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G u l a P e r v e r s a
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G u l a P e r v e r s a
UM
Chamo-me Elizabeth Tucker. Mas só a minha mãe é que me
trata por Elizabeth, pois, desde que me lembro, toda a gente me
chama Lizzy. E desde que me lembro também faço cupcakes.
Assim que acabei o secundário inscrevi-me no curso de Artes
Culinárias na Universidade Johnson & Wales, em Rhode Island,
sonhando ser um dia chef pasteleira. Fui uma das piores alunas
da minha turma. A minha média poderia ter sido bem melhor,
se não tivesse chumbado na cadeira de Molhos. O meu molho
tinha grumos e o mesmo se pode dizer da minha vida desde en-
tão. Isto não quer dizer que a minha vida seja completamente
má, mas de certeza que não tem sido muito suave.
Passei a infância na Virgínia e, quando andava na pré-primária,
o Billy Kruger pôs-me a alcunha de Bico de Papagaio, a qual tive
de suportar durante todo o primeiro ciclo. Herdei os olhos casta-
nhos e o nariz proeminente do meu avô Harry, mas, apesar de o
meu nariz não ser grande coisa, pensava que podia ter-me calha-
do algo pior, pois a alcunha do Billy Kruger era… Cocó na Cueca.
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J a n e t E v a n o v i c h
Depois, quando estava no 9.o ano, envolvi-me uma vez com
o Ryan Lukach — num momento de enganadora curiosidade
— e o parvalhão foi dizer a toda a gente que eu tinha um su-
tiã almofadado. Por amor de Deus, eu tive um desenvolvimen-
to tardio! E, na verdade, o sutiã era tão acolchoado que eu nem
percebi que ele me havia tocado ali.
Quando já estava na Johnson & Wales fiquei noiva de um co-
lega chamado Anthony Muggin. Duas semanas depois de aca-
barmos o curso, e uma antes do casamento, o Anthony e o tio
Gordo foram apanhados a assaltar um camião frigorífico cheio
de bifes. Isto acabou por ser uma sorte porque, depois de ter ido
ver o Anthony à prisão e de lhe ter devolvido o anel de noivado,
encharquei-me com meia dúzia de shots de vodca, caí na casa de
banho e bati com o nariz no lavatório. Quando finalmente me
tiraram os adesivos, tinha deixado de ser um Bico de Papagaio.
Portanto cá estou eu, com o nariz mais giro das redondezas
e, finalmente, com um peito que se veja. Não será enorme mas
é melhor do que nada. E já me disseram ser bastante tentador.
Tentador é bom, ou não?
Em janeiro, três dias depois de fazer 28 anos, herdei a casa da
minha excêntrica tia-avó Ophelia. A casa fica em Marblehead, a
norte de Boston e a sudeste de Salem. Tive de esvaziar a minha
conta bancária para pagar os impostos sobre a casa, deixei o em-
prego num restaurante da Baixa nova-iorquina e mudei-me para
a herança da tia Ophelia. Provavelmente, a coisa mais inteligente
teria sido vender a casa, mas ninguém pode acusar-me de fazer
sempre as coisas mais inteligentes. A verdade é que eu estava
farta de Nova Iorque. O horário do restaurante era horrível, o am-
biente na cozinha era tóxico e o chef principal detestava cupcakes.
Nestes últimos cinco meses tenho estado a viver na minha
nova casa de Marblehead e a trabalhar como chef pasteleira na
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G u l a P e r v e r s a
Pastelaria Dazzle’s, em Salem. A pastelaria pertence à família
Dazzle desde o tempo dos puritanos e hoje em dia é gerida pela
Clarinda Dazzle. Ela vive num apartamento por cima da loja,
já se divorciou duas vezes, está quase nos 40 anos e é pareci-
da com a Cher (ou com um dia mau da Cher). Tem os mesmos
1,65 m que eu, mas parece mais alta. Acho que é por causa do
cabelo. Tem o cabelo preto com alguns fiapos grisalhos. Se fos-
se liso chegaria aos ombros. Mas não, o cabelo da Clara é uma
enorme massa de energia descontrolada, que ela por vezes usa
meio apanhado atrás. Tem uns olhos azuis penetrantes e dizem
que o seu nariz e a sua boca foram herdados com os genes dos
índios Wapanoag, vindos da mãe. Eu não tenho antepassados
assim tão exóticos e os meus ascendentes austríacos e dinamar-
queses deixaram-me um cabelo loiro demasiadamente fino — e
um corpo que parece mais atlético do que é na realidade.
