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Hibridismo intergêneros em “suíte do couro ou Louvação do courode gerardo meLLo mourão caroLine tavares da siLva* Jamesson buarque de souza** * Pós-graduanda em Letras e Linguística na Universidade Federal de Goiás (Goiânia, GO). E-mail: [email protected] ** Professor da Universidade Federal de Goiás (Goiânia, GO). E-mail: [email protected] RESUMO Este artigo trata do hibridismo intergêneros, considerando o poema “Suíte do couro ou louvação do couro”, de Gerardo Mello Mourão. A investigação desenvolvida mostrou que o poema destacado apresenta consubstanciação entre o gênero épico e o lírico. Levando isso em conta, discutimos que a hibridização não é considerada como a justaposição ou aglutinação de gêneros, mas como a presença de “um-no-outro-no-um”, que forma algo novo. PaLavras-cHave: Hibridismo intergêneros, estilo épico, estilo lírico, Gerardo Mello Mourão. O poema longo “Suíte do couro ou Louvação do couro”, de Gerardo Mello Mourão, teve sua primeira publicação em fevereiro de 2000, e constitui a parte primeira ou “Partitura Número 1” de Algumas partituras (mourão, 2002). Gerardo Mello Mourão, poeta cearense de verve épica, foi considerado, por intelectuais como Camus, Drummond, Octavio Paz, Nelson Rodrigues, Ezra Pound, entre outros, 1 de suma importância para a Literatura Brasileira, bem como para a Literatura Universal. Ele, inclusive, foi finalista do Nobel, em 1973. No entanto, apesar de tais fatos, Mello Mourão é pouco conhecido, mesmo no âmbito dos Estudos Literários do Brasil. Para o desenvolvimento deste artigo, pautamo-nos na concepção de que “Suíte do couro ou louvação do couro” é um poema em que se encontram traços do estilo épico e do estilo lírico, os quais se consubstanciam, formando um texto híbrido. A hibridização é considerada, pois, não como a justaposição ou aglutinação de estilos, 10.5216/SIG.V23I1.16144 Recebido em 31 de março de 2010 Aceito em 30 de abril de 2010

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Hibridismo intergêneros em “suíte do couro ou Louvação do couro” de gerardo meLLo mourão

caroLine tavares da siLva*Jamesson buarque de souza**

* Pós-graduandaemLetraseLinguísticanaUniversidadeFederaldeGoiás(Goiânia,GO). E-mail:[email protected]** ProfessordaUniversidadeFederaldeGoiás(Goiânia,GO). E-mail:[email protected]

Resumo

Este artigo trata do hibridismo intergêneros, considerando o poema “Suítedocourooulouvaçãodocouro”,deGerardoMelloMourão.Ainvestigaçãodesenvolvida mostrou que o poema destacado apresenta consubstanciaçãoentre o gênero épico e o lírico. Levando isso em conta, discutimos que ahibridizaçãonãoéconsideradacomoajustaposiçãoouaglutinaçãodegêneros,mascomoapresençade“um-no-outro-no-um”,queformaalgonovo.

PaLavras-cHave:Hibridismointergêneros,estiloépico,estilolírico,GerardoMelloMourão.

O poema longo “Suíte do couro ou Louvação do couro”, deGerardoMelloMourão,tevesuaprimeirapublicaçãoemfevereirode2000,econstituiaparteprimeiraou“PartituraNúmero1”deAlgumas partituras(mourão,2002).GerardoMelloMourão,poetacearensedeverveépica,foiconsiderado,porintelectuaiscomoCamus,Drummond,Octavio Paz,NelsonRodrigues, Ezra Pound, entre outros,1 de sumaimportânciaparaaLiteraturaBrasileira,bemcomoparaaLiteraturaUniversal.Ele,inclusive,foifinalistadoNobel,em1973.Noentanto,apesar de tais fatos, Mello Mourão é pouco conhecido, mesmo noâmbitodosEstudosLiteráriosdoBrasil.

Paraodesenvolvimentodesteartigo,pautamo-nosnaconcepçãode que “Suíte do couro ou louvação do couro” é um poema emque se encontram traços do estilo épico e do estilo lírico, os quaisse consubstanciam, formando um texto híbrido. A hibridização éconsiderada,pois,nãocomoajustaposiçãoouaglutinaçãodeestilos,

10.5216/sig.v23i1.16144

Recebidoem31demarçode2010Aceito em 30 de abril de 2010

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mascomoaconsubstanciaçãodeles,apresençadealgocomo“um-no-outro-no-um”,queformaalgonovo.Paradescreverahibridizaçãonopoema“Suítedocourooulouvaçãodocouro”,primeiramentefizemosumbrevelevantamentoteóricoarespeitodoépicoedolírico,seguidode discussão a respeito do hibridismo intergêneros. Foram levadasemcontaasconsideraçõesdeSouza(2007),Silva(2006),Greenfield(2006), Aristóteles (2005), Bakhtin (2002), Hegel (1997), Boileau-Despréaux(1979)eStaiger(1969),noqueconcerneaoépico,aolírico,aohíbridoe/ouàobradeGerardoMelloMourão.

