato sejam apreciados apenas em uno da sua posio na escala de conceitos em que se insere ou de sua base tico-j uri dica, mas, sim, de conformidade com o seu fim e com o seu contedo lgico, tico, sociolgico, poltico-social.8

    O contrato e seus tipos esquematizados na lei sero estudados como instrumentos jurdicos para a constituio, transmisso e extino de direi-tos na rea econmica.

    8 Larenz, ob. cit., p. 24. Atormentado pela dificuldade de que um direito subjetivo pos-sa subsistir tambm independentemente da vontade real do titular, Windscheid sus-tenta que a vontade dominante no a do titular do direito, mas a do ordenamento jurdico, acentuando desse modo a predominncia da pretenso, de tal modo que divi-sa na propriedade no a faculdade do proprietrio de dispor de uma certa coisa confor-me a sua vontade, mas unicamente a possibilidade de manter os terceiros longe dessa coisa (obrigao passiva universal). Orlando Gomes, "Significado Ideolgico do Conceito de Direito Real", In Revereor (RA) Estudos jurdicos em homenagem Fa-culdade de Direito da Bahia (RA), pp. 3 -15. Na doutrina mais recente, tende-se a separar, no conceito de contrato, o fato propulsor da relao e esta, dantes unilateralmente concebidos. Hoje distingue-se, por outras palavras, o ato do vnculo, como faziam os canonistas com o matrimnio. Neste, o consentimento dos nubentes era considerado o fato, do qual nascia o vnculo conjugai, isto , a relao matrimonial definida na lei, a constituio de uma famlia, a insero dos cnjuges num conjunto invarivel de poderes, direitos, deveres e obrigaes. Nos contratos patrimoniais tambm sucede essa diferenciao que provoca a aplicao de normasJTistintas, mas a determinao do contedo da relao ainda grande parte obra dos prprios contraentes, nos limites de sua autonomia privada. Esclarece Trimarchi que a possibilidade de substituio de um tipo contratual por outro, imposta aos contraentes, ou a um deles, admitida atualmente, uma das manifestaes mais expressivas da nova ideologia jurdica em matria de contrato. Os fenmenos jurdicos que esto se manifestando na rea contratual atestam, como frisa o citado autor, que a funo e os valores do contrato no podem mais ser representados nos mesmos termos da doutrina oitocentista, pois, no campo da produo econmica or-ganizada, as normas legais tm a funo de assegurar uma distribuio eficaz dos recur-sos produtivos, de golpear as empresas ineficientes e de proporcionar as condies para o rendimento econmico, e a atividade do empresrio considerada em funo do interesse econmico da comunidade.

  • 6 Orlando Gomes

    Esta limitao no enfoque no significa desconhecimento de que o con-tedo dos contratos alimentado tambm por outras fontes ou que no te-nha outras matrizes, tais como os usos normativos, os usos interpretativos, as clusulas de estilo, as normas supletivas, disposies que no se en-contram no Cdigo Civil, e as sentenas judiciais que integram ou substi-tuem as c lusu las con t r a tua i s 9 como na execuo coativa em forma especificante do Cdigo de Processo Civil.

    2. Formao histrica e pressupostos ideolgicos. O conceito moder-no de contrato formou-se em conseqncia da confluncia de diversas cor-rentes de pensamento, dentre as quais: a) a dos canonistas; b) a da escola do Direito Natural. 1 0

    A contribuio dos canonistas consistiu basicamente na relevncia que atriburam, de um lado, ao consenso, e, do outro, f jurada. Em valori-zando o consentimento, preconizaram que a vontade a fonte da obriga-o, abrindo caminho para a formulao dos princpios da autonomia da vontade e do consensualismo. A estimao do consenso leva idia de que a obrigao deve nascer fundamentalmente de um ato de vontade e que, para cri-lo, suficiente a sua declarao. O respeito palavra dada e o dever da veracidade justificam, de outra parte, a necessidade de cumprir as obrigaes pactuadas, fosse qual fosse a forma do pacto, tornando neces-sria a adoo de regras jurdicas que assegurassem a fora obrigatria dos contratos, mesmo os nascidos do simples consentimento dos contraentes.

    A Escola do Direito Natural, racionalista e individualista, influiu na for-mao histrica do conceito moderno de contrato ao defender a concepo de que o fundamento racional do nascimento das obrigaes se encontrava na vontade livre dos contratantes. Desse juzo, inferiram seus pregoeiros o princpio de que o consentimento basta para obrigar (solus consensus obligat). Salienta-se, no particular, a contribuio de Pufendorf, para quem o contrato um acordo de vontades, expresso ou tcito, que encerra com-promisso a ser honrado sobre a base do dever de veracidade, que de Di-reito Natural." Ressalta-se ainda a influncia de Pothier na determinao

    9 S. Maiorca, 11 Contratlo, p. 9. 10 Diez Picazo, Fundamentos dei Derecho Civil Patrimonial, p. 87, que destaca tambm

    o "voluntarismo jurdico da escolstica tardia". 11 Cons. Wieacker, Privatrechts Geschichte derNeuzeit, na traduo espanhola, Hist-

    ria dei Derecho Privado de la Edad Moderna, pp. 272 e segs.

  • Contratos 7

    da funo do acordo d vontades como fonte do vnculo jurdico e na acei-tao do princpio de que o contrato tem fora de lei entre as partes, formu-lado como norma no Cdigo de Napoleo.

    No no direito romano que se deve buscar a origem histrica da categoria jurdica que hoje se denomina contrato, pois, segundo Bonfante, era um especial vnculo jurdico {vinculum jris) em que consistia a obri-gao {obligatio), dependendo esta, para ser criada, de atos solenes (nexum, sponsio, stipulatio). certo que o conceito sofreu alteraes, e outros romanistas, como Riccobono, sustentam que o contrato era o acordo de vontades, gerador de obrigaes e aes, ou que na fase ps-clssica j se admitia que a origem das obrigaes se encontrava na declarao da von-tade das partes.

    A modema concepo do contrato como acordo de vontades por meio do qual as pessoas formam um vnculo jurdico a que se prendem se escla-rece . luz da ideologia individualista dominante na poca de sua cristaliza-o e do processo econmico de consolidao do regime capitalista de produo.

    O conjunto das idias-ento dominantes, nos planos econmico, polti-co e social, constituiu-se em matriz da concepo do contrato como con-senso e da vontade como fonte dos efeitos jurdicos, refletindo-se nessa idealizao o contexto individualista do jusnaturalismo, principalmente na superestimao do papel do indivduo. 1 2

    O liberalismo econmico, a idia basilar de que todos so iguais peran-te a lei e devem ser igualmente tratados, e a concepo de que o mercado de capitais e o mercado de trabalho devem funcionar livremente em condi-es, todavia, que favorecem a dominao de uma classe sobre a econo-mia considerada em seu conjunto 1 3 permitiram fazer-se do contrato o instrumento jurdico por excelncia da vida econmica.

    O processo econmico caracterizado ento pelo desenvolvimento das foras produtivas exigia a generalizao das relaes de troca determinando o esforo de abstrao que levou construo da figura do negcio jur-dico como gnero de que o contrato a principal espcie. O contrato sur-ge como uma categoria que serve a todos os tipos de relaes entre sujeitos de direito e a qualquer pessoa independentemente de sua posio ou condi-o social. No se levava em conta a condio ou posio social dos sujei-

    12 Barcellona, ob. cit, p. 272. 13 Diez Picazo, ob. cit., p. 89.

  • 8 Orlando Gomes

    tos, se pertenciam ou no a certa classe, se eram ricos ou pobres, nem se consideravam os valores de uso mas somente o parmetro da troca, a equi-valncia das mercadorias, no se distinguia se o objeto de contrato era um bem de consumo ou um bem essencial, um meio de produo ou um bem volupturio: tratava-se do mesmo mod a venda de um jornal, de um apar-tamento, de aes ou de uma empresa. 1 4

    Se bem que a evoluo do Direito nos tempos presentes se encaminhe em sentido contrrio, tal o modelo de contrato qe ainda se descreve nos compndios de Direito Civil amarrados ao CdigoCivil e alheios exube-rante legislao especial que o contradiz e contesta.

    3 . O cont ra to no Direito con temporneo . Diversas causas concorre-ram para a modificao da noo de contrato:. *

    A suposio de que a igualdade formal dos indivduos asseguraria o equilbrio entre os contratantes, fosse qual fosse a sua condio social, foi desacreditada na vida real. O desequilbrio tomou-se patente, principalmente no contrato de trabalho, gerando insatisfao e provocando tratamento le-gal completamente diferente, o qual leva em considerao a desigualdade das partes. A interferncia do Estado na vida econmica implicou, por sua vez, a limitao legal da liberdade de contratar e o encolhimento da esfe-ra de autonomia privada, passando a sofrer crescentes cortes, sobre to-das , a liberdade de determinar o contedo da relao contratual . A crescente complexidade da vida social exigiu, para amplos setores, nova tcnica de contratao, simplificando-se o processo de formao, como sucedeu visivelmente nos contratos em massa, e se acentuando o fenme-no da despersonalizao.

    Tais modificaes repercutiram no regime legal e na interpretao do contrato.

    Importantes e abundantes leis dispensaram especial proteo a deter-minadas categorias de pessoas para compensar juridicamente a debilidade da posio contratual de seus componentes e eliminar o desequilbrio. De-senvolveu-se uma legislao de apoio a essas categorias, com estmulo sua organizao. Determinado a dirigir a economia, o Estado ditou normas impondo o contedo de certos contratos, proibindo a introduo de certas clusulas, e exigindo, para se formar, sua autorizao, atribuindo a obriga-

    14 Barcellona, ob. cit., p. 277.

  • Contratos 9

    o de contratar a uma das partes potenciais e mandando inserir na relao inteiramente disposies legais ou regulamentares.

    Assinalam-se como principais fatores das transformaes ocorridas na teoria geral do contrato: I o ) a insatisfao de grandes estratos da po-pulao pelo desequilbrio, entre as partes, atribudo ao princpio da igual-dade formal; 2 o) a modificao na tcnica de vinculao por meio de uma relao jurdica; 3 o) a intromisso do Estado na vida econmica.

    O desequilbrio determinou a tcnica do tratamento desigual, cuja apli-cao tem no Direito do Trabalho o exemplo mais eloqente.

    Dentre as novas tcnicas de constituio das relaes jurdicas, sali-entam-se as que foram impostas pela massificao de certos contratos determinante da uniformizao de suas condies ou clusulas e as que acusam a tendncia para .a despersonalizao dos contraentes.

