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Ser Discreto 1 Mauro Guilherme Pinheiro Koury Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções Ser Discreto Um Estudo do Brasil Urbano Atual sob a Ótica do Luto Mauro Guilherme Pinheiro Koury Relatório Final da Pesquisa "Luto e Sociedade", integrante do GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, apresentado ao Departamento de Ciências Sociais da UFPB. João Pessoa, 2001 Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

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1 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Universidade Federal da Paraíba

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções

Ser Discreto

Um Estudo do Brasil Urbano Atual sob a Ótica do Luto

Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Relatório Final da Pesquisa "Luto e Sociedade", integrante do GREM –Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções, apresentado ao Departamento de Ciências Sociais da UFPB.

João Pessoa,

2001

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2 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Índice

INTRODUÇÃO .................................................................................................................3

A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA SENSIBILIDADE .............................................25

A MORTE E O MORRER..............................................................................................66

A PERDA E O SOFRIMENTO..................................................................................... 105

VIVER O LUTO............................................................................................................ 138

TEMPOS DO LUTO..................................................................................................... 186

CONCLUSÃO ............................................................................................................... 237

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................... 254

ANEXOS........................................................................................................................ 267

ANEXO 1 - QUADROS................................................................................................. 268

ANEXO 2 - ENTREVISTAS UTILIZADAS POR CAPÍTULO................................... 300

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3 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Introdução

"Por favor, basta. Nunca falei tanto da dor, da perda, da morte do meu amado. Desculpe... e obrigado por ter me escutado. Nunca pensei que pusesse falar do que falei, mas agora acabou...". (Entrevista 12)

1.

Este livro tem por objetivo compreender as atitudes em relação ao

fenômeno do luto no Brasil. O ritual da dor em torno do sofrimento

provocado por uma perda é o ponto crucial de reflexão. Busca entender o

significado social do luto e o processo de individuação de quem o sofre.

Philippe Ariès (1967, 1972, 1974), Louis-Vincent Thomas (1983),

Edgar Morin (1977), entre outros autores, em seus estudos, procuraram

perceber as mudanças nos costumes e atitudes perante a morte e o morrer

ocorridas no mundo ocidental pós-guerra. Embora constatassem a

sobrevivência, mesmo que em declínio, de antigas práticas, nos meios

populares e de classes médias, relataram o progressivo enfraquecimento da

sensibilidade em relação aos mortos e às formas de comportamento aos que

sofreram perdas recentes. Enfatizaram, sobretudo, a ambivalência das

atitudes entre os indivíduos, e afirmaram esta ambivalência indicando, por

exemplo, que uma mesma pessoa que terá vergonha de falar da morte ou

de um morto recente comprará, sem complexos, um jazigo para si ou irá por

flores no túmulo de um parente querido.

1 Entrevista realizada com uma mulher natural e residente na cidade de Belém, Pará, de 45

anos, viúva, com dois filhos, economista, e empresária, pertencente a classe média alta da cidade.

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4 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A crescente individuação da sociedade moderna ao situar

sentimentos à margem das relações sociais, catalogando-os como

subjetividade, tem modificado uma série de rotinas tradicionais de

comportamento, colocando sob suspeita um conjunto de padrões ritualísticos

(ELIAS, 1990, 1993, 1989; BENJAMIN, 1985; GEERTZ, 1978;

DUVINGNAUD, 1973; WEBER, 1974, entre outros). A descrença em

fórmulas rituais de sujeição social da dor pessoal de quem sofre uma perda

e da integração do morto às malhas sociais através de uma série de ritos de

passagem (ELIAS, 1989; ARIÈS, 1972, 1974; MORIN, 1977; BENETICT,

1972; BERGER, 1995; GINSBURG, 1989; HERTZ, 1960 e 1970,

DANFORTH & TSIARAS, 1982; VOLVELLE, 1974, entre outros), além do

impedimento tácito a expressões intensas de sentimento (WAUGH, 1961;

ELIAS, 1989; ARIÈS, 1972 e 1974; MAUSS, 1980), mesmo quando existam,

e do modo higiênico no trato do morto (ARIÈS, 1989, 1990), podem ser

indicados como exemplos de mudança nas antigas práticas e relações

sociais em torno da morte e do luto nas sociedades de tradição ocidental.

No caso brasileiro, a morte e os modos de enfrentá-la tem sido

estudada por vários autores (DaMATTA, 1987; MARTINS, 1983; CARNEIRO

DA CUNHA, 1978; RODRIGUES, 1983; POMPA, PESSOA, & POLIELLO,

1987; AZEVEDO, 1987; GAUDÊNCIO, 1986, entre outros). Estes estudos

estão mais preocupados na descrição e nas permanências dos costumes e

atitudes em relação à morte e aos mortos, que nos processos de mudança

de valores e mentalidades. A questão do luto enquanto expressão social dos

sentimentos, vem sendo tratada por Koury (1993, 1996, 1996a, 1998, 1999a

2000 e 2001) e Santos (2000), mas, ainda existem poucos estudos a

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5 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

respeito nas Ciências Sociais2 do Brasil. Na maior parte dos estudos

brasileiros que lidam com a morte e o morrer, quando muito é apenas

referenciada.

Para este estudo, os códigos do luto e da morte buscam ser

apreendidos no seu processo de mudança. Parte-se da hipótese de que a

morte e sua relação com o mundo dos vivos no Brasil parece ter sido

capturada por códigos outros que não os de uma sociedade relacional,

estudada por Roberto DaMatta (1987) no início dos anos oitenta. O

distanciamento em relação ao morto e aos que o perdem parece ser a

característica principal da nova sensibilidade que começa a se formar,

tornando-se uma tendência cada vez mais nítida, na sociedade brasileira

urbana dos últimos dez anos, isto é, entre os anos de 1991 a 2000. A

manifestação pública da dor individual torna-se mais e mais estranha ao

cotidiano do homem comum, embora conviva ainda com a indignação por

esse estranhamento.

A exposição pública do sofrimento se vê mesclada por uma

condenação velada da dor em público. A ambivalência parece predominar.

No conjunto das relações sociais a tendência parece ser a de uma

reprovação ao luto público, como se a dor pessoal de uma perda

contaminasse (ELIAS, 1989) os outros com a presença da morte.

Quem sofre uma perda parece vivenciar uma situação de ao mesmo

tempo que se indigna por não obter a solidariedade esperada, por se

encontrar só em seu sofrimento, se impor a si mesmo uma censura,

recolhendo a sua dor, internalizando o seu sofrimento, tendo vergonha do

seu estado (PINCUS, 1989). O trabalho de luto, como é chamado pela

2 É importante percorrer os trabalhos de Beauvoir (1982, 1984 e 1987), Kubler-Ross (1969 e 1974) Pincus (1989), Elias (1989), Paz (1984), entre tantos outros, para uma visão do

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literatura médica e psicanalítica (FREUD, 1992; KLEIN, 1940; ABRAHAM,

1970; THOMAS, 1987; GIRON, 1983; LAGACHE, 1938; RUBINSTEIN,

1995, KALDESTAD & DANBOLT, 1991, SOURSIS, 1994, LEEP, 1968, entre

outros), passa a ser muito mais lento, possibilitando o surgimento da anomia

(DUVIGNAUD, 1973) e da condenação pessoal. A idéia de fracasso e de

desilusão com o mundo e com os outros parece sobressair com mais nitidez

(JANKÉLEVITCH, 1974).

Outra hipótese que percorre as inquietações da pesquisa interroga se

o luto, enquanto expressão social e enquanto resultado desse processo

ambivalente de atitudes que acompanha as mudanças de valores, não

amplia as bases da solidão individual, sendo encoberto por uma espessa

malha que delimita os contornos e o expulsa para dentro da pessoa. A

solidão (KLEIN, 1991), o isolamento, parecem ministrar o compasso dessa

sinfonia. O sofrimento, o processo de internalização do morto em si que

compõe o trabalho do luto, nostalgicamente parece processar este ritual

interior. Império da memória, dos espaços de singularização e

uniformização, dos tempos cíclico e linear, que em ondas decodificam o

natural dos códigos socialmente impostos, pondo em evidência as normas e

as leis morais como uma espécie de negócio de morte (CANETTI &

ADORNO, 1988; KOURY, 1993; MATOS, 1987, entre outros).

A idéia do fracasso, da desilusão do sujeito no ritual introspectivo de

sua dor, parece impor códigos de naturalização e anonimato à morte e ao

processo social do sofrimento, evidenciando uma fragmentação de

sentimentos coletivos que se expressam numa espécie de receio social de

contaminação (ELIAS, 1989) e na vergonha de sentir-se enlutado. Parece

condenar o trabalho de luto a realizar-se como unicamente desilusão do

tratamento do luto e do morrer no ocidente.

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mundo, como expressão solitária de um sujeito em descompasso, em

desagregação, em seu sofrimento, do social.

Efeito de decepção e engodo, da morte como universo do silêncio, a

dor do luto constrangida e envergonhada no interior do sujeito parece

revelar-se como nostalgia do ausente configurado em um tempo e em um

espaço singular e solidário, perdido na memória individual (HALBWACHS,

1968; POLLAK, 1985) do enlutado. Um estado de sofrimento moral parece

ser criado, como resultado das inibições impostas ou acarretadas como

precaução ou como resultante de um empobrecimento de energia do ego

(FREUD, 1976, p. 111), que paralisa toda a iniciativa de decisão e ação do

sujeito em um processo de ideação pessimista.

O interesse deste trabalho, assim, é o de compreender como

habitantes de centros urbanos no Brasil expressam o sentimento de luto e

identificam mudanças e permanências nos costumes e rituais da morte e do

morrer. Percorreu-se, para a sua realização, os estreitos e difíceis caminhos

que entrecruzam a Psicanálise e as Ciências Sociais, como forma de

perceber o processo de elaboração e formação do Eu, da pessoa singular e

da interação social, fundamento da sociedade. O estudo do fenômeno do

luto, enquanto compreensão do sofrimento causado por uma perda como

instância individual e social, faz parte assim de uma Sociologia da Emoção

(SARTRE, 1972; KOURY, 1998a e SCHEFF, 1988 e 1998), que trata da

construção dos códigos intrínsecos do segredo (SIMMEL, 1986) que

fundamentam as bases da experiência da pessoa e da sociedade.

Para a sua realização, em um primeiro momento, foi realizado um

levantamento crítico de uma bibliografia referente à Sociologia, à

Antropologia, à Filosofia e à Psicanálise, priorizando na leitura o processo de

formação da pessoa enquanto ser individual e social, e dos processos de

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individuação e da formação de imaginários e segredos que fundamentam e

enraízam atitudes, valores e comportamentos. Deu-se ênfase na revisão

bibliográfica à questão dos sentimentos enquanto expressão social, e a

literatura sobre representação social da morte e do sofrimento causado por

uma perda.

Em um segundo momento, este trabalho debruçou-se em uma

pesquisa comportamental, através das colunas de regras de etiquetas

existentes em magazines dirigidos a um publico feminino, - como Cláudia,

Desfile, Elle, entre outros, baseadas em respostas a leitores, - buscando

rastear as possíveis respostas apontadas pelos colunistas referentes às

atitudes contemporâneas em relação ao luto e à morte no Brasil, bem como

a reportagens especiais em relação ao tema saídas na imprensa em geral,

além dos manuais de etiqueta produzidos a nível nacional e internacional.

Esse material foi cruzado, em alguns casos, com a literatura ficcional

brasileira que abordasse direta ou indiretamente o tema em questão, e com

a literatura das Ciências Sociais e Psicanálise em revisão.

Em um terceiro momento, a pesquisa comportamental e a revisão da

literatura foram cruzadas com a análise extraída dos dados fornecidos por

um questionário distribuído via correios, e por uma série de entrevistas

abertas sobre a morte e o luto com pessoas de classe média nas diversas

capitais de estados do Brasil, que sofreram o processo de perda nos últimos

dez anos, isto é, dos anos de 1991 a 2000.

Não é demais afirmar que o universo desta pesquisa é o Brasil urbano

atual. Embora, para entendê-lo, seja necessário realizar incursões históricas

sobre o processo de mudanças de atitudes e mentalidades em relação à

morte e ao luto no país, e no mundo ocidental do qual faz parte.

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9 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A pesquisa

Durante os anos de 1997 a 1999 foram realizadas em todas as

capitais de estados brasileiros3, aplicações de questionários com 1304

informantes, e 259 entrevistas abertas com uma segunda amostra a partir

dos 1304 respondentes, com o sentido de aprofundar as reflexões iniciadas

nos questionários.

O objetivo central foi a busca de compreensão das atitudes recentes

em relação ao fenômeno do luto no Brasil. Como objetivos específicos,

necessários para o alcance do objetivo central, procurou-se, entre outros,

atentar para: a) o entendimento de como foi internalizado enquanto processo

simbólico o significado social do sofrimento no imaginário brasileiro; e b) por

quais mudanças tem passado o fenômeno do sofrimento causado pelo luto

até os dias atuais, e que reações tem enfrentado junto aos homens comuns

das camadas médias urbanas.

Interessa a este livro verificar o lado público do sofrimento de quem

fica no momento seguinte imediato à constatação da morte. Compreender as

expressões de dor, de desespero, de desamparo, ao lado da reunião social

onde parentes e amigos presentes bebem, comem e conversam o morto. O

entendimento desse ritual solitário do sofrimento e do ritual social da

despedida se entrecruzando em gestos, expressões e atitudes, em

constantes movimentos de mudança e permanência é a base de inquietação

deste trabalho.

A hipótese de trabalho inicial foi construída a partir de um dado

comum nas pesquisas em Ciências Sociais de que quanto menor o centro

urbano mais tradicional seriam os costumes e as expressões de sentimento

3 Vinte e sete cidades ao todo, ver Quadro n. 01

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10 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

local, por seus membros se encontrarem envolvidos em relações

comunitárias intensas e presos ainda a fortes tradições familiares, religiosas

ou de cunho moral. Quanto maior o centro urbano, ao contrário, as relações

individualistas seriam ressaltadas pela população e mais dinâmicas seriam

as mudanças nos hábitos locais das comunidades e indivíduos estudados,

ligados ao trabalho de luto e as representações sobre a morte e o morrer4.

Esta hipótese inicial foi sendo modificada no decorrer da análise.

O dinamismo das relações sociais associadas aos grandes núcleos

urbanos tem por trás um modelo de cidade erguido nos finais do século XIX

e que consolidou-se durante todo o século XX. Neste modelo, o espetáculo

do anonimato pelo e através do grande conglomerado populacional

quebrava barreiras da tradição pela destruição de práticas rituais

comunitárias, libertando os indivíduos das amarras sociais e os fazendo

encarar ou enfrentar a sociedade como um desafio a ser vencido por e

através de suas próprias forças e representações.

4 As cidades pesquisadas, capitais de estados do Brasil, são profundamente desiguais

enquanto dado populacional, por exemplo. Os resultados preliminares do censo 2000, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, mostram para a década de 1990, os seguintes números de habitantes por capital de estado nacional: Rio Branco, Acre, 252.800 habitantes; Maceió, Alagoas, 796.842 habitantes; Macapá, Amapá, 282.745 habitantes; Manaus, Amazonas, 1.403.796 habitantes; Salvador, Bahia, 2.440.886 habitantes; Fortaleza, Ceará, 2.138.234 habitantes; Brasília, Distrito Federal, 1.954.442 habitantes; Vitória, Espírito Santo, habitantes; Goiânia, Goiás, 1.090.581 habitantes; São Luís, Maranhão, 867.690 habitantes; Cuiabá, Mato Grosso, 482.498 habitantes; Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 662.534 habitantes; Belo Horizonte, Minas Gerais, 2.229.697 habitantes; Belém, Pará, 1.279.861 habitantes; João Pessoa, Paraíba, 594.922 habitantes; Curitiba, Paraná, 1.586.898 habitantes; Recife, Pernambuco, 1.421.947 habitantes; Teresina, Piauí, 714.318 habitantes; Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 5.850.544 habitantes; Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 1.359.932 habitantes; Natal, Rio Grande do Norte, 709.422 habitantes; Porto Velho, Rondônia, 334.585 habitantes; Boa Vista, Roraima, 200.383 habitantes; Florianópolis, Santa Catarina, habitantes; São Paulo, São Paulo, 10.406.166 habitantes; Aracaju, Sergipe, 460.898 habitantes e Palmas, Tocantins, 136.554 habitantes. Os dados preliminares divulgados pelo IBGE apontam ainda que no final dos anos da década de 1990 houve um aumento significativo da população brasileira que vive nos perímetros urbanos, 81,2%, contra 75,6% no início da década, isto é, em 1991.

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11 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A idéia de metrópole como um espaço onde as tradições seriam

constantemente desfeitas e remontadas em novidades crescentes, e onde

existia uma tendência a uma presentificação das relações sociais que, por

sua vez, se encontravam sujeitas a uma lógica de mercado e de

individualidade extremadas permeou a representação das cidades modernas

em muitos autores que buscaram estudar e compreender a modernidade.

De Simmel e Tönnies a Weber, passando por Durkheim, Marx e a Escola de

Frankfurt, nos escritos de Benjamin e Adorno, foram aferidas nuanças sobre

este modelo de cidade onde a dissolvência do homem público cedia lugar

cada vez mais a um indivíduo interiorizado e preso a um espaço privado de

si mesmo.

A polaridade entre idéia de comunidade e de sociedade ficaria assim

como um pano de fundo comum à idéia de que pequenos grupos societários,

a comunidade, seriam um locus de tradição, ao passo que os grandes

grupos societários, a sociedade, encarnada aqui através da forma de

metrópole, seriam o local ideal para o desenvolvimento do individualismo e

do indivíduo interiorizado e privado.

Teve-se o cuidado, neste trabalho, porém, de não considerar as

referências maior e menor presentes na hipótese inicial, como dois pólos

antagônicos, mas de observá-las em relação, como frutos desiguais de

processos de modernização por que passou e vem passando a sociedade

brasileira a partir dos anos de 1970 aos dias atuais.

Qual foi a surpresa ao verificar através dos dados levantados que não

existe um processo de equivalência entre maior centro urbano e menor

número de respostas favoráveis a práticas ritualísticas ligadas ao luto e aos

processos da morte e do morrer ou presas a tradição, ou vice versa. O

conjunto de respostas enviadas pelas diversos centros urbanos brasileiros,

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capitais dos vinte e sete estados que compõem a nação, são muito próximos

nas suas indagações, inquietações ou indignações a respeito dos costume e

hábitos ligados à pratica do luto e da morte no Brasil.

O que encaminhou o trabalho para o abandono da hipótese inicial e

para um novo tipo de indagação sobre o processo em que se debate a

população urbana brasileira em seu conjunto em relação ao uso de hábitos e

costumes e suas representações ligadas ao ritual da dor e da morte. Esse

novo conjunto de indagações deixou de lado as relações entre os conceitos

de tradicional e moderno e buscou ressaltar as conformações e os modos de

vida nacional enquanto expectativas de uma população urbana sujeita aos

mesmos estímulos e práticas de ação, e as adequações locais e regionais

experimentadas e assumidas por cada capital em função de sua formação

específica enquanto cidade e enquanto origem.

Após os anos de 1970 e principalmente após os anos oitenta o Brasil

passa por uma série de transformações estruturais a nível da cultura que

torna as expectativas e o conjunto de experiências reais e imaginárias sobre

regras de comportamento e ação comuns a todo o complexo urbano da

nação. A posição frente a vida e os hábitos e costumes da população

permitem pensar em um padrão nacional, embora com coloridos e

especificidades comuns a cada região e a cada cidade específica.

As conformações urbanas, assim, se respondem aos mesmos

estímulos e freqüentam o mesmo imaginário, o remetem, por sua vez, para

as cores e padrões específicos locais. Local e nacional deste modo vivem

uma constante inter-relação e um estado de reformulação contínua que, se

de um lado enfraquece as bases da tradição enquanto elemento sentimental

de resguardar práticas específicas locais, por outro lado, refere-se cada vez

mais a práticas específicas locais para pensar o nacional e o mundo.

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13 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A modernidade deste modo parece configurar práticas e pensamentos

cada vez mais intricados, em uma rede nacional de referência comum,

porém pensados e agendados a partir de cada tecido organizacional local.

Seja como choque ou conflito inevitável com o costume e a moral

sedimentados, seja ainda como conformação de novos hábitos e práticas

impessoais da sociabilidade, emergente nos últimos trinta anos no país. Um

e outro servindo como contraponto as formas de compreensão possíveis das

configurações atuais do homem urbano brasileiro.

Este trabalho, contudo, prender-se-á mais do que nas possibilidades

de adaptação dos sentimentos e indagações comuns a cada local, nas

próprias expectativas e experiências reais e imaginárias do homem urbano

brasileiro contemporâneo, tomado como um todo. Não se deterá no colorido

local de cada cidade, a não ser quando necessário exemplificar alguma

atitude ou reação particular e específica.

O campo de análise investigado estará delimitado assim às estruturas

comuns informadas pelas respostas dos entrevistados às questões

formuladas. Anota-se aqui mais as semelhanças das inquietações que

norteiam o desvendar do homem urbano nas cidades brasileiras de hoje, do

que as formas de apreensão deste sentimento comum e as adaptações

possíveis por cada região, estado ou cidade específica.

O conjunto dos dados oferecidos à análise por um tipo de

instrumento, - o questionário, - e a sua forma de aplicação, por via indireta,

sem contato pessoal do entrevistador com o entrevistado, através de um

serviço de mala direta, possibilitou também um conjunto de indagações que

podem ampliar o leque compreensivo do alcance desse tipo de busca. Não é

o objetivo deste trabalho deter-se em uma análise minuciosa dos limites e

das oportunidades analíticas oferecidas por esta técnica de pesquisa e sua

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14 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

forma de utilização, o qual pode ser encontrado em vários estudos

específicos como os de Nogueira (1972), de Frankfort-Nachmias &

Nachimias (1992), de Neuman (1994), entre outros. Ë necessário contudo

deter-se na particularidade da amostra conseguida através do envio

espontâneo de respostas por uma população cujo controle escapava das

mãos do pesquisador.

Os 1304 questionários válidos retratam uma população urbana de

uma faixa etária de 15 a mais de 60 anos que teve uma experiência direta ou

não com o trabalho de luto, - objeto principal da pesquisa para o qual o

questionário foi aplicado. As respostas sobre os significados intrínsecos ao

processo do luto vivido ou imaginado desta forma, ampliou o leque de

informações não só para a experiência pessoal do sofrimento, mas para a

experiência imaginária da dor proporcionada pelo luto e pelo morrer. O que

conformou as bases analíticas para o pesquisador, enquanto formas

simbólicas sociais que estão além da experiência particular e privada de

alguém, mas que preenchem todo um momento ritual de significância

pessoal e grupal, movidos por um conjunto de regras e etiquetas de ação

sobre o comportar-se no momento de luto ou em relação a uma pessoa

enlutada, ou a ausência deste.

A apreensão dos significados apresentados pelo conjunto das

respostas atravessaram inquietações que estão além do ato individual em si.

Revelaram atitudes, representações e formas imaginárias que possibilitaram

um adentrar-se nas conformações estruturais que norteiam o

comportamento do homem urbano no Brasil de hoje. Os impasses, os

conceitos, os preconceitos, a ambivalência ou o conteúdo de verdades e

normas de ação comportamental com que se representam, se movimentam

e se relacionam os entrevistados.

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O elenco de possibilidades demonstradas pelas respostas permitiu,

assim, traçar um perfil do comportamento urbano brasileiro, nos limites

objetivos de um questionário padrão. Como se sabe, o problema do uso de

questionário como instrumento de pesquisa e análise é o seu caráter

eminentemente fechado de respostas o que, se por um lado permite a

elaboração de um inventário de possíveis ações e reações em relação a

hábitos e costumes, por outro lado, não aprofunda verticalmente as questões

emitidas.

Para um melhor uso das questões presentes, foram configurados

códigos facilitadores para a análise a partir das respostas emitidas para cada

questão, e realizados os trabalhos de tabulação dos 1304 questionários.

Trabalhou-se, assim, com um conjunto questões organizado em torno de um

núcleo comum: as representações sobre o luto e sobre a morte e o morrer.

Os dados às questões emitidas pelo questionário, transformadas em

códigos analíticos, por sua vez, serviram em um segundo momento para a

construção de um roteiro aberto de entrevistas com uma parte selecionada

dos informantes que se permitiram responder ao questionário. Foram

realizadas 259 entrevistas abertas com indivíduos dos vinte e sete centros

urbanos pesquisados.

Selecionados a partir dos questionários respondidos, foram

posteriormente contatados pelo pesquisador através de carta postal ou

telefone e agendadas entrevistas a serem realizadas em datas posteriores

previamente marcadas. Para cada cidade o pesquisador passou três a cinco

dias envolvido com o elenco de entrevistados que se dispuseram a falar de

sua experiência de sofrimento pela vivência de um luto de um ente querido.

Em muitos casos, outros indivíduos que não haviam respondido o

questionário mais que foram indicados pelos informantes entrevistados

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Ser Discreto

16 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

foram contatados ou procuraram o pesquisador para relatarem o seu

processo de luto.

Um diário de campo foi elaborado constando da experiência do

pesquisador em cada entrevista e em cada cidade pesquisada.

Convém salientar a dificuldade de um trabalho desse tipo por envolver

questões delicadas naqueles que se permitiram dispor como informantes à

pesquisa. Tanto assim que as entrevistas, aplicadas sobre uma amostragem

dos questionários, foram realizadas apenas pelo pesquisador principal. A

diferença dos questionários respondidos diretamente pelos informantes.

Nos questionários buscou-se, principalmente, um discurso mais

abrangente do informante a respeito do processo de morte e do morrer e dos

processos de luto. Por discurso mais abrangente se está entendendo, aqui,

como aquele enquadrado em respostas mais conceituais sobre a realidade

do luto e da morte, e dos rituais e cerimonias que os envolvem. Apesar de

situar o sofrimento como elemento norteador do roteiro, o questionário

esteve mais preocupado em delimitar as fronteiras do imaginário sobre os

significados simbólicos e ritualísticos desse sofrimento, que aparece, mesmo

que se trate de uma vivência pessoal, ou como o sofrimento experimentado

por um outro abstrato, tornando possível falar sobre ele sem necessidade de

uma verticalização na vivência própria desse processo do informante.

Mesmo assim, muitas dificuldades foram encontradas pela

nebulosidade das fronteiras entre o falar hipotético sobre a morte, o morrer e

o luto, e o falar da vivência desses significados a cada informante.

As entrevistas, por sua vez, buscaram aprofundar o sentido expresso

no sofrimento pessoal de quem viveu um processo de perda. Uma viagem

discursiva de difícil realização por tocar em sentimentos, em muitos casos,

colocados sob o signo de esquecimento ou sob a forma de silêncio do

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Ser Discreto

17 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

informante para si próprio. Se dispor a falar com um desconhecido sobre

uma vivência significativa de dor causada pelo sofrimento pessoal de perdas

de entes queridos, e tocar em assuntos esquecidos ou silenciados, não foi

um processo de fácil realização para os informantes.

Ofereceram-se ao entrevistador com uma confiabilidade conflitante,

colocando o entrevistador em cheque durante todo o processo de entrevista,

seja através da teatralização de seu discurso, seja através da minimização

de sua experiência. O entrevistador mesmo, a cada momento, pôs em

cheque a si mesmo, na medida em que o sofrimento do outro o invadiu como

silêncios que entravam em conflito com os processos pessoais de sua

sensibilidade ao ato geral da dor e à reflexão específica do sofrimento de um

outro presente que se dispôs como informante.

A cumplicidade distanciada e conquistada a cada entrevista requereu

do entrevistador um adestramento temático e uma postura confessional que

permitisse ao informante sentir-se confiante sobre o que falava, e da

significância de sua narrativa, independentemente da forma, do modo, da

intencionalidade e da tensionalidade discursiva expressa. De difícil

realização5, as entrevistas não poderiam ser realizadas por outro membro da

equipe que o pesquisador principal.

5 Um exemplo anedótico é dado aqui, para demonstrar a dificuldade do lidar com o processo

de sofrimento na realização de um trabalho de luto, como objeto de pesquisa. Uma amiga pessoal do pesquisador, antropóloga, logo no início desta pesquisa predispôs-se a responder algumas questões sobre um processo de luto por ela vivido pela morte do seu irmão durante a ditadura militar. Passado algum tempo, acontece um encontro com o seu marido em um dos congressos nacionais das Ciências Sociais e, neste encontro, o pesquisador é informado da morte da mãe de sua colega, e do seu abatimento e sofrimento pessoal. Neste mesmo dia, no mesmo congresso, vê a amiga, se direciona para ela e dá as condolências de cortesia, pela morte de sua genitora. Ela o olha, e rispidamente diz: "Qual é, Mauro, você já está querendo fazer uma entrevista sobre o meu luto? ... ". A situação é de um enorme constrangimento, embora compreendendo a situação, foi repetido os votos de afeto e do respeito pela sua dor, e um hiato de incomunicabilidade parece ter sido criado. Os papeis de pesquisador e de amigo ao serem confundidos, levou a uma espécie de mal

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Ser Discreto

18 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

As entrevistas realizadas tiveram uma duração média de quatro horas

e meia, algumas durando quase oito horas sem intervalo. Muitas com difícil

começo, com uma dificuldade imensa de se estabelecer as bases de

confiabilidade necessária para o início do depoimento, outras de quase

impossível finalização. Em momentos específicos a intimidade formada e

estabelecida criava armadilhas ou ardis, os limites de cada narrativa sendo

ultrapassados pela disponibilização de um ouvir atento do outro (o

entrevistador), e pelo esforço de se adentrar nesse mundo fragmentado de

silêncios e esquecimentos que, em muitos casos se pronunciavam pela

primeira vez, até para os próprios informantes.

Questionário e entrevistas permitiram assim, a construção de um

mapa do sentimento brasileiro sobre o luto e o morrer, bem como

possibilitaram a elaboração de um roteiro compreensivo para uma análise

sobre a relação luto e sociedade no Brasil contemporâneo.

Caracterização dos entrevistados

Para uma melhor compreensão sobre a questão do luto, da morte e

do morrer aqui trabalhados, foi necessário a realização de um levantamento

dos dados que permitissem uma caracterização social e econômica do

universo da pesquisa. Os dados de caracterização trabalhados foram os

referentes ao sexo, idade, estado civil, escolaridade, profissão, renda e

religião presentes na amostra pesquisada.

Os questionários recebidos e considerados válidos obtiveram uma

equivalência relativa ao número total de questionários enviados para cada

estar momentâneo da relação, quase formal, de condolência pública pelo luto de alguém amigo.

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Ser Discreto

19 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

cidade, de acordo com o número de habitantes. O que proporcionou, deste

modo, um equilíbrio na análise das relações entre as cidades pesquisadas6,

onde se encontra retratado o total de respostas de cada cidade e o

percentual da amostra em relação ao número total de questionários válidos.

A amostra indicou um percentual de respostas de 60,97% de

indivíduos do sexo feminino, contra 39,03% do sexo masculino7. Este

conjunto distribuiu-se em quatro faixas etárias: de 15 a 25 anos, 14,50%; de

26 a 39 anos, 31,37%; de 40 a 59 anos, 35,73% e de 60 anos e mais, com

18,40% do total dos entrevistados. Ao se unir as duas faixas etárias

intermediárias8, pode-se afirmar que houve uma concentração acentuada de

respostas oriundas de indivíduos situados nas faixas etárias de 26 a 59

anos, o que satisfez um total de 67,10% dos entrevistados.

O universo pesquisado também se caracterizou por um percentual de

50% de indivíduos casados, 8,59% de divorciados ou desquitados e 12,35%

de viúvos, contra 29,06% de solteiros9.

No que diz respeito a religião, contudo, 92,49% dos entrevistados

responderam freqüentar alguma Igreja, contra apenas 7.51% que afirmaram

não ter qualquer tipo de religião.10 Aos que responderam possuir algum tipo

de religiosidade, a grande concentração de respostas recaiu sobre o

freqüentar a religião católica, 68,63%, contra 14,42% de religiões

protestantes e evangélicas (Batista, Assembléia de Deus, Igreja Universal do

Reino de Deus, Renascer, entre outras), e 9,44% de outras religiões

(Budista, Espírita, Umbanda e Candomblé, entre outras)11.

6 Conforme pode ser visto no Quadro N. 1, anexo. 7 O que pode ser visto no Quadro N. 2, anexo.

8 Como se pode verificar em uma rápida olhada no Quadro N. 3, anexo.

9 Conforme pode ser visto no Quadro N. 4, anexo.

10 Conforme pode ser visto no Quadro N. 5, anexo.

11 Conforme pode ser verificado no Quadro N. 6.

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Ser Discreto

20 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Embora esperado, não deixa de ser interessante o fato do maior

número de respostas do universo pesquisado recair entre os que freqüentam

a Igreja Católica. Interessante não apenas pelo fato de ser tradicionalmente

a mais significativa em termos de adeptos na história do Brasil, mas também

por se configurar em um tipo de religião que, por muito tempo, figurou como

a religião obrigatória no país e ainda detém vínculos quase oficiais e em

muitos casos exclusivos com o Estado nacional, como foi o caso da recente

obrigatoriedade do ensino católico nas escolas públicas brasileiras

decretada, no ano 2000, pelo atual governo de Fernando Henrique Cardoso.

Outro elemento que ampliou o interesse do pesquisador para o fato

mencionado foi o fato de o catolicismo ser a Igreja que detém os laços mais

frouxos em relação aos fiéis e aos costumes e rituais ligados ao exercício

social cotidiano. Apesar, é claro, de a mesma ter sofrido modificações de

suas atitudes, a partir da metade da década de 1990, com a emergência e

prática do segmento carismático no seu interior, como uma tendência que

busca recuperar os fiéis através de um retorno ao sagrado e pelo fanatismo

religioso associado a um processo de mercantilização midiático.

Diferente de outras religiões, como o conjunto aqui denominado de

religiões evangélicas, que primam por um rigoroso controle na vida dos seus

fiéis, e uma grande dissociação entre práticas religiosas e práticas cotidianas

da vida comum. Parecendo impor a estas últimas uma submissão as

primeiras, consideradas como principais e como norteadoras moral dos seus

fiéis.

Classe Média

Uma população com renda entre 06 até 20 salários mínimos, e com

uma educação formal situada entre o segundo grau completo e superior,

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21 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

apresentou-se ao trabalho, com um total de 62,87% dos indivíduos que

responderam e devolveram os questionários considerados válidos para a

pesquisa, bem como da amostra posterior para o aprofundamento em

entrevistas abertas. Em sua maior parte constituída por profissionais liberais,

comerciantes, empresários e militares, sem esquecer, contudo, uma grande

participação de aposentados, donas de casa e estudantes. O número maior

de respostas, que retratam o nível de renda, de escolaridade e o perfil das

profissões dos informantes, assim, vieram de entrevistados situados no que

se convencionou aqui chamar de classe média urbana12.

A configuração de um problema sobre a não similitude da distribuição

dos entrevistados segundo as faixas de renda e a escolaridade a partir dos

padrões existentes na sociedade brasileira, contudo, revelou-se para este

trabalho em um elemento importante de análise. A motivação da classe

média em responder a esse tipo de questionário tornou-se um dado

interessante por, aparentemente, ser entre esse segmento que se

configuram uma maior sensibilidade ao novo e a uma ambigüidade em

relação aos padrões de tradição a que potencialmente estão inseridos

enquanto habitantes de cidades específicas.

Gilberto Velho (1986, pp. 86 e 89) trabalhando com segmentos de

classe média da cidade do Rio de Janeiro revelou os desencontros dos

indivíduos que a informam diante do domínio público e uma tendência à

centralização em torno de um conjunto de valores em que a sociabilidade de

caráter mais intimista é o valor chave de compreensão. A tensão entre os

espaços público e privado parecem nortear assim a avaliação do ser sujeito

no mundo, através de uma fragmentação acelerada das esferas de vida

social e cultural em que estão inseridos.

12

Conforme pode ser verificado através dos Quadros N. 7, N. 8 e N. 9, anexos.

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Ser Discreto

22 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A classe média desta forma, ao se colocar prontamente para as

respostas solicitadas em um questionário sobre a relação luto e sociedade,

mais do que as outras de status social mais baixo e mais alto, parecem

manifestar a sua inquietação com os processos por que passa a sociedade

nacional nestes últimos trinta anos. Processos que a atinge, a tenciona e a

coloca em choque com as regras de etiqueta que parecem não mais

satisfazer as práticas cotidianas, mas que ainda se encontram consolidadas

no imaginário social e na expectativa de cada um, individualmente, enquanto

conjunto padrão de atitudes morais.

Se entende aqui por etiquetas, um conjunto de regras repassadas a

um indivíduo ou grupos de indivíduos, por meio do aprendizado sobre como

comportar-se e sobre qual o verdadeiro lugar de cada pessoa no intercurso

social diário. Este conjunto de regras culturais define em última instância as

necessidades sociais aceitas e as inaceitáveis e, de algum modo, o que o

indivíduo pode ou deve fazer a cada momento ou em cada relação dada.

A diferenciação das esferas da vida social cotidiana (SIMMEL,

1986a), ao inserir novos elementos que provocam a emergência de atitudes

mais individualizantes nas relações sociais, contra atitudes mais

comunitárias e tradicionais, parecem ter gerado na classe média,

principalmente, mais do que nos demais segmentos sócio econômicos, um

desconforto processual e uma ambivalência de sentimentos e significados

relacionados com as formas de viver em sociedade. Em especial àqueles

ligados aos ritos de passagem traumática, como os que se configuram com

os rituais da morte e do morrer e os rituais do sofrimento.

O que pode significar um tipo de necessidade de exposição das

trajetórias pessoais e dos desencontros sociais em um assunto considerado

tabu. Pode ter o significado também da angústia de não ter respostas

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23 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

adequadas sociais à questões que são tratadas freqüentemente como

individuais e subjetivas, e portando como não fazendo parte do dia a dia dos

sujeitos em relação na sociedade mais ampla. Pode ter o sentido, ainda, da

solidão que parece mascarar o cotidiano de quem sofreu a experiência do

processo doloroso da perda de entes queridos. Qualquer dos caminhos

sugeridos é possível de configurar como um indicador, entre outros, dos

impasses porque vem passando a sociedade brasileira urbana nos últimos

trinta anos.

É sobre estas camadas médias urbanas, prioritariamente, assim, que

este livro irá se debruçar, na sua busca de compreensão dos processos e

mudanças comportamentais por que passou e continua a passar a

sociedade brasileira, neste início de século. Tendo por base analítica o ritual

do sofrimento de um indivíduo que sofreu a perda de um ente querido, ou as

representações sociais sobre os significados do processo de luto.

Este livro é composto por cinco capítulos. O primeiro, intitulado A

Constituição de uma Nova Sensibilidade, como o título já indica, indaga a

conformação atual do homem comum, urbano, de classe média, no Brasil,

através da compreensão de um conjunto complexo de práticas, usos e

costumes sociais que intermediam e orientam o agir individual de quem sofre

uma perda. Entende a construção social do sofrimento através da teia de

ilusões e expectativas que conformam o sujeito individual e social, e de

como a sociedade cria e estabelece os processos integrativos necessários à

sobrevivência do social a partir dos indivíduos.

O segundo capítulo, possui o título de A Morte e o Morrer. Discute as

noções de morte e do morrer e as modificações por que vem passando a

sociedade brasileira nos últimos trinta anos finais do século XX. Para tal, faz

uma remontagem histórica sobre as atitudes perante a morte e o morrer na

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Europa e no Brasil, para compreender como os indivíduos entrevistados se

colocam em relação aos dois processos no Brasil atual. Como encaram o

sentimento de luto, e que modificações eles apontam para a história recente

dos costumes funerários na cultura brasileira.

O terceiro capítulo, por sua vez, discute A Perda e O Sofrimento

enquanto categorias analíticas expressas pelos informantes. Nele se procura

entender como os brasileiros urbanos, de classe média, estão vendo as

mudanças e inquietações na vivência de uma pessoa que sofreu uma perda,

ou dos outros relacionais. Discuti-se, no decorrer do capítulo, o processo de

ação social e a construção de significados e tentativas de nomeação, reais,

imaginárias e relacionais sobre a perda, o luto e o sofrimento, a partir dos

depoimentos de informantes.

O quarto capítulo chama-se Viver o Luto. Nele, se compreende como

os informantes vêem, sentem e exprimem a vivência do luto, e as

dificuldades e facilidades das relações sociais advindas da experiência deste

processo, no Brasil urbano do anos de 1970, principalmente, até a entrada

do século XXI. O quinto capítulo, por fim, intitulado de Tempos do Luto,

compreende como os informantes entendem o processo de luto, através de

uma comparação com os aspectos sociais e pessoais, vividos ou por eles

imaginados, do passado recente e do presente brasileiro.

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25 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Capítulo 1

A Constituição de uma Nova

Sensibilidade

"Não digam que isso passa, não digam que a vida continua, que o tempo ajuda, que afinal tenho filhos e amigos e um trabalho a fazer. (...) Não digam nada (...) Da minha vida sei eu". Lya Luft (1991)

Este capítulo procura responder a questão de como é sentido o luto

na sociedade brasileira urbana atual. Faz um contraponto entre o imaginário

do homem comum e as mudanças sociais ocorridas em relação ao trato da

morte e o sofrimento por uma perda no Brasil. Busca compreender as

relações entre luto e sociedade. O ritual do sofrimento é o ponto central da

reflexão.

O conjunto complexo de práticas, usos e costumes sociais que

intermediam e orientam o agir individual de quem sofre uma perda, é a

definição aqui utilizada para o termo ritual do sofrimento. A construção social

da dor e do sofrimento passa, deste modo, pelo emaranhado de ilusões e

expectativas formadoras do sujeito, e pelo como a sociedade cria e

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26 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

estabelece os processos integrativos necessários à sobrevivência do social

a partir dos indivíduos13.

Interessa compreender, neste trabalho, como os indivíduos interagem

no social, seja como pessoas singulares ou como grupos, e como exercitam

no cotidiano a tensão entre o ser e estar socialmente definidos. Por ser, se

entende, aqui, o conjunto de representações afirmativas do eu enquanto

pessoa única e ao mesmo tempo integrante de um conjunto moral e, por

estar, o conjunto de regras e valores integrativos definidores da posição do

indivíduo na sociedade e da margem de suas expectativas no social.

Este capítulo, enfim, discutirá a questão de como é visto e sentido o

fenômeno do luto, através da criação de interseções entre o imaginário

individual e social, e as mudanças sociais e comportamentais vivenciadas no

trato da morte e do morrer no Brasil. Para tal, se valerá da análise de

expressões emitidas por regras de etiquetas desenvolvidas por colunistas

sociais em revistas nacionais dirigidas para um público com perfil de classe

média urbana, bem como das narrativas de informantes entrevistados e

dados do questionário padrão. Além de passar em revista conceitos

psicanalíticos aqui tratados e comentados à luz das Ciências Sociais.

Na coluna “Modos e Maneiras” de um magazine feminino (Claudia,

Maio 1994, p. 10), uma leitora descreve sua mágoa com a escassez de atos

de solidariedade recebidos. “De uma amiga ouvi, espantada, que ‘luto não

se usa mais’. Será verdade?”, e inquieta indaga: “O que se deve fazer

quando uma pessoa próxima de um amigo falece?”

A redatora da seção busca explicar a falta de solidariedade pela

sobrecarga de atividades e correria da vida atual, embora indique como

13

Ver, entre outros, para uma discussão metodológica sobre a dor e o sofrimento social: Burkitt, (1997); Koury, (1999); Mauss, (1974 e 1980) e Ricoeur, (1994).

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27 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

correto uma manifestação discreta quando um amigo perde um ente querido.

O que pode ser na forma de uma rápida visita, um cartão, ou com a

presença no enterro ou na missa de sétimo dia.

A mágoa e a inquietação expressa pela leitora quanto a falta de

solidariedade ao sofrimento de quem sofre uma perda, e a resposta da

redação, mostram uma das possíveis formas atuais da vivência do luto no

Brasil. A recusa ou a expressão discreta de condolências a quem sofre uma

perda e o ritual solitário da dor causada pelo sofrimento em quem vivência

um processo de luto.

O isolamento do sofrimento individual tende a se fazer, assim, em um

movimento solitário e nostálgico de individuação. Processo onde se

mesclam a perda de sentido do mundo e o sentimento de exclusão social,

através do refreamento das ações de partilha do sofrimento alheio e o

mascaramento do morrer em quem fica.

A morte e sua relação com o mundo dos vivos parece ter sido

capturada por códigos outros que não os de uma sociedade relacional

estudada por Roberto DaMatta (1987) no início dos anos oitenta. O

distanciamento em relação ao morto e aos que o perdem parece ser a

característica principal da nova sensibilidade que começa a tomar forma,

cada vez mais nítida, na sociedade brasileira urbana14 dos últimos trinta

anos. A manifestação pública do sofrimento individual tende a tornar-se mais

e mais estranha ao cotidiano do homem comum, principalmente de classe

média, embora este conviva ainda com a indignação por esse

estranhamento.

O estranhamento da demonstração da dor e do sofrimento em público

parece vir se consolidando como tendência de universalização de uma nova

14

Que responde por mais de 80% da população brasileira, segundo dados do IBGE (2000).

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28 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

sensibilidade no trato das emoções, particularmente do luto, no Brasil atual.

Os segmentos médios mais intelectualizados parecem ser os que mais

vivenciam tal tendência que, de certa forma, permeia a totalidade do social,

causando indignação, temor e ambivalência no comportamento brasileiro

médio. Embora práticas relacionais desindividualizantes continuem a existir

e sejam fortes ainda em diversos segmentos e instituições sociais

brasileiras15.

As respostas a pergunta sobre qual deve ser o comportamento de

uma pessoa em trabalho de luto, solicitada no questionário aos informantes,

indicam este sentimento de distanciamento público de expressões de

emoções, especificamente, aqui, em relação ao sofrimento vivido durante o

processo de luto, experimentado pela sociedade brasileira urbana atual. A

discrição foi indicada por 77,60% dos informantes, como o comportamento

ideal de um sujeito enlutado16. O ser discreto no trato de sua dor, no lidar

com o seu sofrimento, em público, é a tônica dominante de um discurso

expresso pelos informantes, que parece revelar a expressão de emoções

através do luto como uma espécie de vergonha. A expressão do sofrimento

parece anunciar ou denunciar a idéia de fracasso e de medo de ser visto

pelos outros através desta idéia.

Para 15,34% dos informantes, porém, o comportamento do enlutado

deve ser o de encontrar apoio na tradição que trata da questão do luto nos

diversos grupamentos e instituições sociais do que fazem parte. Para estes,

a tradição parece assegurar uma forma de assentamento social que

assevera o apoio a um sujeito especifico em uma crise vivida. O que permite

15

Sobre usos e costumes no trato da morte no Brasil ver, além do trabalho já citado de DaMatta, a coletânea organizada por Martins (1983), os estudos de Poliello, Pessoa e Pompa (1987), Rodrigues (1983) e Carneiro da Cunha (1978), entre outros. 16

De acordo com o Quadro N. 10, anexo.

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Ser Discreto

29 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

o desenvolvimento de mecanismos de legitimação e sustentação do

indivíduo em compasso de sofrimento na sociedade.

A não existência de um comportamento ideal para uma pessoa que

esteja vivendo uma situação de luto, porém, é informada, por sua vez, por

7.06% dos informantes. O comportamento do enlutado, assim, depende do

caso. Depende da proximidade da pessoa com o ente querido morto.

Depende, por exemplo, das relações afetivas, morais e ideológicas para com

ele, entre outros possíveis entornos que permeiam o sentimento e a forma

de expressão de um sujeito em uma experiência de luto.

Ser discreto, deste modo, não significa que o indivíduo não esteja

envolvido em seu sofrimento, que não viva a dor da perda do ente querido,

mas que este sofrimento é pessoal, e diz respeito apenas àquele que o

sofre. O sofrimento não interessando a ninguém mais do que a este alguém

personalizado que a vivencia.

A distância entre o sofrimento pessoal e o comportamento deste ser

em dor no espaço público é ressaltada na informação dos quase oitenta por

cento dos informantes sobre o comportamento discreto do enlutado, como

uma forma de se salvaguardar socialmente e livrar-se de afirmações sociais

que parecem ter o poder de possibilitar denegrir sua imagem pública.

A exposição pública do sofrimento se vê mesclada, assim, por uma

condenação velada do sofrer em público. A ambivalência predomina. No

conjunto das relações pessoais a tendência é de uma reprovação tácita ao

luto expresso publicamente, como se a dor causada pelo sofrimento pessoal

de uma perda contaminasse os outros com a presença da morte17.

17

Embora não seja objeto de análise neste ensaio, o luto social por figuras públicas no Brasil, como artistas, ídolos esportivos, políticos de expressão, parece ser diferente, merecendo estudo mais demorado. A dor pública parece, nesses momentos, agir como catarse da desilusão social e com o socialmente vivido enquanto regras e ações públicas.

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Ser Discreto

30 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Quem sofre uma perda parece vivenciar uma situação ambivalente

de, ao mesmo tempo, se indignar por não ter a solidariedade esperada e por

se encontrar só em seu sofrimento, e de impor a si mesmo uma censura,

recolhendo a sua dor para dentro de si e internalizando o seu sofrimento,

tendo vergonha do seu estado. O trabalho de luto passa a ser, desta forma,

muito mais lento, podendo levar à anomia e à condenação pessoal. A idéia

de fracasso e de desilusão com o mundo e com os outros tende, assim, a

sobressair com mais nitidez.

O luto como expressão social é encoberto por uma espessa malha

que, ao mesmo tempo que obscurece pelo estranhamento do outro e de si

próprio, possibilita delimitar os contornos de sua atuação como subjetividade

e o expulsa para dentro da pessoa. A solidão, o isolamento ministram o

compasso dessa interiorização.

O sofrimento, o processo de introjeção do morto em si, que compõe o

trabalho de luto, nostalgicamente processa este ritual de interiorização.

Situado como subjetividade, como império da memória pessoal do enlutado,

o sentimento da perda vem sendo encoberto socialmente pela vergonha da

exposição pública. Como intimidade que, ao mesmo tempo que recusa,

busca e sente falta da expressão social da solidariedade.

Norbert Elias, em seu estudo sobre O Processo Civilizador (1990 e

1993) discute o papel da emoção vergonha na conformação da sociabilidade

moderna e contemporânea européia. Afirma que a repressão à emoção foi

um elemento chave na constituição da civilização moderna. Desde o final do

século XVIII, e a partir do século XIX, principalmente, a base social do

decoro e da decência começou a ficar indizível, não nomeada, tornando-se

Lembrar, por exemplo, o luto público recente por figuras como Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Elis Regina, Ayrton Senna, Tom Jobim e Mário Covas.

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Ser Discreto

31 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

"... 'privada' e 'secreta' (isto é, reprimindo-a no indivíduo), enquanto fomenta

emoções negativamente carregadas – desagrado, repugnância, nojo – como

os únicos sentimentos aceitáveis em sociedade" (Elias, 1990, p. 147).

Para ele, as bases da sociabilidade da civilização moderna avançou

através de "uma conspiração do silêncio" (p. 151). Com isso ele quer afirmar

que as bases da formação de emoções, como a da vergonha e do asco, por

exemplo, são ao mesmo tempo produtos de processos sociais e históricos.

"Estas formas de emoção são manifestações da natureza humana em

condições sociais específicas e reagem, por sua vez, sobre o processo

sócio-histórico como um dos seus elementos" (p. 162).

Fala, deste modo, de uma "economia emocional" (p. 185) que

circunscreve as expressões intensas de sentimento no interior da pessoa,

através de uma exigência particularmente rigorosa de auto controle. Embora

não siga em linha reta e recheada de ambigüidades, a modernidade confina

na pessoa suas emoções, banindo-as do social "para o reino do segredo" (p.

185). Este processo de confinamento é realizado através da imposição no

indivíduo, desde a mais tenra idade, do aumento de uma postura reservada

perante as emoções, isto é, de uma definição da pessoa através da

exigência de um caráter discreto e do auto controle.

Sentimentos mistos, socialmente gerados, de vergonha e

repugnância, entram em luta no interior dos indivíduos através de proibições

apoiadas em sanções sociais (p. 189), e reproduzem-se como formas de

auto controle. Diferente da idade média, onde a emotividade mais forte do

comportamento era até certo ponto socialmente necessária, e constituía-se

como parte integral da vida social, na modernidade, a economia emocional

se faz através da exclusão. Para Elias (1990, p. 200) "é altamente

característico do homem civilizado que seja proibido por auto controle

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32 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

socialmente inculcado de, espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama

ou odeia. Toda modelação dos seus gestos – pouco importando como o

padrão possa diferir entre as nações ocidentais no tocante a detalhes – é

decisivamente influenciada por essa necessidade".

Deste modo, todos os que saírem dos limites do padrão social são,

possivelmente, considerados "anormais" (p. 201). O que quer dizer que

manifestações socialmente indesejáveis passam a ser "ameaçadas e

punidas com medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade", e

passam a lutar com os desejos ocultos da e na pessoa. Para ele, os "auto

controles civilizadores", funcionando em parte automaticamente nos

indivíduos, através do processo de socialização, "são experimentados na

autopercepção individual como uma parede, quer entre o 'sujeito' e o 'objeto',

quer entre o seu próprio 'eu' e as demais pessoas (sociedade)" (p. 246).

Encapsulado os impulsos emocionais, estes se tornam ocultos de todos os

demais, "e, não raro, (visto) como o verdadeiro ser, o núcleo da

individualidade" (p. 247) na modernidade.

Daí a dificuldade da compreensão do sentimento vergonha, muitas

vezes confundido com o de culpabilidade, nas análises recentes do processo

civilizatório das nações ocidentais. Para Helen Lynd (1961) uma distinção

entre culpabilidade e vergonha tem que ser realizada. Nota que a

culpabilidade envolve atos específicos, realizados ou não, e é sentida,

usualmente, como específica e se encontra perto da superfície, isto é,

permanece próxima ao que uma pessoa fez. É uma emoção individualista,

reafirmada na e, ao mesmo tempo, reafirmando a pessoa como núcleo

independente, isolada em sua centralidade. A vergonha, por sua vez, se

interpõe sobre o que a pessoa é. Portanto, sendo uma emoção social que

reafirma a interdependência emocional das pessoas.

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33 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Na confusão do sentimento de vergonha, no interior da pessoa, o auto

controle é visto, muitas vezes, e assumido como culpa. O que provoca um

maior isolamento da pessoa em seu íntimo, aumentando a sua dificuldade

de expressão. A verbalização de sentimentos se torna, assim, interdita a não

ser como medida reparatória de um mal estar permanentemente renovado

em sua relação com os outros e consigo mesmo. O que parece só fazer

aumentar o sentimento de vergonha e inadequação muda, porque não

compreendido, anônimo e indizível.

Para Harkot-de-la-Taille (1999, p. 26 e 27), em sua tese de doutorado

que trata do tema da vergonha, o sujeito envergonhado vive duas formas

diferentes e simultâneas do sentimento de vergonha: como sentimento

penoso de desonra e de inferioridade frente a um outro ou a própria

consciência, e como uma disposição de espírito. Esta segunda, é sentida

como um receio de exposição e de ser objeto de juízo de um outro. De

tornar-se vulnerável, portanto, a ingerência deste outro por conta da

possibilidade de uma circunstância específica que está ou que se considera

sujeito ou que vivencia.

