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ANTONIO GRAMSCI Coleção PERSPECTIVAS DO HOMEM Volume % 48 Série Filosofia Direção de MOACYR FELIX Os Intelectuais e a Organização da Cultura Tradução de CARLOS NELSON COUTINHO 4. a edição civilização brasileira

Gramsci- Antonio Os Intelectuais e a Organizacao Da Cultura (1)

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Intelectuais

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  • ANTONIO GRAMSCIColeoPERSPECTIVAS DO HOMEM

    Volume % 48Srie Filosofia

    Direo de MOACYR FELIX

    Os Intelectuaise a Organizao

    da Cultura

    Traduo deCARLOS NELSON COUTINHO

    4. a edio

    civilizaobrasileira

  • Ttulo do original italiano:GLI INTELLETTUALI E L'ORGANIZZAZIONE

    DELLA CULTURA

    Do Autor, publicados poresta Editora:

    CONCEPO DIALTICA DA HISTRIA

    CARTAS DO CRCEREMAQUTAVEL, A POLTICA E O ESTADO MODERNO

    LITERATURA E VIDA NACIONAL

    ndice

    Desenho de capa:MARIUS LAURITZEN BERN

    Diagramao e Superviso grfica:ROBERTO PONTUAL

    Direitos para a lngua portuguesa adquiridos pelaEDITORA CIVILIZAO BRASILEIRA S.A.

    Rua Muniz Barreto, 91-93 BotafogoRio de Janeiro RJ

    que se reserva a propriedade desta traduo

    I. CONTRIBUIES PARA UMA HISTRIA DOS INTELECTUAIS

    A Formao dos Intelectuais 3Notas Esparsas

    Funo Cosmopolita dos Intelectuais Italianos 25Intelectuais Italianos no Exterior 67Europa, Amrica, Mia 81

    II. A ORGANIZAO DA CULTURAA Organizao da Escola e da Cultura 117Para a Investigao do Princpio Educativo 129Notas Esparsas 141

    III. JORNALISMO 161

    IV. APNDICELorianisnlo 207

    Indice Onomstico 239

    1982

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

  • IContribuies para umaHistria dos Intelectuais

  • A Formao dos Intelectuais

    OS INTELECTUAIS constituem um grupo social autno-mo e independente, ou cada grupo social possui sua prpriacategoria especializada de intelectuais? O problema com-plexo por causa das vrias formas que, at nossos dias, assu-miu o processo histrico real de formao das diversas ca-tegorias intelectuais.

    As mais importantes destas formas so duas:1) Cada grupo social, nascendo no terreno originrio

    de uma funo essencial no mundo da produo econmica,cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgnico, umaou mais camadas de intelectuais que lhe do homogeneidadee conscincia da prpria funo, no apenas no campo eco-nmico, mas tambm no social e no politico: o empresriocapitalista cria consigo o tcnico da indstria, o cientista daeconomia politica, o organizador de uma nova cultura, de

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    Natlia Iglsias

    Natlia Iglsias

  • um novo direito, etc., etc. Deve-se anotar o fato de queo empresrio representa uma elaborao social superior, jcaracterizada por uma certa capacidade dirigente e tcnica(isto , intelectual): ele deve possuir uma certa capacidadetcnica, no somente na esfera restrita de sua atividade ede sua iniciativa, mas ainda em outras esferas, pelo menosnas mais prximas da produo econmica (deve ser umorganizador de massa de homens: deve ser um organizador da"confiana" dos que investem em sua fbrica, dos compra-dores de sua mercadoria, etc.).

    Os empresrios -- se no todos, pelo menos uma elitedeles -- devem possuir a capacidade de organizar a socie-dade em geral, em todo o seu complexo organismo de ser-vios, inclusive no organismo estatal, em vista da necessida-de de criar as condies mais favorveis expanso da pr-pria classe: ou, pelo menos, devem possuir a capacidade deescolher os "prepostos" (empregados especializados) a quemconfiar esta atividade organizativa das relaes gerais exte-riores a fbrica. Pode-se observar que os intelectuais "or-gnicos", que cada nova classe cria consigo e elabora emseu desenvolvimento progressivo, so, no mais das vezes, "es-pecializaes" de aspectos parciais da atividade primitiva dotipo social novo que a nova classe deu luz.'

    Tambm os senhores feudais eram detentores de umaparticular capacidade tcnica, a militar, e precisamente apartir do momento em que a aristocracia perde o monopliodesta capacidade tcnico-militar que se inicia a crise do feu-dalismo. Mas a formao dos intelectuais no mundo feudale no mundo clssico precedente uma questo que deve srexaminada parte: esta formao e elaborao segue cami-nhos e modos que preciso estudar concretamente. Assim,r Os Elementos de Cincia Poltica, de MoscA (nova edio au-mentada, 1923), devem ser examinados para esta rubrica. A chama-da "classe poltica" de Mosca no mais do que a categoria intelec-tual do grupo social dominante: o conceito de "classe politica" deMosca deve se avizinhar ao conceito de elite de Pareto, que umaoutra tentativa de interpretar o fenmeno histrico dos intelectuais esua funo na vida estatal e social. O livro de Mosca um enormecalhamao de carter sociolgico e positivista, com a tendenciosidadeda poltica imediata, ademais, o que o toma menos indigesto e lite-rariamente mais vivo.

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    cabe observar que a massa dos camponeses, ainda que de-senvolva uma funo essencial no mundo da produo, noelabora seus prprios intelectuais "orgnicos" e no "assi-mila" nenhuma camada de intelectuais "tradicionais", em-bora outros grupos sociais extraiam da massa dos campo-neses muitos de seus intelectuais e grande parte dos inte-lectuais tradicionais seja de origem camponesa.

    2) Cada grupo social "essencial", contudo, surgindo nahistria a partir da estrutura econmica anterior e como ex-presso do desenvolvimento desta estrutura, encontrou --pelo menos na histria que se desenrolou at aos nossos dias

    categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam,alis, como representantes de uma continuidade histrica queno fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas eradicais modificaes das formas sociais e polticas.

    A mais tpica destas categorias intelectuais a dos cle-sisticos, que monopolizaram durante muito tempo (numa in-teira fase histrica que parcialmente caracterizada, alis,por este monoplio) alguns servios importantes: a ideolo-gia religiosa, isto , a filosofia e a cincia da poca, atravsda escola, da instruo, da moral, da justia, da beneficncia,da assistncia, etc. A categoria dos eclesisticos pode serconsiderada como a categoria intelectual orgnicamente li-gada aristocracia fundiria: era juridicamente equiparada aristocracia, com a qual dividia o exerccio da propriedadefeudal da terra e o uso dos privilgios estatais ligados pro-priedade.2 Mas o monoplio das superestruturas por parte dos

    2 Para o estudo de uma categoria desses intelectuais, a mais impor-tante, talvez, depois da "eclesistica", pelo prestigio e pela funo so-cial desenvolvida nas sociedades primitivas a categoria dos mdicosem sentido lato, isto , de todos aqueles que lutam ou parecem lu-tar contra a morte e as doenas para isso, dever-se- consultar aHistria da Medicina, de Anrama CASncr.ronr. Recorde-se que hou-ve conexo entre a religio e a medicina e que esta conexo con-tinua ainda a existir, em certas zonas: hospitais na mo de religiososno que toca a certas funes de organizao, alm do fato de que,.onde aparece o mdico, aparece o padre (exorcismo, assistncia devrios tipos, etc.). Muitas grandes figuras religiosas eram tambm,e foram concebidas, como grandes "terapeutas": a idia do milagreque chegou at ressurreio dos mortos. Durante muito tempo, per-maneceu a crena de que os reis curavam pela colocao das mos, etc.

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    Natlia Iglsias

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  • eclesisticos' no foi exercido sem luta e sem limitaes; enasceram, conseqentemente, em vrias formas (que devemser pesquisadas e estudadas concretamente), outras catego-rias, favorecidas e ampliadas medida em que se reforavao poder central do monarca, at chegar ao absolutismo. Assim,foi-se formando a aristocracia togada, com seus prprios pri-vilgios, bem como uma camada de administradores, etc.; etambm cientistas, tericos, filsofos no eclesisticos, etc.

    Dado que estas vrias categorias de intelectuais tradi-cionais sentem com "esprito de gripo" sua ininterrupta con-tinuidade histrica e sua "qualificao " , eles consideram a simesmos como sendo autnomos e independentes do gruposocial dominante. Esta autocolocao no deixa de ter con-seqncias de grande importncia no campo ideolgico e po-ltico: toda a filosofia idealista pode ser facilmente relacio-nada com esta posio assumida pelo complexo social dosintelectuais e pode ser definida como a expresso desta uto-pia social segundo a qual os intelectuais arceditam ser "inde-pendentes", autnomos, revestidos de caractersticas pr-prias, etc.

    Deve-se notar, porm, que se o Papa e a alta hierarquiada Igreja se crem mais ligados a Cristo e aos apstolos doque aos senadores Agnelli e Benni, o mesmo no ocorre comGentile e Croce, por exemplo; Croce, notadamente, sente-sefortemente ligado a Aristteles e a Plato, mas no escondeque esteja ligado aos senadores Agnelli e Benni; precisamen-te nisto deve ser procurada a caracterstica mais marcadada filosofia de Croce.

    Quais so os limites "mximos" da acepo de "intelec-tual"? $ possvel encontrar um critrio unitrio para caracte-rizar igualmente todas as diversas e variadas atividades in-telectuais e para distingui-las, ao mesmo tempo e de modoessencial, dos outros agrupamentos sociais? O erro metodol-gico mais difundido, ao que me parece, consiste em se terbuscado este critrio de distino no que intrnseco s ati-s Disso nasceu a acepo geral de "intelectual" ou de "especialista",a partir da palavra "clrigo", em muitas Ifnguas de origem neolatinaou fortemente influenciadas, atravs do latim eclesistico; pelas lnguasneolatinas, com seu correlativo de "laico" no sentido de profano, deno-especialista.

    vidades intelectuais, ao invs de busc-lo no conjunto do sis-tema de relaes no qual estas atividades (e, portanto, osgrupos que as personificam) se encontram, no conjunto geraldas relaes sociais. Na verdade, o operrio 6u proletrio,por exemplo, no se caracteriza especificamente pelo traba-lho manual ou instrumental, mas por este trabalho em deter-minadas condies e em determinadas relaes sociais (semfalar no fato de que no existe trabalho puramente fsico ede que mesmo a expresso de Taylor, "gorila amestrado", uma metfora para indicar , um limite numa certa direo:em qualquer trabalho fsico, mesmo no mais mecnico e de-gradado, existe um mnimo de qualificao tcnica, isto ,um mnimo de atividade intelectual criadora). E j ye obser-vou que o empresrio, pela sua prpria funo, deve possuirem certa medida algumas qualificaes de carter ln electual,se bem que sua figura social seja determinada no por elas,mas pelas relaes sociais gerais que caracterizam efetiva-mente a posio do empresrio na indstria.

    Todos os homens so intelectuais, poder-se-ia dizer en-to: mas nem todos os homens desempenham na sociedadea funo de intelectuais.*

    Quando se distingue entre intelectuais e no-intelectuais,faz-se referncia, na realidade, to-somente imediata fun-o social da categoria profissional dos intelectuais, isto ,leva-se em conta a direo sobre a qual incide o peso maiorda atividade profissional especfica, se na elaborao intelec-tual ou se no esforo muscular-nervoso. Isto significa que,se se pode falar de intelectuais, impossvel falar de no-in-telectuais, porque no existem no-intelectuais. Mas a pr-pria relao entre o esforo de elaborao intelectual-cere-bral e o esforo' muscular-nervoso no sempre igual; porisso, existem graus diversos de atividade especfica intelectual.No existe atividade humana da qual se possa excluir todainterveno intelectual, no se pode separar o homo faber dohomo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profisso,desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, um"filsofo", um artista, um homem de gosto, participa de uma

    4 Do mesmo modo, pelo fato de que al m possa em determinadomomento fritar dois ovos ou costurar um buraco do palet, no querdizer que todo mundo seja cozinheiro ou alfaiate.

