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15. o primeiro grande tema da globalidade. a proteção internacional da pessoa humana e suas três vertentes: direitos humanos, direito dos refugiados e direito humanitário. o direito de asilo o presente capítulo é o mais longo deste curso e não termina neste volume. além de sua temática, a nosso ver, ser uma das mais relevantes na história e na atualidade do direito internacional, constitui ela a base da democracia, para cuja realização, nos tempos correntes, se faz imprescindível o respeito continuado e a defesa intransigente dos direitos humanos, nos ordenamentos internos dos estados e nas relações internacionais. por outro lado, a natureza globalizante do campo normativo da proteção da pessoa humana, em nível internacional, justifica sua relevância nos estudos do direito internacional da atualidade, onde até mesmos os temas tradicionais passaram a ser “contaminados” pelo novo enfoque centrado nos valores revelados pela novidade da descoberta da pessoa humana nas relações internacionais! por tais razões, a nosso ver, após serem estudados os temas mais relevantes em outros campos do direito internacional, e após uma visão de como eles se encontram regulados nas relações internacionais e nos ordenamentos jurídicos nacionais, é que será possível um equacionamento das discussões sobre a compatibilidade, ou eventual oposição dos mesmos com o direito internacional da pessoa humana. originalmente distintos em sua emergência histórica, as normas internacionais de proteção aos direitos humanos e aos direitos dos refugiados e aquelas conhecidas como direito humanitário, bem assim as normas escritas que regem o instituto do asilo, tiveram finalidades diversas. os direitos humanos foram concebidos tendo em vista uma situação de paz, quer dizer, de normalidade interna, onde o estado poderia estabelecer e realizar seus fins, sem uma excepcional influência de fenômenos externos ou a interveniência de outros estados, portanto, tendo por campo de atuação, o próprio ordenamento jurídico nacional, naqueles casos em que os indivíduos se colocavam face ao estado sob cujo ordenamento se encontravam submetidos, seja por força de sua nacionalidade, seja pelo fato de nele estarem fisicamente localizados (domicílio ou residência). já os outros três, nasceram para regular situações em princípio anormais, como as situações de grave comoção interna nos estados ou de guerras, situações essas em que os ordenamentos jurídicos nacionais se encontram em

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DIP. Guido Soares

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15. o primeiro grande tema da globalidade.

a proteção internacional da pessoa humana e suas três vertentes: direitos humanos, direito dos refugiados e direito humanitário. o direito de asilo

o presente capítulo é o mais longo deste curso e não termina neste volume. além de

sua temática, a nosso ver, ser uma das mais relevantes na história e na atualidade do

direito internacional, constitui ela a base da democracia, para cuja realização, nos

tempos correntes, se faz imprescindível o respeito continuado e a defesa intransigente

dos direitos humanos, nos ordenamentos internos dos estados e nas relações

internacionais. por outro lado, a natureza globalizante do campo normativo da proteção da

pessoa humana, em nível internacional, justifica sua relevância nos estudos do direito

internacional da atualidade, onde até mesmos os temas tradicionais passaram a ser

“contaminados” pelo novo enfoque centrado nos valores revelados pela novidade da

descoberta da pessoa humana nas relações internacionais! por tais razões, a nosso ver, após

serem estudados os temas mais relevantes em outros campos do direito internacional, e

após uma visão de como eles se encontram regulados nas relações internacionais e nos

ordenamentos jurídicos nacionais, é que será possível um equacionamento das discussões

sobre a compatibilidade, ou eventual oposição dos mesmos com o direito internacional da

pessoa humana.

originalmente distintos em sua emergência histórica, as normas internacionais de

proteção aos direitos humanos e aos direitos dos refugiados e aquelas conhecidas como

direito humanitário, bem assim as normas escritas que regem o instituto do asilo, tiveram

finalidades diversas. os direitos humanos foram concebidos tendo em vista uma situação de

paz, quer dizer, de normalidade interna, onde o estado poderia estabelecer e realizar seus

fins, sem uma excepcional influência de fenômenos externos ou a interveniência de outros

estados, portanto, tendo por campo de atuação, o próprio ordenamento jurídico nacional,

naqueles casos em que os indivíduos se colocavam face ao estado sob cujo ordenamento se

encontravam submetidos, seja por força de sua nacionalidade, seja pelo fato de nele estarem

fisicamente localizados (domicílio ou residência). já os outros três, nasceram para regular

situações em princípio anormais, como as situações de grave comoção interna nos estados

ou de guerras, situações essas em que os ordenamentos jurídicos nacionais se encontram em

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perigo de desagregação (por vezes com as normas constitucionais suspensas), e nas quais

houve necessidade de regulamentar os direitos de pessoas que buscam refúgio ou asilo em

outros estados, ou ainda daquelas pessoas deslocadas por efeito das operações militares, e,

enfim, para conseguir-se um tratamento menos cruel às populações civis e aos próprios

combatentes. contudo, nos dias correntes, em que os marcos de delimitação entre situações

de guerra e de paz são cada vez mais fluidos, em que as atrocidades contra seres humanos

podem ser perpetradas pelos estados, a qualquer instante, tanto na paz, quanto na guerra,

tanto em tempos de normalidade constitucional, quanto em situações de revoluções e

sublevações internas, e, enfim, dada a consciência generalizada no mundo de hoje, de que

os valores da pessoa humana são transcendentais e que devem ser eles protegidos da

maneira mais eficaz possível, verifica-se a busca de uma junção dos direitos humanos,

direitos dos refugiados e dos asilados e do direito humanitário, numa única realidade

normativa. se existe uma consciência da unicidade dos valores protegido, existe,

igualmente, a finalidade de poder conferir-se a estes três últimos, a relativa efetividade que

os direitos humanos tendem a possuir, no direito internacional dos dias correntes, dada sua

administração eficiente por organismos especiais da onu.

a partir de tais fatos, podemos dizer que a expressão “direitos humanos” pode assim,

ter duas acepções. em primeiro lugar, direitos humanos, “stricto sensu”, são aqueles direitos

garantidos em tempos de paz e que dão a configuração democrática aos estados que os

consagram, nos respectivos ordenamentos jurídicos nacionais; são alguns de seus

sinônimos: direitos do homem, direitos fundamentais, liberdades públicas, direitos da

pessoa humana, os quais constituirão o tema da seção 1 do presente capítulo. numa segundo

concepção, direitos humanos “lato sensu”, constituem os direitos humanos conforme a

concepção anterior, e mais as normas de proteção aos asilados e aos refugiados, pessoas

cujas definições pressupõem uma norma internacional e cuja proteção nos ordenamentos

jurídicos nacionais, historicamente, não fazia parte das condições para definir-se a

configuração democrática de um estado e que, nos últimos tempos, passou a fazer. os temas

relacionados a tais fenômenos serão versados na seção 2, “o direito de asilo diplomático e

territorial”, assunto particularmente importante para a américa latina, e na seção 3, “o

direito internacional humanitário e o direito internacional dos refugiados”. acreditamos

que, ao assinalar a existência de tais vertentes da proteção internacional dos direitos da

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pessoa humana, não estaremos insistindo numa divisão artificial do grande tema que são os

direitos humanos, com finalidades de negar a uma visão necessariamente integral da pessoa

humana. indicamos como texto fundamental nesta matéria, cuja metodologia seguiremos, a

tal ponto de ter motivado a denominação do presente capítulo: as três vertentes da

proteção internacional dos direitos humanos- direitos humanos, direito humanitário,

direito dos refugiados, de autoria conjunta dos ilustres juristas antônio augusto cançado

trindade, do brasil, gérad peytrignet, da suíça e jaime ruiz de santiago, do méxico1, três

vertentes essas, tendo em vista que aqueles autores não consideraram o estudo do instituto

do asilo, conforme regulado na américa latina.

a insistência de autores nacionais de grande nomeada e excepcional valor, em

afirmar que as normas de proteção aos direitos humanos são indivisíveis, a qualquer custo,

tem levado, a nosso ver, a exageros. na verdade, não acreditamos que tal divisão esteja

ultrapassada, porquanto os citados campos mereceriam “uma aproximação nos planos

conceitual, normativo, hermenêutico e operacional”2. há distinções conceituais básicas nos

institutos em cada campo, os sistemas normativos são distintos (com tratados e convenções

internacionais e órgãos de aplicação das normas, fundamentalmente diferentes para cada

campo), a hermenêutica tem suas regras particulares num e noutro caso, e, enfim, a

operacionalização dos mesmos é diferente, tanto nas relações internacionais quanto nos

ordenamentos internos dos estados. ademais, um estudo sistemático dos direitos humanos,

mesmo que sejam eles indivisíveis, e que devam eles basear-se numa “visão

necessariamente integral da pessoa humana”, não invalidaria melhor sistematização

didática que este capítulo se propõe seguir.

como conseqüência do que dissemos no início deste capítulo, o assunto nele

versado, deverá ser completado com a leitura do cap. 21 do presente curso, que se encontra

no ii volume, o qual, ao coroar a presente obra, mostrará , em primeiro lugar, a

convergência e conseqüente unicidade normativa que aqueles quatro campos, a seguir

analisados, possuem, e, em segundo, discutirá a magna questão da compatibilidade entre as

1 antônio augusto cançado trindade, gérard peytrignet e jaime ruiz de santiago, as três vertentes da proteção internacional dos direitos humanos- direitos humanos, direito humanitário, direito dos refugiados, brasília, são josé da costa rica, co-edição, instituto interamericano de direitos humanos, comitê internacional da cruz vermelha, alto comissariado das nações unidas para os refugiados, 1996.2 flavia piovesan “o direito de asilo e a proteção internacional dos refugiados”. in: nádia de araújo e guilherme assis de almeida, coordenadores, o direito internacional dos refugiados- uma perspectiva brasileira, rio de janeiro, são paulo, renovar, 2001, p. 29.

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normas internacionais de proteção da pessoa humana, ou seja, os direitos humanos “lato

sensu”, com as normas internacionais vigentes em outros campos regidos pelo direito

internacional.

seção 1- os direitos humanos “stricto sensu”

conforme visto no cap. 7o da presente obra, a consagração da pessoa humana como

um sujeito de direito internacional, é um fenômeno recente, que se tem afirmado a partir do

final da segunda guerra mundial. se bem que o reconhecimento da personalidade da pessoa

humana no direito internacional tenha seus limites, no relativo à extensão dos direitos a ela

atribuídos (relembrando-se que a plenitude dos direitos inerentes àquela personalidade se

concentram, ainda, nos estados), existem, nos dias correntes, e como marca indelével do

vigente direito das gentes, normas precisas (e uma consciência relativamente generalizada)

de que há direitos fundamentais da pessoa humana, que se constituem no mais autêntico

“corpus” de um “jus cogens”, composto de regras inderrogáveis e oponíveis aos estados e

às organizações intergovernamentais. tal posicionamento superior das normas de proteção

aos direitos humanos, na hierarquia das normas internacionais, determinam padrões

normativos internacionais de proteção, que se configuram como normas exigíveis ora dos

estados (seja nos respectivos ordenamentos internos nacionais, seja no que respeita às

relações internacionais como um conjunto), ora das organizações intergovernamentais

(mesmo daquelas que não foram constituídas com uma competência particular, com vistas à

proteção dos direitos do indivíduo, como, a exemplo, a própria onu).

É mister enfatizar que a emergência dos direitos humanos no direito internacional,

veio trazer uma modificação verdadeiramente revolucionária quanto à noção clássica da

soberania dos estados, pelo menos num aspecto de suma importância: o tratamento que os

estado reservam a seus próprios nacionais (que, em princípio, são indivíduos que gozam da

totalidade dos direitos concedidos), era um assunto que o direito internacional silenciava e

deixava ao total alvedrio dos ordenamentos jurídicos nacionais, pelo menos, até o final da

segunda guerra mundial. posteriormente, aquele tratamento passou a ser exigível de estar

conformes a normas internacionais, e, sendo assim, estas não se limitam à proteção dos

estrangeiros (campo que, de certa forma, era e continua sendo uma competência das normas

internacionais), mas, igualmente, se estendem para o campo dos direitos concedidos aos

próprios nacionais dos estados, no interior dos próprios ordenamentos jurídicos internos. a

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bem da verdade, as normas internacionais de proteção da pessoa humana desconhecem a

distinção entre nacionais e estrangeiros, e representam, assim, o campo mais bem acabado

onde se verificam os fenômenos que temos denominado de globalização vertical

(indiferença entre o ordenamento interno e o sistema jurídico internacional) e o de

globalização horizontal (espraiamento do tema da relevância dos valores inerentes à pessoa

humana, por todos os assuntos de que tratam tanto os ordenamentos domésticos dos

estados, quanto as normas relacionadas às relações externas e as internacionais)!

a entrada dos direitos humanos no campo da normatividade do direito internacional,

conforme o pensamento dos jusfilósofos norberto bobbio3 e celso lafer4, representa um

longo caminho percorrido na história das instituições, em busca de uma positividade

crescente. de uma consciência difusa, porém ansiosa, da necessidade de sua expressão

normativa, caminhou-se até uma sua definição em termos teóricos e racionalmente

coerentes, e, paulatinamente, partiu-se da teoria, à sua realização positiva em grandes textos

normativos superiores, nos ordenamentos jurídicos internos dos estados. a etapa seguinte

constituiu-se no aperfeiçoamento de mecanismos adequados para sua defesa, à medida em

que os estados trabalhavam para darem uma conformação democrática os respectivos

ordenamentos nacionais, sempre baseados em impulsos internos, ou quando muito,

engendrados por emulação a sistemas jurídicos de outros estados. ainda na busca de maior

efetividade, na segunda metade do séc. xx, os estados acharam por bem colocar os direitos

humanos num patamar normativo internacional, que, por sua relevância, deveria servir de

incentivo a futuras normas internacionais e às normas internas dos estados: foi o momento

da edição da declaração universal dos direitos humanos, proclamada por um ato solene da

assembléia geral das nações unidas, a 10 de dezembro de 1948 (em que pese faltar a tal ato

uma expressão na forma de tratado ou convenção internacional). de tal desiderato de

mundialização dos direitos humanos, portanto, já expresso em termos internacionais,

passou-se a um aperfeiçoamento das normas de proteção aos mesmos, pela via de tratados e

convenções internacionais, portanto atos claramente normativos, com regras e mecanismos

precisos para sua efetivação, primeiro, em nível internacional, depois, em nível regional,

3 do prof. norberto bobbio, em particular, destaque-se o cap. “presente e futuro dos direitos do homem”, de seu livro a era dos direitos, rio de janeiro, editora campus, 1992, p. 25-47.4 da extensa e variegada obra do prof. celso lafer, sobretudo na área dos direitos humanos, permitimo-nos citar apenas ensaios liberais, são paulo, siciliano, 1991, em particular, seu cap. 2, “os direitos do homem e a convergência da Ética e da política”, p. 33-46.

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nas tentativas de cada vez mais precisar o conteúdo e os mecanismos de efetivação das

normas de proteção aos direitos humanos. finalmente, o que se tem assistido, em particular

nas relações internacionais, são as tendências de constituição de tribunais internacionais,

com uma jurisdição cada vez mais abrangente, e, em casos mais avançados, acionáveis por

quaisquer indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, como é o caso da

convenção européia para a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais,

adotada em roma a 04 de novembro de 1950, após a assinatura do protocolo 11, de 1994, e

sobretudo as fundamentais alterações introduzidas pelo acordo europeu relativo a pessoas

que participam nos procedimentos da corte européia dos direitos humanos, firmado em

estrasburgo, em 05 de maio de 1997 (fenômenos que serão analisados, logo além, neste

capítulo).

o ponto de partida de tal caminhada, estudado com grande maestria pelo prof. fábio

konder comparato5, pode ser vislumbrado num posicionamento ético, revelado em antigos

escritos, como nos salmos do rei david6 e nas admoestações dos profetas hebreus constantes

do antigo testamento7, de que há direitos mínimos devidos aos estrangeiros, ou ainda, mais

claramente, nas falas teatrais de figuras emblemáticas na tragédia grega, como a

personagem antígone, na tragédia homônima de sófocles, cujas palavras já foram

transcritas na introdução da presente obra, repita-se, de que de que há “normas divinas, não

escritas, inevitáveis”, que aquela jovem reafirmou, ao afrontar o rei creonte, ou seja, da

existência de direitos superiores, inerentes à pessoa humana, e que independeriam da

vontade dos governantes, na época, então considerada a fonte primacial do direito. quanto

a uma elaboração sistematizada de tais ideais, verifica-se a emergência de uma consciência

isolada de alguns pensadores na antigüidade, tais os filósofos estóicos e alguns pensadores

romanos por estes influenciados, consciência essa que sofreria decisiva influência da

versão humanística que o cristianismo conferiu aos ideais judaicos (em particular, nas

5 fábio konder comparato, a afirmação histórica dos direitos humanos, são paulo, saraiva, 1999.6 no salmo 146 (145 da vulgata), versículo 9, o qual segue o tema constante na história dos hebreus, de o estrangeiro estar sempre assemelhado à situação das viuvas e órfãos (situação essa do mais completo desamparo), assim se lê: “dominus custodit advenas pupillum et viduam suscipiet et viam peccatorum disperdet”, na tradução da bíblia de jerusalém: “iaweh protege o estrangeiro, sustenta o órfão e a viúva...(mas) transtorna o caminho dos ímpios”.7 vejam-se, em particular, as advertências que o profeta isaías fazia aos governantes de seu tempo, de que se lembrassem, a fim de propiciar aos estrangeiros um tratamento mais humano, de que o povo de israel tinha sido estrangeiro em terras da babilônia. a relevância do profeta isaías em temas fundamentais do direito internacional, pode, ademais ser atestada pelas suas palavras que ilustram a epígrafe da presente obra.

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epístolas de são paulo). a visão cristã teria uma reafirmação racional sobretudo na filosofia

escolástica8, em particular, na denominada “segunda escolástica”, onde se ressalta a

exponencial figura de francisco de vitoria, dominicano espanhol, professor de teologia de

salamanca, muitas vezes citado neste livro, em especial, na sua relectio de indiis, na sua

defesa dos direitos dos povos indígenas da américa, em face da política colonial da

espanha; a obra de vitória é, na história do pensamento ocidental, considerada como a

primeira obra jurídica que cuidou dos direitos humanos. a partir do posicionamento desta

filosofia, portanto, com os direitos humanos totalmente despregados da teologia, nos

tempos que se seguiram ao séc. xvi, a sua mais perfeita expressão laicizada seria elaborada

dentro de um racionalismo baseado no conceito da denominada “natureza das coisas”,

particular na filosofia do iluminismo do séc. xvii, com grande destaque para o pragmatismo

inglês de um thomas hobbes e de um john locke9, e mais precisamente, do séc. xviii,

notadamente nos escritos de voltaire, j-j. rousseau e montesquieu.

o passo seguinte foi a expressão dos valores da pessoa humana, enquanto normas

que devem necessariamente constar do rol daquelas que constituem os fundamentos dos

estados modernos. sua relevância nos ordenamentos jurídicos nacionais, seria afirmada pela

força de duas revoluções importantes: a revolução inglesa, constante e latente na história da

inglaterra10, que redundaria na separação dos poderes dentro de um estado, conforme

descrita pela pluma do já citado john locke11, e a revolução francesa de 1789, este, um

8 relembre-se que a escolástica foi a filosofia medieval que se afirmou a partir dos estudos de santo anselmo (1033-1109) e abelardo (1079-1142), a partir da introdução no ocidente do pensamento de aristóteles, então conservado pelos filósofos judeus e árabes, ou por estes interpretado (averóis, de sevilha, 1126-1198). teve sua culminância com santo tomás de aquino (1227-1274) e duns scott (1266-1308). caracteriza-se ela por uma forte vertente racionalista, em oposição à filosofia então dominante, denominada patrística (com destaque para santo agostinho, 354-430), altamente influenciada pelo idealismo de platão e de plotino. 9 a extraordinária contribuição dos filósofos ingleses para a consciência dos direito humanos foi estudada com maestria pelo eminente jusfilósofo francês, michel villey, le droit et les droits de l’homme, 3a edição, paris, puf, 1998.10 a denominada revolução inglesa se caracteriza por uma luta constante entre o rei e o parlamento, menos com vistas a afirmar um direito do indivíduo oponível ao monarca e mais como uma oposição de os representantes do povo limitarem os poderes daquele. são significativos os seguintes documentos históricos: a magna carta de joão sem terra de 21 de junho de 1215, a petição de direitos de 7 de junho de 1628, a lei do habeas corpus de 1679, o bill of rights de 13 de fevereiro de 1689, o ato do estabelecimento de 1701.11 sua concepção de um poder dividido entre executivo, legislativo e federativo (este último, a continuidade do estado, investido no monarca, o condutor das relações internacionais, independente da configuração do poder executivo) foi de fundamental importância na formação do pensamento do iluminismo francês, nomeadamente montesquieu, com sua teoria da divisão do poder entre executivo, legislativo e judiciário, como uma técnica de limitação do poder. veja-se nossa obra: Órgãos dos estados nas relações internacionais: formas da diplomacia e as imunidades, rio de janeiro, editora forense, 2001, em particular, o seu cap. iii: “a diplomacia e a organização constitucional dos estados modernos: a diplomacia pública”, p. 23-40.

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momento sangrento de grande ruptura, as quais marcariam momentos pontuais em que se

consagrou a existência de valores normativos superiores, presentes em quaisquer

ordenamentos jurídicos nacionais12. o movimento de petrificar tais valores, nos finais do

séc. xviii, e que pode ser atestado pela sua sistematização em grandes monumentos

legislativos, as constituições escritas13, caracterizou-os, logo de início, como inscritos

naquelas normas instituidoras de algumas condições indispensáveis para definir-se um

estado democrático, tais como: a) a soberania baseada na vontade popular; b) a divisão

funcional do poder, como uma técnica de controle de seu exercício, e, sobretudo, c) a

proteção dos direitos humanos, estes, de início configurados em documentos separados,

conquanto integrados na organização constitucional dos estados, e na seqüência histórica,

como partes constitutivas dos próprios textos das constituições. um grande passo, portanto,

para a consagração das normas de proteção dos direitos humanos: sua consagração nos

textos normativos internos dos estados, numa estatura de normas constitucionais, e como

atestado de que sua constância nos ordenamentos jurídicos internos, seria a prova de que os

estados, que as adotavam, seriam organizações democráticas. portanto, a definição dos

direitos humanos, na legislação interna dos estados, passaria a ser condição de uma

democracia.

do final do séc. xix, e até a eclosão da primeira guerra mundial, alguns assuntos

relacionados, nos dias correntes, à proteção internacional de determinados direitos

humanos, tiveram um reconhecimento pelo direito internacional. a longa prática dos

serviços consulares, e sobretudo o instituto da proteção diplomática, este, de elaboração

costumeira, que naquele período já se tinham cristalizado no direito internacional,

conforme já visto na presente obra, de forma indireta protegiam a pessoa humana, face a

12 a primeira constituição escrita na história da humanidade, foi a constituição dos eua, adotada em 1789,

logo seguida pela constituição francesa de 1791. veja-se nota de rodapé imediatamente seguinte a este.

13 os primeiros textos sistematizados de direitos humanos, de natureza constitucional, adotados na história da humanidade, foram votados em épocas distintas das primeiras constituições escritas. assim, a declaração de direitos de virginia, de 1776, a declaração de independência de 4 de julho de 1776 (proclamação da autonomia das treze colônias), o “bill of rights” que cada estado independente colocou no frontispício das respectivas constituições escritas, e as dez primeiras emendas à constituição federal (posteriormente denominadas de bill of rights) votadas em 1787, as quais foram adicionadas à constituição dos eua de 1789, como parte integrante desta. a famosa declaração dos direitos do homem e do cidadão, adotada a 26 de agosto de 1789 pela assembléia constituinte de frança, logo após a queda da bastilha, em 14 de julho daquele ano, seria, posteriormente, colocada no frontispício da constituição de 1791. já na constituição francesa do ano iii (constituição de 5 do fructidor do ano iii), votada pela convenção após a queda de robespierre, veio precedida da “declaração do ano iii”, reformulação da declaração de 1789.

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tratamentos discriminatórios ou degradantes que determinados estados viessem a conferir a

estrangeiros; na atualidade, como em tempos anteriores, os institutos se dirigiam somente a

pessoas que tivessem uma nacionalidade, excluídos, portanto, os refugiados e os apátridas,

relembrando-se, ademais, que aqueles institutos não se configuravam (como ainda hoje não

se configuram) como um direito subjetivo de a pessoa ofendida poder exigir do estado de

sua nacionalidade, aquela proteção. de igual forma, alguns movimentos de proteção a certos

direitos das pessoas, que se tinham iniciado no final daquele século, se prolongavam após a

grande guerra de 1914-1919, em especial, tendo em vista que a sociedade das nações fora

encarregada de dar-lhes seguimento: assim a questão da proteção das minorias, que

constituíam populações deslocadas ao final daquela guerra, os movimentos que se tinham

iniciado no séc. xix, como a proibição internacional do tráfico negreiro (viena 1815) e a

luta internacional contra a escravidão (1890) e o os combates a uma forma tão ou mais

perniciosa de escravidão que aquela então denominada de “tráfico de negros”, o

denominado “tráfico de brancas”( o lenocínio internacional), a pirataria marítima, que ainda

prosseguia nos mares, e, como sinal dos tempos, a admirável emergência em nível

internacional, das normas de proteção ao trabalhador e aos locais de trabalho, obra pioneira

da primeira organização intergovernamental mundial, surgida na história da humanidade: a

organização internacional do trabalho, instituída pela parte xiv do tratado de versalhes de

1919 e com sede em genebra.

contudo, a entrada maciça das normas de proteção dos direitos humanos, ou seja,

todos os aspectos relacionados à pessoa humana e não meramente aqueles assuntos tópicos

versados nos períodos anteriores ao final da segunda guerra mundial de 1939-1845, os

quais continuavam com sua presença no campo internacional, foi acelerada pelos

acontecimentos imediatamente anteriores aos grandes tratados que puserem fim àquele

conflito bélico. sem dúvida, aquela emergência em bloco, tem sido considerada como um

dos passos mais eficazes em direção à citada positivação das mesmas. ademais dos horrores

que acompanham qualquer guerra, em particular aquela, que tinha sido, como a grande

guerra de 1914-1918, uma guerra total14, o mundo tomava consciência de que os

14 a guerra total é um fenômeno típico do séc. xx, caracterizada não só pela extensão mundial do teatro de guerra, como pela globalização dos objetivos militares, os quais não mais se restringem às destruições do inimigo no campo de batalha, mas visam, sobretudo, às indústrias da retaguarda, que não mais se distinguem entre indústrias bélicas ou civis. o papel da ideologia é de fundamental importância na guerra total, de maneira que, além de objetivos militares, passam eles a compreender, inclusive uma reforma fundamental das sociedades e das relações internacionais. na guerra total inexiste diferenciação entre soldado e operário, nem

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fenômenos da mais completa violação de direitos fundamentais da pessoa humana, tinham

sido cometidos no interior de alguns estados europeus, os quais tinham, no entre guerras,

negado sua tradição histórica democrática, em favor de regimes autoritários, nos tempos

imediatamente anteriores à declaração de guerra, portanto em tempos de paz, restando claro

que aqueles regimes antidemocráticos tinham sido os responsáveis pela guerra de 1939-

1945! sendo assim, uma reafirmação solene da prevalência dos direitos humanos, feita pela

maioria dos componentes da comunidade dos estados no pós-guerra, deveria ter uma dupla

finalidade, qual seja: a) definir normas e padrões de conduta nos ordenamentos internos dos

estados, uma vez que os direitos humanos passaram a ser considerados como regras

inerentes aos regimes democráticos, que então se reuniam na organização das nações unidas

e que deveriam prevalecer na totalidade dos estados membros (portanto, a determinação de

que aquelas normas e padrões exigíveis de quaisquer estados, deveriam ter uma expressão

internacional, enquanto valores presentes nos ordenamentos jurídicos nacionais e enquanto

regras a serem introduzidas nos mesmos) e b) definir as próprias regras, em normas

internacionais, através de tratados e convenções multilaterais, dotadas de mecanismos de

controles de sua aplicação e de aperfeiçoamento, posto que normas que regeriam as

próprias relações internacionais (portanto, uma tarefa de codificar e criar direito novo, nas

relações entre os estados, com mecanismos diplomáticos e jurisdicionais para o

aperfeiçoamento de sua vigência e eficácia em nível internacional).

a organização cimeira que então se constituía em 1945, a onu, deveria refletir tais

desideratos, ao mesmo tempo em que os estados tratavam de rearrumar o mundo, no

imediato pós-guerra. tal tarefa constou expressamente da invocação, no primeiro parágrafo

do preâmbulo da carta das nações unidas, nos seguintes termos: “nós, os povos das nações

unidas, resolvidos... a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas

vezes, no espaço de nossas vidas, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a

reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, da dignidade e no valor do ser

humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações

grandes e pequenas...”. foi ela reafirmada, no art. 1o , § 3o da carta, como um dos

propósitos e princípios da onu, expressamente, de esta organização colocar-se com o

entre soldado e cidadão civil, o que dá causa a uma mobilização bélica da sociedade como um todo, com a conseqüente abrangência dos tratados de paz, para incluírem a reorganização global das sociedades e das relações internacionais, em tempos de paz, as quais passam a sofrer os embates da ideologia vencedora.