Estávamos numa terça-feira de manhã, o sol de junho brilhava
sobre Salem enquanto eu e a Clara cozinhávamos desde as cin-
co da manhã. Eu vestia, como habitualmente, calças de ganga,
t-shirt e sapatilhas, mais o avental branco de chef. Tinha o cabe-
lo apanhado num rabo de cavalo e estava coberta com farinha e
açúcar em pó. Estava tudo perfeito exceto o humor da Clara. Já
eram oito da manhã, horas de abrir a pastelaria, e a colega da
caixa, a Gloria Binkly, ainda não tinha chegado.
— Mas que chatice! — disse a Clara. — Isto não é propria-
mente uma fábrica. Somos só nós três. Como podemos acabar
de cozinhar se temos de estar sempre a correr para a porta para
vender um bolo? Onde raio é que ela se meteu?
Estávamos na sala grande da frente, onde eram vendidos os
produtos da pastelaria. O chão era de tábuas de pinho largas e
as paredes de estuque irregular. Até tinha um aspeto decente,
considerando que já era do tempo em que havia julgamentos
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J a n e t E v a n o v i c h
de bruxas. As caixas onde se exibiam os produtos eram antigas,
de vidro com moldura de madeira escura e, naquele momento,
estavam cheias com rolinhos de canela, quatro tipos diferentes
de scones, tartes de amêndoa e de maçã. Os vários tipos de pão
estavam em cestos de arame, encostados à parede. O espaço
que ainda sobrava atrás dos vidros estava prestes a ser ocupado
pelos meus cupcakes. A caixa registadora datava de 1920, mas o
aparelho para pagar com cartão era do último modelo.
Um carro preto, comprido e chique, parou em frente à pastelaria
e dele saiu um homem. Tinha mais de 1,80 m, com cabelo negro
e brilhante pelos ombros, caindo sobre o rosto numa onda. Enver-
gava um fato preto de corte perfeito e uma camisa também preta.
Aproximou-se da porta. Senti um arrepio na pele e um calor
repentino no peito.
— Santo Deus! — disse eu à Clara.
— De santo é que ele não tem nada — respondeu ela.
O homem parou a uns centímetros da porta e olhou para
dentro, para mim. Tinha uma boca séria e sensual. Aparentava
a minha idade e era absolutamente elegante. Apontou-me um
dedo, como que a dizer para me aproximar.
— Achas que ele quer um bolo? — perguntei à Clara.
— Ou isso ou a tua alma.
Fui até à porta, abri-a e espreitei para fora.
— Posso ajudá-lo?
— Isso é o que veremos — disse ele. — Hei de voltar quan-
do precisar de ti. Mas até lá vais lembrar-te de mim.
Tocou com a ponta do dedo na minha mão e, quando o tirou,
eu tinha uma queimadura que começava a fazer bolha. Dei um
salto para trás e atirei com a porta, fechando-a. O tipo de preto
rodou nos calcanhares, entrou no seu luzidio automóvel, o mo-
tor roncou e ele partiu.
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G u l a P e r v e r s a
— Mas que raio…? — disse eu, olhando para a minha mão.
— Estou com pele de galinha — disse a Clara. — E quando
se viveu toda a vida em Salem é preciso muito para nos deixar
neste estado…
Pois eu, pessoalmente, detesto que me deixem em pele de
galinha. Sempre que possível, evito-o.
— Vou convencer-me de que isto foi uma picada de inseto
— disse à Clara. — Provavelmente foi uma aranha muito pe-
quena, mas com muito veneno.
— Sim — replicou ela. — Provavelmente foi isso e não des-
te conta.
Às 9h10 a porta da frente bateu com estrondo e a Glo en-
trou, ofegante.
— Eu sei que estou atrasada, mas vocês nem vão acreditar
no que arranjei! — disse ela, largando a mochila preta em cima
do balcão de vidro. — Estava a passar por aquela loja arrepian-
te que há na Essex Street, a que vende frigideiras mágicas e
frascos com olhos de lagartixas, e tive uma sensação mesmo
esquisita. Era como se alguma coisa me estivesse a chamar de
dentro da loja.
A Glo é solteira como eu e tem menos quatro anos e dois
centímetros. Tem caracóis ruivos, apanhados num carrapito,
sardas, corpo normal e elegante, e um guarda-roupa monoto-
namente preto, maioritariamente verde-azeitona. Hoje trazia
vestido meias e botas pretas, uma saia preta curta, t-shirt verde-
-azeitona e um casaco de ganga.