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  • concepo do mundo, possui uma linha consciente de con-duta moral, contribui assim para manter ou para modificaruma concepo do mundo, isto , para promover novas ma-neiras de pensar.

    O problema da criao de uma nova camada intelectual,portanto, consiste em elaborar criticamente a atividade inte-lectual que existe em cada um em determinado grau de de-senvolvimento, modificando sua relao com o esforo mus-cular-nervoso no sentido de um novo equilbrio e conseguin-do-se que o prprio esforo muscular-nervoso, enquanto ele-mento de uma atividade prtica geral, que inova continua-mente o mundo fsico e social, torne-se o fundamento de umanova e integral concepo do mundo. C) tipo tradicional evulgarizado do intelectual fornecido pelo literato, pelo fil-sofo, pelo artista. Por isso, os jornalistas que crem serliteratos, filsofos, artistas crem tambm ser os "verda-deiros" intelectuais. No mundo moderno, a educao tcni-ca, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo aomais primitivo e desqualificado, deve constituir a base donovo tipo de intelectual.

    Neste sentido trabalhou o semanrio Ordine Nuouo, svisando a desenvolver certas formas de novo intelectualismoe a determinar seus novos conceitos; e essa no foi uma dasrazes menores de seu xito, pois uma tal colocao corres-pondia a aspiraes latentes e era adequada ao desenvolvi-mento das formas reais de vida. O modo de ser do novointelectual no pode mais consistir na eloqncia, motor ex-terior e momentneo dos afetos e das paixes, mas num imis-cuir-se ativamente na vida prtica, como construtor, orga-nizador, "persuasor permanente", j que no apenas oradorpuro e superior, todavia, ao esprito matemtico abstra-to; da tcnica-trabalho, eleva-se tcnica-cincia e con-cepo humanista histrica, sem a qual se permanece "espe-cialista" e no se chega a "dirigente" (especialista mais po-ltico).

    Formam-se assim, historicamente, categorias especializa-das para o exerccio da funo intelectual; formam-se em co-nexo com todos os grupos sociais, mas especialmente em

    6 Trata-se de mn peridico socialista, de cuja seio turinesa Gramscifoi redator (Nota do Tradutor).

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    conexo com os grupos sociais mais importantes, e sofremelaboraes mais amplas e complexas em ligao com o gruposocial dominante. Uma das mais marcantes caractersticasde todo grupo social que se desenvolve no sentido do dom-nio sua luta pela assimilao e pela conquista "ideolgica"dos intelectuais tradicionais, assimilao e conquista que soto mais rpidas e eficazes quanto mais o grupo em questoelaborar simultaneamente seus prprios intelectuais orgnicos.

    O enorme desenvolvimento alcanado pela atividade epela organizao escolar (em sentido lato) nas sociedadesque surgiram do mundo medieval indica a importncia assu-mida no mundo moderno pelas categorias e funes intelec-tuais: assim como se buscou aprofundar e ampliar a "inte-lectualidade" de cada indivduo, buscou-se igualmente mul-tiplicar as especializaes e aperfeio-las. $ este o resul-tado das instituies escolares de graus diversos, inclusivedos organismos que visam a promover a chamada "alta cul-tura", em todos os campos da cincia e da tcnica.

    A escola o instrumento para elaborar os intelectuais dediversos nveis. A complexidade da funo intelectual nosvrios Estados pode ser objetivamente medida pela quanti-dade das escolas especializadas e pela sua hierarquizao:quanto mais extensa for a "rea" escolar e quanto mais nu-merosos forem os "graus" "verticais" da escola, to maiscomplexo ser o mundo cultural, a civilizao, de um deter-minado Estado. Pode-se ter um termo de comparao naesfera da tcnica industrial: a industrializao de um pas semede pela sua capacidade de construir mquinas que cons-truam mquinas e na fabricao de instrumentos cada vezmais precisos para construir mquinas e instrumentos queconstruam mquinas, etc. O pas que possuir a melhor capa-citao para construir instrumentos para os laboratrios doscientistas e para construir instrumentos que fabriquem estesinstrumentos, este pais pode ser considerado o mais complexono campo tcnico-industrial, o mais civilizado, etc. Do mes-mo modo ocorr na preparao dos intelectuais e nas es-colas destinadas a tal preparao; escolas e instituies dealta cultura so similares. Neste campo, igualmente, a quan-tidade no pode ser destacada da qualidade. A mais refi-nada especializao tcnico-cultural, no pode deixar de cor-

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    Natlia Iglsias

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  • responder a maior ampliao possvel da difuso da instru-o primria e a maior solicitude no favorecimento dos grausintermedirios ao maior nmero. Naturalmente, esta neces-sidade de criar a mais ampla base possvel para a seleo eelaborao das mais altas qualificaes intelectuais ouseja, de dar alta cultura e tcnica superior uma estruturademocrtica no deixa de ter inconvenientes: cria-se, des-te modo, a possibilidade de vastas crises de desemprego nascamadas mdias intelectuais, tal como realmente ocorre emtodas as sociedades modernas.

    Deve-se notar que a elaborao das camadas intelectuaisna realidade concreta no ocorre num terreno democrticoabstrato, mas de acordo com processos histricos tradicionaismuito concretos. Formaram-se camadas que, tradicionalmen-te, "produzem" intelectuais; trata-se das mesmas camadasque, muito freqentemente, especializaram-se na "poupana",isto , a pequena e mdia burguesia fundiria e alguns es-tratos da pequena e mdia burguesia das cidades. A diversadistribuio dos diversos tipos de escola (clssicas e profis-sionais) no territrio "econmico" e as diversas aspiraesdas vrias categorias destas camadas determinam, ou doforma, produo dos diversos ramos de especializao in-telectual. Assim, na Itlia, a burguesia rural produz notada-mente funcionrios estatais e profissionais liberais, ao passoque a burguesia urbana produz tcnicos para a indstria: porisso, a Itlia setentrional produz notadamente tcnicos e aItlia meridional notadamente funcionrios e profissionais.

    A relao entre os intelectuais e o mundo da produono imediata, como o caso nos grupos sociais fundamen-tais, mas "mediatizada", em diversos graus, por todo o con-texto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual osintelectuais so precisamente os "funcionrios". Poder-se-iamedir a "organicidade" dos diversos estratos intelectuais, suamais ou menos estreita conexo com um grupo social funda-mental, fixando uma gradao das funes e das superestru-turas de baixo para cima (da base estrutural para cima).Por enquanto, pode-se fixar dois grandes "planos" superes-truturais: o que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto; o conjunto de organismos chamados comumente de "pri-

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    vados") e o da "sociedade poltica ou Estado", que corres-pondem funo de "hegemonia" que o grupo dominanteexerce em toda a. sociedade e quela de domnio direto"ou de comando, que se expressa no Estado e no governo "ju-rdico". Estas funes so precisamente organizativas e co-nectivas Os intelectuais so os "comissrios" do grupo do-minante para o exerccio das funes subalternas da hege-monia social e do governo poltico, isto : 1) do consenso" espontneo" dado pelas grandes massas da populao orientao impressa pelo grupo fundamental dominante vidasocial, consenso que nasce "historicamente" do prestgio (e,portanto, da confiana) que o grupo dominante obtm, porcausa de sua posio e de sua .funo no mundo da produ-o; 2) do aparato de coero estatal que assegura "legal-mente" a disciplina dos grupos que no "consentem", nemativa nem passivamente, mas que constitudo para toda asociedade, na previso dos momentos de crise no comandoe na direo, nos quais fracassa o consenso espontneo.

    Esta colocao do problema traz, como resultado, umaampliao muito grande do conceito de intelectual, mas so-mente assim torna-se possvel alcanar uma aproximao con-creta realidade. Este modo de colocar a questo entra emchoque com preconceitos de casta; verdade que a prpriafuno organizativa da hegemonia social e do domnio esta-tal d lugar a uma certa diviso do trabalho e, portanto, atoda uma gradao de qualificaes, em algumas das quaisno mais aparece nenhuma atribuio diretiva e organizati-va: no aparato da direo estatal e social existe toda umasrie de empregos de carter manual e instrumental (de or-dem e no de conceito, de agente e no de oficial ou funcio-nrio, etc.); mas, evidentemente, preciso fazer esta distin-o, como preciso fazer tambm qualquer outra. De fato,a atividade intelectual deve ser diferenciada em graus, in-clusive do ponto de vista intrnseco; estes graus, nos momen-tos de extrema oposio, do lugar a uma verdadeira e realdiferena qualitativa: no mais alto grau, devem ser coloca-dos os criadores das vrias cincias, da filosofia, da arte,etc.; no mais baixo, os "administradores" e divulgadores mais

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  • modestos da riqueza intelectual j existente, tradicional,acumulada?

    No mundo moderno, a categoria dos intelectuais, assimentendida, ampliou-se de modo inaudito. Foram elaboradas,pelo sistema social democrtico-burgus, imponentes massasde intelectuais, nem todas justificadas pelas necessidades so-ciais da produo, ainda que justificadas pelas necessidadespolticas do grupo fundamental dominante. Da a concepoloriana do "trabalhador" improdutivo ( mas improdutivo emrelao a quem e a que modo de produo?), que poderiaser parcialmente justificada se se levasse em conta que estasmassas exploram sua posio a fim de obter grandes somasretiradas renda nacional. A formao em massa estandar-tizou os indivduos, na qualificao intelectual e na psico-logia. determinando os mesmos fenmenos que ocorrem emtodas as outras massas estandartizadas: concorrncia (quecoloca a necessidade da organizao profissional de defesa).desemprego, superproduo escolar, emigrao, etc.

    Posio diversa dos intelectuais de tipo urbano e de tiporural. Os intelectuais de tipo urbano cresceram juntamentecom a indstria e so ligados s suas vicissitudes. A sua fun-o pode ser comparada dos oficiais subalternos no exr-cito: no possuem nenhuma iniciativa autnoma na elabora-o dos planos de construo; colocam em relao, articulan-do-a, a massa instrumental com o empresrio, elaboram aexecuo imediata do plano de produo estabelecido peloestado-maior da indstria, controlando suas fases executivaselementares. Na mdia geral, os intelectuais urbanos sobastante estandartizados; os altos intelectuais urbanos con-fundem-se cada vez mais com o autntico estado-maior in-dustrial.