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objetivo de “conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas

internacionais de caráter econômico, social, cultural ou sanitário e para promover e

estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem

distinção de raça, sexo, língua ou religião”. nos outros dispositivos da carta, nos quais se

instituíram os órgãos da onu, particularmente a assembléia geral15 e o conselho econômico e

social, o ecosoc16, há referências expressas aos direitos humanos e às liberdades

fundamentais. outro aspecto a destacar-se é o fato de a onu, diferentemente de sua

antecessora, a liga das nações, ter consagrado na sua carta, junto com os assuntos relativos

à paz e à regulamentação das relações internacionais que se seguiriam aos tratado de paz

então subscritos, uma importância particular à proteção dos direitos humanos, na esfera

internacional; é digno de nota ter a carta conferido uma especial ênfase ao assunto dos

direitos humanos, ao ter consagrado todo um capítulo particular ao tema: o cap. ix,

“cooperação internacional econômica e social”; neste, reafirmam-se os propósitos e

princípios de as nações unidas favorecerem o “respeito universal e efetivo dos direitos

humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou

religião” (art. 55 alínea c).

ressalte-se, contudo, que a violação dos direitos humanos, por parte dos estados, no

interior de seus respectivos ordenamentos, numa leitura restrita da carta da onu de 1945,

não constituiria, propriamente, uma ameaça à paz; o relacionamento direto entre o respeito

aos direitos humanos e a situação de uma higidez nas relações internacionais, ou seja, a

inserção dos direitos humanos na competência da onu nos assuntos relativos à manutenção

da paz, seria obra de construção diuturna da diplomacia dos estados, que teria como

resultado o alargamento de atribuições de competências originárias dos órgãos da onu (em

particular, da assembléia geral e do conselho de segurança) e a formação de uma

jurisprudência da corte internacional de justiça, a partir de questões políticas especiais e

candentes para cuja solução judiciária foi ela chamada.

15 dentre as atribuições da assembléia geral, consta aquelas compendiadas no art. 13 § 1o, alínea b) da carta, assim redigido: “a assembléia geral iniciará estudos e fará recomendações destinadas a ... b) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário, e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, língua ou religião”.16 em particular, das atribuições do ecosoc, destaquem-se aquelas contempladas no art. 62, § 2o “verbis”: “poderá igualmente fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos”.

11

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a partir daqueles desideratos da carta da onu, os estados vitoriosos, profundamente

comprometidos em assegurar os ideais democráticos, logo após o final da segunda guerra

mundial, se propuserem a realizá-los, ao instituírem um sistema de segurança coletiva, na

carta da onu, com ligações essenciais ao respeito dos direitos humanos (mais uma

comprovação de que a consagração dos direitos humanos é condição essencial da ordem

democrática). compreende-se, portanto, que a proclamação solene pela assembléia geral das

nações unidas, na sessão histórica deste colegiado, a 10 de dezembro de 1948, em paris, da

declaração universal dos direitos do homem, nada mais teria sido do que um desejo claro de

especificarem-se, em normas específicas, aquelas normas programáticas gerais constantes

da carta de são francisco. no dia seguinte à adoção daquela declaração universal, os

estados membros da onu, assinaram em paris, ainda no decurso da ag da onu, a 11 de

dezembro de 1948, o primeiro grande tratado multilateral sobre direitos humanos: a

convenção para a repressão e a prevenção do crime de genocídio (no brasil, promulgada

pelo decreto no 30.822, de 06/05/52)17.

deve acentuar-se que, pelo fato de a declaração universal de 1948 não ter-se

revestido da formalidade de um tratado multilateral, eventualmente negociado sob a égide

da onu, mas ter nascido na forma de uma deliberação da assembléia geral da onu,

formalmente adotada pela resolução 217-a (iii) de 10/12/194818 , em absoluto, lhe retira o

valor histórico de documento normativo fundamental; na verdade, a corte internacional de

justiça, no caso do pessoal diplomático e consular dos eua em teerã, na decisão definitiva a

24/05/1980, deixou claro que considera a declaração universal como um costume

internacional, no mesmo pé de normatividade que os dispositivos da carta da onu19. além do

mais, aquela declaração, serviria de parâmetro para as legislações internas dos estados, no

segundo pós-guerra, nos seus esforços de democratização dos ordenamentos jurídicos

internos, e segundo alguns autores, constituiria, assim, um rol de obrigações de natureza

moral. tais discussões sobre a natureza da declaração universal e sua imperatividade,

17 o texto desta convenção se encontra apud vicente marotta rangel, direito e relações internacionais, 6a edição revista e atualizada, são paulo, revista dos tribunais, 2000, a p. 653-7.18 as deliberações da assembléia geral da onu podem adotar as seguintes formas: resoluções (numeradas em algarismos arábicos, sempre seguidos com a indicação, entre parêntesis e em algarismos romanos, da sessão da ag onde foram adotadas) e recomendações (dirigidas a estados e a outros órgãos da onu).19 verbis: “o fato de privar abusivamente da sua liberdade seres humanos e os submeter, em condições penosas, a um constrangimento físico, é manifestamente incompatível com os princípios da carta das nações unidas e com os direitos fundamentais enunciados na declaração universal dos direitos do homem”, cf. nguyen quoc dinh, patrick dailler e alain pellet, direito internacional público, lisboa, id., ibid., p. 601.

12

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perderiam sua atualidade, na medida em que, em data posterior, as obrigações nelas

constantes, iriam revestir-se da roupagem de normas jurídicas imperativas, em dois

importantes tratados multilaterais, adotados em plena forma, os dois pactos das nações

unidas, negociados sob a égide de sua assembléia geral, e assinados ambos no mesmo dia

16 de dezembro de 1966, na sede da onu, em nova york: o pacto internacional sobre direitos

econômicos, sociais e culturais e o pacto internacional sobre direitos civis e políticos. deve

dizer-se que os dois pactos tiveram uma aceitação imediata dos estados, tendo em vista que

os mesmos entraram em vigor internacional, a 23 de maio de 1976, após o 35o estado haver

depositado os instrumentos de ratificação, perante o secretário geral das nações unidas. no

que respeita ao brasil, o país os assinou, na data de sua adoção, em dezembro de 1966, mas

somente os ratificou após ter havido a democratização do país, em 23/12/1992, data de sua

promulgação conjunta pelo decreto no 592 desta data, e após a aprovação pelo congresso

nacional, através do decreto legislativo no 226 de 12/12/199120.

os pactos da onu de 1966 retomam os direitos e garantias definidos na declaração

universal, a qual os apresentava sem qualquer listagem, classificam-nos em dois grandes

campos, os direitos civis e políticos, que uma parte da doutrina, em data posterior,

denominaria “direitos-liberdades”, e os direitos econômicos, sociais e culturais, por aquela

doutrina denominados “direitos-crédito”, e, enfim, instituem mecanismos diplomáticos

internacionais, para a verificação de seu cumprimento pelos estados, nos respectivos

ordenamentos jurídicos nacionais.

sendo assim, são reconhecidos, no pacto sobre direitos civis e políticos, sem

qualquer distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, origem ou opinião, os seguintes

direitos: à vida e à incolumidade pessoal, à sua proteção contra a tortura, contra a

escravidão e o trabalho forçado, a proibição da prisão arbitrária, das buscas e requisições

abusivas. visa o pacto, igualmente, a garantir um patamar normativo mínimo, no interior

dos ordenamentos jurídicos nacionais dos estados, no que respeita à administração da

justiça, através da aplicação dos princípios da justiça natural, tais como a independência e

imparcialidade dos tribunais, a presunção da inocência, a irretroatividade da lei penal, o

pleno direito a uma defesa. enfim, proclama ele as grandes liberdade clássicas: de

pensamento, de consciência, de religião, de expressão, de reunião e de associação pacíficas.

20 os textos da declaração universal dos direitos do homem e de ambos os pactos se encontram apud, vicente marotta rangel, op. cit., id., ibid., respectivamente, p. 645-52, 668-80 e 681-704.

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no que respeita à proteção das minorias étnicas, religiosas ou lingüisticas, restringia-se, no

art. 27, a proteger as pessoas, no sentido de “não serem privadas do direito de ter,

conjuntamente, com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultual, de professar e

praticar sua própria religião e usar sua própria língua”; seriam tais dispositivos

complementados pela declaração dos direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais

ou Étnicas, religiosas e lingüísticas, adotada pela ag da onu, em 1992, nos termos da qual,

os estados se obrigam a proteger a existência e a identidade das minorias que sem

encontram nos seus territórios respectivos e a favorecer as condições próprias à promoção

de tal identidade. no que respeita à proibição expressa da pena de morte, assunto que não

constava do pacto dos direitos civis e políticos (seu art. 6o regulava as situações nos países

em que a pena de morte não tinha sido abolida), este seria complementado com um

protocolo suplementar, adotado em 1989, denominado segundo protocolo relativos aos

direitos civis e políticos com vistas a abolir a pena de morte, adotado em nova york, a

15/12/1989 (do qual o brasil não é parte), segundo o qual aos estados partes se institui o

dever de abolir a pena de morte nos ordenamentos jurídicos nacionais, salvo nos casos de

pena de morte em tempo de guerra, em virtude de uma condenação por crime de caráter

militar cometido em tempo de guerra e de extrema gravidade.

deve dizer-se que há possibilidades de suspensões de alguns dos dispositivos do

pacto, autorizadas pelo seu art. 4o (situações que ameacem a existência da nação e sejam

oficialmente proclamadas), restando, contudo proibidas as suspensões daqueles direitos que

podem ser considerados como o “núcleo duro” (“hard core”) dos direitos protegidos, e que

se encontram definidos no seguintes artigos: 6o (direito à vida), 7o (proibição da tortura), 8o

§ 1o (escravidão) art. 8o § 2o (servidão), 11 (proibição de prisão apenas por não cumprir com

obrigação contratual), 15 (definição estritamente legal pelo direito interno ou pelo direito

internacional de um crime e anterioridade da lei penal), 16 (reconhecimento, em qualquer

lugar, da personalidade à pessoa humana) e 18 (liberdade de pensamento, de consciência e

de religião).

são reconhecidos, em linhas gerais, os seguintes direitos pelo pacto internacional

dos direitos econômicos, sociais e culturais, os quais devem ser garantidos pelos estados, a

partir de um máximo de seus recursos disponíveis, fim de assegurar progressivamente o

exercício concreto dos mesmos: direito ao trabalho, direito a condições de trabalho justas e

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favoráveis, direito de formar sindicatos, direito a um nível de vida adequado, nele

compreendidos o direito à alimentação, a uma vestimenta e a uma moradia adequados;

direito à proteção familiar, inclusive o direito das mães a uma proteção especial antes e

após o nascimento de seus filhos: direito à saúde e à educação, direito a participar da vida

cultural e de beneficiar-se do progresso científico.

a tais direitos, deve ser incluído o direito ao desenvolvimento, como um direito

inalienável do homem, conforme definido pela declaração sobre o direito ao

desenvolvimento, adotada pela ag da onu, a 04/12/1986 (resolução 41/128)21, e, por ter

situado a pessoa humana como o sujeito central do desenvolvimento, confia aos estados a

responsabilidade primeira pela criação de condições favoráveis à sua realização. esta

declaração, que aditou mais um direito ao pacto sobre direitos econômicos, sociais e

culturais, deve ser analisada, na sua emergência, a partir dos fenômenos que se verificaram

a partir da década de 1960 (o ano da África, marcado pela afluência maciça de estados em

vias de desenvolvimento africanos e asiáticos, nos foros da onu), e que marcariam as

tentativas da instituição de uma nova ordem econômica internacional (cujo marco mais

importante foi a instituição da uncatd, a conferência das nações unidas sobre comércio e

desenvolvimento, com sede em genebra, em 1964). já fundamentada sobre a definição que

a própria onu daria, na conferência mundial sobre direitos humanos, realizada em teerã,

em 196822 de que os direitos civis e políticos, de um lado, e os direitos econômicos sociais e

culturais, de outro, constituem uma unidade indivisível e, portanto, são interdependentes, a

declaração sobre o direito ao desenvolvimento de 1986, lançou um desafio a toda

comunidade internacional dos estados, colocando a satisfação das necessidades humanas e

sociais, no centro do desenvolvimento econômico, e desbancando o decantado crescimento

econômico enquanto um valor auto-suficiente. tal posicionamento suporia o

estabelecimento de relações econômicas internacionais eqüitativas, e, consequentemente,

uma verdadeira revolução nos foros multilaterais, onde os problemas econômicos fossem

tratados. na verdade, as relações econômicas internacionais tal como eram versadas,

tradicionalmente, passaram a ser encaradas, a partir da mencionada declaração, na

21 o texto da declaração sobre o direito ao desenvolvimento de 1986, encontra-se traduzida em português, apud antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, id. ibid., p. 154-159.22 o texto da proclamação de teerã encontra-se traduzida em português, apud antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, id. ibid., p. 121-24.

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dimensão da proteção do mencionado direito ao desenvolvimento, o qual reconhece uma

desigualdade real entre os estados e, a partir de tal fato, tenta dar uma dimensão eqüitativa

nas relações econômicas internacionais (no equilíbrio monetário, do fmi, nos movimentos

internacionais de créditos de bancos oficiais, com o bird à frente, e enfim, no comércio

internacional, naquele momento histórico, no gatt).

a partir da adoção dos dois pactos das nações unidas, e já estando vigente a

convenção para a repressão e a prevenção do crime de genocídio, o movimento

internacional em direção à especificação dos direitos humanos, a fim de dotá-los de uma

eficácia crescente nas relações internacionais, a nosso ver, passou a ser marcado, a partir de

então, por três grandes fenômenos: a) o aprimoramento dos mecanismos diplomáticos de

reuniões permanentes entre os estados, para negociações de normas internacionais e para

intercâmbio de informações, seja no quadro da diplomacia parlamentar da onu, seja ainda

da diplomacia de congressos e conferências especiais; b) o formal reconhecimento

internacional dos mais importantes direitos humanos subjetivos, através de tratados

multilaterais, em assuntos tópicos e c) o aperfeiçoamento de mecanismos de verificação da

eficácia das normas internacionais de proteção aos direitos humanos, que tanto passaram a

ser instituídos nos mencionados tratados específicos (mecanismos convencionais) quanto

criados e desenvolvidos no quadro institucional da própria onu, na assembléia geral e,

sobretudo no ecosoc, que é o órgão da onu encarregado do campo da proteção dos direitos

humanos (mecanismos não constantes em tratados ou convenções internacionais, mas

elaborados no exercício da diplomacia multilateral do tipo parlamentar, em especial no seio

da comissão de direito internacional das nações unidas, subordinada ao ecosoc).

no que concerne à institucionalização de reuniões permanentes entre estados, no

quadro da diplomacia parlamentar das nações unidas, na esteira dos propósitos da

declaração universal dos direitos do homem, foi instituída uma comissão dos direitos

humanos, por ocasião da primeira reunião do conselho econômico e social da onu, em 1946

(resolução i-5), com sede em genebra, composta de representantes diplomáticos dos

estados, numa base de rotatividade de representação geográfica, para reuniões ordinárias

anuais, por 40 dias, nos meses de fevereiro e março23. com uma jurisdição mundial, sua

23 originariamente prevista para contar com 18 estados, hoje conta com 53, desde 1990. informações apud j. a lindgren alves, os direitos humanos como tema global, são paulo, perspectiva e brasília, fundação alexandre de gusmão, 1994, p. 73.

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atuação tem sido cada vez mais importante, conforme será visto mais além, neste capítulo,

na medida em que tem aprimorado mecanismos de verificação do adimplemento das

normas internacionais, seja nas relações internacionais, seja no interior dos ordenamentos

jurídicos nacionais. de maneira geral, as atribuições da comissão de direitos humanos da

onu, numa leitura estrita de suas bases jurídicas, ou seja, do art. 55 al. (c) e art. 56 da carta

da onu24, como se sabe, inscritos no cap. ix daquela carta, ementado “cooperação

internacional econômica e social”, fariam dela uma entidade voltada a fomentar a

cooperação internacional e de forma alguma, com poderes jurisdicionais ou quasi-

jurisdicionais em relação aos estados. a fim de certa forma amenizar o oficialismo da

representação dos estados e seu caráter por demais político, já nos primórdios de seu

funcionamento, a comissão de direitos humanos, devidamente apoiada pelo ecosoc,

instituiria uma subcomissão de prevenção da discriminação e proteção de minorias25,

composta, na atualidade, de 26 peritos independentes, indicados pelos governos (mas não

funcionários do mesmo) e escolhidos segundo uma distribuição geográfica equânime, com

funções de fazer estudos e recomendações à comissão, bem como cumprir com as tarefas

que esta comissão ou o ecosoc lhe determinar.

.ainda quanto à atuação dos estados, na diplomacia multilateral realizada por via dos

tratados e convenções, é mister referir-se à prática dos estados, logo após a subscrição do

pacto internacional dos direitos civis e políticos de 1966, de instituir, nos tratados

multilaterais sobre assuntos tópicos, órgãos colegiados autônomos, denominados

“comitês”, entidades independentes das representações diplomáticas dos estados,

compostas de pessoas de alta reputação, com a competência de controlar a aplicação das

normas convencionadas, portanto, com uma competência “ratione materiae” e “ratione

personae” determinadas pelas normas que os instituem, de cuja maioria o brasil é parte,

conforme noticia o embaixador gilberto vergne saboia26. os mais notáveis são o comitê

sobre direitos civis e políticos, instituído no pacto da onu sobre direitos civis e políticos de

1966, do qual o brasil participa, e o comitê de direitos humanos, instituído pelo protocolo

24 o art. 55 alínea (a) acha-se transcrito no texto do início deste capítulo. o art. 56 da carta da onu assim está redigido: “para a realização dos propósitos enumerados no art. 55, todos os membros da organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente”.25 esta subcomissão se reúne, ordinariamente, a cada mês de agosto, em genebra.26 gilberto vergne saboia, “o brasil e o sistema internacional de proteção dos direitos humanos”. in: alberto do amaral júnior e cláudia perrone-moisés, organizadores, o cinqüentenário da declaração universal dos direitos do homem, são paulo, editora da usp, 1999, p. 219-38, em particular, p. 227.

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adicional ao pacto sobre direitos civis e políticos, subscrito igualmente em 1966, mas do

qual o brasil se encontra ausente, por não haver subscrito aquele protocolo; importa

observar que este protocolo confere ao referido comitê, a atribuição de poder receber

queixas individuais, contra estados27. mais além, no presente capítulo, descreveremos,

sumariamente, a atuação de ambos os comitês, destacando-se que as reclamações

individuais contra estados podem igualmente ser recebidas pelos comitês previstos na

convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (art.

14 § 1o) e a convenção contra a tortura (art. 21 § 1o e art. 22 § 2o).

igualmente no campo de atuação da diplomacia multilateral, têm sido notáveis as

conferências internacionais convocadas pela onu, tendo como marco a declaração universal,

nas quais são reafirmados ou votados grandes princípios de natureza política e jurídica.

merecem destaque as duas conferências mundiais sobre direitos humanos, realizadas, uma

em teerã, a 1968, em plena guerra fria, com a participação de cerca de 50 países, e outra,

em viena, a 1993, com delegações de cerca de 179 países, em que se reafirmou “a

universalidade dos direitos humanos e da legitimidade da preocupação internacional com

o tema”28. nas palavras do presidente da conferência de viena, o delegado do brasil, o

eminente embaixador gilberto vergne saboia: “a declaração e o programa de ação de viena

são o pronunciamento mais atual e completo sobre os direitos humanos...refletem a

natureza da imensa tarefa de realizar os direitos humanos de maneira universal em

sociedades distintas em suas tradições culturais e características econômicas e sociais”29.

um dos resultados da conferência de viena, foi a instituição pela ag da onu, em dezembro de

1993 (resolução 48/141), de um alto comissário das nações unidas para os direitos do

homem, de hierarquia de secretário-geral adjunto, com a missão de coordenar os programas

das nações unidas no campo dos direitos humanos, de promover a cooperação

internacional, de dispensar serviços consultivos aos estados que os solicitem, de promover e

proteger a realização do direito ao desenvolvimento e de entrar em diálogo com todos os

27 os demais comitês existentes são: o comitê sobre direitos econômicos, sociais e culturais, instituído pelo pacto da onu sobre direitos econômicos, sociais e culturais, o comitê para a eliminação da discriminação racial, instituído pela convenção sobre a eliminação da discriminação racial, o comitê para a eliminação da discriminação contra a mulher, instituído pela convenção sobre a eliminação da discriminação contra a mulher, o comitê contra a tortura, instituído pela convenção contra a tortura, e o comitê dos direitos da criança, instituído pela convenção dos direitos da criança.28 gilberto vergne saboia, op. cit., p. 222.29 gilberto vergne saboia, op. cit., id., ibid., p. 222.

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governos, a fim de garantir o respeito efetivo dos direitos humanos, nos respectivos

ordenamentos internos.

ainda no que respeita à diplomacia multilateral, porém fora dos quadros da onu, é

necessário referência à ata final da conferência internacional de helsinki sobre a

cooperação na europa30, reunião multilateral iniciada em 1973, em helsinki, continuada em

genebra em 1973 e finalmente terminada em 1975, das quais participaram, além dos

estados europeus, inclusive do bloco soviético (destaque-se: urss e as duas alemanhas),

igualmente canadá e eua. segundo o prof. nicolas valticos, “tratou-se de um acordo entre

grupos de estados preocupados com a situação numa dada região (do mundo), mas que

tinham ideologias políticas muito diferentes e que chegaram a certos princípios comuns,

notadamente em matéria de direitos do homem e de liberdades fundamentais”31. quanto

ao reconhecimento formal de direitos humanos, em assuntos temáticos, foram adotados,

desde a proclamação da declaração universal e até nossos dias, inúmeros tratados e

convenções multilaterais de vocação universal, na sua maioria, negociados sob a égide das

nações unidas e outros tantos de vocação regional. sua lista, inclusive com os textos em

português, podem ser encontrados numa exemplar obra editada no brasil, em 1991, de

autoria do prof. cançado trindade, ilustre jurista brasileiro, atualmente juiz e presidente da

corte interamericana de direitos humanos32. aquele mestre agrupa os tratados e convenções

multilaterais, em dois grandes campos: instrumentos básicos de proteção no âmbito

global, e instrumentos básicos de proteção geral e particularizada, de âmbito regional.

o primeiro campo, portanto daqueles atos multilaterais vigentes no âmbito global,

(os quais serão indicados, quando vigentes no brasil, com a informação sobre os respectivos

decretos de promulgação e com dados por nós complementados, àqueles colacionados pelo

prof. cançado trindade) comporta a classificação, conforme os temas seguintes:

A) instrumentos de proteção geral: os dois pactos internacionais da onu, de 1966, o

sobre direitos econômicos, sociais e culturais (decreto 591 de 06/07/1992), o

30 excertos do texto da ata final de helsinki encontra-se apud antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, id., ibid., p. 129-131. o texto completo da ata, em inglês, “conference on security and co-operation in europe: final act [august 1, 1975], encontra-se in: 14 ilm 292 (1975). 31 nicolas valticos, “nations, etats, regions et cmmunauté universelle: niveaux et Étapes de la protection des droits de l’homme”. in: humanité et droit international- mélanges rené-jean dupuy, paris, pedone, 1991, p. 346.32 antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, são paulo, saraiva, 1991.

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sobre direitos civis e políticos (decreto 592 de 06/12/1992) e a convenção

contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou

degradantes, de 1984 (decreto 40 de 15/02/1991) a convenção sobre os direitos

da criança, de 1989 (decreto 99.710 de 21/11/1990); e acrescentaríamos nós: o

primeiro protocolo facultativo ao pacto sobre direitos civis e políticos, de 1966

(possibilidades de recebimento de queixas individuais contra estados), bem

como o segundo protocolo facultativo do pacto sobre direitos civis e políticos,

destinado a abolir a pena de morte, de 1989, dos quais o brasil não é parte33;

B) instrumentos de proteção particularizada, que compreendem os seguintes

subtemas:

a) prevenção de discriminação: a convenção relativa à escravatura (assinada

em genebra a 25/09/19266,emendada pelo protocolo aberto à assinatura na

sede das nações unidas, de 07/12/1953, e convenção suplementar sobre a

abolição da escravatura, do tráfico de escravos e das instituições e práticas

análogas à escravatura de 07/09/1956 (todos promulgados no brasil pelo

decreto 58.563 de 01/06/1966), a convenção relativa à luta contra a

discriminação no campo do ensino, de 1960 (decreto 62.223 de 06/09/1968),

a convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de

discriminação racial de 1965 (decreto 65.810 de 08/12/1969, a convenção

internacional sobre a eliminação e punição do crime do apartheid, de 1973

(não assinada pelo brasil), a convenção sobre a eliminação de todas as

formas de discriminação contra a mulher, de 1979 (decreto 89.460 de

20/03/1984) e a convenção internacional contra o apartheid nos esportes, de

198534. acrescente-se, ainda, a convenção sobre os direitos da criança no

relativo ao seu envolvimento em conflitos armados e sobre a venda de

crianças, a prostituição infantil e a pornografia envolvendo crianças, e seu

protocolo opcional, adotados pela assembléia geral da onu, este último, a

16/05/2000, com seu texto apud 39 ilm 1285 (2000);

b) asilo, refugiados e apátridas: a convenção relativa ao estatuto dos refugiados,

33 os textos de ambos os protocolos se encontram apud josé augusto lindgren alves, a arquitetura internacional dos direitos humanos, são paulo, ftd, 1997, respectivamente, p. 69-72 e 72-4.34 o decreto 91.524 de 09 de agosto de 1985 estabelece restrições ao relacionamento com a África do sul.