É neste intercruzamento passional de inferioridade e exposição, deste

modo, que o sentimento de vergonha se estabelece em um indivíduo social

específico. Neste intercruzar-se, o valor pessoal do sujeito envergonhado,

"antes relacionado com sua imagem virtual e sua imagem projetada,

confundem-se. Com a desintegração de sua imagem virtual, o sujeito vive

uma crise fiduciária que pode ter como conseqüência o desmoronamento de

todo um universo de crenças pessoais: (já que o sujeito) é, na esfera

pública, o que sua imagem projetada o faz parecer. O universo simbólico em

que (o sujeito envergonhado) se reconhece enquanto sujeito pode ruir"

(HARKOT-DE-LA-TAILLE, 1999, p. 29).

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34 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A emoção do enlutado, o sofrimento resultante do trabalho de luto,

assim, parece estabelecer-se para o indivíduo que a experiencia como um

sentimento envergonhado e, como tal, a atitude de discrição enquanto

comportamento público deve ser buscado. A emoção é, assim, mascarada

publicamente em indiferença e parece dar lugar a uma reciprocidade

fragmentada, quase mercantil, onde a pessoa se move em planos

desconexos que impossibilitam a manifestação social dos sentimentos e

desencadeiam o medo social da contaminação.

Uma outra questão presente no questionário inquiria a opinião dos

informantes sobre qual deve ser o comportamento de um indivíduo social

qualquer, que mantenha vínculos de amizade, de trabalho ou outro com uma

pessoa em processo de luto.

Para 72.01% dos informantes18, a atitude dos outros em relação a

uma pessoa em trabalho de luto deve ser a de não importunar, contra

18.71%, que responderam que as atitudes devem ser de dar apoio. A

intermediação, porém, foi a preferência de 9,28%, respondendo que a

atitude para com uma pessoa enlutada dependeria de cada caso.

Dependeria, deste modo, seja do estado emocional em que se encontrasse

a pessoa, seja do grau de proximidade com o enlutado ou com o ente morto,

ou outra situação específica e especial qualquer.

A atitude esperada, porém, é a de discrição. O agir discreto dos mais

íntimos à perda daquele que sofreu o luto. Deve ser discreto, também, o

comportamento do enlutado nos diversos trâmites socialmente valorizados

de despacho do corpo e da expressão de sofrimento público no processo de

despedida (velório, enterro, missa de sétimo dia, etc.).

18

Segundo o Quadro N. 11, anexo.

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35 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O período de nojo, como são chamados os primeiros sete dias após

a morte do ente querido, ainda é socialmente tolerado. Embora, cada vez

menos, deva ser de completo recolhimento público. Em todo caso, o

comportamento social, ou as expectativas perante o enlutado são ambíguas:

uma atitude de aparente indiferença ou a falta do resguardo ainda

costumem chocar.

Esta ambivalência de valores e atitudes parecem ser indicados nos

depoimentos que se passa agora a relatar, recolhidos pelo autor de

indivíduos que vivenciaram processos de luto. Narrativas diferentes que

retratam o sentimento de opressão vividos na expressão de seu sofrimento,

seja pela indiferença ao que se esperava socialmente como expressão de

sentimento, seja pelo fingimento do não sofrer para poder sobreviver ao

controle afetivo dos outros: familiares, amigos e agentes institucionais.

A primeira narrativa é de uma senhora de classe média alta de Belém

do Pará, que relata sua experiência de luto vivida pela perda do marido,

morto em um desastre automobilístico. O trecho apresentado retrata a

narração do momento do velório e o sentimento da entrevistada. Relato que

vagueia entre o sofrer incomensurável pela morte do ente amado e a

expressão social por ela imaginada frente a sua postura em relação aos

trâmites processuais do despacho do morto, do qual o velório fazia parte, e

como essa postura era entendida pelos outros, familiares, amigos e

próximos presentes.

Narra a entrevistada que, desde o momento que liberou o corpo para

o público, para o velório, "Não me aproximei do caixão desde então.

"Briguei com a metade da família que queria o velório num desses

cantos destinados a isso, desde que o corpo deixou o hospital. Não. Minha

casa, a casa dele, dos filhos nossos, era lá que deveria ser. Falaram do

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36 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

sofrimento que seria depois. Que sofrimento poderia ser maior do que

aquele rasgão, do que aquele rombo, do que aquele caminhão que passava,

que estava passando na minha vida. Lá era meu. Lá de casa sairia. E assim

foi.

"O velório foi simples. Muita gente, fodam-se todos, pensei... Fiquei

parada a alguns metros do caixão. Na porta do meu quarto. No umbral da

porta de onde podia olhar aquele corpo querido, o corpo do meu amado

secando, arroxeando. As flores enjoavam, as velas enjoavam. eu só olhava,

não pensava, chegava um, chegava outro, me abraçavam, diziam: "a vida

continua", "é assim mesmo", eu esboçava um sorriso e não dizia nada.

Mulher insensível, acho que pensaram, fodam-se.... . Mas eu era naquele

momento, eu estava insensível. Eu não acreditava apesar de não desgrudar

da porta do meu quarto onde me voltava e via a cama, e me voltava para

frente e via o caixão e o meu amado que não era mais nada que não aquele

pedaço de carne sem vida, murchando, cheio de flores que enjoavam.

"Com um terço na mão. Imagine. Um terço na mão que a mãe dele

fez questão de por. Acho que foi o terçinho de sua primeira comunhão, sei

lá... ela achou importante. Foi importante para ela, deixei. Ele que nem mais

sabia o que era isso. Mas, o corpo depois de liberado por mim não era mais

meu. Deixou de ser meu. A sensação era que era de domínio dos outros. Os

choros circunstanciais da mãe dele, de alguns parentes, de alguns amigos,

os olhares curiosos de muitos, a conversa à toa para passar o tempo, o riso

de alguns em ritmo de festa que um velório parece que é... ...o que

acontecia, porém, é que a vida continuava com o meu amado morto na sala.

Na sala que ele ficava comigo, com os filhos quando pequenos, com os

filhos quando grandes, com os amigos que recebíamos, com o dia a dia...

...a vida continuava e eu vendo que eu também continuava e não acreditava,

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37 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

não aceitava, embora muda, apenas a olhar agarrada, encostada, amparada

pelo umbral onde me alojei" (Entrevista n. 12).

A intensidade do sofrimento parece a fazer sentir o morto querido

como somente seu. As demais expressões tornavam-se para ela como se

fossem de alguma coisa que não tinha significado. Manifestações

desclassificadas por ela como expressões sem sentido para o morto, como o

terço colocado entre as mãos do seu amado pela mãe dele, ou das

condolências e sentimentos expressos dos e pelos outros presentes ao

velório. Ao mesmo tempo que fincava o pé, brigava com uma grande parte

dos familiares para manter o velório em casa, e não no conforto de uma

central de velórios, como queriam os demais parentes.

Por outro lado, a procurada demonstração de indiferença para com o

significado que os outros pudessem atribuir ao comportamento "insensível"

que ela parecia atribuir a si mesma no seu depoimento, a partir de uma

análise realizada do que os outros possivelmente pensaram e acharam de

sua atitude no velório, parece indicar a importância do público, dos demais

presentes, à expressão social de seu sofrimento. A sua condição social de

recém viúva e o comportamento esperado nesta situação pela sociedade,

através da negação pela desclassificação do comportamento dos outros.

O segundo depoimento narra um processo de luto vivido por um rapaz

de vinte e seis anos, de classe média abastada, estudante de medicina,

residente em São Paulo capital. Este entrevistado perdeu o pai, a mãe e a

namorada em um acidente de carro em que ele estava no volante. Ele

mesmo ficando vários meses hospitalizado.

Retrata os cuidados, por ele considerado exagerados, dos seus avós,

amigos, empregados da casa e enfermeiros, para com ele. Veio a saber da

morte dos seus entes queridos depois de sua recuperação, isto é, meses

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depois, e após a revelação os cuidados para com ele foram intensificados

para poupa-lo de culpa e impedi-lo de algum gesto contra a sua própria vida.

Segundo o entrevistado, " ...estava cercado de pagens: enfermeiras,

de meus avós, de alguns dos meus amigos de infância. Os filhos da puta

impediam a coisa única que eu podia fazer, que eu deveria ter feito: morrer.

Morrer!... Viver prá que? Minha avó falou do destino. Destino uma bosta

(desculpe). Meus amigos tentavam conversar bobagens, não me deixavam

em paz. Não me deixavam sequer pensar. Fiquei prisioneiro e os odiei por

isso.

"O que eu podia fazer era entrar no jogo. Se até no banheiro eu não

podia ir sozinho, porque diziam que eu estava "desesperado", então era

jogar o jogo, fingir a aceitação das regras impostas. E fingi aceitar. Fazia o

jogo bem feito, nem nos meus mortos eu falava. Fingia rir das brincadeiras.

Já lembrava pequenas bobagens com os amigos. Queria ver algumas

fotografias dos meus pais, da minha namorada. Até isso eles tiraram de

mim, como se eles não estivessem na minha cabeça, no meu corpo, em

tudo. Meus avós esconderam todas, mexeram no meu armário, não tinha

acesso a nada que eles não quisessem, ou achassem que eu podia ver. Não

tinha acesso.

"Aí então funcionavam as lembranças, nas poucas tentativas de

solidão. Embora, mesmo com todos no meu cerco, eles não tinham idéia que

eles, os meus queridos, recheavam todo o meu mundo, tudo era eles, tudo

era e significava um não eu. Mas eu fingia. Fingia para poder escapar do

cerco, para amargar a minha solidão abafada por tanta proteção e amizade.

Estava cheio, mas fazer o que, a não ser fingir?" (Entrevista n. 2).

O depoimento do entrevistado fala de fingimento. O termo fingir indica

aqui o ato de aparentar e dissimular. Fazer crer que é, simular ser, querer

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passar-se por, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio

Buarque de Holanda. Diz respeito para a ação de fingir e seu efeito, o

fingimento.

Na narrativa do entrevistado, o efeito do seu fingir tinha como objetivo

"escapar ao cerco" de proteção e cuidados em que se viu envolvido desde o

acidente automobilístico que matou seus pais e namorada e que também

quase o matou. Escapar ao cerco pelo ato de fingir, assim, para ele, tinha a

conotação não apenas de poupar os que com ele se preocupavam do seu

sofrimento, mas e principalmente, de criar espaço para si próprio articular a

sua dor, a sua culpa de se encontrar à frente do volante, de ser o único a

estar vivo, de ter causado a morte dos entes a ele caros.

De ter acesso a solidão necessária, segundo ele, para o rememorar.

Fingir para fugir ao cerco de proteção que procurava o afastar das

lembranças dos "meus queridos", da invasão de sua privacidade, dos

impedimentos de acesso a lembranças objetivas, como fotografias e objetos

específicos que o fizessem recordar. Como se isso fosse possível de evitar o

seu sofrimento, pois, naquele momento singular, os mortos "recheavam todo

o meu mundo, tudo era eles, tudo era e significava um não eu".

As tentativas dos avós e de amizades para evitar a dor do neto e do

amigo levaram, segundo o entrevistado, a uma exacerbação do seu

sofrimento. Muito mais do que isso, talvez, o levaram a uma impossibilidade

de compartilhamento de sua dor, de sua angústia com os que lhes eram

caros. O levaram ao fingimento, segundo ele. Ou nas suas palavras: "Fingia

para poder escapar do cerco, para amargar a minha solidão abafada por

tanta proteção e amizade. Estava cheio, mas fazer o que, a não ser fingir?"

Nos dois depoimentos acima, de diferentes contextos, as narrativas

buscam situar a solidão dos sofrimentos vividos à insensibilidade aos olhos

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dos outros, e ao fingimento. Nos dois casos tem-se em comum o

incomensurável e o inominável da dor causada pelo sofrimento de uma

perda. Nas duas narrativas se tem também em comum, a falta de

compartilhamento objetiva, o sofrimento vivido sendo visto como totalizante

e absolutamente único, de cada depoente, e a solidão necessária para o

apreender nos significados intrínsecos da experiência que passavam. Bem

como ao rememorar, sentido como uma espécie de instrumental necessário

para a introjeção dos seus mortos.

Ao mesmo tempo, porém, é esboçada nas duas narrativas a

necessidade de ter alguém para compartilhar, e a sua falta. Da outra solidão,

a de não ser compreendido no seu sofrimento, e da necessidade de fingir

aos outros e fugir ao cerco ou ao sem sentido de suas ações, buscando

calado ou na simulação, ser encontrado, acarinhado, aninhado em uma ação

de ouvir que não vem, ou que não acham, ampliando ainda mais o

fechamento pela extensão do fingir ou pelo ato impulsivo do distanciamento

de seu sofrimento dos demais.

O que estabelece e aprofunda a ação solitária do ser em sofrimento, e

a pergunta que dirige a si mesmo, como o fez Lya Luft em um dos poemas

de luto, em seu O Lado Fatal (1991a, p. 71): "pode-se reconstruir uma vida

estilhaçada?", e as possíveis respostas encontradas a questão dita de forma

quase gritada: "sobrevivo, mas pela insensatez", e, ou, "sobrevivo para que

a fonte das memórias o mantenha aqui, comigo". Ao mesmo tempo que

impõe os termos de seu sofrimento para os outros, em uma atitude que

reforça o distanciamento entre o indivíduo em compasso de dor da

sociedade, afirmando o individual como instância totalizante e inatingível,

mas, também, como uma espécie de rogo por trás em busca de ser

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nominável, compreendido em seu sofrimento e em sua solidão: "...não me

consolem: da minha dor, sei eu" (p. 41).

Quanto menos lembrar publicamente que alguém faleceu e deixou

sofrimento e saudades em outro alguém, parece ser melhor ao social. A

cumplicidade pela indiferença aparente se torna assim uma espécie de pacto

onde o indivíduo fica restrito a si mesmo, e busca poupar ou desclassificar

os demais como impotentes de entender o sofrimento porque passam,

agindo por ou através de simulação. Os outros, também, parecem jogar

com os mesmos elementos, ou acreditar nos fingimentos e insensibilidades

aparentes, como se a morte e a dor do sofrimento fossem algo doentio, do

âmago de um ser individual e não existissem socialmente. Este caminho

apontado de individualização, parece ser a tônica moderna do processo de

luto no Brasil urbano.

A classe média intelectualizada, principalmente, parece viver com

mais intensidade esse dilema. A indiferença e o fingimento espantam

socialmente o sofrer, o luto no social, que se vê jogado para a intimidade do

sujeito, que passa a vivenciá-los na solidão.

Em um trabalho anterior (KOURY, 1993) à diferença deste ensaio, se

buscou compreender as estreitas relações entre ausência de cidadania e

luto. Foi analisado o trabalho de luto entre excluídos sociais que viviam de

mendicância, no trânsito entre o campo e a cidade. O processo de luto foi

visto, então, mesclado pela tensão resultante da perda de referenciais

simbólicos relacionais que construíram o indivíduo ao longo de sua vida,

abruptamente.

À perplexidade diante da morte, no caso tratado, associou-se o

anonimato e a banalidade no trato público da morte. O que contrastava com

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42 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

a dor ocasionada pelo sofrimento do enlutado, que parecia desmoronar

como pessoa, aumentando o sentimento individual de exclusão social.

O caso limite analisado buscava compreender o trabalho de luto entre

excluídos sociais através do choque entre os referenciais relacionais

fincados no cotidiano fazer-se da pessoa e o anonimato urbano de

higienização. Procurou-se demonstrar o esfacelamento da pessoa e as

dificuldades daí resultantes a sua reintegração individual e social.

O choque entre uma tradição relacional que formou o enlutado com

uma profunda descaracterização dos costumes e processo integrativos do

urbano moderno, enfatizava ainda mais a falta de lugar no social, a não

cidadania e a solidão do homem comum.

Essa descaracterização, produto do crescente individualismo que

parece organizar a sociedade brasileira urbana desde os anos setenta e

oitenta do século passado, principalmente, molda os parâmetros da

sensibilidade nova que se amolda aos padrões atuais de dessacralização

dos costumes sociais tradicionais. Ainda que cause esfacelamento da

pessoa como no caso limite citado, ou que ainda surpreenda e indigne o

indivíduo médio urbano no Brasil de hoje.

A narrativa de uma entrevistada (Entrevista n. 4), faxineira, 30 anos,

pobre, com renda até três salários mínimos, residente em Cuiabá, Mato

Grosso, por outro lado, mostra o processo de exclusão da pobreza dos

processos sociais da cidadania, a partir de uma vivência no urbano, no seu

lado mais cruel, da violência e da prepotência institucional no trato dos

homens comuns. Embora não seja objeto específico de análise deste

trabalho, o depoimento é aqui utilizado como forma de entendimento da

complexidade da situação do processo de individualização no Brasil atual.

Processo mesclado não apenas de ambivalência entre costumes tradicionais

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43 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

e novas sensibilidades emergentes, mas também, e sobretudo, por uma

prática autoritária e de exclusão que retira qualquer exercício de vivência do

luto, deixando um rastro de tragédia e desilusão naqueles porventura

afetados.

A entrevistada é, segundo suas palavras, "uma viúva de marido que

sumiu, ninguém sabe, ninguém viu, então eu não tenho direito a viuvez. É

uma coisa de doido. Saber que está morto não basta. A dor não alivia, só a

revolta aumenta. Mas o que fazer? Sou pobre... ".

A narrativa da impossibilidade do luto pela entrevistada conta a

história de um biscateiro, que "ganhava a vida em biscates de pedreiro, de

um faz tudo", que "foi confundido com um ladrão, foi preso, torturado até

morrer. Depois descobriram que não era ele, era parecido".

Conta a história do desespero ao saber que o marido morreu. Que

tinha saído para o trabalho e não voltou, e que vários dias se passaram e a

procura começou por casa de parentes, pelos locais onde ele costumava

fazer bicos, por hospitais, por delegacias, sem encontrar qualquer pista. Até

que , "quatro meses depois eu vim a saber o que tinha acontecido. Eu vim a

saber que ele tinha morrido. Um cara que estava preso na mesma delegacia

com ele, quando ele foi preso, descobriu onde eu morava e falou prá mim

que ele apanhou até não resistir e morrer. Apanhou prá confessar que tinha

roubado ... Alguém viu ele e ele foi preso. Morreu no pau prá dizer o que ele

não fez. Depois descobriram que não foi ele, foi alguém parecido. Alguém

preto. Como disseram prá mim uns homens da polícia, 'mulher, deixe de

atanazar, a gente não tem culpa, tudo que é preto é igual. Vá embora e

esqueça, é melhor' ".

A peregrinação em busca do corpo do marido torna-se para a

entrevistada, assim, fundamento para a possibilidade de realização do luto.

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44 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

"Por enquanto eu enterrei ele dentro de mim", informa. "Dói, moço. Dói. Dói

porque eu sei que ele está morto, mas eu não tenho ele morto. O corpo. O

corpo dele. Sua ausência me persegue... me rasga por dentro", e continua:

mesmo tendo a certeza de que ele está morto, "todo dia, toda hora eu penso

que ele vem. Meus filhos não falam, mas eu sei que também sentem a

ausência do corpo do pai".

"O senhor não imagina o que é ter um morto que está vivo", exclama.

A impossibilidade do luto pela ausência do corpo associa-se a

impossibilidade de um outro luto de ordem moral, que amplia a dor

permanente da morte, na impotência de provar a honestidade do seu

marido. "Como dizer para os meus filhos que o pai morreu numa delegacia

como ladrão? ... Sei que ele foi honesto. Tive atrás das pessoas que

disseram que era ele e elas me confessaram que tinham confundido, e que

depois o cara ladrão tinha sido pego e confessou. Que a polícia agiu rápido

porque o homem da casa roubada era um figurão e precisavam agir... mas

isso não resolve. Eu sei, disse a meus filhos, mas por dentro eu espero ele

voltar, porque eu não vi, não sei dele. Ele é vivo porque é apenas sumido,

nem atestado de óbito eu tive direito. ... O corpo dele sumiu. Não existe

registro sequer da prisão dele. Já rodei tudo: disseram primeiro que não

sabiam de nada; depois ameaçaram e que era melhor eu esquecer esse

caso; depois disseram que ele foi enterrado como indigente numa cova

comum; dizem também que este caso nunca existiu, que ele deve ter

largado de uma mulher chata como eu, dizem também que ele pode ter sido

jogado em algum local, em algum mato... todo dia aparece vários sem

documentos, tudo ladrão... dizem".

"Hoje eu entrei para o Evangelho e isso tem me dado um certo alívio,

tem me ajudado. Mas eu sinto falta do corpo dele. O corpo dele me dará

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Ser Discreto

45 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

certeza. Eu preciso do corpo dele morto, entende? Eu preciso do corpo dele

que se foi, mas que eu sei onde está, que eu enterrei... além do que com o

corpo nas minhas mãos eu posso voltar a ter a esperança de dar a meus

filhos de volta o homem honrado que foi seu pai. Mas como fazê-lo. Eu sou

pobre e preta, e eu me sinto que não existo também, embora me esforce

para ir dando uma educação para os meus filhos sobre o trabalho digno,

sobre ser pobre porém honestos, como seu pai. Mas é difícil. É difícil...".

A impossibilidade do luto na narrativa acima, pela ausência do corpo e

pela exclusão social da pobreza, por um lado, surpreende e revolta a

entrevistada. Ao mesmo tempo, parece acomodá-la em uma espécie de não

lugar social, de um lugar onde a possibilidade de falar, de exprimir sua

revolta não existe, e que ela afirma com a frase, "eu me sinto que não existo

também" na ausência do corpo do seu marido.

Por outro lado, ao procurar conforto em instâncias

desindividualizantes, institucionais, como a religião nova que a acatou, e na

missão, quase, de devolver aos filhos a honestidade do pai retirada pela sua

prisão e morte e pela impossibilidade do momento de reconstituição da

trajetória que ocasionou a morte do seu marido, parece repô-la em um lugar

de expressão, de fala, de ação social. As instâncias institucionais parecem

oferecer, neste caso, um lugar por onde a entrevistada recupera a dignidade

e busca refazer a do marido e recompor a esfera familiar.

Embora se sinta, às vezes, impotente e sem fala frente as demais

instituições que enquadraram o seu marido e, por extensão, a ela, pela

pobreza e pelo estigma de perigosos. O que faz de sua ação um

comportamento ambíguo, de sentir-se um não social e ao mesmo tempo, de

lutar pelo reconhecimento social de sua posição de viúva sem corpo que

comprove a morte do companheiro.

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Ser Discreto

46 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Ambigüidade que parece ampliar-se e estender-se no medo das

conseqüências de seus filhos não poderem organizar o luto por seu pai, a

não ser pela desonra pessoal de ter tido um pai morto em uma delegacia por

roubo, ou pela vingança, uma forma de lavar a honra do pai e pessoal

através de atitudes que reforçam a sua condição de excluídos. Esta

ambigüidade, porém, no caso tratado, parece fazer a entrevistada percorrer

os caminhos da fala. Através de vias que modifiquem o luto pessoal pela

ausência e perda do marido, em luta política, de recuperação do corpo, de

recomposição da dignidade e honestidade do companheiro, para que talvez

seja possível realizar o próprio luto.

O luto para ela, neste momento, é de impossível realização, pela

ausência do corpo e pela discriminação moral para a sua família, não

apenas tocada pela pobreza e pela cor, mas agora, principalmente pela

periculosidade e desonestidade no social de que foi vitimado o seu marido, e

que ameaça os seus filhos e a ela própria. A falta de cidadania, a falta de

respeito, a nudez absoluta de um não lugar social trazida e escancarada

pela morte por espancamento, sem culpa, de seu marido, parecem mandar

fazê-la calar, desistir, acomodar-se. Parecem, também, ao mesmo tempo,

para acomodar-se, até, fazê-la tentar recuperar o corpo, e nele a dignidade,

para uma possível realização do trabalho do luto.

E se sente só, com receios profundos pelos seus filhos,

principalmente, e busca se amparar na nova religião e na força do restauro

da dignidade do marido pela procura de recuperação de seu corpo. Mesmo

o certo alívio oferecido pela nova religião, não a retira de sua solidão social

da pobreza e de sua luta para realização do trabalho pessoal e familiar do

luto pelo seu ente querido morto.

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47 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A economia moral do sofrimento pela perda na sociedade brasileira

de hoje, parece passar pelo eclipse do sofrer. Parece caminhar

tendencialmente no sentido de retirar o sofrimento do social para o íntimo,

como forma de deter os efeitos da individuação de quem sofre a privação e

dos perigos que tal processo representa para o social. Enfatiza as relações

mercantis do individualismo, movimentadas pela idéia do ser discreto

enquanto conduta do comportamento civilizado.

As regras sociais parecem passar a viger apenas no sentido

mercantil, através do individualismo que nega a individuação como processo

interativo da pessoa na sociedade. Quanto mais abafada e constrangida se

encontre a pessoa, quanto mais a subjetividade for tratada como problema

pessoal, íntimo e não social, como indizível, mais o individualismo parece

comandar os destinos individuais. O que parece enfatizar a morte, como

desilusão e como código básico de conduta, como afirmou Elias Canetti em

sua conversa com Adorno (1988, p. 131).

Socialmente, parece que, a tendência da nova sensibilidade

emergente no Brasil de negar a morte e o sofrimento pela morte na esfera

social, vem sendo feita, através de uma ênfase na morte como código

norteador e ameaçador atrás das regras sociais. Configura-se no adotar o

ponto de vista da resignação social como constructo possível do ser moral

na modernidade. Resignação do eu constrangido na intimidade, para dar

lugar ao indivíduo indiferente e fragmentado no social.

A idéia do fracasso, da desilusão do sujeito no ritual introspectivo do

sofrer, impõe códigos de naturalização e anonimato à morte e ao processo

social do sofrimento, evidenciando uma fragmentação de sentimentos

coletivos que se expressam numa espécie de receio social de contaminação

(ELIAS, 1989) e na vergonha de sentir-se enlutado. Afigura-se, enfim, no

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48 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

condenar o trabalho de luto a realizar-se como unicamente desilusão do

mundo, como expressão solitária de um sujeito em descompasso, em

desagregação, em seu sofrimento, do social.

Efeito de decepção e engodo, da morte como universo do silêncio, a

dor causada pelo sofrimento no processo de luto, constrangida e

envergonhada no interior do sujeito, revela-se como nostalgia do ausente.

Ausência configurada em um tempo e em um espaço singular e solidário,

perdidos na memória individual do enlutado. Um estado de sofrimento moral

é criado, então, como resultado das inibições impostas ou acarretadas como

precaução ou como resultante de um empobrecimento de energia ao ego

(FREUD, 1976, p. 111). Processo que assemelha-se a uma espécie de

paralisação de toda a iniciativa de decisão e ação do sujeito, em um

movimento de ideação pessimista.

Os sentimentos para com o social e para consigo mesmo tendem a

declinar como se nada valesse a pena ser feito, podendo caracterizar um

estado de depressão em sua forma mais grave: a melancolia. O luto pessoal

do sujeito que sofre uma perda, como conseqüência de sua subjetivação e

falta de expressão no social, e pela ambivalência resultante na vergonha

como individuação e a reprovação e o estranhamento público, constitui-se,

enquanto tendência, em um delírio de expectativa. Como resultado, enfim,

da não esperança e do sentimento de que algo eminente estivesse prestes a

desabar sobre si.

Um hiato entre o tempo vivido e a viver é então construído como luto

retrospectivo, de sua constituição como pessoa, e como luto do que se tem a

viver, simbolizado em uma morte ao mesmo tempo desejada e temida.

Intercessão entre o desespero e o tédio, a dor da perda subjetivada e sem

expressão no social, reproduz-se como ausência de projeto.

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49 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O processo de luto tende, assim, a tornar-se melancolia. Como ensina

Freud (1992), embora o luto e a melancolia apresentem os mesmos

processos dolorosos, na melancolia, diferentemente do luto, a perda é

retirada da consciência. O investimento do ego se orienta à repressão

através da compulsão à repetição19. Este movimento estabelece um grave

conflito de sentimentos ambivalentes, dos quais só se pode fugir, como

informa Abraham (1976, p. 100), voltando a si próprio a hostilidade e a

amorosidade que originalmente sentia em relação ao seu objeto.

A individualização crescente das relações sociais no Brasil atual,

parece tender a refrear o processo de individuação do sujeito que sofre a

perda, através do mascaramento da dor do sofrimento e da morte. Essa

tendência social de escamoteamento da expressão pública dos sentimentos

(MAUSS, 1980) e a valorização da interiorização, enquanto subjetividade ou

espaço da intimidade ou do privado (e, nesse caso, não social por definição),

cria uma pré disposição permanente no indivíduo à desconfiança no outro, e

por extensão, no social.

O sujeito emergente desse processo parece ser um indivíduo de

atitudes ambivalentes, exposto a crises constantes de superestimação ou

subestimação de sua pessoa (socialmente aceita). Exposto a se sentir

facilmente decepcionado, traído ou abandonado pelo objeto amado, perdido

e retirado, através do mascaramento, da consciência pública, ou social, para

o privado espaço em seu interior, socialmente banal.

A interiorização do sofrimento e de todo o plexo de sentimentos, e a

sua inexpressividade para o social, no Brasil de hoje, parece indicar o

caminho através do qual vai se consolidando a nova sensibilidade social,

19

Compulsão que em circunstâncias normais só é eliminada pela função livremente móvel do ego (FREUD, 1976, p. 177).

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50 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

construída em um movimento permanente de fragmentação das relações

sociais e pessoais. Processo onde a persona em jogo no exercício social,

cada vez mais, tende a transvestir-se naquela cuja face representa a

individualização do agir, em detrimento das práticas relacionais que até

então pareciam informar o comportamento social médio do brasileiro.

O mascaramento da dor individual no social parece tender a ser

administrado pela sociedade através do princípio do desempenho

(MARCUSE, 1968). O agir individual no espaço público, segundo esse

princípio, deve ser desprovido de qualquer elemento que venha perturbar o

bom funcionamento dos papéis em representação pelos sujeitos em relação.

A necessidade do bom desempenho deve suplantar as questões dos

sentimentos, normalmente tratados como pertencentes à esfera do privado,

ou para a esfera do espaço íntimo.

A vergonha da demonstração pública do sofrimento ou da expressão

de solidariedade, ou o não saber o que fazer com a dor da perda alheia, do

outro, resulta em um automatismo de relações, movido pelo grau de

afastamento ou abandono do sujeito de sua perda. O sujeito que sofre a

perda, embora traga consigo um imenso desprazer (ABRAHAM, 1976,

p.110), tende a relacionar com a perda o seu sentimento de inferioridade (p.

114).

Fecha-se, então, em sua privacidade, intensificando a sua desilusão

com o mundo e consigo mesmo. Receia, ao mesmo tempo, que esse mundo

perceba as suas emoções e dele reclame significados.

Afasta, assim, o seu sofrimento do social, através da mercantilização

das relações. Anseia silenciosamente, porém, através deste artifício, via

desempenho, reencontrar o ente querido e a solidariedade à sua dor,

intensificando ainda mais a sua desilusão com o mundo social.

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51 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Em uma entrevista à revista Desfile (1992), uma personalidade do

meio artístico analisa o processo de luto por ela vivido. Relata desde as

pseudo-alucinações comuns ao início do processo de introjeção no trabalho

de luto, como “... no início ficava inventando histórias incríveis de que ele

poderia voltar”, até o aprofundamento do processo de desilusão com o

mundo e com tudo o que acreditava, chegando a duvidar se conseguiria

continuar vivendo sem a presença do objeto amado.

Um estado de anomia movido pelo desamparo, pela falta de vontade,

pela solidão em que se encontrava em seu sofrimento, parece se instaurar.

Fechada em seu sofrer lutava pelo isolamento que permitia reviver

continuamente a sua perda, e com o mundo exterior que parecia

incomodado e fingia indiferença a sua privação. O mundo exterior, a

“realidade” segundo ela, a chamava de volta ocasionando um movimento

duplo nela de perplexidade pela indiferença social a sua perda, e de

vergonha do incômodo que o sofrimento por que passava pudesse estar

causando aos outros, sejam estes colegas de profissão, amigos ou público

em geral.

Sentimentos ambivalentes, então, foram intensamente vividos. De um

lado, lutava pela manutenção do sofrimento, enquanto espaço privado, como

uma forma de reter por mais tempo o objeto amado em si. O que significava

um mergulho completo em si mesma, e um rompimento com o social. De

outro lado, tendia para uma espécie de negação da dor do sofrer, para um

retorno à indiferença do social com o seu sofrimento. Estes afetos opostos,

aumentava o seu receio “de entrar em colapso”, de não saber “até onde iria

agüentar”.

A dicotomia entre os espaços público e privado é por ela, assim,

levado ao extremo, pela descrença pessoal provocada pelo luto em relação

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52 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

a qualquer instituição desinvidualizadora, como a igreja e a família. Restava

a arte, e através dela foi possível mediatizar e elaborar o seu trabalho de

luto.

Foi possível através do seu exercício o profissional mascarar o seu

sofrimento em público pela técnica. A técnica, a disciplina forçava-a a

participar da realidade, embora para si não apenas servia de máscara à sua

perda em público, como também servia como desilusão pessoal da própria

ação como intérprete. No compromisso técnico não havia a arte, apenas a

disciplina, e era isso que lhe exigia o social.

Hoje, olhando para trás, analisando o seu processo de luto, ela afirma

que foi “muito rígida consigo mesma”, e que “hoje, posso dizer que sou uma

pessoa ... que carrega uma marca ”.

Uma visão semelhante pode-se ter no depoimento de um entrevistado

que narra o processo de luto passado por perda de sua esposa, vítima de

câncer. Primeiro, o entrevistado (Entrevista n. 42), engenheiro civil, de 49

anos, sem filhos, classe média abastada, com residência em Porto Alegre,

Rio Grande do Sul, relata o pouco tempo entre a descoberta do tumor no

cérebro de sua esposa e a morte desta. Discorre sobre o pânico da

descoberta mesclado com "um encontrar forças não sei onde" para dar

esperança e conforto ao ser amado doente e agonizante.

Descreve o processo de morte de sua mulher, a dor cortante, o

sofrimento solitário que se agudizava, e o sentimento compartilhado com os

pais e irmãos da esposa que, se não aliviava o seu, pelo menos o fazia

sentir-se vivo. Para, a seguir, construir uma narrativa de sua trajetória de luto

enquanto solidão que, embora em alguns aspectos compartilhada pelos

familiares da esposa, se aprofundava a cada momento no seu interior,

fazendo-o passar de atitudes dóceis a agressivas em uma mesma ação.

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53 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Segundo ele, "foram dois meses de loucura interior, desde a morte de

minha mulher. É porque tu guardas alguma lucidez tirada de onde não

imaginas, senão tu entras em outra estratosfera, senão tudo desmorona sem

nunca mais conseguir juntar os pedaços. Eu passava da doçura ao mais

arisco dos seres. Rompi com meus melhores amigos e amigas. Alguns estão

magoados até hoje, outros voltaram, mas não são como antes. Só o trabalho

me permitia esquecer, quando não queria largar tudo, romper com tudo,

desaparecer. Mas sempre profissional, até demais: aí, também, embora seja

o meu normal, havia um, como que, ponto da intransigência que revelava a

dor a mim, em mim.

"Tive casos passageiros. Todos comparativos e, como tal, fadados ao

insucesso. Todos insuficientes, embora a nível de corpo, relaxantes.

"Passaram-se já dez meses. O cotidiano voltou. A tranqüilidade

começa a retornar. A saudade continua, mas é mais amena. Fiz uma

limpeza nos armários, dei ou rasguei algumas de suas roupas, vendi ou dei

todos os livros e discos que considerávamos nossos. Estou comprando de

novo. Os mesmos CDs, os mesmos livros, só que sem a marca dela.

"Estou procurando me desfazer das marcas externas, não sei se tu

me entendes, refiz a decoração da casa, do quarto, me desfaço das coisas

nossas, embora compre, sempre, outras iguais. Remodelei também o local

onde trabalhávamos, e por aí vai... . Já bastam as marcas dela que estão em

mim. A saudade, a falta, o carinho... (pausa) ...as marcas objetivas das

coisas acho podem ser refeitas. Mas será isso possível? Será que eu não

estarei fadado eternamente a procurar repor a ausência dela em mim.

Quando olho em volta, mesmo com tudo novo e aparentemente desigual ao

que era nosso, ao tempo em que ela estava viva, comigo, me sinto

perseguindo refazer o que não é mais possível ser refeito, tê-la de volta.

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54 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Perseguindo o passado... perseguindo a solidão e o não retorno...

perseguindo, acho, uma ilusão sem compartilhamento... não sei!..."

A irreversibilidade da perda parece ter o poder de transformar o

sujeito em um ser nostálgico, como configura a suposição da narrativa

acima. O continuar a viver torna-se uma espécie de renúncia ao próprio eu

encoberto pela névoa espessa da introjeção do outro, amado, perdido.

O outro perdido, confundido com o eu no processo de internalização

do trabalho de luto, no sofrimento em que esta elaboração se desenvolve,

busca des-elaborar o constructo da dor por uma perda específica para

remontar-se como apenas perda. Para refazer-se como renúncia

permanente de projeto pelo apego a um sentimento de privação

fragmentado que a nostalgia procura rememorar continuamente. Que

procura evocar sem, porém, deter-se no próprio objeto da perda, que escapa

à consciência como uma perda desconhecida, como um silêncio.

Como uma marca que compulsivamente parece levar para o retorno

benvindo, para o re-constructo do eu, mas, que apenas esbarra na

incomensurável perda, sem objeto, sem sentido. Na desilusão do mundo

pela fragmentação do eu perdido na própria perda, agora, desconhecida.

O homem individualizado, melancólico, que tendencialmente parece

estar em formação no Brasil de hoje, e os códigos de enunciação dessa

sensibilidade que parece caminhar para o domínio ou universalização dos

novos valores e costumes em constituição, estão vinculados à idéia dolorosa

de um sofrimento, sem razão outra que o próprio sofrer. A marca que

forçosamente carrega no seu desenvolvimento, aparece e apresenta-se

como que pontuando a existência fixa em uma dor causada pelo

incomensurável sofrer por uma perda deslocada da consciência. Marca que

parece ter sido forjada no prosseguir de um processo de redução ao nada,

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55 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

ao vazio, ao estado se não de morte, de encontrar-se continuamente

morrendo (MONEY-KIRLE, 1969, p. 236).

A experiência da perda assemelha-se, deste modo, no transformar em

vazio todo o processo de vida. Perdido na própria perda o objeto faz com

que a privação, através da compulsão à repetição, se torne em

determinação, contaminando o futuro como um espaço vazio. Vazio

estereotipado, como informa Binswanger (1960), que parece consumir o

indivíduo melancólico em uma eterna nostalgia de um mundo compartilhado.

Saudade de uma ilusão, proporcionada pela destituição do objeto

perdido em uma perda sem objeto. O que torna o sujeito em um compulsivo

perseguidor dessa ilusão, a fim de transformá-la em sua própria, para de

certa forma melhor poder aniquilá-la.

A melancolia não permite reconhecimento de outro eu autônomo,

mesmo que seja o próprio eu do sujeito. Nesse sentido, a saudade de um

mundo compartilhado, de um retorno ao ente querido irremediavelmente

perdido, não passa de um estado compulsivo, alegórico, que anseia a ilusão

da própria perda. O que faz, tendencialmente, da introjeção um ato sempre e

repetidamente infiel: a perda transformando-se em fim, e adquirindo uma

vivência independente no processo de destruição do sujeito para si pela

absorção repetida da perda, como privação em si mesma.

O mundo interno do sujeito configura-se em se transformar em uma

série interminável de catástrofes, empurrando-o para uma solidão cada vez

maior. Pela infidelidade constante da perda em e para si, age como um ser

em processo de morte a cada momento e - como suas relações com o

mundo exterior ainda não findaram apesar de insistentemente o imenso

vazio imposto pela perda em si o impelir para tal -, em agressão ao mundo

exterior, ao social.

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56 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Através do princípio de desempenho nega a si próprio e aos outros

em relação. Amplia, assim, o espaço de solidão pela instrumentalização das

ações que mobilizam as relações mercantis através da concorrência. A

infidelidade ganha assim importância como regra de conduta, e a indiferença

ao outro como a si próprio em processo civilizatório.

A nostalgia que parece impulsionar o eterno retorno à perda sem

objeto, ao mesmo tempo que aprofunda-se na subjetividade, desloca o

mesmo ator do social através da dicotomização entre o público e o privado.

A emergência do indivíduo no Brasil de hoje parece se dar, desta maneira,

pela negação das práticas relacionais de que fala DaMatta (1987), e pela

afirmação crescente do que Simmel (1967) chama de personalidade blasé.

Caracterizada pela pulverização dos papéis e laços sociais desempenhados

pelos sujeitos sociais, envoltos no anonimato urbano e em relações

mercantis.

Indivíduos que assumem ares de indiferença e enfado às relações

sociais do cotidiano, e agem como que deslocados do público espaço da

existência societária. Como que negando o outro como solidariedade,

mergulhando na solidão de uma subjetividade nostálgica e contraditória:

que, ao mesmo tempo que nega, reafirma o outro em si como uma perda

que já não reconhece do que se privou.

O processo de luto, na dolorosa execução do seu trabalho interior nos

indivíduos, parece deixar mais clara, mais evidenciada, essa existência

blasé da personalidade contemporânea e urbana de que fala Simmel.

Afigura-se no deixar também mais claro a emergência desse indivíduo

melancólico cujos projetos, aparentemente, se perderam em um círculo

vicioso e nostálgico de um retorno infinito à ilusão de algo remoto, e do qual

a memória retém como privação irremediável.

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57 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A descrença em fórmulas rituais integrativas do morto e do enlutado

às malhas sociais fornece, assim, indicativos da ruptura das práticas

relacionais na sociedade brasileira urbana de hoje, principalmente entre

classe média intelectualizada mas, de uma certa maneira, tende a orientar o

agir de toda a sociedade.

Segundo o depoimento a Revista Marie Claire (n. 75, de junho de

1997, pp. 163 a 168, coluna "Eu Leitora") de uma professora curitibana, -

que morava com o marido carioca e o filho pequeno em Florianópolis, Santa

Catarina, e que os perdeu em um acidente em um parque florestal: um

eucalipto apodrecido caiu em cima do marido e do filho desta senhora, os

matando, - durante momentos seguidos após o acidente, "não tive nem

sequer a idéia da minha própria dor, tão grande era ela. Momentos em que

blasfemei a vida, o mundo, as pessoas felizes, as crianças. Momentos em

que o desespero me fez confundir as coisas, na esperança de recuperá-los,

de ter de volta tudo o que tive. Quanto me custou aceitar que nunca mais os

teria e nem a felicidade e o amor. Não encontrei conforto algum em

nenhuma religião, com exceção momentânea na religião espírita e sua teoria

da reencarnação. Mas no final estava sempre só comigo mesma. Por mais

que algumas teorias confortem, na prática estou completamente só".

A ambivalência das atitudes individuais perante o morrer e a dor

quase física da privação configura-se, deste modo, como ênfase, nesse

processo de dessacralização dos processos integrativos da pessoa na

sociedade. O não saber agir quando o luto ou o processo do morrer atinge

alguém, como um ser que sofre a perda ou como o outro que a assiste; o

desconforto público de ter o sofrimento pessoal exposto a outros ou no

presenciar as emoções alheias; a impotência para atos de solidariedade ou

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58 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

para a procura de conforto social, parecem evidenciar o processo de

individualização acelerada do brasileiro médio atual.

A individuação a que alguém se vê sujeito pela privação parece ser

transformada enquanto tendência, em vergonha, na sua expressão pública.

Afigura-se, também, no ser vivida intensamente como subjetividade, isto é,

como um espaço de intimidade onde a nostalgia do perdido se estabelece,

ou como um outro sem identidade e sem retorno. A individuação tende a se

processar, deste modo, negando a si mesma pela afirmação da

individualização.

Enquanto nas sociedades relacionais o processo de individuação é

identificado e sujeito através de regras e ritos sociais, onde fórmulas rituais

explícitas retomam e remontam o ator à sua performance social,

reintegrando-o à sociedade (MAUSS, 1974 e DURKHEIM, 1996), na

sociedade brasileira atual parece se instaurar, ao lado da indignação e da

ambivalência do agir, comuns aos processos de mudança de costumes e

tradições, um processo em que a individuação como momento privado é

excluída do social. Onde o movimento de individuação é constrangido para o

interior do sujeito que passa a relacionar-se e a agir publicamente através da

negação da expressão de sentimentos para si e para com os outros, através

da indiferença.

“Nos tempos modernos não há mais protocolo rigoroso para a

espera”, afirma a consultora da seção “Modos e Maneiras” da Revista

Claudia (julho de1994, p. 8), em resposta a inquietação de uma leitora sobre

a conduta do seu companheiro de muitos anos que quer esperar um ano de

luto pela ex-esposa, para oficializar a união. O caso da “Mineira Ansiosa”,

como se identifica a leitora, parece deixar transparecer importantes indícios

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59 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

sobre a conduta ambivalente em que se acha exposto o brasileiro médio à

demonstração pública de seus sentimentos.

De um lado, a questão dos sentimentos é tratada com uma linguagem

que denota indiferença, como regras de etiqueta, que pode ser visto como

um claro princípio de desempenho. Pergunta a leitora: “pelas regras de

etiqueta, quanto tempo deve esperar um viúvo para se casar novamente? O

mesmo vale para homens que já estavam separados da mulher?”. De outro

lado, ao distanciar o sentimento agora tratado como regra de etiqueta, como

um fato social, público - a morte da ex-mulher do seu companheiro -, exclui

qualquer emoção, mesmo em forma de culpa, do indivíduo que sofreu a

perda (seu companheiro), do processo racional de interação social.

O que significa impor uma aura de irracionalidade ao sentimento do

sujeito, de querer aguardar um ano da morte da ex-esposa para poder

oficializar um casamento que já existe na prática. Irracionalidade a que o

outro se deve opor, e sobre a qual, se não houver quebra de nenhuma

etiqueta ou regra de comportamento socialmente esperado, deve também

seguir o companheiro, como prova de que a marca deixada pela ex-esposa

foi totalmente superada.

Marca que, se existe ou não, parece ser indiferente se privada, se

armazenada no íntimo, como uma questão subjetiva do sujeito em relação.

Se ela se torna pública, se aparece, porém, ameaça.

A individuação do sujeito no trabalho de luto por sua ex-mulher parece

ter trazido à tona a marca da antiga relação, que necessita ser indiferenciada

como etiqueta para não ameaçar a relação atual de anos por culpas,

remorsos ou dor existente. Guardar luto, nesse caso, para a leitora que

indaga, é expor publicamente a chaga privada do casal que já vivia uma

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relação anterior à morte da ex-esposa, e de sua própria insegurança

enquanto companheira, do seu íntimo, de sua subjetividade.

A individualização obtida pela indiferenciação, pela negação da

individuação enquanto processo social, repõe ao sujeito como psicologia a

individuação enquanto processo privado. Como um mal, como uma angústia,

como marcas, quase doenças pessoais, que condicionam o agir individual.

Como biografia, vista como o processar angustiante das privações de um

sujeito que sente falta de algo que não sabe o que é, como marcas

pulverizadas de uma ilusão que teima em repetir-se continuamente.

Através da psicologização dos sentimentos se domestica o processo

de individuação, agora encarado com mal civilizatório (MARCUSE, 1968;

CARUSO, 1989 e FREUD, 1974). A intimidade enclausurada no privado

torna-se memória, torna-se uma eterna busca do tempo perdido20, que, já

não assenta suas bases em objetos ou noções de tempo, mas apenas e

cada vez mais se torna desilusão.

Assemelha-se, enfim, a um remontar-se, através de uma espécie

aparente de destinação última, como um desejo indiferenciado, ou, como

disse Olgária Matos (1987, p. 155), como algo “sempre ainda por vir, sempre

já perdido ... (lugar da ) ... impossibilidade de realizar a ânsia por um fim”.

Do vazio, da indiferença, da individualização dos sujeitos que se protegem

publicamente como negação de si mesmos. Como personagens blazés que

fazem, de modo ambivalente, do noir de suas emoções, a própria ação

social, através do princípio de desempenho e da domesticação da

individuação.

A crescente descrença nos rituais sociais de integração do sujeito em

processo de individuação, que tendencialmente vem tomando conta do

20

Parodiando, aqui, com o título do célebre romance de Proust.

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modo de ser brasileiro, hoje, sobretudo entre a classe média, - tendo como

referência neste trabalho o processo de luto, e a individualização emergente,

- coloca em evidência para análise a questão da fragmentação da pessoa

enquanto indivíduo em sociedade. Toda uma carga simbólica parece recair

sobre o sujeito que se move de modo contraditório entre os sentimentos de

indignação e indiferença.

Indivíduo que parece recusar as regras relacionais tradicionais, ao

mesmo tempo que se sente inseguro e incapacitado para tomar posições no

interior de regras higiênicas e aos moldes do mercado. Regras que o

inviabilizam em função de um individualismo pulverizador da pessoa no

social.

É o que se configura nas afirmações contidas nas respostas à

pergunta do questionário sobre como o sujeito que vivenciou uma

experiência de luto se definiria depois da perda. Esta questão foi respondida

por 1209 informantes. Para 51,78% deles21, após a perda, ficou um enorme

sentimento de vazio, nunca vivenciado anteriormente; seguido por 25,06%,

que responderam que depois da perda houve uma quebra nas relações

familiares, e, 7,78%, que informaram o rompimento para com a religião.

Houve, também, a afirmação de mudança nas condições de vida após

a perda, emitida por 8,60% dos informantes, e uma melhor compreensão da

vida foi enfatizada por 6,78% dos respondentes.

É interessante verificar que, 84,62% dos informantes que

responderam ao questionário, afirmaram uma tendência a um aumento da

solidão pessoal em seu trabalho de luto. Confirmaram, também, um aumento

do seu sofrimento através de um progressivo descrédito individual, com

respeito a instâncias institucionais desindividualizadoras.

21

Conforme pode-se acompanhar no Quadro N. 12, anexo.

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Falta de crédito, esta, motivada por vários fatores. Movida, pelo

quebra da confiança nas mensagens emitidas em termos de dogmas de fé,

através de instituições religiosas. Ocasionada, também, pelo rompimento

das relações sociais na família ou nos códigos em que se assentavam os

padrões de amizade. Ou impulsionada, ainda, pela desilusão com o trabalho

ou com a arte desenvolvida.

O que configura o vazio proporcionado pela perda, como um ato

inominável que percorre e corrói os sujeitos que a vivenciaram e as suas

relações institucionais e societárias. Ampliando e aprofundando a não

sociabilidade da dor interna causada pelo sofrimento, entendida, cada vez

mais, como um espaço de intimidade. Espaço privado, diferenciado do

público e social.

A nova sensibilidade emergente e em vias de consolidação, que

parece vir forjando a emergência desse novo ser brasileiro, deste modo, tem

suas fronteiras delimitadas pela domesticação do espaço privado, enquanto

intimidade. Embora, as instâncias desindividualizadoras, como a família, a

Igreja, os partidos, a comunidade e grupos, entre outros, continuem a existir

e ainda exerçam forte ação em grandes segmentos da sociedade brasileira.

Sem negar a forte influência dessas instâncias desindividualizadoras,

a tendência à dessacralização e à individualização, contudo, cresce e parece

construir códigos universalizantes que contaminam todas as esferas

simbólicas da sociedade.

A domesticação do espaço privado, como intimidade, como um

espaço sentido como não social, estabelece parâmetros para a consolidação

de novos códigos de individualidade. O individualismo vem se constituindo

através do controle social dos processos de individuação. Processos

perigosos por excelência para o social, pela revolução que parecem

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provocar nas pessoas, que passam a ver o mundo a partir dos próprios

sentimentos, quer sejam de perda, quer sejam de júbilo, ou outros mais,

nelas exacerbados.

Através do controle é possível, inclusive, pensar-se as emoções como

um dos pontos de sustentação da nova sensibilidade em conformação, pela

centralização do individualismo. As emoções tidas como fundamento do

indivíduo enquanto instância privada, são apropriadas pelo social como

expressões do desejo pessoal e, como tal, convenientemente tratadas.

Apropriadas e tratadas, quer como relações mercantis próprias ao consumo,

quer enquanto questões específicas do individual, do privado, do eu.

As emoções, assim, são domesticadas, pela negação da

subjetividade enquanto esfera própria do social, através de uma nova

roupagem de sentido econômico, tanto quanto de sentido psicológico ou

psicanalítico.

Por essas roupagens a individuação enquanto processo é recuperada

pelo social, e os impasses nas pessoas que o vivenciam domesticado. A

pulverização da pessoa, através da fragmentação de papéis, parece

conduzir para uma radicalização do individualismo nas relações sociais. Os

indivíduos expostos a si mesmos parecem tender a fechar-se em sua

solidão, desvinculando a sua subjetividade, ou tentando desesperadamente

desvinculá-la das interações sociais, do seu ser em público.

O mundo interior e o mundo exterior parecem tornar-se absurdamente

antagônicos. Embora a trajetória do sujeito, sua biografia, seja produto do

intercurso entre os dois mundos, o mundo exterior, enquanto espaço social

por excelência para o individualismo, tende a tornar-se o lugar da desilusão,

da “realidade”, onde as fantasias do sujeito, as ânsias e os desejos mais

íntimos de reencontro do outro e de si mesmo, são desfeitos ou remetidos

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de volta ao próprio eu, numa espécie de repetição compulsiva22. Esta

repetição, porém, se, por um lado, aprofunda o distanciamento entre o

privado e o público, enquanto instâncias do eu, por outro lado, inaugura os

novos parâmetros em que se move e se consolida a sensibilidade

individualista emergente.

O processo de escolha que parece recair radicalmente sobre os

indivíduos, arma como cenário o desempenho. Este, encarado como produto

da desilusão sempre renovada do possível encontro dos dois mundos, o

privado e o público, e da indiferença dela resultante. O que parece fazer

aumentar a distância do eu nos processos interativos e como conseqüência

aumentar sua solidão. Ampliar a desilusão pessoal e, consequentemente, o

processo de indiferença para si e para os outros.

A pessoa, então, parece encontrar-se mais exposta em sua solidão e

em sua luta contra o social e, contraditoriamente, pelo social. Mesclado pela

ambivalência, o sujeito em ação configura-se na tendência de olhar com um

relativo desprezo a tradição e os velhos costumes e rituais de integração do

indivíduo à sociedade. Repete, ao mesmo tempo, uma certa saudade

indefinida, sem mais tempo nem espaço identificáveis, e se torna portador

de afetos de indignação e temor. Confuso e confundido, no hoje, pelo

22

Ver um trabalho anterior do autor, Koury (1999a), onde se procurou trabalhar metodologicamente um caso de luto individual, no interior de uma análise antropológica. Nesse trabalho se discute mais profundamente as noções de mundo interior e mundo exterior.

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processo de higienização dos valores, das regras e das normas de conduta

e comportamento social a que se vê sujeito e ator.

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66 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Capítulo 2

A Morte e o Morrer

"A morte chegou lenta na nossa vida. Por incrível que pareça, todo o processo significou mais no nosso amor. Cada passo da doença eu me agarrava mais a ela, mais alento amoroso eu tinha, nós tínhamos. ... . Meu corpo colava no dela para dar calor, prá passar a dor dela prá mim, prá aliviar ela, e isso me aliviava, me aliviava e era um ato de amor. Eu e ela nunca fomos tão um só. Até o fim, quando a tomaram para o hospital e para a morte". (Entrevista N. 249).

O depoimento acima de um entrevistado23, sobre o acompanhamento

do cotidiano morrer de sua esposa, vítima de câncer, apesar do aparente

apelo sentimental nele incluso e o alto tom de angustia compartilhada a cada

novo estágio da doença, abre este capítulo como uma espécie de epígrafe.

A narrativa contém um elemento comum a muitos processos do lidar com a

morte no Brasil urbano do final do século XX. Este elemento comum

referenciado é a morte higiênica ou, segundo as categorias elaboradas pelo

historiador Philippe Ariès (1983) no seu estudo sobre a morte e o morrer no

ocidente, a Morte Interdita24.