    E O organismo militar, tambm neste caso, oferece um modelo destascomplexas gradaes: oficiais subalternos, oficiais superiores, Estado-Maior; e no se deve esquecer as praas graduadas, cuja importnciareal superior ao que habitualmente se cr. E interessante notar quetodas estas partes se sentem solidrias; ou antes, que os estratos infe-riores manifestam um "esprito de grupo" mais evidente, do qual re-sulta uma "vaidade" que freqentemente os expe aos gracejos e stro a

    Os intelectuais de tipo rural so, em sua maior parte,"tradicionais", isto , ligados massa social camponesa e pe-queno-burguesa das cidades (notadamente dos centros me-nores), ainda no elaborada e movimentada pelo sistema ca-pitalista: este tipo de intelectual pe em contato a massacamponesa com a administrao estatal ou local (advogados,tabelies, etc.) e, por esta mesma funo, possui uma grandefuno poltico-social, j que a mediao profissional dificil-mente se separa da mediao poltica. Alm disso: no cam-po, o intelectual (padre, advogado, professor, tabelio, m-dico, etc.) possui um padro de vida mdio superior, ou, pelomenos, diverso daquele do mdio campons e representa, porisso, para este campons, um modelo social na aspirao desair de sua condio e de melhor-la. O campons acreditasempre que pelo menos um de seus filhos pode-se tornar in-telectual (notadamente padre), isto , tornar-se um senhor,elevando o nivel social da famlia e facilitando sua vida eco-nmica pelas ligaes que no poder deixar de estabelecercom os outros senhores. A atitude do campons diante dointelectual dplice e parece ser contraditria: ele admira aposio social do intelectual e do funcionrio pblico, em ge-ral, mas finge s vezes desprez-la, isto , sua admiraomistura-se instintivamente com elementos de inveja e de raivaapaixonada. No se compreende nada da vida coletiva doscamponeses, bem como dos germes e fermentos de desen-volvimento a existentes, se no se levam em considerao, seno se estuda concretamente e no se aprofunda esta subor-dinao efetiva aos intelectuais: todo desenvolvimento org-nico das massas camponesas, at um certo ponto, est ligadoaos movimentos dos intelectuais e dele depende.

    O caso diverso no que diz respeito aos intelectuaisurbanos: os tcnicos de fbrica no exercem nenhuma fun-o poltica sobre suas massas instrumentais, ou, pelo menos, esta uma fase j superada; por vezes, ocorre precisamenteo contrrio, ou seja, que as massas instrumentais, pelo menosatravs de seus prprios intelectuais orgnicos, exeram umainfluncia poltica sobre os tcnicos.

    O ponto central da questo continua a ser a distinoentre intelectuais como categoria orgnica de cada grupo so-cial fundamental e intelectuais como categoria tradicional; dis-

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  • tino da qual decorre toda uma srie de problemas e de pos-sveis pesquisas histricas.

    O problema mais interessante o que diz respeito, seconsiderado deste ponto de vista, ao partido politico moder-no, s suas origens reais, aos seus desenvolvimentos, s suasformas. O que que o partido politico se torna em relaoao problema dos intelectuais? necessrio fazer algumas dis-tines: 1) para alguns grupos socias, o partido politico no seno o modo prprio de elaborar sua categoria de intelec-tuais orgnicos (que se formam assim, e no podem deixarde se formar, dadas as caractersticas gerais e as condiesde formao, de vida e de desenvolvimento do grupo socialdada) diretamente no campo politico e filosfico, e j nomais no campo da tcnica produtiva? 2) o partido politico,para todos os grupos, precisamente o mecanismo que re-presenta na sociedade civil a mesma funo desempenhadapelo Estado, de um modo mais vasto e mais sinttico, na so-ciedade poltica, ou seja, proporciona a fuso entre os inte-lectuais orgnicos de um dado grupo -- o grupo dominan-te -- e os intelectuais tradicionais; e esta funo desempe-nhada pelo partido precisamente em dependncia de sua fun-o fundamental, que a de elaborar os prprios componen-tes, elementos de um grupo social nascido e desenvolvidocomo "econmico", at transform-los em intelectuais polti-cos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as ativi-dades e funes inerentes ao desenvolvimento orgnico deuma sociedade integral, civil e poltica. Alis, pode-se dizerque, no seu mbito, o partido politico desempenha sua fun-o muito mais completa e orgnicamente do que, num m-bito mais vasto, o Estado desempenha a sua: um intelectualque passa a fazer parte do partido politico de um determinadogrupo social confunde-se com os intelectuais orgnicos doprprio grupo, Liga-se estreitamente ao grupo, o que noocorre atravs de participao na vida estatal seno mediocre-

    9 No campo da tcnica produtiva, formam-se os estratos que corres-pondem, pode-se dizer, aos "praas graduados" no exrcito, isto , osoperrios qualificados e especializados na cidade e, de modo maiscomplexo, os parceiros e colonos no campo, pois o parceiro e o colonocorrespondem geralmente ao tipo arteso, que o operrio qualificadode uma economia medieval.

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    mente ou mesmo nunca. Alis, ocorre que muitos intelectuaispensem ser o Estado: crena esta que, dado o imenso nme-ro de componentes da categoria, tem por vetos notveis con-seqncias e leva a desagradveis complicaes para o grupofundamental econmico que realmente o Estado.

    Que todos os membros de um partido poltico devam . setconsiderados como intelectuais, eis uma afirmao que sepode prestar ironia e caricatura; contudo, se pensarmosbem, veremos que nada . mais exato. Dever-se- fazer umadistino de graus; um partido poder ter uma maior ou me-nor composio do grau mais alto ou do mais, baixo, mas no isto que importa: importa, sim, a funo, que diretiva eorganizativa, isto , educativa, intelectual. Um comercianteno passa a fazer parte de um partido politico para podercomerciar, nem um industrial para produzir mais e com custosreduzidos, nem um campons para aprender novos mtodosde cultivar a terra, ainda que alguns aspectos destas exign-cias do comerciante, do industrial, do campons possam sersatisfeitos no partido polticos Para estas finalidades, dentrode certos limites, existe o sindicato profissional, no qual aatividade econmico-corporativa do comerciante, do indus-trial, do campons, encontra sett quadro mais adequado. Nopartido politico, os elementos de um grupo social econmicosuperam este momento de seu desenvolvimento histrico e setomam agentes de atividades gerais, de carter nacional einternacional. Esta funo do partido poltico apareceria commuito maior clareza mediante uma anlise histrica concretado modo pelo qual se desenvolveram as categorias orgnicase as categorias tradicionais dos intelectuais, tanto no terrenodas vrias histrias nacionais quanto no do desenvolvimentodos vrios grupos sociais mais importantes no quadro das di-versas naes; notadamente daqueles grupos cuja ativida-de econmica foi sobretudo instrumental.

    A formao dos intelectuais tradicionais o problemahistrico mais interessante. Ele se liga certamente escravi-

    8 A opinio geral contradiz esta afirmao, ao dizer que o comer-ciante, o industrial, o campons "politiqueiros" perdem ao invs deganhar, e que so os piores de sua categoria, fato que pode ser dis-cutido.

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  • do do mundo clssico e posio dos libertos de origemgrega e oriental na organizao social do Imprio Romano.

    Nota. A mudana da condio da posio social dos inte-lectuais em Roma, do tempo da Repblica ao Imprio (de umregime aristocrtico-corporativo a um regime democrtico-buro-crtico), est ligado a Csar, que conferiu a cidadania aos mdi-cos e aos mestres das artes liberais, a fim de que habitassem commais satisfao em Roma e de que outros para a se dirigissem:"Omnesque medicinam Romae professos et liberalium artiumdoctores, quo libentius et ipsi urbem incolerent et coeteri appete-rent civitate donavit" (SUETONIO, Vida de Csar, XLII). Csar,portanto, se prope: 1) a estabelecer em Roma os intelectuais quej residiam nela, criando assim uma categoria permanente deles,pois sem a permanncia no se podia criar uma organizao cul-tural. Existia anteriormente uma flutuao que era preciso deter,etc.; 2) a atrair para Roma os melhores intelectuais de todo oImprio Romano, promovendo uma centralizao de grande am-plitude. Assim, origina-se a categoria de intelectuais "imperiais"em Roma, que continuar no clero catlico e deixar tantos traosem toda a histria dos intelectuais italianos, com sua caracters-tica de "cosmopolitismo" at ao sculo XVIII.

    Esta separao, no apenas social mas nacional, racial,entre grandes massas de intelectuais e a classe dominante doImprio Romano se reproduz aps a queda do Imprio entreguerreiros germnicos e intelectuais de origens romanizadas,continuadores da categoria dos libertos. Mistura-se com estesfenmenos o nascimento e desenvolvimento do catolicismo eda organizao eclesistica que, por muitos sculos, absor-veu a maior parte das atividades intelectuais e exerceu o mo-noplio da direo cultural, com sanes penais para quemse opusesse, ou mesmo ignorasse, o monoplio. Na Itlia,verifica-se o fenmeno, mais ou menos intenso de acordo coma poca, da funo cosmopolita dos intelectuais peninsulares.Farei referencia s diferenas que saltam imediatamente vista no desenvolvimento dos intelectuais em toda uma sriede paises, pelo menos nos mais importantes, com a advertn-

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    cia de que estas observaes devero ser verificadas e apro-fundadas.

    No que diz respeito Itlia, o fato central precisamen-te a funo internacional ou cosmopolita de seus intelectuais,que causa e efeito do estado de desagregao em que per-manece a peninsula, desde a queda do Imprio Romanoat 1870.

    A Frana fornece um tipo completo de desenvolvimentoharmnico de todas as energias nacionais e, particularmente,das categorias intelectuais. Quando, em 1789, um novo agru-pamento social aflora politicamente histria, ele est com-pletamente apto para todas as suas funes sociais e, por isso,luta pelo dominio total da nao, sem efetivar compromissosessenciais com as velhas classes, mas, pelo contrrio, subor-dinando-as s prprias finalidades. As primeiras clulas in-telectuais do novo tipo nascem com as primeiras clulas eco-nmicas: a prpria organizao eclesistica sofre sua,influn-cia (galicanismo, lutas muito precoces entre Igreja e Esta-do). Esta macia construo intelectual explica a funo dacultura francesa nos Sculos XVIII e XIX, funo de irradia-o internacional e cosmopolita e de expanso de carter im-perialista e hegemnico de modo orgnico, conseqentemen-te muito diversa da italiana, de carter imigratrio pessoale desagregado, que no reflui sobre a base nacional para po-tenci-la, mas, pelo contrrio, concorre para impossibilitar aconstituio de uma slida base nacional.

    Na Inglaterra, o desenvolvimento muito diferente doda Frana. O novo agrupamento social nascido sobre a basedo industrialismo moderno tem um surpreendente desenvol-vimento econmico-corporativo, mas engatinha no campo in-telectual-poltico. muito ampla a categoria dos intelectuaisorgnicos, isto , dos intelectuais nascidos no mesmo terrenoindustrial do grupo econmico, mas na esfera mais eleva-da -- encontramos conservada a posio de quase-monop-lio da velha classe territorial, que perde a supremacia eco-nmica mas conserva por muito tempo uma supremacia po-ltico-intelectual, e assimilada como "intelectuais tradicio-nais" e como camada dirigente pelo novo grupo que ocupao poder. A velha aristocracia fundiria se une aos industriaisatravs de um tipo de juno que, em outros paises, preci-

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  • samente aquele que une os intelectuais tradicionais s novasclasses dominantes.