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de 1951 (decreto 50.215 de 28/01/1961, modificado pelo decreto 98.602 de

19/12/1989 e retificado pelo decreto 99.757 de 03/12/199035), a convenção

sobre a redução dos casos de apatrídia, de 1961 (não promulgada, nem

ratificada, mas já aprovada pelo decreto legislativo 38 de 1995) e o

protocolo sobre o estatuto dos refugiados, de 1967 (decreto 70.946 de

07/08/1972);

c) proteção aos trabalhadores (relações trabalhistas), atos internacionais que o

prof. cançado trindade arrola: os dispositivos pertinentes da constituição da

oit de 1919 e as seguintes convenções internacionais do trabalho, dentre as

inúmeras adotadas por aquela organização intergovernamental em genebra:

convenção no 87 de 1948, sobre liberdade sindical e a proteção do direito

social (não consta haver o brasil promulgado esta convenção36), convenção

no 98 de 1949, sobre o direito de organização e de negociação coletiva

(decreto 33.196 de 29/06/1953), convenção no 100 de 1951, sobre igualdade

de remuneração (decreto 41.721 de 25/06/1957), convenção no 105 de 1957,

sobre abolição do trabalho forçado (decreto 58.822 de 14/07/1966),

convenção no 111 de 1958, sobre discriminação em matéria de emprego e

profissão (decreto 62.150 de 19/02/1968) e convenção no 135 de 1971, sobre

a proteção de representantes dos trabalhadores (decreto 131 de 22/05/1991).

acrescentem-se ainda duas recentes convenções da oit: a convenção relativa

à proibição e imediata eliminação das piores formas de trabalho infantil, de

17/06/199 e a convenção sobre a proteção da maternidade, aprovada

juntamente com a recomendação sobre a proteção da maternidade, em

15/06/2000 (textos , respectivamente, apud: 38 ilm 1207 (1999) e 40 ilm 1

(2001);

d) conflitos armados, ou seja, o campo do direito internacional humanitário:

convenções de genebra sobre direito internacional humanitário de 1949

(decreto 42.121 de 21/08/1957), e os seus protocolos adotados em 1977

35 veja-se, além, no presente capítulo, uma explicação sobre as razões de tantos decretos relacionados à convenção sobre o estatuto dos asilados, de genebra, a 28 de julho de 1951.36 a convenção 87 de 1948 da oit, sobre liberdade sindical, conforme informações apud arnaldo sussekind, convenções da oit, 2a edição, ampliada e atualizada até 15/08/1998, consta, a p. 467, da quarta parte; “convenções da oit ainda não ratificadas pelo brasil”.

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(decreto 849 de 25/06/1993), ou seja, o protocolo adicional i, relativo à

proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais e o protocolo

adicional ii, relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados não-

internacionais;

e) os crimes contra a humanidade, genocídio e crimes de guerra: convenção

para a prevenção e repressão do crime de genocídio, de 1948 (decreto

30.822 de 06/05/1952), e convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes

de guerra e crimes de lesa-humanidade de 1969 (não assinada pelo brasil), às

quais nos permitimos acrescentar o importantíssimo estatuto da corte

internacional penal, a ser sediado na haia, o qual foi adotado por uma

conferência diplomática “ad hoc” das nações unidas, para o estabelecimento

de uma corte internacional penal, reunida em roma a 17 de julho de 1998, (o

qual se encontra, ao tempo em que redigíamos este curso, ainda em processo

de aguardo de sua entrada em vigor internacional, e no que respeita ao

brasil, da aprovação pelo poder legislativo brasileiro)37.

no rol dos instrumentos básicos de proteção geral e particularizada, de âmbito

regional, aquele autor agrupa os tratados multilaterais regionais em quatro grandes

conjuntos: a) no continente americano: além de textos anteriores ao final da segunda guerra

mundial, como a convenção sobre o instituto indigenista interamericano, de 24/02/1940

(decreto 36.098 de 19/08/1954), bem assim dos importantes textos adotados em 1948, tais a

declaração americana dos direitos e deveres do homem38, a carta americana de garantias

sociais e da carta da organização dos estados americanos, oea (carta de bogotá)39, as

seguintes convenções multilaterais internacionais: a) a) convenção interamericana sobre

concessão dos direitos civis à mulher, de 1948 (decreto 31.643 de 23/10/1952); b) as duas

37 a convenção de roma sobre o tribunal internacional penal necessita, para sua entrada em vigor internacional, de 60 (sessenta) depósitos de instrumentos de ratificações, aprovações ou adesões, junto ao secretário geral da onu, nos termos de art. 136 § 1o do estatuto de roma.38 a declaração americana dos direitos e deveres do homem, foi adotada no decurso da ix conferência internacional americana reunida em bogotá, em abril de 1948, pela resolução xxx, conforme a ata final daquela conferência. seu texto encontra-se apud luiz flávio gomes e flávia piovesan, organizadores, coordenadores, o sistema interamericana de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro, são paulo, editora revista dos tribunais, 2000, p. 391-396.39 a carta da oea foi adotada a 23/08/1948, no decurso da ix conferência interamericana, em sucessão aos tratados e convenções que regulavam a união panamericana. seria aquele instrumento internacional emendado pelo protocolo de buenos aires de 1967 (iii conferência interamericana extraordinária) e pelo protocolo de cartagena de Índias de 1985 (14o período de sessões da ag da oea). seu texto, com as emendas, se encontra apud vicente marotta rangel, op. cit., id. ibid., p. 87-128.

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convenções adotadas em caracas a 28/03/1954, por ocasião da x conferência interamericana

reunida naquela capital, sobre asilo diplomático e sobre asilo territorial (decreto 55.929 de

14/04/1965) e que procuraram substituir antigas convenções sobre asilo, vigentes no

continente americano40, c) a convenção americana sobre direitos humanos, o denominado

“pacto de san josé” de 1969 (decreto 678 de 06/11/1992)41, d) a convenção interamericana

para prevenir e punir a tortura, de 1985, e) o protocolo adicional à convenção americana

sobre direitos humanos, em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais, denominado

“pacto de san salvador”, de 1988 (decreto 3.321 de 30/12/1999) e f) o protocolo adicional à

convenção americana sobre direitos humanos referente à pena de morte, de 1990 (decreto

2.754 de 27/08/1998)42 e g) muito recentemente, a convenção interamericana para prevenir,

punir e erradicar a violência contra a mulher, de 1994, denominada “convenção de belém

do pará”43; b) no continente europeu44, e c) no continente africano45. consta do mencionado

livro do prof. cançado trindade, igualmente um projeto de carta dos direitos humanos e dos

povos do mundo Árabe, subscrito em túnis, em 1971, que, na época da edição daquele livro

(1991) não tinha sido adotado, mas que em 15/09/1994, o conselho da liga dos estados

Árabes aprovaria com aquela denominação46.

no que respeita ao aperfeiçoamento de mecanismos de verificação da eficácia das

normas internacionais de proteção aos direitos humanos, entendendo-se, como tal, os

mecanismos de controle e monitoramento da efetiva aplicação das normas internacionais no

interior dos ordenamentos jurídicos dos estados e nas respectivas relações internacionais,

40 veja-se, além, neste capítulo, a seção sobre asilo diplomático e asilo territorial..41 o pacto de san josé foi aprovada numa conferência diplomática “ad hoc” convocada pela oea e reunida em san josé da costa rica, a 22/11/1969, à qual o brasil não participou. em 25/09/1992, o brasil daria sua adesão e a promulgaria pelo mencionado decreto no 678 de 06/11/1992.42 adotado em assunção a 08/06/1990, foi assinado pelo brasil a 07/07/1994 e encontra-se promulgado no país, pelo decreto 2.754 de 27/08/1998.43 seu texto se encontra publicado, igualmente, apud luiz flávio gomes e flávia piovesan, coordenadores, op. cit., id., p. 459-6644 sendo a referida obra do prof. cançado trindade de 1991, nela encontram-se arrolados: dispositivos pertinentes do estatuto do conselho da europa (1949), convenção européia para a proteção dos direitos humanos e liberdade fundamentais, roma, (1950), a carta social européia, turim, (1961), os seguintes protocolos à convenção de roma, no 1 (1961), no 2 (1963), no 3 (1963), no 4 (1963), no 5 (1966), no 6 (1983), no 7 (1984) e no 8 (1985) e o protocolo à carta social européia (1987).45 dispositivos pertinentes da carta da organização da unidade africana (1963), a convenção da oua regendo aspectos específicos dos problemas dos refugiados na África (1969) e a carta africana dos direitos humanos e dos povos, denominada: “carta de banjul” (1981).46 seu texto, com comentários de m. a. al midani, “introduction à la charte arabe des droits de l’homme” pode ser encontrado in: boletim da sociedade brasileira de direito internacional, rio de janeiro, (1996), p. 183-189

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podem ser classificados em dois grande conjuntos: a) mecanismos convencionais,

instituídos em convenções temáticas, e b) os mecanismos não convencionais, que foram

elaborados através de decisões da comissão de direitos humanos da onu, que nada mais

fizeram do que formalizar um costume que se desenvolveu no dia a dia da prática da

diplomacia parlamentar no seio daquela comissão, e dadas as necessidades de maior

eficácia conforme exigidas pelos estados, foram, enfim, reconhecidos pelo ecosoc e pela

assembléia geral da onu.

os mecanismos convencionais de verificação do adimplemento dos direitos

humanos, constantes nas convenções sobre assuntos tópicos, de maneira geral, seguem,

com algumas variantes, a tipologia consagrada no pacto sobre direitos civis e políticos e no

seu primeiro protocolo adicional; consistem, de maneira geral, em procedimentos de

comunicações (denominadas “petições”, quando de trata de indivíduos), de relatórios e de

investigações (“fact findings”), conduzidos por órgãos oficiais. o ponto central, no caso do

citado pacto, é a existência e a atuação do comitê de direitos humanos, composto de 18

membros, eleitos a título pessoal, portanto, sem a qualidade de delegados dos estados, mas

na condição de serem nacionais dos estados partes do pacto, “pessoas de elevada reputação

moral e reconhecida competência em matéria de direitos humanos, levando-se em

consideração a utilidade da participação de algumas pessoas com experiência jurídica”

(art. 28 § 2o do pacto sobre direitos civis e políticos). o procedimentos de controle se

encontram centrados na obrigação de os estados partes apresentarem relatórios periódicos

sobre o adimplemento de seus deveres constantes no pacto, os quais são examinados pelo

comitê, que encaminha suas próprias observações aos estados “sub studio”, em particular

no que respeita a falhas no adimplemento das obrigações, com suas recomendações; segue-

se uma fase de os representantes dos estados formularem suas próprias observações às

observações do comitê, em documentos escritos, e de responderem, oralmente, aos

questionamentos de delegados de outros estados. após este diálogo, sem dúvida construtivo

entre o comitê e o representante do estado (na verdade, não se trata de qualquer contencioso

acusatório!), nos termos do art. 41 do pacto analisado, sob reserva do consentimento

expresso dos estados envolvidos no referido relatório, e após o esgotamento de instâncias

de bons ofícios por parte do comitê, podem um estado ou grupo de estados apresentar uma

“comunicação” (na verdade, autêntica reclamação) contra aquele, a qual será examinada

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por uma comissão de conciliação, composta de 5 representantes de outros estados, cujo

relatório é comunicado, pelo comitê, às partes envolvidas. para os estados que

subscreveram o primeiro protocolo facultativo referente ao pacto sobre direitos civis e

políticos (do qual o brasil não é parte), confere-se ao comitê os poderes de receber

“comunicações” (leia-se: queixas) de particulares (indivíduos ou organizações não

governamentais) que se pretendem vítimas de violações dos direitos garantidos por aquele

instrumento internacional. neste caso, o exame da reclamação é feito em caráter

confidencial, sendo que tanto os estados envolvidos, quanto os particulares, não podem

participar das deliberações, as quais, quanto a uma decisão sobre o mérito, dependem: a)

do esgotamento pela vítima dos recursos no ordenamento jurídico local, caso aqueles sejam

eficazes e estejam a ela disponíveis (a regra do esgotamento prévio); b) a ausência de

procedimentos semelhantes e paralelos em outras instâncias internacionais e c) a

posterioridade da violação do direito, quanto à entrada em vigor do procedimento em

relação ao estado envolvido.

deve notar-se que o sistema dos mecanismos previstos nas convenções, embora com

grande criatividade no que respeita aos meios de atuação dos comitês (na verdade, a

interação de procedimentos de aconselhamento, conciliação, investigação e de busca de

soluções negociadas, com a interveniência de um organismo composto de peritos),

apresenta grandes falhas, tendo em vista que os estados, além de não estarem vinculados a

uma aceitação expressa da competência daqueles comitês, tendo em vista a facultatividade

de reconhecerem os seus poderes, devem, ainda, aceitar de boa fé, as “constatações” dos

mesmos. a possibilidade de um estado trazer ao conhecimento dos comitês temáticos

violações de outros estados, limita-se à questão da proteção dos nacionais daquele, o que de

certa forma, “politiza” o tratamento de questões, ao dar-lhes a conotação de proteção

diplomática, as quais, no entanto, deveriam ser tratadas no nível neutro, da proteção

indiscriminada dos direitos das pessoas humanas. o ponto mais fraco do sistema, contudo,

refere-se ao seguimento das constatações e a aplicação das medidas recomendadas, no

interior dos estados. dentro de tal espectro, deve notar-se que a partir de 1990, o comitê de

direitos humanos do pacto de direitos civis e políticos, nomeou um relator especial, com as

funções de verificar o seguimento da aplicação das recomendações do mesmo, no interior

dos ordenamentos jurídicos nacionais.

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no que respeita aos mecanismos não convencionais, representam eles, na atualidade,

um grande aperfeiçoamento do sistema de proteção internacional aos direitos humanos, em

nível global; na verdade, são os responsáveis pela veiculação mundial das violações dos

direitos humanos, portanto, um fator da grande publicidade internacional e de mobilização

da opinião pública internacional, com os reflexos na tomada de providências por parte dos

estados que violam, eles mesmos aqueles direitos, ou que permitem, por uma atitude laxa

ou de complacência, que sejam violados, por suas autoridades internas. o que mais importa

observar é que os mecanismos não convencionais, instituídos por simples decisões da

comissão de direitos humanos da onu, e por ela aplicados, de maneira diuturna,

diferentemente daqueles previstos nas convenções temáticas e com a atuação dos comitês,

repousam na possibilidade de independerem, para seu funcionamento, de qualquer

aceitação dos estados, sejam eles partes ou não dos tratados e convenções sobre direitos

humanos, que estejam sob exame daquela comissão. os mecanismos não convencionais

foram inaugurados com a resolução 1235 do ecosoc (1967), adotada a partir das

reivindicações dos países africanos, de considerar-se a escandalosa situação do “apartheid”

na África do sul, face, inclusive, à então recentemente adotada convenção internacional

sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, de 196547; o fato mais

importante e que importou numa universalização destes procedimentos, foi a adoção pelo

ecosoc da resolução 1503 (xlviii) de 1970, intitulada “procedimento para lidar com

comunicações relativas a violações de direitos humanos e liberdades fundamentais”48, que

permitiu petições diretas de indivíduos e dispensou o requisito de aceitação pelos estados

dos mecanismos então instituídos. na sua essência, tratava-se da formação de grupos de

trabalho, para exame das situações “sub studio”, em procedimentos confidenciais, no nível

da comissão de direitos humanos, sendo que a grande sanção prevista para as violações era

a publicidade, que era dada, porém no nível do órgão colegiado maior, o ecosoc. este

sistema, que passou a ser conhecido como “controle confidencial”, evoluiu para outro, o

47 tal fato se daria com a adoção da resolução 1235 do ecosoc (1967), “questão da violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais, incluindo políticas de discriminação racial e segregação e de apartheid em todos os países, com referência particular aos países e territórios coloniais independentes”, cujo texto traduzido em português se encontra apud josé augusto lindgren alves, a arquitetura internacional dos direitos humanos, são paulo, ftd, 1997, p. 258-948 uma análise competente e detalhada da resolução 1503 de 1970 do ecosoc, “procedimento ..., encontra-se feita pelo embaixador josé augusto lindgren alves, apud a arquitetura internacional dos direitos humanos, id. ibid, p. 247-50, onde a p. 259-62, se encontra seu texto em português.

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denominado “procedimentos ostensivos”49, instituídos por várias decisões do ecosoc (em

particular, basicamente consistente na nomeação de um grupo especial de peritos (ou seja,

um grupo de trabalho no interior da comissão dos direitos humanos da onu), designados

para um tema específico e num país específico, e com os poderes de realizar investigações,

inclusive no interior dos estados contra os quais haja suspeitas de violações das normas

internacionais: tais procedimentos foram utilizados no caso de violações na África do sul,

em israel e no chile do general pinochet. enfim, um terceiro tipo de procedimento surgiu em

1980, com a constituição de um grupo de trabalho sobre desaparecimentos forçados ou

involuntários, para monitorar a situação dos direitos humanos no brasil, argentina,

guatemala e uruguai e que foram disciplinados pela resolução 1996/46 da comissão de

direitos humanos, ementada “direitos humanos e procedimentos temáticos”50: trata-se do

procedimento de relatores temáticos, com uma “jurisdição” sobre todos os estados

membros ou não membros da onu. subordinados a um tema, os relatores têm competência

para investigar as situações no interior dos estados, com poderes de emitirem um

comunicado urgente aos governos, no sentido de restabelecer-se uma situação de violação

dos direitos protegidos. assim, foram estabelecidos alguns relatores especiais, dentre outros,

nos temas de tortura, sobre intolerância religiosa, sobre o uso de mercenários como fator

de violação dos direitos humanos e empecilhos ao direito dos povos à autodeterminação, e

ainda sobre venda de crianças e prostituição infantil... destaque-se a grande publicidade que

os procedimentos com relatores temáticos gozam, na mídia internacional. tem sido através

da atuação dos procedimentos por relatores temáticos, que o governo brasileiro tem sido

cobrado “a respeito do assassinato de menores, de ameaças a testemunhas, de homicídios,

de brutalidades contra pessoas detidas, de atos de violência e assassinatos de líderes rurais,

indígenas e movimentos da sociedade civil”51.

há diferenças entre os procedimentos estabelecidos no protocolo facultativo do

pacto de direitos civis e políticos, e os que fr9am constituídos pela diplomacia parlamentar

no ecosoc e na comissão de direitos humanos, quer dizer, aqueles constantes das

mencionadas resoluções 1235 e 150352. o que importa notar é a constante aplicação das

49 uma competente a pormenorizada análise dos controles ostensivos é realizada pelo embaixador josé augusto lindgren alves, a arquitetura internacional dos direitos humanos, id., ibid, p. 250-58. 50 o texto desta resolução da cdu da onu encontra-se apud josé augusto lindgren alves, a arquitetura internacional dos direitos humanos, id. ibid, p. 262-65. 51 cf. josé augusto lindgren alves, os direitos humanos como tema global, id. ibid., p. 67.52 veja-se uma breve análise de tais diferenças, in prof. jaime ruiz de santiago, “o direito dos refugiados em

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resoluções 1235 e 1503, dada sua informalidade e pelo fato de não dependerem de uma

aceitação expressa por parte dos estados que se encontram sob exame, no relativo à sua

inadimplência das obrigações internacionais.

foi, contudo, no nível da regulamentação regional da proteção dos direitos humanos,

que a evolução das normas internacionais atingiu seu maior refinamento, no que respeita à

declaração dos direitos dos indivíduos e deveres dos estados e, sobretudo, no

aperfeiçoamento das técnicas de verificação de sua adimplência pelos estados. ao mesmo

tempo em que na europa então dita “ocidental”, os estados buscavam reconstruir suas

economias, através de novas técnicas de cooperação econômica regional53, com a

instituição de órgãos de integração econômicas subregionais, como as comunidades

européias54 e a “european free trade area” (dotando as primeiras de um tribunal em

luxemburgo), ao mesmo tempo definiam, em termo precisos, os direitos humanos, em dois

grandes tratados multilaterais: a convenção européia para a proteção dos direitos humanos e

das liberdades fundamentais, assinada em roma, a 04/11/1950 e a carta social européia,

adotada em turim, a 18/10/1961, ambas por iniciativa do conselho da europa (organização

européia, que se compõe dos ministros da justiça dos países dela integrantes, cujo número

incluiu e ultrapassa o número de estados membros daquelas organizações regionais de

integração econômica regional). ressalte-se que tal conjunto normativo seria dotado, já no

seu nascedouro, de poderosos instrumentos de verificação da adimplência de suas normas,

através da instituição de uma comissão européia de direitos humanos (organismo composto

de representantes dos estados partes, porém escolhidos por suas qualidades

sua relação com os direitos humanos e em sua evolução histórica”. in: antônio augusto cançado trindade, gérard peytrignet e jaime ruiz de santiago, as três vertentes da proteção internacional dos direitos humanos- direitos humanos, direito humanitário, direito dos refugiados, id., ibid., p. 242-4.53 julgamos da mais alta relevância o fato de que os direitos humanos foram definidos no mesmo momento histórico em que a europa ocidental definia sua reconstrução econômica. um dos principais aspectos, foi a emergência quase que simultânea de dois tribunais internacionais regionais: a corte de estrasburgo (direitos humanos) e a corte de luxemburgo (integração econômica regional). para um estudo de tais fenômenos, veja-se nosso trabalho “a união européia, o mercosul e a proteção dos direitos humanos”, texto elaborado a partir da apresentação oral, no tema correspondente à sua denominação, efetuada por ocasião do seminário “direitos humanos e mercosul”, organizado pela procuradoria geral do estado de são paulo e pela faculdade de direito da puc-sp, de 07 a 09 de agosto de 2000, no “campus” desta pontifícia universidade, em são paulo, sp. no prelo de publicação, provavelmente com a denominação do referido seminário, sob responsabilidade da mencionada procuradoria geral do estado de sp.54 foram três as comunidades instituídas, através de dois grandes tratados multilaterais: a convenção de paris de 18 de abril de 1951, que instituiu a comunidade européia do carvão e do aço, ceca, e o tratado de roma de 25 de março de 1957, que instituiu a comunidade econômica européia, cee, e a comunidade européia da energia atômica, ceea ou euratom.

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personalíssimas55), e de uma corte européia de direitos humanos (juizes internacionais

independentes), ambos sediados em estrasburgo. deve ser igualmente ressaltado, como um

fato de extraordinária importância para a proteção internacional dos direitos humanos, que,

em data relativamente recente, o sistema normativo europeu sofreria um grande

aperfeiçoamento, a partir de 1994, com a adoção do protocolo 11 e com as posteriores

modificações introduzidas pelo acordo europeu relativo a pessoas que participam nos

procedimentos da corte européia dos direitos humanos, firmado em estrasburgo, a 05 de

maio de 1997; nos termos de tais reformas, foi suprimida a comissão européia (que tinha a

incumbência de, entre outras, examinar e decidir sobre o encaminhamento à corte européia

das reclamações de indivíduos contra os estados partes) e estendeu-se a competência da

corte européia dos direito humanos, para o fim de poder receber, diretamente, as

reclamações dos indivíduos contra quaisquer estados partes (inclusive os das

nacionalidades dos reclamantes ou de quaisquer outras nacionalidades). o texto da

convenção européia para a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais,

assinada em roma, a 04/11/1950, tal qual vigente na atualidade, portanto, com as

modificações introduzidas com os mencionados atos internacionais, especialmente o

protocolo 11, se encontra na internet, no “site”: www.dhnet.org.br.

o sistema europeu ocidental, antes das reformas deflagradas após o referido

protocolo 11, serviria de modelo para o continente americano, onde, a 22/11/1969, seria

assinada a convenção americana sobre direitos humanos, em san josé da costa rica

(conhecida como pacto de san josé), ao final de uma conferência internacional “ad hoc”,

realizada sob a égide da organização dos estados americanos (oea). consagrou-se a técnica

da declaração formal dos direitos protegidos, através de um articulado preciso, bem como

da instituição de uma duplicidade de órgãos de verificação da adimplência daqueles

direitos, ou seja, uma comissão composta de sete pessoas eleitas pela oea, a comissão

interamericana de direitos humanos56, sediada em washington e de um tribunal

55 interessante observar que o protocolo n o 8 adicionaria um § 3o ao texto primitivo da convenção européia, claramente calcado no pacto de san josé (veja-se além, no presente capítulo), assim redigido: “os candidatos deverão gozar da mais alta reputação moral e reunir as qualificações exigidas ao exercício de altas funções judiciais ou serem pessoas de reconhecida competência em direito nacional ou internacional”. deve notar-se que a comissão européia seria extinta com o protocolo 11, como será dito mais além. o texto do protocolo no 8 encontra-se apud antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, id. ibid., p. 456-61.56 o estatuto da comissão interamericana de direitos humanos foi aprovado pela resolução ag/res. 447 (ix-079) adotada pela assembléia geral da oea, no seu nono período ordinário de sessões, realizado em la paz, na

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internacional, a corte interamericana de direitos humanos, composta de sete juizes

nacionais dos estados membros da oea, a qual seria, em data posterior, sediada em san josé,

na costa rica57. o brasil veio a aderir à convenção americana de direitos humanos, somente a

25/09/1992, tendo a mesma sido promulgada no país, pelo decreto nº 678 de 06/11/1992;

na ocasião, o brasil valeu-se da faculdade de não reconhecer “como obrigatória, de pleno

direito e sem convenção especial, a competência da corte em todos os casos relativos à

interpretação ou aplicação da convenção” (art. 62 § 1o do pacto de san josé). deve notar-se

que a 10 de dezembro de 1998, conforme lhe faculta o mesmo art. 62 do pacto de san josé,

após o referendo de aprovação antecipada dada pelo congresso nacional, através do decreto

legislativo no 89 de 03/12/1998, o governo brasileiro passaria nota ao secretário geral da

oea, depositário da convenção de san josé, segundo a qual o brasil daria “reconhecimento

da competência obrigatória da corte interamericana de direitos humanos em todos os

casos relativos à interpretação ou aplicação da convenção americana de direito humanos

para fatos ocorridos a partir do reconhecimento, de acordo com o previsto no parágrafo

primeiro do art. 62 daquele instrumento internacional”58.

no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, os procedimentos de

verificação do adimplemento das normas do pacto de san josé, se encontram centrados na

atuação da comissão interamericana dos direitos humanos, como se disse, órgão composto

de 7 membros “que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em

matéria de direitos humanos” (art. 34 do pacto citado), com mandato de 4 anos,

reconduzíveis uma única vez, eleitos pela oea, por propostas dos seus estados membros.

com poderes de receber comunicações de estados partes (na condição de haver o

reconhecimento de tais poderes, pelo estado a respeito do qual houver tal comunicação), ou

petições de qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental

legalmente reconhecida em um ou mais estados membros da oea, que contenham denúncias

bolívia, em outubro de 1979. seu texto, em português, encontra-se apud flávia piovesan e luiz flávio gomes, op. cit., p. 420-7.57 o estatuto da corte interamericana de direitos humanos foi aprovado pela resolução ag/res. 448 (ix-0/79), adotada pela assembléia geral da oea, no mesmo nono período ordinário da assembléia geral da oea, mencionada na nota de rodapé anterior. seu texto, em vernáculo, se encontra no mesmo livro citado no referido rodapé, luiz flávio gomes e flávia piovesan, coordenadores, op. cit, id., a p. 428-52.58 o texto do decreto legislativo no 89 de 03/12/1998, juntamente com a mensagem do presidente da república e da exposição de motivos do ministério das relações exteriores, encontra-se publicado no diário oficial da união, de 04/12/1998, p. 2, e se acha igualmente reproduzido apud luiz flávio gomes e flávia piovesan, coordenadores, op. cit., id., p . 437-441.