    A poltica interventiva do Estado atingiu, por sua vez, o contrato, na sua cidadela, ao restringir a liberdade de contratar, na sua trplice expres-so de liberdade de celebrar contrato, da liberdade de escolher o outro contratante e da liberdade de determinar o contedo do contrato.

    Trs modificaes no regime jurdico do contrato revelam outras tan-tas tentativas para a correo do desequilbrio. A primeira consistiu na pro-mulgao de grande nmero de leis de proteo categoria de indivduos mais fracos econmica ou socialmente, compensando-lhes a inferioridade com uma superioridade jurdica. A segunda patenteia-se na legislao de apoio aos grupos organizados, como os sindicatos, para enfrentar em p de igualdade o contratante mais forte. A terceira, no dirigismo contratual, exer-cido pelo Estado atravs de leis que impem ou probem certo contedo de determinados contratos, ou sujeitam sua concluso ou sua eficcia a uma autorizao de poder pblico.

    Surgem, em conseqncia, figuras anmalas, como a do contrato, cujo contedo imperativamente alterado por lei superveniente, seja substituin-do suas clusulas principais, seja amputando-o, ou do contrato em que uma das partes foi obrigada a contratar, ou do contrato que tem fonte legal, e assim por diante, at mesmo o que, sem ser concludo, produz efeitos por mandamento judicial, como a adjudicao compulsria.

    Passa-se a dissociar a relao contratual do acordo de vontade, com o propsito de explicar certas anomalias, como a prorrogao legal das locaes, e justificar a diversidade de critrios de interpretao e a reparti-o dos riscos.

    A mais importante conseqncia dessas transformaes a mudana nas preocupaes do legislador quanto a rigidez do contrato. Em relao ao

  • 1 0 Orlando Gomes

    contrato nos moldes clssicos, empresta maior significao s normas so-bre o acordo de vontades, detendo-se na disciplina cuidadosa da declara-o de vontade e dos vcios que podem anul-la, e limitando a proteo legal aos que no tm condies de emiti-la, livre e conscienciosamente (meno-res, enfermos). Em relao aos contratos nos moldes contemporneos, que se realizam em srie, a preocupao a defesa dos aderentes (contratos de adeso), mediante normas1 legais que probam clusulas inquas, at por-que as regras sobre a declarao da vontade e os vcios do consentimento quase no se lhe aplicam. (RA) Os arts. 423 e 424 do Cdigo Civil estipu-lam regras de proteo dos aderentes (RA).

    4. O cont ra to no Direi to das Obrigaes. A idia de contrato aplica-se em todas as ramificaes do Direito e abrange todas as figuras jurdicas que nascem do concurso de vontades, seja qual for a sua modalidade ou a sua eficcia. Pode ser limitada, no obstante, ao campo do Direito Privado, designando-se por esse vocbulo o negcio jurdico bilateral que se apre-senta em todas as partes do Direito Civil: no Direito das Obrigaes, no Direito de Famlia, no Direito das Coisas e no Direito das Sucesses.

    Ao estudo dessas relaes jurdicas dedica-se esta obra. Os principais contratos tpicos so: a compra e venda", a troca, (RA)

    o contrato estimatrio (RA), a doao, a promessa de venda, a locao, (RA) a prestao de servios (RA), a empreitada, o transporte, o em-prstimo, o depsito, o mandato, a comisso, (RA) a agncia, a distribui-o, a corretagem (RA) , a representao dramtica, a constituio de renda, o seguro, a fiana, a transao, os contratos bancrios e os de in-corporao imobiliria.

    Novas figuras contratuais esto penetrando no mundo dos negcios, algumas j tipificadas na legislao especial, outras ainda sem tratamento legal especfico. Dentre essas figuras, reclamam uma vista de olhos: o con-trato de alienao fiduciria em garantia, o leasing, o know-how e alguns mais outros tantos (Captulo 44).

    Emprega-se o vocbulo contrato em sentido amplo e restrito. No pri-meiro, designa todo negcio jurdico que se forma pelo concurso de vonta-des. No segundo, o acordo de vontades produtivo de efeitos obrigacionais na esfera patrimonial.

    Para nomear os negcios jurdicos plurilaterais em geral,, usam alguns o termo conveno, nele incluindo todos os acordos, estabeleam, ou no, vnculo obrigacional. A conveno compreenderia no s os negcios plurilaterais destinados a criar obrigaes,, mas tambm a modificar ou ex-

  • Contratos 11

    tinguir obrigaes preexistentes, 1 5 enquanto o contrato seria idneo exclusi-vamente criao de obrigaes. Teria, para outros, sentido especial, com-preendendo apenas os acordos normativos. A questo , no entanto puramente terminolgica. Interessa, assim mesmo, fixar o exato sentido da palavra contrato porque a outras modalidades do concurso de vontades no se aplicam as regras que o regem. Deve ser observada para designar o negcio bilateral, cujo efeito jurdico pretendido pelas partes seja a criao de vnculo obrigacional de contedo patrimonial. 1 6

    No Direito moderno, o termo pacto significa a clusula aposta em certos contratos para lhes emprestar feitio especial. Pacto no mais, como no Direito Romano, a conveno desprovida de sano.

    Na prtica emprega-se a palavra contrato em acepes distintas, ora para designar o negcio jurdico bilateral gerador de obrigaes, ora, o instrumento em que se formaliza, seja a escritura pblica, o escrito par-ticular de estilo, simples missiva, ou um recibo. Na linguagem corrente, essa sinonmia est generalizada a tal ponto que os leigos supem no haver contrato se o acordo de vontades no estiver reduzido a escrito. O contrato tanto se celebra por esse modo como oralmente. No a forma escrita que o cria, mas o encontro de duas declaraes convergentes de vontades, emitidas no propsito de constituir, regular ou extinguir, entre os declaran-tes, uma relao jurdica patrimonial de convenincia mtua.

    Contrato , assim, o negcio jurdico bilateral, ou plurilateral, que su-jeita as partes observncia de conduta idnea satisfao dos interesses que regularam.

    Os sujeitos da relao contratual chamam-se partes. Parte no se con-funde com pessoa. Uma s pessoa pode representar as duas partes, como no autocontrato o contrato consigo mesmo, e uma s parte, compor-se de vrias pessoas, como na locao de um bem por seus condminos. Par-

    15 Capitant, Vocabulaire Juridique; Eduardo Espnola, Contratos Nominados, p. 8. 16 Devem qualificar-se tambm como contratos, segundo tendncia modernamente aco-

    lhida em algumas legislaes, como o Cdigo Civil da Itlia, o Cdigo polons das Obrigaes e o Cdigo Civil venezuelano, negcios jurdicos bilaterais translativos (a cesso), modificativos (a novao) ou extintivos (a remisso) de obrigaes. O alarga-mento da categoria vem se dando por sua extenso a outros segmentos de Direito Ci-vil, que no o das obrigaes, e a outros campos distintos do Direito Civil. H contrato real, contrato familiar e contrato sucessrio, assim como contrato processual e contra-to de Direito Pblico. Alguns destes no so, na verdade, contratos, como observa Aliara, ob. cit., pp. 15 e segs.

  • 12 Orlando Gomes

    te , em sntese, um centro de interesse, indicando-se com essa expresso a posio dos sujeitos em face da situao na qual incide o ato. 1 7

    O mecanismo de formao do contrato compe-se de declaraes con-vergentes de vontades emitidas pelas partes. Para a perfeio do contrato, requerem-se: em primeiro lugar, a existncia de duas declaraes, cada uma das quais, individualmente considerada, h de ser vlida e eficaz; em se-gundo lugar, uma coincidncia de fundo entre as duas declaraes. 1 8 Por conseguinte, acordo de vontades para a constituio e disciplina de uma relao jurdica de natureza patrimonial. O fim do acordo pode ser tambm a modificao ou a extino do vnculo. . .

    Existem acordos patrimoniais que no so considerados contratos porque no originam, para as partes, obrigaes que modifiquem a situa-o preexistente, mas se limitam a estabelecer regras a serem observadas se os interessados pra t icam os atos prefigurados, como os acordos normativos, ou a tornar certa uma situao jurdica incerta, como a tran-sao. Esses negcios jurdicos so, porm, autnticos contratos.

    H contratos que no se formam com o s e simples consentimento das partes. Tais so, por exemplo, o depsito e o emprstimo, que s se tornam perfeitos e acabados com a entrega da coisa por uma das partes outra. Outros requerem forma solene para o acordo de vontade, no valen-do, se preterida.

    A coincidncia das declaraes essencial formao do contrato. Chamemo-la consenso, para designar, com uma s palavra, este requisito caracterstico da perfeio dos contratos. Se no ocorre, h dissenso. A coincidncia necessria nos pontos essenciais e decisivos para a forma-o do contrato, segundo a vontade de uma o das duas partes. Sempre que faltar, o contrato no nasce, ou ser ineficaz.

    O dissenso pode ser manifesto ou oculto. Quando manifesto, no h acordo porque a coincidncia de vontades no se verifica conscientemen-te em relao a pontos decisivos. 1 9 Quando oculto, as partes supem que houve acordo, mas, em verdade, no houve. No dissenso oculto, o contra-

    17 Mirabelli, Dei Contratti in Generale, p. 12. 18 Oertmann, Introduccin al Derecho Civil, p. 200. 19 Assim, como exemplifica Enneccerus, se ao concluir um contrato de compra e venda

    as partes se puserem de acordo sobre a coisa e o preo, mas ainda no concordarem sobre quem deve suportar as despesas com o transporte, e, conforme a declarao de uma delas ou de ambas, se tiver que estipular acordo sobre isso, o contrato, antes desse acordo, ainda no est concludo, in Tratado de Derecho Civil, tomo I o, p. 168.

  • Contratos 13

    to anulvel; no dissenso manifesto, no se forma. que, sendo oculto o dissenso, as declaraes coincidem exteriormente, dando a aparncia de negcio eficaz.

    Pode o- dissenso revelar-se luz de interpretao das declaraes de vontade, ocorrendo em dois casos principais: I o) as declaraes no coinci-dem exteriormente; 2 o ) as declaraes coincidem exteriormente, mas tm objetivamente sentido diverso, e cada parte dera e podia dar significao distinta sua declarao. 2 0

    Em suma, o dissenso manifesto, se as partes esto conscientes da sua existncia, e oculto, no caso contrrio.

    Trao caracterstico do contrato a plurititularidade, isto , a co-participao de sujeitos de direito com interesses econmicos contrapos-tos. A contraposio essencial, no passando o contrato, assim, de uma composio.