    O fenmeno ingls manifestou-se tambm na Alemanha,complicado por outros elementos histricos e tradicionais. AAlemanha, como a Itlia, foi a sede de uma instituio e deuma ideologia universalista, supernacional (Sacro ImprioRomano da Nao Alem), e forneceu uma certa quantida-de de pessoal s metrpoles medievais, depauperando as pr-prias energias internas e provocando lutas que desviavamdos problemas de organizao nacional e mantinham e desa-gregao territorial da Idade Mdia. C) desenvolvimento in-dustrial ocorreu sob um invlucro semifeudal, que durou atnovembro de 1918, e os Junkers mantiveram uma supremaciapoltico-intelectual bem maior do que -a mantida pelo mesmogrupo ingls. Eles foram os intelectuais tradicionais dos in-dustriais alemes, mas com privilgios especiais e com umaforte conscincia de ser um grupo social independente, ba-seada sobre o fato de que detinham um notvel poder eco-nmico sobre a terra, mais "produtiva" do que na Inglaterra.Os Junkers prussianos assemelham-se a trina casta sacerdotal-militar, que possui um quase-monoplio das funes diretivo-organizativas na sociedade poltica, mas que possui ao mes-mo tempo uma base econmica prpria e no depende exclu-sivamente da liberalidade do grupo econmico dominante.Alm disso, diferentemente dos nobres fundirios ingleses, osJunkers constituam a oficialidade de um grande exrcito per-manente, o que Lhes fornecia slidos quadros organizativos,favorveis conservao do esprito de grupo e do monop-lio poltico!

    Na Rssia, diversas tendncias: a organizao polticae econmico-comercial foi criada pelos normandos (varegos),a religiosa pelos gregos bizantinos; num segundo momento, os

    s No livro Parlamento e governo na nova ordem da Alemanha, demax weans, podem-se encontrar muitos elementos que permitemobservar como o monoplio politico dos nobres tenha impedido a ela-borao de um ssoaf politico burgus numeroso e experimentado eforme a base des continuas crises parlamentares e da desagregaodos partidos liberais e democriticos; e, conseqentemente, seja a baseda importncia obtida pelo centro catlico e pela social-democracia,que conseguiram durante o periodo imperial elaborar uma cama-da parlamentar e diretiva prpria bastante numerosa.18

    alemes e franceses levam a experincia europia Rssia eemprestam um primeiro esqueleto 'consistente gelatina his-trica russa. As foras nacionais so inertes, passivas e re-ceptivas, mas --- talvez precisamente por isto assimilamcompletamente as influncias estrangeiras e os prprios es-trangeiros, russificando-os. No perodo histrico mais recen-te, ocorre o fenmeno inverso: uma elite de pessoas entre asmais ativas, enrgicas, empreendedoras e disciplinadas, emi-gra. para o exterior, assimila a cultura e as experincias his-tricas 'dos pases mais desenvolvidos do Ocidente, 'sem. porisso perder as caractersticas mais essenciais da prpria na-cionalidade, isto , sem romper as ligaes sentimentais e his-tricas com o prprio povo; feita assim sua aprendizagem in-telectual, retomam ao pas, obrigando o povo a um despertarforado, a uma marcha acelerada para a frente, queimandoas etapas. A diferena entre esta elite e aquela alem im-portada (por Pedro, o Grande, por exemplo) consiste em seucarter essencial nacional-popular: no pode ser assimiladapela passividade inerte do povo russo, j que ela mesma uma enrgica reao russa prpria inrcia histrica.

    Num outro terreno, e em condies bem diversas de tem-po e lugar, este fenmeno russo pode ser comparado ao nas-cimento da nao americana (Estados Unidos): os emigran-tes anglo-saxes so tambm uma elite intelectual, mas par-ticularmente moral. Refiro-me, naturalmente, aos primeirosemigrantes, aos pioneiros, protagonistas das lutas religiosas epoliticas inglesas, derrotados, mas nem humilhados nem re-baixados em sua ptria de origem. Eles trazem para a Am-rica; consigo mesmos, alm da energia moral e volitiva, umcerto grau de civilizao, uma certa fase da evoluo his-trica europia, que transplantada no solo virgem ame-ricano por tais agentes -- continua a desenvolver as forasimplcitas em sua natureza, mas' com um ritmo incomparavel-mente mais rpido do que na velha Europa, onde existe todauma srie de freios (morais, intelectuais, politicos, econmi-cos, incorporados em determinados grupos da populao, re-liquias dos regimes passados que no querem desaparecer)que se opem a um processo rpido e limitam na mediocri-dade qualquer iniciativa, diluindo-a no tempo e no espao.

    Deve-se notar, nos Estados Unidos, em certa medida,a ausncia dos intelectuais tradicionais e, portanto,, o diver-

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  • so equilbrio dos intelectuais em geral.. Ocorreu uma forma-o macia, sobre a base industrial, de todas as superestru-turas modernas. A necessidade de um equilbrio no dadapelo fato de que seja necessrio fundir os intelectuais org-nicos com os tradicionais, que no existem como categoriacristalizada e misonesta, mas pelo fato de que seja necess-rio fundir, num nico cadinho nacional de cultura unitria,diversos tipos de cultura trazidos pelos imigrantes de origensnacionais variadas. A ausncia de uma vasta sedimentaode intelectuais tradicionais, como ocorreu nos pases de ci-vilizao antiga, explica parcialmente tanto a existncia desomente dois grandes partidos politicos, que poderiam na rea-lidade ser facilmente reduzidos a um s (cf. com a Frana,e no somente com a do aps-guerra, quando a multiplica-o dos partidos se tornou um fenmeno universal), quanto,ao inverso, a multipicao ilimitada de seitas religiosas.

    ro

    Uma manifestao interessante deve ainda ser estudadanos Estados Unidos; trata-se da formao de um nmero sur-preendente de intelectuais negros, que absorvem a cultura ea tcnica americanas. Pode-se pensar na influencia indiretaque estes intelectuais negros podem exercer sobre as massasatrasadas da Africa, e na influncia direta que se verificariase ocorresse uma destas hipteses: 1) se o expansionismoamericano se servisse dos negros nacionais como seus agen-tes na conquista dos mercados africanos e na extenso a elesdo prprio tipo de cultura (algo similar j ocorreu, mas igno-ro em quais propores); 2) se as lutas pela unificao dopovo americano se agudizassem a tal ponto que determinas-sem o xodo dos negros e o retorno Africa dos elementosintelectuais mais independentes e enrgicos e, portanto, me-nos propensos a sujeitar-se a uma possvel legislao aindamais humilhante do que o costume atualmente difundido.Nasceriam duas questes fundamentais: 1) da lngua, isto ,o ingls poderia se tornar a lingua culta da Africa, unifica-dora da existente pulverizao de dialetos? 2) a questo dero Ao que me parece, foram catalogadas mais de duzentas; compararcom a Frana e com as encarniadas lutas empreendidas para que semantivesse a unidade religiosa e moral do povo francs.

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    saber se esta camada intelectual poderia ter a capacidadeassimiladora e organizadora em tal medida que pudesse con-verter em "nacional" o atual sentimento primitivo de raadesprezada, elevando o continente africano ao mito e fun-o de ptria comum de todos os negros. Parece-me que, porenquanto, os negros da Amrica devem ter um esprito raciale nacional mais negativo do que positivo, isto , provocadopela luta que os brancos empreendem no sentido de isol-los e rebaix-los: mas no foi este o caso dos judeus attodo o Sculo XVIII? A Libria, j americanizada e com oingls como lingua oficial, poderia se tornar a Sion dos ne-gros americanos, com a tendncia a se converter no Piemon-te africano."

    Na Amrica do Sul e na Amrica Central, a questo dosintelectuais, ao que me parece, deve ser examinada levan-do-se em conta estas condies fundamentais: tambm naAmrica do Sul e na Amrica Central inexiste uma amplacategoria de intelectuais tradicionais, mas o problema no seapresenta nos mesmos termos que nos Estados Unidos. Defato, encontramos na base do desenvolvimento desses pasesos quadros da civilizao espanhola e portuguesa dos SculosXVI e XVII, caracterizada pela Contra-Reforma e pelo mi-litarismo parasitrio. As cristalizaes, ainda hoje resisten-tes nesses paises, so o clero e uma casta militar, duas ca-tegorias de intelectuais tradicionais fossilizadas segundo omodelo da me-ptria europia. A base industrial muitorestrita, no tendo desenvolvido superestruturas complicadas:a maior parte dos intelectuais de tipo rural e, j que domi-na o latifndio, com extensas propriedades eclesisticas, taisintelectuais so ligados ao clero e aos grandes proprietrios.A composio nacional muito desequilibrada mesmo entreos brancos, mas complica-se ainda mais pela imensa quanti-

    u Gramsci refere-se posio dos judeus "sionistas", isto , que de-fendem a emigrao macia dos judeus para uma ptria originria.Transformar a Libria num "Piemonte africano", por sua vez, significatransform-la num modelo de progresso e de democracia na Luta pelaunidade africana, como foi o caso do Piemonte nas lutas pela unifica-o da Itlia, no sculo passado. (Nota do Tradutor).

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  • dade de indios, que em alguns pases formam a maioria dapopulao. Pode-se dizer que, no geral, existe ainda nessasregies americanas uma situao tipo Kulturkampf e tipo pro-cesso Dreyfus, isto , uma situao na qual o elemento laicoe burgus ainda no alcanou o estgio da subordinao, poltica laica do Estado moderno, dos interesses e da influn-cia clerical e militarista. Assim, ocorre que, na oposio aojesuitismo, possui ainda grande influncia a Maonaria e otipo de organizao cultural como a "Igreja positivista". Oseventos dos ltimos tempos (novembro de 1930) -- do Kul-turkampf de Calles, no Mxico, s insurreies militares-po-pulares na Argentina, no Brasil, no Peru, no Chile, na Boli-via -- demonstram precisamente a exatido destas obser-vaes.

    Outros tipos de formao da categoria dos intelectuaise de suas relaes com as foras nacionais podem ser encon-tradas na India, na China, no Japo. No Japo, temos umaformao do tipo ingls e alemo, isto , uma civilizao in-dustrial que se desenvolve dentro de um invlucro feudal-burocrtico, com inconfundveis caractersticas prprias.

    Na China, existe o fenmeno da escritura, expresso dacompleta separao entre os intelectuais e o povo. Na Indiae na China, a enorme distancia entre os intelectuais e o povomanifesta-se, ademais, no campo religioso. O problema dasdiversas crenas e do diverso modo de conceber e praticara mesma religio entre os diversos estratos da sociedade,mas particularmente entre clero e intelectuais e povo, deveriaser estudado, em geral, j que se manifesta por toda parteem certa medida, se bem que, nos paises da Asia Oriental,manifeste-se do modo mais extremo. Nos pases protestan-tes, a diferena relativamente pequena (a multiplicao dasseitas ligada exigncia de uma fuso completa entre in-telectuais e povo, o que reproduz na esfera da organizaosuperior todas as escabrosidades da concepo real das mas-sas populares). Nos paises catlicos, a referida diferena muito grande, mas com diversos graus: menor na Alemanhacatlica e na Frana, maior na Itlia, particularmente noMezzogiorno e nas ilhas; imensa na peninsula ibrica e nos

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    pases da Amrica Latina. O fenmeno cresce de importn-cia nos pases ortodoxos, onde preciso falar de trs grausda mesma religio: o do alto clero e dos monges, o do clerosecular e o do povo. Torna-se absurdo na Asia Oriental,onde a religio do prprio povo nada tem em comum com ados livros, se bem que se d s duas o mesmo nome.