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ou queixas de violações do pacto de san josé, cometidas por um estado-parte (art. 44). são

condições de recebimento das comunicações e petições: a) que hajam sido interpostos e

esgotados os recursos da jurisdição interna de acordo com os princípios de direito

internacional geralmente reconhecidos; b) que seja apresentada dentro do prazo de seis

meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido

notificado da decisão definitiva (evidentemente, em relação aos ordenamentos jurídicos

nacionais dos estados partes); c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja

pendente de outro processo de solução internacional e d) que, nos casos da petição de

particulares, haja as identificações dos mesmos (art. 46 § 1o ). os requisitos enumerados em

(a) e (b) poderão se dispensados nas hipóteses de: “a) não existir na legislação interna do

estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção de direito ou direitos que

se alegue tenham sido violados; b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em

seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de

esgotá-los e c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos”

(art. 46 § 2o). admitidas a comunicação ou a petição, após solicitar informações ao estado

ao qual pertença a autoridade apontada como responsável pela violação alegada, e tendo

decidido que há procedência ou admissibilidade das mesmas, poderá a comissão proceder a

uma investigação “in loco”59 e pedir informações ao estado (as quais poderão ser fornecidas

por escrito ou exposições orais que apresentem os interessados); finalmente, a comissão

poderá colocar-se à disposição das partes interessas, a fim de chegar-se a uma solução

amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos humanos reconhecidos na convenção

de san josé (art. 48). nos casos graves e urgentes, a investigação é realizada imediatamente

(art. 49). alcançada uma solução amistosa, a comissão redigirá um relatório, a ser

encaminhado ao interessado e aos estados partes, e posteriormente, à oea, para publicação

(art. 49). se não se chegar a uma solução amistosa, será redigido um relatório pela

59 o art. 48 alínea d assim está redigido: se o expediente não houver sido arquivado, e com o fim de comprovar os fatos, a comissão procederá, com conhecimento das partes, a um exame do assunto exposto na petição ou comunicação. se for necessário e conveniente, a comissão procederá a uma investigação para cuja eficaz realização solicitará, e os estados interessados lhe proporcionarão, todas as finalidades necessárias”. o brasil apresentou a seguinte reserva, que consideramos interpretativa e portanto permitida pelo art. 75 da convenção (reservas segundo as disposições da convenção de viena sobre direito dos tratados, de 1969, que no seu art. 19 determina ser a reserva permitida e ser compatível com o objeto e a finalidade do tratado): o governo brasileiro entende que o art. 43 e 48 alínea d, não incluem o direito automático de visitas e inspeções “in loco” da comissão interamericana de direitos humanos, as quais dependerão de anuência expressa do estado” (decreto 678 de 06/11/1992, , que promulga a convenção).

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comissão, com a exposição dos fatos e suas conclusões, com eventuais proposições e

recomendações, o qual será encaminhado aos estados interessados, aos quais não será

facultado publicá-lo (art. 50 e §§). em três meses, se não tiver havido uma solução do caso

pelo estado ou se não houver o caso sido remetido à corte interamericana de direitos

humanos, a comissão poderá emitir sua opinião e conclusões, com recomendações

pertinentes e a fixação de um prazo para o estado tomar as medidas que lhe competem para

remediar a situação examinada; após os mencionados três meses, a comissão decidirá, pelo

voto da maioria absoluta, se o estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou

não seu relatório (art. 51 e §§).

no que concerne à corte interamericana de direitos humanos, como se disse, é ela

composta de “sete juizes nacionais dos estados membros da oea, eleitos a título pessoas

dentre os juristas da mais alta autoridade moral, de reconhecida competência em matéria

de direitos humanos e que reunam as condições requeridas para o exercício das mais

elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do estado do qual sejam nacionais, ou do

estado que os propuser como candidatos” (art. 52 § 1o). eleitos por um período de seis

anos, reelegíveis uma única vez, gozam, assim como os membros da comissão

interamericana dos direitos humanos, de privilégios e imunidades reconhecidos aos agentes

diplomáticos pelo direito internacional, e, no exercício de seus cargos, igualmente dos

privilégios diplomáticos necessários para o desempenho de suas funções (art. 70)60. a

competência da corte é dupla: a) em matéria consultiva, a pedido dos estados membros da

oea em matéria de interpretação do pacto de san josé ou de outros tratados concernentes à

proteção dos direitos humanos nos estados americanos, e ainda sobre a compatibilidade

entre qualquer das leis internas e os mencionados instrumentos internacionais, ou a pedido

da reunião de consultas dos ministros das relações exteriores deste estados e da comissão

consultiva de defesa da oea, previstas no cap. x da carta da oea (art. 64), e b) em matéria

contenciosa, por provocação de um estado-parte ou da comissão interamericana de direitos

humanos, neste caso, esgotados os procedimentos descritos no parágrafo anterior (art. 61 e

§§), em qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições do pacto de san

60 os privilégios diplomáticos necessários para o desempenho de suas funções referem-se a fenômenos que ultrapassam as pessoas envolvidas (e que dizem respeito às imunidades diplomáticas, portanto, as mais amplas, e a inviolabilidade das pessoas e de seus familiares e de seus bens particulares), como a questão da inviolabilidade de locais de trabalho, de arquivos, de escritos e de comunicações com o exterior. veja-se o cap. 12 deste curso.

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josé, que lhe seja submetido (art. 62 § 3o), inclusive com poderes de decretação de medidas

provisórias em casos de extrema gravidade e urgência (art. 63 § 1o). no exercício de sua

competência contenciosa, no julgamento dos casos, no número dos juizes, deverá constar

sempre um juiz da nacionalidade do estado-parte ou dos estados-partes, no caso submetido

à corte, e se estes não figurarem no rol dos juizes em função, serão nomeados juizes “ad

hoc” com as qualificações adequadas (art. 55 e § 1o, § 20 e § 3o)61. tanto no julgamento de

medidas provisórias, quanto no julgamento “de meritis”, a corte poderá decidir que houve

violação de um direito ou liberdade protegidos pelo pacto de san josé, e determinar que se

assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados; determinará,

igualmente, se tal for procedente, que sejam reparadas as conseqüências da medida ou

situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de

indenização compensatória e justa à parte lesada, compensação essa que poderá ser

executada no país respectivo, pelo processo interno vigente para a execução de sentença

contra o estado (art. 63 § 2o e art. 68 § 2o). a sentença da corte é definitiva e inapelável,

deverá ser motivada (com votos dissidentes ou individuais apresentados em separado),

admitidos embargos declaratórios, e será notificada às partes no caso e transmitida aos

estados-partes do pacto de san josé (art. 67 e art. 69). finalmente, consta do pacto de san

josé, a obrigação de que “os estados-partes na convenção comprometem-se a cumprir a

decisão da corte em todo caso em que forem partes” (art. 68 § 1o).

na África, em janeiro de 1982, seria aprovada pela conferência ministerial da

organização da unidade africana, reunida em banjul, no quênia, a carta africana dos direitos

humanos e dos povos, denominada “carta de banjul”; a qual seria formalmente subscrita

pelos chefes de estado e de governo dos estados membros daquela organização, na xviii

sessão de sua assembléia, reunida em nairobi, igualmente no quênia, a 28/06/1981. adota

ela a técnica da declaração formal dos direitos protegidos (note-se a introdução, no universo

dos direitos protegidos, de certos “direitos dos povos”, como a livre disposição de seus

recursos naturais, ao desenvolvimento, à paz e à segurança, bem como o direito a um meio

ambiente satisfatório), institui a comissão africana dos direitos humanos e dos povos,

composta de 11 membros, com personalidades africanas, eleitas a título pessoal

61 a presença necessária de um juiz da nacionalidade de um estado “sub judice”, seja o juiz em exercício, seja um juiz “ad hoc” é norma de direito internacional, conforme se pode verificar pelo estatuto da corte internacional de justiça, art. 31 e §§ (o qual é repetição da norma que regia a antiga corte permanente de justiça internacional, que funcionou no entre-guerras).

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(independentemente de sua nacionalidade), com as funções de verificar a adimplência das

obrigações convencionadas, por parte dos estados partes, através da publicação de

relatórios e de notificações endereçadas aos estados. no sistema africano de proteção aos

direitos humanos, com a vigência internacional regional do protocolo à carta africana de

direitos humanos e dos povos sobre o estabelecimento de uma corte africana de direito

humanos e dos povos (projeto adotado em setembro de 1995, por um comitê de peritos

reunidos em cape town, na África do sul, e a partir de 1997, em exame pela comissão

africana dos direitos humanos e dos povos), passará o mesmo a contar com uma instância

jurisdicional, para a verificação do cumprimento dos deveres e obrigações, em nível

regional, em coordenação com os poderes da comissão africana dos direito humanos e dos

povos.

com pesar, deve-se registrar que inexiste qualquer tratado ou convenção de proteção

internacional subregional aos direitos humanos, no continente asiático. as explicações têm

variado, desde argumentos de que se trata de uma região onde os aspectos eminentes de

direitos das coletividades organizadas na forma de estados, primam sobre os direitos dos

indivíduos, até outras mais elaboradas, como uma proteção existente, porém distinta e

inusitada, conforme os moldes vigentes nas demais regiões do mundo. a nosso ver, tais

justificativas são totalmente inconvincentes e, portanto, incompatíveis com a consciência

generalizada na comunidade de todos os estados da atualidade.

outra lacuna notável, esperamos que no presente momento seja ela um fato da

história passada, se refere à antiga área de influência da extinta urss, a qual era justificada

pela doutrina então dominante naqueles espaços, por considerarem os então países

socialistas, a proteção dos direitos humanos, através de normas internacionais (em

particular, os direitos civis e políticos), como aspectos de uma filosofia burguesa,

individualista e decadente, própria dos países capitalistas, e que, portanto aqueles direitos já

estariam consagrados nos sistemas das denominadas “democracias populares”, as quais já

contemplariam, na sua própria essência, em particular, os direitos econômicos e sociais (e,

sendo assim, ao ver daqueles estados, seria, quando muito supérflua a existência de tratados

ou convenções internacionais globais ou regionais que os declarassem e instituíssem

mecanismos para a proteção dos mesmos). por outro lado, era um posicionamento comum

dos países do bloco socialista, sobretudo no auge da guerra fria, que os assuntos de direitos

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humanos constituiriam domínio reservado dos estados, e que, nos termos do art. 2o § 7o da

carta da onu62, estariam, portanto, excluídos do poder regulatório da onu e dos tratados

multilaterais que sob sua égide fossem adotados. na medida em que países do antigo bloco

soviético se tornem membros do sistema regional europeu da união européia, (e de modo

muito especial, nas comunidades européias), e sendo condição essencial para tal filiação,

um efetivo comprometimento dos estados com a decisiva proteção dos direitos humanos,

nos moldes da convenção européia para a proteção dos direitos humanos e liberdades

fundamentais de roma, de 1950, e da carta social européia de turim, de 1961, por expresso

mandamento do tratado da união européia (maastricht, 1992), reafirmado pelo tratado de

amsterdam de 199763, que consagraram a denominada “cláusula democrática”64, é de

esperar-se que aquela lacuna no continente europeu seja sanada, mesmo porque, são

extremamente poderosas as sanções previstas para os estados, sejam os já participantes,

sejam os postulantes, que não respeitem as normas européias de proteção aos direitos

humanos65.

os direitos humanos consagrados nos diversos diplomas normativos internacionais,

na maioria, constituem uma unidade conceitual, e o fato de eventualmente haver vários atos

62 relembre-se o disposto no art. 2o § 7o: “nenhum dispositivo da presente carta autorizará as nações unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer estado ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução nos termos da presente carta... 63 para um estudo do condicionamento entre a participação da união européia e o referido comprometimento com os direitos humanos, veja-se nosso trabalho já referido: “a união européia, o mercosul e a proteção dos direitos humanos”, in: “direitos humanos e mercosul”, id. ibid.64 a “cláusula democrática” consta expressamente no § 2o do art. f do tratado de maastricht de 1992 e assim se acha escrita, no tratado de amsterdam de 1997, no seu art. seu art. 6o § 2o: “a união respeita os direitos fundamentais, tais quais se encontram garantidos pela convenção européia de proteção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, assinada em roma a 04 de novembro de 1950 e tais quais resultem das tradições constitucionais comuns aos estados membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário” ( em nossa tradução livre do texto do tratado de amsterdam, conforme: “version consolidée du traité sur l’union européenne”, apud le traité d’amsterdam, paris, dalloz, 1998, p. 304-392, citação retirada de p. 307.65 tratar-se-ia da aplicação do art. 7o do tratado de amsterdam (ex. art. f.1 de maastricht), assim redigido: “§ 1o – o conselho, reunido em nível de chefes de estado ou de governo e decidindo por unanimidade, por proposta de um terço dos estados membros ou da comissão, e após parecer conforme do parlamento europeu, pode constatar a existência de uma violação grave e persistente por um estado membro dos princípios enunciados no artigo 6o parágrafo 1o, após haver convidado o governo deste estado membro a apresentar suas observações sobre a matéria”. § 2o - “desde que uma tal constatação seja feita, o conselho, decidindo por maioria qualificada, pode decidir suspender certos direitos decorrentes da aplicação do presente tratado, em relação ao estado membro em questão, neles compreendidos o direito do representante do governo deste estado membro no seio do conselho. ao assim decidir, o conselho levará em conta as eventuais conseqüências de tal suspensão sobre os direitos e obrigações das pessoas físicas e morais. ”as obrigações que incumbem ao estado membro em questão, decorrentes do presente tratado, quaisquer que sejam as circunstâncias, permanecem exigíveis deste estado”. (em nossa tradução livre, conforme fonte mencionada no parágrafo anterior).

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normativos que lidam com os mesmos direitos, somente serve para reforçar sua importância

e a busca de mecanismos complementares para sua defesa. por outro lado, a concomitância

de direitos humanos reconhecidos em tratados e convenções internacionais, mundiais e

regionais, e ao mesmo tempo vigentes nos ordenamentos jurídicos internos dos estados,

constitui, de igual forma, uma garantia de sua eficácia, tendo em vista que os ordenamentos

jurídicos internos e internacionais devem ser considerados como complementares uns dos

outros.

parte importante da doutrina internacionalista, na qual se incluem os eminentes

jusfilósofos várias vezes referidos neste trabalho, os professores n. bobbio e celso lafer,

costuma classificar os direitos humanos, segundo “gerações” ou “fases”. conforme o prof.

bobbio: “num primeiro momento, afirmam-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles

direitos que tendem a limitar o poder do estado e reservar para o indivíduo, ou para os

grupos particulares, um esfera de liberdade em relação ao estado; num segundo momento,

foram propugnados os direitos políticos, os quais- concebendo a liberdade não apenas

negativamente, como não impedimento, mas positivamente, como autonomia- tiveram

como conseqüência a participação cada vez mais ampla, generalizada e freqüente dos

membros da comunidade no poder político (liberdade no estado); finalmente, foram

proclamados os direitos sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências-

podemos mesmo dizer, de novos valores- como os do bem-estar e da igualdade não apenas

formal e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do estado”66.

tal concepção, confessadamente elaborada numa perspectiva histórica, encontra-se

refletida no pensamento do prof. celso lafer, segundo o qual, na primeira geração,

encontram-se os direitos elaborados na declaração francesa de 1789, “aos quais a herança

liberal foi incorporando, com base na liberdade de associação reconhecida na primeira

emenda da constituição americana, os direitos individuais exercidos coletivamente (dentre

eles, o direito à greve, o direito de criação de partidos políticos, etc.)”67. esta primeira

geração, “viu-se igualmente complementada historicamente pelo legado do socialismo,

vale dizer, pela reivindicação organizada dos desprivilegiados, afirmativa do direito de

participar, como observa miguel reale, do “bem-estar social”, entendido como os bens que

os homens, através de um processo que não é apenas individual mas também coletivo, vão

66 n. bobbio, a era dos direitos, id. ibid., p. 32-3.67 c. lafer, ensaios liberais, id., ibid., p. 40.

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acumulando no tempo”68. enfim, os direitos de terceira geração, provenientes da “crescente

interdependência dos estados e das sociedades e a velocidade do progresso científico-

tecnológico, que significa a maior capacidade de o homem dominar e destruir a natureza e

os outros homens, traduziram-se em novos riscos e possibilidades para a existência dos

indivíduos”; dentre eles se contam: 1o) o direito ao meio ambiente (esforço de disciplinar

técnicas da sociedade industrial), 2o) o direito à paz (viabilização da sobrevivência da

sociedade, face á letalidade das armas de destruição maciça existentes na atualidade) e 3o)

o direito ao desenvolvimento, “que é um objetivo para tornar realizável, em escala global,

os benefícios almejados pelos direitos de segunda geração”69.

em nossa opinião, esta visão dos direitos humanos, sem dúvida fortemente

influenciada pelo modelo liberal da revolução francesa, tendo em consideração o tríptico

dos ideais democráticos de 1789, “liberté”, “égalité” e “fraternité”, deve ser interpretada

num contexto histórico. os denominados direitos liberais, como o direito à vida e o direito à

liberdade, correspondentes ao lema da “liberté”. os da segunda geração compreendem

aqueles direitos subjetivos do indivíduo, enquanto componentes de uma unicidade dentro

da sociedade, exigíveis do próprio estado (direito à saúde, à educação, ao trabalho), que

eqüivaleriam à transposição do ideal da “égalité”. enfim, os da terceira geração

significariam aqueles direitos que a comunidade como um todo, pode exigir do estado, no

que respeita aos ordenamentos jurídicos nacionais ou às relações do mesmo com outros

estados, (direito à paz, a um meio ambiente sadio, ao desenvolvimento de toda nação),

reflexos do postulado normativo da “fraternité”, o qual impõe aos estados um dever de

cooperação internacional.

outra distinção, menos preocupada com aspectos dos momentos históricos em que

as normas internacionais de proteção aos direitos humanos foram geradas, baseia-se no

arrolamento que fizerem os dois pactos da onu de 1966: a) direitos civis e políticos e b)

direitos econômicos, sociais e culturais. segundo a corrente doutrinária que os divide de tal

forma, os direitos civis e políticos, denominados igualmente liberdades públicas, ou direitos

liberais, seriam aqueles inerentes à pessoa humana e, em qualquer circunstância, sempre

exigíveis aos estados, sendo a regra, seu exercício imediato, conforme definidos no pacto,

ainda que dependam de normas internas dos estados (os quais se comprometem a tornar

68 c. lafer, ensaios liberais, id. ibid., p. 4169 c. lafer, ensaios liberais, id. ibid., p. 42-3.

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aqueles direitos efetivos, cf. art. 2o § 2o do pacto sobre direitos civis e políticos); assim,

dentre outros, os direitos à vida, ao reconhecimento da personalidade do indivíduo, à

liberdade e segurança pessoal, ao trabalho livre, à integridade física, à liberdade de

pensamento e de opinião, à livre circulação, à liberdade de reunião, de participação nas

atividades políticas e em partidos políticos e à igualdade perante tribunais e cortes de

justiça.

os direitos econômicos, sociais e culturais não seriam, tal qual definidos no pacto da

onu a eles referentes, imediatamente exigíveis dos estados, os quais, no entanto se

encontram sob o dever de “adotar medidas, tanto por esforço próprio, como pela

assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico,

até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por

todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente pacto,

incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas” (art.2o § 1o do pacto sobre

direitos econômicos, sociais e culturais). assim, dentre os direitos definidos, encontram-se:

o direito ao trabalho livremente escolhido ou aceito, inclusive o de formação técnica e

profissional, e com uma remuneração justa e favorável para garantir a subsistência própria

e da família, o direito de fundar e de participar em sindicatos e de estes federarem-se em

outras organizações internas nos estados, o direito de greve, o direito da pessoa à

previdência social, à constituição de uma família, o direito a um matrimônio consentido

pelos nubentes, o direito a um nível adequado de vida para a pessoa e sua família, o direito

contra a fome e que assegure uma produção, conservação repartição eqüitativa de gêneros

alimentícios, a um elevado nível de saúde física e mental, direito à educação, gratuidade da

educação primária, participação da vida cultural e de desfrutar do progresso científico e

suas aplicações e os direitos à liberdade da pesquisa científica e à atividade criadora.

há autores que chegam, inclusive, a negar aos direitos econômicos, sociais e

culturais a natureza de verdadeiros direitos, como maurice cranston70 tendo em vista que

lhes faltariam “alguns requisitos como a praticabilidade, a universalidade e a clareza

quando às obrigações decorrentes das prescrições, quanto ao seu conteúdo e quem seja o

70 para uma descrição competente e atualizada das discussões sobre a exigibilidade direta dos direitos econômicos, sociais e culturais nos ordenamentos internos dos estados, veja-se carlos weis, direitos humanos contemporâneos, são paulo, malheiros editores, 1999., onde a p. 46 se encontra a referência a maurice cranston, o que são os direitos humanos, são paulo, difel, 1979, em particular, p. 65.

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sujeito passivo”71. ora, somente uma concepção extremamente positivista e ultrapassada,

que desconheceria a técnica moderna existente nos mais avançados sistemas jurídicos

nacionais comparados, da existência das denominadas normas programáticas, que, não só

por constarem expressamente nas constituições dos estados, mas ainda por sua própria

natureza, são autênticas normas jurídicas, portanto exigíveis dos estados,

independentemente de, no seu conteúdo, de serem auto aplicáveis ou dependentes de

regulamentação. por outro lado, a distinção seria perigosa, conforme vários autores, muito

bem referenciados por carlos weis, pois poderia servir de pretexto a uma política dos

estados de somente darem eficácia nos ordenamentos jurídicos internos, às normas do pacto

sobre direitos civis e políticos, relegando aquelas do pacto sobre direitos econômicos,

sociais e culturais, às calendas gregas, ao ver de tais estados, por não serem exigíveis, de

maneira imediata, por parte deles. nas palavras daquele jovem jurista, ao analisar uma

situação que diz respeito ao brasil, constata: “assim, o programa nacional de direitos

humanos do governo brasileiro, para justificar a não-inclusão dos direitos sociais no seu

horizonte, destaca em sua introdução, que: “o fato de os direitos civis e políticos em todas

as três gerações- a dos direitos civis e políticos, a dos direitos sociais, econômicos e

culturais e a dos direitos coletivos – serem indivisíveis, não implica que, na definição de

políticas específicas – a dos direitos civis – o governo deixe de contemplar de forma

específica de uma dessas dimensões”.

no ordenamento jurídico nacional brasileiro, a questão tem sido discutida pelos

cultores do direito constitucional, portanto, na discussão sobre o fundamento de quaisquer

outras normas internas daquele ordenamento. para um correto encaminhamento da questão,

ou seja, da natureza jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais, na perspectiva do

direito constitucional brasileiro atual, remetemos o leitor ao insuperável livro do prof. josé

afonso da silva, titular de direito constitucional da faculdade de direito da usp, em

importante obra insistentemente citada na jurisprudência dos tribunais superiores nacionais,

já na sua 3a edição revista, ampliada e atualizada, aplicabilidade das normas

constitucionais72 na qual desvenda, com maestria, a p. 68 e seguintes, existir, de longa

data, na teoria da interpretação das normas constitucionais no brasil, uma tradicional

distinção entre normas constitucionais auto-aplicáveis ou não auto-aplicáveis, ou “bastantes

71 citação apud carlos weis, direitos humanos contemporâneos, id. ibid., p. 46-7.72 josé afonso da silva, aplicabilidade das normas constitucionais, são paulo, malheiros editora ltda, 1988.

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em si” ou “não bastantes em si” (pontes de miranda) estas últimas dependentes de

legislação ordinária , teorias essas que, por sua vez, se tem baseado em famosas teorias,

como dos constitucionalistas norte-americanos, que distinguem as normas constitucionais

em “self –executing e “non self-executing”, ou de g. del vecchio que as faz distintas entre

primárias ou secundárias (as primeiras, auto-aplicáveis e as segundas, dependentes de

outras normas). assim dentro de tal perspectiva, a técnica que a constituição brasileira

adotou na regulamentação dos assuntos sob sua tutela, dentre as quais se encontram,

claramente, os direitos econômicos, sociais e culturais, se realiza sob uma tríplice tipologia:

a) as normas constitucionais de eficácia plena 73, as normas constitucionais de eficácia

contida74, e as normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida75.

na verdade, as denominadas “normas constitucionais de eficácia contida” e as

“normas de eficácia limitada ou reduzida” são um notável aperfeiçoamento de teorias sobre

a hermenêutica das normas constitucionais, de há muito desenvolvidas no sistema jurídico

brasileiro. importa notar que, ainda na leitura do prof. josé afonso da silva, há duas

subespécies de normas de eficácia limitada: 1) normas definidoras de princípio institutivo

ou organizativo e 2) normas definidoras de princípio programático, ou, simplesmente,

normas constitucionais de princípio programáticos (id. p. 118). ainda segundo o magistério

daquele professor da usp.: ”as programáticas envolvem um conteúdo social e objetivam a

interferência do estado na ordem econômica, mediante prestações positivas, a fim de

propiciar a realização do bem comum, através da democracia social. as de princípio

institutivo, têm conteúdo organizativo e regulativo dos órgãos e entidades, respectivas

atribuições e relações. têm, pois, natureza organizativa; sua função primordial é

esquematizar a organização, criação ou instituição dessas entidades ou órgãos” (op., cit.,

op. 125).

a discussão sobre a diferença de natureza das normas contidas no pacto sobre

73 nas palavras do prof. josé afonso da silva: “todas as normas que, desde a entrada em vigor da constituição, produzem todos os efeitos essenciais (ou têm a possibilidade de produzi-los), todos os objetivos visados pelo legislador constituinte, porque este criou, desde logo, uma normatividade para isso suficiente, incidindo direta e imediatamente sobre a matéria que lhes constitui objeto” (op. cit., p. 82).74 segundo o prof. josé afonso da silva, “in verbis”: “normas que incidem imediatamente e produzem efeitos (ou podem produzir, todos os efeitos queridos), mas prevêem meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida em certos limites, dadas certas circunstâncias”. (id. ibid. p. 82).75 ainda nas palavras do prof. josé afonso da silva: “são aquelas que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do estado” (id., ibid., p. 82).