Por morte interdita Ariès entende o processo através do qual se

institui no social contemporâneo a cultura mortuária vista através e sob o

23 Vendedor propagandista de 38 anos de idade, de classe média, com uma renda mensal de aproximadamente R$ 1.500,00, viúvo há quase três anos, na época da entrevista, realizada em outubro de 1999, e residente na cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais.

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controle do saber médico. Nesse processo a morte é vista no embate com a

possibilidade de cura, e como um fracasso tecnológico e humano

momentâneo.

A luta contra a morte se passa cada vez mais no interior dos

hospitais, reino de um saber técnico e instrumental, para onde são levados

os pacientes. A morte passa a ser interdita, encarada como vergonha ou

como fracasso pessoal ou institucional.

Em um artigo intitulado "La Mort Inversée", Ariès (1967), discute as

mudanças nas atitudes perante a morte nas sociedades ocidentais. Tem

como objeto de análise as mudanças ocorridas nas culturas funerárias dos

Estados Unidos25 e de países como a Inglaterra e a Holanda, mas sua

atenção se encontra voltada para o movimento que parece desenvolver-se

com intensidade nas sociedades industriais, principalmente a França e a

Espanha contemporânea, após o Segunda Guerra Mundial.

Para ele, a nova sensibilidade que vem se esboçando a partir dos

anos cincoenta do século XX nas sociedades industrializadas, e que parece

ter-se aprofundado mais em países como a Inglaterra, Holanda e Estados

Unidos, pode ser analisada em torno de três temas. O primeiro está

associado a espoliação do moribundo, o segundo a simplificação do ritual

funerário, e o terceiro a recusa do luto.

Espoliação aqui tem o sentido de desvio do direito daquele que está a

morrer. Segundo as palavras de Ariès (1967, p. 174), "Hoje em dia já não

resta nada nem da noção que cada um tem ou deve ter de que o fim se

aproxima, nem do caráter de solenidade pública que caracteriza o momento

24 Quarta categoria analítica elaborada por ele em seu estudo. 25

Ver o interessante trabalho de Mitford, (1963), sobre o processo de morte nos Estados Unidos.

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68 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

da morte. O que devia ser conhecido é, a partir de então, escondido. O que

devia ser solene é escamoteado.

É evidente que o primeiro dever das família e do médico é dissimular

a um doente condenado a gravidade do seu estado. O doente nunca deve

saber (salvo em casos excepcionais) que o seu fim se aproxima. O novo

costume exige que se morra na plena ignorância da sua morte. Já não é

apenas um hábito introduzido ingenuamente nos costumes. Tornou-se uma

regra moral".

Como regra tem se tornado a abreviação e a impessoalidade dos ritos

funerários. Deixou-se progressivamente de velar o corpo na casa onde viveu

o morto; do hospital se vai para uma casa de velórios próxima ao hospital, se

não no próprio hospital, ou próxima ao cemitério, se não no próprio

cemitério. Deixou-se também de praticar o longo cortejo fúnebre; hoje,

quando presente, se situa no próprio cemitério onde se irá enterrar o corpo

morto, e o cemitério tende a deixar de ser um local da morte para vender a

idéia de um lugar para o bem-estar dos vivos.

Os rituais religiosos de corpo presente, bem como os cultos e missas

de sétimo, trigésimo dia e um ano da morte do ente querido também

parecem ter-se deixado abrandar. Em muitos casos foram suprimidos os

cultos de corpo presente, bem como o de trigésimo dia da morte. A tradição

ainda mantém, em muitos casos, a missa de sétimo dia e a de um ano de

morte.

Abandona-se, também as expressões públicas de sofrimento, e as

novas convenções configuram-se no exigir que "se oculte o que outrora era

necessário expor ou mesmo simular: o desgosto" (p. 186).

No processo contemporâneo de interdição da morte, segundo a

análise feita por Ariès no seu artigo sobre a inversão da morte aqui utilizado,

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69 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

a morte parece ter-se tornado um tabu, uma coisa inominável, na qual não

se deve falar em público nem tampouco obrigar aos outros a fazê-lo. A morte

parece ter-se tornado o principal interdito do século XX.

"A sociedade inteira comporta-se como uma unidade hospitalar. Se o

indivíduo agonizante deve vencer sua perturbação e entregar-se

atenciosamente a equipe médica, os que o choram devem ocultar o seu

desgosto, renunciar a uma solidão que os trairia e continuar a sua vida de

trabalho e lazer sem qualquer interrupção. De outro modo, poderia ser

excluídos. ... 'Não se chora', diz Gorer26, 'senão na privacidade, tal como nos

despimos ou repousamos privadamente" (p. 188).

Este capítulo pretende discutir as modificações por que vem

passando a sociedade brasileira nos últimos trinta anos finais do século XX.

Até que ponto as atitudes perante a morte e morrer no Brasil contemporâneo

se enquadra nas análises feitas por Ariès para a sociedade européia e norte

americana? Como os indivíduos entrevistados por esta pesquisa se colocam

em relação a morte e o morrer no Brasil atual, como eles encaram o

sentimento de luto, e que modificações eles apontam, se direcionam ou

sentem falta na história recente dos costumes funerários na cultura

brasileira? Estas são algumas das questões que aqui se pretende analisar.

Passando em Revista as demais Categorias Analíticas de Ariès

26 Ariès cita o já clássico artigo de Geoffrey Gorer sobre os costumes mortuários contemporâneos na Grã Bretanha, intitulado "The Pornography of Death", publicado em 1995 na revista Encounter, e republicado como apêndice em Gorer (1963). Segundo Ariès (1974), Gorer teve o mérito de ter sido o primeiro a formular a regra moral da interdição da morte, da visão da morte como tabu, presente na civilização industrial.

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70 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A categoria de morte interdita para Ariès (1983) compreende as

modificações por que vem passando a sociedade ocidental na

contemporaneidade. Outras três categorias analíticas ajudam a

compreender a sociedade ocidental em sua história das modificações na

sensibilidade sobre a morte. A primeira, denominada de Morte Domesticada,

parece percorrer o ocidente até o século XII.

Nesta categoria, a morte tendeu a ser simultaneamente familiar,

próxima e indiferente, e implicava uma certa concepção coletiva do destino

de todos e de cada um. Os mundos dos vivos e dos mortos configuram-se

no comungar uma certa familiaridade e coexistência, embora a vizinhança

com os mortos fosse temida. Por isso os rigores dos cultos funerários, como

uma forma de impedir que os mortos retornassem para perturbar o mundo

dos vivos.

A segunda categoria é denominada por Ariès como Morte de Si

Próprio. Ela começa a aflorar na sociedade ocidental durante a segunda

Idade Média, a partir dos séculos XI e XII. São modificações sutis que vão,

pouco a pouco, conferir um sentido dramático e pessoal à familiaridade

tradicional do homem e da morte.

Nesta categoria está presente a idéia e o sentido do Juízo Final, como

uma separação dos justos e dos condenados, e a idéia da ressurreição dos

mortos. Idéia, no final do século XIII, ligada a idéia de uma biografia

individual.

A construção desta idéia orientou as novas características de se

pensar o indivíduo na sociedade terrena e celestial e houve uma inclinação

para situar o Juízo Final não no final dos tempos, mas no próprio quarto do

moribundo. São desta época os livros de etiqueta sobre a maneira de morrer

bem, chamada de artes moriendi, dos séculos XV e XVI.

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71 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Estes tratados, elaborados em interfaces de gravuras e legendas,

começam a indicar a presença de Deus e sua corte no quarto do agonizante.

Presença que tinha o sentido de verificar como este indivíduo iria se

comportar no decorrer da prova que lhe é proposta antes do seu último

suspiro, e que vai determinar a sua sorte na eternidade.

A iconografia das artes moriendi, deste modo, representam um

movimento de passagem entre um rito coletivo e uma inquietação pessoal.

Ainda essencialmente parte de uma ação cósmica, comum a todos,

estabelece, cada vez mais, uma estreita relação entre a morte e a biografia

de cada vida singular.

Esta atitude tende a persistir até o século XIX. Neste, a solenidade

ritual da morte no leito tomou um caráter crescentemente dramático e

emocional, que antes não possuía. Ao mesmo tempo que reforçou o papel

do moribundo nas cerimônias de sua própria morte.

Neste período também acentua-se uma espécie de horror da morte e

da decomposição do cadáver. A decomposição e assemelhada à ruína do

homem, sentido específico do macabro, e à noção de fracasso. Fracasso

entendido enquanto certeza da morte e da fragilidade da vida.

A morte sempre presente no interior de si mesmo dava ao homem do

final da Idade Média uma paixão pelo viver e um apego apaixonado às

coisas e aos seres possuídos durante a vida. O processo de morrer foi

configurado e converteu-se, então, para este homem, no lugar por

excelência onde poderia possuir uma melhor consciência de si mesmo.

A terceira categoria analítica para demonstração das atitudes do

homem ocidental perante a morte e o morrer na história, de Ariès, intitula-se

a Morte do Outro. A partir do final do século XVIII o homem ocidental parece

já se preocupar menos com a sua própria morte. A morte romântica aparece

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mais como a morte do outro. Este outro que, no decorrer do século XIX e no

século XX, tende a encarar a morte como uma espécie de transgressão.

Como um movimento e um momento inusitado que arranca o homem de sua

vida cotidiana para o submeter e o lançar a um mundo irracional, violento e

cruel.

Esse sentimento de ruptura, de transgressão, encara a idéia de morte

como um momento de beleza admirável. Por outro lado, se a morte no leito

rodeado de parentes, amigos e anônimos, ainda continuava como nos

antigos, ganhava no decorrer do século XIX um novo formato: a emoção que

toma conta da platéia que vela o moribundo. Choro, gritos, gesticulações

parecem ser inspiradas por uma dor causada por um sofrimento único. Por

um sentimento espontâneo, apaixonado.

A simples idéia de morte é comovente, a separação daqueles que se

foram se afigura como intolerável. Diferente dos sentimentos do morrer dos

períodos anteriores, na descoberta da morte do outro aprofunda-se na

mentalidade do homem comum a complacência com a idéia da morte. Bem

como a relação do moribundo com a sua família.

Para Michel Volvelle (1973) o período chamado por Ariès de

descoberta do outro se fez através da ampliação do processo de laicização e

revelou a emergência de uma nova atitude perante a morte e o morrer, que

ele chamou de descristianização. Mudanças caracterizadas por um menor

investimento na economia moral da salvação, e em uma ampliação do

sentimento individual em relação ao morto e à morte.

A atitude desta nova fase fundamenta-se com a ênfase nas palavras e

nos gestos do moribundo e no papel dos assistentes da agonia deste. Se

partir do final do século XVIII, o luto parecia obrigar a família a manifestar um

sofrimento pela morte do ente querido durante um certo período de tempo,

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73 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

ao mesmo tempo que a defendia contra os excessos de sua própria dor, no

século XIX, tem-se como que um exagero do luto.

Os enlutados parecem aceitar a morte do ente querido mais

dificilmente que em outros tempos, teme-se a morte do outro,

aparentemente, mais do que a própria morte.

Inaugura-se uma nova época do silêncio em relação à própria morte e

ocorre uma maior proliferação de representações sobre a morte alheia. A

morte alheia é exaltada, dramatizada, vista como impressionante e

arrebatadora. É a fase da morte romântica, em sua dimensão literária, e da

morte privada, recôndita, na esfera do cotidiano.

No final do século XVIII ocorreram mudanças significativas em

relação às atitudes diante da morte e dos mortos, período que corresponde a

intervenção da prática médica nas questões referentes à cultura mortuária.

Estas mudanças apontavam para uma conduta hostil em relação à

proximidade do moribundo e do morto.

Atitude aprovada e recomendada pelos médicos ao alegarem motivos

de saúde pública. Reforçada, também, pela redefinição das noções de

poluição ritual, presentes nos costumes e práticas do homem comum

contemporâneo a este processo.

A proximidade dos moribundo e dos mortos passa a ser considerada

perniciosa. O que reforça um conjunto de mudanças no imaginário e na

mentalidade sociais, que se expressam desde a presença de novas formas

de sensibilidade, até as práticas e hábitos de poluição e limpeza. Pela

redefinição, enfim, dos códigos de pureza e perigo, na expressão do

excelente livro de Mary Douglas (1976), orientadas mais por critérios

médicos e não religiosos, como até então vinham sendo demarcadas.

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74 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

As linhas de ruptura que parecem conter toda a periodização

realizada por Ariès em suas categorias analíticas das atitudes do morrer e

da morte no ocidente, afiguraram-se por ter, tendencialmente, se

desenvolvido lentamente durante toda a Idade Média até o final do século

XIX. Período que contém as três categorias analíticas agora em revista.

Linhas de ruptura que foram se configurando de forma tão lenta a

ponto de passarem quase imperceptíveis para os contemporâneos de cada

uma delas. Em todas elas, porém, parece se fortalecer o processo de

formação do indivíduo moderno. Movimento de constituição que caminhará

até a manifestação de uma linha de ruptura que se aprofundará durante o

século XX, e se caracterizará pela grande recusa da morte na

contemporaneidade. A Morte Interdita. A morte considerada vergonhosa e

objeto de um interdito.

A Morte e o Morrer no Brasil

Será que as categorias analíticas de Ariès construídas para o estudo

da sociedade ocidental industrializada acima passadas em revista, ajudam a

compreender o caso brasileiro? De um lado, pode-se argumentar que o

Brasil é fruto de um processo colonizador e produto da própria maturação e

caminhar da Europa Ocidental deste o século XVI. Neste caso, o Brasil faz

parte do espólio e do legado europeu, sendo parte integrante, portanto, do

mundo ocidental moderno e contemporâneo. De outro lado, porém, no

processo formativo da nação brasileira, certos traços e conformações do

passado que emolduram as relações travadas internamente desde a sua

gestação permanecem, marcando sua singularidade enquanto cultura e

organização social, a cada momento e movimento societal.

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75 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Rupturas e continuidades configuram as possibilidades históricas de

conformação da sociedade brasileira. Para os estudiosos, assim, é

buscando os vínculos passados ainda existentes no presente, e perguntando

o porque ainda de sua existência, real, imaginária, ou redefinida, que se

possibilita a compreensão e o detectar não apenas da história social desta

formação social, mas também o jogo cultural, político e econômico das

forças sociais em movimento internamente e suas relações internacionais.

Forças internas que remetem, refletem e reconstroem continuamente

a singularidade e a especificidade de sua experiência cultural, ao mesmo

tempo que fundam e são fundadas por relações internacionais presentes

desde seu processo gestativo e formativo. Nada mais nada menos, que

frutos de legados, trocas e embates estabelecidos com culturas e

organizações societárias fundamentais a sua construção enquanto povo e

nação. Bem como os projetos, desejos, sonhos e lutas que orientam

rupturas e conformações novas sobre o já anteriormente instituído.

Neste sentido, as categorias de Ariès construídas para entender as

atitudes perante a morte e o morrer na Europa e nos Estados Unidos, ou nos

países industrializados do ocidente, servem também para informar sobre a

cultura funerária no Brasil. Pelo legado europeu e de seu embate com outras

culturas presentes, como a africana e a indígena, que influenciou a formação

do país desde a colônia, e as relações estabelecidas internacionalmente

após sua independência. Bem como à instituições internacionais, como as

Igrejas, principalmente a católica, presentes na conformação do pensamento

ocidental no seu veio judaico cristão, e as idéias e ideais culturais, estéticos,

acadêmicos, científicos e tecnológicos do ocidente, que influenciaram os

embates presentes na configuração e consolidação de um pensamento

nacional.

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76 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

É impossível, assim, buscar uma compreensão de um pensamento

brasileiro e das atitudes de sua população, sem situar a história de sua

singular formação social a nível internacional, especificamente, ligado à

cultura européia.

Para situar as atitudes em relação à morte no Brasil, se passará aqui,

em revista, alguns trabalhos de historiadores que se debruçaram

principalmente no século XIX de nossa história. Século entendido como

fundamental para compreensão dos rumos traçados para os processos no

desenvolvimento e consolidação do indivíduo e da sociedade

contemporânea ocidental e, aqui, especificamente, brasileira.

Os autores que ajudarão a elaborar uma breve síntese do século XIX

brasileiro sob a perspectiva comportamental em relação a morte e aos

mortos neste capítulo são, entre outros, Gilberto Freyre (1961 e 1977),

Frédéric Mauro (1980), João José dos Reis (1991 e 1997), Claudia

Rodrigues (1995), Sandra P.L. Camargo Guedes (1986), Ariosvaldo da Silva

Diniz (2001) e Lenilde Duarte de Sá (1999). Autores que, ou trataram

diretamente da questão das atitudes perante a morte e o morrer no Brasil ou,

ao retratarem o cotidiano do século XIX, tocam e apontam movimentos para

mudança nos costumes e representações no interior da cultura mortuária no

país.

Para a maioria dos autores aqui trabalhados, a morte até meados do

século XIX no Brasil era vista como uma espécie de rito de passagem entre

a vida física e a vida atemporal após a morte. Comandados pelos rituais e

crenças religiosos, o sentimento e o agir em relação a morte e o morrer eram

orientados no sentido de uma busca de garantia de um bom lugar na vida

eterna, e neste sentido, para uma preocupação com a preparação individual

para se morrer bem.

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77 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A noção de boa morte presente sobretudo no imaginário cristão

católico desde a idade média européia, está baseada em uma estrutura

imaginária de troca. Estrutura imaginária esta, onde os valores simbólicos

afiguram-se como sendo inseparáveis dos resultados materiais e sociais que

a permeiam e os fins que persegue.

É formada por uma rede de relações complexas entre o moribundo,

os que o sobrevivem, sobretudo os parentes e amigos próximos, entidades

como a Igreja, intermediária fundamental entre os vivos, os mortos e a

eternidade, e o sobrenatural, com toda a sua rica hierarquia e estratificação.

Além dos pobres, considerados "substitutos terrestres dos mortos, pois as

esmolas que lhes são dadas fazem parte dos 'sufrágios' que ajudam na

salvação dos defuntos. Alimentar materialmente os pobres equivale a

'alimentar' simbolicamente, com preces, a alma penada do doador que está

morto" (SCHMITT, 1999, p. 50).

A busca de morrer bem está associada assim as estratégias lançadas

por alguém em vida, - ou mesmo depois de morto, através de aparições, por

exemplo, - para livrar-se da morte eterna. A morte eterna é uma noção

extrema, na complexa simbologia cristã. Segunda esta, no Juízo Final, os

mortos ressuscitarão após um julgamento divino particular de cada pecador.

Aqueles condenados ao inferno não ressuscitarão, condenados que estão

ao fogo eterno.

A idéia de morte após a morte está ligada assim a idéia de inferno. Na

geografia celeste (REIS, 1997, p. 97), os puros de espírito ganharão a vida

eterna e o reino dos céus. Os sem possibilidade de salvação, a morte

eterna, simbolizada pelo inferno. Esta dicotomia é quebrada, a partir do

século XII, por uma instância intermediária chamada por Jacques Le Goff

(1981, p. 386) de "Inferno Temporário", que dá forma a idéia de purgatório.

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78 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A idéia de purgatório, ou seja, a idéia de uma instância intermediária

entre o céu e o inferno, entre os bons e os irrecuperáveis surge em um

momento onde o imaginário sobre os mortos deixa de lado um espaço onde

se pensa a coletividade, como o exército de mortos, por exemplo, para

concentrar-se cada vez mais no morto particularizado, individualizado. Um

lugar fixo para as almas penadas, - que necessitam, entre outras coisas, de

preces, velas, presença na memória e nos sacrifícios dos vivos, para

alcançarem a vida eterna, id est, a salvação.

Essa concepção de um lugar intermediário como um lugar de almas

em processo de purificação, através da noção de purgatório, permite não

apenas situar o morto como um ser individualizado, mas também possibilita

uma certa tranqüilidade aos vivos. As almas penadas não saem mais em

exércitos a vagar pelo mundo horrorizando os vivos, eternamente, sem ter

um lugar para ficar, um "domicílio fixo" (SCHMITT, 1999, p. 146).

Não que elas deixem de fazer aparições a indivíduos ou grupos de

indivíduos específicos, a procura de rezas, e de se fazerem lembrar aos que

ficaram, mas agora, elas tem um local de moradia, para onde vão e voltam.

Quem sabe, também, a partir das orações, missas, penitências, e

cumprimentos dos vivos das promessas e dívidas do morto, bem como de

esmolas ofertadas aos pobres da região, não cumpram sua parte da dívida,

e consigam a vida eterna através da purificação dos seus pecados.

A criação imaginária do purgatório, assim, possibilitou, de um lado, a

emergência da alma individualizada que pode ser purificada dos seus

pecados. O que significou uma chance para a salvação de muitos vivos

quando no chegar de sua hora. De outro lado, permitiu também um maior

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79 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

intercâmbio e solidariedade entre os vivos e os mortos27. Através de orações

e ações penitenciais dos vivos poderia ser conseguido a salvação dos

mortos, presos nesta região de passagem, chamada de purgatório. Bem

como, as almas no purgatório também poderiam aparecer aos vivos para

avisá-los e, quem sabe, salvá-los, de algo que no futuro imediato poderia

acontecer-lhes, ou de suas mortes, para que pudessem ir se preparando,

enquanto ainda estavam com vida e saúde.

Este contato entre vivos e mortos se amplia na Europa entre os anos

1000 a 1300, segundo Le Goff (1981) e Schmitt (1999), e é bastante comum

no Brasil do final do século XVIII e boa parte do século XIX, segundo Reis

(1991), Rodrigues (1995), Guedes (1986), indo, se acompanharmos a

análise de Roberto DaMatta (1987), até meados da década de sessenta do

século XX e, quiçá, até os dias de hoje, em algumas comunidades

espalhadas pelo solo brasileiro. A preparação da e para a morte era sentida

como uma espécie de normalidade cotidiana, bem como os estreitos

vínculos entre os vivos e os mortos, e a ingerência dos vivos na salvação e

purificação das almas do purgatório. A vida e a morte, embora entendidas

como dois mundos, faziam parte de um mesmo imaginário social, e nele e

sobre ele mantinham um intercâmbio e uma busca simultânea para ajudas e

satisfações pessoais, quer dos vivos, quer dos mortos.

27

A proximidade entre vivos e mortos no Brasil de oitocentos é analisado por Bastide (1971), não apenas com base na prática católica, religião dominante e oficial do país de então. Mas também, e principalmente, por uma comparação entre as concepções católicas e a cosmogonia e concepções sobre o outro mundo trazidas pelos africanos no exílio brasileiro como escravos. Demonstra que, apesar da força da Igreja Católica, muito dos rituais e concepções sobre a morte e os mortos do catolicismo foram impregnadas no Brasil pelas noções trazidas pelos africanos no país. Bem como, rituais africanos foram transvestidos e incorporaram práticas e valores do catolicismo vigente. Apesar de frisar que, sem qualquer dúvida, as regras católicas predominassem no lado público, especialmente, dos funerais. Ver, também, Santos (1986) e Reis (1991).

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80 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Com a idéia de uma salvação personalizada, a cada alma individual, o

julgamento final era pensado e realizado pela presença do reino celestial

junto ao leito de cada moribundo. Estágio analítico correspondente à

categoria de morte domesticada de Ariès (1983).

No Brasil, este processo invade o século XIX. Com a proximidade da

morte sentida por um indivíduo qualquer, este reunia os familiares, parentes,

amigos, conhecidos e desconhecidos, além de pobres e mendigos, em seu

quarto, onde passava em revista a sua vida. O quarto do moribundo era o

lugar por excelência onde se realizava o julgamento celestial de suas culpas

e acertos.

A preparação para a morte, assim, no caso brasileiro, era vista como

fundamental para se conseguir a salvação ou a vida eterna. No século XIX, a

morte boa era a morte avisada. A doença não era considerada um mal

pessoal, mas um aviso celeste para o indivíduo preparar-se para morrer.

Fatídica e temerosa era a morte súbita. Aquela que retirava de entre

os vivos um ser, repentinamente. Segundo Reis (1997), este tipo de morte

era temida pela população brasileira nos oitocentos, por vir sem a

possibilidade de acompanhamento de uma preparação pessoal e dos rituais

exigidos e necessários na cultura fúnebre da época. Este tipo de morte

parecia querer atestar a necessidade de ampliação dos esforços dos vivos

para a salvação daquela alma que se foi sem o tempo de preparação.

Era tida como mal presságio pela sociedade do século XIX. A

sociedade brasileira dos oitocentos olhava de viés os familiares de um morto

súbito, e os levavam a uma prática penitente muito mais aguda para salvar

não só a alma do que se foi, mas o mal familiar exposto, e que colocava em

perigo toda a comunidade, pela situação de risco anunciada pela morte

repentina do parente morto.

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81 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Sociedade, instituições familiares e religiosas e o mundo do além,

deste modo, estavam em perfeito estado de entrosamento. Entrosamento

este que não quer dizer harmonia, mas requer o pensamento em uma forma

de solidariedade movida a tensões e disciplina dos corpos e das mentes à

uma política e à uma cultura fincadas no equilíbrio de espaços temporais,

existentes na tênue demarcação entre o tempo dos vivos e dos mortos.

O momento de passar em revista as ações e as omissões junto ao

reino celeste, significava também para o moribundo, no seu leito de morte,

rodeado de próximos e desconhecidos, preparando-se para a sua morte em

breve, um tempo de fazer justiça (REIS, 1997, p. 103 e 104) e de reparar

moralmente pessoas ou instituições por ele difamadas, negadas ou

negligenciadas em sua vida cotidiana. O preparar-se para a morte era assim,

também, um reparar ações e omissões realizadas ao longo de uma vida,

como além, a realização de um inventário de seus esteios, bens e afetos

conquistados no decorrer de seu percurso como homem.

Era, assim, sobretudo, um saldar as dívidas e os compromissos no

social28. Sociedade dos vivos e dos mortos eram, deste modo, intricadas, na

preparação de um ser para a morte e na idéia de salvação nelas

incorporadas.

O cenário por onde se movimentava a morte representava, neste

período, sobretudo, uma manifestação social (ARIÈS, 1983, p. 110). Era o

cenário da Morte Domesticada.

Construção cênica que trazia e punha em ação, como ator principal, o

moribundo no seu julgamento pela corte celestial. A ele secundando padres,

familiares próximos e distantes, amigos e conhecidos e o público em geral. A

28

Ver, para uma análise comparativa sobre esta questão, entre o Brasil dos séculos XVIII e XIX e Portugal da Idade Média, o texto de Marques (1974).

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morte era vista e sentida como um acontecimento social, e não deveria ser,

idealmente, uma morte repentina, solitária, privada.

Este aspecto de acontecimento social era importante para o trespasse

do morto, na cultura funerária da época, pois o público em volta do

moribundo não apenas testemunhava a sua boa morte, mas e sobretudo, o

ajudavam com suas preces e penitências "ao pé do morto"29. A

sociabilização dos processos do morrer, assim, no Brasil oitocentista, pode

ser pensado como fruto de uma sociedade relacional e pouco individualista,

nos dizeres de Roberto DaMatta (1983). Sociabilidade esta ainda não

reduzida ao núcleo da família nuclear, locus por excelência da morte

privada.

O processo de privatização da morte e do morrer foi se instalando

paulatinamente no Brasil do século XIX, através de uma separação da idéia

do destino do cadáver e do destino da alma. Segundo autores como David

(1995), Diniz (2001), Sá (1999), que trabalharam a relação saúde e

sociedade no Brasil com enfoque na epidemia do cólera no século XIX nos

estados da Bahia, de Pernambuco e da Paraíba, a sensibilidade do homem

do final dos oitocentos parece mudar para uma nova forma menos apegada

aos domínios do sagrado e mais ligada as coisas profanas.

Sá (1999, p. 47), por exemplo, ao retratar as discussões entre

higienistas, sociedade e poder local na cidade da Parahyba do Norte, hoje

João Pessoa, no estado da Paraíba, durante a segunda metade do século

XIX, fala de uma linguagem híbrida do sagrado e do profano que marca as

entrelinhas do discurso que sugere a necessidade do processo de

29

Expressão utilizada por um entrevistado ao falar da diferença do ritual da morte entre o 'antigamente' e o 'hoje'. É interessante notar que o 'antigamente' levantado pelo entrevistado não se refere ao século XIX, mas ao final dos anos quarenta e o correr dos cincoenta do

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urbanização da cidade em sua relação com uma atitude enérgica de

desenvolvimento de práticas sanitárias de caráter público. Linguagem

híbrida que paulatinamente começa a tornar-se, cada vez mais, técnica e

racional, deixando de lado as recorrências à 'castigos dos céus' e outras

referências ligadas ao sagrado, quando o discurso médico vai se tornando,

com o avanço da epidemia, em discurso oficial do poder.

No final do Império no Brasil e no raiar da República, segundo os

autores citados, parece que os limites de tolerância do olfato se tornaram

mais rebuscados. Esse aumento de sensibilidade30 era verificado

principalmente com relação aos locais onde se percebiam aglomerados

humanos, vivos ou mortos. Médicos, higienistas e homens do poder, deste

modo, descobriam os espaços e lugares onde residiam ou se entulhavam

corpos capazes de provocar doenças em outros corpos.

Cemitérios, hospitais, ruas, portos e prisões, bem como bairros

periféricos onde se aglomeravam a pobreza urbana no Brasil, passavam a

ser objeto de inquietações e buscas de ordenamento (KOURY, 1986). Como

o fizeram no final do século XVIII os protagonistas do discurso higienista na

Europa, de onde se originaram e foram influenciados os discursos e práticas

higienistas brasileiros.

A morte e o morrer passam, assim, também, a sofrer modificações na

prática cotidiana dos homens brasileiros dos oitocentos. Esta relação,

contudo, começou a vir a ser revelada, com mais ênfase, a partir da segunda

metade do século XIX, ligada, sobretudo, ao aumento do contigente

século XX, por ele vivido como adolescente na cidade de Vitória, estado do Espírito Santo. (Entrevista N. 200). 30

Ver a excelente discussão sobre a construção social dos sentidos em Ackerman (1992).

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populacional no país, agravando os problemas da sua incipiente

configuração urbana

Talvez motivados pelas epidemias e mortes acentuadas, tornando

cada vez mais técnico e racional o trato e o lidar com a morte e o morrer, o

processo da morte passa também por uma reconfiguração e um

distanciamento das práticas e costumes comuns até então de

acompanhamento público do moribundo até a sua morte, do seu velório,

cortejo fúnebre e sepultamento.

Uma maior brevidade entre o morrer e o sepultamento é verificado

nos novos costumes que passam a viger, mesmo que ainda cheios de

ambivalência e certa relutância no deixar de lado as velhas práticas e

hábitos comportamentais. O medo da morte, porém, compromete o

prosseguir das velhas práticas e as mudanças para novas formas de

sensibilidade começam a se impor.

A doença deixa de ser vista como um aviso de bom presságio de uma

boa morte e de um aceite no reino celeste, e começa a ser encarada como

ameaça de morte de um outro para outros. Torna-se uma ameaça a ser

combatida com vigor, deslocando-se do discurso médico e higienista, e do

discurso do poder que o incorpora, e passando, gradualmente, a fazer parte

do imaginário e da mentalidade do homem comum brasileiro do final dos

oitocentos até próximo aos anos cincoenta e sessenta do século XX, quando

começa a se consolidar enquanto atitude.

O corpo morto também deixa de ser objeto de veneração e de

atitudes rituais demoradas e próximas dos entes queridos, vizinhos, amigos

e público em geral, e passa a ser prognosticado como corpo contaminado e

que contamina a quem dele tiver contato. Os odores que dele emanam,

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como corpo morto, ou mesmo como corpo doente, moribundo, passam a ser

evitados como possíveis de contaminação31.

A morte vira um questão sanitária. Deixa de ser social, no sentido

complexo da subjetividade dos sujeitos nela envolvidos, - o moribundo, os

familiares, as instituições, o público em geral, toda a sociedade, enfim, -

enquanto rede de relações simbólicas e afetivas, e passa a ser uma questão

técnica de controle higiênico para a vida.

Deixa de ser um elemento natural de um ciclo de vida, e começa a ser

considerada como algo anormal, como um objeto não solucionado pela

tecnologia médica do momento. Inicia-se, deste modo, o longo processo em

que a morte começa a ser negada e vista como um constrangimento social

pelo homem urbano no Brasil.

A Morte e o Morrer no Brasil Contemporâneo

A sociedade brasileira no século XX passou por profundas

modificações no seu perfil populacional, social e econômico. Um período

intenso de mudanças se configurou na década de vinte, onde as cidades

começaram a adensar-se em termos populacionais, e um surto de

modernização teve início, com políticas urbanas de embelezamento,

saneamento, e adequação dos veios de circulação de produtos mercantis e

humanos, que melhor se adequassem as exigências do capitalismo

internacional no momento.

Um segundo ciclo de mudanças aconteceu a partir dos anos

cincoenta, com a política desenvolvimentista do Governo Kubtscheck e a

31

Essa relação é, concomitantemente, estendida aos pobres e aos locais de pobreza, que passam a ser vistos como locais contaminados e perigosos que precisam ser higienizados (ver, KOURY, 1986, entre outros).

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política de industrialização e modernização da economia brasileira a ela

conseqüente. Neste momento, a população brasileira começou a deixar de

ser predominantemente rural, e passou cada vez mais a concentrar-se nas

cidades, principalmente nos grandes centros urbanos e nas capitais dos

estados.

Processo que se consolidou e se expandiu a partir do golpe militar de

1964, e principalmente dos anos setenta. De acordo com o Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a população urbana da década

de cincoenta correspondia a 36,16 % da população brasileira, passando na

década de sessenta a representar 44,67 %, na década de setenta, 55,92 %,

na década de oitenta, 67,60 % (IBGE, 1987), na década de noventa, 75,60

% (IBGE, 1996 e 1997) e no ano 2000, 81,23 % do total da população

(IBGE, 2000).

Esta mudança acelerada nos padrões estatísticos do país modificou

não apenas os padrões econômicos, que passam a concentrar nos esforços

industriais e de serviços os aspectos do seu desenvolvimento, bem como em

uma agricultura e pecuária cada vez mais intensiva e mecanizada, mas

também, e principalmente, para os objetivos deste trabalho, os padrões

sociais e culturais existentes. A mudança rápida de uma tradição rural para

uma urbanidade desordenada e intensa, parece atingir em cheio hábitos

comportamentais, dilacerando práticas relacionais comunitárias e

provocando sentimentos díspares e ambivalentes quanto ao papel a

desempenhar em situações concretas do dia a dia da existência societária.

É importante assinalar, também, que esta passagem brusca de um

estatuto rural populacional para uma urbanidade em processo rápido e

acelerado de concentração, veio acompanhada também por uma

centralização provocada, sobretudo, pela concentração dos serviços

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informacionais e de mídia em pólos específicos, centrados no eixo Rio de

Janeiro e São Paulo.

Padrões de comportamento e atitudes locais passam a ser

abandonados ou modificados segundo regras ditadas pela concentração

excessiva de informações, principalmente com a expansão da televisão em

rede nacional no país a partir da década de setenta. O chegar à cidade vem

acompanhado também por um processo de exclusão econômica para uma

grande parte da população em processo contínuo migratório, principalmente

para os grandes centros urbanos. Expulsos do campo vão para as cidades

em busca de empregos e sobrevivência, atraídos, a partir da década de

cincoenta e principalmente, da década de setenta e oitenta pela ilusão de

empregos industriais e pela expansão da construção civil em processo

acelerado no país.

As cidades se expandem, a miséria da maioria da população

aumenta, ao mesmo tempo que se amplia uma classe média sequiosa de

novidades e buscando se desprender de padrões culturais e hábitos

comportamentais considerados pela mídia como não atinentes aos padrões

civilizados de uma urbanidade ocidental.

Nos anos noventa, principalmente, esta tentativa de inclusão, ou

melhor, do sentimento de fazer parte de uma modernidade ocidental, tendo

como parâmetro a sociedade americana, é acentuada. A necessidade de

incorporar-se a padrões culturais e comportamentais globais de

desempenho e competitividade, parece ter tomado conta de grande parcela

da classe média nacional, ampliando as margens de desclassificação de

hábitos considerados não condizentes a padrões civilizatórios e urbanos da

modernidade mundial, e aumentando a ambigüidade do homem comum

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sobre o como, onde e porque comportar-se nas situações de fronteira

enfrentadas no cotidiano da vida social.

Parece que o embaraço de ser confundido comportando práticas

comportamentais ou costumes considerados tradicionais ou interioranos

tomou conta de uma parcela crescente da classe média que, embora ainda

possam estar ancorados em tais hábitos tendem a expressar um certo

desprezo por eles. O que vem ampliando a ambigüidade de suas ações,

bem como, acentuando um certo sentido de não pertença que os tornam

cada vez mais solitários e com dificuldades de expressão de emoções

pessoais ou frente a outros.

O grande problema, no caso brasileiro, desta mudança nos costumes,

de uma tradição rural para uma tradição de urbanidade importada das

práticas vividas pelos países ocidentais, considerados de primeiro mundo,

parece ser o da rapidez com que vem se dando tal processo. Os estratos

médios desta sociedade, sobretudo, vem se configurando através de uma

tendência a uma incorporação das matizes de modernidade do

comportamento ocidental contemporâneo, com ansiedade e com uma

pressa incomensuráveis32.

Elias (1990 e 1993), analisa o processo civilizador europeu, e a

caminhada do ocidente para a modernidade do que viria a ser o capitalismo

atual, através do conceito de vergonha ou embaraço. Para ele, este

movimento de sentidos se faz a partir de uma mudança lenta na "maneira

como o indivíduo comporta-se e sente" (1990, p. 14). Modificações que

começam a tomar forma deste o século XIV na Europa e que, a partir do

32

Se si toma que a inclusão ao moderno se amplia à camadas mais extensas da população brasileira, principalmente, a partir dos anos setenta do século XX. Diferente do que anteriormente se dava, até os anos sessenta, fruto de pequenos grupos de elite político e

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89 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

século XVIII, tornam-se, cada vez com mais força, em marca característica

do mundo ocidental, na sua forma de uma necessidade de um exercício de

um “controle dos sentimentos individuais pela razão” (ELIAS, 1990, p. 34),

tanto entre a classe média burguesa quanto entre os cortesãos. O que

tornaria a noção de vergonha em um conceito chave para a análise dos

costumes e práticas da civilização ocidental.

Este mesmo argumento ele vai tomar um pouco depois, na sua

análise sobre o papel da velhice e do envelhecimento na sociedade

moderna. Nesta análise ele afirma que, embora a tendência a um controle

de sentimentos fosse vindo sendo construída lentamente na sociedade

ocidental, tomou uma forma de estranhamento e solidão do indivíduo comum

e do outro, a partir dos anos cincoenta do século XX, de forma abrupta e

vertiginosa (ELIAS, 1989), tornando qualquer expressão de emoção em uma

atitude embaraçosa em uma relação social qualquer.

Ariès (1966, 1967 e 1972), também, em seus estudos sobre o

comportamento do europeu contemporâneo em relação a morte e ao morrer,

e nas expressões de sentimentos públicos seja quanto a formas de

exposição do sofrimento pessoal ou de demonstrações de afeto e

solidariedade, coloca os anos cincoenta do século XX como um momento de

exacerbação da vergonha no público, e de um sentimento de embaraço em

não saber como expressar-se em determinadas situações, pelo homem

comum. O que parece, ampliar o grau de isolamento do sujeito em si

mesmo, associado a uma atitude de ambivalência pessoal em querer buscar

o outro e se sentir tolhido socialmente por uma demonstração de

necessidade de carinho ou de expressão de solidariedade, e de uma

econômica, culturalmente sempre buscando se aproximar dos ideais culturais de um padrão de comportamento europeu.

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90 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

falência da sociedade atual na administração ritual das emoções, tornando-

as não sociais em si.

Os dois autores, contudo, embora tomem a segunda metade do

século XX como o momento de verticalização da tendência atual da atitude

de solidão e estranhamento do homem comum na sociedade ocidental,

partem da constatação e da construção histórica da mudança dos costumes

nesta sociedade, como vindo se fazendo dos finais da idade média em

diante. A surpresa dos dois autores ao analisarem a contemporaneidade

ocidental, fica pela rapidez com que evoluiu o embaraçar-se do homem

comum no publico, enquanto expressão ou afirmação dos sentimentos, nos

últimos cincoenta anos do século XX.

No Brasil, embora se possa verificar nos anos finais do século XIX

uma mudança nos padrões de comportamento e do sentimento em relação à

morte e ao morrer, como foi visto acima, essa mudança atingiu

principalmente uma pequena parcela da população que vivia nas cidades,

com o abrandamento dos rituais de despacho do corpo e da importância da

tecnologia médica em crescendo sob suas vidas. É a partir dos anos setenta

do século XX, porém, que a população urbana no Brasil ultrapassa a rural,

com a ampliação de uma classe média que buscava ajustar-se a um novo

patamar de realidade, aproximando-se com relativa rapidez, das

experiências civilizatórias européia e americana.

Esta aproximação se fez a partir de um negar crescente dos costumes

a que estava habituada até então, havendo um progressivo rompimento com

as práticas relacionais em que foi criada e consideradas, agora, como

interioranas. O que ocasionou um paulatino desbravamento de caminhos

para buscas de individualidades dos sujeitos. Formas de individualidade que

começaram a impor-se como padrão comportamental. Individualidade esta

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considerada como padrão de civilidade, de liberdade do indivíduo frente a

sociabilidades em que estava emerso.

Os anos setenta e meados dos anos oitenta são prenhes de

experiências de padrões individualísticos de comportamento no Brasil. Estas

experiências são vivenciadas, principalmente, entre a classe média urbana,

após a derrocada do movimento de resistência a ditadura militar implantada

em 1964, e o aparecimento, de um lado, de movimentos de contra cultura,

como forma de resistência nova ao regime autoritário em vigor, e de outro

lado, de espaços de integração, pelo crescimento de mercados, pela

constituição de uma mentalidade tecnocrata-empresarial de carreiras

executivas, e através da consolidação e da reforma do ensino superior nas

universidades públicas no país, com a implantação em larga escala da pós

graduação e formação de pesquisadores no exterior.

Estes dois momentos, simultâneos, identificam as mudanças nos

campos comportamental e cultural e as formas em que se deu e se dirigiu a

expansão da classe média urbana brasileira nos últimos trinta anos, bem

como permite compreender a crise por que passa esta mesma classe média

do final dos anos oitenta e no decorrer de toda a década de noventa,

penetrando no século XXI33, de identidade e busca de adesão a um padrão

globalizado ocidental.

33

Os anos oitenta são considerados pelos economistas como a década perdida no Brasil. Esta década afoga, também, as esperanças de uma ampliação da sociedade em bases democráticas, com a falência da campanha de eleições diretas e a possibilidade de participação social nas grandes esferas da política nacional. Por outro lado, a crise econômica que avança no Brasil da década de oitenta e se prolonga por toda a década de noventa, tem reflexo, principalmente, na classe média urbana. Baixos salários, desemprego, falta de perspectiva para realização de projetos sociais, faz com que tenha inicio uma diáspora nacional, com um aumento significativo de indivíduos oriundos da classe média, com grau superior, que vai tentar ganhar a vida como clandestino em países desenvolvidos da Europa e, principalmente, dos Estados Unidos.

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92 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Diferente das análises realizadas para a Europa por Elias e Ariès, no

Brasil o processo de individualização e perda de referenciais e valores

culturais comunitários vividos pela classe média urbana é recente e vertical.

O que parece criar uma ambivalência de sentimentos muito grande entre

esta parcela de habitantes, tanto na defesa de uma atitude radical

individualista, quanto na defesa de padrões de um passado recente perdido.

Muitas vezes ficando em um meio termo, perigoso, de não saber como agir

em determinadas situações concretas.

Se na Europa, as formas de comportamento e mudanças no costume

funerários chocou Ariès como especialista no assunto, com o ritmo

acelerado que tomou a partir dos anos cincoenta do século XX, no Brasil,

pelo rompimento agressivo com que foi realizado, de uma passagem brusca

de uma solidariedade rural para uma solidariedade urbana em moldes

competitivos a partir dos anos setenta, principalmente, acelerando-se nas

décadas seguintes, o caminho por que se processou o rompimento de

valores culturais entre a classe média, parece ter ampliado, ainda mais, o

grau de ambivalência e embaraço do homem comum de classe média

urbano, quanto comparado ao mesmo homem europeu.

A quebra de valores integrativos refletiu e configurou-se, também, e

principalmente, no abrandamento, ou mesmo na exclusão de padrões

ritualísticos em momentos de crise vividos pelo homem comum brasileiro,

urbano, de classe média. Os rituais, segundo Hughes (1980, p. 68), são

instituídos com a finalidade de superação de momentos de crise vividas

individual e socialmente em uma forma de sociabilidade dada. Para ele,

quando os rituais instituídos em uma sociedade dada já não mais

correspondem aos valores socialmente expressos pelos habitantes ou, em

suas palavras, "aos ciclos e graus de sentimento que acompanham as

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crises que se pretende que eles façam superar, dir-se-ia que algo está

desorganizado".

É o que parece corresponder ao sentimento do homem comum

brasileiro, urbano, de classe média, neste início do século XXI. A pesquisa

perguntou aos entrevistados a sua noção sobre os conceitos de morte e de

morrer, bem como as atitudes que deveriam ser tomadas por aqueles que

viveram ou conviveram com esta situação limite. Seja como parente próximo

ou distante, seja como um outro da relação.

É interessante observar que, em muitos casos, as narrativas dos

entrevistados e dos respondentes dos questionários vagavam entre

possibilidades as mais diversas. Esta possibilidades variavam desde a

afirmação de uma negativa aos padrões por eles considerados tradicionais,

passando pela expressão de um sentimento de perda de um passado que,

parece, não mais ser possível voltar, e indo até a uma afirmação situada

entre as duas primeiras categorias, de modo ambivalente. O que afigurava,

nesta terceira alternativa, uma sensação de maior embaraço pessoal e um

sentimento de isolamento na expressão de suas emoções.

Sobre a conceituação do que é morrer, como se pode observar no

Quadro N. 13, anexo, dos 1304 informantes que responderam ao

questionário, 40,49% expressaram a noção através de um lacônico e

definitivo "findar", contra 47,55% que responderam com uma possibilidade

de alternativa para uma outra vida, através da caracterização do morrer

como "uma passagem". O morrer visto como "algo que não deveria

acontecer", foi respondido por 11,96% dos informantes, como se,

acontecendo, pudesse ocasionar, não apenas o sofrimento e o posterior

afastamento definitivo dos entes queridos mortos, mas e principalmente, que

causaria profundas mudanças no cotidiano da vida de cada respondente. O

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94 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

que dificultaria sua integração com a vida social e com o próprio sentido de

viver.

O mesmo acontecendo com as respostas à noção de morte. Como se

pode ver no Quadro N. 14, também anexo, a morte é considerada como o

"fim da existência" por 41,18% dos informantes, e como "transição" para

uma outra vida, por 41,26%. 17,56%, por outro lado, se colocam estupefatos

com a possibilidade da morte e do vazio por ela causado ou que poderia

provocar, informando não um conceito sobre a idéia de morte, mas um temor

sobre sua possível ameaça. Para estes últimos, "a morte não deveria

acontecer".

Interessante notar que uma parcela de aproximadamente seis por

cento dos informantes situam-se entre a informação da morte e do morrer

como uma "transição" ou "passagem" e a de que o morrer e a morte são

situações de ruptura que não deveriam ocorrer, conforme pode ser verificado

em uma análise comparativa entre os Quadros 13 e 14. Através dos códigos

de "passagem" ou "transição", os informantes afiguram querer expressar a

idéia da possibilidade de uma outra vida após a morte.

O morrer tendo um significado, assim, de um estágio preparatório

para a nova vida que se iniciaria com a morte. Idéia aparentemente

semelhante a existente no Brasil do final do século XIX , onde a noção do

morrer era tida como um estágio necessário ao homem, para passar em

revista a sua própria vida, como forma de garantir um local adequado no

além.

Aparentemente semelhante, porém, por vir despida hoje de grande

parte dos rituais que envolviam o moribundo. Que envolviam também, e

posteriormente, o morto junto com o lado público do acompanhamento do

trespasse, seja pela proximidade dos entes queridos, seja dos amigos e

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95 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

vizinhos e de um público em geral, e principalmente da Igreja. A semelhança

fica por conta da idéia religiosa, - principalmente do catolicismo, mas

também do espiritismo e de várias vertentes de religiões afro-brasileira, - a

ela inerente, e da noção de que a vida não se acaba com a morte, mas pelo

contrário renasce e se transforma em imortalidade.

Como informa o relato abaixo, de uma entrevistada, de 35 anos,

católica, da cidade de Goiânia, Goiás, sobre a diferenciação entre as noções

de sofrimento e desespero34: "Quando meu irmão morreu, sofri muito, chorei,

senti saudades, mas nunca me desesperei. Não é que eu seja de ferro ou

movida por determinações acima da minha pessoa. Meu marido, namorado

na época, até perguntou sobre os meus sentimentos e eu tentei explicar

para ele que eram profundos, que a dor da separação era física, era real!

Mas também que eu nunca achei que o meu irmão tinha acabado com a sua

morte. Não! Se eu assim achasse, eu teria me desesperado com a

impossibilidade do nada que a morte física pode encerrar. Eu acredito que a

morte seja um momento de transmutação para algo maior, eterno. Eu

acredito em outra vida, mais bonita e perfeita do que essa. O ser humano

não pode acabar assim, essa vida que vivemos é apenas um estágio para

uma vida superior... " (Entrevista n. 46)

Essa visão sobre o morrer e a morte, assim, vem impregnada ainda

de um sentido desindividualizante, que parece estar presente em parte da

população urbana, de classe média, brasileira. O apoio na crença de uma

outra vida, do sentimento de imortalidade, onde um pressuposto de

aceitação de um dogma de fé ultrapassa o sofrimento individual dos sujeitos,

reforça laços e atitudes relacionais, e de conforto ritual de uma parcela dos

34

Na narração de sua postura em relação ao sofrimento pela perda de um irmão em um acidente de transito, ocorrido há alguns anos atrás, precisamente, no ano de 1995.

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96 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

informantes. Por outro lado, mesmo nesta esfera parece já haver uma

espécie de desilusão de mundo, e uma insegurança começa a ter início

entre os mesmos informantes, sobre a validade ou viabilidade deste dogma

de fé religioso.

É o que parece representar esta narrativa de uma mãe, de 48 anos,

da cidade de São Paulo, capital, católica, que perdeu uma filha de quinze

anos vítima de câncer: "Quando minha filha contraiu esta doença horrível

tive que tirar forças de não sei onde para tentar ajudá-la, para lutar pelo

retorno da saúde dela. Ainda bem que sou católica, de formação sólida, e

isso me ajudou muito na minha luta pela minha filha.

"Com o prolongar da doença e a impossibilidade de cura, pela forma

rápida com que se alastrou o câncer no seu corpinho, além de ter que me

fazer de mais forte para ela, tive também que fazer um esforço imenso para

não esmorecer perante mim mesma. Ficava pensando no porque minha filha

estava sendo vitimada em tão tenra idade, porque, se existe Deus, ele

estava vingando-se de mim através da minha filha, e não, se eu tivesse feito

algo, em mim própria. A existência de Deus e a sua bondade, questões

sólidas em mim, pareciam estar indo de água a baixo, e eu lutava comigo

mesma para não desabar. E me fechava mais e mais na minha luta para dar

conforto a minha filha e para me manter em pé.

"Me tornei árida e arisca, deixei de freqüentar a Igreja... agora,

mesmo depois que minha filha morreu, tendo encontrar um significado para

o seu sofrimento e morte, e não consigo encontrar nenhum. Tento acreditar

que ela está melhor, em outra forma de vida mais intensa, imortal, que eu a

encontrarei assim que desencarnar, mas já não é a mesma coisa! ... Sou de

uma solidão só! Não sei como estou falando isso para o senhor, pois desde

que ela se foi não consigo conversar muito sobre os meus sentimentos, os

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meus receios, e essa incerteza enorme que me consome, sobre o porquê da

vida e da morte, sobre a outra vida após a morte, sobre a própria religião

que ainda professo e me agarro, mas que já não me acalma e nem me dá a

segurança que tinha antes..." (Entrevista n. 131).

A instância desindividualizante do acreditar-se na morte e no morrer

como passagem para uma outra vida, já não credibiliza a existência de uma

outra vida como fé. A fé começa a configurar-se como algo que se quer

acreditar e não tem certeza, como algo que não mais provoca o sentimento

de jubilo pela certeza do ente querido ou de sigo próprio em outra vida,

imortal. Que não conforta, mas que preenche de incerteza e sofrimento a

quem possivelmente partirá e, sobretudo, a quem fica.

O espaço desindividualizante, assim, já não completa toda a esfera de

dúvidas pessoais de quem fica. Já não minora completamente a dor

ocasionada pelo sofrimento e pela experiência da perda através da sua

ritualística pela fé pessoal de cada um. Os indivíduos parecem assim ser

tomados de insegurança e a almejar que o morrer e a morte fossem situação

que jamais deveriam existir.

Insegurança que provoca um aumento da dor física e moral do sofrer,

não apenas pela crença relativa, agora, na instância da morte como uma

outra e nova vida, mas também pela dificuldade de expressão deste

sentimento até para si próprio. O fracasso da fé em si parece incomodar,

pela desilusão que parece provocar no sujeito e na sua idéia de mundo e de

participação em uma comunidade de valores, que busca resgatar, mas que

já não encontra satisfação na resposta buscada através dos dogmas e

expressões ritualísticas possíveis, a ela inerentes.

O que só faz aumentar a solidão do homem comum de classe média,

prioritariamente, aqui, que expressa este valor, ao questionar o conteúdo do

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98 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

valor do dogma em si e não ter certeza de sua eficácia simbólica, ao mesmo

tempo que quer e precisa desta certeza. O mundo construído em que se

situava, em um espaço integrativo que permitia e aprofundava um

sentimento de pertença, configura-se, assim, agora, por uma tendência a

fragmentação e a começar a ruir.

A incerteza é um dos elementos novos que parece fazer parte da

escala de valor das novas redes de relações em que se encontra inserido. O

que vem provocando um relativo sentimento de abandono e solidão, ao

mesmo tempo que uma espécie de pudor de expressar esta incerteza,

aumentando mais o isolamento social.

Esta incerteza, que vem, tendencialmente, provocando um aumento

do sofrimento e da insegurança em uma parcela dos informantes, a respeito

da noção do morrer e da morte, porém, parece não fazer parte dos

significados atribuídos a outra parcela. Como se viu nos Quadros 13 e 14,

40,49% e 41,18% dos informantes afirmaram que o morrer e a morte tinham

o significado processual de "findar" e do "fim da existência".

Para estes, parece que a noção da morte e do morrer tem um

significado claro de um ciclo de vida que termina. Que uma visão naturalista

e racional sobre o sentido da vida e da morte faz parte do seu universo

compreensivo sobre o lugar do homem na natureza como uma espécie a

mais entre tantas outras. Que a morte é o findar natural de uma existência.

Estes significados aparentes, porém, se encontram ao nível de uma

resposta abstrata à questão da morte e do morrer. Com um distanciamento

enorme na definição e relatos entre uma morte próxima e a morte em geral.

O fim da existência e o findar como definição de morte e de morrer no

abstrato ganha uma conotação mais biológica sempre, do que quando

definida a partir de uma perda de um ente querido específico.

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99 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Mesmo nos casos onde a compreensão de um final de ciclo de vida

aparece com mais vigor, como as narrativas da perda de um ente próximo,

como um avô ou uma avó, por exemplo, a diferenciação entre morte

biológica e o conceito de morte socialmente expressa a partir de uma

relação de proximidade, parece revelar-se em nuances diferenciadas.