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  • Notas Esparsas

    Funo Cosmopolitados Intelectuais Italianos

    A QUESTO DA LNGUA. Para o desenvolvimento doconceito de que a Itlia realiza o paradoxo de um pais mo-cissimo e velhssimo ao mesmo tempo (como Lao-Tse, quenasceu com oitenta anos): as relaes entre os intelectuaise o povo-nao, estudadas sob o aspecto da lngua escritapelos intelectuais e usada em suas relaes e sob o aspectoda funo desempenhada pelos intelectuais italianos na Cos-mpole medieval graas ao fato de que o papado era sediadona Itlia (o uso do latim como lingua douta ligado aocosmopolitismo catlico)? Cf. o artigo "A poltica religiosa de Constantino Ma na Ciod-ed Cattolica de 7 de setembro de 1929. Nele, fala-se de um livro deJULES MAURICE, Constantin le Grand, L'origine de la civilisationchrtienne, Paris, ed. Spes (s/d), onde so expostos alguns pobtos devista interessantes sobre o primeiro contato oficial entre o Imprio e o

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  • Latim literrio e latim vulgar. Do latim vulgar, desen-volvem-se os dialetos neolatinos, no s na Itlia como emtoda a rea europia romanizada; o latim literrio se cris-taliza no latim dos doutos, dos intelectuais, o chamado "la-tim mdio" ,2 que no pode ser comparado absolutamente comuma lngua falada, nacional, historicamente viva, ainda queno deva tampouco ser confundido com um jargo ou comuma lingua artificial como o esperanto.

    "De qualquer modo, existe uma fratura entre o povo eos intelectuais, entre o povo e a cultura. (Tambm) os li-vros religiosos so escritos em latim mdio, de modo quemesmo as. discusses religiosas escapam ao povo, se bem quea religio seja o elemento cultural que prevalece: da religio,o povo real v os ritos e sente as prdicas exortativas, masno pode acompanhar as discusses e os desenvolvimentosideolgicos, que so monoplio de uma casta".

    Nota. A pregao em lngua vulgar reporta-se, na Frana,s prprias origens da lingua. O latim era a lngua da Igreja;assim, as pregaes eram feitas em latim aos clrigos, aos frades,mesmo s monjas. Mas, para os laicos, as pregaes eram feitasem francs. "Desde o Sculo IX, os concflios de Tours e Reimsordenaram aos padres que instrussem o povo na lngua do povo.Isto era necessrio para que eles fossem entendidos. No SculoXII, houve uma pregao em vulgar, ativa, viva, poderosa, quearrastava grandes e pequenos para a cruzada, enchia os monast-rios, lanava de joelhos e nos excessos da penitncia cidades intei-rm. Do alto de seus plpitos, nas praas, nos campos, os prega-dores eram os dirigentes pblicos da conscincia dos homens e damultido; tudo e todos passavam pela sua spera censura e pelasabertas recriminaes das mulheres, nenhuma parte secreta ouvisvel da corrupo do sculo desconcertava a audcia de seu

    cristianismo, teis para esta rubrica (que trata das causas histricaspelas quais o latim se grau lngua do cristianismo ocidental, dandolugar ao latim .mdio). Cf. tambm o "perfil" de Constantino, deSALVATORELLI (ed. Formiggini).2 Cf., o artigo de nunPO eanmu, na Nuoca Antologia de 18 demaio de 1928.

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    pensamento ou de sua lngua" (LANSON, Histoire de ta littra-ture franaise, Hachette, 1 9 - edio, pgs. 160-161).

    As lnguas vulgares so escritas quando o povo ganhaimportncia: o juramento de Strasburgo (aps a batalha deFontaneto entre os sucessores de Carlos Magno) se mante-ve porque os soldados no podiam jurar numa lingua des-conhecida, sem com isso retirar a validade do juramento.Tambm na Itlia, as primeiras marcas de lngua vulgar sojuramentos e prestaes de testemunhos do povo para esta-belecer a propriedade dos fundos de conventos (Mon-tecassirio).

    De qualquer modo, pode-se dizer que na Itlia -- de600 D.C., quando se pode presumir que o povo no paiscompreendesse o latim dos doutos, at 1250, quando come-a o florescimento do vulgar, isto , durante mais de 600anos o povo no compreendia os livros e no podia par-ticipar no mundo da cultura. O florescimento das Comunasfaz com que as lnguas vulgares se desenvolvam, enquantoa hegemonia de Florena empresta unidade ao vulgar, isto, cria uma lngua vulgar ilustre.

    Mas o que esta lngua vulgar ilustre? L o florentinoelaborado pelos intelectuais da velha tradio: florentinoem vocabulrio e tambm em fontica, mas um latim emsintaxe. Ademais, a vitria do vulgar sobre o latim no erafcil: os doutos italianos, exceo dos poetas e dos artis-tas em geral, escreviam para a Europa crist e no para aItlia, eram uma concentrao de intelectuais cosmopolitase no nacionais. A queda das Comunas e o advento do Prin-cipado, a criao de uma casta de governo destacada dopovo, cristaliza esta lngua vulgar, do mesmo modo que sehavia cristalizado o latim literrio. O italiano novamenteuma lingua escrita e no falada, dos doutos e no da nao.Existem na Itlia duas lnguas doutas, o latim e o italiano,

    Lanson fornece os seguintes dados . bibliogrficos: "Asa % L. noua-cAnc, La Chofre franaise au XR.e sicle, Paris, 1879 I.acolt DBr.A >

  • e este ltimo termina por preponderar e por triunfar comple-tamente no Sculo XIX, com a separao entre os intelec-tuais laicos e os eclesisticos (os eclesisticos continuam ain-da hoje a escrever livros em latim, mas hoje inclusive o Va-ticano usa cada vez mais o italiano quando trata de coisasitalianas; e assim terminar por fazer em relao aos 9utrospaises, em concordncia com a sua atual poltica das nacio-nalidades).

    De qualquer modo, deve-se fixar, ao que me parece, oseguinte ponto: que a cristalizao do vulgar ilustre no podeser separada da tradio do "latim mdio" e representa umfenmeno anlogo. Aps pm breve parntese (liberdadescomunais), no qual ocorreu um florescimento de intelectuaissados das classes populares (burguesas), houve uma reab-soro da funo intelectual na casta tradicional, onde os ele-mentos singulares so de origem popular, mas o carter decasta prevalece neles sobre suas origens. Em suma: no setrata de um estrato da populao que, chegando ao poder,crie seus intelectuais (o que ocorreu no. Sculo XIV), masde um organismo tradicionalmente selecionado, que assimilaaos seus quadros indivduos singulares (o tpico exemplo dis-to dado pela organizao eclesistica).

    Numa anlise completa, deve-se Levar em conta outroselementos; acredito que, no que toca a muitas questes, aretrica nacional do sculo passado e os preconceitos por elaencarnados no permitiram que se fizessem nem mesmo asinvestigaes preliminares. Por exemplo: qual foi a area exa-ta da difuso do toscano? Em Veneza, por exemplo, a meuver, j foi introduzido o italiano elaborado pelos doutos deacordo com o esquema latino, jamais tendo penetrado o flo-rentino originrio (no sentido de que os mercadores floren-tinos no fizeram ouvir a viva voz florentina, como em Romae em Npoles, por exemplo; a lingua de governo continuoua ser o veneziano. O mesmo ocorreu com outros centros: G-nova, acredito) .4 Uma histria da lingua italiana ainda no

    4 MORE veo, num artigo da Ntrm:a Antologia, de 18 de junhode 1928 "Roma em seus troncos dialetais", nota como o romanesco durante muito tempo permaneceu restrito ao mbito do vulgar, afas-tado do latim. "Mas IA em movimentos revolucionrios, o vulgar, comoacontece, busca passar ou se faz passar ao primeiro plano". Osaque de Roma encontra escritores em dialeto, mas particularmente a

    existe, neste sentido: alis, a gramtica histrica ainda no isso. Para a lingua francesa, existem destas histrias (ade Brunot -- e de Littr -- parece-me ser do tipo a que merefiro, mas no me lembro). Parece-me que, entendida alngua como elemento da cultura, conseqentemente da his-tria geral, e como manifestao precipua da "nacionalida-de" e "popularidade" dos intelectuais, este estudo no nemocioso nem puramente erudito.

    Em seu artigo interessante como informao da im-portncia que assumiu o estudo do "latim mdio" (esta ex-presso, que deveria significar "latim medieval", creio, pa-rece-me bastante imprpria e possvel causa de erros entreos no-especialistas) Ermini afirma que, com base em pes-quisas, " teoria dos dois mundos separados, do latim, que dominado somente pelos doutos e entra em decadncia, edo neolatino, que surge e se faz vivo, preciso substituir ateoria da unidade latina e da continuidade perene da tradi-o clssica". Isto pode significar to-somente que a novacultura neolatina sentia fortemente as influncias da culturaanterior, mas no que tenha havido uma unidade . "popular-nacional" de cultura.

    Para Ermini, entretanto, talvez "latim mdio" tenha pre-cisamente o significado literal, isto , do latim que est nomeio entre o clssico e o humanista, que assinala indubita-velmente um retorno ao clssico, ao passo que o "latim m-dio" tem caractersticas prprias, inconfundveis: Ermini datao nascimento do "latim mdio" na metade do Sculo IV,quando se verifica a aliana entre a cultura (1) clssica e areligio crist, quando uma "nobre pliade de escritores, sain-do das escolas' de retrica e de potica, sente o vivo desejode juntar a nova f beleza (!) antiga e, deste modo, darvida primeira poesia crist". Parece-me justo reportar o"latim mdio" ao primeiro surgimento de literatura crist la-tina, mas o modo de expor sua gnese, ao que me parece,

    Revoluo Francesa os encontra. [Daqui comea, de fato, a fortuna"escrita" do romanesco e o florescimento dialetal que culmina no pe-rodo liberal de Pio IX at a queda da Repblica Romana.] Em 1847-49, o dialeto a arma dos liberais, aps 1870 a arma dos clericais.

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  • vago e arbitrrio. O "latim mdio" ocuparia cerca de ummilnio, entre a metade do Sculo IV e o fim do Sculo XIV,entre o incio da inspirao crist e a difuso do Humanismo.Estes mil anos, para Ermini, dividem-se do seguinte modo:um primeiro perodo: das origens, que vai da morte de Cons-tantino queda do Imprio Romano do Ocidente ( 337-476);um segundo perodo: da literatura brbara, que vai de 476a 799, isto , at a restaurao do Imprio por Carlos Magno,verdadeira poca de transio na continua e progressiva la-tinizao dos brbaros (exagerado: da formao de um es-trato de intelectuais germnicos que escreviam em latimA. G.); um terceiro periodo: do renascimento carolingeo, quevai de 799 a 888, morte de Carlos, o Gordo; um quarto:da literatura feudal, que vai de 888 a 1000, at o pontifi-cado de Silvestre II, quando o feudalismo, lenta transforma-o de ordenamentos preexistentes, abre uma nova era; umquinto: da literatura escolstica, que se prolonga at o fimdo Sculo XII, quando o saber se recolhe nas grandes es-colas e o pensamento e mtodo filosficos fecundam todasas cincias; e um sexto: da literatura erudita, que vai do prin-cpio do Sculo XIII ao fim do XIV e que j anuncia a de-cadncia.

    Formao das classe intelectuais italianas na Alta IdadeMdia. Para estudar a formao das classes intelectuais ita-lianas na Alta Idade Mdia, preciso levar em conta no sa lingua (questo do 'latim mdio"), como tambm e par-ticularmente o direito. Queda do direito romano aps asinvases brbaras e sua reduo a direito pessoal e consue-tudinrio, em comparao com o direito longobardo; emersodo direito cannico, que passa de direito particular, de gru-po, a direito estatal; renascimento do direito romano e suaexpanso atravs das Universidades. Estes fenmenos noocorrem subitamente, nem tampouco simultaneamente, masesto ligados ao desenvolvimento histrico geral (fuso dosbrbaros com as populaes locais, etc.). O desenvolvimentodo direito cannico e a importncia que ele assume na eco-5 Cf., sobre este assunto, a Histria da Literatura Latina, de MAE-CrrESr.