    A noo de parte como centro de interesses esclarece a distino entre contrato e outros atos plurilaterais, como o negcio plurilateral e o ato coletivo, sem maior relevncia prtica por se lhes aplicarem as nor-mas do Direito Contratual.

    O contrato plurilateral suscita efeitos em distintas relaes jurdicas que envolvem vrios sujeitos.

    Os atos coletivos compem-se de vrias declaraes de vontades vol-tadas para o mesmo fim, emitidas por diversos sujeitos com interesses dis-t in tos , como na r e sc i so de um a r rendamento pe los dois ou mais arrendatrios. Resultam da soma de vrias declaraes de vontades emiti-das conjuntamente. A doutrina alem denomina-os Cesamtakte, atos con-

    juntos. Nesses negcios no h intercmbio de declaraes de vontade emitidas por partes contrapostas. As declaraes so paralelas para a for-mao de uma declarao comum da mesma parte composta de vrias pessoas. 2 2 O ato conjunto no negcio jurdico bilateral.

    tambm unilateral o ato colegial, como a deliberao de uma as-semblia de acionistas. Para ser tomada, os participantes declaram, singu-larmente, a prpria vontade, concorrendo desse modo para a formao de vontade do grupo. No h pluralidade de declaraes, mas uma s, porque

    20 Enncccerus, ob. cit., p., 169 21 Enneccerus, ob. cit, p. 71; Von Thur, Tratado de Ias obligaciones, t 2, p. 102, 22 A esse ato* dc concorrncia de vrias vontades para a formao de uma s, a doutrina

    alem chama beschluss, termo intraduzivel para o vernculo.

  • 1 4 Orlando Gomes

    as vontades particulares desaparecem para dar lugar vontade geral. No tm natureza contratual tais deliberaes. Regem-se por normas distintas. No requerem, como o contrato, a unanimidade de pronunciamentos, bas-tando, para se formar, a vontade da maioria de votos, que prevalece e se impe vontade da minoria.

    O concurso de atividade1 outra caracterstica do contrato. O ato pra-ticado por um s sujeito unilateral, mesmo que exija a cincia, mas no a atividade, de outro, como na declarao receptcia de aviso prvio a um em-pregado.

    Com o contrato no se deve confundir o ato praticado por sujeitos dis-tintos, para o qual a declarao de um deles teve de ser integrada na do outro, como o de pessoa relativamente incapaz e do seu assistente. O ato de parte composta, mas unilateral.

    5. Concepes de cont ra to . Duas concepes antagnicas de contrato em relao ao contedo dividem os juristas: a subjetiva e a objetiva.

    Para os adeptos da concepo subjetiva, o contedo do contrato com-posto pelos direitos e obrigaes das partes. O contrato , por definio, fonte de relaes jurdicas, sem ser exclusivamente, no entanto, o ato propulsor das relaes obrigacionais.

    Para os proslitos da concepo objetiva, o contedo"do contrato composto de preceitos. As disposies-contra tuais tm substncia normativa, visando a vincular a conduta das partes. Na totalidade, consti-tuem verdadeiro regulamento traado de comUm acordo. Tal, em suma, sua estrutura. o contrato, portanto, fonte de normas jurdicas, ao lado da lei e da sentena.

    Na concepo tradicional, o contrato todo acordo de vontades des-tinado a constituir uma relao jurdica de natureza patrimonial e eficcia obrigacional. 2 3

    O contrato distingue-se da lei, na lio de Savigny, por ser fonte de obrigaes e direitos subjetivos, enquanto a lei fonte de direito objetivo (norma agendi).24 uma ao humana de efeitos voluntrios, praticada

    23 O contrato uma categoria jurdica que est a se alargar no prprio campo do Direito Civil; alm de ser fonte de obrigaes, na sua funo tradicional atribuda no Direito Romano, opera, em alguns sistemas jurdicos, na esfera das relaes reais, constituin-do e transferindo direitos reais. Admite-se, demais disso, que o contrato no apenas constitutivo de obrigaes, mas tambm modificativo e extintivo.

    24 Messineo, // Contratto in Genere, t. I, p. 84.

  • Controlos 15

    por duas ou mais partes, da qual o ordenamento jurdico faz derivar um vn-culo. Encarado no primeiro aspecto, o da formao, um ato de criao; no segundo, o conjunto de obrigaes e direitos que condicione necessaria-mente a conduta das partes, tal como quiseram defini-la.

    O modo de estabelecer os direitos e obrigaes contratuais d a im-presso de que o contrato, devido sua aparncia legislativa, tem natureza normativa, constitudo'o seu contedo de preceitos que regem a relao criada e vinculam o comportamento das partes. Os partidrios da concep-o tradicional no admitem, entretanto, que tais normas pertenam ao mesmo genus da lei, infensos idia de lei concreta e individual. Sustentam que o contrato s pode criar relaes jurdicas e direitos subjetivos, jamais normas de direito objetivo, mesmo quando estabelece regras abstratas para o futuro, como nas condies gerais de contrato {contratos de adeso) que, pelo modo de formulao e forma abstrata, apresentam certa seme-lhana com o direito objetivo, mas no contm realmente norma alguma de Direito, seno clusulas que se limitam a criar entre a parte que as estatui e os clientes uma relao jurdica, para que a estas tambm se subordinem no futuro os fatos previstos nas referidas condies, e seus efeitos." Em suma: o contrato um pressuposto de fato do nascimento de relaes ju-rdicas, uma das principais, seno a mais importante, fontes ou causa ge-radora das obrigaes, o titulo de criao de nova realidade jur dica, constituda por direitos, faculdades, pretenses, deveres e obrigaes, nus, encargos.

    Alm de ser causa eficiente desse complexo de direitos e obrigaes, o contrato tem de ser encarado como vinculo ou resultado que produz, a relao jurdica a que d nascimento, os efeitos que provoca entre as par-tes. Em sntese: contedo e eficcia.

    6. O cont ra to como norma . Ao analisar especificamente o contrato do ponto de vista da teoria pura do Direito, Kelsen 2 6 observa que a defini-o tradicional que o tem como um acordo de vontades de dois ou mais sujeitos tendente a criar ou extingir uma obrigao e o direito subjetivo correlato passa por alto uma de suas funes mais importantes, que a funo criadora de direito. Ao celebrar um contrato, as partes no se limitariam a aplicar o direito abstrato que o rege, mas estariam criando tambm normas indivi-

    25 Von Thur, Tratado de Ias Obligaciones, 1.1, p. 101. 26 El contrato y el Tratado.

  • 1 6 Orlando Gomes

    duais que geram obrigaes e direitos concretos no existentes antes de sua celebrao. Essas normas individuais, que compem o contedo do contrato e exigem determinada conduta dos contratantes, teriam a mesma substncia normativa da regra pacia sunt servanda, que aplicam ao celebrar o contrato. Desse modo, o produto jurdico do contrato, ou seja, a conseqncia que lhe atribui o ordenamento jurdico, a norma que cria, individual e concreta porque no obriga a nmero indeterminado de indi-vduos nem se aplica a nmero indeterminado de casos, tal como sucede com a norma ou lei.

    A explicao de Kelsen coincide com as idias sistematizadas na teo-ria denominada preceptiva. J Von Bulow definira o negcio jurdico, de que o contrato uma das espcies, como um comando concreto ao qual o ordenamento jurdico atribui efeito vinculante. A declarao de vontade te-ria natureza preceptiva, e o contedo do contrato seria representado por diversas e sucessivas regras de conduta pertencentes ao mesmo genus. Tal seria, em sntese, a lex contractus.21

    Nesse contexto, o contrato ato criador de direito objetivo, at porque para alcanar o fim apontado pelos sequazes da concepo tradicional, qual seja, o da constituio de relaes, no pode deixar de estabelecer nor-mas,26 eis que dever jurdico no pode existir sem correspondente coman-do. Explica Ferri que o tecido aa sociedade formado de normas ou comandos objetivos, concorrendo os particulares para tecer essa tela com os seus con-tratos, o que implica ter de reconhecer que a regra contratual tambm norma jurdica.29

    A despeito dos esforos dos adeptos da concepo preceptiva para justific-la como a explicao correta do contedo do contrato, ponderosas tm sido as crticas dos seus opositores. Diz-se que a controvrsia se reduz a uma questo semntica, visto que os preceptivistas atribuem expresso norma jurdica um significado amplssimo, imprprio ou suprfluo, como assinala Cariota Ferrara. 3 0 Uma vez se conceitue a norma jurdica como uma regra geral e abstrata, manifesto que normas no so as clusulas

    27 Formam essa corrente, dentre outros, na Alemanha: Von Bulow e Larenz; Betti e Ferri, na Itlia. Cons. a propsito na literatura brasileira: Vicente Ro, O Ato Jurdico; Junqueira de Azevedo, Negcio Jurdico; e, do autor, Introduo ao Direito Civil e Transformaes Gerais do Direito das Obrigaes.

    28 Santi Romano, Frammenti di un Dizionario Giuridico, p. 9. 2$ Lezioni sul Contratto, p. 20. 30 El Negocio Jurdico.

  • Contratos 17

    de um contrato, eis que a sua aplicao restrita aos contraentes. At nos chamados contratos normativos as disposies respectivas regem unica-mente as relaes daqueles que se lhes querem submeter. Se normas fos-sem, no seriam autnomas, mas subordinadas lei vigente em qualquer momento de sua existncia, interpretadas conforme os critrios aplicveis exegese dos comandos legais; ao contrrio disso a revogao da lei vi-

    gente ao tempo de concluso de um contrato no acarreta a das disposi-es contratuais e, na sua interpretao, aplicam-se regras peculiares. 3 1

    Tm-na averso a maioria dos escritores do prprio pas de origem, todos acusando a sua artificialidade quando assimila norma (dado objetivo) o produto de um comportamento (dado subjetivo) e quando despreza a jun-o dispositiva do contrato.

    Colocado o problema na perspectiva dos pressupostos ideolgicos das duas concepes antagnicas, observa-se que o recrudescimento do inte-resse de defender e reforar a autonomia privada, em crescente progres-so depois da guerra, tem contribudo para o descrdito da idia de que o contrato tem carter normativo. Afirma-se, ademais, que essa idia est a servio do capitalismo liberal 3 2 porque racionaliza a dominao dos privile-giados pelo emprego de um instrumento jurdico de inspirao liberal do crivo de princpios, como o da boa-f e da condenao ao abuso de direito, na medida em que se objetiva tornando-se norma autnoma, isto , desligada das partes que o adotaram, como se verifica mais agressivamente no con-trato de adeso (condies gerais de contrato).