É o caso dos relatos abaixo, ambos construídos a partir de um mesmo

objeto de perda: os avós. O primeiro relato narra a experiência de um

entrevistado com a morte de sua avó ocorrido em 1998, em uma cidade do

interior do estado da Paraíba. O entrevistado35 descreve sua reação e o

sentimento perante a morte de sua avó materna, com quem teve pouco

contato, a não ser nas vezes em que viajou de férias para o interior, e que

foram se escasseando a partir da adolescência, ou quando a sua avó os

visitava em João Pessoa.

Segundo o seu relato, "... a notícia da morte de minha avó chegou de

repente lá em casa. De manhã cedinho, uma irmã, acho, da minha mãe

ligou para dizer que vovó não tinha despertado e quando ela foi verificar,

encontrou-a morta. Parece que foi uma parada cardíaca. Não sei bem, sei

que minha mãe disse para nós que ela tinha tido uma morte suave e não

sentiu nada. Morreu dormindo. ... Minha avó tinha 84 anos e sempre foi uma

mulher forte, quase nunca adoecia, segundo minha mãe. Eu tive muito

pouco contato com ela, ela era doce, embora vivesse de cara fechada, e

sempre mandava presentes para mim e meus irmãos, nas festas e nos

nossos aniversários.

"Pode parecer estranho, mas eu não senti nada pela sua morte. Isto

é, não senti nada em termos, pois fiquei triste com a tristeza de minha mãe.

35

Um rapaz de 23 anos de idade, estudante universitário, natural e residente na cidade de João Pessoa, capital do estado.

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100 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Mas, ela mesma, me pareceu conformada, pois teria de acontecer mais dia

ou menos dia por causa da sua idade.

"Não fui para o interior para o seu enterro. Minha mãe e meu pai e

minha irmã mais velha foram, eu e os outros dois irmãos ficamos. Nada

mudou na minha rotina: fui para a faculdade, namorei, saí, vi televisão, não

fiquei mais triste nem mais alegre pela morte dela. Se fiquei um pouco

chateado foi por causa da minha mãe, que ficou muito triste, mas

conformada.

"Nunca falei com minha mãe, nem lá em casa sobre eu não sentir

nada. Quando meus pais voltaram do interior, no dia seguinte ao enterro,

tudo pareceu, para mim, igual. A casa da gente continuou barulhenta como

antes, nada mudou... minha mãe, mesmo, voltou ao trabalho, ao dia a dia

normal... acho que a morte é como um fim de uma vida. Esperado! Foi assim

que eu senti com a morte de minha avó". (Entrevista n. 58)

O segundo depoimento, é de uma jovem, 27 anos, bióloga, natural e

moradora da cidade de Curitiba, estado do Paraná, que perdeu também a

sua avó materna no ano de 1999. Diferente do primeiro depoimento, neste

existe uma relação de proximidade acentuada entre a neta e a avó que se

foi. A entrevistada relata que, desde a morte do seu avô, quando ela ainda

era pequenina, sua avó veio morar com seus pais, "... cresci com a minha

avó sempre perto de mim, perto mesmo, pois inclusive dividíamos o mesmo

quarto. Ela era minha confidente, era uma pessoa carinhosa, muito religiosa,

mas também muito aberta; compreendia todos os meus problemas e me

servia de amparo nas horas muito tristes ou muito felizes! Era uma mulher e

tanto.

"Já estava com quase noventa anos, ainda era lúcida, apesar de

quase não mais se locomover por causa da osteoporose... passou os últimos

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101 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

meses de vida, quase todos, no hospital. Teve uma pneumonia e nunca

mais se recuperou direito. Ia e voltava do hospital, até que os últimos seis

dias de vida passou todos no CTI36.

"Eu não a vi morrer. Era de madrugada, estávamos em casa e fomos

chamados para o hospital. Chegamos, eu, minha mãe e meu pai, e ela já se

encontrava no necrotério do hospital. Meu pai cuidou do translado do corpo,

da funerária, foi um velório e um enterro rápido com alguns vizinhos e

amigos presentes.

"Não chegamos a mudar a nossa rotina da casa. Tudo continuou

como sempre! ...Não fizemos o luto, os dias continuaram iguais, trabalho,

estudo, e essas coisas do cotidiano, foi rezada uma missa de sétimo dia e

pronto!... Parecia que minha avó nunca tivesse existido... minha mãe até

falou que agora, enfim, eu teria um quarto só para mim... que a vida era

assim mesmo, que a minha avó já tinha cumprido a sua missão no mundo e

tinha terminado a sua parte, etc....

"Eu mesmo sei, racionalmente, até por dever de ofício, que a morte é

o fim de um ciclo, de um ciclo biológico, que faz parte da lei da natureza...

Mas não é assim que eu me senti, e ainda me sinto, com a morte da minha

avó. Eu me senti menor, me sinto sem referência, perdi uma confidente...

Claro que sei que minha avó teria que morrer um dia, que já era muito velha,

que isso ocorreu e foi melhor para ela pois aliviou o seu sofrer físico... queria

acreditar que a morte não acaba com a vida, mas a vida ganha outros

significados, mas sei que não é verdade. Sei que morrer é findar... E isso me

deixa mais triste, mais isolada...". (Entrevista n. 209).

Nos dois depoimentos acima, o grau de proximidade dos

entrevistados parece atestar os significados de seu sofrimento pela perda de

36

Centro de Terapia Intensiva.

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102 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

suas avós. No primeiro caso, embora a avó estivesse sempre presente nos

momentos de festas e aniversários, se não fisicamente, pelo menos no envio

de lembranças para os netos, e a lembrança do neto dos dias em que

passou no interior com os avós, ou dos momentos de visita da avó a sua

família, em João Pessoa, a avó sempre foi uma relação distante de sua vida

diária. Sua morte foi atestada pelo neto com uma certa tristeza, pela perda

sofrida pela mãe, mas entendida como natural, como um final de existência

de uma vida inteiramente vivida. No segundo caso, ao contrário, a perda da

avó significou uma ruptura no cotidiano da neta.

Apesar de informar que após o breve velório e enterro a vida na sua

casa continuou normal, a perda da avó parece ter provocado um sentimento

profundo, um sofrimento na neta, pela perda da confidente e amiga, que a

avó parecia representar em sua vida. O que afigurou-se como causando

uma insatisfação e um mal estar pela perda deste ente querido, mesmo que,

racionalmente, e até por dever de ofício como ela disse, entender a morte, e

a morte de sua avó, como um fim de um ciclo. Mas a racionalidade parece

trazer-lhe insatisfação, e maior isolamento e tristeza: ela queria acreditar na

continuidade da vida depois da morte, como uma forma de entender o

sentido da morte de um ente querido tão caro. O não acreditar, parece levar-

lhe a uma solidão e a um questionamento do significado da vida, em si.

O que se quer expressar aqui, é que a transição sobre a experiência

brasileira urbana nos últimos anos do século XX, parece vir acompanhada

de um aumento da ambigüidade de sentimentos e um mal estar e

sentimento de inadequação dos indivíduos em relação a um sentido de vida,

no geral, e especificamente, da vida social. Seja naqueles que ainda

acreditam em uma instância desindividualizante, que os ampara sob a forma

de uma força maior, de um dogma de fé na continuidade da vida após a

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Ser Discreto

103 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

morte, seja nos que encontram no ciclo biológico uma explicação racional

para a morte como um fim da existência.

Em ambos, o sentido de finalidade e de certeza parecem comportar

uma carga grande de incompletude e solidão. A não ser quando se

considera a morte e o morrer em abstrato e distanciado de si próprio

enquanto referência de perda.

Nos dois casos, parece haver uma quebra no imaginário social que

produzia certezas e completudes aceitas pelos indivíduos na sociedade

brasileira de algumas décadas atrás. Esta quebra vem se configurando

como trazendo, como conseqüência imediata, um enfraquecimento dos

laços que unem os membros sociais de uma família, ou os de uma dada

religião, no interior da sociabilidade no Brasil urbano de classe média.

As crenças compartilhadas já não parecem satisfazer inteiramente os

indivíduos, mesmo que professem alguns a esperança em uma outra vida.

As etiquetas costumeiras, as regras e normas que norteiam a ação social de

cada sujeito vem se afigurando como não mais servindo, inteiramente, como

instâncias integradoras, e os ritos sociais que as comportam se configuram

como não mais possuindo o efeito confirmador das regras no evitar as

dificuldades e os riscos ocasionados pelo processo do morrer e da morte em

quem fica.

O sofrimento causado pela perda parece que se constrange assim,

cada vez mais, no interior dos sujeitos individuais que por ela transitam. O

sentimento de solidão, de inadequação, vem significar o ritmo da postura

individual dos sujeitos em sofrimento pela perda, traduzindo-se em uma

incapacidade de manifestação de opinião e modos de pensar sobre o

sentimento e o sentido do morrer e da morte.

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Ser Discreto

104 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O que tende a provocar uma incapacidade de comunicar as suas

emoções, sentimentos e atitudes perante a realidade do sofrimento e da

perda, ao silenciar as suas angústias e guardá-las no interior do seu eu,

embora ansiando demonstrações de afeto e compreensão. Ao mesmo

tempo que as afasta como vergonha de ser pego em fraqueza ou

provincianismo.

As marcações da vida, presentes em todas as formas de sociabilidade

humana, que fundamentam o ciclo de uma vida no interior de um tempo e de

um espaço social (VAN GENNEP, 1978), parece estarem borradas, no que

diz respeito a morte e ao morrer no Brasil urbano do início do século XXI. Os

papéis e as categorias sociais, as crenças, os valores, as regras e toda uma

ritualística que como uma rede transpassava todas as esferas do social e

reforçavam a solidariedade familiar, grupal e coletiva no Brasil, entram em

conflito com os novos valores trazidos pela ampliação da individualidade e

do individualismo entre os setores, principalmente, de classe média no

Brasil, nos últimos trinta ou quarenta anos. O que vem traduzindo-se em um

aumento de ambigüidade na ação pessoal e grupal dos sujeitos, e em uma

extensão da solidão individual daqueles tocados pela experiência da perda,

isto é, da morte e do morrer na contemporaneidade.

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Ser Discreto

105 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Capítulo 3

A Perda e o Sofrimento

"La douleur apparaît ainsi comme um point de convergence possible où elle peut prendre place dans un réseau de signifiants du corps réel, imaginaire et relationnel". (Marquez, 1994, p.38)

37

Encontra-se em pleno desenvolvimento no Brasil dos últimos trinta ou

quarenta anos um processo de individualização das relações sociais e nas

formas de agir e pensar individuais. Viver esta experiência parece estar

provocando nos homens comuns, de classe média urbana, principalmente,

um sentimento de desorganização e um aumento da tensão, pessoal e

grupal.

Processo de comportamento emergente, este, que vem causando

ansiedade e insegurança nas relações sociais e individuais, e uma

interrogação permanente sobre o significado desta mudança e se ela está se

desenvolvendo para uma situação melhor. O sentimento afigura-se em ser

de desconforto e inquietação sobre as conseqüências pessoais e grupais de

tal caminho.

Já não se aceita mais as antigas regras relacionais da cultura

brasileira vividos até meados da década de sessenta do século XX. Elas

vem se tornando incomodas, e para muitos, olhadas até com desprezo e um

37 "A dor aparece assim como um ponto possível de convergência em uma cadeia de significantes do corpo real, imaginário e relacional". (Tradução livre).

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106 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

certo menosprezo, como incultas ou incivilizadas, mas também, não há um

sentimento de adequação aos rumos individualistas que tendencialmente

vem tomando conta das relações sociais e individuais na sociedade

contemporânea. Ou o seu contrário.

Uma certa apreensão não de todo consciente com a incerteza do

mundo atual, parece provocar, em outros tantos, uma tentativa de segurar as

relações tradicionais as quais estavam acostumados a viver, mas, ao

mesmo tempo, esta tentativa vem acompanhada de um sentimento de que

as regras passadas já não mais se adequam às questões do presente. O

que faz aumentar e ampliar a insegurança e a falta de sentido pessoal.

A ambigüidade nas relações e nos sentimentos expressos parece ser,

assim, o eixo central por onde deve ser pensada as relações de

sociabilidade no Brasil do século XXI. A experiência vivida como um

conjunto societário, porém, nunca é igual para todos os seus membros, e os

rumos desta mudança é sempre assimétrica e desigual. Esta consciência

analítica afigura-se como fundamental para que se possa compreender a

experiência de ambivalência individual e grupal de uma sociedade em

processo acelerado de mudança, como a brasileira.

Neste capítulo, se procurará identificar como os brasileiros urbanos,

de classe média, estão vendo estas mudanças e inquietações sobre o

prisma do comportamento de uma pessoa que sofreu uma perda, ou em

relação a outras que o experienciaram. Nele se discutirá o processo de ação

social e a construção de significados e tentativas de nomeação, reais,

imaginárias e relacionais sobre a perda, o luto e o sofrimento, a partir dos

depoimentos de informantes, como entrevistados ou que se dignaram a

responder o questionário padrão desta pesquisa.

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Ser Discreto

107 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Um dos pontos de partida será o de analisar como pensam os

informantes que responderam ao questionário padrão desta pesquisa sobre

o comportamento de uma pessoa que sofreu uma perda. Como se pode

verificar no Quadro N. 15, as respostas dos 1304 indivíduos à questão

puderam ser divididas em três categorias analíticas. A primeira, "Ser

Discreto", obteve 77,60% das respostas; a segunda, "Seguir a Tradição",

15,34%, e a terceira, por fim, "Não Existe Comportamento Ideal", 7,06%.

A discrição, assim, parece movimentar a ação imaginária dos

informantes, sobre o papel comportamental de um sujeito que sofreu uma

perda. Como já se vem analisando ao longo deste trabalho, desde o final do

século XIX vem ocorrendo uma diminuição da demonstração ativa de

sentimentos no momento do trespasse do morto, ou do sofrimento causado

nos entes queridos que ficam.

O morrer e a morte vem sendo retirados progressivamente do ritual

público que os circundava, movido em parte pela emergência de um novo

discurso de poder, o poder médico, junto à ações de políticas públicas

sanitárias e higiênicas para as cidades, e também pela emergência da

insalubridade, causada pelas doenças e pela morte, no imaginário popular.

As representações sociais sobre a morte e o morrer parecem ter tido sua

mudança acionada, assim, principalmente, através do medo causado pelas

inúmeras epidemias que tomaram de assaltos as cidades brasileiras nas

últimas décadas do dezenove, e pelo discurso de autoridades sanitárias de

controle à saúde pública e pessoal.

Os enterros, os cortejos e os velórios tornaram-se progressivamente

mais rápidos, com o morto e a morte identificados como poluidores e, pior,

transmissores de doenças, embora, ainda por metade do século XX,

expressões de dor e demonstrações objetivas de luto fizessem parte do

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Ser Discreto

108 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

cotidiano da população brasileira. O vestir preto, o resguardo dos enlutados,

a abstinência de alguns alimentos e de uma vida social ativa, ainda eram

esperados dos familiares do morto. Eram esperados, também, o

acompanhamento mais de perto de parentes e amigos, e de outras

instituições sociais, que funcionavam como instâncias desindividualizadoras,

tais como a Igreja, - através de um discurso sobre a outra vida e conforto

aos que ficam, - ou sociedades secretas, tipo a Maçonaria, por exemplo, que

amparavam as viúvas e filhas solteiras e menores, nos primeiros meses

após o trespasse, ou se solidarizavam com seus membros masculinos pela

perda de um ente querido, os apoiando em seu sofrimento. Assim como,

mecanismos de reintegração ao trabalho e a vida social ativa eram

estimulados de forma pública a quem perdesse alguém caro a nível de

proximidade e afeto.

As demonstrações públicas do sofrimento, desta maneira, embora em

declínio e menos acentuadas do que no final do século XIX, permaneceram

por várias décadas do século XX, até aproximadamente o decorrer dos anos

de 1960, entre os habitantes urbanos brasileiros. Largas parcelas da

população pareciam ainda se guiar na tradição de guardar, velar e sofrer

pelos seus mortos sob uma regência pública, bem como, até a dialogar com

eles, como lembra Roberto DaMatta (1987) em seu artigo Os Mortos e a

Morte no Brasil. O apoio da sociedade para a superação do sofrimento e

reintegração social era, também, esperado.

Com a modernização brasileira dos anos setenta e, principalmente,

com o esvaziamento progressivo do campo no Brasil, tem início a uma

transformação mais intensa no comportamento e hábitos da população

brasileira, especificamente de classe média urbana. Antigos hábitos são

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109 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

rapidamente deixados para trás por não serem considerados urbanos,

principalmente no que diz respeito as relações familiares.

A família extensa tendeu progressivamente a diminuir de tamanho e a

ser considerada apenas como e através do núcleo familiar básico, composto

do pai, da mãe e dos filhos. Nos anos setenta, também, teve início o

processo, que já vinha ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos, da saída

mais cedo dos filhos e filhas adultos jovens de casa, para uma vida mais

independente da casa paterna, principalmente entre os de classe média38.

O ritmo de vida, por outro lado, se tornou gradativamente mais

acelerado, afastando os indivíduos uns dos outros e os tornando mais

reservados perante as próprias emoções e incomodados com a expressão

pública de sentimentos de outros. Um outro fator bastante interessante, é o

desenvolvimento da psicanálise no Brasil, também ocorrida nos anos

setenta, junto à classe média urbana intelectualizada.

A auto-análise e o divã do psicanalista progressivamente atrai a

atenção dos membros urbanos de classe média, principalmente adultos

jovens, numa faixa que vai dos 18 aos 35 anos. Esta tendência associa-se

ao desapego aos valores tradicionais de comportamento vividos e

38 É importante salientar, porém, que uma tendência a permanência maior dos filhos, chegando às vezes até os trinta anos de idade, na residência dos país, parece ter acontecido entre os jovens de classe média no Brasil, nos anos noventa do século XX, e que parece prosseguir, agora, na primeira década do século XXI. Este fato, contudo, não parece ter vindo acompanhado de uma restauração de um hábito do passado, rompido pelos jovens dos anos setenta, pelo contrário, esta nova forma de organização familiar parece ganhar espaço entre os jovens como uma forma de ampliação do espaço de individualidade e segurança para o enfrentar o mundo. Talvez pelo aumento do tempo de especialização e formação profissional, talvez pelo apelo aos prazeres da vida e a formação de uma poupança pessoal, talvez, enfim, pelo conforto e descompromisso de afazeres domésticos do cotidiano, que a casa dos pais possibilita. Em todos os casos, porém, não parece refletir em uma volta ou em um maior apego a tradições culturais perdidas, mas em um aumento do individualismo enquanto espaço de consumo e lazer, e enquanto espaço de competitividade no ambiente societário formal das relações, econômicas, política, ou ligadas as esferas da hierarquização e status sociais.

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110 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

questionados por esses jovens, e a falência progressiva, nos anos oitenta,

de paradigmas norteadores de uma esperança em um mundo melhor futuro,

ou de instâncias desindividualizadoras, como a própria família tradicional, a

Religião, o Partido Político e outras mais.

Não se pode esquecer também a importância crescente de uma

competitividade no mercado de trabalho, que amplia a margem da disputa e

dispersão de uma parcela jovem da população urbana recente brasileira.

Os anos setenta e oitenta do século XX, deste modo, estabelecem os

grandes marcos da transformação por que passaram e ainda passam os

habitantes urbanos no Brasil. Independentemente do tamanho populacional

das cidades, aqui se tratando especificamente das capitais de estados

brasileiros, estes marcos servem como norteadores da identificação e

modificação ocorrida no comportamento do brasileiro urbano de classe

média, principalmente. Isto porque, progressivamente, também, a partir dos

anos sessenta, e principalmente setenta do novecentos, ampliou-se a

margem de concentração político, econômica e comunicacional do país.

Os estados brasileiros, as cidades e, especificamente, as capitais de

estado, através de seus habitantes de classe média, viveram uma exposição

maior desta concentração. Os hábitos comportamentais, os desejos e

buscas de realização ficaram cada vez mais concentrados em um único

eixo, o Rio-São Paulo. O que aumentou assim uma aparentemente única

performance comportamental entre os indivíduos de classe média, em todo

o Brasil.

Segmentada internamente, é verdade. Uma estratificação no interior

desta centralização se faz visível, com fortes componentes de uma

ampliação do preconceito sobre estratos, de acordo com a inserção do

cidadão em um núcleo urbano mais perto ou mais longe, mais rico ou mais

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Ser Discreto

111 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

pobre, do Brasil. Assim como, internamente a cada capital, de acordo com

as formas de vida que levem os grupos e segmentos diferenciados de sua

população.

O que parece fazer aumentar ainda mais o sentimento de solidão do

homem urbano de classe média brasileira. O ser discreto parece

representar, assim, a forma que vem assumindo a "economia de afetos"

(Elias, 1990, p. 49) da cultura urbana brasileira dos últimos trinta anos,

principalmente, aqui, no tratamento da questão da cultura funerária.

As convenções de estilo, as formas de intercâmbio social e o controle

social das emoções, parecem viver no Brasil urbano, principalmente junto a

classe média, uma transformação intensa, no sentido de uma maior

economia dos gestos, da postura, do decoro corporal externo, nas formas do

olhar das pessoas, da expressão facial39, entre outras atitudes

comportamentais. Essa mudança caminha aceleradamente para a

composição de um estilo de vida e de uma forma de expressão da auto

imagem individual através de uma ação de auto distanciamento, onde a

vergonha e o sentir-se embaraçado constituem-se em uma viga mestra para

um maior controle emocional. Seja pela repressão das atitudes espontâneas

de sentimento e pela internalização na pessoa da subjetividade, como uma

ação não social40, seja pela auto disciplina.

39

Sobre a questão da expressão facial ver o trabalho clássico de Goffman (1980), A Elaboração da Face, onde aborda a questão da avaliação e do auto respeito sociais através de atos verbais e não verbais socialmente expressos. 40 Weber (1944), na primeira parte do seu livro Economia e Sociedade faz uma esforço para caracterizar, no processo de racionalização social vivido pela sociedade européia no momento de consolidação do capitalismo, a diferenciação estabelecida entre ação social e ação não social, esta última conduzida especificamente por construções subjetivas no interior de sujeitos individuais específicos, descaracterizando-a assim da objetividade social das ações.

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Ser Discreto

112 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O Ser Discreto, deste modo, caracteriza o modus operanti por onde

se pode compreender a construção social do indivíduo urbano brasileiro de

classe média, hoje. O comportamento pessoal de discrição perante as

expressões das próprias emoções, é sentido também, através das

informações contidas no questionário aqui analisado, na relação deste

sujeito individual com os outros. Em uma outra questão levantada no

questionário, perguntou-se qual deveria ser o comportamento dos outros,

isto é, da sociedade, em relação às pessoas que sofreram uma perda41.

Três categorias foram elaboradas a partir das respostas obtidas pelos

1304 informantes. A primeira categoria afirma que o comportamento deveria

ser o de "Dar Apoio", com 18,71% das respostas. A segunda categoria alega

que a atitude das pessoas em relação a uma outra que sofre uma perda,

deveria ser a de "Não Importunar", com 72,01% do total, a terceira categoria,

por sua vez, com 9,28% das respostas, diz que a forma de comportar-se em

uma situação como esta, "Depende do Caso".

O Quadro N. 16 é interessante para a análise aqui realizada, por dois

motivos principais. O primeiro, por estabelecer com o "Não Importunar," uma

esfera de pudor de chegar-se ao outro, como se uma expressão de

solidariedade ou apoio pudesse ser compreendida pelo indivíduo objeto da

ação como uma espécie de invasão de privacidade. Constrangido em sua

dor e em seu sofrimento pessoal pela perda recente, o indivíduo poderia,

segundo esta categoria, sentir-se ofendido pela tentativa de aproximação de

um outro, retirando-o e comprometendo o seu espaço individual no social.

O segundo motivo diz respeito a idéia de contaminação social pelo

sofrimento do outro. O medo do envolvimento emocional através da

demonstração de atitudes de solidariedade e apoio ao outro configura o ator

41

As respostas a esta questão pode ser verificada no Quadro N. 16, anexo.

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113 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

em personagem tímido e, consequentemente, retraído nas suas

demonstrações de afeto, como se elas pudessem comprometê-lo, ou por em

risco o seu desempenho social.

Nestes dois motivos expressos, assim, parece por-se em evidência

uma tendência ao sentimento de envergonhar-se frente às dificuldades de

chegar ao outro. Seja através do agir com discrição, presente na categoria

do "Ser Discreto", como um dever ser moral para todos aqueles atingidos

por uma perda, seja pela busca de não intromissão, cristalizada na categoria

analítica de "Não Importunar" àqueles em sofrimento.

Nas duas formas do como se comportar frente à perda, pessoal ou de

outros, fica evidente o medo de não saber com enfrentar a situação, e a

culpa por ele provocada. O que parece aumentar o sentimento de

isolamento e desamparo vivido pelo homem urbano de classe média

brasileiro na contemporaneidade.

Goffman (1980, p. 80), analisando as expressões faciais, descreve a

expressão "perder a face" como o receio de não saber como se referir ou

representar em uma situação determinada. Fala do medo do indivíduo de

poder possibilitar uma impressão errada nos outros, ou de poder vir a ser

avaliado com um desempenho fraco, ou péssimo, na demonstração de sua

incredulidade ou de sua capacidade de suportar a realidade que se

apresenta. Ou, mesmo, de sentir-se envergonhado e indisposto na situação

vivida em um momento relacional específico.

Este receio de perder a face, trabalhado por Goffman, parece agir nos

indivíduos em relação através de uma economia gestual das emoções.

Economia de gestos que possa garantir aos sujeitos a "capacidade de

suprimir e ocultar qualquer tendência a ficar envergonhado durante os

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114 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

encontros com os outros" (p. 80). E, desta forma, impossibilitar qualquer

forma de avaliação, a não ser a que objetivamente quer expressar.

Esta economia de expressões de afetos, assim, parece se satisfazer

através de uma postura de distanciamento ou de afastamento da situação

experienciada na relação com o outro. Atitude de leve indiferença aos outros

sociais, seja quando o indivíduo sentir-se evocado como objeto da ação,

onde a exigência de um auto controle, pela discrição, é a certeza de não

apresentar-se constrangido por constranger o próximo, seja, também,

quando o indivíduo for ou aparecer como o sujeito da ação, onde o não

incomodar alivia a dificuldade de expressão de sentimentos.

Reza as regras de etiqueta no Brasil urbano contemporâneo, que em

uma situação de sofrimento, na qual um indivíduo não pode ausentar-se de

todo, mas que também não quer invadir a privacidade de quem a

experiencia, que deve enviar um cartão, ou flores, ou algo semelhante.

Através deles deve expressar condolência ou solidariedade ao outro, e

mesmo assim, passado alguns dias do fato ocorrido, ou, quando houver uma

cerimônia, como a missa de sétimo dia, por exemplo, fazer-se presente, se

próximo, cumprimentar, na fila de condolência, o outro, em uma expressão

contida, e ir embora, deixando ao outro a possibilidade de introjeção de sua

dor, privadamente.

O mesmo se referindo para quem sofre a perda. Manter a dignidade e

o controle de sua emoções, aceitando as condolências com um ar contido, e

com uma ligeira indiferença no olhar.

Ambos parecem refletir a atitude blazé diagnosticada por Simmel

(1967), no início do século, para expressar a leve indiferença no olhar e no

gestual do homem citadino na metrópole contemporânea, e o processo de

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115 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

multidão e anonimato em que parece emergir a afirmação da individualidade

no momento de consolidação do capitalismo.

Esta busca de ocultamento da face, ou da leve indiferença presente

na atitude blazé, tornam-se, cada vez mais, expressões em uso no cotidiano

comportamental do homem brasileiro urbano. A narrativa de expressões

comportamentais outrora presenciadas pelos próprios sujeitos, ou relatadas

por parentes ou visualizadas através de experiências presentes ainda no

hoje, através da imprensa ou por próprio testemunho, tornam-se

aparentemente estranhas ao cotidiano do sujeito, como arcaísmos de uma

estrutura mental e emocional diferente.

Movimentos narrativos estranhos que parecem incomodar ao homem

moderno brasileiro, como parte de uma estrutura de um passado que se

quer esquecer, ou melhor, distanciar-se, por incivilizado ou não moderno.

Com um receio também que a sua presença contamine, pelo excesso

emocional presente, a si mesmo e as relações sociais de onde emergiram,

paralisando o presente da modernidade vivida pela vergonha de validar no

outro, qualquer, uma imagem avaliativa que comprometa pessoal ou em

grupo sua performance e seu estatuto de urbano.

Autores como Van Gennep (1978), Junqueira, (1985), entre outros,

buscaram em seus trabalhos demonstrar que as marcações, os ritmos, os

ritos são essenciais ao movimento cotidiano de toda sociedade. Que

nenhuma forma de sociabilidade flui sem qualquer tipo de passagem, ou,

como afirma DaMatta (1983, p. 39), "é a própria passagem que constitui o

pólo talvez mais básico da própria idéia de mudança".

Quando a mudança é acelerada porém, os ritmos que regulam a

passagem parecem tornar-se embaralhados. Se, por um lado, são vistos

através de atitudes de estranhamento, como resquícios incômodos de um

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116 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

passado presente, por outro lado, o lidar com as novas formas emergentes

não parece ser ainda de fácil manipulação. O que ocasiona um mal estar

crescente em quem se vê obrigado, por ter acontecido consigo, ou, por estar

envolvido em uma situação específica, a participar de uma cena onde

elementos de passagem, - como a morte, o morrer, o sofrimento, o luto, aqui

trabalhados, - se configuram.

O receio de contaminação, por parte de quem sofre uma perda, ou

por parte de quem acompanha um processo de luto, por exemplo, faz com

que aja um retraimento nas formas de etiqueta, para uma quase ausência de

gestos e emoções. Um ocultar a face, nos dizeres de Goffman, acima citado,

por medo de perder a face, configura-se como uma espécie de escudo

protetor de ambos os lados de um processo interativo.

O que ocasiona dificuldades e incômodos de lado a lado das relações,

por não saber-se comportar, ou não se encontrar preparado para o exercício

de um dado e específico papel. Por onde, possivelmente, as emoções e as

validações da face, e de gestos, serão objetivamente analisados e avaliados

pelos demais presentes.

O medo de não saber expressar-se e comportar-se em uma situação

específica, como a morte e o luto, por exemplo, funcionam como uma regra

de convivência que sobrepõe sobre a mesma ação elementos de uma

estudada indiferença facial frente aos elementos da relação e a uma busca

interna de saber-se, ou melhor, querer-se encontrado por um outro.

Indiferença e procura mesclam-se em uma atitude que parece incomodar e

isolar ainda mais os indivíduos envolvidos em uma relação.

Ambigüidade presente em sensações aparentemente contraditórias.

Revela-se, deste modo, de um lado, associada a uma espécie de desprezo

do passado e de ser associado a ele. O passado visto pejorativamente como

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117 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

costumes de uma época caipira ou de tradição rural, ou do Brasil de

antigamente. Ao mesmo tempo, por outro lado, sofre idealmente de uma

forma de saudade do passado, agora visto, em forma glamourosa, como

algo que se perdeu e que trazia mais solidariedade e conforto.

Como pode ser visto no depoimento de uma informante42, que perdeu

a mãe, com quem tinha afinidade, e que a considerava como sua única

confidente e amiga: "Eu fiquei sem saber o que fazer com o choque enorme

que senti quando minha mãe morreu. Me fiz uma máscara dura, uma

fortaleza, para acompanhar todos os preparativos para as exéquias. Desde a

liberação do corpo até a marcação do lugar do velório, o próprio velório, a

compra de um lugar no cemitério, o enterro, a missa de corpo presente, o

retorno para casa, até a missa de sétimo dia, eu parecia não ser eu mesma.

Não entendia onde pude achar tanta força para fazer tudo e não

desmoronar...

"Chorava e gritava por dentro, mas por fora me esforçava para não

demonstrar o que se passava dentro de mim. Claro que devia estar com a

cara arrasada... é até natural nas circunstâncias que vivi naquele momento,

mas parecia calma, segura, tranqüila e ativa. Comandei toda a situação,

para que nada faltasse a minha mãe na hora de sua despedida... atendi a

todos com atenção, até a alguns parentes que não eram meus muito

chegados que apareceram com aquelas costumeiras e horríveis cenas de

choro em excesso. ... confesso que, em alguns momentos, tive que intervir,

delicadamente, para que eles não nos matasse de vergonha, que se

controlassem ... pareciam vindo sei lá de onde... constrangendo a todos os

42

Do sexo feminino, de 50 anos, professora universitária e natural da cidade de Salvador, estado da Bahia.

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118 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

presentes com aquele excesso, falso, parecia falso, como que querendo

aparentar uma emoção que não estavam a sentir.

"Eu, que sou eu, que perdi minha única amiga e confidente, a minha

mãe, estava controlada, por que eles não deveriam também de estar...

"... uma das coisas que fiquei magoada, porém, foi a falta de atenção

de algumas pessoas que eu considerava.... não que não estivessem

presentes em algum momento da despedida de minha mãe, mas por não

verem o meu sofrimento intenso, a dor que espedaçava o meu íntimo...

queria ser buscada, consolada, que me vissem como eu era, mas não, eram

condolências frias, distantes, contidas, como se quisessem se ver livres

daquele espetáculo... eu até, passado algum tempo, conversando com uma

amiga a respeito dessa solidão grande que eu senti, e ainda sinto, ela me

pareceu assombrada com a minha 'cobrança', - foi assim que ela definiu o

meu sentimento, - pois, segundo ela, eu estava tão forte que até ela se

intimidou, por não se achar tão forte como eu e me constranger com a sua

pieguice... antigamente não devia ser assim, conforme minha mãe falava e

os da época dela falavam, parecia existir uma atenção especial que envolvia

as pessoas e as tornava mais solidárias uma com as outras. O entendimento

do que passava no ser de alguém era como que sintonizado por todos os

presentes, que o confortavam e o amparavam. Agora é só solidão de todos

os lados, ninguém parece, ou quer, compreender ninguém... cada um que

viva a sua dor, sozinho, e pronto!" (Entrevista n. 27).

Neste depoimento se tem, de um lado, uma espécie de asco, quase

repugnância a gestos demasiados por parte de presentes, em um processo

de despedida de alguém morto. O excesso parece incomodar, causar

vergonha e, inclusive, também denota um fingimento de sentimentos, na

verdade ausentes em quem pranteia e se expõe em demasia.

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119 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O excesso de emoção em público parece vir à tona, e ser entendido

pelos parceiros da relação, como falsidade. Fazem parte de atitudes de

possíveis relações sociais de um passado sequer lembrado, a não ser pela

falta de decoro e de pudor nele expresso no hoje, e que se quer esquecer e,

se possível, negar que existiu, a não ser pela falta de educação inerente a

tal gestuário.

De outro lado, este depoimento revela, também, o seu contrário: a

solidão dos indivíduos prisioneiros do pudor, e a vontade, ou mesmo

necessidade, de alguém que os veja além da máscara de contenção, em

que reprime os seus sentimentos. O passado então é relembrado como um

tempo de solidariedade e compreensão das emoções. É rememorado em

uma visão nostálgica de algo que se perdeu irremediavelmente e que

condena ao isolamento cada sujeito, em seu sofrimento, dos demais.

Ambigüidade que parece ser comum a maioria dos indivíduos de

classe média entrevistados nesta pesquisa. Que parece fazer parte,

também, desse momento de transição vivida pelo povo brasileiro nestes

últimos trinta ou quarenta anos, tornando difusas as fronteiras que delimitam

a marcação e os ritmos sociais de cada passagem, ao transportá-los para o

íntimo dos sujeitos, como expressões não sociais.

A objetividade das relações amplia a necessidade de auto controle e a

separação radical entre indivíduo e sociedade. O ritual vem sendo suprimido

ou abreviado de tal forma que apenas deixa aparente, no caso das

cerimônias fúnebres, o essencial higiênico da configuração da morte e do

despacho do corpo, e um evitar aparente de sentimentos no lidar com o fato.

Quando muito, expressando-se no interior de uma solidariedade formal e

constrangida de ambos os lados da relação, entre o que sofreu a perda e os

outros.

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120 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O que parece aumentar o sentimento de culpa e o desconforto de não

saber como situar-se e apresentar-se em cada situação específica. As

relações sociais parecem assim tornar-se em relações de constrangimento e

pudor. Configuram-se em um elaborar constante da face, para que esta não

apresente outra coisa além de uma indiferença presente, construída para a

ocasião, e que também revele, para alguns poucos, uma ansiedade de ser

olhado mais a fundo, no interior de sua face, e ser encontrado, e apoiado e

tomado como se realmente é. O que não acontece, e que aumenta a solidão

e o constrangimento pessoal de todos.

O que será perda, ou melhor, como foi definida a noção de perda para

os informantes do questionário padrão? Uma questão sobre o significado do

termo perda foi elaborada entre as várias outras constantes, pedindo,

inclusive, no seu desenvolvimento, uma separação entre perda e sofrimento,

entre perda e luto, e entre perda e morte. Para os 1304 informantes, a perda

poderia ser definida em quatro categorias analíticas: como "Ausência", para

32,75%, como "Desaparecimento", em um conjunto de 21,01% das

respostas, como "Perda de Si", para 38,42% e, como "Dano", para 7,82%

das respostas43.

O sentido de "Perda de Si", elaborado por um conjunto de 38,42% das

respostas à questão, parece possuir o significado amplo de perda de

referenciais que permitiam ao sujeito se locar em uma situação social

determinada, tornando-o retraído e inseguro até do seu próprio papel no

mundo. A ruptura com o passado e o viver o futuro como uma

presentificação alucinada, a falta de amarras, e até o menosprezo expresso

pela reminiscência de formas culturais consideradas arcaicas e não

43

Conforme pode ser visualizado no Quadro N. 17, anexo.

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121 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

condizentes com um padrão – indefinido, é bom frisar, - de urbanidade,

aparecem nesta categoria de apreensão da noção de perda.

Por ela é possível considerar o alto grau de ruptura vivido pela classe

média urbana brasileira nesta entrada do século XXI com as construções

categoriais de uma tradição cultural que parece não mais satisfaze-los, e

que, ao mesmo tempo, não se tem idéia de uma nova forma de apropriação

social de si mesmos em que pudessem contar em momentos de crise ou

perigo. Como os vividos por uma passagem brusca ocasionada por um

processo de perda qualquer.

O risco ocasionado por este processo de perda é a perda de si

mesmo. Uma definição dramática que isola o indivíduo da sociedade. O

indivíduo, visto como um ser completo e indivisível, fora e em conflito

permanente com o social, e a sociedade, por seu turno, entendida como um

conjunto de regras que busca constrange-los a uma situação passiva e

alheia de sentimentos, idéias e volições de cada sujeito individual.

Como parecem ser os casos dos segmentos de narrativas abaixo:

"... Quando vi o corpo de meu pai no centro de um velório com um

bando de pessoas que nem ao menos falavam com ele quando vivo, por ser

considerado velho e doente, senti a hipocrisia toda do mundo. Era algo que

eu já sentia e não sabia bem o que era. ... Na minha frente, aquelas pessoas

me deram bem a dimensão da farsa humana a que sou obrigado a viver e

testemunhar. Minha vontade era de sair, desaparecer, perder-me até de

mim, não ter a consciência da banalidade e falsidade das relações. Hoje, já

se passaram três anos, e eu vejo, cada vez mais com nitidez e desprezo as

pessoas e a sociedade. Não tenho mais crédito em nada, vivo por viver,

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122 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

indiferente. É a minha forma de dizer o meu desprezo, e ao mesmo tempo

um despreparo absoluto de o fazê-lo..." (Entrevista n. 44)44

"Eu vivo sozinha, trancada, não ouso falar, e se pudesse, nem ousava

pensar, mas os pensamentos povoam como nada a minha cabeça, e às

vezes, eu me sinto louca, enlouquecida de solidão, de não ter com quem

desabafar! ... Mas finjo bem. Sei parecer falsa como todos esses que

circulam ao meu redor! Quando vêem me visitar eu pareço a pessoa mais

leve e feliz do mundo, nunca fui e, agora, cada vez mais, não sou de

demonstrar meus sentimentos. Mas a minha vontade era de gritar, chorar,

passar na cara de todos a minha solidão e a brutalidade do mundo que

parece a todos constranger e que todos parecem negar. Busco fugir de mim,

mas me refugio cada vez mais nesta casca oca que me restou e que tento

esconder e negar para todos e até, há se eu pudesse, para mim mesma..."

(Entrevista n. 37)45.

Na definição de perda como "Ausência", os 32,75% que assim a

apreenderam, parecem ter presente na sua constituição, a idéia de uma

distância temporal e espacial de algo ou alguém que funcionasse como o

ponto modal de uma rede de significados necessários ao processo

integrativo do sujeito consigo mesmo e com os outros. A noção de perda

através da expressão ausência parece estar ligado ao processo referencial

onde se estabelece o sentido da memória. Os indivíduos estando, na sua

ausência, ameaçados de privação de uma faculdade que parecia segura e

inerente a si mesmos, que Benjamin (1985, p.198) chamará de "a faculdade

de intercambiar experiências" .

44

Rapaz de 29 anos, solteiro, natural e residente na cidade de São Paulo, capital, vendedor autônomo, que perdeu o pai, de 65 anos, vítima de uma longa doença degenerativa. 45

Mulher de 52 anos, aposentada, viúva recente, sem filhos, natural e residente na cidade do Rio de Janeiro, estado do Rio.

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123 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A ausência tendo, aqui, o sentido, deste modo, de um sentimento de

vazio ocasionado por uma relação para a qual o sujeito não se encontra

preparado, e de que sente falta. Mas que, simultaneamente, não ousa

declarar, por receio de não ser entendido.

A ausência do ponto modal, que a perda provoca, aliena ainda mais a

experiência como troca e solidariedade, como construção. Esta, a

experiência, pelo contrário, parece caminhar para uma dissolução e,

consequentemente ter de ver o seu valor decaindo até o seu

desaparecimento total.

O que parece ameaçar os indivíduos da impossibilidade de

comunicação. A possibilidade do inominável, ressoa como uma ameaça

eloqüente, onde, aparentemente, só restam, apenas, o anseio nostálgico de

um retorno a algo que se perdeu, agora atemporal. Para alguma coisa cada

vez mais difícil de expressão, a não ser o de um grito mudo, abafado que, se

chega a ser ouvido por outros, é escutado como e através de fragmentos

incompreensíveis que ampliam a solidão e ameaçam os indivíduos de

destruição e isolamento.

É o que parece revelar os fragmentos de narrativa, abaixo:

"...Tenho dentro de mim uma espécie de nó, que me dói, às vezes até

sinto falta de ar. Tudo começou quando eu perdi a minha filha mais velha.

Parece que o meu mundo caiu, foi a lona, como diz meu filho... Tento

disfarçar, mas acho que não consigo... tento falar e não posso, algo me

agarra por dentro e me deixa sem palavras e gestos... Por mim, ficava o dia

todo sozinha com os meus pensamentos. Penso no tempo em que minha

filha ficava perto de mim, de como conversávamos, de como ela era bonita e

independente, de como é impossível a vida sem ela.... Queria dizer isso

para os meus, mas não consigo, tentei falar, mas eles entenderam como se

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124 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

eu estivesse doente e queriam me levar a força a um médico... então desisti!

Fico só com a minha filha e o meu sofrimento, e levo a vida como posso.

Aprendi a ser hipócrita, acho, fingida, o que só aumenta ainda mais o meu

sofrimento e a minha solidão... me ponho formal, distante, mas cumpridora

das minhas obrigações... ninguém parece se importar comigo, se eu estou

aparentando firmeza, mas estou solitária e frágil, só as lembranças me

botam em pé... e choro, choro, trancada... mas ninguém nota ou quer notar o

meu sofrimento..." (Entrevista n. 102)46

"... Só vivo das lembranças dele. O mundo já não me importa. Fico

em casa, quem quiser que venha me procurar. Recebo bem, mas

indiferente. Todos pensam que virei uma bruxa, mas é só dor, só sofrimento

o que me move, ... é só a ausência dele em mim. Vivo das recordações do

tempo em que era feliz... me basta, pois a dor é a minha sina..." (Entrevista

n. 70)47

A terceira categoria que expressa a visão dos informantes sobre a

noção de perda é construída, por sua vez, através da idéia de

"Desaparecimento". Esta categoria é informada por 21,01% do total de

respostas.

A idéia de "Desaparecimento", aqui, mais do que a idéia de

"Ausência", parece alcançar o significado de uma construção melancólica

sobre o processo de perda. Nesta construção, os sentimentos para com o

social e para consigo mesmo aparentam tender para um tipo de diluição de

sentidos. A perda pessoal do sujeito é visualizada através de um processo

46

Senhora de 63 anos, casada, três filhos, uma mulher e dois homens, aposentada, natural da cidade de Limoeiro, interior de Pernambuco, e desde os vinte anos moradora da cidade do Recife. Perdeu a filha única vítima de um enfarte "fulminante", nas suas palavras. 47

Senhora de 48 anos, viúva, um filho, doméstica, natural de Macapá, Amapá. Perdeu o marido que, segundo ela: "era tudo para mim, a minha vida, o meu sonho...".

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125 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

de ambivalência resultante da vergonha como individuação, e da

reprovação ou estranhamento público.

Como uma conseqüência, enfim, de sua subjetivação e falta de

expressão no social. O que parece constituir-se, assim, enquanto tendência,

em uma crença ilusória de expectativas e no estabelecimento de um grave

conflito de sentimentos ambivalentes. Resultado da falta de esperança e do

sentimento de que algo esteja prestes a acontecer e eminente a desabar

sobre si. Que no dizer de Abraham (1976, p. 100), só se pode fugir, voltando

a si próprio a hostilidade e a amorosidade que originalmente sentia em

relação ao seu objeto.

O depoimento de um homem48, de 70 anos, sobre o sentimento de

desilusão provocado pela morte de sua esposa exemplifica bem esta idéia

de desaparecimento, enquanto perda. Para ele: "... O mundo deixou de

existir quando ela morreu... me culpo a todo o momento porque ela e não eu

que se foi. O seu desaparecimento provocou em mim um vendaval de

questionamentos que não sei responder a não ser me culpando, de não ter

dado a atenção merecida quando de sua presença, de não ter ficado o

tempo todo com ela quando de sua doença, de não a ter visto na hora de

sua morte, na urgência do hospital.... por não ter morrido com ela.... me

culpo, me culpo o tempo todo, mas sou um covarde e não consigo findar

minha vida. Se eu tivesse a certeza de que iria me encontrar com ela,

poderia, quem sabe, ganhar coragem e ir a sua procura, ficar ao seu lado...

mas não, não posso afirmar e tenho quase certeza de que na morte se

encerra tudo... então me tranco, me fecho, não quero nada, nem ninguém...

meus filhos chegam e eu vou para o meu quarto... não quero que ninguém

48

Natural e residente na cidade de Maceió, estado de Alagoas. Engenheiro aposentado, pai de dois filhos homens que administram suas propriedades, e quatro netos.

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126 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

me veja, tenho receio de ser objeto de estranheza e de falsos interesses

sobre mim..." (Entrevista n. 53)

Intercessão entre o desespero e o tédio, a dor da perda subjetivada e

sem expressão no social, parece reproduzir-se, assim, na narrativa acima,

como ausência de projeto. O processo de perda, enquanto

desaparecimento, tende a tornar-se melancolia.

O processo de individuação do sujeito que sofre a perda, através da

ocultação da face e da busca de demonstração de leve indiferença às

formas culturais de representação do sofrimento e da morte tradicionalmente

usadas revela, de um lado, uma tendência social no Brasil atual de

escamoteamento da expressão pública dos sentimentos (Mauss, 1980).

Denota, também, a valorização da interiorização enquanto subjetividade ou

espaço da intimidade, ou do privado, e, desta maneira, é sentido pelo sujeito

como não social, por definição. Além de criar, por outro lado, uma disposição

prévia e permanente no indivíduo à desconfiança no outro, e por extensão,

no social (Koury, 1999).

A quarta categoria construída para caracterizar o significado de perda

entre 7,82% dos informantes, é a de "Dano". O termo dano é empregado,

segundo o Dicionário Aurélio, no sentido de um prejuízo moral. É entendido

também como um mal ou ofensa pessoal causado a alguém através da

deterioração, da danificação ou da inutilização efetiva, eventual ou iminente

de algo pertencente a este sujeito, seja ele individual ou coletivo.

A perda como "Dano", deste modo, é sentida como uma ofensa moral

e um sentimento de inutilidade ou deterioração real ou virtual, como se o

indivíduo que revelasse tal conceito visse ou vivesse cada dia o seu

presente como incerteza, id est, recheado de receios e medos de que algo

ou alguém lhe foi tomado, ou está virtualmente próximo de ser dele retirado,

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127 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

sem ter claro o que ou quem foi retirado, ou o que ou quem o retirou. Sente-

se logrado, inseguro dos seus gestos, de não saber como se comportar ou o

que esperar da avaliação dos outros em relação a sua atitude, ou que

atitude tomar a respeito das performances possíveis dos outros.

O sentimento de logro moral que o dano, enquanto definição de perda

parece provocar, diz respeito, assim, a uma espécie de desequilíbrio das

relações entre o indivíduo e a sociedade. Os ritos de passagem, que

conformam um ser moral, aparentemente, deixam de ser sentidos como

efetivos e o questionamento sobre eles cria um hiato entre as marcações

das seqüências cerimoniais que assinalam os movimentos de um estado

socialmente expresso a outro.

"... Ele não poderia ter feito isso comigo: ir embora assim, sem mais

nem menos, me deixando louca, com filhos para criar, sem ter uma profissão

definida e só ter vivido a vida como só a dele importasse... mas se foi, e

pronto!..." Informa uma entrevistada49, residente na cidade de Recife, estado

de Pernambuco. E continua: "... E aqui estou eu, passados quase sete anos,

tendo que me virar, tendo que fazer de tudo para suportar a humilhação de

me apresentar sem ele, sem a figura forte e de apoio que era ele para

mim.... só não morro pelos filhos, mas estou como morta por dentro. Me

sinto roubada da minha vida, me sinto constrangida de enfrentar o mundo

pelos meus filhos, quando o que queria é ficar na minha, trancada nos meus

pensamentos, em minha vontade de dizer a ele que ele acabou com a minha

vida quando ele se foi... Se eu pudesse advinhar não teria aceito dar a

minha vida assim não, mas agora é tarde, e só me resta ter que agüentar o

desprezo do mundo e o meu desprezo por ele também. Dói moço... é uma

49

42 anos, mãe de dois filhos menores, funcionária pública. Marido morrer vítima de distúrbios cardíacos.

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128 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

dificuldade todo dia que amanhece e eu ter que enfrentar tudo outra vez... "

(Entrevista n. 109)

Pelo trecho da narração transcrito acima, é o despreparo para o

mundo que parece ocasionar a revolta pela perda do ente querido, e com o

próprio ser que se foi, também. Por deixar o outro desamparado, tendo que

sobreviver em um mundo que não se considera adaptado e que sente como

cruel.

O que parece causar um mal estar crescente, por não saber como

comportar-se frente a cada movimento de uma marcação social. Vista

enquanto passagem relacional de tempos e espaços regulados e

reguladores das transmutações de uma sociabilidade determinada.

Descrentes do papel das marcações, e mesmo em um movimento de

rejeição por as sentirem como inadequadas, mas ao mesmo tempo sofrendo

pela perda do valor social de cada passagem, os indivíduos que afirmaram a

perda como "Dano", parecem sentir-se como logrados. Como vítimas de um

estorvo moral acontecido ou prestes a acontecer, que os deixam em estado

de latência, paralisados e sem ação sobre que conduta tomar a cada

movimento cotidiano que lhes impõe participação.

A perda, considerada como "Ausência", "Desaparecimento", "Perda

de si" ou "Dano", desta forma, como foi visto até agora, formam um conjunto

compreensivo de categorias através das quais pode-se inferir o sentimento

do brasileiro urbano de classe média, atual. É claro que estas quatro

categorias para serem melhor analisadas tem de serem vistas como

interrelacionadas, uma influenciando e sendo influenciada pelas demais, por

fazerem parte de um mesmo universo societário e relacional.

Cada uma delas, porém, expressam uma tônica diferencial que

analiticamente torna possível sua diferenciação. Gradações entre os graus

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129 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

de receios e de significados morais na vivência da cidade parecem ser os

elementos tônicos que uma busca compreensiva tem que se apoiar para

verificação e alcance de sua simbologia.

Abrem espaços para verificação de como o conjunto de regras e

etiquetas, e como a habilidade social e a perceptividade são sentidas como

expressão de diferenças de formas de transmissão e avaliações do outro e

de si mesmo. Isto é, como manutenção, prevenção ou neutralização de

inconsistências do jogo relacional. Possibilitam, também, o entendimento

sobre as formas pelas quais se estabelece entre o indivíduo e o outro

elementos de insegurança e descrédito pessoal e societário, na vivência de

um sentimento de perda, criando um campo de vulnerabilidade entre as

partes em interação.

Fechando-as, ao mesmo tempo, dentro de cada sujeito, no interior de

cada gesto e representação, através de uma atitude blazé simmeliana, de

indiferença social. Os sentimentos introjetados para dentro de si,

configuram-se como uma expressão subjetiva e não social. Impõem-se,

enfim, como uma máscara para o outro, ou como um ocultamento da face,

no dizer de Goffman, para proteção pessoal em uma situação de risco na

vivência compulsória de um social que não satisfaz.

Parece criar um vazio entre segredos a serem ao mesmo tempo

negados, e ansiados de serem descobertos e conquistados. Cada segredo

ou complexo de segredos comportando a nuance de uma individualidade, e

os vazios dos espaços de relações sociais a que se submetem e se

conflituam os segredos, ou melhor, os complexos de segredos, ou melhor

ainda, os portadores de segredos, isto é, os indivíduos.

A individualidade assim se põe contrária ao social e, ao mesmo

tempo, nele busca situar-se como indiferença para melhor poder usufruir das

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130 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

relações de opacidade em que se transformaram, ou parecem ter-se

transformado, as relações sociais para os sujeitos em relação. A

individualidade, porém, ao mesmo tempo, anseia ser tocada, experienciada,

vislumbrada, descoberta, encantada e, como tal, se põe a espera.

É nesta ambigüidade que parece constituírem-se, em nuanças, as

quatro categorias em que os informantes pensam a noção de perda. São

todas regidas por graus de receio e medo de exposição e do seu contrário,

de não serem descobertos.

Estabelece-se, então, algo, como uma espécie, pelo menos em

aparência, de um movimento ritual, novo e ainda inseguro nos seus passos.

Marcado pela discrição de gestos e economia de afetos, este movimento

que se gesta parece não habitar no respeito ao outro e seu segredo, mas, e

principalmente, como informa Simmel (1950, p. 321), a "tudo o que o outro

não nos revela em expressão (e que deve) ser mantido a todo custo à

distância do conhecimento (de cada indivíduo em relação)".

Mesmo que isso possa provocar uma reação em cadeia, e o próprio

segredo contido em um ser venha a correr o risco de não ser jamais

revelado. Embora ansiado, ao mesmo tempo que preservado, nessa

ambigüidade insatisfeita do medo de contaminação.

O perigo de não ser entendido constrange, ao mesmo tempo que o

conjunto de mal entendidos a que se expõe, ou poderá se dispor, um sujeito

em relação, inibe e o isola. E neste movimento ambivalente parece haver

uma espécie de anseio, sem um conhecimento claro sobre o porque, a um

retorno mágico a um tempo e a um espaço perdido, em algum lugar do

passado cuja memória se nega a enquadrar.