A Clara olhou-a, danada.
— Da última vez que chegaste atrasada disseste que tinhas
sido assaltada por um troll da ponte.
— Sim, na verdade era o Sr. Greber, que caiu em cima de
mim completamente bêbedo, mas isto foi diferente. Juro! É o
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destino. Vocês sabem como eu sempre pensei que devia ser es-
pecial…! Tipo mágica, estão a ver?
— Não — respondeu a Clara.
— Bem, para começar tenho uma cicatriz na testa que pare-
ce um relâmpago. Exatamente como o Harry Potter.
Eu e a Clara examinámos-lhe a testa.
— Sim, talvez pareça um pequeno relâmpago. Como foi que
a fizeste? — perguntou a Clara.
— Fui contra a mesa do café quando tinha seis anos.
— Acho que isso não conta — respondeu a Clara.
A Glo passou o dedo pela cicatriz.
— Posso ter sido empurrada por um espírito maligno.
Eu e a Clara revirámos os olhos.
— Também houve aquela vez em que vos disse que tinha
visto uma aura verde a envolver a senhora Norbert — disse ela
— e uma semana depois ela ganhou a lotaria.
— Isso é verdade — assentiu a Clara. — Eu lembro-me.
— De qualquer maneira, isto é especial — retomou a Glo,
tirando da mochila um livro de cabedal em mau estado. — Este
livro chamou-me da loja. Eu precisava de ter este livro.
Eu e a Clara olhámos para o livro por cima do ombro da Glo.
O cabedal apresentava marcas do tempo, mas era difícil dizer se
eram de antiguidade ou feitas de propósito. A capa tinha arabes-
cos manuais representando flores, folhas e pequenos dragões.
A fechar o livro havia um cadeado de metal martelado.
A Glo abriu o cadeado e mostrou um frontispício laboriosa-
mente escrito a tinta. Na página oposta alguém tinha escrito,
numa caligrafia antiga e perfeita, Livro de Feitiços de Ripple.
— Quem é o Ripple? — perguntou a Clara.
— Na loja ninguém sabia — respondeu a Glo. — Mas a data
do livro é 1692, a época dos julgamentos das bruxas de Salem.
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— Vira-o lá, para ver se não diz fabricado na china na con-
tracapa — sugeriu a Clara.
A Glo olhou para ela.
— Logo tu, não devias ser tão cínica em relação a este livro.
Toda a gente sabe que os Dazzle não são normais.
Esta era nova para mim. Só tinha mudado para Marblehead
havia cinco meses e ainda não estava a par de todos os boatos
sobre as personagens estranhas da cidade.
— Como assim? — perguntei.
A Glo baixou o tom da voz.
— Os Dazzle sempre tiveram capacidades especiais. Até ouvi
dizer que alguns deles podiam voar.
Olhei inquisitoriamente para a Clara.
— Tu podes voar?
— Sem avião, não.
A Glo virou algumas páginas do livro.
— Aposto que encontro aqui um feitiço para fazer voar.
— E que tal arranjares um feitiço para trabalhar? — disse-
-lhe a Clara. — Estão ali seis tabuleiros com bolos que têm de
ser colocados no expositor.
Virei-me para regressar à cozinha e esbarrei em 1,80 m de
músculos rijos e péssima atitude. Ele segurou-me para eu não
cair e engasguei-me.
— Santo Deus! — disse eu. — De onde saíste tu?
— De Banguecoque, mas isso agora não interessa.
Ele olhou em volta.
— Estou na Dazzle’s, certo?
Todas acenámos que sim, especadas a olhar para ele. Tinha o
cabelo espesso e loiro-escuro, algures entre o despenteado pelo
vento, por ter acabado de acordar, e por não conseguir penteá-lo.
A sua pele estava bronzeada. As sobrancelhas eram mais espes-
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J a n e t E v a n o v i c h
sas e escuras do que o cabelo e os olhos castanhos e penetran-
tes. A postura era confiante. A linguagem corporal intimidava.
As botas estavam empoeiradas. As calças de ganga estavam nas
últimas mas moldavam agradavelmente as formas mais inte-
ressantes. A t-shirt azul-escura tinha manchas brancas devido
à farinha do meu avental.
Ele olhou para a t-shirt e sacudiu a farinha.
— Estou à procura da Elizabeth Tucker.
Era o meu segundo encontro do dia com um tipo grande e
algo assustador e eu já estava de pé atrás.
— Sou eu — respondi, recuando um pouco.
Ele olhou-me de alto a baixo.
— Só podia.