    7. O contrato em novo contexto. No novo contexto determinado pela poltica de interveno do Estado na economia, o contrato sofre duas im-portantes modificaes em sua significao e em sua funo: 1) deixa de ser simplesmente expresso da autonomia privada; 2) passa a ser uma estrutura de contedo complexo e hbrido, com disposies voluntrias e compulsrias, nas quais a composio dos interesses reflete o antagonismo social entre as categorias a que pertencem os contratantes (produtores e consumidores, empregadores e empregados, senhorios e inquilinos).

    Desde o de l ineamento da figura do negcio jurdico pelos jusnaturalistas alemes nos fins do sculo XVIII e, em seguida, pelos pandectistas, o contrato, tido ento como a sua principal espcie, passa a

    31 Fcdcrico de Castro, Ei Negocio Jurdico, p. 3 3. 32 Federico de Castro, ob. ciL, p. 32.

  • Orlando Gomes

    ter um significado e uma funo correspondentes aos pressupostos cultu-rais da poca. Elevado altura de principal motor da vida econmica, signi-fica atuao da liberdade do indivduo na esfera do Direito, e meio para o exerccio do poder de autodeterminao individual. Era, em suma, o gran-de instrumento da autonomia privada. As relaes patrimoniais tinham, nesse poder atribudo aos particulares pelo ordenamento jurdico, a sua fonte exclusiva. Entre esse poder de autodeterminao do indivduo e o contrato h, nesse enfoque, uma conexo que explica a reduo da sua estrutura ao puro acordo de vontades. Em tal contexto, o tratamento doutrinrio do con-trato simples, limitando-se explicao dos seus pressupostos e requisi-tos, do modo por que se forma e se dissolve, de sua classificao, de sua nulidade e de seus tradicionais esquemas tpicos.

    Sucede, porm, que o fenmeno da contratao evolui ao ponto de alterar profundamente esse quadro conceituai." O movimento evolutivo no se caracteriza unicamente pelo aparecimento de numerosas inova-es tcnicas, nem pela consagrao em princpios jurdicos de suspeitas motivaes para justificar a direo e o controle da economia pelo Esta-do. Dirige-se no sentido de uma reconstruo do prprio sistema contratual orientada no sentido de libertar o conceito de contrato da idia de autono-mia privada e admitir que, alm da vontade das partes, outras fontes inte-gram o seu contedo . 3 4 A nova concepo atenta para o dado novo de que, em virtude da poltica interventiva do Estado hodierno, o contrato, quando instrumenta relaes entre pessoas pertencentes a categorias sociais antagnicas, ajusta-se a parmetros que levam em conta a dimen-so coletiva dos conflitos sociais subjacentes. 3 5 Disciplinados por uma legislao avulsa que abandonou a postura tradicional do Cdigo Civil, passam a ser, na explicao de Rodat, um ponto de referncia de inte-resses diversos, uma estrutura aberta que preenchida no apenas por disposies resultantes do acordo de vontades, mas tambm por prescri-es da lei, imperativas e dispositivas, e pela eqidade. (RA) O Cdigo Civil consagrou a boa-f enquanto fonte de integrao do contrato no art. 422 (RA). Do contrato de adeso programao contratada ou con-

    33 Barcellona, Dirilto Privalo e Processo Econmico, p. 254; idem, Intervento Siatale e Au-tonomia Privata; Rodot, Le Fonti di Integrazione dei Contratto, v. estudos do mesmo autor, de Miguel Vasseur e N. Lipari, in IIDiritto Privato nella Socit Moderna, ensaios colecionados por S. Rodot. Cons. as obras de Ripert eSavatier; Ferri, Lezionesul Contratto.

    34 Rodot, ob. cit. 35 Barcellona, ob. cit., p. 257. 0

  • Contratos 19

    trato de programa, toda uma gama de tipos contratuais que ultrapassam os bordos da moldura clssica em que se encaixilhava o contrato na sua configurao pandectista. J alguns contratos esquematizados nos Cdi-gos, como a compra e venda de determinados bens, a locao, o trans-por t e , o s e g u r o e cer tas o p e r a e s b a n c r i a s , c o l o c a m - s e nessa perspectiva nova - o que justifica este esclarecimento preambular e a indicao de figuras que a cincia tradicional, detectando uma crise da noo de contrato, considera teratolgicas. Seria imperdovel ignorar hoje, mesmo num manual, esses novos aspectos da teoria geral do contrato. Os limites tradicionais da autonomia privada so a ordem pblica e bons costumes, mas o seu exerccio tambm restringido pelo expediente da tipicidade dos negcios jurdicos e da determinao legal de todos os efeitos de um negcio tpico (RA), bem como pela atuao dos princpios da boa-f e da funo social do contrato, dentre outros estudados no Captulo 2, da probidade (RA).

    8. A declarao de vontade dos contratantes. A atividade convergente das partes h de se exercer no mesmo plano, no havendo contrato na integrao de declaraes que se completam, como a de autorizao pr-via ou sucessiva e a do ato que a requer.

    Visto que o contrato pressupe declaraes de vontade coincidentes, a de cada parte recebe denominao prpria. Uma h de preceder neces-sariamente outra. A declarao de quem tem a iniciativa do contrato cha-ma-se proposta ou oferta. A do outro, aceitao. Quem faz a oferta, proponente ou policitante. Quem a aceita, oblato ou aceitante.

    Consideradas individualmente, a proposta e a aceitao no so ne-gcio jurdico, embora a proposta , em certos casos, produza efeitos negociais prescritos na lei. , entretanto, ato pr-negocial.

    H sempre sucessividade entre a proposta e a aceitao, podendo o intervalo ser mais ou menos longo se os interessados se defrontam ou se se comunicam atravs de correspondncia epistolar. A aceitao pode ser imediata. Havendo intervalo maior, surge o problema da determinao do exato momento em que se forma o contrato.

    Para que o consenso se forme, proposta e aceitao devem coincidir no contedo.

    Cada qual precisa ser limitada em relao outra. Necessria, em sntese, a correspondncia entre as duas.

    Negcios submetidos s mesmas regras do contrato formam-se atra-vs de comportamento material ou negociai dos sujeitos, estando a se di-

  • 2 0 Orlando Gomes

    fundir n o v a s noes c o m o as de negcio de atuao, declarao tipificada e comportamento omissivo.36

    9. Aspecto material e documentao do contrato. Sob o aspecto ma-terial, o contrato apresenta-se como um conjunto de disposies. A for-mulao dos interesses recprocos obedece a normas consagradas pela praxe, que visam a facilitar sua interpretao. Da a existncia de formu-lrios, que procuram estilizar, em linguagem apropriada, a redao dos contratos nominados. Posto no seja obrigatria a observncia de frmu-las sacramentais, o uso de expresses consagradas aconselhvel para traduzir com mais segurana a inteno das partes. A existncia dessas frmulas, de emprego freqente, possibilita anlise mais objetiva do as-pecto externo dos contratos.

    O instrumento de qualquer contrato compe-se, essencialmente, de duas partes: o prembulo e o contexto.

    No prembulo, procede-se qualidade das partes, declara-se o obje-to do contrato e, de regra, se enunciam as razes determinantes de sua re-alizao ou objetivo que os contratantes tm em mira. Essas disposies preliminares no tm maior relevncia, mas podem, conforme o contedo, constituir parte integrante do contrato propriamente dito, adquirindo ento valor para sua interpretao. 3 7

    O contexto de um contrato compe-se de srie ordenada de dispo-sies, que se chamam clusulas, quando escrito. Nos contratos por ins-trumento particular, as clusulas podem ser datilografadas ou escritas do prprio punho de uma das partes. Nos contratos por instrumento p-blico, o tabelio, em livro prprio, recolhe o ditado pelos contratantes* ou copia a minuta que lhe apresentem. No h limitao para o nmero de clusulas nem ordem a ser obrigatoriamente seguida, mas convm no avolumar o texto com clusulas ociosas ou com a intil reproduo de textos legais e, bem assim, que se procure dar ordenao lgica ao conjunto or-gnico das proposies, usando os termos com propriedade e preciso tcnica.

    36 Mirabelli, L 'Alto non Negoziale; Federico de Castro, El Negocio Jurdico; Santoro Passarelli, Dottrine Generale delDirtto; Rica, Sui Cosidetti Rapporti Contrattuali di Fatto; do autor Contrato de Adeso e Transformaes Gerais do Direito das Obri-gaes.

    37 Messineo, Doltrina Generale dei Contratto, p. 22.

  • Contratos 21

    Pothier distinguia trs espcies de clusulas: essenciais, naturais e aci-dentais. As primeiras so as clusulas sem as quais o contrato no pode existir, como a que estabelece o' preo na compra e venda. As segundas, as que se referem a obrigaes peculiares previstas na lei, que no so, no entanto, compulsrias, como a garantia de evico nos contratos translativos. As ter-ceiras so determinaes acessrias para subordinar a eficcia do contrato a evento futuro, como a enunciao de uma data para limit-la no tempo.

    Nos contratos solenizados em escritura pblica ou celebrados por ins-trumento particular impresso, so habituais algumas proposies invariveis chamadas clusulas de estilo. A validade dessas clusulas depende de expressa meno, ou de confirmao.

    Presumem-se incorporadas ao contrato as clusulas previstas na lei no ressalvadas pelas partes.

    Inserem-se automaticamente no contedo do contrato, substituindo as que lhe forem contrrias, as clusulas impostas em preceitos imperativos da lei. Integram ainda o contedo do contrato os usos contratuais,-'8 assim entendidas as prticas comumente observadas pelos contratantes, mas se lhes recusa eficcia se no resultarem de acordo para sua aceitao, ex-presso ou tcito.

    Se bem que no estejam compreendidos no instrumento do contrato, integram seu contedo os documentos complementares, como ocorre, por exemplo, no contrato de empreitada para a construo de um edifcio, no qual estipulam as partes que as especificaes do material a ser emprega-do na obra constem de escrito anexo. A fim de que esses documentos se tomem parte integrante do contrato, preciso que a eles se faa meno e que sejam autenticados pelos contratantes.

    Para a validade do instrumento, devem as partes assin-lo, depois de o datar, exigindo-se tambm que seja subscrito por duas testemunhas e trans-crito no registro pblico de ttulos e documentos, para que seus efeitos se operem a respeito de terceiro.

    Nos contratos verbais e nos que se formam por escrito sem o estilo 'usual, as disposies so englobadas como condies contratuais.

    10. Significado do contrato. No pacfico o entendimento quanto ao sig-nificado da categoria designada pelo nome de contraio. Ser, para alguns, o acordo de vontades necessrio ao nascimento da relao jur d ica

    38 (RA) Art. 113 do Cdigo Civil (RA).