Tempo e espaço estes, onde seria possível estabelecer um encontro

sem correr o risco da perda de si mesmo, ou do desaparecimento do outro

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131 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

da relação. O que poderia até causar danos morais pela ausência sentida,

ansiada, mas ao mesmo tempo, pelo seu lado mágico e distante, evitada,

por diagnosticada como agente de poluição e causadora de sofrimentos.

A relação entre perda, enquanto sentimento moral, e sofrimento

parece ser evidente entre os 1304 informantes do questionário geral desta

pesquisa. Mas, como eles compuseram a relação entre estes dois termos? É

possível uma comparação entre eles, ou apenas o sofrimento engloba o

sentimento de perda como uma espécie de inevitabilidade irremediável?

Perguntados da existência de uma relação entre perda e sofrimento,

77,30% responderam positivamente a relação, contra 22,70%50. O

interessante a observar é que estes 22,70% afirmaram não haver relação

porque não existe diferença entre os dois termos. Para os informantes, a

perda e o sofrimento são a única face de uma moeda, não uma e outra, mas

a mesma face. A perda é sofrimento e o sofrimento é inevitavelmente

produto de uma perda, seja lá que origem tenha um ou outro.

Para eles, assim, é impossível pensar uma relação, que implica para

em seus cálculos em uma forma de interação entre dois. Pois uma é a outra

e vice versa. Pensar a perda remete sempre ao sofrer e pensar o sofrimento

implica um referimento à perda. Umbilical processo que parece remeter

inevitavelmente para a mesma sensação de impotência, e de preenchimento

pelo outro e resguardo de si.

Os 77,30% que responderam haver uma relação entre sofrimento e

perda, porém, por seu turno, estabeleceram três níveis diferentes para

expressarem esta relação. Como se pode observar51, 21,53% dos

informantes informaram esta relação através de uma Diferença de

50

Conforme pode ser observado no Quadro N. 18, anexo. 51

No Quadro n. 19, anexo.

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132 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Intensidade entre Pessoas e Objetos. A perda objetivada de objetos ou

pessoas provoca, segundo estes, sofrimento em um indivíduo.

Este sofrimento é uma espécie de conseqüência graduada e motivada

pelo sentimento de posse. De não mais possuir os elementos objetais

perdidos pelo desaparecimento ou pela desapropriação.

A gradação na intensidade de sentimentos envolvidos em uma perda

específica, assim, se encontra em relação ao conteúdo de posse ou de

aproximação entre o sujeito que a perdeu e o objeto ou pessoa perdida. É

uma relação objetiva ocasionada pela ausência e pela impossibilidade,

momentânea ou definitiva, de algo ou alguém significativo.

Parece estar mas próxima, assim, das relações de mercado, onde o

valor objetal é medido através da intensidade de ansiedade gerada no

sujeito que a detém ou que a perdeu. O sofrimento podendo ser medido e

quantificado, e diferenciado em intensidade nas gradações entre pessoas e

objetos, entre proximidade e apropriação.

A segunda relação estabelecida entre sofrimento e perda é expressa

por 47,82% dos informantes através da afirmativa: A Perda Provoca o

Sofrimento. Para estes informantes, o sofrimento é uma conseqüência da

perda. Um movimento que parece ser provocado pela ruptura ocasionada

pela ausência ou desaparecimento, definitivo ou parcial, porém concreto, do

objeto ou da pessoa amada. Reflete o estado de fragilidade que a pessoa

que sofreu uma perda se encontra no momento de tomada de consciência

do que perdeu.

O sofrimento seria, deste modo, um tipo de dor moral e física, pela

somatização de uma perda objetiva no indivíduo. Reflete, ao mesmo tempo,

um sentimento de impotência ante o objeto ou pessoa perdidos, e a

conscientização desta perda em si.

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133 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A terceira alternativa para a relação entre sofrimento e perda é

expressa por 30,65% dos informantes. Esta terceira relação, porém, é

estabelecida de um modo mais difuso, através da afirmação de que esta É

um Sentimento de Perda Eterna.

Este modo de referenciar a relação entre sofrimento e perda, não

parece circunscrever a relação a uma perda definida e objetiva, como parece

expressar a primeira e a segunda forma de relações propostas pelos

informantes. Expressa, ao contrário, a relação com um sentimento

estilhaçado, pulverizado, disperso no interior do sujeito. Parece referir-se a

algo ou alguém não de todo objetivado, como uma espécie de condenação

ou desilusão de mundo a que um sujeito está destinado a percorrer.

A perda passa a ser alguma coisa presente, irremediavelmente

enraizada no interior dos sujeitos, que parece ultrapassá-los pela plenitude e

eternidade de sua constância. E o sofrimento é a forma de expressão deste

sentimento disperso que agride e que acompanha os indivíduos em sua

jornada, como uma sina da qual não se tem forma de escapar.

Parece, de um lado, fazer parte de uma tradição judaico-cristã52

situada na perda da inocência e do paraíso, cuja recuperação se realiza

através da abdicação de uma vida terrena em prol de uma vida espiritual,

plenamente completa na pós vida após a morte. Mas, por outro lado, parece

realizar-se muito mais pela desilusão do mundo. Por não mais sequer situar

o objeto perdido, o paraíso ou a inocência, em um lugar mítico ou real do

passado, por não ter mais lugar onde originar a perda e o sofrimento dela

conseqüente.

52

Ver sobre a tradição judaico-cristã os importantes capítulos contidos nos livros de Kristeva (1988) e Carse (1987).

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134 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Destinado a vagar como um ser sofredor de uma perda acontecida

em algum momento ou em algum lugar indefinido, ao qual se quer lembrar,

se quer reapropriar, mas que cada tentativa parece colocar o sujeito para

mais distante, e onde, assim, mais pulverizado ficam os sentimentos,

tornando-se mais intenso o seu sofrer.

As três possibilidades de interpretação da existência de uma relação

entre sofrimento e perda transmitidas pelos informantes, assim, situam esta

relação entre um produto de uma perda objetivada, concreta, onde o

sofrimento aparece como uma conseqüência, quase natural, da tomada de

consciência de um ator de algo ou alguém que se foi, ou de quem ficou

privado, e um produto de uma perda difusa. Inatingível em sua origem, que

parece gerar uma espécie de nostalgia de algo ou alguém de alguma forma

extraviado de sua presença e cuja sensação é de um aniquilamento e

irremediável condenação a um sofrimento a ela inerente.

Paul Ricoeur (1994, p. 60 e 61), em seu estudo sobre o sofrimento,

estabelece diferentes degraus da manifestação de uma crise de separação.

O primeiro, é visto como se o sofredor fosse único e insubstituível. O

segundo degrau, aponta para o sofredor como um solitário, cujo sofrimento é

incomunicável e inapreensível pelos outros, os quais não podem

compreender ou ajudar. No terceiro degrau, o outro apresenta-se, ou parece

apresentar-se como o inimigo do indivíduo que sofre. No quarto e último

degrau, enfim, como condicionado e condicionante dos demais, o sofrimento

aparece para o indivíduo que o sofre como uma espécie de predestinação,

como de ter sido escolhido para sofrer. Estes degraus ricoeurianos parecem

assentar-se bem nas expressões utilizadas pelos informantes nesta

pesquisa.

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135 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O sofrimento que informam parece ultrapassar a própria vida do

sujeito, exteriorizando-se em eternidade. Prendendo-se em uma

atemporalidade sem passado e sem futuro, formada pela presentificação

contínua e repetitiva do não olvidar mas, também, não saber ao certo o que

e o como esqueceu.

O por quê eu? Pergunta e inferno do suportar a dor (Ricoeur, 1994, p.

61), como um ser que sofre e predestinado ao sofrimento, parece tomar

conta do sujeito que, sem resposta, parece cair ou em uma forma de

conformismo fantasmático ao sofrimento a ele destinado, ou a um ceticismo

nas formas de olhar os outros sociais em relação.

O conformismo fantasmático quanto o ceticismo parecem assim

serem as formas de enfrentar o mundo, nesta relação entre a perda, o

sentimento difuso de perda e o sofrimento a ela inerente. O mundo

apresenta-se, assim, sem confiabilidade, a não ser a da confiança em não

ter confiança legítima nas instituições e coisas públicas da ordem social.

Regras e etiquetas de uma sociabilidade são, desta forma, vistas com

uma espécie de desdém e descrédito. A perda é sentida, de um lado, como

algo a ser reparado pelo ator, que se culpabiliza pela sua efetivação e, ao

mesmo tempo, cria uma escala de gradações por onde possa expiar a sua

dor. E como tal, a dor é sempre pessoal, enquanto sofrimento reparador de

culpa. O que individualiza o sujeito e o constrange, ou parece o assim fazer,

ante o mundo e os outros sociais.

De outro lado, porém, a perda é vista pelo seu lado atemporal. É

sentida enquanto uma espécie de condenação impossível de ser reparada, e

cujo enfrentamento é o de retomá-la como espaço de criação de uma

temporalidade artificial que permita o sujeito remeter-se a um cotidiano

contínuo e repetitivo de mesmidade.

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136 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Não, deste modo, para a existência de uma finalidade, não, também,

para uma possibilidade de salvação, e não à existência de outra coisa a não

ser a si mesmo. Nesta eterna repetição, o indivíduo parece recriar-se em

cada momento de seu sofrimento, como um ser sempre já perdido e

impossível de realizar a ânsia por um fim, enquanto reparação.

O que parece provocar um sentimento de vergonha de si mesmo e

dos outros em relação. Aprisionando o indivíduo envergonhado na busca de

um auto controle que evite do olhar a instabilidade e a tensão. Embora, e ao

mesmo tempo, ânsie na intimidade do seu segredo, cada vez mais,

escondido a sete chaves, a necessidade do conforto e do repouso.

Sentimento de culpa e de vergonha parecem satisfazer assim os

parâmetros por onde se possa compreender a relação por eles estabelecida

entre sofrimento e perda. Os sentimentos de vergonha e culpa ao serem

tomados como dois sentimentos diferenciais, como o fez Lynd (1961), - o

segundo como um sentimento mais individualista, e o primeiro como que

ainda encoberto por uma malha por onde se espelha a tecedura de uma

coletividade, - podem ser usados para pensar a sociabilidade urbana

brasileira, principalmente entre a classe média, como vivendo uma

transformação na esfera do comportamento e da mentalidade dos seus

atores.

A principal característica desta mudança comportamental reside em,

ou tem por seu núcleo ou centralidade, um desapego crescente ao passado

e nas suas tradições, de um lado. E, de outro, um lançar-se a um novo

modelo cujos hábitos, não de todo claros e não de todo incorporados,

apresentam-se como constrangimento pessoal.

Apresentam-se como uma espécie de não saber agir, ou de não ver

como situar-se em situações de passagens, onde os elementos de ruptura

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137 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

ou de transição ficam mais acentuados, provocando mal estar, incerteza, e

uma dose maior de disfarce e máscara. De indiferença para melhor

esconder a face, e com ela ausentar-se ou negar o enfrentamento direto

com as situações de risco que o cotidiano lhe impõe.

O conformismo fantasmático, o ceticismo social das coisas públicas e

a descrença pessoal das instituições asseguradoras da cultura e do social

enquanto tradição parecem, deste modo, ampliarem-se. O que faz os

indivíduos tornarem-se, ao mesmo tempo, eternos seres a procura de algo

ou de alguém, a que ou a quem se possa amparar, mesmo sob a capa

céptica com que aparecem vestidos. Movimento de um processo ambíguo,

que provoca mais pessimismo, mesmo que transfigurado em uma alegria

carnavalesca, ou em um tudo qualquer que vira piada na mesa de um bar.

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138 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Capítulo 4

Viver o Luto

"Être en deuil, c'est souffrance, au double sens du mot, comme douleur et comme attente: le deuil est une souffrance qui attend sa conclusion, et c'est pourquoi toute vie est deuil, toujours, puisque toute vie est douleur... et quête du repos... ". - André Comte-Sponville (1995, p. 15)53

O luto, diferente da noção de perda expressa pelos informantes,

parece possuir um sentido mais integrativo. Sentido este, ligado ao processo

de reintegração do indivíduo à sociedade, através de uma introjeção da

perda, ou do ente querido morto, sentimentalmente, dentro de si. A perda,

por sua vez, parece informar, conforme analisado no capítulo anterior, o

sofrimento imediato em um indivíduo, provocado pela ausência ou

desaparecimento de um objeto ou pessoa queridos, e sua recusa de aceitar

o fim.

A sensação de sofrimento objetificada pela perda, parece tornar-se

mais e mais difícil de realização como luto. Motivada, seja pela rápida

transição dos costumes tradicionais vividos na sociedade brasileira,

especificamente a urbana, nos últimos trinta ou quarenta anos, seja pelo

processo de individualização e individualismo que acomete o cidadão

53

"Estar em luto, é estar em sofrimento, no duplo sentido da palavra, como dor e como espera: o luto é um sofrimento que espera a sua conclusão, e também é, por que toda a vida é um luto, sempre, desde que toda a vida é dor... e indagação do resto..." (Tradução livre).

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139 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

comum, e mais precisamente, os de classe média, residentes nas cidades, -

aqui, especificamente, as capitais de estado.

Seja, também, através do processo de questionamento às instituições

e instâncias de desindividualização vivido por estes indivíduos. Estes

motivos são o resultado, de um lado, do processo de individualismo recente

que acomete as relações sociais urbanas no Brasil e, do outro lado, pelo

conseqüente descrédito nos ritos e fórmulas rituais de um passado recente,

sem uma substituição adequada. O que vem provocando um estilo de vida

mais retraído pela vergonha silenciada de não saber como comportar-se em

situações específicas, e do aumento de um sentimento de culpa pela

dificuldade de ação e mesmo pela não ação ou por um agir inadequado. O

que parece afetar, igualmente, os que vivem um processo de perda e os em

sua volta.

Este capítulo tentará compreender como os informantes do

questionário padrão e os entrevistados diretos vêem, sentem e exprimem a

vivência do luto, e as dificuldades e facilidades das relações sociais

advindas da experiência deste processo, no Brasil urbano do anos de 1970,

principalmente, até hoje.

Desconforto e Ambivalência

Em uma conversa informal, no processo inicial de adequação de

linguagem e sedução antes do início de uma entrevista, e que serviu de

mote para se adentrar na narrativa de sofrimento do entrevistado, este

descreve o sentimento de desconforto a que foi submetido quando da

execução dos rituais funerários de sua mãe. Desconforto oriundo das

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140 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

diferenças interpretativas dele e de alguns membros da família envolvidos

com o episódio.

Para o informante, a falta de compreensão das diversas formas de

interpretação das atitudes das pessoas envolvidas em um processo de

perda no momento do despacho do corpo provocaram mágoas, sentimentos

de culpa e dificuldades posteriores de relacionamento entre os familiares. As

atitudes assumidas em um momento de dor intensa, provocaram além da

quebra de relações, sentimentos diversos de rejeição, desatenção e ira,

formando o que Turner (1975) chama de drama social.

O indivíduo entrevistado54 ao conversar as mágoas envolvidas pela

dificuldade de entendimento de atitudes pessoais na família em um

momento agudo de sofrimento e de passagem pela perda de um ente

querido, tocou em um problema comum a quase todos os demais

entrevistados nesta pesquisa, que é o de não saber lidar com a ambivalência

e com as diversas formas de vivência ritual na sociedade brasileira urbana

atual.

Este problema levantado pela conversa informal anterior ao processo

de entrevista, forneceu a chave de entrada para o universo narrativo

procurado pelo entrevistador para o início do trabalho. Criou o clima propício

entre entrevistado e entrevistador para o começo de uma conversa de mais

de três horas, sobre os significados de luto e a narração da vivência deste

processo pelo informante.

Inclusive, porque o entrevistado elaborava este relato, na conversa

inicial, com uma certa distância e com um misto de problematização e

humor, passados já quase dois anos do evento. O que facilitava o ritual de

54

Sexo masculino, 59 anos, casado, um filho, dentista, natural de uma cidade do interior do Ceará, mas que vive desde a sua adolescência na cidade de Fortaleza. (Entrevista n. 140).

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141 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

encantamento necessário para iniciar e prosseguir a difícil tarefa de

entrevistar os temas de sofrimento, perda e luto.

Ao pedir para contar com mais detalhes a anedota55 comentada pelo

entrevistado, deu-se início a entrevista. Conta o entrevistado que, a sua mãe

residia na sua casa, em Fortaleza, desde que o marido faleceu, há quase

oito anos contados até o momento de sua morte em 1998.

Era uma senhora idosa, de mais de setenta anos, quando começou a

viver com ele. Nunca trabalhou fora, era apenas esposa e mãe. Veio do

interior para a capital anos após o seu casamento, para que os três filhos

pudessem estudar o segundo grau e logo após a universidade. Desses três

filhos, um faleceu em um acidente de carro quando tinha vinte e poucos

anos, o segundo mora fora do estado.

Apesar de "nunca ter trabalhado fora ou estudado além do primeiro

grau"56, a mãe do entrevistado figurava como uma espécie de matriarca da

família, sendo uma referência de ligação entre membros dispersos da

grande família, tanto a do lado de seus país como a do lado do marido. Este

ponto de ligação, mais afetivo do que econômico, mantinha unida a família,

pelo menos nos contatos básicos do cotidiano de comemorações e perdas,

que celebram as passagens individuais e coletivas dos membros desta

instância desindividualizadora familiar.

"Não tinha aniversário de minha mãe que a minha casa não virasse

um tumulto, cheio de parentes que eu até não tinha intimidade, para

comemorar. Os que não podiam vir mandavam telegramas ou telefonavam.

Mas não deixavam de lembrar... Minha mulher no início não gostava, mas

55

Anedota, aqui, tem o significado preciso de um episódio acontecido e narrado com um certo distanciamento e humor. 56

Aspecto salientado com bastante vigor pelo entrevistado, não denotando uma depreciação mas antes uma espécie de orgulho da qualidade de articulação de sua mãe.

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142 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

com o tempo, e com o jeitinho de minha mãe, ela parecia acomodar-se. Pelo

menos até a próxima invasão... ... em cada natal e véspera de ano novo, em

cada festa comemorativa do ano, as notícias dos nascimentos, casamentos,

separações, mortes, minha mãe era a primeira a ser acionada. Servia como

ponto de encontro da família, ela sabia de tudo e juntava as partes em

discórdia, celebrava as festas e vitórias, comunicava a todos, servia de

conselheira, enfim...(riso) era uma política nata. Só que dentro da família.

Isso desde o tempo de meu pai... foi sempre assim" (Entrevista n. 140).

Quando a mãe do entrevistado morreu, de morte natural, segundo o

entrevistado, a família extensa deixou de ser a mesma. Os contatos ficaram

mais esparsos, e parece que todos se voltaram para a sua própria família

nuclear e a "tocar a sua vidinha sem se importar mais" com o todo.

Este fato, parece não incomodar tanto o entrevistado, já que ele

mesmo se expressa como "alguém que não tem tempo para nada. Acho

mesmo que nem a minha família, mulher e filho, tem a atenção que

deveriam ter. Me sinto às vezes culpado, mas o trabalho me envolve

bastante e a culpa eu vou deixando de lado... a não ser em crises familiares

onde ela me é passada na cara...". Os fatos descritos com um certo humor

sobre o processo ritual por ele vivido na morte de sua mãe, parecem ter

ocorrido em uma dessas crises "passada na cara".

Conta ele, que assim que sua mãe morreu tratou de avisar ao irmão e

a todos os parentes do episódio. Segundo ele, antes mesmo de resolver as

questões pendentes com o mercado e o ritual da morte, - como a compra de

caixão, flores, translado do corpo do hospital para um salão de velório, missa

de corpo presente, ajeitar o túmulo da família onde já se encontrava o corpo

do pai, enterro, entre outras atividades da cultura fúnebre, - "chatas e

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143 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

massacrantes, para quem já está dominado pela dor...e que fiz sozinho, sem

ninguém para me ajudar, tratei de comunicar a todos o acontecimento".

"Liguei primeiro para o meu irmão, e depois para a parentela. O meu

irmão, o safado, pareceu não ligar! Disse que estava muito ocupado, tinha

uma reunião importante que envolvia o futuro dos seus negócios, e não

podia vir para o enterro. Disse que eu depois enviasse a conta que ele

dividia comigo as despesas.

"Confesso que fiquei puto... desculpe o palavrão! Mas foi como eu me

senti. Nunca pensei que pudesse reagir assim, mas na hora, confesso, eu

tive uma discussão séria com ele... ...ele pensou que a minha chateação era

devido as despesas com o enterro de minha mãe, aí eu fiquei mais brabo

ainda... e hoje, passados já dois anos, nossa relação nunca mais foi a

mesma. A gente se fala por telefone, mas é uma relação formal, perdeu

aquela coisa que parecia nos unir como irmãos... sei que pode parecer

besteira, eu mesmo acho que é e rio disso, mas, às vezes, penso em ligar

para ele e conversar, mas me sinto incomodado, o que ele vai pensar, o que

eu vou dizer a ele... aí vou deixando de lado e esperando que o tempo

solucione. Mas parece que o tempo só faz piorar as coisas, a vida que a

gente leva, sem tempo, arrefece a dor, mas o comportamento muda, não

tem como retornar, e o que era junto parece ficar numa barreira ou num valo

enorme, separado, e mais separado... mas essa é a vida, o que fazer...".

A morte da mãe, o momento da morte, de uma mãe que unia a família

inteira, foi sentido pelo entrevistado, na recusa da vinda do seu irmão para o

enterro, como uma espécie de perturbação dessa união. Como desinteresse

e desclassificação do seu irmão para com a sua mãe, e para com o

entrevistado, visto que ele pensou o seu sentimento, de acordo com a ótica

do informante, como uma questão econômica, monetária, e não de algo

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144 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

mais importante, como o sofrimento causado pela mãe e a necessidade de

estarem mais unidos.

Apesar de esta mágoa arrefecer no seu interior com o tempo, no

período em que foi se realizando o trabalho de luto, e de ver o episódio

como uma espécie de mal entendido de ambas as partes, dele e do irmão, o

fato repercute nele ainda pelo afastamento ocasionado. Para o entrevistado,

este afastamento teve a ver com este episódio, com a barreira então

formada, e com as dificuldades de conversar a respeito, o que vem

aumentando a cada dia a frieza nas relações entre os irmãos.

O segundo episódio desta mesma narrativa, que cobre a anedota que

possibilitou o início e o entabulamento da entrevista, refere-se a uma

questão também de comunicação. O entrevistado narra o fato de ter

recebido dias após o sepultamento e da missa de sétimo dia da mãe, um

telefonema de parentes distantes, primos de sua mãe, sentidos com ele por

não tê-los comunicado da morte de sua prima.

Estes parentes referiram ao possível esquecimento de um telefonema

do entrevistado como "um descaso", e telefonaram para falar do

constrangimento que sentiram ao não serem informados do episódio e

demonstrar a mágoa que sentiam por terem sido deixados de lado, por

terem sido lembrados.

Nas palavras do informante, com um certo tom de ironia na voz,

esses parentes "telefonaram para mim para se queixarem pelo fato de terem

sido esquecidos por mim, e pelos outros membros da família, de serem

avisados da morte de minha mãe. Uma deles chegou a dizer explicitamente

que 'era porque eu era pobre que você e ou outros acharam de não ligar prá

mim, sou pobre sim, mas também tenho sentimentos e gostava muito de sua

mãe'." Segundo ele, "não adiantou minhas explicações, o que eu dizia

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145 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

parecia virar em um novo e mais demorado novelo de queixas e expressões

de mágoas. O sentimento deles não era apenas por não terem sido

comunicados, mas porque, parece, pela não informação, se sentirem

excluídos do enterro de mamãe. Do acontecimento (diz, rindo)!...

"Eu, na época não liguei muito. Tentei explicar mas, como foi pior,

ouvi e desliguei o telefone, e esqueci, ou tentei esquecer. Mas, de um tempo

para cá, eu ando entabulando um pouco os meus pensamentos sobre o

episódio e, apesar de achar ridículo, vejo hoje que as reclamações tinham o

sentido da família, da grande família que minha mãe, durante toda a sua

vida, tentou deixar unida, ... e com a sua morte esfacelou, ou quase...".

Este segundo episódio de dificuldades de comunicação e o

desconforto gerado, em um momento de intenso sofrimento, mostra, de um

lado, a fragilidade individual perante uma situação de crise, como os casos

de perda por morte parecem revelar. Deixam evidentes, para os envolvidos,

a atitude própria e dos outros, a partir de uma ótica da dor pessoal pelo

sofrimento causado pela perda. O que ocasiona a procura de aproximações

e aconchegos, ou demonstrações de carinho e afeto para com o morto ou

para os sobreviventes, e as mágoas dela provenientes.

De outro lado, porém, mostra também a ambivalência dos tempos e

dos espaços em que a leitura da morte e feita pelos indivíduos envolvidos.

Configura, também, a presença de cada um no ato da morte e as

representações dos mesmos pelo aspecto ritual em que ela se encontra

envolvida e de onde a presença de cada um é sentida, seja pelo olhar

pessoal de cada indivíduo, seja pelo olhar do outro em relação a sua atitude

perante a morte. Esta segunda face revela o lado mais social da relação.

A pessoa e o outro da relação são colocados em cheque pela morte

de um terceiro comum a ambos. As atitudes de cada um e as leituras que

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146 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

fazem, ou que são lidas como realizadas, são postas à tona como possíveis

detonadoras de conflitos, internos às pessoas e entre elas, quando, o que

se queria mesmo era aconchego, conforto e demonstrações de carinho e

afeto. A dificuldade de comunicação pela ambivalência das leituras de cada

um das margens de exclusão em que se coloca, ou coloca o outro da

relação, como vítima ou algoz, tendo o corpo morto como o referente

principal, parece vir acompanhado de um crescimento de mágoas que, o

tempo embora amenize, também provoca afastamento. E só mais

afastamento.

Com o tempo às magoas e os desentendimentos vão sendo

acalmados, embora o desconforto permaneça. Os códigos de proximidade

que uniam e garantiam um certo sentimento de família parecem ruir pelas

barreiras que vão sendo impostas pelos silêncios das mágoas e do

desconforto. O desconforto passa a ser agora a humilhação de ter de

chamar o outro para conversar, do que dizer ao outro e de como o outro vai

entender esse chamado. E da culpa de não realizar esse gesto de

aproximação.

A culpa e o medo de ser ofendido vão ampliando as margens do

silêncio e a frieza das relações. O mundo cotidiano volta a girar agora

esfacelado, ou mais fragilizado, pela quebra dos laços, das comunicações

intra e interfamiliar, e do evitar encontros ou situações que possam

constranger a si próprio e aos outros.

O evitar, e o esconder a face, usando o termo de Goffman (1980),

passam a afigurarem-se como atitudes que os enlutados passam a se haver

no período do pós luto. Um aumento da distância entre as pessoas

envolvidas parece ocorrer. A quebra dos códigos de um ritual de coletividade

que permeava a família enquanto instância de união e corporeidade sui

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Ser Discreto

147 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

generis, que parecia atuar acima dos indivíduos, e que os formavam e os

informavam como pessoas de uma rede familiar de afeto, e o desconforto

gerado pelo esfacelamento dos laços, além dos desgostos pessoais

provocados pela ruptura, tornam-se conformidades onde cada um procura

ajustar-se na sobrevivência cotidiana das relações consigo mesmo e com os

demais.

A família ao deixar de ser o eixo norteador dos quadros e

enquadramentos afetivos, enquanto reprodutora de relações emocionais

garantidoras de laços de convivência e confiança mútua entre pessoas,

passa a ser encarada como depositária de mágoas e desafetos. Emoções

sentidas entre indivíduos ou grupos de indivíduos no interior de um mesmo

laço familiar, migram da afetividade e reciprocidade, para o silêncio e o

distanciamento culpado. Começam a ser visualizadas, com o prosseguir do

tempo, como uma realidade distante onde existia algo não definido

plenamente pelos sujeitos envolvidos, mas expresso sentimentalmente,

como um elemento idealizado de positividade, onde a rede familiar

funcionava como agregadora e acompanhava a formação e amparava os

seus membros nas horas de precisão e crise.

No caso, aqui considerado, esta idealização é feita a partir da

representação do papel da mãe do entrevistado. Este papel de agregação e

de uma política afetiva de intermediação, respeito e amparo aos familiares, e

de facilitadora de trocas de informações entre eles, quebrado com a sua

morte.

Este elemento é importante porque retrata a questão de quão tênue

parece ter se tornado as relações de instâncias fundamentais na vida

brasileira, nos últimos trinta anos, como a familiar, por exemplo, aqui tratada.

A passagem representada pela morte, provoca uma crise nos sujeitos

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Ser Discreto

148 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

envolvidos neste rito acentuando, nos momentos mais agudos da dor da

perda, uma exacerbação da individualidade nos atores em sofrimento. As

relações são dificultadas pela dificuldade de se fazer entender. O que

obstaculariza as tentativas de acordo, pela individuação a que cada um se

encontra exposto e se joga para o outro como tábua de salvação ou repúdio.

Sempre intensos.

O que até pouco tempo atrás, até meados da década de sessenta,

funcionava como uma rede de amparo para momentos de crise, a família no

final do século XX e início do século XXI no Brasil aparece nas entrevistas

como quebradiça ou em processos de redefinição, onde apenas o núcleo

familiar básico funciona. E mesmo assim fragilmente, seja pela facilidade de

dissolução de casamentos e de remontagem de casais por novas uniões,

seja pela dificuldade cotidiana de manutenção de laços de continuidade, que

implica tempos e espaços amplos para serem administrados, e cada vez

menores nas formas assumidas pela sociabilidade contemporânea no Brasil

urbano.

Por outro lado, este caminhar para uma forma mais individualizada de

ação que parece ir assumindo as relações sociais no Brasil urbano, se

choca, a cada momento, com atitudes que ferem esta tendência. A

ambivalência das atitudes presentes nas relações entre os indivíduos

envolvidos, aqui, neste rito de passagem chamado morte, mostra bem as

contradições por que passa a cultura mortuária no Brasil.

Mais uma vez, o exemplo de luto aqui retratado através da narrativa

deste entrevistado sobre as relações familiares quando e a partir da morte

de sua mãe, é significativo desta relação de ambivalência. Ao tomar os dois

episódios de um mesmo ato, por ele narrado e aqui reproduzido, o da reação

do entrevistado em relação a atitude do seu irmão, e a reação de familiares

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149 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

sobre o comportamento do entrevistado, pode-se melhor entender este

comportamento ambíguo e as dificuldades a ele inerentes no atual momento

vivido pela cultura mortuária no Brasil.

O choque do entrevistado pelo aparente descaso do irmão com a

morte da mãe, e o tratar sua indignação como uma questão financeira,

mostra uma realidade de atuação de um sujeito no interior de uma

sociabilidade onde a perda da mãe é encarada como uma dor subjetiva e

privada. Onde o sujeito estiver e o que ele estiver fazendo não o poupam de

sofrimento pessoal, mas não o impede de tocar o cotidiano profissional por

causa do luto ou da morte de um ente querido. Para o irmão do entrevistado,

a impossibilidade de deixar os negócios para acompanhar os funerais da

mãe, causaria prejuízos a sua vida futura. A sua dor é dele, ele pode guardar

e viver com ela no seu interior, mas o mais importante, o objetivo imediato é

tocar sua vida, seus negócios: manter em funcionamento as condições

garantidoras de sua vida momentânea e futura.

Não tinha, assim, por que parar os seus negócios e os compromissos

do cotidiano por uma situação que não se pode mais voltar atrás, a morte. A

dor subjetiva é assim encarada com objetividade. As relações sociais,

profissionais, precisam ser mantidas.

Nesta relação, a morte apenas aparece como um elemento

perturbador, mas sem o rigor ritual necessário para sua compreensão e

integração. O sofrimento é do sujeito e sua a sua interioridade e vivência.

O forçar do entrevistado para que o irmão vivesse uma situação que

ele não via como necessária, e que não via também essa falta de

necessidade como uma indiferença e uma falta de sentimento pela perda da

sua mãe, criou um hiato no entendimento do sujeito que se viu forçado, e

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150 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

uma busca de sair dele através de uma proposição de um negócio: dividir as

despesas funerárias.

A proposição do irmão de dividir as despesas funerárias, como uma

forma de fugir a um forçar agressivo do entrevistado, criou também um fosso

para este último, na compreensão da atitude do irmão. Para o informante, a

proposição feriu os seus sentimentos pela frieza do irmão para com a

importância da perda, a transformando em um mero cálculo financeiro.

Tem-se, assim, dois modos de vivência da mesma realidade, dois

discursos mudos e impossíveis de troca, por se destinarem a destinatários

com vivências temporal e espacial diversas, da cultura mortuária no mesmo

Brasil. O que silenciou ambos em acúmulos de mágoas e, ao mesmo tempo,

de culpa.

Passado o período da dor maior, o sofrimento amainado pela

interioridade da perda no processo lento do trabalho de luto, ficou o silêncio

e a culpa como uma espécie de marca, onde a morte da mãe é relembrada e

idealizada, mesmo que agora, cada vez mais, sentimentalmente. Esta

sentimentalidade, na narrativa do entrevistado, passa pelo tempo de onde a

estrutura familiar era mantida, e o reforço pessoal dos seus membros eram

refeitos a cada momento de uma celebração ou crise na ação familiar, como

uma instância coletiva organizadora do individual.

Ao relativizar a atitude do irmão, vendo à luz do tempo, fica contudo a

ruptura, a dificuldade de retomar uma relação quebrada, e que só existe

enquanto idealização no sujeito que a rememora. Como retornar a este

passado desejado? O que dizer, no retorno de seu sentimento de culpa, pelo

estrago da relação entre irmãos, mas, também, o que dizer, de sua mágoa

de não ter sido procurado e do pedido de desculpa que não houve e não

haverá, de cada lado?

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151 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Questões que emergem e situam o indivíduo solitário no seu

rememorar, e aumenta o retraimento social dos sujeitos, e diminui a eficácia

da família em reintegrá-los e incorporá-los como ação solidária.

O segundo episódio, por sua vez, inverte a relação. É o entrevistado

agora que é questionado em sua atitude por familiares que se acharam

segregados por não terem sido comunicados da morte da mãe do

informante.

Mais uma vez, hiatos são criados e interpretações de cada lado são

realizadas sobre o comportamento de ambas as partes. Uma vez mais,

também, estas interpretações se cristalizam nos sujeitos em sofrimento pela

perda e se transformam em dificuldades de relacionamento, não apenas

momentâneo, mas que se refazem, continuam e se reforçam a cada novo

dia.

De novo, também, a idealização de um passado, onde a mãe atuava

como congregadora e potencializadora da rede familiar, vem a tona, de

modo sentimental, provocando ânsias de retorno. Mas, não sabendo,

simultaneamente, como fazer para retornar a uma posição quebrada no

passado, pelos sentimentos de mágoas, desgostos, humilhações, culpas

envolvidos. O que paralisa as ações e as fazem reconstruírem-se pela e

através da solidão e do isolamento dos sujeitos nelas envoltos.

Neste episódio, também, as interpretações foram originadas pelos

tempos e espaços específicos na cultura mortuária em que se situaram o

entrevistado e os parentes sentidos. O não serem convidados significou uma

exclusão da rede familiar, principalmente em se tratando da morte da

considerada matriarca da família.

A leitura de segregação elaborada pelos parentes tocou em um ponto

principal para eles, a falta de importância deles na rede familiar pela sua

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152 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

condição de serem, ou sentirem-se, os mais pobres. A segmentação feita

pela luz da polaridade riqueza e pobreza, aumentou o sentimento de

frustação pessoal dos que assim se sentiram, e os fizeram olhar para si

mesmos como desclassificados, na relação social no interior da rede familiar

em que se encontravam inseridos. O que provocou ou aumentou o rancor,

talvez até sentido anteriormente, mas amainado na convivência

socializadora e organizadora da estrutura de família em que se encontravam

imersos.

Do lado do entrevistado, as explicações do momento tumultuado em

que vivia e o de não ter lembrado, ou o de ter transferido a outros, que

também não o fizeram, a tarefa de avisar a toda a parentela, só reforçava

mais o sentimento de frustação e rancor por parte dos esquecidos.

Porque a questão envolta era a da instância ritual que representava a

comunicação do falecimento, a ida ao velório, ao enterro, a missão de

sétimo dia. Era a presença física no momento da despedida de um ente

amado. A falta de comunicação, que impossibilitou o comparecimento

desses parentes ao ritual de despedida, foi lida através de um sentimento de

exclusão social ou de discriminação. Um sentimento vivido, quem sabe, até

pela não comunicação de um falecimento qualquer, mas, e sobretudo, vivido

em exaustão emocional, principalmente, quando o falecimento era o de um

ente amado, considerado como matriarca para a família.

A sensação de exclusão da rede familiar, reduzido à condição de

pobreza pelos que a sentiram, representou a ausência deles em um

momento significativo para esta vida familiar. Para a cartase necessária,

através da presença de todos, no momento do trespasse da pessoa mais

significativa e garantidora das relações familiares daquela família. Significou

a quebra das relações sociais e de cordialidade em que se baseavam as

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153 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

trocas no seu interior, e de onde os conflitos que emergiam eram

solucionados ou reduzidos por uma força superior organizativa: a família

extensa como coletividade e sociabilidade, de onde cada um enxergava a si

próprio e os demais membros da família e a partir daí os outros, isto é, a

sociedade.

A ausência no ritual motivado pela assim sentida desconsideração do

entrevistado para com estes familiares, ao não os comunicar a morte de sua

mãe, e a importância do ritual para eles enquanto presença familiar,

enquanto forma de sentirem-se família ou pertencentes a uma família,

provocou sentimentos de desgosto, de mágoas, de verificação de sua

desimportância para a rede familiar como um todo. Pelo lado do

entrevistado, porém, a mágoa e as queixas vindas posteriormente por

telefone, não foram entendidas pelo aspecto da importância do ritual para

estes membros esquecidos e desgostosos.

Ficou para ele presente a mágoa de representação do ser pobre na

família, dita em tom enfurecido pelos familiares esquecidos. Ficou a

representação de uma importância maior desses parentes para um ato falho

seu, sem outra significação, a não ser a de um ser em sofrimento vitimado

em cobranças de posições que ele nunca tinha pensado. Ou, se tinha

pensado, nunca tinha expresso, nem os diferenciado conscientemente

enquanto relação. Ficou o tom de cobrança, o de cobrarem dele mais do que

ele próprio poderia dar.

A cultura mortuária onde estavam envolvidas as partes, deste modo,

não era a mesma para cada um deles. Pelo exercício do estigma, os

considerados como desprezados, colocaram na mesa uma relação mais

efetiva com o ritual de passagem e toda a sua dinâmica para a prática

familiar. Era importante para a reconfiguração e a reorganização da família

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154 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

enquanto núcleo pulsante de uma sociabilidade de referência para a

totalidade dos seus membros. O ritual da morte e a presença de todos os

envolvidos na rede familiar que sofreu a perda era necessário, na visão

destes, para a sua reprodução enquanto estrutura, e enquanto instância

desindividualizadora.

A exclusão era a ausência de comunicado, sentida como

desconsideração. Era o sentimento de serem considerados como não

membros, ou membros menores e insignificantes, da família, e por isso

renegados na hora do exercício do ritual de passagem vivenciado na morte e

no processo de despacho do corpo da matriarca da família.

O triângulo em que foi posto o entrevistado no processo de luto de

sua mãe, se indignando com a atitude do irmão e sendo objeto de

indignação por parte dos parentes não avisados desta morte, retrata bem o

momento de transição por que passa a cultura mortuária no Brasil urbano.

Momentos diferentes de individualidade são verificados e se expõem de

forma ambivalente para os sujeitos que os vivenciaram em relação. Um

estranhamento e um distanciamento afiguram-se, assim, como a forma

encontrada para verificação de cada outro da relação, os condenando, e ao

mesmo tempo condenando cada qual, à solidão e à idealização de uma rede

de relações, agora rompida e difícil de recomposição.

Estranhamento e Distanciamento

A ambivalência de gestos, de procuras e de interpretações analisadas

acima, faz com que a análise se debruce, neste momento, sobre uma

questão de definição do que é luto para os informantes. Esta pergunta foi

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155 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

colocada no questionário enviado pelo correio como uma questão aberta,

para ser respondida por todos os informantes, independente ou não da

experiência pessoal com o luto.

A totalidade dos informantes respondeu a questão, situando a noção

de luto em três categorias analíticas57. A primeira, Simbologia, retrata o luto

no interior de uma tradição cultural, onde os rituais fúnebres que o envolve e

as formas de comportamento assumidos pelas personagens envolvidas

ganham peso e delimitam o espaço do luto.

Para os informantes desta primeira categoria, o luto aparece em sua

face cultural mais visível. É a ela, isto é, é no respeito a toda uma simbologia

ritual que fundamenta uma cultura mortuária, que uma pessoa vive o luto por

um ente querido. A quebra desta tradição podendo causar danos sérios a

psicologia do envolvido e a sua reinserção no social. Esta primeira categoria

analítica foi enfatizada por 46,09% dos que responderam o questionário

aberto.

A segunda categoria expressa pelos informantes foi a que

considerava o luto como um sentimento. Definida por 45,86% dos

respondentes, a categoria sentimento, ao contrário da primeira, vê o luto em

seu aspecto mais introspectivo. É a subjetividade do sentimento que melhor

define para eles o estado do luto.

O indivíduo em dor, causada pelo sofrimento de uma perda de alguém

querido, é o ponto modal da definição do luto. As relações com o social são,

ou aparecem como secundárias, por serem vistas como públicas e fora do

sujeito. É enfatizado, desta forma, os aspectos do recolhimento, da potência

da dor individual de cada um, da capacidade de sofrimento envolto, da

57

Como pode ser visto no Quadro N. 20, anexo.

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156 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

introspectividade da vivência, do conflito entre indivíduo e sociedade,

estando o indivíduo em sua subjetividade fora, em sua dor, do social.

Para 8,05% dos informantes, porém, a noção de luto aparece como

uma Adaptação a um processo brusco de ruptura vivido por uma pessoa na

perda de um ente amado. Uma etapa necessária para que os processos de

reintegração da pessoa a ela mesma, e dela com o social, sejam realizados.

Completem-se pela introjeção do ente amado, perdido para a morte,

superando ou amenizando o estágio de sofrimento intenso provocado pela

perda.

As duas primeiras categorias que expressam posições polares sobre

o conceito de luto aparecem também, dividindo a totalidade dos

respondentes58. A polarização no Brasil urbano sobre as duas noções de

luto é interessante de ser percebida, pois ela demonstra a ambigüidade e a

dificuldade da vivência do trabalho de luto na sociedade brasileira atual59.

O estranhamento e o distanciamento parecem fazer parte assim da

experiência atual do luto no país. O que parece vir acompanhado por um

sentimento de solidão pessoal e pela dificuldade de saber como agir em

determinada situação frente à presença do luto.

O esconder a face goffmaniano parece ser a tendência atual da nova

sensibilidade em processo de consolidação no Brasil urbano, junto com o

aumento do autocontrole e o sentimento de solidão enfatizados pelos

58

Como pode se ver no Quadro N. 20. 59

Mais uma vez é necessário enfatizar que, quando se afirma sociedade brasileira urbana atual, nesta pesquisa, se está tomando os dados sobre o conjunto das capitais brasileiras. Estes dados distribuídos por cada capital, porém, independentemente do tamanho ou desenvolvimento urbano, em termos de equipamentos e oportunidades culturais, políticas, sociais ou econômicas, locais, aparecem do mesmo modo como duais e quase polares, nas definições dos respondentes. O que demonstra uma tendência comum a uma forma de sociabilidade nova no urbano brasileiro, que vem sendo assumida desde as últimas três décadas.

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157 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

informantes. É o que pode ser visualizado no Quadro n. 21, em anexo. Nele,

a solidão aparece como uma categoria expressa por 45,55% dos que

responderam ao questionário, contrastando com a quase polaridade de

opiniões na definição do luto no Quadro 20, discutido acima.

As outras duas categorias expressas no Quadro 21 para explicar a

vivência com o luto pelos entrevistados, de Tradição e de Introspecção,

aparecem também aqui polarizadas, mas caem para 26,61% e 27,84% das

respostas. O que parece denotar a margem de insegurança pessoal na

vivência do luto, neste período de transição das formas culturais e sociais,

neste processo formador de uma nova sensibilidade, experimentado pela

população brasileira urbana.

A experiência crescente com a individualidade nos moldes

individualistas no Brasil dos últimos trinta anos, se amplia, de um lado, a

margem de negação da tradição mais relacional (DaMATTA, 1987) onde se

encontravam envoltas as formas de vivência do luto na sociabilidade do

passado recente nacional urbano, por outro lado, torna o luto em uma

experiência cada vez mais subjetiva e vivida em solidão pelo sujeito em

sofrimento. O mesmo parecendo acontecer com os que tem a tradição ou a

cultura simbólica do luto como referência.

A perda progressiva de força da simbologia e da tradição das

instâncias desindividualizadoras no Brasil, desde os anos de 1970,

principalmente, parece ter provocado também seqüelas naqueles que ainda

hoje a advogam. A experiência tradicional do luto não parece estar

permitindo uma vivência mais em coletividade do processo de enlutamento,

ou esta coletividade não tem mais o vigor de aquietar as tensões e conflitos

resultantes da experiência da perda de um ente querido nos indivíduos nele

envolvidos. O que aumenta a insegurança pessoal na expressão dos

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158 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

sentimentos na coletividade e, também, aumenta o desconforto de não se ter

mais a certeza de que estas instâncias assegurem o conforto necessário ao

enlutado. Associado, ainda, à necessidade de abafar as expressões

ritualísticas com o luto no social, com receio de ser mal interpretado, ou de

ser discriminado no social por receio, deste último, de contaminação (ELIAS,

1989).

A solidão parece ser, assim, também, uma experiência marcante em

uma parcela significativa daqueles que admitem ainda o luto como uma

expressão da cultura mortuária e sua ritualística organizacional social.

O desconforto parece assim ser a tendência geral assumida na

experiência recente brasileira, no urbano, sobre o luto enquanto expressão e

vivência. Desconforto que leva a um aumento significativo da solidão do

sujeito em sofrimento, e a ver a sociedade e as suas formas de sociabilidade

com um certo estranhamento. Como se as regras sociais em vez de acalmar

e organizar o sujeito em dor, tencionasse mais, ferisse mais estas pessoas,

as forçando para uma experiência emocional solitária e sem outras

expressões que não o fingimento e o distanciamento social.

As relações sociais do luto passam assim a ser mantidas com a

máxima discrição possível. As formas higiênicas sobre a vivência do

sofrimento pela perda passam a ser referenciadas, não apenas por

aceitabilidade das regras individualistas em que parecem acentar-se as

formas breves de convívio social em situação de morte mas, e

principalmente, pela ausência de regras. O não saber comportar-se em uma

situação limite, como a do sofrimento causado pela morte de um ente caro,

aumenta a insegurança no social de quem vivencia o enlutamento. Seja por

não saber como agir como enlutado, seja por não saber como agir quando

precisa conviver com o luto de outros próximos.

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159 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Um e outro aspecto acima tratado faz crescer o desconforto dos

indivíduos na cena social do luto, os fazendo estranhar esta situação e os

forçando a adequarem-se à distância nos relacionamentos obrigatórios da

vida cotidiana. Seja na brevidade das visitas e formas de demonstração de

solidariedade, seja no distanciamento tácito, quase enojamento, que se vê

exposto nas relações sociais aqueles que vivenciam a experiência do luto e

buscam expressá-la além dos limites breves sociais ou dos encontros

íntimos. Seja, ainda, porque as instâncias de apoio coletivas, como a família,

a igreja, e outras, não mais comportarem em si a legitimidade de assegurar

o conforto ao sofrimento, necessário para a introjeção do corpo morto e para

a saída do luto.

Encarado de forma introspectiva ou na forma de uma tradição cultural

e social, o luto parece ser vivido na atualidade das relações sociais, na

sociabilidade urbana brasileira, como um processo solitário. Na solidão dos

sujeitos que o experienciam. O que parece indicar uma tendência maior para

o constrangimento público da demonstração de sofrimento.

Discrição realizada, não por regras claras do comportamento perante

o ato e a cena de luto, mas, e principalmente, por ausência de regras, de

não saber comportar-se perante esta situação. E, por as formas

desindividualizantes na sociedade brasileira não mais corresponderem

plenamente as novas exigências, inquietações e angústias dos seus

membros.

Apoio e Afeto

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160 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Estas relações de distanciamento e estranhamento que levam a

solidão do sujeito que vive o processo de luto pessoal, ou que com ele se

relaciona, não podem, por seu turno, ser consideradas de modo absoluto.

De maneira alguma. Os indivíduos que experienciam o trabalho de luto

também afirmam que receberam apoio, carinho e demonstrações de afeto

quando precisaram, e que recorreram ou foram auxiliados por instâncias

desindividualizantes no momento maior de crise pessoal ocasionada pelo

sofrimento da perda.

O que se quer demonstrar, contudo, é a tendência atual para um

desconforto geral sobre o como comportar-se neste momento de transição

por que passa a sociedade brasileira, principalmente a urbana, aqui

investigada, no lidar com o luto e seus processos. Os códigos de referência,

os valores, os hábitos comportamentais, as regras e as normas sociais a que

se estava acostumado em um Brasil de passado ainda recente, se ainda

continuam a viger, não apresentam-se com o mesmo peso cultural de um

tempo atrás. São olhados mesmo, até, com um relativo desprezo.

Vistos como costumes e maneiras de ser de uma cultura não

totalmente urbanizada, ou como uma idealização de um passado. Passado,

como que, perdido em algum lugar e, se não de todo esquecido, que não se

tem mais possibilidade de ser retomado em sua plenitude. A solidão dos

sujeitos em uma sociabilidade cada vez mais hostil, é o que afigura-se,

assim, restar.

O questionário trás uma questão referente a se o informante, no seu

processo de luto, recebeu apoio de algo ou de alguém específico. Uma

pergunta, é bom frisar, de possibilidade de respostas múltiplas. Um mesmo

informante poderia indicar uma ou mais possibilidades de apoio recebidas

durante o trabalho de luto.

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161 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Nas respostas a esta pergunta, conforme pode ser visto, no Quadro n.

22, anexo, tem-se desde um enfático Ninguém, representando 4,78% das

respostas, até as Lembranças, com 21,95%, representando elementos de

vivência do luto de uma forma mais introspectiva e ou solitária. Se si somar

as duas, tem-se uma representação de 26,73% da amostra para uma

experiência mais subjetiva do processo de luto.

A Família, 23,78%, os Amigos, 8,18% e a Religião, 25,86%, contudo,

mostram ainda a importância das instâncias desindividualizantes no serviço

de apoio ao brasileiro urbano do final do século XX no trabalho de luto.

A referência ao Trabalho, com 15,45% das respostas, como uma

possibilidade de apoio aos enlutados, representa, por seu turno, uma

espécie de categoria intermediária entre os dois blocos acima tratados. De

um lado, pode ser visto como uma espécie de fuga dos problemas

relacionados ao sofrimento que o agente em luto vivenciou, servindo como

uma espécie de aparato público onde, um indivíduo em situação de luto,

encontra anestesiamento à sua dor.

Como disse um entrevistado: "... foi o trabalho que me livrou da

obsessão quase alucinada da dor da perda da minha amada. Quando ela

morreu, queria também morrer com ela, parecia não poder resistir ao

tamanho da dor; passei o primeiro dia de sua morte, depois do

sepultamento, como um zumbi, um morto vivo sem saber o que ou como

reagir àquela dor tão grande..., no dia seguinte, porém, levantei de uma noite

insone, tomei banho e saí de casa e me meti no escritório. Trabalhei como

um louco... mas não é que, enquanto fazia isso, parecia que não tinha tempo

para pensar no sofrimento por que passava. A dor parecia anestesiada em

mim... Quando saía do trabalho e ficava só, a loucura, o desejo de morrer,

de acabar com tudo me tomava conta, até retomar de novo, no dia seguinte

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162 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

o trabalho... . E foi assim: trabalhando como um enlouquecido, e ao mesmo

tempo não vendo futuro no que estava fazendo e querendo jogar tudo fora,

mas, contraditoriamente, me aferrando mais no trabalho, que consegui

resistir ao tempo mais nebuloso da dor do luto..." (Entrevista n. 38)60.

Demonstra também, por outro lado, a solidão na vivência do luto.

Revela a falta de uma instância que sirva de amparo, proteção e auxílio

através de regras de conduta e ritualísticas da condução do ser em

sofrimento para uma reintegração consigo mesmo e com a sociedade. O

trabalho funcionando como uma espécie de esquecimento de si mesmo,

uma válvula de escape, por manter o indivíduo ocupado. Por manter o

sujeito alheio ao seu sofrimento, por aliená-lo, por assim dizer, da perda de

que foi vítima.

Como pode ser visto na entrevista acima, menos que amparo, o

informante encontrava uma espécie de fuga no trabalho. Isolava-se de sua

dor, e isolava os outros de sua dor. O trabalho representando uma barreira

imposta por ele, conscientemente ou não, pouco importa, aqui, para o seu

acomodar-se ao sofrimento.

Esta fuga à dor parece ajudar a superar, contudo, a crise do luto no

momento mais agudo do sofrimento. Como o entrevistado acima, parece ser

também a opinião da maior parte dos informantes que responderam ao

questionário enviado pelo correio. No Quadro n. 23, como pode ser visto

anexo, as respostas à pergunta sobre o sentimento do informante em

relação ao trabalho, no momento de vivência do luto, concentraram-se,

quase completamente, na categoria "Ajudou a Superar a Crise", com 82,82%

do total dos respondentes.

60 O entrevistado é do sexo masculino, com idade de 63 anos, profissional liberal, nível superior, tem uma firma de contabilidade, viúvo, dois filhos em idade adulta e já casados.

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163 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Ao se dividir os 17,18% restantes, encontram-se as categorias

"Normal", com 3,99% das respostas, e "Pouca Concentração", com um total

de 13,19%. O sentimento expresso de Normal, parece implicar em uma

afirmação de distanciamento e autocontrole do sujeito em luto com relação

ao trabalho. "Vida pessoal e trabalho não se misturam" colocou de lado, no

questionário, um informante da cidade do Rio Branco, capital do Acre. O que

parece sintetizar esta categoria de "Normal".

A "Pouca Concentração", por seu turno, configura-se no agir no

sentido inverso da categoria "Normal", isto é, na dificuldade do informante de

diferenciar sua dor pessoal da sua vida pública. O sofrimento do luto, assim,

representa um acontecimento que tumultuou a vida do sujeito, o fazendo

perder o sentido do mundo. O local de trabalho, ou o trabalho, não é sentido,

ou não serve, como um elemento apaziguador, mesmo se si a configure

como uma espécie de fuga, da dor individual, pela perda sofrida.

O que, possivelmente, levou os informantes que assim se sentiram e,

para os outros, em sua volta a viverem situações de desconforto e

constrangimento. Diz uma entrevistada que, "por pouco não perdi o

emprego...

"Não conseguia atinar no que estava fazendo, tinha que repetir a

mesma coisa várias vezes, sem acertar... ...fiquei tão desconcentrada e

alheia ao que se passava em minha volta que o meu chefe, um bom sujeito,

chegou até mim e disse que eu estava perturbando todo o ambiente a minha

volta. Ele disse mais ou menos assim: 'não é o errado que você está

fazendo, isso eu até compreendo, embora você deva se concentrar mais,

sair desse estado que você se encontra, mas é principalmente a situação do

resto do pessoal: todo mundo não sabe mais o que fazer. Você está

Perdeu a esposa.

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164 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

perturbando o ambiente', e pediu para que, se eu não pudesse melhorar de

atitude, era melhor tomar uma licença..." (Entrevista, n. 24)61 .