Achei que «só podia» não era muito lisonjeiro.
— O que quer dizer com isso?
Ele suspirou.
— Quero dizer que vais ter problemas.
Olhou em volta.
— Há algum sítio onde possamos falar?
— Podemos falar aqui mesmo.
— Não me parece.
Cruzei os braços e semicerrei os olhos.
— Miúda, não estou com muita paciência — disse ele. — Só
quero despachar isto. Importas-te de chegar aqui fora para fa-
larmos em privado?
— Nem pensar!
Ele agarrou-me pelo pulso e arrastou-me para a porta, com
a Glo e a Clara a correrem atrás dele.
— Vou chamar o 112 — disse a Glo com o telemóvel na mão.
— Como se isso ajudasse muito — respondeu ele à Glo. —
Desliga isso e fica aí. Isto só demora um minuto.
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Puxou-me para fora da loja e ficámos no passeio, a piscar os
olhos por causa do sol.
— O que é? — perguntei.
— Estou à procura de um tipo. Chama-se Gerwulf Grimoire.
Mais conhecido por Wulf. Da minha altura, cabelo preto pelos
ombros, pele clara, diabólico.
— Diabólico?
— Sim. Viste-o?
— Talvez. Ele não me disse o nome.
Sem querer, olhei para a queimadura que tinha na mão.
O tipo percebeu e fez um pequeno aceno com a cabeça.
— Coisa do Wulf — disse ele.
Pôs a mão debaixo do meu avental, tirou-me o telemóvel da
bolsinha presa à cintura e começou a marcar números.
— Eh lá! — reclamei. — O que está a fazer?
— Estou a gravar aqui o meu número. Liga-me se vires o Wulf.
— Mas quem é você?
Ele sorriu e, quando o fez, pude ver os seus dentes brancos
e perfeitos e umas rugazinhas nos cantos dos olhos. O coração
até me saltou no peito.
— Sou o Diesel — informou. — Voltamos a falar mais tarde.
Atravessou a estrada e desapareceu atrás de uma carrinha
parada no sinal vermelho. Quando esta se pôs em movimento
já não voltei a vê-lo.
— Ena! — disse a Glo quando voltei a entrar na pastelaria. —
Esse era o pedaço mais apetitoso de testosterona crua que algu-
ma vez vi. O que queria ele?
— Anda à procura de um tipo chamado Gerwulf Grimoire.
Pensava que eu podia tê-lo visto.
— E…?
— Tinha.
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J a n e t E v a n o v i c h
— Isso parece um nome de feiticeiro.
— Tens de deixar de ver as reposições do Era Uma Vez — dis-
se-lhe a Clara. — Os únicos feiticeiros de Salem são os atores
pagos para estarem no Museu das Bruxas de Salem.
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G u l a P e r v e r s a
DOIS
Sendo chef de cupcakes e outros tipos de bolos na pastelaria,
eu entrava muito cedo e saía também muito cedo. Ao meio-dia
e meia já estava a deixar a Dazzle’s e a meter-me no carro em
direção a Lafayette Street. Tenho uma carrinha castanha. Não sei
qual é o modelo nem o ano dela, mas claro que não é nova nem
cara e já deixou de ser bonita. Tem uma amolgadela no painel
traseiro do lado esquerdo e um risco a todo o comprimento do
lado direito. Mas, fora isso é quase perfeita. Passei a ponte para
Marblehead, depois da Lafayette virei na Pleasant Street e fiz a
curva toda até entrar na Weatherby Street.
A casa da tia-avó Ophelia é uma pequena mansão de 1740.
Está situada numa pequena colina pejada de outras casas histó-
ricas e as suas janelas pretas dão para os barcos de recreio an-
corados no porto de Marblehead, lá em baixo.
As ripas das paredes são cinzentas, o alpendre branco e há
um candeeiro redondo em cada lado da porta da frente, que é
vermelha. Nos finais do século xix foram acrescentados dois
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J a n e t E v a n o v i c h
quartos. Depois houve mais obras de renovação e ampliação,
que trouxeram a casa até ao século xx. Os tetos são baixos e o
chão é de tábuas largas de pinho, um pouco desacertadas. Pro-
vavelmente devia mandar reforçar as fundações, mas só depois
de uma boa entrada de dinheiro.
Estacionei junto ao passeio e entrei em casa. Gritei de sur-
presa quando vi o Diesel, descalço, esparramado no meu sofá
da sala.
— Eu tenho uma arma — disse-lhe. — E não tenho medo
de usá-la.