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    nomia jurdica das novas formaes estatais, a formao damentalidade imperial, medieval cosmopolita, o desenvolvimen-to do direito romano adaptado e interpretado pelas novas for-mas de vida -- tudo isso d lugar ao nascimento e estra-tificao dos intelectuais italianos cosmopolitas.

    Houve um perodo, o da hegemonia do direito germ-nico, no qual a ligao entre o velho e o novo, contudo, eraquase unicamente a lingua, o "latim mdio". O problemadesta interrupo interessou cincia e, o que importante,interessou tambm a intelectuais como Manzoni (cf. seusescritos sobre as relaes entre romanos e longobardos a res-peito do Adelchi); isto , interessou -- no princpio do S-culo XIX -- queles que se preocupavam com a continuida-de da tradio italiana, desde a antiga Roma, visando a cons-tituir a nova conscincia nacional.

    Esquema extrado do ensaio de Brandileone: Nas es-colas do Imprio Romano em Roma, em Constantinopla, emBerito, ensinava-se somente o direito romano, nas duas po-sitiones de jus publicum e de jus privatum; no jus publicam,estava compreendido o jus sacrum pago, durante o perodoem que o paganismo foi religio tanto dos sditos quantodo Estado. Com o aparecimento do Cristianismo e com suaordenao, nos sculos das perseguies e das tolerncias,como sociedade em si, diversa da sociedade poltica, surgiuum novo jus sacrum. Depois que o Cristianismo foi, primei-ro reconhecido, depois elevado pelo Estado a f nica doImprio, o novo jus sacrum teve certamente apoio e reconhe-cimento por parte do legislador laico, mas no foi to con-

    eiderado quanto o antigo. Pois o Cristianismo se separaraada vida social , poltica, se destacara tambm do jus publicarae as escolas no se preocupavam com sua ordenao: o novojus sacrum tornou-se a ocupao especial das escolas inteira-mente prprias da sociedade religiosa. ( Este fato muitoimportante na histria do Estado Romano e pleno de gra-ves conseqncias, pois inicia um dualismo de poder que se

    Sobre o problema geral do obscurecimento do direito romano e seurenascimento, bem como do florescimento do direito cannico, cf. "Osdois direitos e seu moderno ensino na Itlia", de FRANCESCO BEMOL .EO-Ne ( Nueva Antologia de 16 de julho de 1928), a fim de ter algumasidias gerais; mas ver, naturalmente, as grandes histrias do direito.

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  • desenvolver na Idade Mdia: mas Brandileone no o expli-ca: coloca-o como conseqncia lgica da separao origin-ria entre Cristianismo e sociedade poltica. Muito bem; maspor que, quando o Cristianismo se tomou religio do Estadocomo o fora o paganismo, no se reconstituiu a unidade for-mal poltico-religiosa? Este o problema.) Durante os s-culos da Alta Idade Mdia, o novo jus sacrum chamadotambm jus canonicum ou jus ecclesiasticism e o jus roma-num foram ensinados em escolas diversas e em escolas de di-versa importncia numrica de difuso, de atividade. Esco-las especiais romanistas, ou porque continuassem as antigasescolas ou porque tivessem surgido naquela poca, s exis-tiam, no Ocidente, na Itlia; se existiram, mesmo fora daItlia, as scholae liberalizam artium e se nelas (tal como nascorrespondentes italianas) se aprendiam noes elementaresde direito laico, particularmente romano, a atividade desen-volvida foi algo muito pobre, como atestado pela escassa,fragmentria, intermitente e freqentemente equivocada pro-duo que delas provinha e que chegou at ns. Ao contr-rio, as escolas eclesisticas, dedicadas ao ensino e ao estudodos dogmas de f, e ao mesmo tempo do direito cannico,foram inmeras, no s na Itlia como em todos os pasesque se tornaram cristos e catlicos. Todo monastrio e todacatedral de alguma importncia tiveram sua prpria escola: testemunha desta atividade a riqueza de colees canni-cas, sem interrupo do Sculo VI ao XI, na Itlia, Africa,Espanha, Frana, Alemanha, Inglaterra, Irlanda. A explica-o deste formigar de direito cannico em contraste com oromano liga-se ao fato de que o direito romano, na medidaem que continuara a ser aplicado no Ocidente e na Itlia,degradara-se a direito pessoal, ao passo que isso no ocorre-ra com o direito cannico. Para o direito romano, ter-se tor-nado direito pessoal significa ter sido colocado numa posi-o inferior que cabia s leis populares ou Volksrechte, vi-gentes no territrio do Imprio do Ocidente, cuja conserva-o e modificao era tarefa no j do poder soberano, r-gio ou imperial, ou pelo menos no somente dele, mas tam-bm e principalmente das assemblias dos povos aos quaispertenciam. Ao contrrio, os sditos romanos dos reinos ger-mnicos e, posteriormente, do Imprio, no foram conside-rados como uma unidade em si, mas como indivduos singu-

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    lares e, portanto, no tiveram uma assemblia particular, au-torizada a manifestar sua vontade coletiva acerca da conser-vao e da modificao do prprio direito nacional. Destemodo, o direito romano foi reduzido a um mero direito con-suetudinrio. Na Itlia longobarda, princpios e institutos ro-manos foram aceitos pelos vencedores, mas a posio do di-reito romano no se modificou.

    A renovao do Imprio, realizada por Carlos Magno,no retirou o direito romano de sua posio de inferioridade:ela foi melhorada, mas somente mais tarde e graas a outrascausas; no conjunto, continuou a ser direito pessoal, na Itlia,at o Sculo XI. As novas leis promulgadas pelos novosImperadores no foram acrescentadas, at todo o Sculo XI,ao Corpus justiniano, mas ao dito longobardo; conseqen-temente, no foram vistas como direito geral obrigatrio paratodos, mas como direito pessoal prprio dos que viviam soblei longobarda. Com o direito cannico, pelo contrrio, noocorre a reduo a direito pessoal, sendo ele o direito de umasociedade diversa e distinta da sociedade poltica, na qual aparticipao no era baseada na nacionalidade: ele possuanos concilios e nos papas seu prprio poder legislativo. Pos-sua, porm, uma esfera de obrigatoriedade restrita. Toma-se obrigatrio ou porque aceito espontaneamente, ou por-que acolhido entre as leis do Estado. A posio do direitoromano modifica-se radicalmante na Itlia, medida em que,aps o advento dos Otnios, o imprio concebido mais clarae explicitamente como a continuao do antigo. Foi a escolapavense que se fez intrprete deste fato e que proclamou alei romana omnium generalist preparando o ambiente no qual

    pde surgir e florescer a escola de Bolonha; e os imperadoressvevos encararam o Corpus justiniano como o seu cdigo, aoqual fizeram acrscimos. Esta reafirmao do direito romanono se deve a fatores pessoais: liga-se ao reflorescer, aps oSculo XI, da vida econmica, da indstria, do comrcio, dotrfico martimo, O direito germnico no se prestava a re-gular juridicamente a nova matria e as novas relaes.

    Tambm o direito cannico sofre, aps o Sculo XI, umamodificao.

    Com os carolngeos aliados ao papado, concebida amonarquia universal abarcando toda a humanidade, dirigidapelo Imperador no plano temporal e pelo Papa no espiritual.

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  • Mas esta concepo no podia delimitar a priori o camposubmetido a cada poder, deixando ao imperador uma Largamargem de interveno nos negcios eclesisticos. Quandoas finalidades do Imprio, j sob os prprios carolingeos ecada vez mais em seguida, mostraram-se em discordncia comas da Igreja; e quando o Estado revelou tender absoroda hierarquia eclesistica no Estado, comeou a luta termi-nada no princpio do Sculo XII com a vitria do Papado.Foi proclamada a primazia do espiritual (sol-lua) e a Igrejareadquiriu a liberdade para sua ao legislativa, etc., etc. Estaconcepo teocrtica foi combatida terica e praticamente,mas se mantm dominante -- em sua forma genuina ou ate-nuada -- durante sculos e sculos. Deste modo, havia doistribunais, o sacramental e o no-sacramental; deste modo, osdois direitos foram casados, utrumque jus, etc.

    Carter cosmopolita da literatura italiana. Ver o ensaiode Augusto Rostagni sobre a "Autonomia da Literatura Ro-mana", publicado em quatro partes na Italia Letteraria de 21de maio de 1933 e ss. Segundo Rostagni, a literatura latinasurge inicialmente das guerras pnicas, como causa e efeitoda unificao da Itlia, como expresso essencialmente na-cional, "com o instinto do progresso, da conquista, com o im-pulso das mais altas e vigorosas afirmaes". Conceito anti-histrico, pois era impossvel falar nessa poca de fenmeno"nacional", mas to-somente de romanismo que unifica juri-dicamente a Itlia (e uma Itlia que ainda no correspondeao que hoje entendemos por Itlia, j que estava excluda aAlta Itlia, que tem hoje uma importncia no pequena noconceito de Itlia). Que Rostagni tenha razo ao falar de"autonomia" da literatura latina, isto , de sustentar que esta autnoma com relao literatura grega, algo que podeser aceito: mas, na realidade; existia mais "nacionalidade"no mundo grego do que no romano-itlico. Ademais, mesmoque se admita terem as primeiras guerras pnicas modificadoalgo nas relaes entre Roma e a Itlia, bem como ter-severificado uma maior unidade inclusive territorial, isto noaltera o fato de que este perodo seja muito breve e tenhaescassa importncia literria: a literatura latina floresce aps

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    Csar, com o Imprio, isto , precisamente quando a funoda Itlia torna-se cosmopolita, quando no mais se colocao problema da relao entre Roma e a Itlia, mas entreRoma-Itlia e o Imprio. No se pode falar de nacional semterritorial: em nenhum desses perodos, o elemento territo-rial teve uma importncia que no fusse meramente jurdico-militar, isto , "estatal" no sentido governamental, sem con-tedo tico-passional.

    A investigao da formao histrica dos intelectuais ita-lianos, assim, leva a que nos reportemos at a poca do Im-prio Romano, quando a Itlia, por ter Roma em seu territ-rio, torna-se o cadinho das classes cultas de todos os terri-trios imperiais. O pessoal dirigente torna-se cada vez maisimperial e cada vez menos latino, torna-se cosmopolita: mes-mo os imperadores no so latinos, etc. H, portanto, umalinha unitria no desenvolvimento das classes intelectuais ita-lianas (que operam no territrio italiano), mas esta linha dedesenvolvimento no absolutamente nacional: o fato levaa um desequilbrio interno na composio da populao quevive na Itlia, etc. O problema daquilo que so os intelectuaispode ser revelado, em toda sua complexidade, atravs destainvestigao.

    Direito romano ou direito bizantino? O " direito roma-no" consistia, essencialmente, num mtodo de criao do di-

    preito, na resoluo continua da casustica jurisprudencial. Osbizantinos (Justiniano) recolheram a massa dos casos de di-reito resolvidos pela atividade jurdica concreta dos roma-nos, no como documentao histrica, mas como cdi-go coagulado e permanente. Esta passagem de um "mto-do" a um "cdigo" permanente pode tambm ser compreen-dida como o fim de uma poca, como a passagem de umahistria em desenvolvimento rpido e continuo a uma fasehistrica relativamente estagnada. O renascimento do "direi-to romano" , isto , da codificao bizantina do mtodo ro-mano de resolver as questes de direito, coincide com o flo-rescimento de um grupo social que pretende uma "legislao"

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  • permanente, superior aos arbitrios dos magistrados (movi-mento que culmina no "constitucionalismo"), pois somentenum quadro permanente de "concrdia discorde", de lutadentro de uma moldura legal que determine os limites do ar-btrio individual, pode ele desenvolver as foras implcitas emsua funo histrica.