  • 2 2 Orlando Gomes

    obrigacional; para outros, a prpria relao. A aceitao da proposta pelo oblato impulsiona uma relao na qual, em sua forma mais simples, uma das partes assume a posio de credor e a outra a de devedor quando as duas no to-mam, correlatamente, em situao mais complexa, as duas posies. O vn-culo obrigacional, assim contrado, perdura, produzindo efeitos. Pretende-se que o contrato seja, to-somente, o acordo que o ata. Deve distinguir-se da relao porque alguns efeitos s se produzem com a sua execuo. Assim, nos contratos de durao, como o de trabalho, os direitos do empregado pren-dem-se execuo do acordo inicial de vontades. Desse modo, a relao se distinguiria do contrato propriamente dito. Para outros, a relao a situao das partes imediatamente aps a perfeio e acabamento do contrato.

    Conquanto se venha manifestando a tendncia para dissociar o contrato da relao, principalmente para possibilitar a sobrevivncia desta ao esgota-mento, no tempo, da fora vinculante daquele, a verdade que acordo e re-lao se apresentam, respectivamente, como os aspectos subjetivo e objetivo da mesma entidade jurdica. O alcance do contrato vai da formao extino. , em resumo, uma relao jurdica com todos os seus elementos, e no apenas fora propulsora. No obstante, pode existir relao obrigacional que no resulta de acordo de vontades e este no ser suficiente eventualmen-te para construir a posio jurdica das partes de um contrato.

    11. Funo econmica do contrato. A vida econmica desdobra-se atra-vs de imensa rede dos contratos que a ordem jurdica oferece aos sujeitos de direito para que regulem com segurana seus interesses. Todo contrato tem uma funo econmica, que , afinal, segundo recente corrente doutri-nria, a sua causa.

    Considerada a variedade de funes econmicas que desempenham, classificam-se em contratos:

    a) para promover a circulao de riqueza; b) de colaborao; c) para preveno de risco; d) de conservao e acautelatrios; e) para prevenir ou dirimir uma controvrsia; f) para a concesso de crdito; g) constitutivos de direitos reais de gozo, ou de garantia. 3 9

    3 9

  • Controlos 2 3

    Dentre os contratos reservados para promover a circulao da rique-za, encontram-se os de troca, que se dirigem, nas suas vrias espcies, realizao de um do ut des, do ut facias, facio ut des, facio ut facias. So os de uso mais copioso. Precisa o homem desses instrumentos jurdi-cos para alcanar fins determinados por seus interesses econmicos. mediante um desses contratos que se desfaz de um bem por dinheiro ou em permuta de outro bem; que trabalha para receber salrio; que coopera com ou trem a obter uma vantagem pecuniria; que a outros se associa para re-alizar determinado empreendimento; que previne risco; que pe em cust-dia coisas e valores; que obtm dinheiro alheio; em suma, que participa da vida econmica. Se quer comprar um bem que outrem est disposto a ven-der ou a trocar, a lei lhe oferece instrumento adequado: o contrato de com-pra e venda, ou o de permuta. Se pretende, por liberalidade, transferir de seu patrimnio bens ou vantagens para o de outra pessoa, utiliza o contrato de doao. Se precisa de casa para morar, pode alug-la, celebrando con-trato de locao. Se necessita trabalhar para outrem em troca de salrio, estipula contrato de trabalho. Se pretende de outrem determinada obra, a encomenda, concluindo contrato de empreitada. Se tem necessidade de bem alheio, toma-o por emprstimo, mediante comodato ou mtuo. Se quer que determinada coisa seja guardada por outrem, durante algum tempo, serve-se do contrato de depsito. Se lhe convm que outra pessoa administre seus interesses, confere-lhe poderes bastantes pelo contrato de mandato. Se necessita lograr certo fim juntamente com outrem, a este se associa, reu-nindo esforos e recursos mediante o contrato de sociedade. Se entende que o pagamento de uma dvida deve ser garantido por outrem, exige fian-a, estipulando o respectivo contrato. E assim por diante, cada qual tendo funo econmica especfica.

    A fim de que a vida econmica se desenrole mediante esses instru-mentos jurdicos, no bastam, contudo, os contratos definidos e disciplina-dos na lei. Admitem-se arranjos e combinaes, dignos de proteo, ampliando-se, assim, imensuravelmente, a esfera dos contratos, com o acrs-cimo dos chamados contratos atpicos, tambm chamados inominados (RA), aos quais faz referncia o art. 425 do Cdigo Civil (RA).

    Tamanha a importncia dos contratos como fato econmico, que sua disciplina jurdica constitui a estereotipao do regime a que se subordi-na a economia de qualquer comunidade.

    A funo econmicc-social do contrato foi reconhecida, ultimamente, como a razo determinante de sua proteo jurdica. Sustenta-se que o Direito intervm, tutelando determinado contrato, devido sua funo eco-

  • 2 4 Orlando Gomes

    nmico-social. Em conseqncia, os contratos que regulam interesses sem utilidade social, ruteis ou improdutivos, no merecem proteo jurdica. Merecem-na apenas os que tm funo econmico-social reconhecidamente til. A teoria foi consagrada no Cdigo Civil italiano, conquanto encontre opositores/ 0

    Na afirmao de que o contrato exerce uma funo social, o que se quer significar, em suma, que deve ser socialmente til, de modo que haja interesse pblico na sua tutela. (RA) O princpio da funo social do con-trato, previsto no art. 421 do Cdigo Civil, estudado no Captulo 2 (RA). Entretanto, o reconhecimento de que todo contrato tem funo econmico-social feito por alguns de modo diverso, os quais destacam a "funo tpi-ca de cada contrato", isto , a funo que serve para "determinar o tipo ou os caracteres tpicos de cada contrato". 4 ' A essa funo tpica dos con-tratos liga-se a moderna doutrina objetiva da causa. 4 2

    40 Cons. Gino Gorla, // Contratto, vol. I o, pp. 199 e segs. 41 Gorla, ob. cit., vol. Io, p. 206. Esclarecendo esse sentido em que se emprega a expres-

    so funo social, Gorla d o seguinte exemplo: a compra e venda tem a funo tpica da troca entre dinheiro e bens.

    42 Betti, Teoria General dei Negocio Jurdico; Scognamiglio, Contributo alia Teoria dei Negozio Giuridico; Federico de Castro, El Negocio Jurdico; Diez Picazo, Fundamen-tos dei Derecho Civil Patrimonial, Ver, infra, n" 34.

  • Captulo 2

    PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DO REGIME CONTRATUAL

    Sumrio: 12. Princpios gerais. 13. Princpio da autonomia da vonta-de. 14. Limitaes liberdade de contratar. 15. Derrogaes e mutilaes. 16. Limitao liberdade de modificar o esquema legal do contrato. 17. Processos tcnicos para coibir abusos. 18.0 princpio do consensualismo. 19. Princpio da fora obrigatria, 20.Teoria da impreviso. 21. Princpio da boa-f. 22. Prin-cpio da relatividade dos efeitos dos contratos. (RA) 23. Princpio do equil-brio econmico. (RA) 24. Princpio da funo social do contrato. (RA)

    12. Princpios gerais. O Direito dos contratos repousa em quatro princ-pios: 1) o da autonomia da vontade; 2) o do consensualismo; 3) o da fora obrigatria; 4) o da boa-f.1 (RA) Os trs primeiros podem ser chamados tradicionais. A boa-f, por sua vez, embora j estivesse presente no Cdigo Comercial de 1850, assumiu na doutrina contempornea sentido e funes inteiramente novos, desempenhando papel de destaque no Cdi-go Civil de 2002. Ao lado dela, pode-se acrescentar dois outros princpios norteadores do regime contratual na nova codificao, o princpio do equi-lbrio econmico do contrato e o princpio da funo social do con-trato. Afirma-se, assim, que atualmente h trs pr incpios clssicos (autonomia da vontade, consensualismo e fora obrigatria, aos quais se pode reconduzir o princpio da relatividade dos efeitos contratuais) e trs novos princpios contratuais (boa-f, equilbrio econmico e funo social). (RA)

    13. Princpio da autonomia da vontade. O principio da autonomia da vontade particulariza-se no Direito Contratual na liberdade de contratar. Significa o poder dos indivduos de suscitar, mediante declarao de vonta-de, efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurdica. No exerccio des-

    1 Henri de Page, Trait lmentaire de Droit Civil Beige, t. II, p. 425.

  • 2 6 Orlando Gomes

    se poder, toda pessoa capaz tem aptido para provocar o nascimento de um direito, ou para obrigar-se. A produo de efeitos jurdicos pode ser de-terminada assim pela vontade unilateral, como pelo concurso de vontades. Quando a atividade jurdica se exerce mediante contrato, ganha grande extenso. Outros conceituam a autonomia da vontade como um aspecto da liberdade de contratar, no qual o poder atribudo aos particulares o de se traar determinada conduta para o futuro, relativamente s relaes dis-ciplinares da lei.

    O conceito de liberdade de contratar abrange os poderes de auto-regncia de interesses, de livre discusso das condies contratuais e, por fim, de escolha do tipo de contrato conveniente atuao da vontade. Manifesta-se, por conseguinte, sob trplice aspecto: a) liberdade de con-tratar propriamente dita; b) liberdade de estipular o contrato; c) liber-dade de determinar o contedo do contrato.

    A liberdade de contratar propriamente dita o poder conferido s partes contratantes de suscitar os efeitos que pretendem, sem que a lei imponha seus preceitos indeclinavelmente. Em matria contratual, as dis-posies legais tm, de regra, carter supletivo ou subsidirio, somente se aplicando em caso de silncio ou carncia das vontades particulares. 2

    Prevalece, desse modo, a vontade dos contratantes. Permite-se que regu-lem seus interesses por forma diversa e at oposta prevista na lei. No esto adstritas, em suma, a aceitar as disposies peculiares a cada contra-to, nem a obedecer s linhas de sua estrutura legal. So livres, em conclu-so, de determinar o contedo de contrato, nos limites legais imperativos.

    O princpio da liberdade de contratar toma-se mais inteligvel luz da distino entre leis coativas e supletivas. As primeiras ordenam ou probem algum ato, determinando o que se deve e o que no se deve fazer.3

    Quando ordenam, dizem-se imperativas. Quando probem, proibitivas. Destinam-se as leis supletivas a suprir ou completar a vontade do indiv-duo, aplicando-se quando ele no a declara. Ora, o Direito Contratual cons-titui-se, predominantemente, de normas supletivas, deixando, portanto, larga margem vontade dos que agem em sua esfera. Nesse territrio, a liber-dade de contratar domina amplamente.