— Querida, não tens arma nenhuma. E se tivesses provavel-
mente não saberias como fazer pum!
— Sim, tudo bem, mas tenho uma faca de chef e posso abrir-
-te de alto a baixo como a um peru de Natal.
— Isso é possível.
Eu estava parada, com a mão na maçaneta da porta, pronta
a fugir e a gritar por socorro.
— Como foi que entraste aqui?
— Consigo fazer uma coisa às fechaduras — disse ele.
— Uma coisa?
— Sim, abri-las.
Pôs-se em pé, espreguiçou-se e dirigiu-se à cozinha.
— Espera aí — disse-lhe eu. — Onde vais?
— Tenho fome.
— Não, não, não. Tu vais é embora.
— Bem, tenho boas notícias e más notícias. E são ambas a
mesma. Eu vim para ficar.
Não entres em pânico, pensei para mim própria. Ele é nitida-
mente louco. Sai calmamente e vai chamar a polícia. Eles virão bus-
cá-lo e hão de levá-lo para algum lado onde lhe ajustem a medicação.
— Eu não sou louco — disse o Diesel, da cozinha.
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G u l a P e r v e r s a
— Claro que não. Eu disse que eras?
— Mas pensaste.
Boa. O tipo também lê pensamentos.
Afastei-me um pouco da porta da rua e espreitei para a cozi-
nha, onde o Diesel inspecionava os armários.
— Estás à procura de dinheiro? — perguntei. — De joias?
— Estou à procura de comida.
Abriu o frigorífico, olhou para dentro e contentou-se com
um resto de lasanha.
— Mas, o que se passa contigo? — perguntou ele. — Não
tens namorado?
— Desculpa…?!
— Já percebi que não. É como se tivesses escrito na testa não
tenho namorado. Por acaso admiro-me, porque até fazes uma
lasanha decente.
— A minha lasanha é bem mais do que decente. Eu faço uma
lasanha magnífica!
O Diesel sorriu.
— Até ficas gira quando te zangas assim.
Rodei nos calcanhares, disparei pela porta da cozinha afora e
dirigi-me à porta da rua a fim de ligar para o 112. Quando che-
guei a meio da minha pequena sala de estar percebi que a porta
da rua estava aberta e que o tipo do cabelo preto estava parado na
soleira, a olhar para mim. Instintivamente dei um passo atrás e
fui contra o Diesel. Tudo bem, ele até pode ser um bocado louco
mas, Santo Deus, cheirava mesmo bem quando fiquei colada a
ele. Quente e excitante, como o Natal. E estar colada a ele e sen-
tir a sua mão protetora na minha anca sabia bem.
— Olá, primo — disse o Diesel ao homem de negro.
Apareceu um raio de luz e um fumo enorme, e quando o
fumo desapareceu o homem também já lá não estava.
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J a n e t E v a n o v i c h
— Era o Wulf — confirmou o Diesel. — Mas tu já o conhecias.
— Como foi que ele fez aquilo? Desapareceu no ar!…
— Fumo e espelhos — disse ele. — Andou a ler o Magia
para Totós.
— E porque foi embora?
O Diesel foi até à porta, fechou-a e deu uma volta à chave.
— Foi embora porque eu estava aqui.
— És mesmo primo dele?
— Sim, crescemos juntos.
— E agora?
— Agora jogamos em equipas adversárias.
Estendeu-me o prato da lasanha com o garfo e calçou as botas.
— Tenho de seguir o Wulf — disse. — Fica aqui e mantém
as portas fechadas à chave.
— Para o Wulf não entrar?
— Não, para aquele tipo estranho que está ali na rua não
entrar.
Olhei pela janela.
— Aquele é o Sr. Bennet. Tem 92 anos e pensa que é o ge-
neral Eisenhower. Vive naquela casa com gerânios vermelhos
nas janelas.
Virei-me para trás, mas o Diesel tinha desaparecido. Nem
fumo. Nem raio de luz. Nada. Evaporara-se. Fui até ao meu mi-
núsculo escritório, no andar de cima, e fiz uma pesquisa no
computador acerca de Gerwulf Grimoire. Nada. Limpinho. Nem
página do Facebook, nem uma referência.
Liguei para a pastelaria e atendeu-me a Glo.
— Quando cheguei a casa, o Diesel estava na sala à minha
espera — contei-lhe.
— Quem é o Diesel?
— Aquele tipo alto e bruto da pastelaria.
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G u l a P e r v e r s a
— Chama-se Diesel? Como o motor de um possante com-
boio de mercadorias? Isso é muito sexy.