    A cultura na Alta Idade Mdia. Alta Idade Media(fase cultural do advento do "latim mdio") . Ver a Hist-ria da literatura latina crist, de A. G. AMATUCCI (Laterza,Bani). As pgs. 343-344, Amatucci, escrevendo sobre Cas-siodoro, diz: "...Sem nada descobrir, pois no era talentopara fazer descobertas, mas olhando para o passado, emmeio ao qual se erguia a gigantesca figura de Gerolamo",Cassiodoro "afirmou que a cultura clssica, o que para ele erasinnimo de cultura romana, devia ser o fundamento da sa-grada, e esta deveria ser adquirida nas escolas pblicas". OPapa Agapito ( 535-536) teria realizado este programa seno tivesse sido impedido pelas guerras e pelas lutas de fac-o que devastavam a Itlia. Cassiodoro divulgou este pro-grama nos dois livros de Institutiones e o realizou no Viva-rium, convento por ele fundado em Squillace.

    Um outro ponto a ser estudado a importancia desem-penhada pelo mosteiro na criao do feudalismo. Em seuvolume So Benedito e a Itlia de seu tempo (Laterza, Bari,pgs. 170-171), Luigi Salvatorelli escreve: "Uma comunida-de, e alm disso uma comunidade religiosa, guiada pelo es- jpinito beneditino, era um patro muito mais humano do queo proprietrio individual, com seu egosmo pessoal, seu or-gulho de casta, sua tradio de abusos seculares. E o pres-tigio do mosteiro, mesmo antes de se concentrar em privil-gios legais, protegia os colonos, em certa medida, contra arapacidade do fisco e as incurses dos bandos armados le-gais e ilegais. Longe das cidades em plena decadncia, emmeio dos campos espremidos que ameaavam se tomar umdeserto, o mosteiro surgia, novo ncleo social que extraia oseu ser do novo princpio cristo, fora de qualquer misturacom o mundo decrpito que insistia em ser designado pelogrande nome de Roma. Assim, So Benedito, sem prop-Io

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    diretamente, realizou uma obra de reforma social e de ver-dadeira criao. Ainda menos premeditada foi sua obra decultura".

    Ao que me parece, nesta passagem de Salvatorelli exis-tem todos ou quase todos os elementos fundamentais, negati-vqs e positivos, para explicar historicamente o feudalismo.Menos importante, para minha investigao, a questo daimportncia de So Benedito e de Cassiodoro na inovaocultural desse perodo.

    Sobre esta conexo de problemas, alm de Salvatorelli,deve-se consultar o pequeno volume de Filippo Ermini, "Be-nedito de Norcia", nos Perfis de Formiggini, com uma bi-bliografia sobre o assunto. Segundo Ermini, "...as casasbeneditinas tornaram-se, verdadeiramente, um asilo de saber;e, mais do que o castelo, o mosteiro ser a oficina de todacincia. Nele, a biblioteca conservar para os psteros osescritos dos autores clssicos e cristos... A inteno deBenedito se realiza: o orbis latins, destruido pela ferocidadedos invasores, recompe-se em unidade e tem assim incio,com a obra do gnio e da mo, sobretudo de seus seguido-res, a admirvel civilizao da Idade Mdia".

    Nota. Quando se diz que Plato desejava uma "repblicade filsofos", preciso entender "historicamente" o termo "fil-sofos", que hoje deveria ser traduzido por "intelectuais". Natu-ralmente, Plato referia-se aos "grandes intelectuais", que eram,ademais, o tipo de intelectual de seu tempo, alm de conceder im-portncia ao contedo especfico da intelectualidade, que poderiaconcretamente chamar-se de "religiosidade": os intelectuais de go-verno eram aqueles intelectuais determinados mais prximos dareligio, isto , cuja atividade tinha um carter de religiosidade, en-tendida no sentido geral da poca e no sentido especial de Plato e, por isso, atividade de certo modo "social", de elevao eeducao (e direo intelectual e, portanto, com funo dehegemonia) da polis. Poder-se-ia talvez, por isso, afirmar que a"utopia" de Plato antecipa o feudalismo medieval, com a funoque neste prpria da Igreja e dos eclesisticos, categoria inte-lectual daquela fase do desenvolvimento histrico-social. A averso

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  • de Plato aos "artistas" deve ser entendida, portanto, como aver-so s atividades- espirituais "individualistas", que tendem ao "par-ticular" e que so, conseqentemente, "a-religiosas", "a-sociais".

    Origem dos centros de cultura medieval. Mons. FRAN -CESCO LANZONI, As Dioceses da Itlia, desde as origens ato principio do Sculo VII (ano 604), Estudo critico, Faenza,Estab. Grf. F. Lega, 1927, Studio e Testi n9 35, pgs.XVI-1122, 125 L. (Em apndice, um Excursus sobre os san-tos africanos adorados na Itlia.) Obra fundamental para oestudo da vida histrica local na Itlia desses sculos; res-ponde pergunta: como se formaram os agrupamentos cul-turais-religiosos durante a queda do Imprio Romano e oincio da Idade Mdia? Evidentemente, este processo deagrupamento no pode ser separado da vida econmica e so-cial e fornece indicaes para a histria do nascimento dasComunas, para a origem das cidades mercantis. Uma impor-tante sede episcopal no podia prescindir de certos servios(defesa militar, abastecimento, etc.) que determinavam umagrupamento de elementos laicos em tomo dos religiosos(esta origem "religiosa" de uma srie de cidades medievaisno estudada por Pirenne, pelo menos no pequeno livroque possuo; ver na bibliografia de suas obras completas): aprpria escolha da sede episcopal uma indicao de valorhistrico, pois subentende uma funo organizadora e cen-tralizadora do local escolhido. A partir do livro de Lanzoni,torna-se possvel reconstruir as questes ais importantes demtodo na crtica desta investigao, em f arte de carter de-dutivo, bem como a bibliografia. Tambm so importantesos estudos de Duchesne sobre o cristianismo primitivo (noque toca Italia: Les vchs d'Italie et l'invasion lombarde,e As sedes episcopais do antigo Ducado de Roma) e sobreas antigas dioceses da Galia, bem como os estudos de Har-nack sobre as origens crists, notadamente Die Mission undAusbreitung des Christentums. Tais investigaes so inte-ressantes, no s no que diz respeito origem dos centrosde civilizao medievais, como tambm, naturalmente, no quetoca histria real do Cristianismo.

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    Mosteiro e regime feudal. Desenvolvimento prtico daregra beneditina e do principio Ora et labora. O labora jera submetido ao ors, ou seja, a finalidade principal era evi-dentemente o servio divino. Assim, os monges-camponesesso substituidos pelos colonos, a fim de que os monges pu-dessem, a qualquer momento, encontrar-se no convento parapraticar os ritos. Os monges no convento mudam de "traba-lho": trabalho industrial (artesanal) e trabalho intelectual(que contm uma parte manual, a funo de copista). A re-lao entre colonos e convento a relao feudal, com con-cesses niveladoras, e ligada no s elaborao internaque ocorre no trabalho dos monges, como ao crescimento dapropriedade fundiria do mosteiro. Outro desenvolvimento dado pelo sacerdcio: os monges servem como sacerdotesem territrio circunvizinho e sua especializao aumenta: sa-cerdotes, intelectuais de conceito, copistas, operrios, indus-triais, artesos. O convento a "corte" de um territrio feu-dal, defendido, mais do que pelas armas, pelo respeito reli-gioso. Ele reproduz e desenvolve o regime da "vila" romanapatricia. Para o regime interno do mosteiro, foi desenvolvidoe interpretado um princpio da Regola, onde se diz que, naeleio do abade, deve prevalecer o voto dos que se julgammais sbios e prudentes, dizendo-se ainda que o abade se devemunir do conselho deles quando tiver que decidir sobreassuntos graves, mas no to graves que possam justificarurna consulta a toda a congregao. Deste modo, os mon-ges sacerdotes, que se dedicavam aos oficios correspondentess finalidades da instituio, foram-se distinguindo dos outrossacerdotes que continuavam a realizar os servios da casa.

    Sobre a tradio nacional italiana. Cf. o artigo de B.Barbadoro, no Marzocco de 26 de setembro de 1926, a respei-to, da segunda Liga lombarda e de sua exaltao como "pri-meiro germe da independncia da estirpe, da opresso es-trangeira que prepara os faustos do Renascimento". Barba-doro punha-se em guarda contra esta interpretao e obser-vava que "a prpria fisionomia histrica de Frederico lI muito diferente da de Barbarruiva, e outra a poltica ita-liana do segundo Svevo: dono do Mezzogiorno da Itlia,

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  • cuja histria h sculos separara da histria do resto da pe-ninsula, parecia em certo momento que a restaurao da au-toridade imperial no centro e no norte conduzisse finalmen-te constituio de uma forte monarquia nacional". NoMarzocco de 16 de dezembro de 1928, Barbadoro numabreve nota -- recorda esta sua afirmao, a respeito de umamplo estudo de Michelangelo Schipa, publicado no Arquivohistrico para as provincias napolitanas, no qual o tema amplamente demonstrado. Esta corrente de estudos muitointeressante, pois permite compreender a funo histrica dasComunas e da primeira burguesia italiana, que teve um papeldesagregador da unidade existente, sem saber ou sem podersubstitui-la por uma nova e prpria unidade: o problema daunidade territorial no foi nem sequer colocado ou suspeita-do; este florescimento burgus no teve continuao; foi in-terrompido pelas invases estrangeiras. O problema muitointeressante do ponto de vista do materialismo histrico e, aoque me parece, pode ser relacionado com o problema da fun-o internacional dos intelectuais italianos. Por que os n-cleos burgueses formados na Itlia, que atingiram a completaautonomia poltica, no tiveram a mesma iniciativa dos esta-dos absolutistas na conquista da Amrica e na abertura denovas frentes? Afirma-se que um dos elementos da deca-dncia das repblicas italianas foi a invaso turca, que in-terrompeu ou, pelo menos, desorganizou o comrcio com oLevante, e a modificao do eixo histrico mundial, que pas-sou do Mediterrneo para o Atljitico graas descobertada America e circunavegao da Africa. Mas por queCristvo Colombo serviu Espanha e no a uma repblicaitaliana? Por que os grandes navegadores italianos servirama outros paises? A razo disso tudo deve ser buscada na pr-pria Itlia, e no nos turcos ou na Amrica. A burguesiadesenvolveu-se melhor, nesse perodo, com os estados abso-lutistas, isto , com um poder indireto, no tendo todo o po-der. este o problema, que deve ser relacionado com o dosintelectuais: os ncleos burgueses italianos, de carter comu-nal, tiveram condies de elaborar uma categoria prpria deintelectuais imediatos, mas no de assimilar as categorias tra-dicionais de intelectuais (notadamente o clero), as quais,pelo contrrio, mantiveram e acresceram seu carter cosmo-

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    polita. Enquanto isso, os grupos burgueses ho italianos,atravs do Estado absolutista, alcanaram esta finalidademuito facilmente, pois absorveram os prprios intelectuais ita-lianos. Esta tradio histrica explica, talvez, o carter mo-narquista da burguesia italiana moderna e pode contribuirpara uma melhor compreenso do Risorgimento.