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direitos econômicos, sociais e culturais, que tem grande relevância nas magnas discussões

sobre sua exigibilidade por parte dos estados, refere-se, a nosso ver, fundamentalmente a

uma questão relacionada aos ordenamentos jurídicos nacionais, em particular, como no

brasil, ao campo superior das normas constitucionais; contudo, no direito internacional, o

problema reveste-se de outra dimensão, a seguir descrita.

da mesma forma, a classificação dos direitos humanos conforme “gerações”, tem

recebido críticas, em nossa opinião, em parte, bastante procedentes, como as formuladas

por autores internacionais e, sobretudo brasileiros, para apenas citar alguns, como os

luminares doutrinadores, antônio augusto cançado trindade76, o já citado carlos weis, dalmo

de abreu dallari77 e flávia piovesan78. os argumentos de tal crítica se resumiriam a que o

conceito de “geração” seria inadequado, porquanto alguns dos direitos da segunda e terceira

geração já constavam do rol dos direitos da primeira geração, os denominados direitos

liberais, e, sobretudo, que aqueles não se originaram, tal como os filhos, destes. por outro

lado, como já apontamos, nas observações de carlos weis, anteriormente transcritas, a

reunião dos direitos humanos em gerações, conforme concebida pelo programa brasileiro

de direitos humanos (que, por sinal, faz uma curiosa simbiose entre critérios históricos, das

gerações, e dos direitos civis e políticos, confrontados com os direitos econômicos, sociais

e culturais), poderia servir de pretexto a que os estados dessem eficácia, nos ordenamentos

jurídicos nacionais, a uma geração (em particular a primeira, tradicional do

constitucionalismo liberal do séc. xviii) e deixassem os de outras gerações, para quando o

estado tivesse uma situação econômica a tal ponto desenvolvida, que pudesse aplicar os

direitos das outras gerações!

na verdade, não se pode deixar de concordar com e efetiva existência no mundo

jurídico das normas e os princípios do direito internacional dos direitos humanos,

constantes dos dois pactos da onu, solenemente declarados em várias ocasiões, em especial

naquelas particulares, onde os estados deram, de modo direito, seu reconhecimento de que

os direitos humanos são “inerentes, universais, indivisíveis e interdependentes, e enfim,

76 antônio augusto cançado trindade, na maioria de seus escritos, e em particular no seu tratado de direito internacional dos direitos humanos, id., ibid.77 dalmo de abreu dallari, em muitos de seus escritos, em particular: elementos de teoria geral do estado, 16a edição, são paulo, saraiva, 1991, e em o que são direitos das pessoas, coleção primeiros passos –14, são paulo, abril cultural/brasiliense, 1984. 78 flávia piovesan, direitos humanos e direito constitucional internacional, são paulo, max limonad, 1996.

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transnacionais”79. tal reconhecimento ainda consta de outros instrumentos bastante claros e

insofismáveis, como a proclamação de teerã, adotada no curso da conferência mundial

sobre direitos humanos, realizada naquela capital, em 1968, e, de modo mais expressivo,

na declaração de sobre direitos humanos, adotada ao final da segunda conferência

internacional sobre direitos humanos, convocada pela onu, em viena, em 1993. ressaltem-

se, inclusive, outros reconhecimento em inúmeras deliberações da assembléia geral da onu

(para somente citar: a declaração sobre o direito ao desenvolvimento, de 1986 e a

declaração sobre os direitos da criança, de 1989), do conselho de ministros do conselho da

europa (órgão responsável pela aplicação da convenção européia de direitos humanos e

liberdades fundamentais, adotada em roma, em 1950 e de seus protocolos), da oea, da união

européia, e em documentos multilaterais elaboradas durante reuniões diplomáticas da mais

alta importância, como a ata final da conferência de helsinki sobre segurança e cooperação

na europa, de 1975.

as discussões sobre a aplicabilidade direta das normas de direito internacional nos

ordenamentos jurídicos internos dos estados, se dependem ou não da manifestação expressa

das autoridades do poder executivo, com ou sem a colaboração dos poderes legislativos

dos estados, se são normas exigíveis de imediato (como as constantes no pacto sobre

direitos civis e políticos) ou se dependem de outras circunstâncias factuais e políticas,

derivadas de situações domésticas dos estados (como as do pacto sobre direitos

econômicos, sociais e culturais), não são questões pertinentes ao direito internacional

público. da mesma forma, a internalização dos mandamentos jurídicos internacionais no

interior dos ordenamentos jurídicos nacionais, pode assumir as mais diversas formas,

conforme demonstra o direito comparado, sem que ao direito internacional incumba dizer

qual a mais adequada, em que época, ou em que oportunidade. o que o direito internacional

publico disciplina, no capítulo da responsabilidade internacional dos estados, é o fato de um

estado haver ou não adimplido com seus deveres estatuídos nas suas normas, nas formas

que aquele direito especifica.

releia-se o art. 2o do pacto sobre direitos econômicos sociais e culturais de 1966, a

nosso ver, uma das chaves para o bom entendimento daquele instrumento internacional, e

79 para empregar os termos empregados por carlos weis, na caracterização dos mesmos, conforme cap. 5, “características dos direitos humanos” do seu livro mencionado, direitos humanos contemporâneos, id., ibid., p 109 e seguintes.

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que dá o verdadeiro sentido das obrigações nele incorporadas e exigíveis dos estados:

art. 2o- § 1o – cada estado-parte do presente pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direito reconhecidos no presente pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.

§ 2o – os estados-partes do presente pacto comprometem-se a garantir que os direitos neles enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

§ 3o – os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente pacto àqueles que não sejam seus nacionais.

não precisaria haver muita perspicácia para revelar-se que as obrigações

internacionais contidas nestes dispositivos, são do tipo das obrigações de resultado, que,

conforme descrevemos no cap. 9 (seção 9.1 responsabilidade internacional dos estados)

deste curso, constituem aquelas que criam tipos de deveres aos estados, os quais, no

entanto, deixam aos seus destinatários, a tarefa de escolher os meios para realizar os fins

propostos pela norma (segundo seu desejo, o que inclui, certamente, levar-se em

consideração suas peculiaridades, e suas reais possibilidades). o fato de as obrigações não

serem do tipo obrigações de conduta, nem porisso lhes retira o caráter da obrigatoriedade

jurídica na sua implementação, e conseqüente adimplemento!

por outro lado, em nossa visão, não vemos como uma abordagem que mostre, numa

perspectiva histórica e abrangente, os direitos humanos, agrupados em “gerações”, ou

“facetas”, ou “fases”, ou “perspectivas”, ou ainda, qualquer que seja outra denominação,

como um desserviço à causa da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos

direitos humanos! apoiando-nos nas confissões expressas dos jusfilósofos citados no

presente capítulo desta obra, de que se trata, naquela metodologia, de agrupar os direitos

humanos por “gerações”, antes de explicar o evolver da consciência dos direitos humanos,

na história da humanidade, e menos de dizer da natureza de cada qual. somos, portanto,

partidários da metodologia, sem preocupar-nos de tratar-se ou não de uma família,

constituída por gerações sucessivas.

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seção 2 – o direito de asilo diplomático e asilo territorial

tem sido freqüente a sinonimia entre asilo e refúgio, em parte devido a que, salvo a

américa latina, o instituto do asilo não tem um regime de regência por normas multilaterais

escritas, e também porque os próprios atos internacionais sobre asilo e mesmo legislações

internas dos estados a ele relativas, por vezes empregam termos e expressões como

“refugiado”, “buscar refúgio”, que ainda mais trazem confusão para a área. há mesmo quem

pretenda que “asilo” seja uma palavra para indicar o gênero e “refúgio” seja o indicativo da

espécie. além das origens históricas dos institutos serem totalmente distintas e sem

correlação recíproca, é mister considerar, em primeiro lugar, que houve, no sistema das

nações unidas, o desenvolvimento de um campo particular, regulado por normas

multilaterais precisas, sob a égide de uma organização que funciona sob a égide da onu, o

alto comissariado das nações unidas para os refugiados (acnur); em segundo, existe, nos

dias correntes, uma particularidade no direito internacional da américa latina, onde o asilo

é regulamentado por normas multilaterais muito especiais, que nada mais fizeram do que

cristalizar costumes já consagrados entre os países desta área. torna-se, portanto, evidente

que é necessário definir cada campo, a fim de marcar-se uma substancial diferença entre o

instituto do asilo, nas suas duas formas, o asilo territorial e o asilo diplomático e o instituto

do refúgio, conforme será visto, logo mais, neste capítulo, devendo notar-se que o

tratamento dispensado pelo direito brasileiro ao asilado e ao refugiado, constituem regimes

totalmente diferenciados.

a declaração universal dos direitos humanos reconhece expressamente o direito a

uma pessoa de “buscar asilo” em outro estado, diferente daquele sob cuja jurisdição se acha

submetido, em virtude de nacionalidade, domicílio ou residência (simples presença física).

tal fato se dá de forma direta, no art. 14 (§ 1o – “todo homem vítima de perseguição, tem o

direito de procurar e gozar asilo em outros países. § 2o – este direito não pode ser

invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crime de direito comum ou

por atos contrários aos objetivos e princípios das nações unidas”) e, por conseqüência da

aplicação do art. 13 § 2o (“todo homem tem direito de deixar qualquer país, inclusive o

próprio, e a este regressar”). na verdade, o emprego do terno “asilo” tem levado muitos

autores a dizer que designa um instituto de natureza geral, em confronto com o de

“refúgio”, que é regulamentado em normas precisas da onu. na verdade, reconhecemos que

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a regra do art. 13 § 2o da declaração universal, contempla um direito subjetivo de uma

pessoa buscar proteção sob a jurisdição de outro estado, tanto na forma de asilo quanto na

de refúgio, mas não autoriza a que se considerem os institutos como genéricos ou

específicos, conforme demonstraremos, no correr deste capítulo.

por outro lado, aquela regra do art. 14 da declaração universal, encontra-se

transcrita, de modo mais claro, na declaração americana dos direitos e deveres do homem,

adotada em bogotá, ao final da ix conferência americana, em abril de 1948, no seu art.

xxvii, verbis: “toda pessoa tem o direito de procurar e receber asilo em território

estrangeiro, em caso de perseguição que não seja motivada por delitos de direito comum, e

de acordo com a legislação de cada país e com as convenções internacionais”.

deve ser enfatizado, no entanto, que nem os dois pactos da onu de 1966, nem a

convenção européia para a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais,

adotada em roma a 04 de novembro de 1950, reconhecem o direito de asilo, conforme

definido no referido art. 14 da declaração universal. contudo, a convenção americana sobre

direitos humanos, o pacto de san josé, no seu art. 22 (“direito de circulação e de

residência”), § 7o, dá àquelas regras da declaração universal uma roupagem normativa de

uma convenção formal entre estados, nos seguintes termos: “toda pessoa tem o direito de

buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos

políticos ou comuns conexos com delitos políticos e de acordo com a legislação de cada

estado e com os convênios internacionais”. da mesma forma, a carta africana dos direitos

humanos e dos povos, de 1981, reconhece no art. 12 § 3o: “toda pessoa tem direito, em caso

de perseguição, de buscar e de obter asilo em território estrangeiros, em conformidade

coma lei de cada país e as convenções internacionais”80

a possibilidade de um indivíduo buscar subtrair-se aos poderes de autoridades

locais, em especial em situações de perseguições (justificadas ou injustificadas), ao

refugiar-se em lugares considerados sagrados, como templos, cemitérios ou outros locais

dedicados às divindades, era prática na antigüidade81. a idéia era de que tais locais estariam

protegidos pelos deuses, portanto domínio das “res sacrae”, sob as quais as autoridades

80 texto conforme antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional..., id., ibid., p. 480.81 para um competente estudo sobre os antecedentes históricos do instituto do asilo, veja-se o trabalho de josé henrique fischel de andrade, incluído, contudo, numa coletânea sobre direito dos refugiados, “breve consideração histórica da tradição que culminou na proteção internacional dos refugiados”. in: nádia de araújo e guilherme assis de almeida, coordenadores, o direito internacional dos refugiados- uma perspectiva brasileira, id., ibid., p. 99-125.

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leigas não tinham jurisdição; no cristianismo, a prática tem seqüência, e os locais como as

igrejas, mosteiros, santuários e igualmente os cemitérios, passaram a ser considerados como

fora da jurisdição das autoridades leigas, porquanto dedicados ao serviço de deus, num

entendimento nem sempre expresso, de estarem regidos por normas sagradas.

esta noção de sacralidade de determinados locais, será a responsável a que, tão logo

conformado o estado moderno, de feição absolutista, no séc. xvi, por força dos costumes da

época, as missões diplomáticas permanentes, que carregavam as qualidades do soberano

que as enviava (ungido pelas leis divinas), adquirissem as características de estarem fora da

jurisdição das autoridades leigas, fortemente assentada na noção de territorialidade do

ordenamento jurídico nacional, onde se encontrassem situados. com a evolução da prática

das missões diplomáticas permanentes, e a definitiva erradicação da idéia da sacralidade

dos locais de sua situação, esta foi aos poucos sendo substituída, em benefício da

concepção de que as autoridades nacionais devem respeito às pessoas e aos locais da

missão diplomática, a fim de não causar empecilhos ao exercício da função diplomática

(relembre-se a regra de vattel, “ne impediatur legatio”), inclusive com os deveres de

respeitar sua inviolabilidade. o fato de uma pessoa buscar refúgio numa missão

diplomática, então considerado como uma ficção de prolongamento do território de um

estado estrangeiro (ainda há autores que se referem à extraterritorialidade dos locais da

missão diplomática), e portanto colocar-se a salvo dos poderes das autoridades do estado

acreditante, passou a ser considerado como um corolário dos deveres que este tem em

relação a um estado soberano que as envia (o estado acreditado), em particular, aqueles

relativos à proteção e à inviolabilidade dos locais da missão diplomática. configurava-se,

costumeiramente, o instituto do asilo diplomático, em tudo baseado no respeito à

inviolabilidade dos locais da missão diplomática e na manifestação inequívoca de vontade

do estado asilante em conceder o asilo a um indivíduo procurado pelas autoridades do

estado onde estavam sediadas as mesmas. em definitivo, o conceito de considerarem-se os

locais da missão diplomática, e posteriormente, navios, aeronaves e acampamentos

militares autorizados a estacionarem no território de um estado, como uma extensão do

território do estado acreditado ou do estado daqueles bens e locais militares, o que

permitiria, em tese, um pedido de extradição82 de um asilado que se encontrasse em tais

82 veja-se mais além as consideração sobre o instituto da extradição.

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lugares, formulado pelas autoridades locais, ao chefe de missão, foi sepultado com as

sentenças da corte internacional de justiça, no caso haia de la torre, decidido em 1950 e

195183, a seguir relatado (asilo diplomático concedido pela embaixada da colômbia em

lima, a um líder político acusado de crimes políticos). na parte que interessa, a cij, ao

considerar as implicações da extradição, conforme reconhecida num tratado entre peru e

colômbia, no que respeita ao instituto do asilo diplomático, estatuiu que este ato

internacional (o acordo bolivariano sobre extradição), reconhecia o asilo, mas nem porisso,

seria possível a extradição, que não poderia, portanto, derrogar qualquer norma ou

procedimento relacionados ao asilo diplomático (tendo em vista, no caso então ‘sub

judice”, que o asilado se encontrava no território do estado eventualmente requerente da

extradição). eis os termos da sentença, “verbis”: “ao contrário, no caso do asilo

diplomático, o refugiado encontra-se no território do estado no qual cometeu o delito: a

decisão de asilo derroga a soberania do estado territorial e subtrai o delinqüente à justiça”

(sentença de 20/11/1950).

por outro lado, à medida em que o estado moderno é formado, insista-se, com sua

forte base territorial, o fato de um indivíduo nacional de um estado, para fugir das

autoridades que o perseguem, atravessar suas fronteiras de outro estado, de modo urgente, e

buscar refúgio no território deste, configurava-se outro tipo de asilo: o asilo territorial. os

pressupostos eram e continuam sendo de que os poderes persecutórios do outro estado,

estancassem nas fronteiras do estado asilante e de que este teria dado seu consentimento

para a entrada e estada daquele indivíduo estrangeiro, em seu território. paralelamente ao

instituto do asilo territorial e, da mesma forma baseado no conceito de que os poderes de

um estado se estancam nas fronteiras de outro, desenvolveu-se, historicamente, o instituto

da extradição84, instituto relacionado à cooperação internacional em matéria criminal e de

processo penal, segundo o qual, um estado entrega um indivíduo, acusado ou reconhecido

culpado de um delito ou crime85, mas inocente segundo o seu ordenamento jurídico, a

83 excertos das sentenças se encontram in: nations unies, résumé des arrêts, avis consultatifs et ordonnances de la cour internationale de justice, 1948-1991, nova york, nations unies, 1992, respectivamente p. 19-20, 21 e 24-5. 84 de nosso conhecimento, um estudo extremamente interessante sobre o instituto da extradição e suas vinculações com a questão do crime político, no tema do combate ao terrorismo internacional, se encontra no curso ministrado na haia, em 1989 do prof. guillaume gilbert, terrorisme et le droit international. in: recueil des cours, academia de direito internacional, haia, 1989, vol. ii (tomo 215), p. 291-416.85 o direito internacional público conhece a distinção entre delito e crime, em função da gravidade dos comportamentos, tendo em vista os valores protegidos pela norma. contudo, na maioria das convenções e

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pedido de outro estado que o reclama e que é competente para julgá-lo e aplicar-lhe a pena,

no caso de ter competência para tanto (em geral, porque um delito foi cometido no seu

território e nos outros casos em que tenha ele competência em matéria criminal, por crime

cometidos fora do seu território)86. o dever de entrega pode ser um dever legal, caso haja

normas bilaterais ou multilaterais que o instituam, ou pode ser baseado na cortesia

internacional (dependente ou não de reciprocidade), no caso de inexistência de atos

internacionais entre o estado requerente e o estado requerido. claro está que a extradição

sofreria uma evolução histórica, na medida em que o pedido somente poderia ser justificado

por uma acusação ou condenação da pessoa extraditanda no território do estado requerente,

que o fato fosse qualificado como passível de extradição no estado requerido (ou seja,

igualmente considerado um delito ou crime) e que, enfim, o estado requerido tivesse dado

sua expressa aceitação na entrega do extraditando, após um exame dos fatos inquinados,

segundo suas normas nacionais87.

na evolução dos dois institutos, do asilo diplomático e do asilo territorial,

designados com o nome genérico de “asilo político”, aos poucos foram sendo delineados os

seus elementos comuns, em função de usos e costumes internacionais, na europa e no correr

do séc. xx, na américa latina. deveria tratar-se de uma pessoa perseguida por motivos

políticos, inclusive acusado ou condenado por um delito político (e no direito brasileiro,

ainda por delito de opinião), cuja qualificação deveria ser dada pelo estado asilante. no caso

tratados internacionais, que não versem especificamente sobre direito penal internacional ou sobre direito processual penal internacional, emprega-se o termo “delito” para um comportamento em desconformidade com uma norma de natureza civil ou mesmo penal. em particular, veja-se o projeto da onu sobre responsabilidade internacional dos estados, onde “crime internacional” aparece unicamente no art. 19, ementado “delitos e crimes internacionais”, no seu § 2o onde se lê: “o fato internacional ilícito resultante de uma violação pelo estado de uma obrigação internacional tão essencial para a salvaguarda de interesses fundamentais da comunidade internacional que sua violação seja reconhecida como crime por esta comunidade em seu conjunto, constitui um crime internacional” (seguindo-se uma enumeração exemplificativa dos crimes internacionais).86 para um breve estudo sobre questões correlatas à extradição, como a extraterritorialidade da lei penal e a questão do crime internacional, veja-se nosso trabalho: "o meio ambiente e a justiça no mundo globalizado". in: 6 justiça penal: críticas e sugestões; 10 anos da constituição e a justiça penal: meio ambiente, drogas, globalização e o caso pataxó. coordenador: jacques de camargo penteado. são paulo, editora revista dos tribunais, 1998, p. 65-118.87 no brasil, é competente para conceder a extradição, o presidente do supremo tribunal federal, que examina, entre outros fatores, se a justiça brasileira não seria igualmente competente, se o delito é igualmente punível segundo as leis brasileiras e se não serão aplicadas, no estado requerente, penas desconhecidas no direito brasileiro, como a pena de morte. destaque-se, sobretudo, as normas da constituição federal de 1988, do art. 5o

, inc. li – ‘nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei” e inc. li – “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”.

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do asilo diplomático, em princípio, o estado territorial deveria conceder um “salvo-

conduto” ou documento com outra denominação, mas suficientemente hábil para que o

asilado saísse da missão diplomática e se dirigisse ao território do estado asilante; contudo,

tal obrigatoriedade só seria exigível, no caso de tratados ou convenções entre os estados, e,

na hipótese da inexistência de um dever convencional, ficaria ao arbítrio do estado

territorial, conceder o citado salvo-conduto (caso verificado nos asilos concedidos pelas

embaixadas dos eua em varsóvia, e em budapeste, logo após o final da segunda guerra

mundial, respectivamente aos cardeais vichinky e mindszenti, os quais permaneceram

naqueles missões, durante anos, enquanto duraram os tempos mais duros dos regimes

socialistas na polônia e na hungria). na hipótese do asilo territorial, o estado asilante, no

caso de haver tratados ou convenções bilaterais sobre cooperação judiciária, não seria

obrigado a conceder a extradição pedida pelo estado de nacionalidade ou de domicílio do

asilado, inclusive por motivos de condenação por um delito comum (desde que cometidos

com fins políticos, portanto, estando presente a noção de que os delitos comuns seriam

englobados pelo delito político, o que impediria a extradição). em ambos os casos,

conforme a maioria dos precedentes históricos, a concessão de asilo diplomático ou

territorial tem sido feita a altas personalidades e a pessoas de relevo na vida pública de um

país, que, num dado momento histórico, foram apeadas do poder, por movimentos sociais

violentos, seja por ocasião de guerras (o kaiser guilherme ii da alemanha, considerado um

dos responsável pela primeira guerra mundial, encontraria asilo territorial nos países

baixos), seja por revoluções ou graves perturbações ou comoções internas nos estados, (as

constantes revoluções militares ou golpes de estado, dos quais a história da américa latina

se encontra recheada, inclusive na indigitada revolução de 31 de março, no brasil, em 1964)

não poderia ser considerada um ato inamistoso em relação ao estado de nacionalidade ou de

domicílio do asilado; portanto, a concessão de asilo não poderia dar causa a uma legítima

ruptura de relações diplomáticas, mesmo que os asilados passem a ser, nos novos regimes

ou governos, considerados inimigos indesejáveis, ou, no mínimo, acusados de crimes

comuns (claro está que tais crimes são assim tipificados pelos novos regimes ou governos),

o que os qualifica de vítimas de perseguições e outros atos desumanos.

tendo em vista que os institutos sempre tiveram por escopo a proteção da pessoa

humana, em que haveria a certeza de que seus atos anteriores, ou as acusações por delitos

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atuais, estavam ligados a motivos políticos, a concessão do asilo serviria para salvaguardar

sua vida e sua incolumidade, motivo pelo qual, na atualidade, fazem dos mesmos, matéria

importante da proteção internacional dos direitos humanos. destaque-se, sempre, que o

principal efeito jurídico dos dois tipos de asilo, é a impossibilidade de sua concessão ser

considerada, conforme já acentuamos, como um ato inamistoso do estado asilante, em

relação ao estado da nacionalidade ou domicílio dos asilados (relembre-se, trata-se de

pessoas procuradas pelas autoridades deste estado), e portanto, no direito internacional da

atualidade, (com mais forte razão, na américa latina, onde o instituto é regulado por

convenções multilaterais específicas), a concessão de asilo não pode ser um pretexto para

justificar ações de retaliação e muito menos de simples rompimento de relações

diplomáticas.

na américa latina o instituto do asilo é tradicional e foi regulamentado por

convenções especiais: uma primeira, a “convenção sobre asilo”, assinada em havana, ao

término da vi conferência internacional americana, a 20 de fevereiro de 1928 (no brasil

promulgada pelo decreto no 18.956 de 22/10/1929)88, uma segunda, a “convenção sobre

asilo político”, assinada em montevidéu, ao término da vii conferência internacional

americana, a 26 de dezembro de 1933 (no brasil promulgada pelo decreto no 1.570 de

13/04/1937)89 , uma outra, assinada em 1939, ao final do congresso sul-americano de

direito internacional (do qual o brasil não participou) e ratificada unicamente pelo paraguai

e uruguai, e finalmente, já ao tempo da vigência da declaração universal dos direitos

humanos, as duas mais modernas, que pela natureza de seus dispositivos, representam

sensíveis melhoras das anteriores90, assinadas ambas em caracas, ao término da x

conferência interamericana, a 28 de março de 1954: a “convenção sobre asilo diplomático”

88 seu texto encontra-se apud antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, id. ibid., p. 323-4.89 seu texto encontra-se apud antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, id. ibid., p. 324-6. esta convenção tem um especial interesse, no caso do brasil, tendo em vista que foi sob suas normas, que os asilos a brasileiros, hoje ilustres, foram concedidos por missões diplomáticas sediadas no rio de janeiro, na situação imediatamente posterior à revolução de 31 de março de 1964. na verdade, as convenções de caracas de 1954, conquanto aprovadas pelo congresso nacional em 12/08/1964, somente foram ratificadas em 14/01/1965, e promulgadas pelo decreto 55.929 de 14/04/1965. 90 na verdade, não se poderia referir a uma revogação ou derrogação das anteriores, pois, como há estados que permanecem partes apenas de umas e não de outras, as antigas continuam vigentes entre os estados que as ratificaram, conjuntamente. para uma listagem dos países que ratificaram as duas primeiras, veja-se hildebrando accioly, tratado de direito internacional público, 2a edição, rio de janeiro (sem indicação de editor), 1o vol., 1956, a pg. 483, e para os estados que ratificaram as duas assinadas em caracas, veja-se, na internet: www.oas.org/juridico/spanhish/firmas/a-46.html e idem/a-47.html.