Pensei que a personalidade dele era como o motor de um
comboio de carga, mas a aparência era mais como a de um in-
domável e orgulhoso leão.
— Ele ainda está aí? — perguntou a Glo. — Estás bem?
— Eu estou bem e ele já foi embora. Mas achei melhor con-
tar-te, para o caso de eu desaparecer, ou morrer, ou algo assim.
— Mas ele ameaçou-te?
— Não. Só comeu um bocado de lasanha. Depois apareceu
o Wulf. Em seguida desapareceram os dois.
— Como era o Wulf?
— Assustador, parecia assim uma espécie de vampiro sexy.
— Uau!
— Achas que estão a gozar comigo? Será que vou aparecer
nos Apanhados?
— Parece-me bem que não.
Olhei pela janela do escritório. Nem sinais de alguém estranho
a espreitar através dos arbustos, ou escondido atrás do castanhei-
ro. Para lá do castanheiro, os barcos ondulavam pacificamente no
porto. Em Marblehead era um dia de trabalho como os outros e
isso significava um dia com bem pouco trabalho. Tinha sido origi-
nalmente uma vila piscatória com ruas estreitas e tortuosas, que
subiam do porto para o interior. Mas, os bacalhoeiros do século
xix foram substituídos por pequenos barcos e veleiros bonitos e
agora Marblehead tornara-se maioritariamente num dormitório
de Boston e da Costa Norte. No entanto, o caráter despretensioso
de vila colonial não se havia perdido inteiramente.
— Assim que acabar aqui, vou ter contigo — disse a Glo.
— Levo o meu livro e podemos fazer um feitiço à tua casa que
afaste os vampiros.
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J a n e t E v a n o v i c h
— Eu disse que ele parecia uma espécie de vampiro, não dis-
se que era mesmo um.
— E também levo alho.
— Se o trouxeres em cima de uma pizza podes vir.
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G u l a P e r v e r s a
TRÊS
A Glo apareceu pouco depois das seis da tarde. Trazia o li-
vro dos feitiços, uma caixa com pizza e um gato malhado com
pelo curto.
— Que gato é esse? — perguntei.
— É para ti. É um gato de vigia. Vai ajudar a proteger a tua
casa. Fui buscá-lo a um abrigo.
— Acho que não estou preparada para me comprometer
com um gato.
— Mas este gato é especial — asseverou a Glo, pondo o gato
no chão.
— Como sabes que é especial?
— Aconteceu como no livro dos feitiços. Não te disse como
o livro chamou por mim de dentro da loja? Então, eu estava a
passar de carro em frente ao abrigo, quando vinha para aqui,
e o carro virou sozinho para o parque de estacionamento. Juro
que não fiz nada. E quando dei conta já estava lá dentro, em
frente do gato.
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J a n e t E v a n o v i c h
— Ele estava à tua espera?
— Bem, na verdade estava à espera para ser… tu sabes.
Ela fez um gesto com a mão, como se cortasse a garganta.
— Eutanásia?
— Sim — disse a Glo. — Iam sufocá-lo.
— Que horror!
— Bem, acho que na verdade não iam sufocá-lo. Só disse isso
para ficares com ele. Acho que iam dar-lhe um banho.
— Os olhos dele são esquisitos — comentei. — E a cauda
não é um bocado curta?
— No abrigo contaram-me que ele é do tipo rufia. Perdeu
um olho e parte da cauda nalgum lado.
Olhei para o gato mais de perto.
— Ele tem um olho de vidro?
— Sim. Muito fixe, não é?
— E por acaso tem nome?
— No papel que me deram quando o adotei diz que ele é o
Gato N.o 7143.
— Talvez tu devesses ficar com ele.
— Não posso. O meu senhorio é alérgico a gatos.
É assim que elas acontecem, pensei. Uma série de acontecimen-
tos inesperados e, zás, nunca mais as coisas são iguais ao que eram.
Ontem tudo estava bem e a correr conforme os planos, e hoje tenho
dois homens misteriosos e um gato na minha vida. Com o gato te-
nho a certeza de que consigo lidar. Os homens é que me preocupam.
A Glo pousou o livro dos feitiços em cima do balcão vermelho
da cozinha e a caixa da pizza na mesa de madeira que comprei
em segunda mão. Abriu a tampa da caixa e serviu-se de uma fatia.
— Tenho um par de feitiços espetaculares para a tua casa —
disse. — Talvez não tenhamos todos os ingredientes para as po-
ções, mas acho que podemos improvisar.