    Desenvolvimento do espirito burgus na Itlia. T Cf. oartigo "No centenrio da morte de Albertino Mussato", deManlio Torquato Dazzi, na Nuova Antologia de 16 de julhode 1929. Segundo Dazzi, Mussato destaca-se da tradioda histria teolgica para iniciar a histria moderna ou hu-manista, mais do que qualquer outro de sua poca (ver ostratados de histria da historiografia, de Croce, de Lisio, deFueter, de Balzani, etc.); em Mussato, as paixes e os mo-tivos utilitrios dos homens aparecem como motivos da his-tria. Para esta transformao da concepo do mundo,contriburam as ferozes lutas das faces comunais e dos pri-meiros signorotti. O desenvolvimento pode ser acompanha-do at Maquiavel, GuicciardinI, L. B, Alberti.

    Nora. Na parte de seu estudo sobre a "Lrica do SculoX VI" publicada na Critica de novembro de 1930, B. Croce escre-ve do Galateo: "... Ele nada tem de acadmico e de pesado;

    7 Para o estudo da formao e da difuso do esprito burgus na It-lia (trabalho tipo Groethuysen), cf. tambm os Sermes de FRANCOSACHEM (ver o que Croce escreve a respeito deles, na Crtica de mar-o de 1931; "Boccaccio e Franco Sachettr). Sobre L.B. Alberti, cf.o livro de PAm-HENat MnCn, Un idal humain au XV.e sicle La pense de L. B. Alberti (1404-1472), in-8P, pip. 649, Paris,Soc. Ed. Les Belles Lettre.,, 1930. Anlise detalhada do pensamentode L.B. Alberti, mas ao que parece ppoor algumas recenses nemsempre ereta, etc. Edio Utet do Nooeino, cuidada por Letterio diFrancia, que determinou ter sido o ncleo original da coletnea com-posto nos ltimos anos do Sculo XIII por um burgus guibellno. Am-bos os livros deveriam ser analisados para a pesquisa j referida, rela-tiva ao modo pelo qual se refletiu na literatura a passagem da econo-mia medieval i economia burguesa das Comunas e, conseqentemente, queda na Itlia do espirito empresarial econmico e restau-raa catlica.

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  • uma srie de gentis advertencias sbre o modo agradvel de secomportar em sociedade e um dos livros iniciadores que a Itliado Sculo XVI deu ao mundo moderno" (pg. 410). E corretodizer que se trata de um livro "iniciador" dado ao "mundo mo-derno"? Quem mais "iniciador" para o "mundo moderno", Casae Castiglioni ou Leon Battista Alberti? Quem se ocupava dasrelaes entre corteses ou quem dava conselhos para a edifica-o do tipo do burgus na sociedade civil? Todavia, nesta inves-tigao, deve-se levar Casa em conta; correto, por certo, noconsider-lo apenas "acadmico e pesado" (mas, neste juzo sobre"o mundo moderno", no est implcito um afastamento, ao invsde uma relao de iniciador, entre Casa e o mundo moderno?).Casa escreveu outras pequenas obras polticas, oraes e, almdisso, um tratado em latim: De oficlis inter potentiores et tenuio-res amitos, "a respeito da relao existente entre amigos poderosose inferiores, entre os que impelidos pela necessidade de viver ede crescer passam a servir como cortesos e os que empregamestes; relao que ele julga, tal como , de carter utilitrio e nopretende converter em ligao regulada por uma lei de justia,mas que deve ser aceita argumenta-se por ambas as partes,tentando-se introduzir nela lume de bondade, mediante a expli-cao, a uns e a outros, da realidade de suas respectivas posiese do tato que elas requerem".

    A Contra-Reforma sufoca o desenvolvimento intelectual.Parece-me que, neste desenvolvimento, poder-se-ia distinguirduas correntes principais. Uma tem seu coroamento literrioem Alberti: ela volta st ateno para o que "particular",para o burgus como inivduo que se desenvolve na socie-dade civil e que no concebe sociedade poltica alm do m-bito de seu "particular"; liga-se ao guelfismo, que poderiaser chamado de sindicalismo terico medieval. federalistasem centro federal. Para as questes intelectuais, confia naIgreja, que o centro federal de fato, graas sua hegemo-nia intelectual e tambm poltica. Deve-se estudar a corsti-tuio real das Comunas, isto , a atitude concreta que osrepresentantes assumiam em face do governo comunal: o po-der durava pouqussimo (dois meses somente, no mais dasvezes) e, durante este perodo, os membros do governo eramsubmetidos clausura, sem mulheres; tratava-se de pessoas

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    muito vulgares, que eram estimuladas pelos interesses Ime-diatos de sua arte (cf., para a Repblica Florentina, o livrode Giuseppe Lensi sobre o Palazzo della Signoria, onde de-veriam existir muitas anedotas sobre estas reunies de go-verno e sobre a vida dos senhores durante a clausura). Aoutra corrente tem seu coroamento em Maquiavel e na co-locao do problema da Igreja como problema nacional ne-gativo. A esta corrente pertence Dante, que adversrioda anarquia comunal e feudal, mas que busca para ela umasoluo semimedieval: de qualquer modo, coloca o problemada Igreja como problema internacional e salienta a necessi-dade de limitar-lhe o poder e a atividade. Esta correrte guibelina em sentido lato. Dante verdadeiramente umatransio: existe uma afirmao de laicismo, mas ainda coma linguagem medieval.

    a Trecho de um artigo de r oLr o TABOUANI, no Marzocco de 3 deabril de 1927, "Um esquecido intrprete de Michelangelo" (EmilioOl ivier ): 'Tara ele ( Michelangelo), neo existia seno a arte. Papas,principes, repblicas, eram a mesma coisa, contanto que lhe dessemmeios de trabalhar; para o fazer, ter-se-ia entregue ao Grande Turco,como ameaou de certa feita; e nisto Cellini se aproximava dele". Eno apenas Cellini. E Leonardo? Mas por que isto ocorre? E por quetais caracteres existiam somente na Itlia? Este o problema. Obser-var, na vida desses artistas, como se manifesta sua anacionalidade. Eem Maquiavel, o nacionalismo era suficientemente forte para supe-rar o "amor arte pela arte"? Uma investigao desta natureza seriamuito interessante: o problema do Estado italiano ocupava Maquiavelsobretudo como "elemento nacional" ou como problema poltico inte-ressante em si e para si, notadamente sendo dada a sua dificuldade ea grande histria passada da Itlia?9 Foi publicada a coletnea completa das Poesias provenais histri-cas relativas Italia (Roma, 1931, na srie das Fontes do InstitutoHistrico Italiano),'aos cuidados de Vincenzo De Bartholomaeis; mlauoPALA= a anuncia, no Marzocco de 7 de fevereiro de 1932. "De cercade 2.600 poesias provenais que chegaram at ns, 400 fazem parteda histria da Itlia, ou porque tratem de assuntos italianos, se bemque sejam de poetas que jamais estiveram na Itlia, ou ento porqueescritas por italianos. Das 400, cerca de metade so puramente amo-rosas, as outras so histricas, e oferecem umas mais, outras menos testemunhos teis para a reconstruo da vida e, em geral, da his-tria italiana desde o fim do Sculo XII metade do Sculo XIV. Du-zentas poesias de cerca de oitenta poetas". Esses trovadores, proven-ais ou italianos, viviam nas cortes feudais da Itlia setentrional, sombra das pequenas senhorias ou nas Comunas, participavam da vidae das lutas locais, defendiam os interesses deste ou daquele Senhor,

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  • Humanismo e Renascimento. Cf. Luigi Aa.EZio, "Re-nascimento, Humanismo e espirito moderno", in Nuova An-tologia de 19 de julho de 1930. Arezio ocupa-se com o livrode G. Toffanin, Que foi o Humanismo (Sansoni, Florena,1929), que revela ser, pelas referncias feitas, muito interes-sante para o assunto que me ocupa. Farei referncia a algunsmotivos. (Voigt e Burckhardt acredrtaram que o Humanis-mo era dirigido contra a Igreja; Pastor ser necessrio lerseu livro sobre a Histria dos Papas, que se refere ao Hu-manismo no cr que o Humanismo fosse inicialmentedirigido contra a Igreja.) Para Toffanin, o principio da irre-ligiosidade ou da nova religio no a chave-mestra parapenetrar no segredo dos humanistas; nem tem sentido falardo individualismo deles, j que "os presumveis efeitos darevalorizao da personalidade humana" por obra de umacultura seriam muito mais surpreendentes numa poca queficou famosa, por sua vez, por ter "aumentado a distnciaentre o resto dos homens e os homens de gabinete".

    O fato verdadeiramente caracterstico do Humanismo "a paixo pelo mundo antigo, atravs da qual quase de im-proviso tenta-se suplantar uma lngua popular e consa-grada pelo gnio mediante uma lingua morta, inventa-se (po-demos dizer assim) a cincia filolgica, renova-se gosto ecultura. O mundo pago renasce". Toffanin sustenta queno necessrio confundir o Humanismo com o progressivodespertar ocorrido depois do Sculo XI; o Humanismo umfato essencialmente italiano, "independente destes pressgiosfalazes", e a ele chegaram para se fazerem clssicos e cul-tos -- a Frana e o resto do mundo. Num certo sentido,pode se chamar de hertica a civilizao comunal do Sculo

    desta ou daquela Comuna, com poesia de vrias formas, das quais rica a lrica provenal: poesias polticas, morais, satricas, de cruzada,de lamentao, de conselho; canes, disputas, etc., as quais apare-cendo de vez em quando e circulando noa ambientes interessados preenchiam a funo hoje desempenhada pelo artigo de fundo dos jor-nais. De Bartholomaeis procurou datar essas poesias, o que no di-ficil por causa das aluses que contm; ele as libertou de todos os sub-sidios que dificultavam a leitura, e as traduziu. E dada, de cada tro-vador, uma breve informao biogrfica. Para a leitura do texto origi-nal, fornecido um glossrio das palavras mais dificeis de entender.Sabre a poesia provenal na Itlia, deve-se cf. o volume de morosearoxr,Trovadores da Itlia.

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    XIII, que se manifesta numa irrupo de sentimentos e pen-samentos refinadssimos, em formas plebias, e ""inicialmentehertico foi o impulso ao individualismo, ainda que entreo povo tenha se tomado conscincia da heresia menos doque, primeira vista, se possa crer". A literatura vulgar queirrompe do seio da civilizao comunal e independentementedo classicismo ndice de uma sociedade "na qual a levedu-ra hertica fermentou"; levedura que, se debilitava nas mas-sas o respeito s autoridades eclesisticas, tornava-se empouco um aft jamento aberto das romanitas, caractersticodo periodo que decorre entre a Idade Mdia propriamentedita e o Humanismo. Alguns intelectuais parecem conscien-tes desta descontinuidade histrica; pretendem ser cultos semter lido Virglio, isto , sem os estudos liberais, cujo aban-dono geral justificaria, segundo Boccaccio, o uso do vulgar,ao invs do latim, na Divina Comdia. Guido Cavalcanti o maior destes intelectuais. Em Dante, ""o amor pela linguaplebia, alimentado por um estudo de espirito comunal e vir-tualmente hertico", devia contrastar com um conceito de sa-bedoria quase humanista. "Caracteriza os humanistas a cons-cincia de uma separao irremedivel entre homem de cul-tura e massa; ideais abstratos so, para eles, os do poderioimperial e papal; real, pelo contrrio, sua f na universa-lidade cultural e nas razes dela". A Igreja favoreceu a se-parao entre cultura e povo iniciada com o retorno do latim,considerando-a como sadia reao a toda indisciplina mstica.O Humanismo, de