    2

    3

    Henri de Page, ob. cit., p. 425. unot, Le Prncipe de l 'Autonomie de la Volont; Duguit, Les Transformations Gnrales du Droit Prive; Betti, Teoria dei Negocio Jurdico. Introduo ao Direito Civil.

  • No procede a observao de que a autonomia das partes mais apa-rente do que real, feita sob o fundamento de que estas se submetem, quase sempre, aos preceitos legais, despreocupando-se dos efeitos secundrios do contrato. 4 Se verdade que ocorre freqentemente a submisso dos con-tratantes s normas supletivas do Direito Contratual, nem por isso a liber-dade de contratar um postulado acadmico. Em cada contrato usa-se com maior ou menor extenso, dependendo da convenincia das partes. Se a

    dispensam freqentemente porque a lei condensa, via de regra, os precei-tos usuais que costumam reger o contedo dos contratos mais comuns. Somente, pois, quando lhes convm regul-los de modo diverso que fa-zem valer a liberdade que lhes assegurada.

    A circunstncia de serem supletivas em grande nmero as regras do Direito Contratual no significa que sua aplicao fica ao arbtrio das par-tes se no regulam expressamente certos efeitos do contrato. A omisso determina-lhes a incidncia no contrato, aplicando-se, obrigatoriamente, no suposto de que traduzem a vontade das partes. A aplicao inelutvel, prevalecendo ainda quando fosse outra. Enfim, a norma, em princpio fa-cultativa, toma-se obrigatria para os contratantes, 5 uma vez que no te-nham previsto, por outro modo, o efeito disciplinado, em termos gerais e impessoais, pela lei.

    O Direito Contratual compe-se de leis supletivas, ou dispositivas, mas tambm de leis coativas. At mesmo quando o princpio da autonomia da vontade alcanou a maior amplitude se reconhecia a necessidade de normas imperativas, tanto de inspirao poltica como por injunes da tcnica jurdica. Em qualquer regime contratual, so indispensveis normas inderrogveis pela vontade das partes.

    14. L imi taes l i be rdade de c o n t r a t a r . A liberdade de contratar, propriamente dita, jamais foi ilimitada. Duas limitaes de carter geral sempre confinaram-na: a ordem pblica e os bons costumes. Entendia-Se, como ainda se pensa, que as pessoas podem auto-regular seus interes-ses pelo modo que lhes convenha, contando que no transponham esses limites.

    Mas essas limitaes gerais liberdade de contratar, insertas nos cdigos como excees ao princpio da autonomia da vontade, jamais pude-

    4 Colin et Capitant, Cours lmentaire de Droit Civil Franais, t. II, p. 274. 5 Bessone, Aspectos da Evoluo da Teoria dos Contratos.

  • 2 8 Orlando Gomes

    ram ser definidas com rigorosa preciso. A dificuldade, seno a impossibi-lidade, de conceitu-las permite sua ampliao ou restrio conforme o pensamento dominante em cada poca e em cada pas, formado por idias morais, polticas, filosficas e religiosas. Condicionam-se, em sntese, or-ganizao poltica e infra-estrutura ideolgica.

    A despeito, porm, das suas flutuaes e da assinalada dificuldade de reduzi-las a termos puramente objetivos, tem-se procurado fixar o conceito tanto de ordem pblica como de bons costumes, para que no variem ao sabor de convices pessoais dos aplicadores da lei.

    Em larga generalizao, pode-se dizer que as limitaes liberdade de contratar inspiram-se em razo de utilidade social. 6 Certos interesses so considerados infensos s bases da ordem social ou se chocam com os princpios cuja observncia por todos se tem como indispensvel norma-lidade dessa ordem. Diz-se, ento, que ferem as leis de ordem pblica e os bons costumes.

    A lei de ordem pblica seria "aquela que entende com os interesses essenciais do Estado ou da coletividadei ou que fixa, no Direito Privado, as bases jurdicas fundamentais sobre as quais repousa a ordem econmica ou moral de determinada sociedade". 7 Essa idia geral no traa diretriz sufi-cientemente clara para guiar o juiz obrigado a invoc-la, porquanto no fcil determinar taxativamente os interesses essenciais do Estado e. da coletividade, variveis em funo at do regime poltico dominante. Por outro lado, os pilares da ordem econmica e moral de determinada sociedade so em nmero reduzido. Considerados apenas os fundamentais, limitar-se-ia, demasiadamente, o conceito de ordem pblica.

    Recorre-se ao expediente da enumerao exemplificativa, tentando-se classific-los, como segue: I o ) as leis que consagram ou salvaguardam o princpio da liberdade e da igualdade dos cidados, e, particularmente, as que estabelecem o princpio da liberdade de trabalho, de comrcio e de in-dstria; 2 o ) as leis relativas a certos princpios de responsabilidade civil ou a certas responsabilidades determinadas; 3 o ) as leis que asseguram ao oper-rio proteo especial; 4) as leis sobre o estado e capacidade das pessoas; 5 o ) as leis sobre o estado civil; 6 o ) certos princpios bsicos do direito here-ditrio como os relativos legtima e o que probe os pactos sobre sucesso futura; 7 o) as leis relativas composio do domnio pblico; 8 o ) os princpios

    6 Cf. Henri de Page, t. 1 , p. 100. 7 Henri de Page, ob. cit., t. I o, p. 102.

  • Contratos 2 9

    .fundamentais do direito de propriedade; 9 o) as leis monetrias; e 10) a proi-bio do anatocismo. 8

    Via de regra, as leis coativas so de ordem pblica, uma vez que tambm no podem ser derrogadas pela vontade particular - privatorum pactis mutari non poiest. Incorreria em equvoco, todavia, quem as equi-parasse. Se toda lei de ordem pblica imperativa, ou proibitiva, nem toda lei coativa de ordem pblica. Para a proteo de certos interesses privados, contm a lei preceitos coativos, mas as disposies que tendem a essa finalidade no entendem com os interesses essenciais da sociedade, no se considerando, portanto, regras de ordem pblica.

    A n o o de bons costumes oferece a mesma d i f i cu ldade de conceituao. No h expresses gerais para defini-la em termos precisos. Parece ser projeo de regras morais no terreno jurdico, mas no se con-funde com a Moral.

    Na impossibilidade de formular conceito preciso, a doutrina socorre-se, igualmente, do expediente da enumerao, considerando contrrios aos bons costumes, dentre outros, os seguintes contratos: I o ) os relativos explorao de casas de tolerncia; 2 o ) os concernentes s relaes entre concubinros; 3 o ) os que tm por objeto a corretagem matrimonial; 4 o ) os que dizem respeito ao jogo; 5 o ) os que objetivam a venda ou o comrcio de influncia; 6 o ) os que consagram, sob qualquer forma, a usura no mtuo. 9

    Os contratos que tm causa contrria a leis de ordem pblica e aos bons costumes so nulos. Declarando-os invlidos, o ordenamento jurdico estatui, por esse modo, limitaes de ordem geral liberdade de contra-tar. Em conseqncia, firma-se o princpio de que toda declarao de von-tade produz o efeito desejado, se lcita for sua causa.

    Mas essas limitaes autonomia privada, que sempre existiram, no eram suficientes para impedir a prtica de abusos. Pois consentiram o exer-ccio da liberdade de contratar com uma desenvoltura que tomara excessi-vo o poder da vontade, como, afinal, se veio a reconhecer. (RA) De acordo com o art. 421 do Cdigo Civil, a liberdade de contratar tambm encontra limite na funo social do contrato, adiante estudada. (RA)

    15. Derrogaes e mutilaes. Quando se apreciam as conseqncias prticas do uso da liberdade de contratar num regime de desigualdade

    8 Henri de Page, ob. cit., t. T, p. 103. 9 Henri de Page, ob. cit., t. I o, p. 112.

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    econmica como o que resultou do desenvolvimento do capitalismo, a im-presso mais viva a da absteno do Estado no momento da formao dos contratos. O princpio da igualdade de todos perante a lei conduziu logicamente indiferena da ordem jurdica pela situao das partes de qualquer contrato. No pressuposto dessa igualdade meramente terica pre^ sumia-se que os interessados em contratar precediam o contrato, qualquer que fosse, de livre discusso, na qual seus interesses divergentes encon-travam, afinal, denominador comum. Como toda obrigao importa limita-o da liberdade individual, o contratante que a assumisse estaria praticando ato livre de todo constrangimento, j que tinha a liberdade de celebrar, ou no, o contrato. Por princpio, a limitao da liberdade haveria de ser volun-tria e os efeitos jurdicos do contrato realizado, fossem quais fossem, pre-sumiam-se queridos pelas partes. A omisso da lei na determinao do contedo dos contratos justificava-se diante do princpio que assegurava a liberdade dos contratantes na sua formao. Partes iguais e livres no pre-cisavam da interferncia legislativa para impedir a estipulao de obriga-es onerosas ou vexatrias. O poder de contra-las livremente, aps a discusso das condies contratuais, foi tido como um dos aspectos funda-mentais da liberdade de contratar, tanto que os primeiros passos para evitar que um dos contratantes, por sua posio mais favorvel, impusesse ao outro sua vontade, eliminando as negociaes preliminares sobre o contedo do contrato, foram considerados intolerveis restries liberdade.

    Mas de tal modo se abusou dessa liberdade, sobretudo em algumas espcies contratuais, que a reao cobrou foras, inspirando medidas legislativas tendentes a limit-las energicamente. O pensamento jurdico modificou-se radicalmente, convencendo-se os juristas, como se disse lapidarmente, que entre o forte e o fraco a liberdade que escraviza e a lei que liberta. 1 0

    Muitos contratos passaram a se formar pela adeso inevitvel de uma das partes s clusulas impostas pela outra. Por outro lado o contedo de outros veio a ser regulamentado insubstituivelmente por preceitos legais imperativos. Tais alteraes atingiram a liberdade de formao do vnculo '

    10 Lacordaire. A expresso "dirigismo contratual" significa, para Josserand, seu criador, que o contrato se tornou uma operao dirigida, seja pelo poder pblico, legislador ou juiz, seja por um s dos contratantes, que impe sua frmula e suas condies ao outro - Tendences actuelles du contra. Ver do autor Contrato de Adeso, Ed. Rev. dos Tribunais. .

  • Contratos 31

    contratual, influindo no prprio conceito de contrato. Falou-se, ento, na decadncia do contrato,11 porque as clusulas de alguns deixaram de ser livremente determinadas pelas partes. Afirmou-se que a noo clssica deixara d corresponder realidade. Relaes jurdicas, oriundas tradicio-nalmente de contrato, passaram a ser explicadas com efeito de causa di-versa, admitida, como foi, por certas correntes doutrinrias, a natureza unilateral do ato de formao.