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e a “convenção sobre asilo territorial”; estas últimas foram assinadas por todos estados

latino-americanos membros da oea, portanto, com exceção dos países anglófonos91, e

ratificadas pela maioria dos signatários92 (ambas promulgados no brasil, conjuntamente,

pelo decreto 55.929 de 14/04/1965)93. deve ser enfatizado que todas essas convenções,

elaboradas as duas primeiras, sob a égide da união panamericana e as duas últimas, sob a

égide da oea, pelo fato de não terem sido assinadas pelos países anglófonos membros destas

organizações, nomeadamente os eua e o canadá, confere ao asilo, nas suas duas

modalidades, o caráter de ser um instituto totalmente regulado por normas escritas do

direito internacional, vigentes entre países latino-americanos, com a nítida indicação de ser

uma das provas da existência de um direito internacional público regional latino-americano.

no que respeita ao asilo diplomático, a corte internacional de justiça teve

oportunidade de pronunciar-se, num famoso caso conhecido como haya de la torre, que

opôs os governos da colômbia e do peru (oficialmente denominado: caso do direito de

asilo), com duas sentenças pronunciadas em 1950 (a primeira, de mérito, a 20 de

novembro, que declarou alguns efeitos do asilo diplomático concedido pela colômbia, em

sua embaixada em lima, em relação ao peru, e a segunda, de 27 de novembro, que decidiu

sobre embargos declaratórios interpostos pela colômbia) e outra em 13/vi/1951 (tendo

havido a intervenção de cuba, sentença essa que decidiu sobre matéria nova, qual seja, a

maneira de executar-se a sentença de 20 de novembro de 1950). os fatos constam do

relatório da primeira sentença: a 30/10/1948, após ter havido uma rebelião militar no peru,

tendo o governo deste país considerado victor raul haya de la torre, chefe do partido

político aliança popular revolucionária americana (apra), o responsável por ela (na verdade,

intimações judiciais tinham sido publicadas, a fim de que o mesmo comparecesse perante

uma corte militar, para submeter-se a julgamento sumário por rebelião, sedição e motim

popular, numa situação política interna, que perduraria no período entre 04/x/1948 e

começos de fevereiro de 1949, no qual o peru foi declarado em estado de sítio), buscou

aquele homem público peruano asilo diplomático na embaixada da colômbia, em lima. a

91 bahamas, barbados, belize, canadá, dominica, eua, granada, guiana, jamaica, saint kitts e nevis, santa lucia, e são vicente e granadinas.92 não ratificaram a convenção sobre asilo diplomático: bolívia, chile, colômbia e cuba. não ratificaram a convenção sobre asilo territorial: argentina, bolívia, chile, honduras e república dominicana. informações apud: www.oas.org/juridico/spanhish/firmas/a-46..html e /a-47..html. 93 seus textos se encontram apud vicente marotta rangel, direito e relações internacionais, id. ibid., 6a edição, a p.658-63 (asilo diplomático) e p. 664-7 (asilo territorial).

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04/01/1949, o embaixador da colômbia comunicaria ao governo do peru haver concedido o

asilo diplomático e, ao mesmo tempo, solicitaria a expedição de um salvo-conduto para que

o asilado (a sentença da cij não emprega o termo “asilado” (asilé), mas o termo “refugié”,

refugiado94) pudesse deixar o país, tendo, a 14 daquele mesmo mês e ano, qualificado haia

de la torre como “refugiado político”. o governo do peru contestaria tal qualificação e

recusaria a concessão do salvo-conduto, com argumentos de que haia de la torre tinha

cometido crimes comuns e não poderia beneficiar-se do asilo diplomático. após troca de

correspondência diplomática, ambos os países firmariam um compromisso, em lima, a

31/08/1949, de submissão do caso à corte internacional de justiça. o caso foi ajuizado na

cij, tendo por peça inicial um pedido da colômbia e um pedido reconvencional apresentado

pelo peru. a base jurídica para a decisão da cij, seria o acordo bolivariano de 1911 sobre

extradição95, bem como a “convenção sobre asilo”, assinada em havana, a 20 de fevereiro

de 1928, únicos instrumentos internacionais vigentes entre ambos os países litigantes96.

por 14 votos contra 2, a cij decidiria que a colômbia não tivera direito a qualificar

unilateralmente a natureza do delito (como crime político) e de maneira que fosse

obrigatória em relação ao peru. deve notar-se que a faculdade exclusiva de o estado asilante

qualificar a natureza do delito, era inexistente na convenção da havana de 1928 e que

somente com a convenções de montevidéu sobre asilo político de 193397, seria formalmente

reconhecida em normas internacionais (por sinal, regra repetida na convenção de caracas

sobre asilo diplomático98, e indiretamente, na sobre asilo territorial99). por 15 votos contra 1,

94 na verdade, a confusão entre refúgio e asilo, entre asilado e refugiado, apesar de já ao tempo da sentença no caso haia de la torre existirem as normas da onu sobre refugiados, explica-se pelo fato de que a convenção de havana de 1928, que serviu de base jurídica para aquela sentença, empregar por duas vezes, o verbo “refugiar-se”, na acepção de “buscar asilo”. 95 conforme já anunciado anteriormente, na parte da sentença de 20/11/1950 da cij, a invocação do acordo bolivariano sobre extradição, além de precisar as implicações do asilo diplomático e da extradição, ainda considerou que o mesmo reconhecia o asilo diplomático como uma instituição conforme os princípios do direito internacional, mas que tais princípios de direito internacional não reconheceriam, ao estado asilante, o direito de qualificar unilateralmente um crime como político.96 na verdade, a colômbia invocara, igualmente, a convenção de montevidéu de 1933, relativa a “asilo político”, mas que a cij não considerou, tendo em vista o peru não tê-la ratificado. note-se que as duas convenção de caracas sobre asilo, somente seriam adotadas em 1954, portanto, após as decisões da cij.97 art. 2, verbis: “compete ao estado que dá asilo a qualificação do delito político”98 art. iv, verbis: “compete ao estado asilante a classificação da natureza do delito ou dos motivos da perseguição”. observe-se que esta definição se acha concordante com os motivos do asilo diplomático, consagrados pela convenção de caracas: pessoas perseguidas por motivos ou delitos políticos. 99 art. iv, verbis: “a extradição não se aplica, quando se trate de pessoas que, segundo a classificação do estado suplicado, sejam perseguidas por delitos políticos ou delitos comuns cometidos com fins políticos, nem quando a extradição for solicitada obedecendo a motivos predominantemente políticos” (com ênfase por nós acrescentada).

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a cij decidiria, a nosso ver, numa interpretação sibilina e literal da convenção de havana de

1928 (art. 2o § 3o, verbis; “o governo do estado poderá exigir que o asilado seja posto fora

do território nacional, dentro do mais breve prazo; e o agente diplomática do país que

tenha concedido o asilo poderá, por sua vez, exigir as garantias necessárias para que o

refugiado sai do país, respeitando-se a inviolabilidade de sua pessoa”), que, pelo fato de o

governo do peru não ter exigido a saída do asilado do território daquele país, este governo

não estava obrigado a conceder o salvo-conduto. por outro lado, por 15 votos contra 1,

rejeitou a tese do peru de que o sr. haia de la torre era acusado de um crime comum, tendo

constatado que o principal e único motivo da acusação contra aquela pessoa, era o de

rebelião militar e que rebelião militar não era, por si só, um crime comum. enfim, a

sentença reconheceu que inexistiam, na letra da convenção de havana de 1928 (art. 2o § 1o

verbis: “ o asilo não poderá ser concedido senão em casos de urgência e pelo tempo

estritamente indispensável para que o asilado se ponha, de qualquer outra maneira, em

segurança”), as condições necessárias para que fosse legítima a concessão do asilo, nos

seus termos: na verdade, a cij constatou, mirabile dictu!, que havia condições normais para

o exercício da jurisdição dos tribunais peruanos, naquele momento, que o poder judiciário

não estava subordinado ao executivo, e que a convenção de havana não tinha o condão de

garantir aos asilados, o privilégio de escapar às suas jurisdições nacionais!

a segunda sentença no caso haia de la torre, refere-se ao julgamento de embargos

declaratórios interpostos pela colômbia. as dúvidas diziam respeito a três questões; a) em

que sentido conviria reconhecer efeitos jurídicos à qualificação feita pela embaixada da

colômbia, em lima, quanto ao delito imputado a haia de la torre; b) em que sentido o peru

não teria direito a exigir a entrega do asilado, nem a colômbia tinha a obrigação de entregá-

lo e c) ou, ao contrário, em que sentido a colômbia deve entregar o asilado. a cij, por 12

votos contra 1, na sentença de 17 de novembro de 1950, rejeitaria os pedidos, com o

argumento de que se tratava de matérias não submetidas à sua apreciação e, sendo assim,

rejeitaria o pedido da colômbia, de interpretação da sentença embargada.

enfim, como se relata na terceira sentença no caso haia de la torre, exarada pela cij,

a 13 de junho de 1951, tão logo conhecido o teor da sentença de 20 de novembro de 1950, o

governo do peru solicitaria à embaixada da colômbia em lima executá-la, e convidou-a a

por fim a um proteção diplomática indevida, com a entrega do asilado às autoridades locais.

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a colômbia responderia que uma entrega do asilado desconheceria a sentença de 20 de

novembro de 1950, além de violar os termos da mencionada convenção de havana de

1928; sendo assim, dirigiu-se, novamente à cij, com um pedido depositado a 13 de

dezembro de 1950 (ao qual, juntar-se-ia cuba como interveniente, que foi admitido pela cij,

com os argumentos de que havia interesse na interpretação de novos aspectos trazidos a

julgamento, no tocante à citada convenção de havana). os argumentos dos litigantes foram

os seguintes: a) a colômbia pedia que a cij determinasse a maneira de executar o sentença

de 20 de novembro de 1950, bem como estatuísse que na execução da mesma, não estava

obrigada a entregar o asilado à autoridades peruanas; b) o peru solicitava um

pronunciamento da cij no referente à execução da sentença, que esta rejeitasse os pedidos

da colômbia sobre a falta de fundamento de que este país não se encontrava obrigado a

entregar o asilado e, enfim, de declarar que, por força da primeira sentença, o asilo tinha

terminado e portanto havia o dever da entrega do asilado, a fim de que a justiça peruana

pudesse retomar seu curso, então suspenso. com o fundamento de que não era competência

judiciária da cij determinar as possíveis e diversas formas pelas quais um asilo diplomático

poderia terminar, julgou: a) por 13 votos a 1, que a colômbia não era obrigada a entregar

haia de la torre às autoridades peruanas e b) por unanimidade, que o asilo deveria ter

cessado a partir da sua sentença de 11 de novembro de 1950 e que deveria ter um fim

(verbis: “contudo, deve presumir-se quem estando as relações jurídicas recíprocas [entre

colômbia e peru] doravante tornadas precisas, as partes estarão ma medida de encontrar

uma solução prática satisfatória, inspirando-se nas considerações de cortesia e boa

vizinhança que, em matéria de asilo, sempre tiveram um grande lugar nas relações entre as

repúblicas da américa latina”)100.

uma análise atual dos julgados pela cij no caso haia de la torre, revela que muitos

dos incidentes considerados, à luz da interpretação da convenção de havana sobre asilo de

1928, talvez tenham servido de parâmetro para o aperfeiçoamento do instituto do asilo

diplomático, pelo menos em nível do direito internacional regional da américa latina.

relembre-se que a convenção de montevidéu sobre asilo político de 1933, que não tinha

sido considerada pela cij (pela falta de ratificação pelo peru), já apresentava determinados

pontos de melhoria na regulamentação do instituto (que, nesta convenção, tratava

100 verbatim, em nossa tradução livre, conforme texto publicado em nations unies, résumé des arrêts, avis consultatifs et ordonnances de la cour internationale de justice, 1948-1991, , id., ibid., p. 25.

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unicamente do asilo diplomático), como a definição da competência do estado que dá asilo,

para a qualificação do delito político (art. 2o) e a enumeração das condições de proibição da

conceder-se o asilo diplomático, a “pessoas inculpadas de delitos comuns que se acharem

devidamente processadas ou tiverem sido condenadas por tribunais ordinários, assim

como aos desertores de terra e mar” (art. 1o § 1o ). na verdade, a convenção de caracas

sobre asilo diplomático de 1954 (relembre-se: vigente internacionalmente entre a maioria

dos países da américa latina), é aquela que refletirá as regras definidas pela cij, num

documento de 24 artigos, cujas principais disposições são as seguintes: a) o asilo é

concedido a pessoas perseguidas por motivos ou delitos políticos (portanto, evitando-se as

discussões sobre a necessidade de haver qualquer procedimento administrativo ou judicial

contra os asilados); b) o direito de concessão do asilo pertence ao estado, que não se acha

obrigado a concedê-lo, nem a declarar por que o nega; c) não se concede asilo diplomático

a pessoas acusadas, processadas ou condenadas por delitos comuns; d) compete ao estado

asilante qualificar a natureza do delito ou dos motivos da perseguição; e) o asilo pressupõe

casos de urgência e pelo tempo estritamente indispensável a que o asilado deixe o país, com

as garantias acordadas pelo estado territorial, cabendo ao estado asilante tipificar o que seja

urgência; f) o estado territorial pode a qualquer momento exigir que o asilado seja retirado

do país, para o que deverá conceder um salvo-conduto e as garantias necessárias para tanto

(art. xi); g) “concedido o salvo-conduto, o estado asilante poderá pedir a saída do asilado

para o território estrangeiro, sendo o estado territorial obrigado a conceder,

imediatamente, salvo caso de força maior, as garantias necessárias” (art. xii, que

representa um grande aperfeiçoamento do instituto do asilo diplomático, conforme se pode

verificar com o caso haia de la torre); h) os asilados não poderão ser desembarcados em

ponto algum do estado territorial, em lugar que dele esteja próximo, salvo por necessidade

de transporte; i) o estado asilante não é obrigado a conceder permanência a um asilado, mas

não o poderá mandar de volta a seu país de origem, salvo por vontade expressa do asilado:

j) enfim, o asilo diplomático não estará sujeito à reciprocidade, e qualquer pessoa, seja qual

for sua nacionalidade, pode estar sob sua proteção (art. xx, no qual, contudo, nada diz a

respeito dos apátridas).

no que respeita ao asilo territorial, a 14/12/1967, a xxii assembléia geral da onu

adotaria, por unanimidade, a resolução 2.314, denominada “declaração sobre asilo

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territorial”101, que, no seu preâmbulo, após recordar os já mencionados art. 13 § 1o e art. 14

da declaração universal dos direitos do homem, e expressamente reconhecer que “a

concessão de asilo por um estado a pessoas que tenham direito de invocar o artigo 14 da

declaração universal...é um ato pacífico e humanitário e que, como tal, não pode ser

considerado inamistoso por nenhum outro estado”, recomenda que, “sem prejuízo dos

instrumentos existentes sobre o asilo e o estatuto dos refugiados e apátridas, os estados se

inspirem, em sua prática relativa ao asilo territorial,” nos princípios que passa a expor,

num articulado de 4 artigos. de tais princípios, destaquem-se:

a) a proibição de conceder-se asilo a territorial a qualquer pessoa “sobre a qual

exista suspeita de ter cometido um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime

contra a humanidade, conforme definido nos instrumentos internacionais elaborados para

adotar disposições sobre tais crimes” (art. 1o § 2o);

b) a faculdade exclusiva concedida ao estado de qualificar as causas que motivam

um asilo por ele concedido (art. 1o § 2o);

c) nenhuma das pessoas compreendidas pelo disposto no art. 14 da declaração

universal, poderá “ser sujeita a medidas tais como a recusa de admissão na fronteira ou, se

já tiver entrado no território onde busca asilo, a expulsão ou devolução compulsória a

qualquer estado onde possa ser submetida a perseguição” (art. 3o § 1o), salvo em casos

excepcionais de motivos fundamentais de segurança nacional ou para salvaguardar a

população, como no caso de afluência em massa de pessoas” (art. 3o § 2o);

d) nos casos de constarem-se as exceções previstas e um estado decidir-se pela

recusa de admissão na fronteira, pela expulsão ou pela devolução compulsória do asilado,

“deverá considerar a possibilidade de conceder à pessoa interessada, nas condições que

julgar apropriadas, uma oportunidade, em forma de asilo provisório de ou outro modo, de

ir para outro estado” (art. 3o § 3o).

mister esclarecer os conceitos ligados ao instituto do asilo territorial, quais sejam, o

de recusa de admissão na fronteira de pessoas que buscam o asilo territorial (o termo

adotado pela doutrina, inclusive nacional, refere-se a “ non refoulement”)102, de deportação

101 seu texto em português encontra-se antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, id. ibid., p. 276-8.102 o dictionnaire de la terminologie du droit international, publicado sob o patrocínio da union académique internationale, (paris, sirey, 1960), assim define o termo, no verbete: “refoulement (d’étrangers)”: “ato pelo qual as autoridades estabelecidas na fronteira se opõem à entrada no território de um estado, estrangeiros que procuram nele penetrar e nele permanecer” (em nossa tradução livre).

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de expulsão ou de devolução compulsória de pessoas que buscam aquele asilo e que já se

encontram no território de um estado. trata-se de conceitos que se ligam intimamente aos

poderes dos estados, no relativo a entrada de estrangeiros nos seus territórios e à

permanência neles, conforme várias modalidades, tais como: passageira, provisória ou

permanente. trata-se de um domínio que ainda se considera, na atualidade, cercado de quase

que exclusiva competência dos estados (claro, que limitada pelos deveres internacionais);

em alguns aspectos, trata-se da competência de um estado adotar e aplicar uma política de

imigração, que nem sempre condiz com os ideais de uma livre circulação internacional de

pessoas, dadas as implicações que comportam uma abertura indiscriminada das fronteiras à

penetração de contingentes humanos, que podem, não só causar graves problemas internos,

como representar a admissão de mão de obra estrangeira. na verdade, de normas internas

adotadas dentro da persistência do domínio reservado dos estados em matéria de controle

da entrada e permanência de estrangeiros, podem conflitar com as normas internacionais,

em particular, com aquelas constantes dos art. 13 § 2o e art. 14 § 1o da declaração universal

dos direitos do homem, mesmo que estas se revistam de um caráter humanitário e, por

certo, em alguns casos, previstas para casos de urgência!

a convenção sobre asilo territorial, assinada em caracas, em 1954 (vigente na

maioria dos estados da américa latina), de certa forma, já contemplava os princípios da

declaração sobre asilo territorial da onu, de 1967. uma primeira observação necessária, é a

de que nesta convenção americana, inexiste qualquer condicionamento quanto a denegação

de asilo territorial a qualquer pessoa “sobre a qual exista suspeita de ter cometido um crime

contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a humanidade, conforme definido

nos instrumentos internacionais elaborados para adotar disposições sobre tais crimes”,

constante do art. 1o § 2o da declaração da onu. assim, numa breve análise de seus

dispositivos, fica claro que: a) nenhum estado é obrigado a entregar a outro estado ou a

expulsar de seu território pessoas perseguidas por motivos ou delitos políticos (art. iii); b)

“a extradição não se aplica, quando se trate de pessoas que, segundo a classificação do

estado suplicado, sejam perseguidas por delitos políticos ou delitos comuns, cometidos

com fins políticos, nem quando a extradição for solicitada obedecendo a motivos

predominantemente políticos” (art. iv) ; c) o estado não se encontra obrigado a estabelecer

distinções entre os estrangeiros, para discriminar os asilados, na sua legislação interna, nem

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a atender a pedidos de outro estado, a adotar medidas excepcionais contra asilados, por

motivos de opinião contrária àquele ou na sua liberdade de reunião; d) no caso de haver um

pedido de internamento ou de vigilância de asilados que se encontrem no território do

estado asilante, feito pelo estado de onde procedeu o asilado, o internamento deverá ser

feito, a uma distância prudente das fronteiras, a as despesas ocorridas, deverão ser

suportadas pelo estado que o solicitar (art. ix e seus §§).

no brasil, as normas sobre entrada e permanência no território nacional de asilados,

que são estrangeiros, se regem pelo denominado “estatuto dos estrangeiros” (lei no 6.815

de 19/08/1980, com as alterações da lei no 6.964 de 09/12/81 e um sem número de outros

atos normativos como o regulamento expedido pelo decreto no 86.715 de 10/12/1981 e

outras normas da legislação complementar ou correlata). nela somente se prevêem os casos

de entrada de estrangeiros, de sua permanência, e sua deportação (recusa de permanência

no território nacional, por falta de requisitos de legalidade na entrada ou estada do

estrangeiro, como a expiração de vistos de permanência, com a devolução da pessoa a

outros estados, de preferência, aos da nacionalidade)103, expulsão (ato administrativo de

fazer cessar a permanência de um estrangeiro no território nacional, pelos motivos

elencados na lei, de natureza cível ou criminal, que configuram o expulsando, em grandes

linhas, como uma “pessoa indesejável”) e a extradição de estrangeiros (entrega de um

estrangeiro, inocente no território nacional, a pedido de um poder judiciário estrangeiro,

seja de sua nacionalidade ou não, por motivos de uma condenação de privação de liberdade

no estado estrangeiro ou estar sua prisão autorizada por juiz, tribunal ou autoridade

competente deste último, conforme os temos do art. 78 do estatuto dos estrangeiros). no

título iii, integrado por dois únicos artigos, o art. 28 e 29, o estatuto dos estrangeiros regula

a condição do asilado, que a lei denomina “asilado político” e que a doutrina e práticas

nacionais têm considerado como referente tanto ao estrangeiro beneficiado pelo asilo

territorial (entrada pelas fronteiras terrestres ou marítimas, sem quaisquer documentos

autorizatórios do governo brasileiro, com a expectativa de beneficiar-se da proteção das

normas internacionais e conseguir a condição de asilado, a ser definida, quando a pessoa já

103 conquanto haja a definição dos elementos factuais para a deportação, no estatuto dos estrangeiros, no art. 57, ou seja, a entrada ou estada irregular do estrangeiros, não contemplam a hipótese de um pedido de entrada no território nacional, que pode ser recusado, ainda quando o postulante não se encontra sob a jurisdição das autoridades nacionais. esta fenômeno se enquadra no que se denomina “refoulement”, como será analisado oportunamente, no exame da situação dos refugiados.

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se encontra no território nacional), quanto pelo asilo diplomático (entrada em portos ou

aeroportos internacionais brasileiros, de posse de um salvo-conduto concedido pelo

governo brasileiro, quando o asilado se encontrava em lugares no exterior susceptíveis de

abrigar um postulante a asilo, na condição de asilado já reconhecida pelo mesmo). as regras

gerais são de que ao asilado político se apliquem as normas brasileiras relativas aos

estrangeiros, bem como as que lhe impõe o direito internacional ou as que o governo

brasileiro lhe fixar (a ex.: fixação de residência em determinados locais, no brasil, em geral,

longe das fronteiras do estado de sua nacionalidade ou residência, ao tempo anterior da

concessão do asilo (art. 28 do estatuto do estrangeiro). o art. 29 impõe ao asilado político o

dever de somente sair do território nacional, com a prévia autorização do governo

brasileiro, sob pena de considerar-se renúncia ao asilo, o que impedirá o reingresso, naquela

condição (art. 29 e seu parágrafo único, do estatuto do estrangeiro).

É necessário enfatizar que, ainda que somente na constituição federal de 1988104 se

tenha expressamente estatuído que “a república federativa do brasil rege-se nas suas

relações internacionais pelos seguintes princípios: ... x- concessão de asilo político” e que

tal preceito constitucional era inexistente nas constituições anteriores, o país, desde sempre,

reconheceu, respeitou e aplicou, incontáveis vezes, os princípios relativos à proteção dos

asilados no território nacional, seja aqueles que solicitaram e obtiveram asilo, já dentro do

território nacional, seja aqueles que estavam asilados em missões diplomáticas brasileiras

no exterior, ou outros lugares no exterior susceptíveis de oferecer asilo e que foram

encaminhados ao mesmo. por outro lado, em momentos de golpes de estado, de revoluções

ou de sublevações internas graves, o governo brasileiro concedeu salvo-condutos a

brasileiros asilados em missões diplomáticas sediadas no rio de janeiro, então capital

federal do país, e na hipótese de asilo territorial concedido a brasileiros no exterior,

respeitou as regras internacionais, pois não rompeu com as relações diplomáticas com os

países asilantes, da mesma forma que, se não se absteve de solicitar extradição, ou o

fazendo, soube dar às negativas de concessão de extradição ou de entrega dos asilados, as

devidas proporções.

na verdade, a situação dos asilados no interior dos ordenamentos jurídicos

104 a propósito do tema do “asilo político” na constituição federal de 1988, veja-se o trabalho de thamy pogrebinschi, “o direito de asilo e a constituinte de 1997-88”. in:: nádia de araújo e guilherme assis de almeida, coordenadores, o direito internacional dos refugiados- uma perspectiva brasileira, id., ibid., p. 319-42.