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G u l a P e r v e r s a
— Não quero pôr feitiços na minha casa. Gosto dela assim,
exatamente como é.
— Estás a brincar? Entrou aqui um vampiro!
— Ele não é um vampiro. Era um tipo esquisito com uma
pele perfeita e um fato caro.
— Como podes ter a certeza?
Tirei uma fatia de pizza.
— Porque não acredito em vampiros.
— Acreditas na Fada dos Dentes? E no Coelho da Páscoa?
— Sim para a Fada, não para o Coelho.
Podia aceitar uma fada mas não um coelho gigante a saltar
pela casa fora, enquanto eu dormia.
Ouvi a porta da rua abrir e fechar e, um momento depois, o
Diesel entrou na cozinha.
— Santo Deus — disse a Glo, admirando a visão.
O Diesel estendeu-lhe a mão.
— Diesel.
— Gloria Binky. Mas todos me tratam por Glo.
O Diesel serviu-se de uma fatia de pizza e olhou para o gato.
— Não sabia que tinhas um gato — disse-me.
— É novo.
— E como se chama?
— Gato N.o 7143.
Deu-lhe um bocado de pizza e depois olhou para o livro dos
feitiços, em cima do balcão.
— Imagino que isto tenha vindo com a pizza e o gato.
— É meu — disse a Glo. — Acabei de comprá-lo e trouxe-o
para pôr um feitiço na casa da Lizzy.
— Que tipo de feitiço?
— Um que não te deixasse entrar — respondi.
O Diesel deu uma gargalhada.
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J a n e t E v a n o v i c h
— Querida, ias precisar de algo muito mais forte do que al-
guma coisa que venha nesse livro.
— Há aqui feitiços muito bons — respondeu a Glo, abrindo
o livro. — Posso transformar-te num sapo.
— Essa é velha — disse o Diesel. — O que mais tens?
— Está aqui um para fazer levitar um dragão.
Ele pegou noutra fatia de pizza.
— Não me impressiona. Toda a gente sabe que a parte mais
difícil é encontrar o dragão.
A Glo virou mais umas páginas.
— Verrugas, bolhas, impotência, insónia, gaguez, urticá-
ria. E há aqui uma secção completa sobre espelhos e gatos en-
cantados.
Olhámos todos para o Gato 7143. Estava pacientemente sen-
tado, à espera de mais pizza. Não me pareceu assim lá muito
encantado…
— Diz aqui que eu posso pôr o Gato 7143 a falar — disse a
Glo —, mas a poção precisa de uma língua humana e unhas
dos pés de um troll romeno.
— Que pouca sorte — respondi-lhe. — Tenho unhas dos
pés de trolls búlgaros e irlandeses, mas, infelizmente, de rome-
nos não.
— Sim, bem sei que alguns destes ingredientes são estra-
nhos — disse ela. — Mas estas poções devem ser antigas. Pro-
vavelmente, quando descobriram esta receita devia haver por aí
imensos trolls romenos.
— Detesto estragar esta festa da pizza mas temos de ir andan-
do — disse o Diesel, olhando para mim. — Preciso da tua ajuda.
Andando como? De carro?
— Nem penses. Não te conheço de lado algum. Não vou aju-
dar-te. Não vou a lado algum contigo — respondi.
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G u l a P e r v e r s a
— Eu vou contigo — disse a Glo ao Diesel.
— Santo Deus — disse-lhe eu. — Ele pode ser um assassino,
um terrorista ou um raptor!
— Só tenho uma pequena oportunidade de fazer isto e pre-
ciso de ti — disse o Diesel. — O que é preciso para que venhas?
— Um milagre — respondi-lhe.
Eu, na verdade, arrisco muito pouco — com os homens; com
o dinheiro; com os sapatos. Tomo vitaminas todos os dias. Fecho
as portas à chave. Uso cinto de segurança. Não como carne crua.
E não saio em perseguições loucas com pessoas que não conheço.
O Diesel olhou-me por momentos e depois sorriu.
— Ler os pensamentos conta como milagre?
— Claro.
— Tu gostas de mim — disse ele.
— Não, não gosto.
— Isso é mentira. Achas-me um espetáculo.
— Isso não é ler pensamentos — contrapus. — Isso é o que
tu gostavas que eu pensasse.
— Sabes fazer outros milagres? — quis saber a Glo. — Con-
segues ler os meus pensamentos?
Ele abanou a cabeça.
— Só consigo ler os da Lizzy porque temos uma ligação cós-
mica.