A categoria "Ajudou a Superar a Crise", por seu turno, indica a

importância do trabalho para o lento processo de luto na sociabilidade

brasileira atual, com os seus 82,82% das respostas. O momento do trabalho,

e a obsessão com que o sujeito em sofrimento se apega ao trabalho, parece

servir como um apaziguador momentâneo da dor, sofrida pela perda. Mas,

ao acompanhar o compasso ministrado pela narrativa da Entrevista n. 38,

acima, pode-se notar que, ao sair do trabalho o vazio é recomposto. A dor

da perda retorna em sua intensidade ensandecida.

A vontade de recorrer a alguém e o não ter a quem recorrer,

exaspera-se no interior da pessoa enlutada, aumentando a sua solidão. Bem

como, a expressão de revolta contra a sociedade e contra si mesmo.

Configurando-se em um sentimento de não querer recorrer a ninguém ou a

nada, a não ser, nas palavras de uma entrevistada, "o jogar para o alto tudo,

fugir, morrer ou... recomeçar em um lugar qualquer, começando qualquer

coisa, sem sentido..."62 outro que não o de reproduzir a própria fuga do

sofrimento a que o indivíduo se encontra acometido.

Este, também, parece ser o sentimento presente no depoimento de

uma profissional do meio artístico nacional a uma revista de costumes

destinada ao público feminino, Desfile (março de 1992), falando do luto por

ela vivenciado63. Ela também coloca o trabalho como a forma de esquecer

dela própria e de situar-se perante os outros, isto é, a sociedade, durante a

fase mais pesada deste processo. Ela afirma que o exercício profissional

61

Sexo feminino, 33 anos, bancária, nível superior, solteira. Perdeu o noivo em um acidente de trânsito. Residente na cidade de Rio Branco, capital do Acre. 62

Entrevista n. 248: Sexo Feminino, 45 anos, solteira, médica. Sua entrevista refere-se a morte do seu pai.

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165 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

ajudou-a mascarar a sua dor em público e também a força-la a sair de si

mesmo e participar da realidade, pela disciplina imposta.

Embora, nesse exercício, quase obsessivo, o trabalho também

funcionou como desilusão pessoal da própria ação como intérprete. No

compromisso técnico a que ela diz ter-se agarrado, não havia a arte mas, e

apenas, a disciplina, e era isso que lhe exigia o social.

O misto de disciplina social, pelo trabalho, e de desilusão do próprio

trabalho enquanto complemento pessoal, na vivência do sofrimento onde a

categoria Trabalho é apontada como instância de apoio ao luto pessoal de

alguém, mostra bem este elemento na sociabilidade brasileira dos últimos

anos. O trabalho agindo como um tipo de funcionalidade e de ligação entre o

indivíduo e a sociedade, entre o eu e os outros, em uma relação de crise

vivida por um sujeito qualquer.

Diferente das instâncias desindividualizadoras, como a religião ou a

família, o trabalho funciona como esquecimento de si próprio e de

mascaramento da face para os outros. É uma instância de recorrência de

cunho mais individualista, à diferença da religião, onde a crença em uma

simbologia e em uma cosmologia específica, ou da família, onde a rede de

afetos e de reprodutibilidade e permanência parecem ser os fatores de

reintegração e apoio do indivíduo no ritual de passagem experienciado na,

ou através da, morte de um dos seus membros.

Funciona como uma espécie de desencontro, onde a passagem do

luto deixa cicatrizes. O que aumenta o hiato que separa o indivíduo dos

outros sociais, o fazendo perder a ilusão de significados e sentidos

presentes no trabalho e na sociedade para a sua vida. O que configura o

63

Tratado mais profundamente no primeiro capítulo deste trabalho.

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166 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

viver, para o indivíduo em sofrimento, em algo instrumental, "apenas

técnica".

O retraimento da pessoa do social, na ação mais mascarada, isto é,

disciplinada, parece, assim, aumentar. O que faz o indivíduo isolar-se em si

mesmo, vendo a si mesmo e sentindo-se enquanto ser subjetivo e

inalcansável. Ser que, ao mesmo tempo que anseia ser tocado e

descoberto, retrai-se até de si mesmo, e esconde a sua face em máscaras

que o isolam do social, oferecendo a este último apenas a "técnica", a

funcionalidade mecânica de sua presença nos atos e locais onde ela é

requerida.

A rede de afetos e sociabilidade, por outro lado, ainda é um elemento

marcante entre os entrevistados que disseram que sentiram-se apoiado pela

família ou pelos amigos: perfazem juntos um total de 31,96% das

respostas64. A estrutura familiar e a tecedura de amizade demonstram,

ainda, uma presença muito forte do outro no processo de reintegração do

sujeito em um momento de crise, na sociabilidade urbana brasileira.

Parecem funcionar como um anteparo ao sofrimento, pela experiência mais

ou menos comum, de partilha, que permite aos sujeitos envolvidos,

situarem-se em um mapa, como que, comum, de interação.

Mapa por onde os laços afetivos são renováveis a cada ritual de

passagem, de chegada, de avanço ou de despedida de um dos seus

membros, bem como nas alegrias e tristezas compartilhadas65. Cabe

64 Embora tendo-se em vista que a relação de amizade é diferente da relação familiar. A primeira parece possuir uma tendência mais individualizante das relações sociais, onde o indivíduo como pessoa social acima da sociedade pode escolher os que com ele melhor se afinam e o compreendem. Diferente as segunda, onde os laços de parentesco são determinantes e, ao mesmo tempo, determinados socialmente. 65

Ver, sobre o assunto, o interessante coletânea de artigos de Gilberto Velho (1987), principalmente os capítulos 8 e 10 intitulados: "Visão de mundo e estilo de vida em camadas

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167 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

diferenciar, contudo, a rede de amizade da rede familiar. As amizades, como

laço afetivo, possuem uma característica mais individualista, diferente da

família e, também, das relações de compadrio, comuns no Brasil de até

poucas décadas atrás. A estrutura por onde se desenvolve as relações de

compadrio, por sua vez, parece ser recomposta através de subordinação

dos laços de amizade à rede familiar.

O Quadro n. 24, anexo, mostra como os informantes do questionário

revelaram o sentimento em relação a família e familiares no momento do

luto. Como pode ser visto, das sete categorias com que os respondentes

fizeram expressar o seu sentimento nesta relação, três delas revelam um

pouco de mágoa ou de indiferença com relação a família. São elas, a

"Cobrança de Sentimentos", com 15,41% das respostas, a "Poucos Parentes

Apareceram", com 4,14% e, a "Não Se Preocupou", com 5,60%.

Este bloco de categorias perfaz um total de 25,15% das respostas

dadas à questão. Um número percentual que não deixa de ser importante e

não pode ser desconsiderado, embora revele, internamente, dois sub blocos

de situações e expressões de sentimento. O primeiro sub bloco remete para

as categorias de "Não Se Preocupou" e da "Cobrança de Sentimentos".

Nele, revela-se uma atitude dos informantes para com os laços familiares de

indiferença ou de constrangimento pela ação ritual de expressão de

sentimentos, caros, como já afirmou Marcel Mauss (1980), às instâncias

desindividualizadoras, ou à grupos mais homogêneos, por ele estudado,

onde a força ritual da coletividade é bem mais evidenciada e importante.

O segundo sub bloco, por seu turno, retrata também um

constrangimento, mas em forma de um desgosto diferente. Nele, está

médias urbanas: Algumas questões sobre o estudo de família" e "Cotidiano e política num prédio de conjugados".

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subentendido a expressão, por parte dos informantes, da ausência ou

descaso dos familiares para com o seu luto, e para o seu morto.

Como diferença do primeiro sub bloco, onde se está contra ou

indiferente aos apelos familiares, neste último existe um ressentimento da

indiferença familiar para consigo. Duas situações, em todo caso, que

demonstram a ambigüidade da experiência brasileira das últimas décadas

do século XX, no trato com as emoções.

O segundo bloco, contudo, representa quatro das sete categorias

indicadas pelos informantes como sentimentos em relação à família.

Reunidas, perfazem 74,85% do total de respostas à questão. As quatro

categorias deste segundo bloco, são: "Apoiado", com 18,95%, "Afeto", com

39,03%, "Apoio Nos Rituais", com 8,82% e, "Vontade De Ajudar", com

8,05% do conjunto das respostas.

Diferente do primeiro bloco de categorias, este segundo revela a

importância das relações familiares presente na atualidade da cultura

mortuária do Brasil urbano. A rede de afetos, de apoio, da vontade de

ajudar, da presença e participação ativa na preparação e continuidade dos

rituais que cercam o morto e, principalmente, os que a ele sobrevivem, ainda

é uma realidade sentida pelos informantes e expressa de uma forma

expressiva.

A significância da rede afetiva e de solidariedade na estrutura familiar,

com um destaque tão grande pelos informantes, parece caracterizar a

família como uma importante instância de reestruturação dos seus membros

no Brasil urbano atual. Esta família, por outro lado, configura-se, porém, em

não se referir mais apenas a tecedura extensa familiar vivida no Brasil até o

final da década de sessenta. Sua nova reconfiguração prende-se, cada vez

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169 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

mais, ao núcleo básico de formação, isto é, a chamada família nuclear,

composta pelos pais e filhos66.

A rede familiar brasileira, hoje, assim, deixa de ser prioritariamente

extensiva, englobando uma gama enorme de parentes em uma teia de

significados densos e de nomeação67 dos seus membros, como se viu na

entrevista que abre este capítulo, para se tornar uma instância menor cuja

densidade parece residir, principalmente, no afeto e no apoio sentimental e

de tarefas complementares entre seus membros.

Chamada, aqui, de estrutura familiar básica ou nuclear, a família

moderna nas amplas camadas de classe média no Brasil urbano, - composta

de pai, mãe e filhos, ou, em muitos casos, de mãe e filhos, ou pai e filhos, -

se afigura enquanto conformação tensa na contemporaneidade das capitais

de estado aqui estudados. Enreda-se por mecanismos diversos que

englobam, lado a lado, uma grande fragmentação organizativa, e uma

tendência à recriação de laços de ajuda no cotidiano doméstico entre a

família mais ampla, composta por avós, sobretudo, e irmãos dos pais,

secundariamente.

Organiza-se, assim, de um lado, em uma teia mais e mais

fragmentada. Teia que envolve os elementos nucleares de sua organização,

ou partes deles, e que parece caminhar à procura de autonomia e busca de

66 Chegando, quando muito, até aos avós paternos e maternos, e uma rede difusa de tios, isto é, irmãos dos pais. Esta família nuclear, também, às vezes, é considerada problemática e conflitual na classe média urbana brasileira nos dias de hoje, pela fragmentação que desde o final dos anos de 1970 parece acometê-la. A separação de casais, e o aumento do divórcio nos anos de 1980 em diante, parece indicar uma mudança no seu perfil. (Ver, entre outros estudos, que analisam a modernização e a tendência a fragmentação da família brasileira urbana desde a década de setenta do século XX, DURHAM, 1973; MERRICK et al., 1977; GANS, PASTORE & WILKENING, 1971; IUTAKA et al., 1975 e CASTRO et al., 1977). Embora seja interessante constatar que, mesmo fragmentada e em reconfiguração sempre tensa, o apoio afetivo familiar é apontado como uma das fontes principais de apoio e solidariedade nos momentos de crise individuais.

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170 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

formas de interdependência individualizada entre os seus membros. Por

outro lado, porém, para recriar-se neste caminho e esforço de

individualidade das relações, remonta todo um esquema de busca de apoio

logístico no interior da rede de parentes próximos. Remontagem, tanto em

termos afetivos, quanto na troca de favores cotidianos, que vão desde o

ajudar a cuidar dos filhos menores, na ajuda no orçamento doméstico, até o

apoio solidário em situações de crises68.

Esta rede familiar, assim, reproduz-se na classe média urbana

brasileira do início do século XXI, como uma estruturação tencionada entre

dois pólos. O primeiro polo, revela uma fragmentação e individualização

crescente, e o segundo, uma rede de trocas que envolve uma parcela

significativa de demais parentes, principalmente avós e tios próximos. Um

relacionamento conflitual, cada vez mais frágil através das fragmentações a

que parece estar exposto o núcleo familiar básico, mas, ao mesmo tempo,

intenso e ansiado como manutenção do cotidiano. E, principalmente, aqui,

na teia de afetos e solidariedade a que é capaz de afirmar-se, nos

momentos de crise e sofrimento.

Embora, seja necessário ressaltar a fragilidade atual desta rede

afetiva, que é a família, na sociabilidade da classe média urbana atual no

Brasil. As diversas interpretações e entendimentos possíveis, e os tempos e

os espaços vividos por cada membro da família, parecem, na atualidade,

possibilitar também rupturas e incompreensões, pelo não esforço, ou

impossibilidade momentânea de se escutar o outro através do seu lugar de

67

Social, Cultural, Política e Econômica. 68

Estes aspectos de uma rede tencionada na configuração moderna da família brasileira urbana, de classe média, tem sido estudados por, Bruschini (1990), Scocuglia (2000), Bott (1976), Lima & Medeiros (1990), Salem (1980), Velho (1987), entre outros.

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fala. Como se viu no tom de irônico lamento, do entrevistado que abriu este

capítulo.

A ambigüidade de situações, entre uma forma mais individualizada de

ação dos indivíduos de uma família e as trocas de favores e rede de afetos

renováveis e reestruturados em novas formas, que parecem se fazer no

cotidiano familiar da família de classe média urbana no Brasil, é conflitual e

tenso. A afetividade sendo construída sobre tensão permanente e em

pequenas rupturas de laços que indicam o caminhar mais individualista por

que se adentra o país.

A Religião

A religião representa também uma instância de apoio a vivência do

luto entre os entrevistados. Como pode ser visto no Quadro 22, a religião

apareceu com 25,86% das indicações múltiplas à pergunta sobre quem ou o

que apoiou o informante no seu processo de luto. O que implica que mais de

setenta por cento dos respondentes do questionário padrão indicou a religião

como uma das instâncias de apoio pessoal.

Perguntado de que forma a religião auxiliou o informante no trabalho

de luto, como pode ser visto no Quadro n. 25, anexo, 63,73% respondeu

através do "Conforto Espiritual", ao passo que para 10,81% dos informantes,

a religião promoveu em suas vidas uma "Mudança de Visão de Mundo". Os

25,46% restantes informaram que a religião não os auxiliou de forma

alguma. Resposta dada através de um lacônico "Não".

No cruzamento69 entre a religião freqüentada e o tipo de apoio

recebido, porém, se constata que, se de um lado, a maioria dos

69

O percentual é tirado, aqui, a partir do total dos informantes, isto é, 1304.

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respondentes conclama a religião católica como sua, 68,58% do total de

respostas, é nela também, por outro lado, que se concentra um número

significativo de indivíduos que responderam que a religião não ofereceu

qualquer tipo de apoio para os seus males, durante o trabalho de luto:

17,95% dos informantes. Os demais 7,51% que responderam não ter

recebido apoio religioso, também informaram não possuir qualquer religião.

O "Conforto Espiritual", contudo, foi respondido por uma parcela

considerável dos informantes, como o apoio principal recebido no momento

do luto: 50,09% dos católicos, 4,06% dos evangélicos e a totalidade dos

espíritas e de participantes de outras religiões. Já a "Mudança de Visão de

Mundo" foi a resposta da maioria dos informantes evangélicos ao apoio

recebido, 10,27%, contra, 0,54% dos católicos, conforme pode ser visto na

tabela 25.

Estes dados remetem, sem sombra de dúvida, para a afirmação da

maioria católica no país, entre os habitantes urbanos de classe média,

porém, indicam também, para a flexibilidade dos que professam a fé católica

em relação à própria religião. Esta flexibilidade entendida aqui como um

afrouxamento da crença e do apoio da Igreja em momentos de crise e de

sofrimento.

Quase vinte por cento dos católicos afirmaram não terem encontrado,

ou não terem recebido, ou não terem ido procurar o apoio da Igreja na hora

do sofrimento vivido pela perda de um ente amado. Embora se digam

católicos, a sua presença religiosa se faz apenas através do batistério e da

afirmação oficial de uma religião considerada também oficial e de nomeação

no Brasil, ainda hoje. A maioria das respostas, contudo indicam a

recorrência na hora de crise à Igreja, em busca de apoio e conforto. Alguns

chegando a alegar terem tido uma mudança de visão do mundo, no

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confronto entre a perda pessoal e a descoberta espiritual, através da

religião.

De outra parte, entre os evangélicos, a grande maioria respondeu

sobre a mudança em sua vidas, no momento da crise do luto, através da

mensagem religiosa. O encontro com a fé, parecendo representar o aspecto

principal de conforto e mudança de atitude perante a morte do outro

próximo. Já, entre os espíritas e ou que se situaram em uma gama de outras

religiões, foi enfatizado o conforto espiritual.

Entre os evangélicos parece haver uma concentração maior do

dogma da fé. Afigurado, principalmente, no enfrentar a religião como

sinônimo de um novo encontro perante a vida, como uma espécie de

renascimento. A Igreja configura-se por funcionar como uma espécie de

coletividade densa onde os seus fiéis se adequam e renascem para uma

espécie de novo mundo. O apaziguamento da dor do luto sendo redimida e o

sujeito reintegrado através da mensagem de mudança.

No caso dos espíritas e de outras religiões, como o budismo e formas

esotéricas de encontro com o divino, presentes nas respostas dos

informantes, o conforto espiritual parece ser mencionado, através de uma

mescla de situações, que reúne em um mesmo percurso uma crença holista,

de integração dos seres e da existência de mundos diversos, e uma crença

no indivíduo como o sujeito de integração com o todo.

Luto e Cotidiano

A religião católica, por muito tempo representada e sentida como a

religião oficial do Brasil, e ainda, a religião da maioria dos brasileiros,

principalmente entre a classe média urbana, não tem conseguido manter os

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174 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

seus fiéis no interior de uma prática mais efetiva e próxima da vivência do

dogma da fé. Apesar de, a partir dos anos noventa do século XX, ter tentado

voltar-se para o seu lado mais carismático e disputar o mercado de fiéis com

outras Igrejas, principalmente as evangélicas e as de origem africana.

A mistura entre as esferas da religião e do poder no Brasil, desde o

período colonial, contudo, bem como os diversos conflitos no interior da

própria Igreja Católica entre práticas mais modernizantes, populares e

ortodoxas, parecem ter criado um certo tipo de afrouxamento de laços entre

a hierarquia católica e os quadros leigos. Abrandamento que se, por um

lado, renova pelo batismo oficial o número de fiéis, estes, em grande

número, encaram a pertença ao catolicismo como um tipo de status mais do

que como um estilo de vida ou prática de fé.

Muitos só recorrendo à Igreja, ou aos seus preceitos, pela busca de

conforto espiritual. Ou a ela sequer mais recorrendo, por não acreditarem, ou

por não encontrarem na prática religiosa que professam, os elementos que

permitam o apoio necessário para o enfrentamento no cotidiano da dor

sofrida pela perda de um ente amado. Este hiato parece criar uma certa de

atmosfera mais introspectiva à vivência da dor do sujeito.

Este parece ser também o caso da estrutura familiar. Apesar de o

questionário mostrar que uma rede de apoio familiar é tida como referencial

para momentos de crise, pelos informantes, parece que, quando estas

informações são verticalizadas em entrevistas abertas, elas demonstram o

quão tênue esta rede funciona.

As acusações mútuas, as culpas, o sentimento de imposição de certo

tipo de demonstração de sentimentos, as atitudes mais exclusivistas, as

buscas de uma individualidade e de uma individuação perante o familiar, são

elementos recorrentes. As falas em diversos tempos entre membros de uma

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175 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

mesma rede familiar, vem adicionar a dificuldade atual de compreensão

entre as partes em litígio afetivo, e o de chegarem a um lugar comum. Este

conjunto tenso e conflitual parece fazer parte, hoje, de uma tendência maior

à privatização da vida familiar, em sua forma nuclear.

A idéia de privacidade parece fornecer, aqui, a chave para a

compreensão da ambigüidade que afigura caracterizar o processo de

transição por que está passando a classe média urbana brasileira. A

passagem de uma lógica relacional para uma lógica mais individualista,

configura ser o caminho seguido por esta transição de mentalidades e

códigos de ação. Transição que reflete no imaginário do homem comum

como sofrimento, solidão e insegurança no trato dos processos e ritos de

passagem mais agudos de sua existência pessoal no social.

As marcas, as mágoas, o sentimento de ser outra pessoa depois de

uma experiência traumática como a perda de um ente querido, parecem

refletir esta tendência. Indicam, acima de tudo, para uma espécie de

autocontrole na demonstração dos afetos e desejos pessoais, e para uma

vida mais severamente vigiada e de contenção de gestos e atitudes.

Vem se configurando em uma tendência de levar, ao mesmo tempo,

para uma espécie de desencanto com o mundo ao seu redor. Seja através

da relação com o trabalho ou com a profissão, que passam a ser sentidas

como mais técnicas e distantes do cotidiano do entrevistado, ou, seja

através das relações mais pessoais e afetivas, que passam a ser uma vistas

como uma espécie de canal de desvio deste mesmo dia a dia que se quer

evitar, enquanto sofrimento. Ambos aumentando as dificuldades de

locomoção mais afetiva no público, por uma frieza nas relações com o

cotidiano e por um encapsulamento do EU, que se esconde, cada vez mais,

em máscaras sociais de ocultamento da face, do quem sou eu.

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Ser Discreto

176 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Esconde o indivíduo e, ao mesmo tempo, amplia as margens de

ambivalência de sua ação social. Este passa por um esforço de

distanciamento nas relações com os outros e por não demonstrar emoção, e

na ânsia, simultânea, de ser descoberto na sua interioridade, e na beleza

escondida que sente possuir.

Esta privacidade amplia a margem da intimidade como um elemento

de caracterização do homem contemporâneo do Brasil urbano. O EU é

transformado em espaço íntimo (SENNETT, 1998) de onde o sujeito vê o

mundo e de onde o mundo jamais pode se aproximar completamente de sua

beleza. O que parece estabelecer e ampliar um conflito e uma tensão

permanente entre o indivíduo social, como instância quase psicológica e

espaço de subjetividade, e a sociedade, como espaço público de formas

instrumentais de ação e de constrangimento.

As queixas crescentes relativas ao estresse da vida cotidiana na vida

das capitais dos estados, bem como ao aumento crescente do sentimento

de depressão e insatisfação consigo próprio, parecem estar associadas a

este processo ambíguo de autopoliciamento e de vontade de exposição. De

uma vida pública para uma vida privada onde o espaço íntimo, ao mesmo

tempo que cresce e se expande torna-se, também, um elemento de

exclusão social, de exclusão da subjetividade do espaço social e público

onde se desenrolam as ações repetitivas do cotidiano do sujeito.

É o que parece demonstrar o Quadro n. 26, anexo. Foi perguntado

sobre se o trabalho de luto experimentado pelos informantes havia

modificado, de alguma maneira, o cotidiano de cada um deles, 79,75% das

respostas afirmaram que sim, que houve modificações. Destes, 25,69%

afirmaram terem realizado a "Busca de uma Nova Vida" e, 54,06% indicaram

a "Introspecção" como modificação sofrida após o luto.

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Ser Discreto

177 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A categoria "Busca de uma Nova Vida", está associada a vários

aspectos de procura dos informantes. Estes vários aspectos vão desde a

necessidade de procurar emprego, ou de mudarem de cidade, bairro, ou

ambiente familiar, por piora das condições econômicas, ou por terem de ir

morar com parentes ou terem sido encaminhados para cuidados

institucionais, tipo asilos e orfanatos, até o de encontro com um(a) novo(a)

companheiro(a) ou um novo amor. Falam, também, de uma maior liberdade

após o falecimento do outro, ou de terem descoberto a tranqüilidade e do

sentimento de bem estar na descoberta de novas formas espirituais no

interior das religiões tradicionais, ou em espaços místicos de grupos

esotéricos e de cultuação do EU, como a chave do desvendamento do

mundo.

Uma gama de tendências são, assim, expressas nesta categoria. O

que demonstra, de uma forma ou de outra, a procura de alocação de si

mesmo dentro das margens da transformação que a perda do ente amado

possibilitou à sua vida cotidiana. Os fazendo caminhar para formas de vida

diferenciadas da até então vividas e tendo que arcar com o rumo de suas

próprias vidas pela ruptura social e subjetiva que a perda os fez passar. Este

arcar com a própria vida não sendo necessariamente quantificado e

polarizado, aqui, em positivo e negativo, pela dispersão numérica e pouca

representatividade de suas diversas formas de apresentação, mas visto

como um todo diferencial da segunda categoria, "Introspecção".

Esta segunda categoria reflete o fechamento para o mundo por que

passou os 54,06% dos informantes que a indicaram na resposta a questão

formulada no questionário. Diferente da primeira categoria, esta parece

indicar uma guinada, em termos emocionais, na trajetória dos indivíduos que

a afirmaram. O que os levou para um tipo de opção guiada pela

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Ser Discreto

178 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

interiorização de seus sentimentos, e de uma vida mais regrada e auto

policiada na relação com os outros.

O uso, aqui, embora de uma forma não necessariamente igual, das

categorias de mudar ou permanecer, utilizadas por Velho (1987, p. 108) para

discutir os campos de possibilidades onde a ação individual é disposta no

social e enfrentada cotidianamente pelos indivíduos em suas instâncias

projetivas opcionais, pode ajudar a melhor compreender a diferenciação das

duas categorias analíticas afirmadas pelos informantes. Afirmativas

realizadas através da ótica do lugar da modificação por eles sofrida, no e

após o processo de luto, na vida cotidiana de cada um deles. O primeiro

grupo de respostas trabalhado, a "Busca de uma Nova Vida", como o nome

já indica, se encontra ligado a categoria de mudar, proposta por Velho.

Para ele, "mudar ... aparece sobretudo como um processo de

individualização em que a bibliografia de uma pessoa é destacada de sua

família e lugar de origem" ou "negar ou escapar de um projeto (que não era

seu)... e na procura de criar laços ... em que o lúdico seja acentuado..." (p.

108)70. Estas duas margens ambíguas da categoria mudar, refletem bem as

instâncias em que situam-se as diversas significações trazidas à tona pelos

informantes para expressarem o sentido de "Busca de uma Nova Vida" por

eles indicados como a modificação principal de suas vidas no decorrer e no

após o luto vivido.

Como indica Velho, esta mudança traz um aspecto laicizante de

enfrentamento do mundo. Aspecto existente mesmo entre aqueles que viram

nas formas religiosas e esotéricas as manifestação de um encontro novo em

suas buscas. O enfrentamento com o mundo, provocado pela ruptura brusca

causada pelo falecimento do ente amado, afigurou-se ou vem configurando-

70

Grifos no original.

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Ser Discreto

179 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

se como uma admoestação ou exortação do sujeito em luto. O que o faz

encarar o mundo como uma trajetória nova a ser seguida e buscada fora de

si, ou na valoração do si pela redescoberta da subjetividade esotérica para o

entendimento ou representação de novas formas de sociabilidade e

encontros com o outro.

A segunda categoria expressa pelos informantes, a de "Introspecção",

contudo, parece indicar a noção de permanecer usada por Velho. Para ele,

"... os projetos de permanecer aparecem fortemente associados a um

conjunto de símbolos ligado à família e, muitas vezes, à religião católica" (p.

108)71.

A leitura que se faz aqui, dos dados da pesquisa ora trabalhada,

indicam na categoria permanecer a relutância dos entrevistados de

assumirem integralmente uma forma nova de vida, após o luto

experimentado. Indicam, também, ao mesmo tempo, a dificuldade

encontrada de restaurar a antiga vida anterior à ruptura causada pela morte

de alguém a ele próximo. O que ocasiona um sentimento de rejeição,

consciente ou inconsciente, aqui não importa, do mundo e uma caminhada

no sentido da introspecção.

O desejo de manutenção dos antigos laços e as formas de alterações

por que estes laços passaram, ou da leitura realizada pelos indivíduos das

modificações havidas, os colocam vulneráveis à uma relação mais aberta

com os outros sociais. Passam, assim, como o que, a travarem uma batalha

entre as relações sociais que são obrigados a executarem, e das quais

perderam a ilusão, embora procurem em ansiedade restaurá-las, e os

significados das lembranças a que se remeteram em introspecção, e das

71

Grifos no original.

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Ser Discreto

180 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

quais observam o mundo sob a ótica da marca deixada pelo corpo morto,

querido, que se foi.

O mundo novo e o mundo antigo, restaurados sentimentalmente nas

lembranças, passam assim a possuírem um significado cotidiano de

sofrimento acumulado. Passam também por um sentimento de inadequação

maior às regras de uma convivência aberta que advogam, na busca da

restauração do permanecer ilusório anterior à morte do ente amado. O que

ampliam as margens do sofrimento, e as margens de insatisfação com o

cotidiano social das relações e, consequentemente, do grau de introspecção

deste mesmo sujeito.

Comportamento de Si e dos Outros no Trabalho de Luto

É importante frisar, porém, que as categorias expressas pelos

entrevistados e as categorias utilizadas, aqui, de Velho (1987) demonstram

mais a ambigüidade dos sentimentos e a ambivalência das ações dos

indivíduos do que categorias excludentes uma à outra ou coerentes em si.

Refletem, deste modo, este sentimento de fragmentação dos rituais de

alocação das necessidades trazidas pelo luto na sociabilidade

contemporânea do homem comum, de classe média urbana, brasileiro,

neste processo de transição experimentada pela sociedade no Brasil dos

últimos trinta anos.

As respostas a duas perguntas, expostas nos Quadros de n. 27 e 28,

anexos, sobre qual deve ser o comportamento de uma pessoa e o

comportamento dos outros em relação a ela no trabalho de luto, mostram

bem as dificuldades do homem de classe média no defrontar-se com uma

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Ser Discreto

181 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

situação de passagem como a morte, e o luto por ela provocado, no Brasil

de hoje. No quadro n. 27, as respostas sobre como uma pessoa em luto

deveria comportar-se dividem-se em três categorias: a primeira, "Ser

Discreto", contem 77,60% delas; a segunda, "Seguir a Tradição", possui

15,34% e, a terceira, "Não Existe Comportamento Ideal", 7,06% do conjunto

das respostas.

No Quadro n. 28, também três categorias foram indicadas pelos

informantes. A primeira, "Dar Apoio", tem 18,71% das respostas, a segunda,

"Não Importunar", possui 72,01% e a terceira, "Depende do Caso", 9,28% do

total.

Os Quadros n. 27 e 28 revelam um número muito grande de

respostas concentradas nas categorias de "Ser Discreto", 77,60% e, "Não

Importunar", 72,01%. Ambas revelam os traços de procura de autocontrole

das emoções e expressões de sentimento no comportamento referencial de

quem sofre uma perda ou de quem acompanha esta perda. As duas

reforçam a interpretação do drama social nas expectações dos sujeitos

envolvidos diretamente ou indiretamente nos processos de enlutamento.

As expectativas dos indivíduos na configuração de um cenário social

de drama, segundo Turner (1975), permite que os sujeitos apresentem

idealmente ou na vida prática versões e possibilidades de manipulações das

diversas situações em que se encontram envolvidos. Nestas novas

configurações, apontam direções ou remanejam emblemas e símbolos

culturais em um panorama de transição experimentado em um momento

específico, no caso, aqui, o processo de luto.

Este apontar ou remanejar permite a um analista identificar os limites

e a abrangência por onde se situa o comportamento individual no interior de

uma sociabilidade ou de um cultura qualquer. As categorias apontadas

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Ser Discreto

182 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

acima, indicam para uma tendência no sentido de um valor mais intimista e

privado da vivência no luto no Brasil urbano. Seja no comportamento

desejado para o enlutado, seja nas atitudes esperadas dos outros frente a

este enlutamento.

Em uma ou na outra esfera, isto é, tanto no "Ser Discreto" como no

"Não Importunar", encontram-se presente os sentidos da privacidade atual

das relações sociais estabelecidas no processo de luto. A higienização do

processo de dor, coloca o sofrimento para o interior do sujeito que a

vivencia, e leva os outros a não chegarem muito próximo do sofrimento

alheio, por um receio não apenas de não se contaminarem, mas e

principalmente, para não serem entendidos como intrometidos em uma

relação que, aparentemente, não tem nada a ver com eles e é da intimidade

do sujeito que a sofre.

O drama social turneriano deste modo, concentra-se neste cenário de

máscaras com que se passa o processo social de sofrimento no luto. De

ambas as partes existe um constrangimento de expressão de sentimentos

além do socialmente necessário para cada situação em que se encontram

os indivíduos. Dos dois lados da relação, o enlutado e o outro, se estipulam

possibilidades ambíguas de enfrentamento de situações onde as bases de

atuação ainda parecem não se encontrarem seguras e de onde os sujeitos

referem-se uns aos outros como indivíduos isolados na privacidade de suas

vidas e como indivíduos em busca de expressão de sentimentos ou de

sentimentos aflorados a serem identificados pelo outro, mas guardados a

uma distância crescente, como uma espécie de ocultamento da face de que

fala Goffman (1980).

O que possibilita, assim, de um lado, no aumento da solidão dos

sujeitos em relação. Solidão ampliada pela ambigüidade das ações de cada

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Ser Discreto

183 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

um nela envolvido, e de outro lado, no isolamento de cada parte desta

mesma relação. Também, pelo crescimento das possibilidades de

verificação de sua exclusão em uma questão considerada, cada vez mais,

de intimidade e da subjetividade do sujeito que a sofre. Além do

distanciamento causado pela individualidade crescente desta afirmação do

privado, em uma perspectiva individualista e de estranhamento do outro, que

parece estar sendo construída como formação contemporânea das relações

entre indivíduos na sociedade brasileira urbana.

Conclusão

Este capítulo buscou compreender como, no Brasil urbano dos anos

de 1970 para cá, principalmente, os indivíduos de classe média vêem,

sentem e exprimem a vivência do luto, e as dificuldades e facilidades das

relações sociais advindas desta experiência. Procurou demostrar, também, a

ambivalência dos tempos e dos espaços em que as leituras e as narrativas

do sofrimento são elaboradas pelos indivíduos em troca, indicando

dificuldades de compreensão de atitudes de cada um neste processo lido ou

narrado. Tentou, enfim, um melhor entendimento da ambigüidade e das

dificuldades a ela inerentes, no atual momento, vivido pela cultura mortuária

no Brasil.

O indivíduo em dor, como o ponto modal da definição do luto, foi de

onde partiu este processo analítico compreensivo. As relações com o social

apareceram como secundárias, por serem vistas como públicas e fora do

sujeito, e o aspecto de recolhimento e da capacidade de sofrimento envolto

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184 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

na introspectividade da vivência foi enfatizado, demonstrando o conflito entre

o indivíduo e a sociedade na sociabilidade urbana brasileira atual. O

indivíduo se encontrando, ou sentindo-se em sua subjetividade, fora do

social.

Uma das hipóteses trabalhadas neste capítulo foi a de que a

experiência crescente com a individualidade nos moldes individualistas no

Brasil dos últimos trinta ou quase quarenta anos se, de um lado, ampliou a

margem de negação da tradição mais relacional das formas de vivência do

luto, por outro lado, tornou o enlutamento em uma experiência, cada vez

mais, subjetiva e vivida em solidão pelo sujeito em sofrimento. A perda

progressiva de força da simbologia e da tradição das instâncias

desindividualizadoras no Brasil, parece ter provocado também seqüelas

naqueles que ainda hoje a advogam. A experiência tradicional do luto não

parece estar permitindo uma vivência mais em coletividade do processo de

enlutamento, ou esta coletividade não tem mais o vigor de aquietar as

tensões e conflitos resultantes da experiência da perda de um ente querido

nos indivíduos nele envolvidos.

As relações sociais do luto passaram assim a serem mantidas com a

máxima discrição possível. O não saber comportar-se em uma situação

limite como a do sofrimento causado pela morte, parece ter aumentado a

insegurança no social dos sujeitos que a vivenciam. O que vem a configurar-

se, assim, no aumento do desconforto dos indivíduos na trama e no drama

social do luto. O que faz crescer o estranhamento e os força os indivíduos a

adequarem-se à distância, cada vez maior, nos relacionamentos obrigatórios

da vida cotidiana.

Encarado de forma introspectiva, ou visto como uma forma de

tradição sociocultural, o luto afigura-se em ser vivido na atualidade das

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185 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

relações sociais na sociabilidade urbana brasileira, como um processo

solitário. Embora os dados indiquem que a rede afetiva e de solidariedade

que caracterizam a família e a religião, ainda funcione como uma importante

instância de reestruturação dos seus membros na atualidade, este

funcionamento se faz através da ambigüidade. Através da ambivalência

entre uma forma mais individualizada e uma rede de afetos renováveis e

reestruturados em novas formas, no cotidiano, vividas e experimentadas de

forma conflitual e tensa.

As queixas crescentes relativas ao estresse da vida cotidiana e ao

aumento das formas de depressão e insatisfação pessoal, parecem, aqui,

também, encontrarem-se associadas a este processo ambíguo. Afiguram-se

no enfatizar mais agudo da ambivalência das ações dos indivíduos e da

fragmentação dos rituais, além da tendência a um valor mais intimista e

privado da vivência no luto no Brasil urbano.

Indicam, sobretudo, o processo de distanciamento causado pela

individualidade crescente desta afirmação do privado. Individualidade que

vem se dando e consolidando dentro de uma perspectiva individualista e de

estranhamento do outro. E que parece estar sendo elaborada como

tendência de afirmação da sociabilidade brasileira urbana atual.

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186 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Capítulo 5

Tempos do Luto

"O pranto invadia a casa e derramava-se pela rua, enquanto o relógio batia seis horas e eu me preparava para a guarda do corpo" - Hermilo Borba Filho, (1967, p. 76).

No capítulo anterior buscou-se compreender como os indivíduos

apreendem e vivenciam o processo de luto na atualidade brasileira. Neste

capítulo tenta-se retratar, de um ponto de vista dos entrevistados e dos

informantes do questionário padrão, como entendem o processo de luto

através de uma comparação com os aspectos sociais e pessoais do

passado recente e do presente.

Enfatiza as narrativas e as respostas que tencionam a relação antigo

e atual, e as construções possíveis originárias desta relação para o

significado do luto na vivência pessoal do entrevistado enquanto esfera

comportamental. Os hábitos narrados ou construídos imaginariamente do

passado recente da sociabilidade brasileira, comparados com as

expectações das atitudes contemporâneas na experiência do luto, dão o

sentido deste capítulo. Procura-se, nele, entender um pouco mais o ritmo

das tensões e como estas são vividas pelos sujeitos neste processo de

passagem que se refere à morte de um ente querido e às formas de

introjeção deste nos que ficam, através do trabalho do luto.

Thales de Azevedo (1987, pp. 60 a 64) abre o capítulo intitulado "Os

Rituais da Morte", no seu livro sobre o ciclo da vida, afirmando que "A morte,

última baliza do ciclo da vida, encerrando a existência, é, para toda a

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humanidade, assinalada pelos mais dramáticos ritos" (p. 60). Disserta, a

partir de então, sobre as diferenças rituais que cercam a morte no mundo

social, e as possíveis mudanças, em uma determinada forma de

sociabilidade, ocorridas no decorrer do tempo.

Passa a tratar do caso brasileiro e a contar as transformações rituais

sofridas no decorrer da história funerária do país deste "verdadeiro rito de

passagem" (p. 61) que é a morte. A seguir, comenta o luto, como um

processo "praticamente abolido no Brasil" (p. 63), fazendo uma ligeira

observação ao rigor como era tratado antigamente e como hoje é olhado

com um certo distanciamento pelo homem urbano contemporâneo.

Câmara Cascudo (1976, 1976a, 1985 e 1993), Galeno (1969), Martins

(1983), Rodrigues & Silva (1981), Poliello, Pessoa e Pompa (1987),

Rodrigues (1983), Souto Maior (1974), Souto Maior & Valente (1988), Levine

(1983), entre outros autores, também trataram em suas obras de retratar o

caráter ritualístico da morte, do morrer e do luto no Brasil a partir de uma

visão de comunidade. Aspectos comunitários ressaltados como existentes

na vida brasileira de até os anos sessenta do século XX, e com resquícios

cada vez menores no urbano, a partir dos anos de 1970 em diante.

Buscaram mostrar as variedades das formas e a simbologia envolvidas

neste ritual de passagem, como uma instância sociocultural de controle dos

enlutados, e com a preocupação com a reintegração destes sujeitos

individuados pelo sofrimento, ao social.

A relação da morte, do morrer e do luto no Brasil urbano, a partir dos

anos setenta do século XX, é retratada por autores como DaMatta (1987),

Koury (1993, 1996, 1996a, 1998 e 1999a, 2001), Lins (1995) e Santos

(2000) entre outros, dentro de uma perspectiva das Ciências Sociais, e por

uma gama de outros autores dentro de uma perspectiva psicanalista, ou da

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188 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

psiquiatria e da psicologia social e comportamental72. Os trabalhos sobre o

processo de luto dentro de uma perspectiva das Ciências Sociais no Brasil

contemporâneo, contudo, apareceram apenas recentemente no cenário das

pesquisas e temáticas pesquisadas, e ainda são poucos os estudos no seu

interior73.

Nas Ciências Sociais, o luto procura ser entendido dentro da relação

estabelecida entre o indivíduo e a sociedade, e como uma conseqüência

desta relação. Faz parte da experiência individual dos sujeitos sociais, como

um processo único e específico mas, ao mesmo tempo, é compreendido e

compartilhado por toda uma coletividade espacial e temporalmente

delimitada. No caso do presente estudo, este procura compreender esta

relação no momento de transição social por que passa o Brasil

contemporâneo. Difere, assim, da psicologia, que se preocupa com o estudo

sobre a sintomatologia do luto ou com a busca de estabelecer caminhos de

intervenção e assistência psicológica nos processos de enlutamento74.

Ambos os esforços, contudo, dentro de uma abordagem da sociologia

da emoção ou da psicologia, isto é, de cunho analítico compreensivo ou de

busca de intervenção, preocupam-se com o entendimento do fenômeno do

luto no processo de individualidade, com caracterísitcas individualistas, que

vem se processando de maneira intensiva no Brasil destes últimos trinta

72

Existe uma variedade enorme de trabalhos de tendência psicológica no Brasil, não interessa aqui listá-los por não constituírem um interesse direto no veio analítico da pesquisa. 73

Um dos primeiros grupos de pesquisa com trabalhos voltados para a Sociologia da Emoção e que enforca de uma maneira mais sistemática o luto enquanto categoria de análise social é o GREM – Grupo de Estudo e Pesquisa em Sociologia da Emoção, do Programa de Pós Graduação de Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, coordenado pelo autor deste trabalho. 74

Como é o caso dos trabalhos desenvolvidos, por exemplo, no âmbito do LELU – Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

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Ser Discreto

189 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

anos. Bem como das conseqüências deste processo para a formação do

brasileiro, sobretudo o urbano, contemporâneo.

Através do uso de entrevistas e questionário, este capítulo procura

delimitar como o homem contemporâneo no Brasil urbano e morador das

capitais de estado, compreende o luto no presente, através de uma

comparação com o passado recente vivido ou imaginado. Este é o objetivo

deste capítulo.

Diferenças entre o luto de hoje e de outrora

"...Eu lembro, há uns trinta e tantos anos atrás, quando eu perdi a

minha avó, eu era já um cara de vinte e poucos anos e já era casado até, em

Bragança Paulista, o evento que foi o velório, o enterro e todo o aparato do

luto que pairou na minha família. Minha mãe vestiu preto, eu mesmo

coloquei um fumo75, durante uma semana não se ligou o rádio e a televisão

e se evitou sair na rua, a não ser para fins estritamente necessários.

Era uma espécie de resguardo onde a evocação do morto era

permanente, todos juntos conversávamos sobre minha avó, chorávamos

juntos, lembrávamos de cenas e de situações, ríamos até de alguns

episódios... mas o importante é que éramos todos juntos... você não sabe a

importância que era esse estado de resguardo para sair da letargia e do fim

75

O fumo é uma faixa de tecido preto que se coloca em torno do braço, na lapela do paletó ou preso junto ao bolso da camisa, muito usado no Brasil até meados da década de sessenta, para simbolizar o luto masculino. Hoje em desuso nas cidades, é encontrado esporadicamente em famílias do interior brasileiro, ou em raras famílias que ainda insistem em seguir a tradição. Embora seja uma faixa de pano preto, e possa ser usado de qualquer tecido, até os anos sessenta nos armarinhos, lojas de pequeno comércio de miudezas, era possível encontrar um tipo de luto industrializado, feito de malha de nylon e na forma de um bracelete para se por nas mangas de camisas masculinas.

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Ser Discreto

190 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

do mundo que a morte de uma pessoa querida e importante para nós nos

jogava....

Os parentes mais distantes compareciam a certas horas para nos dar

conforto e saber se precisávamos de algo, os amigos e vizinhos mais

chegados também ... se sentia o aconchego naquela hora difícil de dor... "

(Entrevista n. 134)76.

Pela entrevista acima, percebe-se um certo ar de saudade dos

tempos de outrora vividos pelo narrador durante o processo de luto

acometido a ele e familiares, pela morte de sua avó materna. Este clima

nostálgico enfatiza, na narrativa do informante, principalmente, aspectos

ligados ao lado mais social do enlutamento e a sua importância para o

trabalho pessoal de luto de cada membro da família e da família como um

todo.

Coloca o resguardo familiar proporcionado pelo estado de luto, como

uma das formas de se purgar o sofrimento e ao mesmo tempo de introjeção

sentimental do morto em cada um dos membros enlutados. Seja pelo chorar

em comum a morte da pessoa amada, seja pelo relembrar e evocar a

memória do morto em situações individuais ou coletivas. Cenas

selecionadas ao acaso das conversas que o resguardo permitia, e que

punham em evidência a avó na trama de situações que marcaram um sujeito

particular ou a família como um todo de forma positiva, ou nos momentos de

tristeza ou percalços individual ou familiar.

Relembra também a importância do estado de luto como uma espécie

de demonstração social, através do vestir o preto das mulheres, do uso do

fumo nos homens, do evitar barulho ou sons que demonstrassem alegria

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191 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

excessiva ou ligação com o mundo de fora. Bem como, da diminuição das

saídas para fora de casa, como uma forma de diferenciação social da família

enlutada para a sociedade no entorno. Diferenciação proporcionada pelo

estado de luto a que todos da família estavam acometidos, demonstrando

não apenas o pudor familiar no momento de aflição vivida pela morte do ente

amado, mas também, e principalmente, o respeito social pela família

enlutada.

Em um caso e no outro, o morto era reverenciado. As instâncias

individual e societária eram veladas através da consideração da família para

com ele e para com o social em torno, e do social para com o morto e para

com a família enlutada. Parecia haver uma integração maior da família

consigo própria e com a sociedade em geral e vice versa, e uma

possibilidade ampliada de introjeção do morto pelos familiares, ajudando a

saída do luto.

O "aconchego naquela hora de dor" de que fala o entrevistado,

remete também para a esfera social do luto, na consideração de familiares

distantes, amigos e vizinhos para àqueles enlutados e em temporário exílio

do social mais amplo, proporcionado pelo termo resguardo.

O processo de luto no Brasil de ontem, para o entrevistado, era uma

etapa necessária para a reintegração dos membros à sociedade e a eles

mesmos. Etapa formada por rituais claros do que fazer ou não fazer, para os

que experienciavam tal estado ou que com ele teriam de conviver. Relembra

sentimentalmente e realça os aspectos positivos do processo de luto no

Brasil de outrora e de que ele já não parece encontrar mais no momento do

presente.

76 O entrevistado é do sexo masculino, morador da cidade de São Paulo, capital, 66 anos, advogado, viúvo. Tinha perdido a esposa a aproximadamente um ano, a contar da data da

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192 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Ao narrar o luto por ele vivido recentemente na morte de sua esposa,

o informante deixa bem claro as diferenças estabelecidas, por ele, entre o

passado recente brasileiro, o ontem, e o presente, o hoje. Revela que, na

morte de sua mulher, se sentiu "... deprimido, solitário, acuado o tempo todo.

Parecia, e ainda vez ou outra ocorre, que um trator tinha passado por cima

de mim tamanha e absurda era a dor a que o sofrimento pela perda de

minha esposa continha. ... Me sentia como a estourar, como uma bexiga da

qual só se faz soprar, encher, encher e não tem por onde escapar o ar, a

não ser pelo rompimento da mesma.

"Queria o tempo todo ficar só, fechado, mas ao mesmo tempo sentia

uma falta enorme de com quem compartilhar o meu sofrimento. Uma

contradição até natural de quem se encontra vitimado por um raio fulminante

que é a morte, eu acho, mas, o que eu vendo para trás, agora, o que de fato

faltou foi o respeito para com o morto, foi uma parada para meditar no que

aconteceu, foi as regras que se perderam de como curtir esse momento

dilacerante na vida de um homem.

"Os parentes e amigos apareceram no momento da morte e do

enterro, mas tudo muito rápido, muito ligeiro, depois cada um foi para a sua

casa e pronto ...a vida continua... Os meus filhos choraram, acompanharam

as exéquias da mãe, mas depois todos voltaram a normalidade, como se

nada tivesse acontecido... Televisão nas alturas, festa, trabalho, escola, tudo

continuava a ser como era, 'cada um na sua', como dizem hoje.

"Não é que eles não sofreram, não é isso não, nem estou me

queixando, estou dizendo que o isolamento que um ser já se coloca movido

pela perda de alguém, é ampliado até a estratosfera agora. Ninguém tem

mais tempo para ninguém, reverenciar o que, parece ser a ordem, e todo

entrevista.

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193 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

mundo foge da dor de alguém, ou se alguém está em dor, é recomendado

procurar um especialista para ajudar nesse purgar...

"A solidão do hoje faz com que o luto seja feito através dela, pela

solidão, com dificuldade, ou como doença a ser tratada... diferente de

antigamente" (Entrevista n. 134).

O entrevistado evoca no hoje, através do seu luto recente, o processo

de luto do passado e faz uma comparação. Nesta ação de comparar dois

momentos, traça um perfil do estado de luto atual como um ato de solidão

onde, os que vivem uma experiência de enlutamento, se encontram sem

alternativas outras do que voltar-se para si mesmo, o que dificulta o trabalho

de luto, ou de procurar especialistas para "ajudar nesse purgar".

Em uma alternativa ou em outra destaca a falta de tempo no cotidiano

para lidar com o sofrimento, o que a seu ver só faz aumentar. Evidencia,

também, a diluição das regras ritualísticas e comportamentais sociais onde

os enlutados e àqueles direta ou indiretamente relacionados no processo

podiam espelhar-se, ajudando no processo de introjeção do morto e na

reinserção no social. Realça, ainda, o desrespeito ao morto pela urgência do

presente que todos parecem estar envoltos, como se quem morreu não mais

importasse publicamente, sendo evitado o falar do ente morto ou da dor de

cada um em relação à perda77.

77

Hermilo Borba Filho no segundo volume do romance Um Cavalheiro da Segunda Decadência, em certo momento faz o personagem principal, vivido na primeira pessoa, parar para acompanhar os últimos dias, o enterro e realizar a última despedida do seu pai. Acabado o processo de morte e findo o enterro, o personagem volta para a sua vida cotidiana disposto a esquecer o seu morto, a não mais sofrer. Ou, em suas palavras: Morto e enterrado o Capitão, dispus-me também a enterrá-lo em minha lembrança, no campo das coisas passadas e sem jeito, nada de chorar sobre o irremediável, de maceração, de cultivo da dor. Ele passava a ser uma coisa abstrata como Deus, do qual se fala ao mesmo tempo com crença e descrença..." (1967, p. 77).

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194 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Um pacto do silêncio parece, segundo o entrevistado, ser realizado.

Isola os sujeitos em sofrimento, cada qual guardando para si a sua própria

experiência pessoal e social de troca com o ser que se foi, ou da ruptura

desta troca pela ausência provocada pela perda.

O luto, a morte e o morrer viram uma espécie de problemática e uma

instância de patologia, a serem tratados, nos casos mais agudos pela

psicanálise, pela psiquiatria ou pela psicologia, ou a serem ensinadas a

como com eles lidar, nas escolas e centros especializados78. O luto deixou

de ser social e socialmente satisfeito, e passou a ser considerado como um

processo de intimidade e de saúde mental dos sujeitos, ao ser visualizado

pela individualização do processo de sofrimento vivido na subjetividade do

sujeito que sofre a perda.

A narrativa de uma entrevistada sobre o luto no ontem e no hoje no

Brasil urbano, revela outros significados, porém, que parecem ir de encontro

com o depoimento do entrevistado acima. A informante é uma senhora de 68

anos, natural e moradora na cidade de Vitória, no Espírito Santo, que relata

78

Em várias revistas e jornais brasileiros vem aparecendo uma série de reportagens recentes sobre a necessidade de oferecer apoio especializado para as famílias ou às pessoas enlutadas. Bem como, de matérias relativas a como administrar o trabalho de luto e as questões da morte e do morrer entre as crianças. Nestas matérias, tenta-se popularizar os trabalhos de especialistas, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, enfermeiros, religiosos, educadores, entre outros, sobre o cotidiano do tratamento de enlutados e doentes terminais nas clínicas, escolas, hospitais ou centros de pesquisa e diagnóstico, sobre o que fazer para amenizar o sofrimento de quem perde alguém, ou de quem sabe que vai morrer, bem como para alertar para a enfermidade causada pela dificuldade de realização do trabalho de luto na contemporaneidade do homem brasileiro, sobretudo, urbano. Ver, entre outros, "O duro exercício do adeus" (Veja, 6 de outubro de 1999); "Em nome da cura" (Veja, 1 de dezembro de 1999); "Eclipse da dor" (Veja, 10 de agosto de 1994); "Encarar perda da morte evita problemas" (Correio da Paraíba, 23 de agosto de 1998); "Morte também é assunto de criança" (Nova Escola, v. XI, n. 94, pp. 27 a 29, de junho de 1996) e "Sereno Suspiro" (Jornal da Unicamp, novembro de 1999). Este último faz um pequeno balanço do o Primeiro Seminário de Reflexões sobre a Vida e a Morte, acontecido em 16 de setembro de 1999 na Unicamp, e realizado por profissionais da saúde que lidam com pacientes terminais e com o luto.

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Ser Discreto

195 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

um processo vivido de luto há mais ou menos trinta anos atrás, pela morte

do seu marido.

De acordo com o seu relato, "o meu marido morreu de um terrível e

fulminante infarto aos quarenta e cinco anos de idade, e me deixou com dois

filhos entrando na adolescência. ... Eu era uma mulher jovem, beirando aos

trinta anos, trabalhava, era independente, e tentei enfrentar com o máximo

de forças que eu dispunha, depois da desgraça que acometeu minha família

com a morte do meu esposo, a batalha da vida... mas a morte de E. me

trouxe muito mais problemas para a vida prática do que alguém poderia

imaginar, muito mais pelo preconceito que uma mulher sozinha enfrenta

nesta sociedade aqui de Vitória daqueles tempos. ...

"Passei um tempo de roupas mais sóbrias, não, não... não de preto

mas de tons mais fechados, e logo depois de um mês retirei esse tom

escuro e passei a usar a minha roupa normal, não poupei os meus filhos de

se divertirem e nem deixei de trabalhar ou sair com minhas colegas de

trabalho e amigas, como sempre fazia, depois do expediente ou em um ou

outro dia especial... E isso foi uma loucura para a sociedade local, que

passaram a me evitar e me olhar no canto do olho como se eu fosse uma

doidivana, uma mulher da rua qualquer...

"Até meu chefe, um homem a quem eu considerava sério, veio dar em

cima de mim, como se eu fosse uma disponível por não ter mais marido e

não me colocar de quarentena, com todos aqueles aparatos artificiais que

revelam para o outro que você está sofrendo, que você está de luto... como

eu recusei, veio com discurso moral para cima de mim e só não me demitiu

porque uma colega intercedeu, mas minha vida, enquanto fiquei naquele

trabalho, virou um inferno de perseguição...