    , assim, interessante passar em revista alguns desses agravos sua incolumidade no empenho e compromisso de averiguar se respondem a definitiva e irreversvel mudana na evoluo do Direito Privado e se re-presentam a propagao no territrio jurdico de um movimento mais pro-fundo na estrutura e na funcionalidade do arcabouo cultural da sociedade.

    Em resumo, interessa interpret-las para verificar se constituem os sinais da decadncia do contrato como o instrumento por excelncia da vida econmica e de sua incapacidade para atender s exigncias de uma socie-dade de massa onde - como j se disse expressivamente - muito mais do que de contrato se deveria falar de ditado.

    O mtodo mais aconselhado para proceder anlise investigatria o da definio em cada aspecto da liberdade contratual, de suas principais derrogaes, limitaes ou mutilaes.

    O princpio de que toda pessoa pode soberanamente abster-se de con-tratar sofre excees cada vez mais importantes e numerosas.

    Tais excees ocorrem quando o indivduo: a) tem de aceitar, sem alternativa, uma proposta ou oferta de contrato; b) tem de concorrer para a formao de um vnculo contratual. Nessas duas situaes, diz-se que h obrigao de contratar. Tm-na: a) os que se encarregam da prestao dos servios pblicos, ou dos

    servios de assistncia vital, tambm chamados de primeira necessidade; b) os que exercem atividade econmica em carter de monoplio. A obrigao de contratar pode ser imposta pela lei ou resultar da von-

    tade particular. So impostas pela lei: a) a dos monoplios legais e, segundo alguns, dos monoplios de fato; b) a que, embora no seja de monoplios, nasce tal como se fosse, por

    exemplo, a das companhias de seguros em relao aos seguros obrigatrios.

    11 Morin, La Loi et le Contra.

  • 3 2 Orlando Gomes

    Derivam da vontade particular as obrigaes: a) contradas em contrato preliminar; b) provenientes do chamado legado de contrato. A obrigao de contratar estipulada em um negcio jurdico preliminar

    ou pr-contrato , quando possvel, cumprida at por efeito de sentena ju-dicial substitutiva. 1 2

    O legado de contrato uma disposio testamentria pela qual o tes-tador impe ao herdeiro prestar alimentos a determinada pessoa.

    A multiplicao das obrigaes de contratar provocou importantssi-ma mudana no cumprimento das obrigaes de fazer, a possibilidade de se obter uma sentena que produza os efeitos do contrato no concludo. O Cdigo de Processo Civil de 1973 aceitou essa soluo, tendo reproduzido a disposio do Cdigo Civil italiano (art. 2.932). 1 3

    A inovao pode estender-se, com proveito, s obrigaes legais de contratar.

    A liberdade de determinao do contedo do contrato vem sendo restringida por diferentes processos e atravs de novas tcnicas negociais.

    Antes de indic-las interessante apontar alguns modos por que se vem determinando habitualmente o contedo dos contratos. Tais so:

    a) a insero de clusulas necessrias; b) a insero de clusulas de uso; c) a redao de condies gerais atravs de clusulas uniformes; d) o formulrio. So clusulas necessrias as em que a lei exige a incluso no con-

    tedo do contrato e as que esto legalmente subentendidas. Chamam-se de uso as clusulas habituais que integram o contedo de

    certos contratos, exercendo importante funo complementar e interpretativa. Conhecem-se pela expresso clusulas de estilo.

    Para uniformidade do tratamento contratual nas relaes de massa ou em srie, tornou-se comum o novo processo de formao de tais vnculos consistente na elaborao das clusulas por um dos sujeitos para aceitao global do outro. So as chamadas condies gerais dos contratos, mais conhecidos entre ns pela expresso contrato de adeso.

    12 (RA) Art. 464 do Cdigo Civil (RA). 13 Rescigno, Manuale dei Diritto Privato Italiano, p. 253; no Direito ptrio as obras de

    Comentrios ao Cdigo de Processo Civil.

  • Contratos 33

    O contedo dos contratos de formulrio enche-se de clusulas habi-tuais que, por isso mesmo, permitem ser impressas, sem que revelem o fe-nmeno de integrao do contedo normativo do contrato como sucede com as condies gerais do contrato.

    Importante limitao liberdade de determinao do contedo do con-trato resulta de outro ato de autonomia privada chamada negcio ou con-trato normativo. Trata-se de um acordo de vontades pelo qual dois grupos traam regras para o contedo de uma srie de contratos a se conclurem pelos indivduos a eles pertencentes. O contrato normativo tpico o con-trato coletivo de trabalho.

    Outras limitaes interessantes encontram-se nos contratos associativos stricto sensu e nos contratos abertos. Realmente, quem ingressa numa associao no tem liberdade de negociar as condies do vnculo que lhe interessa constituir; limita-se a aderir s clusulas formuladas em artigos do seu estatuto. Livre tambm no , para negociar o contedo da relao, quem deva participar de um contrato em cuja celebrao no tomou parte, nele ingressando depois de concludo.

    A determinao, pelas partes, do contedo do contrato completamente eliminada nas relaes submetidas a uma regulamentao autoritria. Inserem-se automaticamente s clusulas constantes de regulamento legal, to numerosas que praticamente se anula a vontade das partes. Nesses contratos, a rea da autonomia privada est comprimida, a muito pouco se reduzindo.

    16. Limitao liberdade de modificar o esquema legal do contrato. A liberdade de modificar o esquema legal do contrato, respeitados os seus elementos naturais, est a sofrer as limitaes mais drsticas em virtude da intensificao da tendncia autoritria consistente na substituio das re-gras dispositivas pelas de carter imperativo.

    To acentuada tem sido essa mudana no tratamento legal dos con-tratos que novas figuras tm aparecido na rea da autonomia privada, mas to esquisitas que se duvida de seu carter contratual.

    O contrato de adeso, j referido, , talvez, a mais discutida dessas figuras, mas a doutrina moderna tenta isolar outras que conservam a apa-rncia contratual, dentre as quais despontam como as mais interessantes o contrato coativo e o contrato necessrio.

    O contrato coativo, pns ide r ado p o r a lguns uma re lao paracontratual, aquele em que a lei obriga as partes a estipul-lo sem al-ternativa ou a conser\4-lo mesmo contra a vontade de uma das partes.

  • 3 4 Orlando Gomes

    Enquadram-se na categoria o seguro obrigatrio e a locao prorroga-da por determinao legal.

    J o chamado contrato necessrio resulta do permanente estado de oferta contratual de certos sujeitos de direito, como as empresas concessi-onrias de servios pblicos. Tais pessoas no podem recusar-se a contra-tar, falecendo-lhes, pois, no s a liberdade de escolher a contraparte, mas tambm a de afastar as regras constantes do regulamento a que devem-obedincia, em certos setores, para a publicizao do contrato em virtude da qual o Direito Pblico absorve o contedo da relao contratual. 1 4 Nos contratos de interesse social, como o de venda de gneros de primeira ne-cessidade, os de exportao e importao, os crediticios e de um modo geral naqueles em que se faz necessria a proteo da parte mais1 fraca, a inter-veno do Estado nos respectivos contedos vem ocorrendo incisivamente por meio de uma tutela administrativa que o preenche mediante regulamen-to da autoridade pblica.

    Quanto liberdade de contratar fora dos tipos mencionados e disci-plinados na lei (contratos norninados ou tpicos), a derrogao ocorre ba-sicamente nos contratos e pactos de Direito de Famlia. (RA) Nessa rea nota-se, contudo, uma tendncia revalorizao da liberdade de contra-tar, com a possibilidade de alterar o regime de bens do casamento 1 5 e os pactos em matria de unio estvel. 1 6 (RA) Por via reflexa, como uma conseqncia natural da tipicidade dos direitos reais, verifica-se, tambm, em relao aos contratos cohstitutivos desses direitos e aos translativos da propriedade. Limitaes existem, igualmente, no setor do Direi to Societrio. regra aceita, finalmente, que as obrigaes nascidas da de-clarao unilateral de vontade s se admitem nas figuras expressamente disciplinadas na lei.

    A significao da poltica legislativa de limitao, em todos os seus aspectos, da liberdade contratual, pode-se definir tentando-se visualiz-lo na tica das repercusses do seu exerccio na vida econmica e social.

    Nessa perspectiva, observam-se trs reflexos hoje cristalinos: I o ) a descentralizao da produo jurdica pela liberdade de contratar

    entregou aos fortes o poder de dominar os fracos (economicamente, cir-cunstancialmente) - Max Weber;

    14

    15 16

    Khalil, Le Dirigisme Economique et les Contrats, p. 272. (RA) Art. 1.639, 2 o , do Cdigo Civil (RA). (RA) Art. 1.725 do Cdigo Civil (RA).

  • Contratos 35

    2 o ) a massificao das relaes contratuais eliminou a possibilidade de sua constituio pelo contrato clssico, tornando-o impotente "para fazer face s exigncias de uma sociedade que no se esteia mais no indivduo isolado" - Meucci;

    3 o) a organizao da economia em grandes empresas e concentraes econmicas lhes assegurou um poder to forte que "o ato do seu exerccio se realiza pelas formas de coero e autoridade prprias das atividades pblicas" - Lisserre.

    Com efeito, o resultado negativo do exerccio da liberdade contratual foi condensado magnificamente numa frase de Lacordaire que se tornou famosa: "Entre o fraco e o forte a liberdade que escraviza e a lei que li-berta." A experincia demonstrou, muitas vezes cruelmente, o acerto desse pensamento.

    Relaes uniformes que se travam em massa (basta pensar nos mi-lhes de contratos de transporte que se concluem diariamente) no poderi-am estar sujeitas aos princpios da liberdade contratual. Seria praticamente impossvel. Eis por que um dado da experincia quotidiana acaba com o "primado da vontade individual" florescente na sociedade atomstica do sculo XIX e torna imprestvel seu magnfico instrumento - o contrato tra-dicional. E de tal modo realmente nossa vida de todos os dias repleta de compromissos e obrigaes preestabelecidos por outrem sem o concurso de nossa vontade.

    Finalmente, assistimos a fenmeno extremamente curioso da prtica, por particulares, de atividades que j tomaram pblicas por seu interesse social. O poder que tm esses particulares s privado do ponto de vista dos sujeitos que o exercem. No fundo, so poderes de Direito Pblico.

    A derradeira nota parece ser a mais importante inclusive nas implica-es que encerram essa contradio.