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nacionais, no direito comparado, pode ser assimilável, com notáveis temperamentos, à

situação dos estrangeiros. destes temperamentos, se há imposições particulares, como a

possível residência forçada, em geral longe das fronteiras do país de onde o asilado se

retirou, direitos de opinião pública restringidos, sobretudo contra o estado de onde saiu

como asilado, há igualmente, alguns privilégios. se é verdade que o asilado se encontra no

território nacional de um estado, por uma decisão soberana deste, e que esta foi dada, tendo

em vista uma situação de proteção a situações humanitárias, é claro que deste estado são

exigíveis condições de vida e subsistência, as quais este estado, em geral, não tem o dever

de proporcionar a qualquer estrangeiro, que tenha livremente escolhido viver sob sua

jurisdição. sendo assim, há deveres para o estado asilante, segundo os princípios que regem

o instituto, dos quais os mais notórios são: a) obrigação de fornecer ao asilado as condições

para uma existência digna; b) as proibições de entrega, expulsão ou extradição para o país

de proveniência do asilado; c) um tratamento adequado, não discriminatório, quanto aos

demais estrangeiros, que se achem no território nacional; d) total independência nos atos de

concessão se asilo, sem levar em consideração qualquer pedido do estado estrangeiro,

quanto a causas do asilo e causas da urgência em concedê-lo.

enfim, deve notar-se uma característica importante, que faz com que o asilo, tal qual

regulamentado na américa latina, seja um instituto de efeitos limitados, no relativo à

proteção dos direitos humanos. tanto o asilo diplomático, quanto o asilo territorial são

institutos que têm como destinatário de suas normas, os estados, uma vez que estas os

tratam como uma faculdade concedida ao estado asilante, a quem cabe julgar das condições

de sua admissibilidade. em nenhuma hipótese, há normas que confiram a um indivíduo

perseguido por motivos ou delitos políticos, o direito subjetivo de conseguir asilo

diplomático ou territorial, pelo simples fato de ter havido uma situação de urgência, no seu

país de nacionalidade ou domicílio e de estar o asilado nele perseguido.

insista-se, portanto, sobre os característicos do direito de asilo, conforme seus

elementos definidos nas normas internacionais vigentes na américa latina: a) trata-se, como

dissemos, um direito exclusivo que cabe ao estado parte nas convenções temáticas,

conceder ou não; b) o controle da aplicação das normas convencionais sobre asilo, depende

unicamente da vontade dos estados, portanto, dentro do quadro geral da regras sobre

responsabilidade internacional dos estados, em virtude da inadimplência de normas

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convencionais; c) implica na existência de uma situação de perseguição por motivos

políticos a uma pessoa, por multidões ou por autoridades de um estado, em casos de

urgência, e em situações em que esta não tenha como pôr-se em segurança (portanto, nos

casos de graves comoções internas, perseguições por motivos de crenças, opiniões e

filiação política ou por atos que possam ser considerados delitos políticos), descartadas,

portanto, situações de penúria econômica nos países de onde as pessoas buscam evadir-se;

d) concedido o asilo, criam-se obrigações a outros estados partes, de conceder um salvo-

conduto e de não esperarem que o estado asilante venha a conceder extradição, mesmo que

haja tratados bilaterais sobre extradição; e) inexistem, nas normas regionais na américa

latina, quaisquer restrições quanto a atos qualificados como delitos políticos, passíveis de

concessão de asilo, como se sabe, ato unilateral do estado asilante, restrições essas como

suspeita de que a pessoa pretendente a asilo ou já asilada, tenha praticado atos atentatórios

aos princípios da carta da onu, ou “cometido um crime contra a paz, um crime de guerra ou

um crime contra a humanidade, conforme definido nos instrumentos internacionais

elaborados para adotar disposições sobre tais crimes” (art. 1o § 2o da resolução 2.314 da ag

da onu, denominada “declaração sobre asilo territorial” anteriormente analisada).

seção 3 – o direito internacional humanitário e o direito internacional dos refugiados

como afirmamos no início deste capítulo, situações de guerra ou de graves

perturbações internacionais, foram os fenômenos que determinaram a emergência de dois

campos particulares das normas internacionais da proteção das pessoas humanas, o direito

internacional humanitário e o direito internacional dos refugiados. historicamente, as

primeiras normas a virem a lume, foram as relativas à proteção dos combatentes e não

combatentes, motivadas pelas atrocidades observadas por henri dunant, na batalha de

solferino, no norte da itália, em 24 de junho de 1859 (entre os exércitos franco-sardos de

napoleão iii e os austríacos, verdadeira carnificina que resultou em cerca de 40 mil mortos),

cujo livro “un souvenir de solferino”, editado em 1862, teve uma decisiva influência nos

governos; seus ideais resultariam na fundação do movimento conhecido como cruz

vermelha, sob cuja influência seria elaborado pelos estados, através de convenções

internacionais multilaterais, um conjunto de normas que passou a ser denominado direito

internacional humanitário. as segundas foram aquelas destinadas a administrar uma

situação, que, dadas as extensões das destruições militares, no curso da primeira guerra

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mundial, deixaram uma cruel seqüela no pós-guerra, de inteiras populações deslocadas,

cuja sorte deveria ser regulamentada em nível internacional (o que começaria a ser feito,

por atuação da sociedade das nações); a repetição do fenômeno, após a segunda guerra

mundial, levou a que onu passasse, diretamente a regular o mesmo, com a instituição de um

organismo intergovernamental, o alto comissariado das nações unidas para os refugiados, o

acnur, com sede em genebra. conforme será visto, o direito que assim se formaria, o direito

internacional dos refugiados, teria seu campo de atuação cada vez mais alargado, para

incluir igualmente movimentações transfronteiriças de pessoas, não só por motivos de

revoluções e outros acontecimentos militares no interior dos estados (formalmente não

definidos como “guerra”), mas também de pessoas em situações perseguidas por motivos

de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.

no que respeita ao direito internacional humanitário, conquanto, na sua origem

tenha sido motivado pelo fenômeno da guerra, no final do séc. xix (1864, convenção sobre

melhorar a sorte dos feridos nos exércitos em campanha), suas normas constituem o

denominado “direito de genebra” (originário da atuação da diplomacia em congressos e

conferências internacionais, com a adoção de tratados multilaterais, em genebra, sob a

decisivo impulso do comitê internacional da cruz vermelha, o cicv, tanto ao tempo da

sociedade das nações, no entre-guerras e continuado sob o a vigência da onu105), não deve

confundir-se com o denominado “direito da haia”, este um corpo de normas jurídicas

escritas, elaboradas a partir de duas conferências internacionais da paz, realizadas na haia,

em 1899 e 1907, durante as quais foram elaboradas, respectivamente, 3 e 13 convenções

multilaterais106 sobre o “jus ad bellum”, ou seja, as normas internacionais que regulam tanto

o direito de ir à guerra e o direito de prevenção da guerra, quanto o “jus in bello”107, ou

seja, as normas internacionais sobre a condução das hostilidades, nos dois tipos de guerras,

105 poder-se-ia cogitar de um “direito de nova york”, na medida em que as decisões dos órgãos da onu, ou de normas previstas em tratados multilaterais adotados sob sua égide, tratam de temas do direito humanitário internacional.106 as 13 convenções adotadas na haia a 18/10/1907, foram assinadas pelo brasil, ratificadas e conjuntamente promulgadas pelo decreto no 10.719 de 04/02/1914.107 “jus in bello” e “jus ad bellum” são expressões relativamente recentes no direito internacional, cunhadas pelo prof. louis delbez in: manuel de droit international public: droit général et droit particulier des nations unies. 2a ed., paris, lgdj, 1951. a expressão tradicional para “direito da guerra” era, desde os escritores da idade média, “jus belli”, então associado à questão das discussões sobre a guerra justa e a partir de grotius, às normas sobre o começo e fim das guerras, a condução das hostilidades, a neutralidade e o tratamento dos prisioneiros e da população civil. a propósito dos conceitos do prof. delbez, veja-se nosso trabalho, "a guerra nuclear e o direito". in: causas e conseqüências de uma guerra nuclear". coord. ernest hamburger. são paulo, cesp, 1985. p.49-73.

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então existentes, a guerra terrestre e a guerra marítima (hoje complementado com normas

sobre a guerra aérea e sobre o desarmamento), bem como o regime da neutralidade. o

“direito da haia”, na sua finalidade específica, em particular do “jus in bello”, será objeto

de estudos do cap. 20 deste livro. na verdade, uma análise das normas do “direito da haia”,

perfeitamente identificado como um “direito dos meios e métodos de combate”, confere ao

“direito de genebra”, a característica de um “direito de proteção das vítimas”. contudo, deve

notar-se que “a quase totalidade das disposições das antigas convenções da haia, relativas

a condução das hostilidades, se incorporaram ao direito de genebra, mediante adaptação

e modernização, e se encontram agora incluídas no protocolo i de 1977 [à convenção de

genebra de 1949] relativo aos conflitos armados internacionais”108.

as fontes normativas do direito humanitário internacional, (“direito de genebra”)

são: a) as 4 convenções adotadas a 12/08/1949 (no brasil promulgadas pelo decreto no

42.121 de 21/08/1957), ao final de uma conferência internacional de representantes de

estados, realizada em genebra, por convocação do governo suíço e por proposta do comitê

internacional da cruz vermelha, o qual foi o responsável pelos respectivos projetos: (i), para

a melhoria da sorte dos feridos e enfermos dos exércitos em campanha; (ii), para a melhoria

da sorte dos feridos, enfermos e náufragos das forças armadas no mar; (iii), relativa à

proteção dos prisioneiros de guerra; (iv), relativa à proteção dos civis em tempo de guerra;

e b) os 2 protocolos adotados a 08/06/1977, igualmente em genebra, ao final da conferência

diplomática sobre reafirmação de desenvolvimento do direito humanitário, aplicável nos

conflitos armados, convocada, igualmente, pelo governo suíço, sob o impulso do cicv: o

protocolo i, relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais e o

protocolo ii, relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados não internacionais

(ambos conjuntamente promulgados no brasil, com o decreto no 849 de 25/06/1993) . pelo

fato de logo após sua assinatura, terem entrado em vigor internacional e pelo número de sua

ratificação, as 4 convenções de genebra de 1949 provam sua aceitação pela quase totalidade

dos estados da atualidade, entre 186 estados que as ratificaram, da mesma forma que os 2

protocolos de 1977, o primeiro, entre 135 estados ratificantes. e o segundo, entre 125

estados, nas mesmas circunstâncias. deve destacar-se que os dois protocolos de 1977 foram

108 gérard peytrignet, “sistemas internacionais de proteção da pessoa humana: o direito internacional humanitário”. in: antônio augusto cançado trindade, gérard peytrignet e jaime ruiz de santiago, as três vertentes da proteção internacional dos direitos humanos- direitos humanos, direito humanitário, direito dos refugiados, id., ibid., p. 128.

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decorrência dos freqüentes conflitos internacionais regionalizados, no imediato segundo

pós-guerra, e que exigiam uma regulamentação que compreendesse fenômenos que fugiam

à tipicidade das guerras tradicionais, como as guerras de libertação nacional, as guerras de

descolonização e as guerras revolucionárias, cujos efeitos na população, eram talvez

maiores que as guerras clássicas (como demonstrou a guerra civil espanhola).

a cruz vermelha é uma denominação genérica que melhor se denominaria

“movimento da cruz vermelha”, originariamente baseado nas idéias do referido suíço henri

dunant, mas que teve, em data posterior, um desenvolvimento impulsionado pelos próprios

estados; trata-se, portanto, de um fenômeno intimamente associado ao desenvolvimento do

direito humanitário internacional. o movimento compreende, na verdade, três realidades: a)

o comitê internacional da cruz vermelha, uma ong de direito suíço, sediada em genebra, b)

as sociedades nacionais da cruz vermelha, ou do crescente vermelho109, entidades nacionais,

pessoas jurídicas de direito privado, constituídas segundo as leis dos países em que estão

sediadas e, enfim, c) a federação das sociedades da cruz vermelha e do crescente vermelho,

entidade que congrega as associações nacionais dedicadas ao direito humanitário, sediada

em genebra. como entidade suprema do movimento, as mencionadas convenções de

genebra de 1949, instituíram uma conferência internacional, composta de delegados dos

estados partes nas mesmas, e que se reúne a cada 4 anos, e que no intervalo das sessões,

funciona na forma de um comitê permanente, com sede em genebra; trata-se, na verdade,

da técnica que foi aperfeiçoada pelos tratados e convenções internacionais atuais, de

instituição de um órgão de controle de aplicação e aperfeiçoamento dos seus dispositivos

constantes nos tratados e convenções internacionais. importa notar que todos os bens

afetados ao “movimento”, na sua atuação internacional ou no interior dos países, bem assim

como seus funcionários e pessoas a seu serviço, gozam de privilégios e imunidades,

outorgados pelas citadas convenções de genebra, com a finalidade de proteger os serviços e

as funções110.

109 a denominação de crescente vermelho foi uma exigência de certos países islâmicos, em 1919 (particularmente a turquia, que passava a ser admitida no conjunto dos estados independentes da comunidade internacional, na liga das nações), que consideram a cruz, menos como um símbolo do cristianismo, e mais como um símbolo das cruzadas.110 claro está que as pessoas, bens e serviços das sociedades nacionais estarão protegidos, na medida em que o ordenamento jurídico dos estados em que estão sediadas, ou em cujo território sejam exercidas as atividades, os reconheçam. trata-se de imunidades e privilégios claramente concedidos em razão da natureza das atividades desenvolvidas, assimiláveis às imunidades e privilégios concedidos a organizações intergovernamentais (um serviço público internacional).

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o comitê internacional da cruz vermelha, o cicv, cujo emblema é uma cruz

vermelha sobre fundo branco (as cores e a insígnia invertidas da bandeira da suíça) e que

tem por divisa o mote: “inter armas caritas”, foi fundada em 1863 e, na atualidade, é

composta de 25 membros, unicamente cidadãos suíços; à sua competência de fornecer

assistência e proteção às vítimas de guerra e de servir de intermediário no plano

humanitário, entre os estados em conflito, foram acrescentados poderes de investigação111,

em algo similares aos poderes dos comitês das convenções sobre direitos humanos, por

disposições expressas nas 4 convenções de genebra de 1949 e seus 2 protocolos de 1977. a

atuação do cicv tem crescido, na medida em que as atribuições das denominadas “potências

protetoras”, previstas naquelas convenções de 1949 e nos dois protocolos, ou seja estados

que, em situação de guerra ou de conflitos generalizados, entre dois outros estados, são

indicados como representantes diplomáticos de um contendor perante o outro, no caso de

rompimento de relações diplomáticas, têm sido diretamente exercidas pelo cicv; tais

situações são relevantes, nos casos de movimentos revolucionários internos nos estados, ou

de golpes de estado, em que os nacionais de um terceiro estado, não tenham seus direitos

humanos respeitados, (e que este terceiro estado não possa exercer a proteção diplomática),

os delegados do cicv, que têm imunidades e privilégios garantidos, passam a atuar como

relevantes defensores dos direitos humanos daquelas pessoas. por outro lado, pelo fato de

contar o cicv com um exemplar serviço de informações sobre serviços médicos (em

particular, as ongs dedicadas a saúde pública e aos serviços médicos, paramédicos e de

assistência hospitalar), tem grandes possibilidades de arregimentar pessoas, serviços e

recursos financeiros, seja em coordenação com as sociedades nacionais, seja em

complementação ou mesmo substituição das mesmas.

a federação internacional foi instituída em 1919 com a denominação de liga das

sociedades da cruz vermelha e do crescente vermelho (a partir de 1991 adotou a atual

denominação de “federação internacional”), com sede em genebra e congrega as 163

associações civis nacionais, organizadas segundo as leis de cada país, denominadas ora

111 em particular, o disposto no art. 126 da iii convenção de genebra de 1949 sobre o tratamento de prisioneiros de guerra, os representantes das potências protetoras (estados que aceitam a representação de um estado, frente a outro, no caso de rompimento de relações diplomáticas) e delegados do cicv têm a faculdade permitida pelos estados partes de visitarem quaisquer lugares onde haja prisioneiros de guerra, entrevistar os prisioneiros ou seus representantes, sem o acompanhamento de testemunhas, pessoalmente ou através de intérpretes. o estado onde se verifica a inspeção tem somente o poder de indicar qual é o estado protetor, sendo tal indicação, ainda dependente da aprovação dos delegados do cicv.

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sociedades da cruz vermelha, ora sociedades do crescente vermelho. sua função principal é

coordenar a atuação das sociedades nacionais, em caso de catástrofes naturais ou

antrópicas, no caso de estas não estarem em condições de atuar. como o cicv, sua ajuda

igualmente se estende a situações em tempos de paz, na assistência a refugiados, tanto nos

campos de batalha quanto fora das zonas de conflito.

as sociedade nacionais da cruz vermelha, ou do crescente vermelho (em alguns

países islâmicos), como se disse, são entidades organizadas segundo as leis internas dos

países onde sediadas, mas que, em virtude das 4 convenções de genebra de 1949 e dos 2

protocolos de 1977, têm garantias internacionais para sua atuação, no território dos estados

onde instituídas. além de poderem ostentar os símbolos externos que lhes garantem os

privilégios e imunidades reconhecidos nas normas internacionais, a seus funcionários, a

pessoas e bens a seu serviço, estes merecem uma proteção e os indivíduos encarregados de

aplicar as normas internacionais, devem gozar de ampla liberdade de circulação e de

investigação (em particular, quando exercem funções acometidas por normas ou órgãos

internacionais humanitários). suas atribuição são de atender às necessidades nos conflitos

armados, em particular como apoio aos serviços militares de intendência e de saúde das

forças armadas, e, em tempos de paz, prover a atendimento no campo da saúde, educação,

atendimento nos casos de desastres naturais ou causadas pelo homem, e, enfim, difundir os

princípios e normas do direito internacional humanitário (entre o pessoal militar e entre a

população civil).

no que importa ao presente capítulo, a atuação das entidades integrantes do

movimento da cruz vermelha, melhor serão descritas no capítulo 21 da presente obra. no

entanto, é necessário enfatizar que, mesmo que tenha havido uma extensão das atribuições

do direito humanitário, para os tempos de paz e que as entidades da cruz vermelha tenham,

por um costume internacional, invadido campos que, tradicionalmente lhe eram estranhos

(como as situações em tempos de paz, não tendo havido uma declaração formal de guerra),

já as 4 convenções de genebra de 1949 e os 2 protocolos de 1977, prevêem hipóteses que a

doutrina dos internacionalistas reconhecia como próprios do campo de regulamentação

pertinente aos direitos humanos “stricto sensu”. trata-se dos 3 artigos iniciais, que contêm

dispositivos comuns àquelas 4 convenções, do art. 75, “garantias fundamentais” do

protocolo i (proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais) e dos art. 4o,

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“garantias fundamentais”, e art. 5o,”pessoas privadas de liberdade”, do protocolo ii

(proteção das vítimas dos conflitos armados não-internacionais)112.

mais moderno que o direito internacional humanitário, é o direito internacional dos

refugiados, ambos, como ressaltamos, na sua origem, motivados por situações de guerra. se

bem que a situação de grande número de pessoas ficasse, ao final das guerras, em todos os

tempos, num estado de extrema penúria, algumas deportadas e perseguidas, outras,

desabrigadas e vítimas de epidemias e da fome, outras ainda desprovidas de uma

nacionalidade ou com brutais mutações de sua nacionalidade (decorrentes de anexações

territoriais), somente ao final da primeira guerra mundial o fenômeno receberia a atenção

dos estados. em 1919, as incipientes normas do direito humanitário, naquele período

histórico, ou aquelas do direito da haia relativas a prisioneiros de guerra ou à proteção de

não combatentes, não contemplavam a proteção dos direitos de tais pessoas, razão pela

qual, os estados encarregaram a sociedade das nações de disciplinar e tentar resolver o

assunto, no imediato pós-guerra, dados os problemas na europa, conforme relata um

precioso estudo do prof. josé henrique fischel de andrade, “breve consideração histórica da

tradição que culminou na proteção internacional dos refugiados”113. seria, assim, nomeado

um alto comissário para os refugiados, na pessoa do sr. fridtjof nansen114, prêmio nobel da

paz em 1923; em conseqüência da eficaz atuação da sociedade das nações, através de

nomeações de altos comissários para assuntos temáticas, graves problemas na europa foram

resolvidos, com o assentamento do grande contingente de armênios dispersados por vários

países, e de gregos, turcos, assírios, assírios-caldeus e assimilados, com a ocorrência da

112 os textos se encontram reunidos no livro do prof. antônio augusto cançado trindade, a proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, id. ibid., p. 308-9, 309-12 e 312-25, respectivamente.113 . in: nádia de araújo e guilherme assis de almeida, coordenadores, o direito internacional dos refugiados- uma perspectiva brasileira, id., ibid., p. 99-125. em outro estudo, o mesmo professor fischel de andrade discorre sobre os mesmos fatos e ainda as outras organizações intergovernamentais instituídos após a ii guerra mundial, no capítulo “o direito internacional dos refugiados em perspectiva histórica”, in: alberto do amaral júnior e cláudia perrone-moisés, organizadores, o cinqüentenário da declaração universal dos direitos do homem, id., ibid., p. 75-120 e no livro direito internacional dos refugiados: evolução histórica (1921-1952), rio de janeiro, renovar, 1996.114 uma das grandes contribuições de nansen, foi a instituição do “passaporte nansen”, então expedido às pessoas que hoje seriam consideradas como “refugiadas”, o qual, aceito por todos os países-membros da sociedade das nações, permitiu o retorno aos países de origem de inúmeras pessoas. veja-se, a propósito, o trabalho do prof. jaime ruiz de santiago, “o direito dos refugiados em sua relação com os direitos humanos e em sua evolução histórica”. in: antônio augusto cançado trindade, gérard peytrignet e jaime ruiz de santiago, as três vertentes da proteção internacional dos direitos humanos- direitos humanos, direito humanitário, direito dos refugiados, id. ibid., p. 258 e ss.

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guerra entre a grécia e turquia, em 1922, ou a volta de milhares de refugiados a seus países

de origem como os russos emigrados após a revolução bolchevista, e situação inacreditável

de alemães e austríacos expulsos de seus países, pelo feroz regime do iii reich alemão. a

situação de pessoas deslocadas, no final da segunda guerra mundial, ainda em maiores

proporções que no primeiro pós-guerra, e em situações ainda mais calamitosas, no

continente europeu115, exigiu uma providência imediata dos estados; assim é que, nem bem

ainda estavam formalizados os tratados de paz, nem mesmo constituída a onu, 44 países

resolveram instituir, sob a égide dos eua, em 1943, a administração das nações unidas para

o auxílio e reabilitação, com base de atuação em genebra, conhecida por sua sigla em

inglês, unrra116, a qual, até 1947, data de sua auto-extinção e transferência de bens e

atribuições para a uma nova instituição internacional que seria então instituída, a

organização internacional dos refugiados, conseguiu repatriar mais de 7 milhões de

pessoas; na época funcionaria, igualmente na europa, o comitê intergovernamental para as

migrações européia, o cime, de 1952 a 1955, que contou com um escritório de

representação no rio de janeiro e que conseguiu encaminhar grande número de imigrantes

ao brasil, não considerados como refgiados. como se disse, a 15/12/1946, a ag da onu, em

votação estreita, a provar que o assunto dos refugiados já era uma questão política na guerra

fria (30 a favor, 5 contra e 18 abstenções), instituiria a organização internacional para os

refugiados, sediada em genebra, que na sua curta vida, teve a participação de apenas 18

estados do sistema das nações unidas, e equacionou a questão de assentamentos de 1

milhão de pessoas, basicamente nos eua, a repatriação de mais de 63 mil pessoas e

conseguiu que 410.00 pessoas permanecessem nos países onde se encontravam refugiadas,

tendo deixado um saldo de 410 mil refugiados, a cargo da entidade que lhe sucederia.

finalmente, dadas as oposições de países do bloco socialista, no correr da

denominada “guerra fria”, para os quais o assunto dos refugiados, assim como os relativos à

proteção dos direitos humanos deveriam ser de competência exclusiva dos estados (no

entendimento de que se deveria aplicar, para tais campo, o art. 2o § 7o da carta da onu, que

115 uma perfeita crônica da situação dos refugiados na europa, logo após o fim da segunda guerra mundial, bem como um estudo pormenorizado dos antecedentes do acnur, encontra-se no curso da academia de direito internacional da haia, do primeiro diretor desta instituição da onu, dr. g. j. van heuven goedhart, “the problem of refugees”, in: recueil des cours, a w. sijthoff, leiden, 1953, i, tomo 82, p. 261-369. 116 united nations relief and rehabilitation administration. seu ato constitutivo não reconheceria uma personalidade jurídica internacional à unrra, que, no entanto, num julgamento em um tribunal dos países baixos, teve tal reconhecimento.

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consagra o denominado “domínio reservado dos estados”) os estados membros daquela

organização, não conseguiram constituir uma organização intergovernamental, no sistema

da onu, para lidar com a questão dos refugiados: em seu lugar, a 03/12/1949, a ag da onu,

pela resolução 319 (iv), denominada “refugiados e pessoas apátridas” (“refugees and

stateless persons”), proporia a criação de um alto comissariado das nações unidas para os

refugiados, o acnur, que teria sua sede fixada em genebra, o qual teve, um ano depois, seu

estatuto (resolução 429(v) de 14/12/1950); destaque-se que o acnur principiou suas

atividades em 01 de janeiro de 1951, data expressiva, que servirá como limite temporal para

a aplicação da convenção internacional relativa ao estatuto dos refugiados, que seria

adotada, em genebra, ao final de uma conferência diplomática convocada pela onu, naquela

cidade, a 28 de julho de 1951. até os dias correntes, o acnur persiste em suas funções,

sempre sediada em genebra, e tem tido uma atuação cada vez mais relevante, não só como

órgão de execução das normas internacionais que seriam adotadas, em data posterior, como

um centro de estudo para o aperfeiçoamento das mesmas.

a citada convenção sobre o estatuto dos refugiados, como se disse, adotada em

genebra a 26/07/1951, constitui a magna carta dos refugiados e foi elaborada a partir de

projeto elaborado sob a égide do acnur; sua maior importância advém do fato de

caracterizar-se como um documento normativo multilateral, que tipifica o “status” de

refugiado, institui seus direitos subjetivos, através de um arrolamento dos mesmos, institui

obrigações aos estados partes de respeitarem tal “status”, bem como os deveres de

internalizarem nos respectivos ordenamentos jurídicos nacionais as normas protetoras

assim definidas, e, sobretudo, centraliza num único órgão da onu, o acnur, juntamente com

seus auxiliares, as tarefas concernentes à implementação e à aplicação eficaz das normas

internacionais específicas117.

a convenção sobre o estatuto dos refugiados de 1951, nasceria marcada pelas

dificuldades do momento de sua adoção: a) havia a necessidade de reconhecer-se a

situação das pessoas que se tinham beneficiado das normas votadas pela sociedade das

nações; b) havia, igualmente, necessidade de precisar a situação daquelas pessoas a quem

não fora possível aplicar as normas da organização internacional dos refugiados (essas, por

117 um dos grandes problemas que tinha enfrentado a sociedade das nações, era a multiplicidade de convenções específicas, que versavam sobre um dado assunto, e sempre com caráter regional, cuja aplicação e seguimento era de competência de “comissários” temáticos, como se pode verificar com o comissário para refugiados russos, estabelecido pelo acordo sobre refugiados russos de 05/07/1922.

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sua vez, sucessoras das normas do unrra), mas cujos direitos a refúgio não estavam

excluídas; c) as necessidades de regular-se a situação dos refugiados, antes da constituição

do acnur, ou seja, “acontecimentos antes de 1o de janeiro de 1951”. a tais condicionamentos

de ordem temporal, que passou a ser denominada de “reserva temporal”, havia ainda a

questão de definir-se qual a extensão geográfica dos acontecimentos que deram origem à

situação de refugiados, ou seja, se acontecimentos ocorridos unicamente na europa, ou

ocorridos na europa ou alhures (tal fenômeno será incluído na convenção, como uma opção

dada aos estados partes, e passaria a ser conhecido como “limitação ou reserva

geográfica”). tais dificuldades, ademais, eram acentuadas pelo posicionamento político dos

países do bloco socialista, naquele momento histórico, em que as questões dos direitos

humanos, particularmente dos refugiados, se apresentavam como um dos motivos para a

oposição leste-oeste, dada a inflexibilidade de não arredarem-se do conceito de que o tema

constituía domínio reservado dos estados. uma leitura direta do texto daquela convenção,

revela um documento recheado de concessões, de alternativas aos estados, e sobretudo,

com a nítida idéia de que se tratava de uma regulamentação internacional de um assunto

particular, ou seja, o problema dos refugiados na europa, que, tão logo resolvido, deixaria

exaurida a finalidade daquele ato internacional; em suma, uma convenção internacional

circunstancial, limitada no tempo e restrita ao espaço europeu, portanto, uma liqüidação de

assuntos do entre-guerras e da segunda guerra mundial, ocorridos na europa. foi assim que

o brasil, ao ratificar a convenção, pelo decreto 50.215 de 28/01/1961, fez uso da faculdade

de considerar como refugiado, as pessoas às quais se aplicassem as definições da mesma,

mas que tivessem sido atingidas por “acontecimentos ocorridos antes de 1o de janeiro de

1951 na europa ou alhures” (opções do art. 1o, seção b, § 1o inciso b).

no que diz respeito ao primeiro grande defeito da convenção sobre o estatuto dos

refugiados de 1951, qual seja, o da “reserva temporal”, os acontecimentos na europa e no

resto do mundo comprovaram que o problema dos refugiados ainda persistia, que não se

tratava de resolver-se um rescaldo de guerras naquele continente, e, sobretudo, que havia

necessidade de estender-se a definição de refugiado, para além daquela data limite de 1o de

janeiro de 1951. foi assim que os estados partes daquela convenção, em 31 de janeiro de

1967, na sede da onu, em nova york, assinariam o protocolo sobre o estatuto dos refugiados

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(no brasil, promulgado pelo decreto 70.946 de 07/08/1972)118, cujo dispositivo principal foi

ter considerado a definição de refugiado, constante naquela convenção, sem a constância

das referências aos acontecimentos anteriores a 1o de janeiro de 1951. portanto, a definição

de refugiado, nas normas internacionais da atualidade, é a seguinte: “qualquer pessoa..

que... temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social

ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em

virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem

nacionalidade e se encontra fora do país no qual tenha sua residência habitual em

conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temos, não quer

voltar a ele”(art. 1o seção a § 2o da convenção, com a redação dada pelo protocolo de 67).

no brasil, com a edição da lei 9.474 de 22 de julho de 1997119, “define mecanismos para a

implementação do estatuto dos refugiados de 1951, e determina outras providências”,

aquela definição da convenção de 1951, a qual revela uma nítida técnica de redação de atos

normativos segundo a “common law”, foi assim transcrito, no espírito da redação dos atos

normativos do sistema romano-germânico (dito: a “civil law”), e conforme as opções

possíveis que aquela convenção permite e que foram eleitas pelo legislador brasileiro

verbis:

art. 1o será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:i – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça,

religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

ii – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

[iii – devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país].

deve notar-se que o inciso iii, do artigo transcrito, entre colchetes e em itálico,

contém normas que inexistem na convenção de 1951 e seu protocolo de 1967, tendo sido

introduzido no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de compatiblizar seus dispositivos, no

tema da proteção dos refugiados, com os princípios da declaração de cartagena de 22 de

118 os textos da convenção de 1951 (versão original) e do protocolo de 1967, encontram-se in: nádia de araújo e guilherme assis de almeida, coordenadores, o direito internacional dos refugiados- uma perspectiva brasileira, id., ibid., respectivamente a p. 385-412 e p. 413-19. 119 veja-se de josé henrique fischel de andrade, “o brasil e a proteção dos refugiados: a discussão tem início” in pensando o brasil, brasília, congresso nacional, no 16, set/nov., 1996, p. 7-12.