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196 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

"... Essa falsidade que carrega essas coisas da sociedade, na

realidade, eu acho uma tolice. O luto você carrega na alma, ninguém tem

nada a ver com a sua vida, com a forma com que você vive o seu

sofrimento, ou se você sofre ou não sofre a morte de alguém... conheci

várias pessoas, homens e mulheres, que viviam de fingimento mas que era

só e apenas fingir, na intimidade eram uns sacanas... ...Acho que hoje as

pessoas tem mais liberdade de expressão, a sociedade ainda constrange

mais não constrange tanto, quanto na época da morte do meu marido..."

(Entrevista n. 205).

Diferente do primeiro entrevistado, esta senhora enfatiza em seu

depoimento o constrangimento da pessoa que vive uma situação de luto

pela sociedade em seu entorno. Enumera situações por ela experimentadas

de sufocação moral por não seguir as práticas e atitudes comuns a uma

pessoa em luto na sociedade de sua época. Pontua, também, cenários de

buscas de enquadramento de sua pessoa em categorias sociais

desclassificatórias, por resistir a um enquadramento social, ou a um

comportamento esperado socialmente de alguém que experiencia um estado

de luto.

O luto social, assim, para ela, revelou-se como uma condenação

pessoal, motivada pelo sufocar moral, ou através da tentativa de

enquadramento de sua pessoa, conseqüência do primeiro. A vivência do luto

virou assim uma guerra pessoal contra a sociedade, em busca de uma

individualidade de expressão dos sentimentos e de uma procura de restaurar

o respeito de si pelo social e por ela mesma.

Para ela, a experiência do luto na sociedade brasileira de hoje é

realizado de uma forma mais individualizada, sem cobranças sobre como

cada um vivência o processo. O sofrimento de cada um tornou-se, assim,

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197 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

para ela, uma experiência que interessa apenas as pessoas envolvidas

diretamente, e a uma pessoa singular. Como ela experimenta o sofrimento, a

forma como o vivencia ou o expressa é cada vez mais individualizado, e o

sentimento da perda torna-se mais evidenciado em seu aspecto modal como

um sentimento subjetivo ao sujeito que o experimenta.

O luto ao tornar-se uma experiência intima, privada, para ela,

desafoga a pessoa do social e a faz aflorar para a vida, vista através de uma

batalha para a conquista da individualidade. O luto hoje, na sociedade

brasileira, revela-se, para a entrevistada, como uma experiência mais salutar

do que o luto de ontem.

Esta comparação foi solicitada também aos indivíduos que

responderam ao questionário aberto. Conforme pode ser visualizado no

Quadro N. 29, a polaridade entre um "Maior Controle Social", 43,02%, na

vivência do luto no Brasil de antigamente e o "Hoje É Individual", 37,73%, é

pontuada por um "Não Existe Diferença" na experiência do luto ontem e

hoje, com 19,25% dos entrevistados.

Esta ausência de diferença diagnosticada por um volume considerável

de entrevistados, quase vinte por cento das respostas, indica, porém, uma

polifonia de experiências que um questionário padrão não consegue

exprimir, a não ser quando lido nas suas entrelinhas. Analisado questionário

por questionário atinou-se para esta informação a partir de algumas

anotações pessoais de entrevistados, deixadas de lado pela quantificação,

que, quando recuperadas puderam trazer uma luz para as esferas do que

cada um quis afirmar como não existindo diferenças entre o luto de ontem e

de hoje vividos no Brasil urbano.

"A sociedade sempre foi hipócrita e sempre desconsiderou as

pessoas, aqui no Brasil", foi uma das anotações encontradas ao lado da

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198 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

resposta de um informante de Porto Velho, Rondônia. Outra anotação

existente foi a de "Onde existe dor e sofrimento é no indivíduo, e sempre foi

assim, com roupa preta ou de vermelho sangue", lida em um questionário de

Florianópolis, Santa Catarina. Um terceiro apontamento encontrado em um

questionário de Fortaleza, Ceará, indica que "o luto é uma experiência de

desamparo individual, sempre, seja hoje ou antigamente. A sociedade só faz

ampliar ou diminuir a margem desse desamparo, mas o sofrimento é sempre

vivido na solidão do eu, mesmo que haja um coletivo forte", e faz eco e

contraponto com outro achado em um questionário do Rio de Janeiro: "a

solidão é calada e de dentro do sujeito que possui. O luto é uma ampliação

desta solidão, e não há amparo ou regras sociais que o façam diferente. O

luto foi e é solidão. Solidão!".

Estes apontamentos, se de um lado mostram a limitação de um

instrumento meramente quantitativo no tratamento analítico de um

questionário tipo padrão, como este usado como uma das técnicas de

aproximação da realidade estudada, por outro lado, demonstram que, lidos

com sensibilidade, um a um, o questionário como uma expressão também

individualizada dos informantes, como uma narração, permitem ampliar as

categorias compreensivas a que estão dispostos na tabulação necessária

dos dados. Na leitura da categoria "Não Existe Diferença" entre o luto de

hoje e o de antigamente, é possível, assim, verificar um pouco mais

atentamente o que os informantes quiseram dizer com tal afirmativa.

Advogam que o luto, em todas as instâncias e em qualquer tempo e

lugar é vivido solitariamente e isoladamente pelos indivíduos que o

experimentam. Apontam, deste modo, para a individualidade e a

subjetividade como instrumento de vivência do luto, independentemente de

um grau maior de liberdade social de expressões de sentimento ou de uma

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199 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

presença mais forte do social no controle do luto de seus membros. Para

eles, o luto é uma experiência individual vivida dentro de um sujeito na

sociedade.

O luto, para outros destes apontamentos à margem do questionário,

parecem apontar para uma outra faceta da relação entre o indivíduo e a

sociedade. Esta outra face se encontra na ênfase dada a hipocrisia do

social, e na da solidão do indivíduo no social, bem como na fórmula de que o

enlutamento é uma expressão de um ser social, individual e coletivo ao

mesmo tempo.

De uma forma ou de outra, porém, indicam uma tensão entre o

indivíduo e a sociedade, e a presença do sofrimento enquanto solidão e

desamparo de um ser, pela perda de alguém amado. Paul Ricoeur (1994,

pp. 62 e 63) fala o sofrimento como implicando em uma diminuição da

suportabilidade de um sujeito em dor, afetando os diversos níveis do dizer,

do fazer e do estimar-se como um agente moral. A solidão ampliada revela

um indivíduo acima da sociedade, individuado ou em individuação, na sua

incapacidade de narrar o inenarrável da dor vivida através do sofrimento

provocado pela perda.

Este ser solitário, acuado pelo sofrimento, é um ser em processo de

confronto com o outro. Confronto ambíguo, é verdade, mas tensão e conflito

sempre. Pela forma como enfrenta a si mesmo e se sente acuado, como um

animal, sem poder expressar sua dor a não ser pela ausência do mundo ou

resistência aberta ao mundo ao seu redor. Pela forma que espera deste

mesmo mundo em conflito, o entendimento, a busca de proteção, o

recolhimento que o faça compreender e narrar o impossível de narração, na

alucinatória perspectiva que se abre em seu interior pelas brechas do

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200 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

sofrimento e que o impõe como figura principal, única e estupefata de um

ato, ou de uma condenação.

Solidão que parece exasperar o sujeito tocado pela perda, que o

coloca em tensão com o social como força potencial e como abandono, e se

transforma em dó de si mesmo, desapego dos outros e marginalização. Este

processo parece ser o que aponta a categoria "Não Existe Diferença", vista

através dos apontamentos à margem do questionário. Não é um desdém,

mas antes uma afirmação da solidão do sujeito tocado pela perda nos

momentos mais agudos do trabalho de luto, dos momentos mais difíceis

onde o ser amado que se foi ainda é nada mais do que uma presença

perdida e, neste perder-se e sem poder interrogar esta ausência pela morte,

tornada absoluta.

É uma espécie de "enraizar-se na ausência de lugar", proposto por

Simone Weil em seu "La pesanteur et la grâce" (1993), que descreve o

estranhamento e a necessidade de a ele agarrar-se, movido pela absurda e

sufocante ausência e pela sensação de estar entre vazios. Anulação das

fronteiras como conflito do eu com os outros e, também, como resistência e

busca de compreensão do por quê eu.

Esta afirmação da solidão indicando a tensão entre o indivíduo e a

sociedade, e o conflito em que se situa neste tênue limiar. O social e suas

regras aparecendo, para o sujeito em dor, como uma ameaça de morte,

usando aqui a expressão dos diálogos de Canetti e Adorno (1988).

As duas outras categorias presentes no Quadro N. 29, indicam, por

seu turno, a expressão de uma visão dos informantes no questionário, de o

luto ser melhor antigamente, pelo "Maior Controle Social", com 43,02%, e

ser melhor no presente, pois "Hoje É Individual", com 37,73% das respostas

dada a questão. É interessante notar o expressivo número de informantes

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201 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

que afirmaram a diferença, no sentido de um maior controle social, nas

atitudes comportamentais que lidavam com o luto na sociedade brasileira de

um passado recente.

Um pouco mais de quarenta por cento dos informantes indicaram este

aspecto como sendo o que melhor delimitaria a diferença entre o ontem e o

hoje. As regras claras que pareciam definir a ritualística em que se

encontravam envolvidos todos àqueles ligados a um processo de luto, seja

os diretamente no estado de luto, seja os outros relacionais, despontavam

como o ponto modal de uma experiência mais coletiva da sociabilidade

brasileira de antanho.

É esta força da coletividade sobre a ação individual em um processo

de enlutamento que chama a atenção a categoria de "Maior Controle Social".

Indica o menor poder de ação individual frente as normas sociais e sua

ritualística. Procura, também, enfatizar a obrigação pública da expressão de

sentimentos de que fala Marcel Mauss (1980) e as formas comportamentais

de contenção gestual e de vestimenta e da presença clara de sinais

exteriores demonstrativos do estado em que um indivíduo enlutado se

encontrava e do outro que com ele se relacionava.

Estas diferenças indicadas como principais entre as características do

luto ontem, aparecem nas margens dos questionários como, também, uma

presença não de todo uniforme entre os respondentes. Alguns apontam

estas características dentro de um imaginário recheado de sentimentalismo,

de uma rede coletiva que vem se fragmentando com a modernidade do

Brasil urbano atual, como parece ser o caso deste apontamento encontrado

em um questionário de Salvador, Bahia: "o respeito aos mortos e aos que o

perderam era mais intenso, todos nós nos sentíamos mais protegidos e

podíamos realizar melhor o luto do nosso morto querido".

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202 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Outros, por sua vez, indicam para o aspecto contrário, colocando o

controle social como um aspecto negativo na vida do sujeito enlutado.

"Antigamente a coisa do luto era mais controlado pela sociedade, ninguém

podia 'cuspir fora do prato', nem que fosse uma saidinha de nada, que era

logo tachado disso e daquilo outro, não havia espaço para o indivíduo

respirar... ", informa uma anotação ao lado da resposta de um informante de

Manaus, Amazonas.

Os dois contrários, por sua vez, informavam a presença maior da

sociedade no controle pessoal dos enlutados, no Brasil de um pouco mais

de trinta anos atrás. O mesmo acontece, também, com os que indicam a

mudança dos hábitos no processo de enlutamento do presente, no Brasil

urbano, para uma atitude mais individualizada da vivência da perda que

satisfaz ao trabalho de luto.

A categoria "Hoje É Individual" enfatiza esta mudança. Prognostica a

passagem de um tempo onde as regras sociais eram mais claras e o

controle sobre os seus usos e costumes respeitados, para um outro tempo

de fragmentação e diluição dos laços coletivos, dando margem à

emergência do indivíduo e do individual na vivência e expressão dos

sentimentos.

A individualidade, neste conjunto de respostas, é a raiz de onde

pontifica o entendimento da nova característica pressentida pelos

informantes na sociabilidade brasileira urbana atual. O despontar do

indivíduo enquanto ser subjetivo, privado, oposto ao público é à ênfase da

formulação. A intimidade, de onde o luto aparece como um espaço de

delimitação da relação entre indivíduo e sociedade, configurando a

modernidade brasileira urbana atual.

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203 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Esta modernidade da individualidade do sujeito frente ao social não é,

porém, sentida como apenas um aspecto positivo ou negativo da vivência do

luto. Há os que acham o processo de individualização como uma ameaça

permanente à segurança dos indivíduos tocados pelo luto. Como uma

tendência à diluição dos laços associativos, não apenas ligados ao

parentesco, mas para a religião e, às formas societárias em geral, dando um

conteúdo moral dramático de perda de sentido e continuidade da vida em

sociedade. Como parece ser o caso do depoimento à margem do

questionário, de um informante de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, "o

individualismo presente nas manifestações de pesar da sociedade brasileira

de agora faz com que as pessoas não mais se encontrem e se distanciem

umas das outras. As coisas ligadas à morte e ao luto são objetos de nojo e

incomodo, tanto para os que passam pela experiência, quanto para os que

vivem no convívio imediato. Todos sofrem, mas não sabem como sair desta,

e aí aumenta a distância, o desestímulo com a vida e a evitação um do

outro".

Há, também, o que apenas diagnosticam o aumento do sofrimento

pessoal pelo processo de individualização em curso na sociedade brasileira

atual. Como é o caso do apontamento de um informante do questionário do

Rio Branco, Acre: "Hoje a gente vive uma situação estranha de ter muitas

pessoas em volta e não ter ninguém, ninguém para desabafar, ninguém para

dar apoio. É só a gente e mais nada...".

Mas, há, ainda, os que revelam o espaço de liberdade dos indivíduos

neste percurso de individualidade. "Acho que não tem nada melhor do que a

liberdade que nós temos hoje de viver como cada um quer a vida de cada

um. Não tem mais aquilo de ficar fazendo isso ou deixando de fazer, porque

os outros querem. Não. Agora cada um segue o seu próprio curso e vive e

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204 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

cresce da melhor forma de cada um", afirma um mineiro de Belo Horizonte

às margens do seu questionário.

Independente da qualidade de melhor ou pior apontada pelos

informantes, a categoria "Hoje É Individual" levanta a questão da

transformação dos hábitos e suas formas de significação rituais no

comportamento do brasileiro urbano contemporâneo, de uma situação

coletiva para uma outra onde a performance do indivíduo é enfatizada em

seu aspecto de intimidade e espaço privado. Bem como, parece ser o caso,

das respostas dadas para a categoria "Maior Controle Social" no

antigamente do brasileiro urbano. O apontar o passado como mais coletivo,

traz um diagnostico do presente como mais diluído socialmente e mais

pulverizado em ações privadas dispersas pelos sujeitos que a experienciam.

De uma forma mais dramática afigura, também, ser o caso da

categoria "Não Existe Diferença", que toma o imaginário em que se encontra

mergulhado o comportamento individualizado, na sua forma individualista,

hoje, e o amplifica para uma atemporalidade, de qualquer época da vida

social brasileira. Esta atemporalidade retém os traços principais de análise

do sujeito que sofre, e a tensão conflitual estabelecida por este sofrer entre

ele e a sociedade em sua volta. Não parece importar para ele, e também

aqui, neste trabalho, se estes traços caminham para um maior crescimento

pessoal, ou para uma maior solidão individual do sujeito da perda em seu

trabalho de luto. Ambos os caminhos são possíveis, e são, também,

conseqüências da experiência pessoal de cada um no luto vivido neste sem

tempo. Ou melhor, em um tempo qualquer do experimentar o sofrimento

pelos sujeitos nele envolvidos.

Sexo e Expressão do Luto

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Ser Discreto

205 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Quais seriam as significações atribuídas, pelos homens e pelas

mulheres, que responderam ao questionário padrão, à experiência do luto?

Seria, talvez, esperado uma reação mais presa ao passado e à tradição por

parte das mulheres, por estas se encontrarem apenas a pouco tempo,

sobretudo nestes últimos trinta e poucos anos, assumindo uma vida pública,

e para os homens, configurações ligadas a padrões de subjetividade que

não afetassem a vida pública dos sujeitos envolvidos.

O Quadro N. 30 cruza as categorias ligadas ao sexo com as das

expressões do luto. Nele, ao contrário do possivelmente esperado acima, se

verifica a existência de uma quase equivalência no percentual de respostas

para as categorias de "Simbologia", 47,63%, e "Sentimento", 44,32%, e um

percentual de um pouco mais de oito pontos percentuais para a categoria

"Período de Adaptação".

O interessante, contudo, neste Quadro N. 30, é verificar que 28,53%

dos homens, responderam o luto através das expressões ligadas ao

simbólico, às formas rituais, e à tradição, contra 39,65% das mulheres, que

exprimiram o luto como sentimento, como processo de subjetivação, como

memória individual e rememoração.

Esta relação estabelecida coloca os homens em uma situação de

procura de manutenção dos laços tradicionais de uma sociabilidade do luto,

enquanto para as mulheres, parece que este espaço ritual pode ser

preenchido ou vivenciado sobre outras formas, através da subjetividade e da

experiência interior do sujeito. Este contraponto pode ser enriquecido pela

possibilidade das mulheres, - habituadas a uma vida voltada de costas para

a rua, e a uma personalidade social formada de forma mais intensa para

predicados ligados ao exercício da sensibilidade e para a arte da intuição, -

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206 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

estarem mais atentas ao compasso da espera e da repetição cotidiana dos

circuitos internos da família e dos laços sociais aí estabelecidos. O que as

coloca, de uma certa maneira, bem mais ao contato permanente com a

morte, enquanto categoria simbólica ligada ao processo repetitivo de cada

ato, como um ato novo sobre o que se foi, e também, e sobretudo, com a

categoria simbólica de vida. Este espaço novo assumido pelo ato que foi.

Os homens, por seu turno, acostumados à lógica da racionalidade do

espaço público, e a vivência delimitada do espaço privado, como provedor e

intermediário do público, tem sua personalidade formada para uma lógica de

negação do sentimento, enquanto expressão de intimidade, e de positivação

de gestos e atitudes concatenados com o circuito público da rua e da relação

de mercado nela estabelecida. O que os constrange de dar visualidade a

manifestações internas de sentimento, na troca com o outro, a não ser em

situações de absoluta intimidade, como é o caso da relação familiar. E

mesmo assim, em momentos específicos e raros.

A figura do masculino no Ocidente, e no Brasil, aqui, especificamente,

é retratada no anedotário do cotidiano, bem como na literatura, como uma

figura carismática, ensimesmada, fechada, que mesmo na intimidade do lar

se comporta como o provedor. Como aquele que organiza as emoções

domésticas, como o que organiza as diretrizes da vida em família e faz sua

intermediação com as demais instituições intervenientes, como a escola, a

política, a religião, a economia, entre outras mais.

Ao partir deste ângulo, vê-se que as respostas se adequam ao perfil

de personalidade em que foram criados os homens e mulheres brasileiros

contemporâneos, frutos e produtos deste passado recente do Brasil. Isto

quer dizer que, mesmo vivendo intensamente nestes últimos trinta e pouco

anos uma transição significativa nas formas comportamentais, nas atitudes e

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207 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

gestos, na mentalidade e formas de expressão, nos projetos e anseios, os

homens e mulheres que vivem a experiência urbana atual no Brasil, ainda

titubeiam nas fundações que deram origem e formação social e individual a

seus corpos e experiências.

Situam-se em patamares ambivalentes e deles medem o passado, o

presente e o futuro de suas experiências. O novo aparece como ambíguo, e

tenciona com os antigos hábitos, ampliando os conflitos e buscas de

reconfigurações, onde melhor possam assentar-se e rever a si próprios e os

outros.

Neste momento, ao indicar, pela maioria dos homens, como

expressão do luto, a tradição e as formas simbólicas a ela associadas, estes

indivíduos estão estabelecendo as pontes com o passado que os formou.

Buscam agarrar-se a uma rede de serviços institucionais que lhes garantam

a logicidade de seus gestos e ações em momentos de rupturas provocados

pela perda e vividos durante o estado de luto.

Ao desarmar-se o circuito mercantil e racional a que se situa como um

ser público, o sexo masculino parece perder muito de sua capacidade de

apreensão dos conteúdos novos resignificados no momento da perda. Daí a

necessidade da garantia institucional de outras instâncias, como forma de

sobrevivência.

Este sendo um aspecto dramático, não apenas no Brasil, que aponta

para esta tendência apenas recentemente, mas de toda a sociedade

ocidental. Esta tendência já era apontada no início dos anos cincoenta para

a Inglaterra por Gorer (1963), que é a de não suportar a perda do ente

querido morto.

Os indivíduos do sexo masculino, principalmente os mais idosos, na

contemporaneidade da vida ocidental dos últimos cincoenta anos, parecem

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Ser Discreto

208 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

situar-se em um comportamento ensimesmado durante a perda, acentuado

pela quebra das relações societárias mais desindividualizadoras, que os

fazem falecer, logo a seguir, a morte de um ente amado, principalmente a

companheira ou esposa79.

Diferente da maioria das mulheres, que parecem suportar a perda de

uma forma mais adequada e elaborar melhor o luto. Mais voltadas para a

relação do sentimento, enquanto categoria das formas de sociabilidade do

sensível e do pressentimento, o sexo feminino parece situar melhor a dor da

perda nos mecanismos da rememoração dos laços e da memória afetiva do

morto com relação à família e para a sociedade, recompondo a expressão

da importância e permanência do valor da instituição familiar.

Em todo caso, esta diferenciação entre os comportamentos feminino e

masculino frente à morte de um ente amado, embora indique uma

dificuldade masculina de maior dificuldade de elaboração do luto do que o

feminino, ambos se situam entre fronteiras. O luto de ambos tornam-se

dificultados pelas novas formas de relacionamento social emergidas no

Brasil recentemente, que sem regras ainda palpáveis, avança na

descaracterização das anteriores e na pulverização e descrença nas

instituições desindividualizadoras que mantinham um certo padrão de

uniformidade das relações e dos rituais, em casos de processos de ruptura,

como a morte.

A entrada das mulheres na vida pública brasileira dos últimos trinta

anos, o crescimento da concorrência e da eficácia social entre os indivíduos,

as novas formas por que passaram a instituição familiar, após a lei do

divórcio nos anos oitenta do século passado, o anonimato das pessoas e as

79

Ver Pincus, 1989, para o caso da Inglaterra e Ariès, 1967, para o caso da França, entre outros.

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209 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

resignificações das trocas afetivas nas grandes cidades, entre vários outros

aspectos, colocam o brasileiro médio no interior de um imaginário tenso

entre processos de um passado recente e novas formas de adequação

ainda em formação. O que os torna ambivalentes e sujeitos a uma maior

dificuldade no processo de elaboração do luto.

As marcas da instabilidade e do não saber situar-se perante as novas

regras do jogo social, parecem ampliar a insegurança do agir, o sentimento

de culpa do não saber comportar-se perante a ruptura que rasga a sua vida

e o inconformismo pela situação experimentada. Ao colocar sobre si mesmo

a carga maior da culpa, deste modo, o sofrimento tende a tornar-se, uma

espécie de expiação pessoal, por algo que não sabe bem explicar o por quê.

O que dificulta a elaboração do luto e em muitos casos, provoca a morte do

sujeito que sofre a perda80.

Em todo caso, deixa a marca da ferida não de todo expiada mesmo

após a elaboração do luto, quando a pessoa já consegue ver com mais

distância o processo pelo qual passou quando da morte do ser querido.

Durante todo o percurso deste livro, pôde-se perceber a ênfase dos

entrevistados, diretamente para esta pesquisa, ou de depoimentos extraídos

de revistas, e a importância atribuída à marca deixada pelo sofrimento do

luto. Esta marca parece revelar nas narrativas uma espécie de ensinamento

provocado por este período duro na vida das pessoas, e a marca tem a ver

com este aprendizado.

80 Uma pesquisa coordenada pela psicóloga Valéria Tinoco do LELU/PUC-SP teve alguns dos seus dados publicados na revista Veja, de 6 de outubro de 1999, em uma matéria intitulada "O duro exercício do adeus". Esta pesquisa revelou que as reações de inconformismo em relação à perda de parentes mortos, entre as duzentas entrevistas, por ela realizadas, atingiu um conjunto de 41%, e o sentimento de culpa 20% do conjunto das entrevistas

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Ser Discreto

210 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Paul Ricoeur (1994) também pergunta sobre o que o sofrimento

ensina e responde, de um lado, para um certo conformismo do ser perante o

acontecimento que o acometeu. Uma espécie de entrega pessoal à dor,

provocada pela ruptura abrupta ocasionada pela morte do outro amado, que

faz o indivíduo ao acomodar-se permitir-se refazer os passos dolorosos da

introjeção do morto em si. Processo elaborado através de uma

recomposição do eu pela sentimentalidade e pela dissecação do outro

querido que se foi, apropriando-se destas partes dissecadas e

reconstituindo-o no seu interior como um objeto amado em si, o que permite

um distanciamento do sofrimento e uma retomada da vida. Esta também é a

teoria do luto em Freud (1992).

Outro lado, porém, encontra-se em um segundo tipo de ensinamento

da dor provocada pelo sofrimento no luto. Este outro ensinamento se faz

pelo inconformismo assumido pela perda. A impossibilidade do diálogo, o

indizível da dor pessoal, a incomunicabilidade a que um indivíduo se vê

sujeito pelo sofrimento, faz com que ao tomar para si o sofrimento como

expiação de algo de que se diz vítima, se revolte com o mundo pessoal e

social, e suas instituições, e se volte para dentro de si como sujeito culpado,

vendo o mundo através de sua culpa.

Uma culpa cada vez maior pelo fato da não explicação para si, e a

falta de explicações no social, pelo sofrimento a que se viu exposto na morte

da pessoa amada. Ocasionando um certo afastamento do social, pela

subjetivação de sua pessoa como o referente principal de si mesmo,

enquanto indivíduo, ou pelo desencanto do mundo. O mundo ao redor, e

suas instituições, passam a se configurar através de uma visão instrumental

e técnica. Como um aparato de proteção ou como uma espécie de máscara

sob a qual enfrenta a sociedade. Amplia a margem de ambigüidade nas

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211 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

relações que estabelece com o social, tornando-se para si, um ser

incompreendido, desconfiado, e que anseia, ao mesmo tempo,

compreensão.

Tempo ideal do luto

"Eu sou um homem marcado pela morte. Não sei... às vezes me situo

no tempo e já fazem mais de três anos da morte do meu companheiro, e me

revejo na mesma dor, na mesma solidão, na mesma angústia a que fui

jogado quando ele veio a falecer... . É difícil superar a morte de alguém de

quem se foi muito íntimo e de quem se amava além das medidas...

principalmente, quando depois da morte dele me vi banido de até expressar

este sentimento. Nem ao velório pude ir, a família dele proibiu a minha

entrada... não compareci ao enterro, também por proibição dos parentes, me

tomaram até os objetos dele, na minha casa. Só não perdi o apartamento,

porque estava em meu nome... e uma fotos da gente em Paris. O resto

levaram, destruíram tudo... e isso é muita dor, muito sofrimento, mesmo... .

Você me pergunta sobre o tempo do luto? Podia dizer o formal, um ano, um

pouco mais ou um pouco menos, dependendo das circunstâncias... mas isso

não é a verdade, se eu vejo pelo que venho vivendo... o luto é eterno, dura

para sempre, é sempre renovado nas marcas e nos desprezos que os outros

revelam a dor da gente... é aí que a gente vê que tudo é ilusão. Só o

sofrimento e a solidão é que de fato marcam a vida de uma pessoa... "

(Entrevista n. 15)81.

81

Sexo masculino, 43 anos, perdeu o companheiro com quem já vivia a quase seis anos, vítima da AIDS. Empresário da noite, natural e morador da cidade de São Luís, estado do Maranhão.

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212 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O depoimento acima denota uma polaridade entre um tempo formal e

uma outra temporalidade, marcada pelo sofrimento, a que o entrevistado se

viu exposto após a perda do ente amado. O choque entre as duas formas de

medir o tempo, no trabalho de luto, entremeia as relações esperadas de uma

introjeção da perda em um indivíduo em condições consideradas ideais pelo

narrador e as condições objetivas dadas pelo enfrentamento do sofrimento

pela morte do outro.

A expectativa de um luto em circunstâncias normais, onde o apoio e a

solidariedade e compreensão pelo sofrimento de alguém vitimado pela

perda, - margeado pela rememoração deste ser que se foi e a medição de

sua importância para o sujeito e dele para o todo social com quem se

relaciona, - parece entrever uma memória de um processo de ajustamento

coletivo que se perdeu em algum lugar do passado, que é desejado, mas

que não se tem como o reencontrar, porque não sabe bem aonde foi, como

foi, porque foi e o que de fato se perdeu. Vem como um elemento de

retórica, quase um sonho, que se choca com a dura realidade da perda e a

exclusão social a que se diz vitimado.

O luto, para o entrevistado, se realiza através da exclusão. Nela se

mescla a culpa pelo acontecido ao outro que se foi, pelo acontecido a si

mesmo e pela forma com que o social o retira das formalizações fúnebres: a

recusa de o deixar ver o corpo, velar o seu morto, acompanhar as

despedidas no trajeto e durante o enterro. Mescla-se, também, à culpa a

vitimidade com que encarou, e vem encarando o seu processo de perda: de

novo, a marginalização a que foi jogado pelos familiares do morto, que se

apropriaram do corpo amado e, também, invadiram o seu lar, - objeto de

quase veneração da intimidade na modernidade brasileira urbana, -

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213 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

profanaram o reduto de sua memória, onde tudo parecia lembrar o que se

foi, retirando os pertences e destruindo as lembranças construídas a dois.

A marginalização, a exclusão provocada na ruptura ocasionada pela

morte do ente amado, pelos outros da relação, os familiares do morto,

parece ter enfatizado a anormalidade com que ele próprio via a sua condição

pessoal de homossexual, e de casamento com um outro do mesmo sexo.

Daí a vitimidade com que se coloca frente a recusa dos outros de partilhar o

corpo do amado, e da passividade com que se colocou frente a objeção e

diante da invasão de sua privacidade e bens comuns, construídos durante o

período que viveram juntos.

Mesmo sendo um homem que assumiu uma sexualidade diferente da

comum e considerada normal pelo social em torno, a condição homossexual

parece se apresentar para ele como uma espécie de estado marginal frente

a sociedade, e sob o qual enfrenta as relações societárias no dia a dia de

sua existência pública. No caso do entrevistado agora analisado, parece que

é este sentimento de exclusão, visto sob uma ótica de vitimidade, que o faz

perceber e encarar o processo de luto como uma ampliação de sua morte

social.

Como ser "banido de até expressar (o) sentimento" de dor e da falta

do amigo, agora ausente, e ser jogado fora do processo de sua morte e à

constatação de que "só o sofrimento e a solidão é que de fato marcam a

vida de uma pessoa...". Este caso poderia servir aqui como um parâmetro

para se aplicar mecanicamente a noção de estigma de Goffman (1988),

considerando o entrevistado na sua ambivalência de assumir-se como outra

sexualidade e admitir-se, ao mesmo tempo estigmatizado e portador de uma

espécie de anormalidade social.

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214 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O que o faria marginal aos olhos dos outros e de si mesmo, e

portanto, portador de sofrimento a ser vivido na clandestinidade. Daí

encontrar as explicações, a partir de sua condição de identidade deteriorada,

da sua solidão e desconforto social, ampliando eternamente a dor causada

pelo sofrimento que o marcou.

Porém, se em vez de usar de forma apenas instrumental o conceito

de estigma e entender, como se vem tentando no decorrer de todo este livro,

a subjetivação dos sentimentos e a eternização do sofrimento, como uma

conseqüência da modernidade ocidental e na forma em que vem se

desenvolvendo a individualização dos sujeitos sociais, via individualismo, é

possível compreender esta mesma noção dentro de um veio explicativo mais

dinâmico. As paredes sociais se tornam mais rígidas à objetivação dos

sujeitos relacionais no seu interior, quando do processo de individuação a

que um indivíduo qualquer se vê exposto e, através desta exposição ameaça

o outro social.

Se a noção de estigma puder ser compreendida à luz do conceito de

individuação, quando um indivíduo aparece acima da sociedade e das suas

regras e normas, em um momento específico da vida social, como a morte

ou o enlutamento provocado pela perda, dá-se movimento ao conceito pela

tensão e conflito por ele provocado, e por onde, metodologicamente, é

possível pensar o seu uso.

A tensionalidade e o conflito inerentes a um processo de individuação

provoca, tanto no sujeito que o vivencia, quanto nos sujeitos no entorno,

experiências específicas de trocas sociais onde o estigma, como vergonha,

culpa e preconceito vem à tona, retraindo os indivíduos da relação e os

fazendo de vítima ou algozes, segundo a perspectiva do olhar de cada

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215 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

narrativa. Colocando cada indivíduo como um ser em sofrimento, solitário e

ansioso, e os outros referentes como monstros.

Retraimento, cada vez maior, quando os laços desindividualizadores

perdem, ou vem perdendo as suas características de instâncias norteadoras

de uma coletividade, e passam a ser desacreditadas ou a irem perdendo a

credibilidade nos movimentos cotidianos dos homens comuns de uma dada

sociabilidade. Que passam a referir-se pelo espaço de privacidade e

intimidade conquistado, e de onde enxergam os demais, pelo medo, pela

culpa, pela intolerância, ou pelo anseio, pela busca imóvel, pelo discurso

emudecido, por onde, uns e outros mediam as relações públicas e procuram

novos pares. Por uma espécie de tensa conformidade (SCHEFF, 1988), por

assim dizer.

A solidão, assim, como argumento da intimidade e da

espetacularização do individual é um caminho por onde parece prosseguir, a

passos largos, a nova forma de mentalidade por onde se movem as

camadas médias urbanas no Brasil, dos últimos trinta e poucos anos,

acompanhando o processo societário ocidental de que se diz herdeiro e

portador do seu legado histórico formativo. Na questão colocada no

questionário padrão sobre a existência de um tempo ideal para a entrada e

saída do luto, a tendência a encarar o enlutamento, esse ritual de passagem

provocado pela morte de outrem, como uma questão pessoal, ou como uma

marca eterna, parece vir sendo afirmada como uma espécie de prognóstico

desta individualidade solitária que parece tomar conta, ou se processar

neste sentido entre os brasileiros.

No Quadro 31, anexo, se verifica que 64,57% dos entrevistados

indicaram o hum ano como o tempo ideal para saída do luto. Pelo menos,

para o afrouxamento necessário dos laços de sofrimento que marcaram o

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216 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

trabalho de um enlutado sobre a memória daquele que se foi. Tempo que

permite a introjeção deste ser no íntimo do ser em sofrimento, remodelando-

o e adaptando-o à vida que continua. Tempo, também, que possibilita ao

enlutado a elaboração de novos projetos e aventuras sociais, que se havia

impedido pela insuportabilidade da dor a que se viu sujeito no início do

processo.

É o que a psicanálise, a psiquiatria e a psicologia também advogam

para o que consideram um trabalho e um processo de luto não patológico.

Quando, porém, o indivíduo parece se fechar e não consegue sair do estado

de prostração a que se encontra submetido desde a perda do ente amado,

após o período considerado normal (FREUD, 1992) de introjeção da perda

em si, ou quando permanece em depressão e recusa o mundo ao redor, é

necessário uma intervenção especializada sobre o sofrimento desse sujeito,

como forma de reintegrá-lo à vida social e, principalmente, a ele mesmo.

O luto, no tratamento especializado, se faz sobre uma espécie de

anomalia da vida ordinária do sujeito em crise, que o impede de retornar ao

cotidiano da convivência prática. Na sociedade contemporânea, ocidental, e

na brasileira dos últimos trinta e pouco anos, vem tomando o lugar de outras

instâncias agora não mais tão acreditadas, e que passaram ou passam por

redefinições na sua estrutura e formas de funcionamento, como a religião e

a família.

No discurso da saúde mental, o sofrimento provocado pela exclusão

social, como a pobreza, nos países subdesenvolvidos ou em

desenvolvimento, e pela individualização crescente das relações afetivas e

da mercantilização e instrumentalização dos laços sociais da vida pública,

atinge hoje, mais de 400 milhões de indivíduos dentro de um mapa da

população mundial. O que faz com que a depressão seja apontada como a

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217 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

doença do século XXI. Para este discurso, se as projeções estiverem

corretas, até o ano de 2020, a depressão terá pulado para o segundo lugar

do ranking de doenças acometidas na população mundial,

independentemente do nível de industrialização e desenvolvimento de cada

país (BRUNDTLAND, 1999) .

Ao situar o tempo ideal do luto em um ano, a maior parte dos

informantes aponta, assim, para o imaginário coletivo que ainda parece

predominar, mesmo que de forma tensional, entre as camadas médias

urbanas no Brasil. "Quando meu pai morreu, eu era adolescente e lembro,

como se fosse hoje, da roupa preta que vesti, de luto fechado, durante

quase seis meses, depois passando para o branco e preto, e só depois de

mais de um ano é que pude vestir vermelho. Eu e minhas irmãs, o meu

irmão, era pequeno, e também vestiu sempre calça preta e no máximo uma

camisa branca com o fumo no braço, no período maior do luto. Minha mãe,

só quando completou hum ano é que saiu do luto fechado e pôs uma roupa

mais clara, mas vermelho nunca mais usou...

"Quando ela morreu, há uns oito anos atrás, a vestimenta do luto já

era diferente. Já se podia vestir qualquer cor, mas, mesmo assim, pus uma

roupa, não preta, mas azul escuro, nos meses imediatamente após a sua

morte. É uma forma de respeito... minhas irmãs também o fizeram, a

garotada é que já não liga muito para isso, acho até que sofrem mais... ou

vai ver que não dão bola mesmo, é coisa de gente velha.... Mas, como eu ia

dizendo, é uma forma de respeito ao morto, e uma forma de mostrar esse

respeito para os que também conheciam e respeitavam a pessoa morta... E

com isso, a gente se sentia mais confortável, em contato com nossos

mortos, em contato com a gente mesmo e com os demais... e a dor ia

passando devagarinho, e quando se via, a gente já estava vivendo a nossa

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218 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

vida e os mortos dentro da gente, o tempo todo, mas não mais como dor,

mas como acompanhamento e sentimento. ... .

"Minha irmã mais velha morreu faz pouco tempo, coitada, a filha, os

filhos, o marido dela não deixaram a gente acompanhar mais de perto o

corpo e preparar o seu despacho... De noite, depois do enterro, já estavam

todos rindo, indo para as festas, indo pra a faculdade, namorando, o marido

nem deixou de trabalhar no outro dia, imagine..., as luzes da casa todas

acessas, parecia que a mãe e a esposa não tinha morrido... Não queriam

nem celebrar a missa de sétimo dia, eu e minhas irmãs é que insistimos e

pagamos a missa. Mas o senhor não sabe, o rapaz, filho dela, tinha uma

viagem marcada e foi, não compareceu na missa... é uma coisa terrível... aí

o luto nem existe, ou assim parece... pobre da minha irmã! Vai que eles é

que estão certos e eu fora da onda..., como se diz agora (riso)..." (Entrevista

n. 43)82.

A narrativa acima, fala de três tempos e três processos de luto por

que passou a entrevistada: o tempo da morte do seu pai, quando ainda era

uma adolescente, no interior; o tempo da morte de sua mãe, já adulta e

casada, e todos morando na capital, Porto Alegre, e, o tempo presente,

significado através da morte de sua irmã mais velha. Para cada relatou um

tipo de trabalho de luto experimentado e traçou relações com o tempo de

cada um, e a mentalidade de cada tempo de enlutamento.

Em cada tempo narrado, as cores da vestimenta simbolizavam o

experimento público da dor, como uma forma de melhor viver o próprio

morto em si, de purgar o sofrimento causado por sua morte e introjetá-lo

amorosamente no seu interior, como uma atitude de reverencia e respeito ao

82

Sexo feminino, 65 anos, moradora de Porto Alegre, mas natural de Alegrete, Rio Grande do Sul. Casada, mãe de três filhos, todos casados. Dona de casa, nunca trabalhou, católica.

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219 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

que se foi, a sociedade em torno e a cada sujeito enlutado a si mesmo. As

cores, porém, mudam a cada luto: do uso do preto no luto fechado do pai,

passa para um azul escuro e encorpado. Se não o preto, mas algo de um

tom que demonstre um recolhimento e um estado de sofrimento pela perda

de alguém querido aos demais, e faça com que cada enlutado entre no clima

propício à reflexão que a morte recomenda.

O terceiro luto, porém, chocada, revela a sua ausência na família de

sua irmã. Todas as cores, todos os risos, todas as vontades sendo

satisfeitas, sem uma pausa para uma reflexão. Nem uma demonstração

pública de dor, a missa de sétimo dia tendo que ser realizada após muita

insistência das irmãs da morta, o filho nem compareceu à cerimônia, enfim,

um transtorno e tanto, que fez a entrevistada parar assustada e perguntar se

era ela ou se eram os filhos e marido de sua irmã que estavam certos.

A sua segurança na construção pública do luto, da expressão pública

do recolhimento familiar indicativo do respeito ao morto, a sociedade e a

família enlutada, foi posta à prova, tornando um embate difícil de

compreensão. Como o entrevistado n. 15, também sentiu-se estigmatizada e

marginalizada: "fora da onda..., como se diz agora".

O sentir-se "fora da onda" parece fazê-la olhar a si e aos outros

através de uma tendência a estratificação de seus relacionais, conforme,

segundo Goffman (1988, p. 117), "o grau de visibilidade e imposição de

seus estigmas". O que complica a análise ao se pensar que esta provável

forma estratificada de olhar o mundo a separa, ao mesmo tempo que a

permite se integrar, a este mesmo mundo social.

O estigma a faz, de um lado, colocar-se de fora da mudança do

mundo, como uma pessoa antiquada. O que a faz pensar sobre suas

próprias atitudes e a dos demais de forma estereotipada, através do

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220 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

enquadramento de sua pessoa no conceito de antiquado, por ela própria

traduzido. Por outro lado, busca estabelecer as bases de compreensão para

o comportamento dos demais, e nesse esforço repensa a sua pessoa e os

outros da relação. Por exemplo, falando sobre as expressões públicas do

luto através de vestimentas sóbrias e uma certa discrição individual no agir

público, e comparando sua geração com a mais recente, afirma que "a

garotada é que já não liga muito para isso, acho até que sofrem mais... ou

vai ver que não dão bola mesmo, é coisa de gente velha....".

A reflexão sobre o seu comportamento perante o luto e as formas de

sua expressão, quando comparada com a reflexão sobre o comportamento

dos outros, a leva a tender a compreender o estigma que assume, de "fora

da onda", por um outro olhar estigmatizado de "gente velha". Neste

momento, cria para si uma nova segmentação do social, e nela busca

enquadrar-se e tentar estabelecer contatos com um real imaginário por onde

toca o seu cotidiano. E nesse jogo entre o seu ser pessoal e os outros ao

redor, segue um processo de segmentação contínua do social e de si

mesma, onde ao mesmo tempo que é vítima, também funciona como uma

espécie de algoz.

Vítima, por se colocar marginalizada das novas formas com que para

ela parece se configurar as emoções e o comportamento pessoal e social

perante os mortos, o respeito e o sofrimento em relação a eles. Algoz, por

medir interiormente este conjunto de sentimentos e formas comportamentais

recentes através de sua própria experiência, qualificando os demais, ou

melhor, os costumes da modernidade, a partir de sua degradação, e como

tal, sente-se deslocada desta modernidade, ao mesmo tempo que a

condena. Coloca-se ao mesmo tempo acima e abaixo do social, e neste jogo

procura refazer sua vida, como condenação de si mesma, pelo

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221 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

deslocamento a que se diz vítima, e dos outros, pela degradação e frieza de

suas atitudes e ações com que encaram a morte e os mortos.

Para Cottle, (1977, p. 35), falando da relação entre o individual e o

social, do privado e do público na contemporaneidade, este jogar contínuo

com esferas comportamentais de si próprios, e dos demais da relação, faz

parte da vida cotidiana dos sujeitos sociais individuais na modernidade. Os

limites e fronteiras estabelecidas em cada um sobre o como cada esfera

pode afetar a si mesmo e os outros, são distinguíveis e ao mesmo tempo se

misturam, provocando mudanças para fora ou para dentro, conforme cada

novo olhar. Em suas palavras, "cada um de nós sente a esfera interna

privada de realidade humana e o que a influencia, e a esfera exterior e o que

parece afetá-la . Todo o mundo sente os modos nos quais estas duas

esferas trocam de forma e que os seus limites, às vezes, não são

distinguíveis, e como este inconstante pode resultar de mudanças em cada

esfera ou no jogo entre elas".

Uma terceira entrevista será aqui colocada como uma forma de um

outro contraponto às duas visões anteriormente trabalhadas. Este novo

depoimento fala do constrangimento pessoal do entrevistado para assumir

formas de expressão pública do luto, com que ela não concordava. Para ela,

as pressões sociais iam de encontro à sua liberdade pessoal.

"Meu pai morreu fazem uns quase três anos... ...claro que senti muito,

chorei, minha vida ficou abalada, tive que me adaptar as novas condições de

vida da minha casa: antes só estudava e tive que trabalhar também para

equilibrar as finanças que ficaram um pouco abaladas lá em casa, enfim,

essas coisas todas que a morte de alguém que a gente depende não apenas

afetivamente mas financeiramente causa bagunça... Mas não é disso que

quero falar agora, não! Quero falar do constrangimento que passei, e ainda

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222 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

me jogam, de vez ou outra na cara, aqui em casa, sobre o que me taxam de

indiferença e falta de afeto e respeito pelo meu pai, ou melhor, pela imagem

dele...

"Minha mãe, meus dois irmãos mais velhos, e homens..., ficam a me

recriminar... logo depois da morte de meu pai bem mais do que agora, mas

fiquei sendo uma espécie de membro má da família, parece... ficam a me

destratar, a querer que eu expresse uma forma de pensamento que não

sinto, que eu seja o que não sou... . Olhe, eu estava namorando com um

cara quando o meu pai morreu. A gente já estava querendo ficar junto e

coisa e tal, aí, quando do falecimento do velho, dois dias depois, a barra

estava pesada lá em casa, eu peguei minhas coisas e me mudei para a cada

desse meu namorado... foi um drama familiar! Nem te conto...

"Minha mãe agarrou-se comigo, puxou minha bolsa, me chamou disso

e daquilo, disse que eu não tinha sentimentos, ia embora na hora que a

família toda estava sofrendo e precisavam todos estar unidos, e por aí foi... o

meu irmão mais velho me chamou de tudo um pouco, veio com discurso

moral, que eu era uma vagabunda e tal, que se meu pai fosse vivo eu não

faria uma coisa dessas, e que ele não ia deixar eu ir embora assim... . Não

por minha causa, disse ele, que eu que me exploda, mas por causa da

imagem do meu pai, que mal acaba de falecer e eu já dou um desgosto

desse, mas da família toda... ...pela vergonha que estou causando pelas

minhas atitudes inconseqüentes, expondo a minha família, sem dar tempo

para sequer meu pai esquentar a cova, que eu não respeito o luto dos

outros, que se eu pelo menos tivesse dado um tempo da morte do pai para

fazer as minhas loucuras, e por aí vai... como se existisse um tempo para

cada coisa, como se o tempo não fosse o tempo de cada um... ...o meu

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223 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

outro irmão quis dar uma surra no meu namorado... foi um drama e coisa e

tal, mas fui assim mesmo...

"Morei uns seis meses com esse cara, depois enchi, fui embora, me

aceitaram em casa de volta, ninguém disse nada, nem sim nem não, mas lá

e cá pegam no meu pé... qualquer coisinha sou a insensível, a que não se

pode contar, e tudo o mais... e olhe, que deixo mais da metade do meu

salário em casa, pago os meus estudos e tudo o que é meu, mas mesmo

assim sou a ovelha negra... e (chorando) isso me dói muito, muito mesmo...

pois ninguém pode querer que todo mundo pense como todo mundo, cada

um é diferente, e me expresso conforme eu quero e entendo... às vezes eu

penso que sou má e insensível como me acusam, mas depois penso que

estou entregando os pontos e fico na minha... tenho saudade de meu pai,

quando ele era vivo, as coisas aqui em casa eram diferentes, mais amenas,

com mais compreensão.... " (Entrevista n. 220)83.

Diferente dos dois anteriores, este depoimento revela um sentimento

de exclusão e marginalização social, no interior da família, por a entrevistada

não corresponder às exigências familiares sobre um padrão moral e de

expressão de sentimentos em relação ao pai falecido. A busca de liberdade

de ações e pensamento faz a entrevistada inquirir sua família e a ação

familiar da família sobre ela como uma espécie de opressão familiar para a

sua livre iniciativa. Por outro lado, ela às vezes se pergunta se é mesmo

tudo aquilo que ela acha que os outros familiares pensam sobre ela.

Vive a angústia causada pela tensão entre corresponder a um padrão

familiar esperado ou corresponder a sua própria forma de expressão. A

morte do pai foi um elemento de ruptura significativa no seio da família

83

Sexo feminino, 27 anos, solteira, natural e residente em Florianópolis, estado de Santa Catarina. Estudante universitária e vendedora de uma boutique em um shopping local.

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224 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

nuclear e em suas relações com o mundo, principalmente sobre o baque

econômico que parece ter ocorrido em seu interior. Para a entrevistada, esta

ruptura ocasionou também o afloramento de um sentimento de rejeição

familiar a ela, que a faz sentir-se como excluída ou marginalizada do núcleo

familiar, apesar de afirmar que deixa " mais da metade do meu salário em

casa, pago os meus estudos e tudo o que é meu, mas mesmo assim sou a

ovelha negra... ".

A relação estabelecida com o núcleo familiar torna-se ambíguo: de um

lado, a expressão econômica da solidariedade, "deixo mais da metade do

meu salário em casa", do outro lado, a expressão psicológica da

solidariedade da família para com ela, através da falta de compreensão de

seus sentimentos, que a fazem sentir-se como "a ovelha negra" da família.

Sem esquecer um terceiro lado, que é o de ser atribuída de falta de

sentimentos, de insensível, pelos familiares e, às vezes, sentir-se como tal.

O jogo difícil e tenso estabelecido entre ela e seus familiares mais

próximos, reforça a marca da ruptura causada pela morte do pai na sua vida,

e seu recolhimento para dentro de si mesma, com suas mágoas, por não ser

entendida em seus sentimentos e formas de expressão pessoal, e em sua

solidariedade possível para com a família. Amplia o seu olhar sobre o

preconceito familiar a que se diz vítima, e o seu olhar sobre si mesma, às

vezes com benevolência, às vezes com um misto de insegurança em

pensar-se talvez ser o que os outros membros da família pensam que ela é.

Através dessa trama refaz a trajetória e vê os outros pelo preconceito que

ela acha que têm, os olhando desse modo, e de quererem podar a sua vida

e a sua liberdade. Através do olhar o preconceito dos outros mede a

extensão dos sentimentos deles e, consequentemente, o seu.

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225 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Ao referir-se ao conflito que travou logo após a morte do pai, quando

decidiu ir morar com o namorado, por exemplo, faz uma comparação entre

os tempos da casa e dela, e, mesmo sem dizer em palavras dá a entender a

medição que busca estabelecer. O tempo da casa é um tempo de

preconceito, um tempo onde, se um não faz o que os demais pensam ser

certo estão condenados. Um tempo referido e que tem por referência aos

demais, aos de fora da casa, e não a um real sentimento pelo pai que se foi.

O tempo pessoal, da entrevistada, por outro lado, aparece com um

outro significado. Surge com um sentido mais individual, mais subjetivo e

íntimo, e por conseguinte, mais profundo. Nele, a dor real, existindo na

intimidade de cada um, não pode ser expressa através de um tempo e de

uma forma de agir delimitados pelo preconceito social. Não!

A forma como a família encara o seu comportamento, querendo privá-

la da liberdade e enquadrá-la como uma figura má e sem sentimentos, é que

para ela é superficial e tosca. Movida pelo o que os outros vão pensar e não

pelo que realmente sentem.

Ela constata isso, ao afirmar a necessidade de preservar a "imagem

do meu pai, que mal acaba de falecer". Ela assegura isso, também, ao

afirmar o desgosto e a vergonha por ela causados a toda a família, segundo

seus irmãos, pelas suas "atitudes inconseqüentes". Ela, ainda, averigua isso

no afirmar a atitude leviana, segundo os seus familiares, da entrevistada, por

sair de casa para ir morar com o namorado, "sem dar tempo para sequer

meu pai esquentar a cova", ou, também, "que eu não respeito o luto dos

outros, que se eu pelo menos tivesse dado um tempo da morte do pai para

fazer as minhas loucuras, e por aí vai...".

Os tempos dela, individual, e da família, social, se colidem nas formas

de entendimento e expressão do luto de cada parte, o que parece provocar

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226 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

mágoa no discurso da entrevistada pela maldade ou inconseqüência que a

família quer a ela imputar, pela saída de casa logo após a morte do seu pai,

"como se", ela afirma, "existisse um tempo para cada coisa, como se o

tempo não fosse o tempo de cada um".

O mundo privado e o mundo social, ao se chocarem

permanentemente, e de forma intensiva, após a morte do pai da

entrevistada, parece ter criado momentos de redefinição na sua pessoa, que

se sente estigmatizada e que estigmatiza, ao mesmo tempo, os outros ao

seu redor. A mistura dos dois universos torna-se, cada vez mais, tenso e

conflitual, visto sob um prisma de disputa de espaços, e de onde cada

batalha é sentida como um elemento de liberdade e individualidade perdida,

ou na expressão da entrevistada ", mas depois penso que estou entregando

os pontos e fico na minha...". Embora a falta de compreensão a incomode, e

sinta falta do tempo em que o pai era vivo, e existiam mais harmonia e

compreensão familiar nas formas de expressão de cada um.

Nos três depoimentos referenciados, a dificuldade de saber como agir

perante o social, faz com que a ambivalência tome conta do comportamento

pessoal de cada um, verificando o outro da relação e a si mesmo como parte

de uma estratégia de condenação a que todos estão sujeitos e submetidos.

Quer pela não aceitação das regras do jogo social para cada situação

específica, quer pelo paulatino desmonte e descrédito atual das antigas

formas, quer, ainda, por ver o mundo em transformação degenerando as

gerações e as tornando mais insensíveis e presas ao imediato. Quer,

também, pelo sentimento de discriminação sobre a condição ou escolha

pessoal de cada sujeito, ou de outras possibilidades possíveis de verificação

da ação social.

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227 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O que parece aumentar a solidão, a desconfiança, e a falta de

compreensão dos entrevistados, bem como as mágoas, o receio, o medo do

outro. O que aprofunda o campo de disputa entre as partes, e o

individualismo nas formas de agir. O eu configura-se como um espetáculo do

sofrimento, e de sua negação simultânea, enquanto uma busca exacerbada

de autodefinição e liberdade de ação imediata. Do indivíduo sobre a

sociedade.

O tempo ideal do luto fica, assim, ao que parece, ao sabor da disputa

e da visão desta disputa no olhar e na experiência de cada um. Com o

rompimento das regras e formas rituais, deixam de se apresentar como uma

unidade por onde se pode pensar o social. Este conjunto de valores passa a

ser visto e sentido através da ótica pessoal e da vivência íntima e da curva

de vida de cada um. Embora cada um desses indivíduos tenha dúvida do

seu lugar, ou se o lugar que hoje ocupa continua sendo o certo, ou o modo

certo de agir.

O que só faz ampliar a solidão, o mascaramento das emoções, a

vergonha e a culpa pessoal no enfrentamento do outro ou de determinadas

situações no social. O que pode ser tomado, aqui, como uma tendência das

camadas médias urbanas no Brasil de hoje.