— Uma ligação cósmica! — exclamou a Glo. — Isso é mes-
mo coisa de Salem.
Correndo o risco de parecer cínica, achei que ele era mesmo
um estupor pretensioso.
— E agora? Consegues ler os meus pensamentos? — per-
guntei ao Diesel.
— Sim — respondeu. — Mas ainda bem que a tua mãe não
consegue. Essa linguagem adquire-se na escola de chefs?
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J a n e t E v a n o v i c h
Mas a minha atenção desviou-se do Diesel para o Gato 7143.
Estava a percorrer a cozinha, andando junto à parede em alerta
máximo, farejando os cantos e com as orelhas em pé.
— Li algures que os gatos conseguem ver fantasmas e sentir
campos de energia — disse a Glo. — Achas que ele está à pro-
cura de fantasmas?
Eu peguei na minha segunda fatia de pizza.
— O meu palpite é que ele anda à procura de comida ou de
uma caminha para gato.
— Sou tão parva — exclamou a Glo. — Já me esquecia. Te-
nho comida e uma caminha no carro. O abrigo deu-me o essen-
cial para principiantes.
Cinco minutos mais tarde, o Gato 7143 estava fechado em mi-
nha casa, na sua cama novinha em folha. Eu seguia pela estrada
fora, ao lado do Diesel e com a Glo no banco de trás.
— Nem acredito que estou a fazer isto — disse, mais para
mim do que para eles.
— Concordaste em fazê-lo — afirmou o Diesel. — Querias
um milagre e disseste que ler os teus pensamentos contava
como milagre.
— Isso não foi milagre algum. Atiraste umas coisas para o
ar e tiveste sorte.
— Este é um dos problemas do mundo atual — disse ele. —
As pessoas já não acreditam no misticismo. Por acaso consigo
mesmo ler-te os pensamentos, de vez em quando. Porque não
aceitas isso, simplesmente?
— Porque é arrepiante.
— Isso são trocos — respondeu-me ele. — Devias experi-
mentar pores-te no meu lugar.
— Eu acredito no misticismo — garantiu a Glo. — Por aca-
so, até acho que devo ser sobrenatural.
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G u l a P e r v e r s a
Os olhos do Diesel fixaram-se no espelho retrovisor por mo-
mentos, antes de voltar a olhar para a estrada.
— Aonde vamos? — perguntei-lhe.
— Vamos a Salem. Vou ter a oportunidade de entrar num
apartamento e preciso que me ajudes a encontrar uma coisa.
— Mas porquê eu?
— Sabes o que é um Inominável?
— É marca de roupa interior?
— Eu sei algo acerca dos Inomináveis — interveio a Glo. — Já
li sobre eles. Já existem há centenas de anos. Um Inominável
é um ser humano com poderes especiais. São uma espécie de
irmandade e têm um governo próprio.
— Eu trabalho para esse governo — disse o Diesel. — A mi-
nha função é cortar as vazas aos Inomináveis que abusam dos
seus poderes.
Esta parte subiu bem alto no meu medidor de tretas, mas
ainda assim fiquei curiosa.
— E como lhes cortas as vazas? — perguntei.
— Posso dizer-te, mas depois terei de te matar — respon-
deu ele.
Já tinha ouvido esta deixa antes e sempre soube que era ape-
nas uma deixa. Mas, desta vez não tive tanta certeza.
— E porque precisas da minha ajuda?
— Porque és uma de nós. És uma Inominável e possuis uma
capacidade que eu não tenho. Eu consigo encontrar pessoas. Tu
consegues encontrar objetos poderosos.
Fiquei sem palavras. Ele parecia falar mesmo a sério.
— Isso é ridículo — disse eu, finalmente.
O Diesel virou na Lafayette Street.
— Sim, e eu estou preso a isso. Não leves a mal, mas não
serias a minha primeira escolha como parceira. Eu tenho uma
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J a n e t E v a n o v i c h
missão dificílima e bem me daria jeito trabalhar com um pro-
fissional.
— Um Inominável profissional? O que quer isso dizer?
— Significa que eu precisava de alguém que compreendesse
e respeitasse o seu dom e as responsabilidades que isso acarreta.
— E eu? — quis saber a Glo. — Também sou uma Inomi-
nável?
— Que eu consiga perceber, não — respondeu-lhe o Diesel.
— Tu és mais uma Questionável.
A minha opinião sincera era que estava em presença de um
verdadeiro lunático. Se contasse com a Glo, já eram dois, embo-
ra eu tivesse de admirar o Diesel por ser um lunático com uma
certa ética de trabalho.