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novembro de 1984, analisada mais além, neste capítulo.

no que respeita à limitação ou reserva geográfica da convenção sobre o estatuto dos

refugiados de 1951, ou seja, sua aplicação unicamente à situação dos refugiados no

continente europeu, (relembre-se, uma faculdade concedida aos estados signatários), a

princípio foi aceita pelo brasil e pelos estados latino-americanos. em data posterior, tais

condicionamentos foram retirados por muitos deles, tendo o brasil suspendido a

denominada “reserva geográfica”, a 19/12/1989. portanto, aquela definição de refugiado se

aplica a qualquer parte do mundo e sem qualquer condicionamento do tempo dos

acontecimentos que dão causa à condição de refugiado.

quanto à vigência no brasil da convenção relativa ao estatuto dos refugiados, é

necessário explicar os motivos de haver três decretos de promulgação, no país. um

primeiro, decreto no 50.215 de 28/01/1961, promulgou a mesma, com a indicação de que ao

brasil se aplicaria a opção do art. 1o, seção b, § 1o inciso a, e com exclusão dos seus artigos

15 e 17, tendo em vista haver o poder legislativo brasileiro (decreto legislativo no 11 de

07.07/1960), recusado aprovação dos mesmos; ambos consagram a obrigação de o pais

signatário conceder tratamento mais favorável que o concedido aos nacionais de um país

estrangeiro, relativamente a “direitos de associação”, no art. 15, inclusive sindicatos, e

relativamente a profissões assalariadas”, no art. 17, inclusive restrições impostas aos outros

estrangeiros, para a proteção do mercado nacional de trabalho. em 1972, o brasil aderiria ao

protocolo sobre o estatuto dos refugiados adotado em nova york, a 31 de janeiro de 1967,

que como já dito, seria promulgado no país, pelo decreto 70.946 de 07/08/1972; na ocasião

do depósito do seu instrumento de adesão, o brasil retiraria as suas reservas apostas aos

mencionados art. 15 e art. 17; faltava, assim, colocar no ordenamento jurídico nacional, tal

retirada daquelas exceções ao texto convencional, e portanto, restabelecer, no território

nacional, a vigência do texto integral da convenção sobre o estatuto dos refugiados. tal

desiderato teria sido a finalidade do decreto no 98.602 de 19/12/1989, o qual, no entanto,

repete, kafkianamente, os mesmo termos do decreto 50.215 de 28/01/1961, “ipsis litteris”,

mantendo as reservas aos mencionados art. 15 e art. 17. portanto, a situação era bizarra,

pois o brasil se comprometia, internacionalmente, face a um texto internacional, a retirar

suas reservas a outro texto internacional, mas, ao mesmo tempo, reafirmava, num decreto

inútil, que repetia outro, que mantinha aquelas reservas no seu ordenamento jurídico

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interno. isto posto, finalmente, o decreto no 99.757 de 03 de dezembro de 1990, no primeiro

de seus consideranda, declarando que o brasil, ao efetuar o depósito em 9 de abril de 1972

da carta de adesão ao protocolo de 1967 sobre o estatuto dos refugiados, retirara as reservas

aos artigos 15 e 17, e no segundo, reconhecendo que o decreto no 98.602 de 19/12/1989

não levara em consideração aquela retirada de reservas, enfim: “decreta que a convenção

relativa ao estatuto dos refugiados será executada e cumprida tão inteiramente como nela

se contém, e que, para os efeitos da mesma, com relação ao brasil, se aplicará o disposto

na seção b.1 (b) do artigo 1o”. portanto, na atualidade, a convenção sobre o estatuto dos

refugiados de 1951, se encontra em vigor no brasil, por força do decreto no 99.757 de

03/12/1990120, e diga-se, sem qualquer reserva, e com as opções que aquela convenção lhe

faculta, conforme o mencionado artigo 1o .

uma análise das normas internacionais sobre refugiados, contempladas na

convenção de 1951 e no seu protocolo de 1967, revela a face verdadeiramente intrusiva

destas normas (o fenômeno que temos denominado de globalização vertical), na medida em

que obrigam aos estados conferirem direitos especiais aos refugiados, nos respectivos

ordenamentos jurídicos nacionais, as quais, certamente, instituem um regime jurídico

nitidamente diferenciado daquele que, nos estados democráticos, são conferidos aos

estrangeiros com residência permanente, ou aos que postulam um visto de entrada. uma

excelente síntese com a descrição dos efeitos do tratamento dispensado pelas normas

internacionais aos refugiados, nos ordenamentos jurídicos nacionais, encontra-se num curso

da academia de direito internacional da haia, em 1953, ministrado pelo primeiro alto

comissário do acnur, dr. g. j. van heuven goedhar121. podem-se distinguir quatro

tratamentos instituídos naquelas normas internacionais, relembrando que tais fenômenos se

encontram introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro:

a) igualdade de tratamento com aquele conferido aos nacionais do estado que

concede o refúgio; assim: a liberdade de praticar sua religião e liberdade de instrução

religiosa dos seus filhos (art. 4o), o direito ao livre acesso aos tribunais (art. 16 § 1o ), o

direito à educação primária (art. 22), o direito à assistência médica e à assistência social, em

particular a refugiados considerados indigentes (art. 23), o direito ao trabalho e a condições

120 o texto da mesma pode ser consultado apud nádia de araújo e guilherme assis de almeida, coordenadores, o direito internacional dos refugiados- uma perspectiva brasileira, id. ibid., p. 385-412.121 “the problem of refugees”, in: recueil des cours, 1953, i, tomo 82, p. 261-369, já citado em rodapé anterior, em particular, p. 206-7.

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dignas de trabalho e direito à seguridade social (art. 24), os deveres de submeterem-se a

racionamentos, nas mesmas condições impostos à população em geral (art. 20) e igualdade

de imposição de deveres tributários exigidos dos nacionais do estado que concede o refúgio

(art. 29);

b) igualdade de tratamento no estado do refúgio, com aquele por este conferido aos

nacionais do refugiado; trata-se da aplicação, no caso dos refugiados, daquelas situações em

que existem favores recíprocos instituídos em tratados bilaterais, aplicáveis, no território de

cada estado, aos nacionais do outro, em geral, na dependência de reciprocidade. são várias

situações, mas no que se refere aos refugiados, a convenção expressamente cita: o

reconhecimento dos direitos de propriedade industrial e direitos de autor (art. 14) o direito à

assistência judiciária e favores de isenção de cauções judiciais (art. 16 § 2o);

c) tratamento mais favorável que aquele concedido a estrangeiros, nas mesmas

circunstâncias122, como: o direito de associação em entidades sem fins políticos nem

lucrativos e aos sindicatos profissionais (art. 15), e, nas atividades assalariadas (art. 17 §

1o);

d) tratamento tão favorável quanto possível, e, em todo caso, tratamento não menos

favorável do que é dado, nas mesmas circunstâncias, a estrangeiros em geral, como o

direito ao exercício de profissões assalariadas (art. 18) ou de uma profissão liberal aos

portadores de diplomas universitários (art. 19), aquisição de bens móveis ou imóveis (art.

13), direito à educação e o acesso a ela, além do ensino primário, reconhecimento de

certificados de estudos, de diplomas e títulos universitários estrangeiros, direito à isenção

de taxas e à concessão de bolsas de estudo (art. 22 § 2o).

acreditamos que as mais importantes regras da convenção sobre o estatuto do

refugiado de 1951 e no seu protocolo de 1967, são aquelas relativas aos direitos subjetivos

de admissão de um refugiado no país de refúgio, inclusive suas expectativas de direito a

tanto (as normas de proibição de “refoulement”, ou seja, o rechaço de um pretendente a

refúgio, nas fronteiras do estado), o arrolamento das causas de recusa do estado em

conceder aquela condição, as proibições de “refoulement”, de deportação, de expulsão e de

extradição e, enfim, as causas da cessação da condição de refugiado. É digno de nota que

122 a convenção, no art. 6o, define as implicações no uso da expressão “nas mesmas circunstâncias”, no art. 6o: as condições que teria um interessado qualquer de preencher, notadamente à duração e às condições de permanência ou de residência, para poder exercer um direito em causa, se não fosse um refugiado, com exceções daquelas que, em razão de sua natureza, não podem ser preenchidas pelo refugiado.

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tais elementos, dentre outros que serão analisados mais além, neste capítulo, tornam o

refúgio um instituto visceralmente distinto do instituto do asilo político, conforme existente

na américa latina. no que respeita à entrada, nenhum estado poderá rechaçar um postulante

a refúgio e devolver a pessoa para os territórios de outros estados (“refoulement”), em

particular daqueles nos quais sua vida ou sua liberdade sejam ameaçadas, em virtude de

raça, religião, nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas

(art. 33 § 1o ); da mesma forma, e nas mesmas circunstâncias, não poderá deportá-la123 ou

restituir a pessoa, a não ser que seja considerado como um perigo para a segurança do pais

em que se encontre ou que tendo sido condenada, definitivamente, por crime ou delito

particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do estado em que se encontre e

no qual deseja solicitar refúgio (art. 33 § 2o). no caso de expulsão de refugiados, a qual

nunca poderá ser para o país de onde proveio, deverão os estados signatários conceder ao

refugiado um tempo para este obter admissão legal em outro país (art. 32 § 3o ). as entradas

irregulares de tripulantes de navios ou aeronaves ou de passageiros clandestinos, não

poderão ser impedimentos para um estrangeiro solicitar refúgio (art. 11)124. são condições

para a não aplicação dos dispositivos da convenção (na verdade, casos legítimos para a os

estados poderem denegar a condição de refugiado, aos pretendentes a refúgio): a) a

comissão de um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a humanidade,

no sentido dos instrumentos internacionais elaborados para prever tais crimes (devendo

notar-se que na lei brasileira, ao transcrever tal dispositivo, ainda acrescentou: “crime

hediondo, participação em atos terroristas ou tráfico de drogas”125) ; b) a comissão de um

crime grave comum, fora do país de refúgio, antes de seus autores serem nele admitidas

como refugiados; c) às pessoas culpadas de atos contrários aos fins e princípios das nações

unidas (art. 1o, seção f). enfim, a cessação da condição de refugiado não mais depende de

um ato discricionário dos estados, mas sim de um ato administrativo vinculado às

123 a convenção, no art. 33, se encontra ementado como “proibição de expulsão ou de rechaço” e, portanto, se refere a “expulsão”, que, a nosso entender, deveria ter sido “deportação”. na verdade, a expulsão é um ato administrativo, que pressupõe estar o refugiado já em situação de permanência autorizada no território do estado. ainda no nosso entender, a ato de não conceder permanência, a uma pessoa que já se encontra, fisicamente, no território nacional, é um ato de “deportação”.124 no ordenamento jurídico brasileiro, a lei 9.474 de 22/07/1997, segundo seu art. 8o a entrada irregular não constitui impedimento para solicitação de refúgio, e segundo o art. 10, e a simples solicitação, suspenderá os procedimentos administrativos ou criminais na jurisdição local, pela entrada irregular. 125 trata-se do art. 3o, inciso iii, da lei 9.474 de 22/07/1997, “define mecanismos para a implementação do estatuto dos refugiados de 1951, e determina outras providências”

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condições arroladas na convenção, no art. 1o seção c: a) se o refugiado voltou a valer-se da

proteção diplomática do país de que é nacional; b) havendo perdido a nacionalidade, o

refugiado a recuperou voluntariamente; c) se o refugiado adquirir nova nacionalidade e

goza da proteção diplomática do país cuja nacionalidade adquiriu; d) se o refugiado, de

maneira voluntária, novamente se estabeleceu no país que abandonou ou fora do qual

permaneceu por medo de ser perseguido; e) se, por terem deixado de existir as

circunstâncias em conseqüências das quais foi reconhecido como refugiado, este não

poderá mais continuar a recusar valer-se da proteção do país de que é nacional (art. 1o seção

c, inciso 5), ou sendo apátrida, o refugiado estar em condições de voltar ao país no qual

tinha sua residência habitual (art. 1o, seção c, inciso 6o).

no que respeita à aplicação da convenção sobre o estatuto dos refugiados na europa,

África e américa latina, a situação é complexa e sua análise em detalhes, fugiria ao âmbito

deste capítulo, limitando-nos, apenas, a citar os fatos mais relevantes. na europa, sobretudo

da próspera comunidade européia, a situação dos refugiados, que pareceria encerrada, se

agrava, com a entrada de imigrantes provenientes de países do oriente médio, via alemanha

(aproveitando-se de sua legislação extremamente benevolente para com os estrangeiros

imigrantes), das antigas colônias inglesas e francesas (do magreb, da África e da Ásia), e a

imigração maciça de pessoas que fugiam do desmembramento da antiga iugoslávia, em

especial da situação das minorias albanesas neste antigo país e após a queda ao regime

socialista, e o esfacelamento político na albânia, após a derrocada de idêntico regime

socialista: o problema tem sido equacionado através de normas da comunidade européia, no

campo da regulamentação da mão de obra estrangeira e das normas de livre circulação de

pessoas, no espaço comunitário europeu. no que respeita à África, sob os auspícios da oua,

seria adotada, a 1969, a convenção da oua regendo os aspectos específicos dos problemas

dos refugiados na África126; à vista da situação endêmica de guerras contínuas nos países

daquele continente, problemas novos eram regulamentados, como o movimento

126 importante observar que, ademais de adotar expressamente as definições de refugiado estatuídas na convenção sobre o estatuto dos refugiados de 1952 e no seu protocolo de 1967, esta convenção africana ainda acrescentou: “o termo “refugiado” também será aplicado a qualquer pessoa que, devido a agressão externa, ocupação, dominação estrangeira ou eventos que seriamente prejudiquem a ordem pública, ou em parte ou na totalidade do seu país de origem ou nacionalidade, é compelida a deixar seu lugar de residência habitual, a fim de buscar refúgio em outro lugar fora de seu país de origem ou nacionalidade”. texto livremente traduzido, conforme reproduzido apud josé henrique fischel de andrade, “regional policy approaches and harmonization: a latin american perspective”, in international journal of refugee law, oxford university press, vol. 10, number 3, july 1998, 10th anniversary, p. 389-409, em particular, p.393.

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transfronteirico maciço de inteiras populações, por entre os países africanos, não só por

questões raciais ou de movimentos revolucionários ou sediciosos internos, mas igualmente,

dada a situação de penúria econômica a que estavam submetidos no países de origem. na

américa latina, as agudas questões de refugiados na américa central, em particular as

situações tormentosas vividas pelo méxico e panamá, com o êxodo incontrolável de

refugiados, devido às guerras naquela sub-região, e como resultado de vários acordos

internacionais de pacificação, dos quais se destaca o empreendido pelo denominado “grupo

de contadora”127 e várias outras reuniões regionais, dariam causa à adoção da declaração de

cartagena, a 22 de novembro de 1984; por seus termos gerais, e não meramente episódicos

para regular a situação na américa central, a declaração de cartagena128, (a mesma acabaria

por influir diretamente no ordenamento jurídico do brasil relativamente aos refugiados),

provou ser um importante ato normativo internacional, que dava ao refugiado, no que

respeita à américa latina, um tratamento jurídico adequado, em perfeita coordenação com as

competências e recursos do acnur.

no brasil, mesmo após ter havido uma internalização das normas do estatuto dos

refugiados, conforme estabelecidas pela convenção de 1951 e seu protocolo de 1967, foi,

como se disse, editada a referida lei 9.474 de 22 de julho de 1997129, “define mecanismos

para a implementação do estatuto do refugiado de 1951, e determina outras providências”,

inclusive com as normas e a filosofia da declaração de cartagena. esta lei concede ao

refugiado os direitos e deveres específicos, diferenciados daqueles que no ordenamento

jurídico nacional são conferidos e exigidos dos estrangeiros, tendo em vista a remissão

expressa à convenção sobre o estatuto dos refugiados de 1951 e ao seu protocolo de 1967 (o

que implica na introdução no sistema jurídico interno do brasil, daqueles tratamentos

diferenciados instituídos pelas normas internacionais, em relação aos direitos e deveres

conferidos e exigidos dos estrangeiros em geral) e reproduz as normas relacionadas à

127 quanto à questão da pacificação da américa central, veja-se nosso trabalho "soluções pacíficas de litígios na américa latina: retrospectiva 1988", in: revista da faculdade de direito da usp, são paulo, v. 83, (jan./dez. 1988)., p. 176-218 e, sobretudo, um precioso estudo mais moderno, do prof. dr. fredys orlando sorto, américa central: relações internas e externas, crise política e solução pacífica, dissertação de mestrado apresentada à faculdade de direito da usp, em direito internacional, em 1990.128 o texto da declaração de cartagena encontra-se transcrito, em português, in: nádia de araújo e guilherme assis de almeida, coordenadores, o direito internacional dos refugiados..., id., ibid., p. 421-30.129 veja-se de josé henrique fischel de andrade, “o refugiado à luz do direito internacional e do direito brasileiro” in o advogado: desafios e perspectivas no contexto das relações internacionais, brasília, conselho federal, 1997, p.149-64.

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entrada, pedido de refúgio, proibições ao rechaço, à deportação., e à expulsão. como

novidade, a lei brasileira regula um assunto que não consta na convenção sobre o estatuto

dos asilados e no protocolo de 1967: a questão da extradição dos refugiados, em 3 artigos,

do seu título v, “dos efeitos do estatuto de refugiados sobre a extradição e a expulsão”: no

art. 33 manda sustar qualquer pedido de extradição formulado em relação a um refugiado, e

que tenha por base os fatos que fundamentaram a concessão de refúgio; no art. 34,

determina que a solicitação de refúgio suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo

de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que

fundamentaram a concessão de refúgio; no art. 35, determina que para os efeitos dos artigos

33 e 34, qualquer solicitação de reconhecimento como refugiado deverá ser comunicada ao

órgão onde tramitar o processo de extradição.

ademais de haver transformado as normas internacionais em dispositivos do

ordenamento jurídico interno do brasil, segundo as suas necessidades e potencialidades, foi

instituído, no âmbito do ministério da justiça, como órgão de deliberação coletiva, o

conselho nacional para os refugiados, conare, integrado por representantes dos ministérios

da justiça, das relações exteriores, do trabalho, da saúde, da educação e desportos, do

departamento da política federal, de uma ong que se dedique a atividades de assistência e

proteção dos refugiados no brasil (a presente, a caritas, entidade brasileira, representada

pela caritas arquidiocesana do rio de janeiro e a de são paulo) e, enfim , como convidado, o

acnur, com direito a voz mas sem voto. mister referir-se, igualmente, à ativa participação da

oab, por suas seções de são paulo e do rio de janeiro, que, através de um “convênio sobre

assistência jurídica e entrevistas a refugiados e solicitantes de refúgio”130, celebrado com o

acnur (treinamento, assistência em questões técnicas e informações sobre a situação em

outros países) e a caritas (recursos financeiros e assistência moral e religiosa às pessoas),

participa, através de entrevistas com postulantes a refugiados, as questões da

admissibilidade de conceder-se o estatuto aos mesmos, com a emissão de um parecer, a ser

aprovado pelo conare..

enfim, é mister retomar o parágrafo final de seção 2 do presente capítulo, para

melhor distinguir-se, de um lado, o instituto do asilo político, conforme regulado nos usos e

130 confira-se, de fernando fernandes da silva, numa análise dos pontos principais da lei 9.474 de 22/07/1997, apud: “a proteção do refugiados no ordenamento jurídico brasileiro: o fundamento constitucional e as medidas legislativas e administrativas aplicáveis” in: revista trimestral de direito público, malheiros, são paulo, 2002 (no prelo).

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costumes regionais da américa latina e nas convenções multilaterais vigentes nos países

latino-americanos, e de outro, o instituto do refúgio, conforme regulado na convenção sobre

o estatuto dos refugiados de 1951 e no seu protocolo de 1967 e de cuja aplicação se

encontra encarregado um órgão da onu, o acnur131. preliminarmente, é necessário dizer que

as convenções multilaterais sobre asilo político, têm uma vigência parcial, mesmo entre os

estados latino-americanos, ao passo que a convenção de 1951 e o protocolo de 1976

relativos ao estatuto dos refugiados, além de serem convenções mundiais, têm maior

aceitação entre os estados latino-americanos, tendo em vista que somente cuba e méxico

não nos assinaram . dito isto, os principais traços característicos do instituto do refúgio

internacional são: a) os estados partes naqueles instrumentos internacionais, não têm a

discricionariedade de conceder ou não o refúgio: dadas as condições objetivas para sua

concessão, terão o dever de proceder afirmativamente: b) o controle da aplicação das

normas convencionais sobre refúgio depende de órgãos internacionais, ficando, portanto a

responsabilidade dos estados por inadimplência de seus deveres, no regime de violação de

normas específicas, sob controle de órgãos internacionais multilaterais; c) os motivos para a

concessão de refúgio não são as simples perseguições por motivos políticos, mas ainda

outras, por motivos de raça, grupo social, religião, e sobretudo situação econômica de

grande penúria; d) há deveres precisos de os estados partes, concederem aos refugiados

documentos de identidade e de viagem, e, no caso brasileiro, proibições expressas de

deportação aos postulantes, e de casos particulares de proibições de expulsão e de

extradição aos refugiados, e d) por tratar-se de um instituto regulamentado sob a égide da

onu, as normas que regem o refúgio têm salvaguardas de denegação de refúgio a pessoas

que tenham cometido um crime contra a paz, um crime de guerra ou um crime contra a

humanidade, no sentido dos instrumentos internacionais elaborados para prever tais crimes,

bem como proibições de conceder refúgio a pessoas culpadas de atos contrários aos fins e

princípios das nações unidas. as discussões sobre tratar-se de crime de direito comum ou de

um crime político, que são centrais nas convenções sobre asilo, uma vez que determinantes

da concessão de asilo político a pessoas perseguidas em seus países de origem ou residência

permanente, são irrelevantes na questão do estatuto dos refugiados, onde às motivações

políticas para a perseguição, e mais ainda, para a insustentabilidade de uma pessoa

131 um exemplar estudo comparativo entre ambos os institutos, encontra-se apud josé henrique fischel de andrade, “regional policy approaches and harmonization: a latin american perspective”, id., ibid., p. 393.

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permanecer em seu país de origem ou residência permanente, se somam questões

relacionadas a motivos religiosos, de pertencimento a determinados grupos sociais e, nos

dias correntes, de estar obrigado a viver numa situação de penúria econômica.

tal exercício de comparação entre os institutos do asilo político e do refugiado, sem

dúvida serve de apoio às considerações científicas sobre as diferenças fundamentais entre

ambos. mas, igualmente serve para afastar os argumentos daqueles autores brasileiros que

sustentam que a proteção dos asilados, no ordenamento jurídico nacional, tem sua base

constitucional no inciso x do art. 4o da constituição federal de 1988, recorde-se: “a

república federativa ao brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelos seguintes

princípios:...x- concessão de asilo político”. a nosso ver, este dispositivo serve, como se

pode deduzir de seu enunciado, unicamente ao asilo político, o que não significa que o

instituto do refúgio não tenha uma base constitucional! tem, sim: no mesmo art. 4o, porém

no inciso “ii- prevalência dos direitos humanos” e no inciso “ix- cooperação entre os povos

para o progresso da humanidade”!

como dissemos, no início deste capítulo, o assunto da convergência dos direitos

humanos “stricto sensu”, do direito dos asilados, na américa latina, do direito dos

refugiados e do direito internacional humanitário, será aprofundado no cap. 21 desta obra.

contudo, na conclusão do presente capítulo, é mister deixar registrado um fato político de

extrema importância, que diz respeito ao brasil, e que revela, na prática, a citada

convergência; caso não tivesse havido a interveniência do acnur, numa situação particular

no chile, o próprio instituto do asilo político na américa latina, teria permanecido letra

morta, no referente à proteção da pessoa humana. após o movimento militar no brasil, em

1964, e suas seqüelas, como o famigerado o ai-5 de 1968, várias pessoas, inclusive

personalidades da vida política, intelectual e de legítima representação de interesses de

brasileiros (sindicatos e movimentos estudantis), buscaram asilo diplomático ou territorial

no chile; lá se encontravam, quando houve, em 1973, o golpe militar do general pinochet,

mais feroz e menos respeitoso dos valores da pessoa humana que aquele do brasil. foi por

intervenção decisiva do acnur, que os brasileiros asilados no chile não foram devolvidos ao

brasil, juntamente com cerca de outros 5.000 refugiados de outros nacionalidades que se

encontravam naquele país, e mais um em número de chilenos perseguidos, foram

repatriados para outros 10 países, nos quais era plena a democracia e, portanto, vigente um

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sistema jurídico de respeito aos direitos humanos132.

132 veja-se in; prof. jaime ruiz de santiago, “o direito dos refugiados em sua relação com os direitos humanos e em sua evolução histórica”. in: antônio augusto cançado trindade, gérard peytrignet e jaime ruiz de santiago, as três vertentes da proteção internacional dos direitos humanos- direitos humanos, direito humanitário, direito dos refugiados, id., ibid., p. 276.

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