    17. Processos tcnicos para coibir abusos. O complexo de poderes enfeixados no principio da liberdade de contratar vem perdendo a elas-ticidade original. A evoluo do Direito desenrola-se flagrantemente na di-reo oposta s teses do individualismo jurdico. Compreende-se. A regra da autonomia da vontade representa menos um princpio do que uma po-ltica negativa, de absteno, de no-interveno. 1 7 Corresponde, no plano

    17 Jean Dabiri, La Technique de /'laboration du Droit Positif, p. 35.

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    jurdico, concepo liberal do Estado. O movimento de reao s conse-qncias dessa filosofia irradiou-se com tamanha veemncia, que ningum mais defende a conservao de suas primeiras concepes. O sentido novo dado aos seus postulados fundamentais precisa, assim, ser fixado, para uma definio precisa das atuais matrizes filosficas do Direito Contratual.

    O sentido de evoluo ainda no foi apontado com segurana. Seria prematuro afirmar-se que o principio da autonomia da vontade ser eli-minado ou to restringido que a liberdade de contratar se reduz escolha do tipo contratual definido na lei, com todos os efeitos regulados imperati-vamente. Em vez de especular sobre a sua sorte ou a respeito da evoluo das obrigaes, mais vale, para no fugir realidade, enunciar os proces-sos tcnicos que o Direito Positivo da atualidade utiliza para evitar ou coi-bir as conseqncias inadmissveis da aplicao dos dogmas individualistas em sua pureza original.

    Esses meios tcnicos so 1 ) a converso de leis supletivas em leis imperativas; 2 o ) o controle da atividade de certas empresas; 3 o ) a discus-so corporativa.

    O processo de converso de leis supletivas em imperativas ensejou a elaborao de novo princpio do Direito Contratual, o da regulamentao legal do contedo dos contratos, hoje admitido, sem maior relutncia, em relao a certas espcies contratuais. Consiste em regular o contedo do contrato por disposies legais imperativas, de modo que as partes, obriga-das a aceitar o que est predisposto na lei, no possam suscitar efeitos jur-dicos diversos. Em conseqncia, a vontade deixa de ser autnoma e a liberdade de contratar retrai-se. No mais regras supletivas, que as partes observam se coincidem com seus interesses, mas normas imperativas, a cuja obedincia no podem furtar-se. Contratos padronizados. Fala-se, ento, em dirigismo contratual.

    A interveno tambm ocorre mediante controle estatal da constitui-o e do funcionamento de empresas cuja atividade interessa economia popular ou se exerce no setor da assistncia vital. O Estado faz depender de sua autorizao o funcionamento dessas empresas, condicionando-o a que assumam certas obrigaes nos contratos para o cumprimento de suas finalidades.

    18 Henri de Page, ob. cit., t. II, p. 430. A interveno do legislador vai ao ponto de impor o limite do valo/da prestao, como ocorre com o tabelamento de gneros, mercado-rias e servios, a fixao de aluguis e a limitao da taxa de juros e multas contratuais.

  • Contratos 3 7

    O terceiro processo tcnico importa regresso ao princpio da liberda-de de contratar mediante a restaurao do equilbrio de foras dos contra-tantes. As pessoas, que podem figurar numa relao jurdica como uma de suas partes, organizam-se, fortalecendo-se, para que, na formao do con-trato, em que so interessadas, discutir as condies contratuais em p de igua ldade com a ou t r a parte. T rava - se , nesse ca so , a discusso corporativa, como ocorre, expressamente, no contrato coletivo de tra-balho. Esse processo tcnico afasta a regulamentao autoritria, subs-tituindo-a pela aquiescncia livre dos interessados. 1 9

    Em ltima anlise, as medidas tcnicas decorrem do reconhecimento de que a desigualdade real entre os contratantes favorece o abuso do mais forte. Procura-se corrigi-la, compensando-se a inferioridade econmica ou circunstancial de uma das partes com uma superioridade jurdica, segundo a frmula de Gallart Folch, 2 0 ou com a possibilidade, atravs do esprito associativo, da restaurao da equivalncia de foras.

    18. O princpio do consensualismo. A idia de que'o simples consenti-mento basta para formar o contrato conquista recente do pensamento jurdico. Nas civilizaes anteriores, dominavam o formalismo e o simbolis-mo. A formao dos contratos subordinava-se obedincia de determina-da forma ritual.

    A evoluo do Direito Contratual em Roma prova que o ritual tinha importncia decisiva. Os contratos reais realizavam-se per aes et libram, solenidade executada pelo libripens, que consistia no ato simblico de pe-sar numa balana. Os contratos verbais, pela stipulatio. Os contratos literais s se perfaziam com a redao de um escrito - litteris - o qual no servia apenas para a prova, mas para lhes dar existncia. Formavam-se pelas nomina transcripticia e pelos chirographa e syngraphae. So-mente nos contratos consensuais chegaram a admitir a formao pelo simples consentimento. Eram, porm, de nmero escasso.

    No Direito hodierno vigora o principio do consentimento, pelo qual o acordo de vontades suficiente perfeio do contrato. 2 1 Em princpio,

    19 Henri de Page, ob. cit., t. II, p. 431. 20 Las Convenciones Colectivas de Trabajo. 21 O princpio do consensualismo considerado, por alguns, manifestao do liberalis-

    mo, mas foi conservado nas legislaes que se libertaram dessa influncia, posto se note sua inclinao para o formalismo em novas bases.

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    no se exige forma especial. O consentimento - solo consensu - forma os contratos, o que no significa sejam todos simplesmente consensuais, alguns tendo sua validade Condicionada realizao de solenidades estabelecidas na lei e outros s se perfazendo se determinada exigncia for cumprida. Tais so, respectivamente, os contratos solenes e os contratos reais. As excees no infirmam, porm, a regra, segundo a qual a simples operao intelectual do concurso de vontades pode gerar o contrato.

    19. Princpio da fora obr iga tr ia . O princpio da fora obrigatria consubstancia-se na regra de que o contrato lei entre as partes. Celebra-do que seja, com observncia de todos pressupostos e requisitos necessrios sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas clusulas fos-sem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente seu contedo, vale dizer, definidos os direitos e obrigaes de cada parte, as respectivas clusulas tm, para os contratantes, fora obri-gatria. Diz-se que intangvel, para significar-se a irretraiabilidade do acordo de vontades. Nenhuma considerao de eqidade justificaria a re-vogao unilateral do contrato ou a alterao de suas clusulas, que so-mente se permitem mediante novo concurso de vontades. O contrato importa restrio voluntria da liberdade; cria vnculo do qual nenhuma das partes pode desligar-se sob o fundamento de que a execuo a arruinar ou de que no o teria estabelecido se houvesse previsto a alterao radical das circunstncias.

    Essa fora obrigatria atribuda pela lei aos contratos a pedra angu-lar da segurana do comrcio jurdico.

    O princpio da intangibilidade do contedo dos contratos significa im-possibilidade de reviso pelo juiz, ou de libertao por ato seu.

    As clusulas contratuais no podem ser alteradas judicialmente, seja qual for a razo invocada por uma das partes. Se ocorrem motivos que jus-tificam a interveno judicial em lei permitida, h de realizar-se para decre-tao da nulidade ou da resoluo do contrato, nunca para a modificao do seu contedo.

    Dada ao princpio da fora obrigatria dos contratos, essa inteli-gncia larga no se apresenta como corolrio exclusivo da regra moral de que todo homem deve honrar a palavra empenhada. Justifica-se, ademais, como decorrncia do prprio princpio da autonomia da vontade, uma vez que a possibilidade de interveno do juiz na economia do contrato atingiria o poder de obrigar-se, ferindo a liberdade de contrata/.

  • Contratos 3 9

    A necessidade lgica de preservar de estranhas interferncias a esfe-ra da autonomia privada conduziu necessariamente ao robustecimento do princpio da intangibilidade do contedo dos contratos. No contexto normal desse princpio, no seria possvel admitir que a supervenincia de aconte-cimentos determinantes da ruptura do equilbrio das prestaes pudesse autorizar a interveno do Estado, pelo rgo da sua magistratura, para restaur-lo ou liberar a parte sacrificada. Cada qual que suporte os preju-zos provenientes do contrato. Se aceitou condies contratuais extremamen-te des vantajosas, a presuno de que foram estipuladas livremente impede se socorra da autoridade judicial para obter a suavizao, ou a libertao. Pacta sunt servanda. Ao Direito indiferente a situao a que fique redu-zido para cumprir a palavra dada.

    Esse princpio mantm-se no Direito atual dos contratos com atenua-es que lhe no mutilam a substncia. As excees preconizadas, e j admitidas, com hesitao, em poucas legislaes revelam forte tendncia para lhe emprestar significado menos rgido, mas no indicam que venha a ser abandohado, at porque sua funo de segurana lhe garante a sobre-vivncia. O que mais se no admite o sentido absoluto que possua. Atri-bui-se-lhe, hoje, relatividade que a doutrina do individualismo recusava. O intransigente respeito liberdade individual que gerara intolerncia para com a interveno do Estado cedeu antes novos fatos da realidade social, ces-sando, em conseqncia, a repugnncia a toda limitao dessa ordem. Pas-sou-se a aceitar, em carter excepcional, a possibilidade de interveno judicial do contedo de certos contratos, admitindo-se excees ao princ-pio da intangibilidade. Em determinadas circunstncias, a fora obrigatria dos contratos pode ser contida pela autoridade do juiz. Conquanto essa ati-tude represente alterao radical nas bases do Direito dos contratos, como parece a alguns entusiastas do poder pretoriano dos juizes, a verdade que, no particular, houve sensvel modificao do pensamento jurdico.

    A mudana de orientao deve-se a acontecimentos extraordinrios, que revelaram a injustia da aplicao do princpio nos seus termos absolu-tos. Aps a primeira conflagrao mundial, apresentaram-se, em alguns pases beligerantes, situaes contratuais que, por fora das circunstncias, se tornaram insustentveis, em virtude de acarretarem onerosidade exces-siva para um dos contratantes. Na Frana, o Conselho de Estado admitiu, ento relativamente a contratos de concesso de servio pblico, que seu contedo poderia ser revisto, desde que novas circunstncias, fora de toda previso, houvessem determinado, para o cumprimento das obrigaes, ta-manha onerosidade. que a Sua execuo importasse a runa econmica do

  • 4 0 Orlando Gomes

    devedor. A Lei Failliot, de 21 de maio de 1918, embora de emergncia, con-sagrou, de modo ntido, o princpio da reviso, dispondo que os contratos mercantis estipulados antes