Os Sentidos do Luto

Os entrevistados e os que responderam ao questionário padrão foram

confrontados, mais uma vez, sobre os sentidos que atribuíam ou que

achavam compor o processo de luto no Brasil de ontem e de hoje. Suas

respostas e narrativas, construídas a partir de um imaginário criado em um

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228 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

contexto cultural e social específico e ao mesmo tempo de muitas vozes,

mostram a ambivalência e a polaridade com que conseguem pensar os

sentidos e significados das expressões do luto, no ontem e no agora da

sociedade brasileira.

É na relação com os outros que os informantes constróem as suas

narrativas, mesmo com o tom de uma interpretação, completamente

pessoal. O que demonstra a curva de vida de cada informante particular e os

impasses e conquistas vivido e sentido como seu, no interior de um

processo cultural e social mais vasto.

Burkitt (1997, p. 44) afirma que o conflito emocional não nasce de

estados interiores de ambivalência, mas de contextos sociais que são, eles

próprios, ambivalentes ou preenchidos com conflito. Deste modo, para o

autor, uma pessoa pode pensar as emoções de uma maneira própria, e essa

maneira única ter sido construída socialmente e possuir um significado

somente no contexto social específico que foi produzida e que foi por ela

experimentado.

Citando Elias (1990), acrescenta que as relações entre as pessoas e

os sentimentos a elas associados são partes dos processos de interação.

Processos compostos, simultaneamente, de um complexo de gestos, sinais

e movimentos corporais. Todos eles fazendo parte da mesma ação

comunicativa, juntamente com as relações, as experiências e os sentimentos

sociais. É a rede, é a interligação entre as diversas interfaces de um mesmo

ato, deste modo, que constrói uma experiência emocional (Burkitt, 1997, p.

45).

Ao se considerar as diversas definições apresentadas pelos

informantes que responderam ao questionário padrão sobre os sentidos e

significados do luto do passado e de agora, se pode perceber, através do

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Quadro n. 32, que 81,13% relacionaram o sentido atual do luto contraposto

com as expressões do passado. Para estes, a visão do passado traz uma

certa nostalgia do olhar, quando percebem o trabalho de luto como melhor

compreendido e ajustado a padrões ritualísticos de instâncias

desindividualizadoras, presentes e aceitos, então, pela maioria da população

brasileira.

Três categorias expressam a opinião destes 81,13%. Estas categorias

são as seguintes: "Respeito Pelo Morto E Pelo Luto", "Sentimentos

Comunitários" e "Integração".

A primeira, informa que no passado recente brasileiro havia mais

"Respeito Pelo Morto E Pelo Luto", com 47,85% das respostas. A segunda

categoria, afirma que outrora os "Sentimentos Comunitários" eram mais

fortes, com 13,32%, e, por fim, a terceira, fala da existência de uma maior

"Integração", com um percentual de 13,96% do total dos informantes que

conduziram a resposta ao passado, para entender como no presente

sentiam o sentimento do luto no Brasil.

As afirmações de sentidos presentes nas três alternativas postas

pelos informantes para expressão do sentimento do luto, levam a uma

espécie de idealização do passado brasileiro como mais coeso, mais

integrados, de sentimentos comunitários, com mais respeito ao morto e pelo

sofrimento social expresso no e pelo luto. Falam, deste modo, na ritualização

da vida comunitária e no comportamento mais regrado das pessoas

envolvidas, de acordo com a credibilidade das instâncias

desindividualizadoras que pareciam gerir a vida de seus habitantes.

Hábitos e costumes, bem como valores e aspirações sociais são

evocados para falar de um tempo e de um lugar, perdido ou a esvanecer-se

no Brasil atual. Lugar onde, na narrativa e respostas dos informantes,

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230 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

existiam um sentimento e um sentido moral mais forte do que os indivíduos

que os faziam ajustar-se aos ritmos da cultura e da organização social local.

Os ritos de passagem canalizavam o processo individual de cada um

para uma espécie de cartase (DURKHEIM, 1996) vivida socialmente. Onde o

sofrimento causado pela morte do ente querido parecia ser regrado pela

sociedade e experimentado, em diferentes níveis, por toda a comunidade de

onde o morto fazia parte.

As três categorias, assim, falam de maior respeito ao morto e à morte.

Descrevem, também, os sentimentos comunitários e o espírito de

integração. Expressam um estado de espírito idealizado onde o luto era

vivido, pelo menos no imaginário destes 81,13%, através de uma presença

forte do social e dos significados morais atribuídos ao rigor e ao respeito aos

ritos de passagem que faziam parte dos processos da morte e do luto na

sociedade brasileira de ontem.

Yhuel (1995, pp. 76 a 93), em seu artigo "Emmène-Moi au

Cimetière84", que reúne um conjunto de depoimentos sobre trabalhos de luto

desenvolvidos por diferentes pessoas de origem francesa, de distintas

categorias e vivências sociais, divide os depoimentos em tipos categoriais de

luto experimentado por cada depoente.

Para ela, as narrativas expostas no seu artigo se encontravam

distribuídas por vários modos de vivência do enlutamento. Para cada um

desses modos ela propôs uma categoria, e dividiu os trabalhos de luto

apresentados em cinco categorias: a do Luto Impossível, a do Luto

Ritualizado, a do Luto Recusado, a do Luto Como Uma Pele, e a do Luto

Como Um Inflamar.

84

Tradução: Leve-me ao Cemitério.

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231 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

A segunda categoria, a do Luto Ritualizado, expõe um trabalho de luto

dentro dos padrões e rigores de uma sociabilidade regrada por hábitos,

costumes e valores coletivizados. As expressões do luto de alguém, ou de

uma família são experimentadas por toda uma comunidade, que vive o ritual

intensamente, e ajudam uns aos outros na dor da perda. O que possibilita à

família, ou aos entes que ficam, um revigoramento de sua própria

participação social e uma reintegração ao cotidiano mais fácil, pela

cooperação e participação de toda uma comunidade no seu processo de

luto.

Este tipo de vivência do luto parece ser o mesmo idealizado pelos

81.13% dos entrevistados, que viam o processo de luto no passado recente

brasileiro como mais integrativo e com valores morais e comunitários mais

densos. As outras quatro categorias de luto apontados no trabalho de Yhuel,

referem-se, por seu turno, à experiência individualizada da perda, que

parece fazer parte da maior parte das camadas médias na França.

Estas quatro categorias falam da impossibilidade e da recusa de

vivência do luto, ou do luto impregnado nas entranhas do ser em sofrimento,

ou como um inflamar, uma forma de nova consciência adquirida pela morte

do ente amado. Todas vividas na interioridade do sujeito que as

experienciam e todas conclamadas como uma marca de eternidade que

tocou e transformou a vida pessoal de cada um daqueles indivíduos em dor.

Todas vistas a partir de uma dificuldade de compartilhamento do

sofrimento com um outro social ou com uma instância ou instituição

desindividualizadora. O que aumenta consideravelmente o sofrimento

pessoal e a solidão de cada um, através de um estranhamento para com o

social. Movimento de estranhar que implica, sempre, em um maior

distanciamento do indivíduo que sofreu a perda do social, ou em uma recusa

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232 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

deste mesmo social. Ou, ainda, que leva o indivíduo para um despertar de

uma nova consciência, na qual passam a agir e remontar o seu sofrimento a

partir de um sofrimento social mais amplo.

Este individualismo nas formas de individuação experimentadas pelos

indivíduos nos processos de luto, fazem contraste agudo com a forma do

luto ritualizado em extinção. O último compondo-se, prioritariamente, de

instâncias comunitárias na regência do processo integrativo da pessoa, e no

administrar o sofrimento pessoal do enlutado, o fazendo parte integrante do

processo societário mais geral.

As quatro primeiras categorias de Yhuel exprimem um processo de

isolamento do sofrimento de cada um como uma dor internalizada e não

societária por excelência. O que parece dificultar o trabalho individual de

luto.

No árduo processar-se, cria marcas individuais em cada indivíduo que

vive um trabalho de luto, e revela formas de ação a partir da própria

experiência individual enquanto sujeito em dor. O social aparece, deste

modo, como um outro distante e estranho, que discrimina e isola ou que

provoca vergonha e ressentimento nos enlutados.

Estas categorias apontadas por Yhuel, assim, parecem coincidir com

o processo de idealização de um passado recente imaginado pelas camadas

médias urbanas no Brasil, sobre o processo de luto. Ao idealizarem, estão

ponto em contraste o isolamento vivido ou que verificam em crescimento

acelerado nas relações societárias sobre o processo de luto no país.

O destaque dado ao passado por estes 81.13% dos informantes,

parece refletir o refreamento pessoal, através da interiorização do

sofrimento, a pulverização de laços sociais e a vergonha de enfrentamento

público, nas relações societárias do luto, no Brasil de hoje. Afigura

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233 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

demonstrar, também, a incapacidade de uma reintegração ao social, após a

vivência do luto, ao mesmo tempo que uma idealização de um tempo onde a

integração era possível e desejada.

Diferente dos demais 18,87% dos informantes. Para estes, o processo

de luto hoje em dia, nas relações societárias do Brasil urbano, difere

positivamente, das relações do passado. O trabalho de luto hoje, para eles,

parece ser vivido com mais liberdade, e com uma maior intensidade de

sentimentos, que no passado recente brasileiro.

As duas categorias com que expressam a positividade do luto no

presente brasileiro, para estes informantes, são as de: "Existe Mais

Sentimentos", com 9,36% e "Existe Maior Liberdade", com 9,51% das

respostas. A primeira categoria refere-se aos sentimentos expressos no

passado como falsos, encobertos por uma aparência moral contida nas

regras de etiqueta rígidas das formas sociais de luto vivenciadas pelo

brasileiro de classe média de antigamente.

O passado, ao regrar, normatizar e domesticar as ações individuais

do luto no imaginário destes informantes parece agir como uma instância de

constrangimento ao crescimento da individualidade, das expressões das

emoções e da liberdade de ação dos indivíduos. Aparece como uma

instância de negação da expressão individual e, enquanto tal, de inibição e

refreamento das condutas a etiquetas que falsificam o sentimento em prol de

uma admoestação ou censura comportamental.

O indivíduo colocado em conflito, tencionado, diferente e único frente

ao social parece ser a idéia em que se assenta o imaginário destes

informantes. Vêem, assim, a sociedade e os outros da relação como

depositários e introdutores de uma igualidade que "barra o caminho da auto

realização ou do avanço da personalidade individual ... (já a sociedade, por

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Ser Discreto

234 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

sua vez, é) composta de uma massa inerte de pessoas obscuras e

indistinguíveis que ameaçam empurrar a todos para um mesmo nível

inferior" (Elias, 1994, p. 75).

Ao mesmo tempo que, no conflito estabelecido com o social, vêem a

si próprios como determinação da própria vida e dos próprios atos e,

contraditório e simultaneamente, como seres introspectivos e solitários, e

carentes de compreensão. Do mesmo modo que almejam e celebram a

liberdade pessoal e da expressão e maior intensidade de sentimentos,

sentem falta de uma audiência em que possam expressar as suas emoções.

O refreamento dos afetos no público, desta forma, no padrão social

atual informado por estes 18,87% dos entrevistados, é sentido como

expressão das dificuldades de comunicação com o outro. Ao enfatizarem a

não importância do outro para expressão dos sentimentos, e de que cada

um pode e deve viver as suas emoções como bem desejar, parecem cair na

expressão individualista da ação social, onde apenas o valor mercantil da

troca tem sentido.

Os sentimentos e afetos, deste modo, perdem o poder de

comunicabilidade e, ao deixarem de ser comunicáveis, parecem perder o

sentido. O que amplia o sofrimento individual, a solidão e as dificuldades de

ação dos indivíduos no cotidiano. Afigura-se, deste modo, no aprofundar as

marcas pessoais de cada um, que passam a comunicar-se com os outros

através de um distanciamento social, cada vez mais, amplo, e com uma

ansiedade de descoberta ou de serem descobertos, intensos.

Conclusão

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Ser Discreto

235 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O presente capítulo procurou compreender a relação social do luto no

momento de transição social por que passa o Brasil contemporâneo. Buscou

enfatizar, através das narrativas dos informantes, os aspectos ligados ao

lado mais social e a importância deste para o trabalho pessoal de luto de

cada indivíduo social.

Discutiu o luto como demonstração social, e como uma forma de

diferenciação social da família para com a sociedade como um todo. E o

lado sentimental, e os realces dos aspectos positivos do processo de luto no

Brasil de outrora, vistos por uma parcela dos informantes. Estes, em uma

comparação com o presente, enfatizam a individualização do processo de

dor na subjetividade do sujeito que a sofre, na experiência atual.

Discutiu, também, a expressão de outra parcela de informantes, para

os quais o luto hoje, na sociedade brasileira, tem-se revelado como uma

experiência mais salutar do que a do passado recente. Neste caso, foram

apontadas a individualidade e a subjetividade como fundamentos de

liberdade e expressão pessoal na vivência do luto, contrapostas com a

presença mais forte da sociedade no controle do luto de seus membros.

Esta última foi enfatizada, nas respostas dos informantes, através da visão

sobre uma possível hipocrisia das relações sociais e da solidão do indivíduo

no social.

A solidão é sentida pelos entrevistados a partir de uma postura de

olhar que entende o indivíduo acima da sociedade. Que sente o indivíduo

individuado ou em processo de individuação no trabalho de luto, ou no

sofrimento por ele causado, sobre as regras sociais, ou seja, como o

despontar do indivíduo enquanto ser subjetivo, privado, e oposto ao público.

Esta modernidade da individualidade do sujeito frente ao social

afigura-se por situar melhor a dor da perda nos mecanismos da

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236 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

rememoração dos laços com o falecido ou por ele facilitados, e da memória

afetiva do morto com relação à família e à sociedade, recompondo, desta

maneira, a expressão da importância e da permanência do valor da

instituição familiar. Ao mesmo tempo que parece enfatizar as marcas da

instabilidade e do não saber situar-se perante as novas regras do jogo

social. O que amplia as margens de insegurança do agir, e o sentimento de

culpa do não saber como comportar-se perante a ruptura que irrompe com o

sofrimento e com o inconformismo pela situação experimentada.

O constrangimento pessoal para assumir formas de expressão pública

do luto, as relações estabelecidas com o núcleo familiar, e a falta de

compreensão dos sentimentos, parecem provocar uma ruptura e ao mesmo

tempo a emergência do indivíduo sobre a sociedade. O processo do luto

ficando assim, ao que parece, ao sabor da disputa, e da visão desta disputa,

no olhar e na experiência de cada indivíduo, ao relacionarem o sentido atual

do luto contraposto com as expressões do passado.

Um distanciamento da pessoa no social e, ao mesmo tempo, a

ansiedade de ser encontrado e satisfeito por alguém ou alguma coisa

idealmente perdida em algum lugar do passado, que não se sabe bem o

que, ou onde perdeu-se, parecem ser as conseqüências mais visíveis,

apresentadas pelos informantes, no decorrer deste capítulo. O que vem se

configurando em um movimento que só faz aumentar as dificuldades

encontradas de exposição do sofrimento, ou da solidariedade nas relações

sociais do luto, bem como, o de não saber agir e o constrangimento e a

vergonha, associado da culpa, deste ou por este desconhecimento.

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237 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Conclusão

"Com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica cada vez mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural, torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência" Norbert Elias (1990, pp. 188). "O que está na origem do luto é a impressão de enfraquecimento que sente o grupo quando perde um dos seus membros" Èmile Durkheim (1996, pp. 440).

Este livro buscou compreender as atitudes em relação ao fenômeno

do luto no Brasil. O processo de luto foi compreendido como uma relação

social, como uma demonstração social, e como uma forma de diferenciação

social do indivíduo em sofrimento para a sociedade como um todo.

O ritual do sofrimento provocado por uma perda foi o ponto de partida

e de término desta reflexão. O significado social do luto e o processo de

individuação de quem o sofre, no comportamento e nas atitudes das

camadas médias urbanas que vivem nas capitais dos estados brasileiros, foi

o seu principal objeto de análise.

A descrença nas fórmulas rituais de sujeição social da dor pessoal de

quem sofre uma perda, e da integração do morto às malhas do social,

através de uma série de ritos de passagem. O impedimento tácito à

expressões intensas de sentimento, e o modo higiênico no trato do morto,

foram tomados aqui, como exemplos de mudança nas antigas práticas e

relações sociais em torno da morte e do luto nas sociedades de tradição

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238 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

ocidental. Este livro buscou analisar as relações sociais brasileiras através

deste legado.

Neste livro, os códigos do luto e da morte foram apreendidos no seu

processo de mudança. Partiu-se da hipótese de que a morte e sua relação

com o mundo dos vivos no Brasil atual parece ter sido capturada por códigos

mais individualistas e não mais através de expressões de uma sociabilidade

relacional.

No conjunto das relações sociais da atualidade brasileira, a tendência

parece ser a de uma reprovação ao luto público, como se o sofrimento

pessoal de uma perda poluísse o social e contaminasse os demais com a

presença da morte e do sofrimento alheio. O sofrimento causado pela perda

e o processo de internalização do morto em um indivíduo, que compõem o

trabalho do luto, vem configurando-se, nostalgicamente, em um caminhar

para uma vivência unicamente privada. Para uma realização, ou para um

realizar-se, apenas, na subjetividade dos sujeitos que a vivenciaram, como

uma relação individual e, deste modo, não social.

O sentimento de fracasso e a expectativa de desilusão dos indivíduos

no ritual introspectivo do sofrimento, vem impondo códigos de naturalização

e de anonimato à morte. O que evidencia uma fragmentação dos

sentimentos coletivos, e se expressam pelo receio social de contaminação e

através da vergonha de sentir-se enlutado.

Efeitos de decepção e engodo, o sofrimento do luto, constrangido e

envergonhado no interior do sujeito, afigura-se por revelar-se como nostalgia

do ausente. Parece estabelecer-se como um universo do silêncio e solidão.

Universo configurado em um tempo e em um espaço singular e solidário,

perdido na memória individual do enlutado.

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Ser Discreto

239 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Para compreensão deste fenômeno, procurou-se percorrer os

caminhos que entrecruzam a Psicanálise e as Ciências Sociais, bem como

as formas por onde se dão os processos de elaboração e formação da

pessoa singular e da interação social, fundamentos da sociedade. O estudo

do fenômeno do luto, enquanto compreensão da dor da perda e do

sofrimento, como instâncias simultaneamente individual e social, faz parte

assim de uma Sociologia da Emoção, e busca fundamentar as bases da

experiência e da troca da pessoa na sociedade.

Este livro enfatizou, na revisão bibliográfica, a questão dos

sentimentos enquanto expressão social. Mergulhou, assim, na literatura

sobre as representações sociais da morte e do sofrimento causado pela dor

da perda. Embora, para melhor compreender as questões que nortearam a

pesquisa, foi preciso, também, realizar uma incursão histórica sobre o

processo de mudanças de atitudes e de mentalidades em relação à morte e

ao luto no país, e no mundo ocidental do qual faz parte.

O objetivo central deste trabalho foi a compreensão das atitudes

recentes em relação ao fenômeno do luto no Brasil. Como objetivos

específicos, procurou-se, entre outros, atentar, primeiramente, para o

entendimento de como foi internalizado, enquanto processo simbólico, o

significado social da dor no imaginário brasileiro. Em segundo lugar, tentou-

se compreender por quais mudanças tem passado o fenômeno da dor do

luto até os dias atuais no Brasil. E, finalmente, indagar sobre as reações a

vivência do luto, que tem sido enfrentadas pelos homens comuns, tendo por

referência as camadas médias urbanas que vivem nas capitais dos estados.

Interessou a este livro verificar o lado público do sofrimento de quem

fica, no momento seguinte imediato à constatação da morte. O entendimento

desse ritual solitário do sofrimento, e social da despedida, foi realizado

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240 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

através do entrecruzamento de gestos, de expressões e de atitudes, em

constante movimento de mudança e permanência.

A construção social da dor e do sofrimento passou a ser entendida,

deste modo, através do emaranhado de ilusões e expectativas formadoras

do sujeito. E, também, pelo como a sociedade cria e estabelece os

processos integrativos necessários à sobrevivência do social a partir dos

indivíduos.

Uma primeira surpresa na análise dos dados levantados foi a

verificação de que não existe um processo de equivalência entre um maior

centro urbano e um menor número de respostas favoráveis a práticas

ritualísticas ligadas ao luto e aos processos da morte e do morrer, ou presas

à tradição, ou o seu contrário. O conjunto de respostas enviadas pelas

diversos centros urbanos brasileiros que compõem o universo desta

pesquisa, e capitais dos vinte e sete estados da nação, são muito próximos

nas suas indagações, inquietações ou indignações a respeito dos costume e

hábitos ligados à pratica do luto e da morte no país.

O que encaminhou o trabalho para o abandono da hipótese inicial e

para um novo tipo de indagação sobre o processo em que se debate a

população urbana brasileira em relação ao uso de hábitos e costumes e

suas representações ligadas ao ritual da dor e da morte. A apreensão dos

significados apresentados pelo conjunto das respostas indicaram

inquietações muito além das expressões de um ato individual em si, e

possibilitaram a realização de um mapeamento do sentimento brasileiro

sobre o luto e o morrer, bem como a elaboração de um roteiro compreensivo

para a análise da relação entre o luto e a sociedade no Brasil

contemporâneo.

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241 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Foi necessário se debruçar na análise de expressões emitidas por

regras de etiquetas, assim como das narrativas dos informantes, para

compreender a visão e o sentimento do fenômeno do luto, através da

criação de interseções entre o imaginário individual e social, e das

mudanças sociais e comportamentais experimentadas no trato da morte e do

morrer no Brasil urbano. A mágoa e a inquietação quanto a falta de

solidariedade ao sofrimento de quem sofre uma perda, a recusa ou a

expressão discreta de condolências, e o ritual solitário do sofrimento no

processo do luto, configuraram-se na realização de um movimento

nostálgico de individuação, no Brasil atual.

Movimento onde se misturam, de um lado, a perda de sentido do

mundo e, do outro, o sentimento difuso de exclusão social. O que parece

ampliar o refreamento das ações de partilha e o mascaramento do

sofrimento em quem fica.

O estranhamento da demonstração da dor e do sofrimento em

público, desta maneira, parece vir se consolidando como tendência de

universalização de uma nova sensibilidade no trato das emoções,

particularmente do luto, no Brasil atual. A exposição pública do sofrimento

vem se realiza, assim, tecida por uma condenação velada do sofrer em

público.

No conjunto das relações pessoais a tendência atual é a de uma

reprovação tácita ao luto expresso publicamente, como se a dor causada

pelo sofrimento pessoal de uma perda contaminasse os outros com a

presença da morte. O sofrimento e o processo de introjeção do morto em si,

que compõem o trabalho de luto, situam-se, cada vez mais, como

subjetividade, e como uma espécie de império da memória pessoal do

enlutado. São encobertos socialmente pela vergonha da exposição pública,

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242 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

como uma forma de intimidade, ou como uma expressão íntima e privada,

que, ao mesmo tempo que recusa o outro, busca e sente falta da expressão

social da solidariedade.

O papel da emoção vergonha na conformação da sociabilidade

moderna e contemporânea no Brasil, aparece e se constitui, deste modo,

recheado de ambigüidades. Parece emanar através do confinamento das

emoções na pessoa, banindo os afetos do social para o âmbito do segredo.

Constitui-se, assim, através da imposição no indivíduo de uma postura

reservada perante as emoções, e da exigência de um caráter desconfiado e

mantido sob auto controle. Na confusão das formas de expressão

contemporânea deste sentimento de vergonha no Brasil, o auto controle é

visto, muitas vezes, e assumido, como culpa pessoal dos indivíduos em

sofrimento.

É esperado, assim, dos sujeitos tocados pelo luto, uma forma de agir

discreta. Discrição, dos mais íntimos, à perda dos que sofreram um luto.

Discreto, também, deve ser, o comportamento do enlutado nos diversos

trâmites socialmente valorizados de despacho do corpo e da expressão de

sofrimento público no processo de despedida (velório, enterro, missa de

sétimo dia, etc.).

Este caminho apontado de individualização, parece ser a tônica

moderna do processo de luto no Brasil urbano. A indiferença e o fingimento,

associado ao anonimato e à banalidade no trato público da morte, fazem

parte da experiência contemporânea do luto no social. Processo de

sofrimento e de interiorização da perda que se vê jogado para a intimidade

do sujeito, que passa a vivenciá-los na solidão, aumentando o sentimento

individual de exclusão social.

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243 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

O choque entre uma tradição relacional de um passado recente e de

uma profunda descaracterização dos costumes e processos integrativos do

urbano moderno parecem, assim, dar mais ênfase à falta de lugar no social,

à não cidadania e à solidão do homem comum de classe média brasileiro. A

economia moral do sofrimento pela perda, na sociedade brasileira de hoje,

configura-se na passagem pelo eclipse do sofrer. Retira a emoção do social

para o íntimo, como uma forma de deter os efeitos da individuação de quem

sofre a privação e dos perigos que tal processo representa para o social.

Enfatiza, deste modo, as relações mercantis do individualismo,

movimentadas pela idéia do ser discreto enquanto conduta do

comportamento civilizado.

As regras sociais parecem, desta maneira, passar a viger apenas no

sentido mercantil, através do individualismo que nega a individuação como

processo interativo da pessoa na sociedade. A tendência da nova

sensibilidade emergente no Brasil, como vem sendo construída socialmente,

se forma através da resignação ao social, como o constructo possível do ser

moral na modernidade.

A idéia do fracasso e da desilusão do sujeito no ritual introspectivo do

sofrimento, impõem códigos de naturalização e de anonimato à morte e ao

processo social da dor. O que parece evidenciar uma fragmentação dos

sentimentos coletivos e uma expressão de um vago receio e vergonha de

sentir-se enlutado ou solidário. Afigura-se, deste modo, no condenar o

trabalho de luto a realizar-se como unicamente desilusão do mundo, ou

como uma conotação solitária de um sujeito em descompasso, em seu

sofrimento, do social.

Efeito de decepção e engodo, o luto pessoal do sujeito que sofre uma

perda, como conseqüência de sua subjetivação e falta de expressão no

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244 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

social, e pela ambivalência resultante na vergonha como individuação e a

reprovação e o estranhamento público, parece vir sendo constituído,

enquanto tendência, em um delírio de expectativa. Intercessão entre o

desespero e o tédio, a dor da perda subjetivada e sem expressão no social,

reproduz-se como ausência de projeto.

A individualização crescente das relações sociais no Brasil atual, vem

afigurando-se na tendência de um refreamento do processo de individuação

do sujeito que sofre a perda, através do mascaramento da dor do sofrimento

e da morte. Essa tendência social de escamoteamento da expressão pública

dos sentimentos e a valorização da interiorização, enquanto espaço da

intimidade, do privado, ou da subjetividade, cria uma pré disposição

permanente no indivíduo à desconfiança no outro, e por extensão, no social.

Parece tender a ser administrado socialmente através do princípio do

desempenho. Como informou Marcuse (1968), em seu estudo sobre a

formação do indivíduo na sociedade industrial, a necessidade do bom

desempenho deve suplantar as questões dos sentimentos, tratados na e

pela lógica mercantil como pertencentes à esfera do privado, ao espaço da

intimidade.

A vergonha da demonstração pública do sofrimento ou da

solidariedade, ou o não saber o que fazer com relação aos afetos alheios,

parecem vir se constituindo em uma espécie de automatismo das relações

societárias, e pelo afastamento ou abandono do sujeito de sua perda. A

experiência da perda afigura-se, deste modo, no constante transformar em

vazio todo o processo de vida e criação.

Através do princípio de desempenho amplia-se e estende-se a

tendência de uma negação de si próprio e dos outros em relação. Amplia-se,

assim, o espaço da solidão, pela instrumentalização das ações que

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245 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

mobilizam as relações mercantis, através da concorrência. A nostalgia, ao

mesmo tempo que aprofunda-se na subjetividade, desloca o mesmo ator do

social, através da dicotomização entre o público e o privado.

A emergência do indivíduo no Brasil de hoje parece vir se fazendo

pela negação das práticas relacionais, e pela emergência do individualismo.

A ambivalência das atitudes individuais perante o morrer e a dor quase física

da privação parece, deste modo, ser enfatizada, nesse processo de

dessacralização dos processos integrativos da pessoa na sociedade.

Constrangida ao interior do sujeito, este passa a relacionar-se e movimentar-

se publicamente através da indiferença.

O processo de distanciamento do sentimento exclui qualquer emoção.

Mesmo a emoção advinda em forma de culpa, no indivíduo que sofreu a

perda, no processo racional de interação social. A individualização obtida

pela indiferenciação, deste modo, e pela negação da individuação enquanto

processo social, repõe o sujeito em si, no social, como psicologia, e o

processo de individuação é sentido, a partir de então, enquanto processo

privado.

A crescente descrença nos rituais sociais de integração do sujeito em

processo de individuação, que parece tomar conta do modo de ser brasileiro,

hoje, e a individualização emergente, coloca em discussão a questão da

fragmentação da pessoa enquanto indivíduo em sociedade. O indivíduo,

assim, parece recusar as regras relacionais tradicionais, simultaneamente ao

fortalecimento de um sentimento de insegurança e de incapacidade de tomar

posições, no interior de regras higiênicas aos moldes do mercado.

O individualismo no Brasil, desta maneira, parece que vem se

constituindo através do controle social dos processos de individuação. As

emoções tidas como fundamento do indivíduo enquanto instância privada,

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246 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

são apropriadas socialmente como expressões do desejo e tratadas como

relações mercantis próprias ao consumo, ou como questões específicas do

individual85.

A pulverização da pessoa vem se fazendo através da fragmentação

de papéis sociais e da tendência para uma radicalização do individualismo

nas relações sociais. O processo de escolha recai, cada vez mais,

radicalmente, sobre os indivíduos. O desempenho, por sua vez, parece ser

visto como um produto da desilusão sempre renovada do encontro entre

dois mundos, o privado e o público, e da indiferença dele resultante.

Ariès entende por morte interdita o processo através do qual se institui

no social contemporâneo a cultura mortuária na sociabilidade

contemporânea. A espoliação do moribundo, a simplificação do ritual

funerário, e a recusa do luto faz parte desta instituição.

No processo contemporâneo de interdição, a morte parece ter-se

tornado um tabu, que não se deve falar em público nem tampouco obrigar

aos outros a fazê-lo. O processo de privatização da morte e do morrer foi se

instalando paulatinamente no Brasil do século XIX, através de uma

separação da idéia do destino do cadáver e do destino da alma. A

sensibilidade do homem do final dos oitocentos parece ter mudado para uma

85

Muitos entrevistados falam do medo de morrer sem ter um lugar para ser enterrado. Os mais velhos demonstram esta preocupação com o desejo de adquirir um terreno em um cemitério, para construir um mausoléu para si e para sua família. Estas questões também foram mencionadas pelos entrevistados no estudo de Ferreira (1995), sobre os processos de memória e de identidade social na velhice. É interessante perceber, também, a propaganda que vem se estabelecendo no Brasil contemporâneo sobre o lugar para a última morada. Muitos cemitérios tem aparecido recentemente, em muitas capitais brasileiras, e o apelo da propaganda para um lugar saudável, limpo e bonito para o estabelecimento da última morada é enfatizada em comerciais televisivos, ou em propaganda impressa, mostrando o conforto para os que lá são enterrados e um ambiente de paz e lazer para os que ficam.

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247 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

nova forma menos apegada aos domínios do sagrado e mais ligada às

coisas profanas.

A instância desindividualizante do acreditar-se na morte e no morrer

como passagem para uma outra vida, já não credibiliza a existência de uma

outra vida como fé. Já não minora completamente a dor ocasionada pelo

sofrimento e pela experiência da perda, através da sua ritualística, através

da fé pessoal de cada um.

A ambigüidade nas relações e nos sentimentos expressos afigura-se

em ser, assim, o eixo central por onde deve ser pensada as relações de

sociabilidade no Brasil do século XXI. A discrição parece movimentar a ação

imaginária dos informantes, sobre o papel comportamental de um indivíduo

em sofrimento. No final do século XIX , o morrer e a morte foram retiradas

progressivamente do ritual público que as circundava. Este afastamento foi

movido, em parte, pelo medo causado pelas epidemias que tomaram de

assaltos as cidades brasileiras nas últimas décadas do dezenove, e pelo

discurso das autoridades sanitárias de controle à saúde pública e pessoal.

A tradição de guardar, velar e sofrer pelos seus mortos sob uma

regência pública, bem como, o de dialogar com eles, ou mesmo, o esperar e

receber o apoio da sociedade para a superação do sofrimento e para a

completa reintegração no social dos enlutados, embora em declínio e menos

acentuada do que no final do século XIX, permaneceu por várias décadas do

século XX, até aproximadamente o decorrer dos anos de 1960, entre os

habitantes urbanos brasileiros.

As convenções de estilo, as formas de intercâmbio social, e um maior

controle social das emoções, expressos em um controle dos gestos, da

postura, do decoro corporal externo, do olhar, da expressão facial, entre

outras atitudes comportamentais, representam, contudo, a emergência de

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Ser Discreto

248 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

uma nova economia de afetos, na cultura urbana brasileira dos últimos trinta

anos. Seja pela repressão das atitudes espontâneas de sentimento, ou seja

pela auto disciplina.

O análise do ser discreto em formação no Brasil, deste modo,

enquanto comportamento pessoal frente as expressões das emoções,

apresenta-se como a espinha dorsal por onde se pode compreender a

construção social do indivíduo urbano brasileiro de classe média, hoje.

Constrangido em seu sofrimento pessoal pela perda recente, ou pela

vergonha de não saber como demonstrar as condolências a alguém vitimado

pela dor, os indivíduos parecem sentirem-se incomodados pelas tentativas

de aproximação de um outro, desvendando-o e comprometendo o seu

espaço individual no social.

Este caminho vem se dando através do agir com discrição e como

uma espécie de dever ser moral para todos aqueles atingidos por uma

perda. Configura-se, também, pela busca da não intromissão na privacidade

do outro. Ambos os processos afiguram-se, deste modo, em espelhar um

tipo de comportamento pessoal desconfiado e, ao mesmo tempo, ansioso.

Parecem refletir uma atitude blazé, analisada por Simmel (1967) no

início do século XX. Atitude vista como uma forma de comportamento

pessoal distante, e composto por uma leve indiferença no olhar e no gestual,

do homem citadino na metrópole contemporânea, e pelo anonimato em que

parece satisfazer-se a afirmação da individualidade no momento de

consolidação do capitalismo.

A perda pessoal do sujeito é sentida, assim, através de um processo

de ambivalência das atitudes pessoais, resultante da vergonha pela

individuação a que um indivíduo se vê exposto, e da reprovação social ou do

estranhamento público. Como uma conseqüência, enfim, de sua

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subjetivação e falta de expressão no social. Resultado da falta de esperança

e do sentimento de que algo esteja prestes a acontecer e eminente a

desabar sobre si.

Intercessão entre o desespero e o tédio, a dor da perda subjetivada e

sem expressão no social, parece reproduzir-se como ausência de projeto no

indivíduo em sofrimento, e tende a tornar-se melancolia.

O processo de individuação do sujeito que sofre a perda, assim,

através da busca de demonstração de uma indiferença para com as formas

culturais de representação da dor e da morte tradicionalmente usadas,

parece revelar uma tendência social no Brasil atual de escamoteamento da

expressão pública dos sentimentos. Compreende, também, a valorização da

interiorização dos afetos enquanto subjetividade. Além de criar uma

disposição prévia e permanente nos indivíduos à desconfiança no outro, e

por extensão, no social.

A relação entre a perda, enquanto sentimento moral, e o sofrimento

parece ter-se evidenciado entre os informantes, nesta pesquisa, como parte

da afirmação de que a perda, objetivada em objetos ou pessoas, provoca o

sofrimento em um indivíduo. A gradação na intensidade de sentimentos

envolvidos em uma perda específica, assim, se encontra em relação ao

conteúdo de posse ou de aproximação entre o sujeito que a perdeu e o

objeto ou pessoa perdida.

Emergiu, também, pela visão do sofrimento como uma conseqüência

da perda. Afigurou-se, neste caso, o espelhar o estado de fragilidade que a

pessoa que sofreu uma perda se encontra no momento de tomada de

consciência do que perdeu. O sofrimento, deste modo, se realizaria como

uma espécie de dor moral e física, e através da somatização de uma perda

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objetiva no indivíduo. Ao mesmo tempo, como um sentimento de impotência

ante o objeto ou pessoa perdidos, e a conscientização desta perda em si.

A relação entre sofrimento e perda configurou-se, ainda, entre os

informantes, pelo estabelecimento de uma espécie de sentimento contínuo,

eterno, de algo perdido, reforçando, assim, um modo mais difuso de

expressão. Este modo de referenciar a relação entre sofrimento e perda,

parece expressar esta relação com a de um sentimento estilhaçado,

pulverizado e disperso no interior do sujeito. A perda passa a ser alguma

coisa presente, irremediavelmente enraizada no interior dos sujeitos, que

tende a ultrapassá-los pela plenitude e eternidade de sua constância.

A sua realização configura-se através da desilusão do mundo. O

sofrimento que informa ameaça, assim, ultrapassar a própria vida do sujeito,

exteriorizando-se em uma atemporalidade sem passado e sem futuro, e pela

presentificação contínua e repetitiva do não olvidar mas, também, não saber

ao certo o que e o como esqueceu.

O conformismo fantasmático e o ceticismo parecem assim serem as

formas de enfrentar o mundo, nesta relação entre a perda, o sentimento

difuso de perda e o sofrimento a ela inerente. O mundo sem confiabilidade, a

não ser a da confiança em não ter confiança legítima nas instituições e

coisas públicas da ordem social.

É a subjetividade do sentimento que melhor define para os

informantes o estado do luto. O indivíduo em sofrimento por uma perda de

alguém querido, é o ponto central da definição do luto. As relações com o

social aparecem como secundárias, por serem vistas como públicas e fora

do sujeito. A polarização do Brasil urbano, sobre as noções de luto

demonstra a ambigüidade e a dificuldade da vivência do trabalho de luto na

sociedade brasileira atual.

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De um lado, o estranhamento e o distanciamento parecem fazer parte

da experiência do luto nacional. De outro lado, a perda progressiva da força

da simbologia e da tradição das instâncias desindividualizadoras no Brasil,

desde os anos de 1970, parece ter provocado também seqüelas naqueles

que ainda hoje a advogam. A experiência tradicional do luto não parece,

hoje, permitir uma vivência em coletividade do processo de enlutamento, ou

esta coletividade não tem mais o vigor de aquietar as tensões e conflitos

resultantes da experiência da perda de um ente querido nos indivíduos nele

envolvidos.

As relações sociais do luto passam assim a serem mantidas com a

máxima discrição possível. Tanto na brevidade das visitas e nas formas de

demonstração de solidariedade, quanto no distanciamento tático, nas

relações sociais. Ou mesmo, porque as instituições coletivas de apoio não

mais possuem a legitimidade de assegurar o conforto necessário para a

introjeção do corpo morto e para a saída do luto.

Encarado em sua forma introspectiva, ou na forma de tradição cultural

e social, o luto parece ser vivido na atualidade das relações sociais da

sociabilidade urbana brasileira, como um processo solitário. Na solidão dos

sujeitos que o experienciam.

As queixas crescentes relativas ao estresse da vida cotidiana na vida

das capitais dos estados, bem como o aumento crescente do sentimento de

depressão e insatisfação consigo próprio, parecem estar associadas a este

processo ambíguo de autopoliciamento e de vontade de exposição. De uma

vida pública para uma vida privada onde o espaço íntimo, ao mesmo tempo

que cresce e se expande torna-se, também, um elemento de exclusão

social. Uma forma de exclusão da subjetividade do espaço social e público

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onde se desenrolam as ações repetitivas que elaboram o cotidiano de um

sujeito.

As relações sociais do luto passaram assim a ser mantidas com a

máxima discrição possível. O não saber comportar-se em uma situação

limite, como a do sofrimento causado pela morte, parece ter aumentado a

insegurança no social dos sujeitos que a vivenciaram. O que afigura-se,

assim, no prolongamento da sensação de desconforto dos indivíduos na

trama e no drama social do luto O que faz crescer o estranhamento,

forçando os indivíduos a adequarem-se à distância nos relacionamentos

obrigatórios da vida cotidiana.

Esta modernidade da individualidade do sujeito frente ao social

parece situar melhor a dor da perda nos mecanismos da rememoração dos

laços e da memória afetiva do morto com relação à família e à sociedade,

recompondo a expressão da importância e da permanência do valor da

instituição familiar. Ao mesmo tempo que afigura-se no enfatizar as marcas

da instabilidade e do não saber situar-se perante as novas regras do jogo

social. O que amplia a insegurança do agir, o sentimento de culpa do não

saber comportar-se perante a ruptura que irrompe com o sofrimento e o

inconformismo pela situação experimentada.

O constrangimento pessoal para assumir formas de expressão pública

do luto e a falta de compreensão dos sentimentos, parecem provocar uma

ruptura no sujeito que sofre e, ao mesmo tempo, a emergência do indivíduo

sobre a sociedade. O processo do luto fica assim, ao que parece, ao sabor

olhar e da experiência de cada um, ao relacionaram o sentido atual do luto

contraposto com as expressões do passado e do futuro do presente.

O que parece aumentar as dificuldades encontradas de exposição do

sofrimento ou da expressão de solidariedade nas relações sociais do luto.

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Bem como, a sensação estranha de não saber agir nesta situação

específica, e o constrangimento e a vergonha deste desconhecimento.

Um distanciamento da pessoa no social e, ao mesmo tempo, a

ansiedade de ser encontrado e satisfeito por alguém ou alguma coisa

idealmente perdida em algum lugar do passado, parece, assim, ser

provocado. Este processo de distanciamento e de estranhamento do outro,

causado pela individualidade crescente e pela afirmação do privado, em uma

perspectiva individualista, parece ser a tendência por onde vem se

construindo e se constituindo a sociabilidade brasileira urbana atual.

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264 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

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265 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

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266 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

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267 Mauro Guilherme Pinheiro Koury

Anexos

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 268

Anexo 1 - Quadros

Quadro N. 1 – Número de Entrevistados por Cidade, Estado e Região

Total Cidade Onde Mora Estado N %

Belém Pará 48 3.68 Boa Vista Roraima 30 2.30 Macapá Amapá 29 2.22 Manaus Amazonas 39 2.99 Porto Velho Rondônia 28 2.15 Rio Branco Acre 29 2.22

Norte 203 15,56 Aracaju Sergipe 48 3.68 Fortaleza Ceará 68 5.22 João Pessoa Paraíba 50 3.84 Maceió Alagoas 44 3.38 Natal Rio Grande do Norte 48 3.68 Recife Pernambuco 69 5.29 Salvador Bahia 69 5.29 São Luís Maranhão 48 3.68 Teresina Piauí 49 3.76

Nordeste 493 37,82 Brasília Distrito Federal 51 3.91 Campo Grande Mato Grosso do Sul 29 2.22 Cuiabá Mato Grosso 29 2.22 Goiânia Goiás 39 2.99 Palmas Tocantins 29 2.22

Centro Oeste 177 13,56 Belo Horizonte Minas Gerais 69 5,29 Rio de Janeiro Rio de Janeiro 70 5.37 São Paulo São Paulo 81 6.21 Vitória Espírito Santo 39 2.99

Sudeste 259 19,86 Curitiba Paraná 51 3.91 Florianópolis Santa Catarina 50 3.84 Porto Alegre Rio Grande do Sul 71 5.45

Sul 172 13.20 BRASIL 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 269

Quadro N. 02 – Sexo dos Informantes

Sexo N %

1. Masculino 509 39.03

2. Feminino 795 60.97

Total 1304 100%

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Quadro N. 03 – Idade dos Informantes

Idade N %

1. 15 a 25 anos 189 14,50

2. 26 a 39 anos 409 31,37

3. 40 a 59 anos 466 35,73

4. + de 59 anos 240 18,40

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 271

Quadro N. 04 – Estado Civil dos Informantes

Estado Civil N %

1. Solteiro 379 29,06

2. Casado 652 50,00

3. Viúvo 161 12,35

4. Divorciado 112 8,59

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 272

Quadro N. 05 – Freqüenta Religião

Freqüenta religião? N %

1.Sim 1206 92,48

2.Não 98 7,52

Total 1304 100%

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Quadro N. 06 – Tipos de Religião dos Informantes

Religião N %

1.Católica 894 74,13

2.Evangélicas 187 15,50

3.Espirita 58 4,81

Outras 67 5,56

Total 1206 100%

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Ser Discreto

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Quadro N. 07 – Renda Familiar dos Informantes

Renda Familiar N %

1. 1 a 5 salários 237 18.17

2. 6 a 10 salários 543 41.64

3. 11 a 20 salários 382 29.30

4. + de 21 salários 135 10.35

X 1 0.08

Y 6 0.46

Total 1304 100%

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Ser Discreto

Mauro Guilherme Pinheiro Koury 275

Quadro N. 08 – Escolaridade dos Informantes

Escolaridade N %

1. 1º Grau 289 22,16

2. 2º Grau 611 48.86

3 .Superior 404 30.98

Total 1304 100%

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Ser Discreto

Mauro Guilherme Pinheiro Koury 276

Quadro N. 09 – Profissão dos Informantes

Profissão Atual N %

1. Aposentado e Pensionista 218 16,72

2. Empresário/Comerciante 126 9,66

3. Profissional Liberal e Militar 220 16,87

4. Professor 102 7,82

5. Funcionário Público 84 6,44

6. Trabalhadores de Nível Médio 113 8,67

7. Trabalhador Manual 85 6,52

8. Estudante 146 11,20

9. Dona de casa 177 13,57

10. Desempregado 27 2,07

11. Não Trabalha 06 0,46

Total 1304 100%

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Ser Discreto

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Quadro N. 10. Comportamento no Luto

O Comportamento no Luto N %

1. Ser discreto 1012 77.60

2. Seguir a tradição 200 15.34

3.Não existe comportamento ideal 92 7.06

Total 1304 100%

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Ser Discreto

Mauro Guilherme Pinheiro Koury 278

Quadro 11 – Comportamento dos Outros no Luto

O Comportamento dos Outros N %

1. Dar apoio 244 18.71

2.Não importunar 939 72.01

3.Depende do caso 121 9.28

Total 1304 100%

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Quadro n. 12 – Definição de Si Após a Experiência da Perda

O enlutado após a perda N %

1. Sentimento de Vazio 626 51,78

2.Quebra de relações familiares 303 25,06

3. Rompeu com a religião 94 7,78

4. Mudança nas condições de vida 104 8,60

5. Melhor compreensão da vida 82 6,78

Total 1209 100%

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Quadro n. 13 – Conceituação de Morrer

O que é morrer? N %

1. Findar 528 40,49

3. Algo que não deveria acontecer 156 11,96

4. Uma passagem 620 47,55

Total 1304 100%

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Quadro n. 14 – Conceituação de Morte

O que é morte? N %

1. Fim da existência 537 41,18

2. Transição 538 41,26

3. A morte não deveria acontecer 229 17,56

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 282

Quadro N. 15 – Comportamento de uma Pessoa que Sofreu uma Perda

Comportamento pessoal N %

1. Ser discreto 1012 77.60

2. Seguir a tradição 200 15.34

3.Não existe comportamento ideal 92 7.06

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 283

Quadro N. 16 – Comportamento dos Outros a Pessoas que Sofreram uma Perda

Comportamento dos outros N %

1. Dar apoio 244 18.71

2.Não importunar 939 72.01

3.Depende do caso 121 9.28

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 284

Quadro N. 17 - Significados sobre a Noção de Perda

O que é Perda? N %

1. Ausência 427 32,75

2Desaparecimento 274 21,01

3. Perda de si 501 38,42

4. Dano 102 7,82

Total 1304 100%

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Ser Discreto

Mauro Guilherme Pinheiro Koury 285

Quadro N. 18 – Existe uma Relação entre Perda e Sofrimento?

Perda e Sofrimento N %

1.Sim 1008 77,30

2.Não 296 22,70

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 286

Quadro N. 19 – Relação entre Perda e Sofrimento

Relação entre perda e sofrimento - sim N %

1. A Perda provoca o Sofrimento 482 47,82

2. É um Sentimento de Perda Eterna 309 30,65

3. Diferença de Intensidade entre Pessoas e Objetos 217 21,53

Total 1008 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 287

Quadro N. 20 – Noções sobre Luto

O que é luto N %

1.Simbologia 601 46,09

2.Sentimento 598 45,86

3.Adaptação 105 8,05

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 288

Quadro N. 21 – Viver o Processo de Luto

O processo de luto N %

1. Tradição 347 26,61

2. Introspecção 363 27,84

3. Solidão 594 45,55

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 289

Quadro N. 22* - Apoio no Trabalho de Luto

Apoio no Luto N %

1.Família 925 23,78

2.Amigos 318 8,18

3.Trabalho 601 15,45

4.Religião 1006 25,86

5.Lembranças 854 21,95

6.Ninguém 186 4.78

Total 3890 100%

* Respostas Múltiplas

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 290

Quadro N. 23 – Sentimento em Relação ao Trabalho

Trabalho N %

1. Normal 52 3,99

2. Ajudou a superar a crise 1080 82,82

3. Pouca concentração 172 13,19

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 291

Quadro N. 24 – Sentimento em Relação à Família

Família N %

1. Apoiado 247 18,95

2. Afeto 509 39.03

3. Não se preocupou 73 5,60

4. Apoio nos rituais 115 8,82

5. Vontade de ajudar 105 8,05

6.Poucos parentes apareceram 54 4,14

7. Cobrança de sentimentos 201 15,41

Total 1304 100%

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury 292

Quadro N. 25 - Formas de Apoio na Religião

Formas de apoio

Não Conforto Espiritual

Mudança de Visão de Mundo

Total

Religião N % N % N % N %

1. Não 98 7.51 - - - - 98 7.51

2. Católica 234 17.95 653 50.09 7 0.54 894 68.58

3. Evangélicas - - 53 4.06 134 10.27 187 14.33

4. Espírita - - 58 4.45 - - 58 4.45

5. Outras - - 67 5.13 - - 67 5.13

Total 332 25.46 831 63.73 141 10.81 1304 100%

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Quadro N. 26 – Luto e Cotidiano

O luto modificou o cotidiano N %

1. Não 264 20.25

2. Introspecção 705 54.06

3. Busca de uma nova vida 335 25.69

Total 1304 100%

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Quadro N. 27 – Comportamento de uma Pessoa em Trabalho de Luto

Comportamento de uma pessoa em luto N %

1. Ser discreto 1012 77.60

2. Seguir a tradição 200 15.34

3.Não existe comportamento ideal 92 7.06

Total 1304 100%

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Quadro N. 28 - Comportamento dos Outros às Pessoas em Processo de Luto

Comportamento dos

outros

N %

1. Dar apoio 244 18.71

2.Não importunar 939 72.01

3.Depende do caso 121 9.28

Total 1304 100%

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Quadro N. 29 – Diferença Entre o Luto Hoje e Antigamente

O luto hoje e antigamente N %

1. Não existe diferença 251 19.25

2. Maior controle social 561 43.02

3. Hoje é individual 492 37.73

Total 1304 100%

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Quadro N. 30 – Relação entre Sexo e Expressão do Luto

Sexo Masculino Feminino Total

Expressões do luto N % N % N %

1. Simbologia 372 28,53 249 19,10 621 47,63

2. Sentimento 61 4,67 517 39,65 578 44,32

3. Período de adaptação 76 5,83 29 2,22 105 8.05

Total 509 39,03 795 60,97 1304 100%

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Quadro N. 31 – Tempo Ideal para o Fim do Luto

Tempo ideal para o fim do luto N %

1.É uma questão pessoal 243 18.63

2.É eterno, nunca se esquece 219 16.80

3.Um ano 842 64.57

Total 1304 100%

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Quadro N. 32 – Sentidos do Luto, Ontem e Hoje

Sentidos do luto N %

1. Respeito pelo morto e pelo luto 624 47.85

2. Sentimentos comunitários 252 19.32

3. Integração 182 13.96

Ontem 1058 81.13

1. Existe mais sentimentos 122 9.36

2. Existe maior liberdade 124 9.51

Hoje 246 18.87

Total 1304 100%

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Anexo 2

Entrevistas Utilizadas por Capítulo No. Entrevista Cidade - Estado Rápida Descrição

CAPÍTULO 1 12 Belém - Pará Sexo Feminino. 42 anos. Marido morto em

desastre automobilístico 138 São Paulo - SP Sexo Masculino, 26 anos, estudante

universitário (medicina), perdeu o pai, a mãe e a namorada em um acidente de carro.

4 Cuiabá - MT Sexo Feminino, 30 anos, Faxineira, marido morto pela polícia, considerado desaparecido.

42 Porto Alegre - RS Sexo Masculino, 49 anos, esposa morta de câncer.

CAPÍTULO 2 249 Belo Horizonte – MG Sexo Masculino, 38 anos, viúvo, esposa morta

de câncer. 46 Goiânia – GO Sexo Feminino, 35 anos, perda irmão,

acidente automobilístico. 131 São Paulo – São Paulo Sexo Feminino, 48 anos, perda de filha de 15

anos, câncer. 200 Vitória – ES Sexo Masculino, 38 anos. 58 João Pessoa – PB Sexo Masculino, 23 anos, estudante

universitário, perdeu a avó materna. 209 Curitiba – PR Sexo Feminino, 27 anos. Bióloga. Perdeu a

avó materna. CAPÍTULO 3

27 Salvador – Ba Sexo Feminino, 50 anos, professora universitária, perdeu a mãe.

44 São Paulo – São Paulo Sexo Masculino, 29 anos, perdeu o pai de 65 anos, vitimado por longa doença degenerativa. Vendedor autônomo

37 Rio de Janeiro – Rio de Janeiro

Sexo Feminino, 58 anos, viúva, sem filhos, aposentada.

102 Recife – PE Sexo Feminino, 63 anos, três filhos, dois H e uma M. Aposentada. Perdeu uma filha de quarenta anos, solteira, vítima de enfarto.

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70 Macapá – AP Sexo Feminino, 48 anos, viúva, um filho, dona de casa.

109 Recife - PE Sexo Feminino, 42 anos, dois filhos menores, funcionária pública. Marido morreu vítima de problemas cardíacos.

53 Maceió - Alagoas Sexo masculino, 68 anos, engenheiro aposentado, pai de dois filhos homens que administram suas propriedades, e quatro netos.

CAPÍTULO 4 140 Fortaleza - CE Sexo masculino, 59 anos, casado, hum filho,

dentista. Natural do interior do Ceará, mora desde a adolescência na cidade de Fortaleza.

38 Rio de Janeiro - RJ Sexo masculino, 63 anos, viúvo, dois filhos adultos, profissional liberal, contador, perdeu a esposa.

24 Rio Branco - AC Sexo Feminino, 33 anos, solteira, bancária. Perdeu o noivo em acidente.

248 Belo Horizonte - MG Sexo Feminino, 45 anos. Solteira, médica. Morte do pai.

CAPÍTULO 5 134 São Paulo - SP Sexo Masculino, 66 anos, viúvo, advogado,

tinha perdido a esposa havia um ano da data da entrevista.

205 Vitória - ES Sexo Feminino, 68 anos, viúva há trinta anos, aposentada.

15 São Luis - MA Sexo Masculino, 43 anos, perdeu o companheiro, vítima da AIDS, com quem morava há mais ou menos 6 anos. Empresário da noite.

43 Porto Alegre - RS Sexo Feminino, 65 anos, casada, dona de casa, três filhos casados.

220 Florianópolis - SC Sexo Feminino, 27 anos, solteira, estudante universitária, trabalha como vendedora de boutique em shopping.

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