Adefiniçãodeépicoede líricoqueusaremosfoibuscadanosclássicos:Aristóteles (2005) e Boileau-Despréaux (1979). Clássicosporque são autores que foram definidos, ao longo do tempo, comoreferência;autoresdestacadoscomobasedeestudoemqualquernível.Alémdisso,Boileau,umavezpensandonelemaisespecificamente,édeumaépocaconhecidacomoClassicismofrancês:épocadeMolière,RacineeRabellais.Oquetambémexplicamuito,poisoClassicismoé uma época em que os antigos (comoAristóteles) eram abduzidosparaseremimitados,ouseja,eramemuladosporseremreferência,porseremconsideradosmelhores.Valeressaltarqueadefiniçãodeépicoelírico,deumedeoutroteórico,éconfluente,principalmenteemvirtudedeBoileauter-sepautadoemAristóteles.

Emboratenhamosbuscadonosclássicosadefiniçãodeépicoede lírico, recorremos às considerações deHegel (1997) e de Staiger(1969), que, de certo modo, tornaram-se “clássicos” para o mundomoderno e contemporâneo, no que diz respeito aos estudos degenologiapoética.Aelesnos remetemospelo fatodeconsiderarmosqueessesteóricosatualizamaspoéticasdeAristóteleseBoileau.AssimprocedemosporqueHegel–tomando-oemprimeirolugaremrelaçãoaStaiger–escreveuseuCurso de estética: o sistema das artes (HegeL,1997)visandoabordartodasasmanifestaçõesartísticasdeseutempo,2de modo a elencar suas características principais e distintivas. EssetambémfoioobjetivodeAristóteles(2005),aoescreversuaPoética,apesar de sua análise compreender apenas as imitaçõesde ações emversosetratar,maisespecificamente,datragédiaedaepopeia.

Hegelretomaoestudodegênerodaspoéticasclássicas,masofazdemaneiramaisabrangente,poisdescrevealgunstraçoscaracterísticosdoromance,aindasemconsiderá-logênero,3eempreendeumestudo

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detalhadodalírica,nãoapenasdostiposdepoemasconsideradoslíricos,masdogêneropropriamentedito.Aliás,alíricaéconsideradaporHegelcomoogêneropredominantedoRomantismo,chegandoaafirmarqueelaimpõesuascaracterísticasaosdemaisgêneros(HegeL,1997,p.551).EssefundamentodeHegeléreducionista,poisconsideraqueogênerolíricoimpregnaosdemaisgênerosenãoque,noRomantismo,háumaprofunda imersão do sujeito que diz eu sobre simesmo e, por isso,ogênerolíricofoimaisutilizado.Podemos,nessesentido,aproximaropensamentohegelianoaodeCroce(1997),vistoqueesteconsideratodoatopoético–eatémesmotodoatoartístico–comolírico,pelofatode a criação literária (e artística emgeral) se tratarde efeitodeintuição.Comoaintuiçãoéprovenientedainterioridade,dascamadasmenosracionalizantespossíveisdoser,elaéconsideradaumfenômenogeradordelirismo.OreducionismoqueobservamosemHegeltambémpodeservistoemLukács(2000)eBakhtin(2002)–emboravoltadopara o romance, em ambos os casos. Bakhtin considera o romancecomooprincipal,emesmooúnico,gênerocapazdedescreveromundomoderno;aquelegêneroporasseverarqueháumaimpossibilidadedeexistirumaepopeianamodernidade,emvirtudedocaráterfragmentadodele.Valeressaltarqueafiliaçãofilosófico-teóricadeHegel,LukácseBakhtin,4 bem como o lugar na história que eles ocupam, explica oporquêdesuasteoriasapresentaremoreducionismoapontado.

Staiger foi quem retomou essadefiniçãohegelianadegênerospara demonstrar o caráter híbrido destes. Ele conhece os perigos datentativade se fazerumapoéticaparaomundomodernoe explicitaissona introduçãodesua teoria(staiger,1969,p.4-6).Nessepontoele argumentanãohavermais apossibilidadede abarcaro todoqueé produzido em determinado gênero, em razão da quantidade deobras existentes e, principalmente, da diversidade de estilos dentrodessa quantidade; emesmo se possível fosse, essa poética seria tãoabrangentequeperderia seusentido.Anovaconfiguraçãodomundomoderno,comoeusubmersoemsi,tambémauxilianessadiversidade.Poressemotivo,eleoptaportratardeestilos,enãodegêneros,vistoqueumestudodascaracterísticasestilísticas/estilizantesdecadagêneroaindaépossível–naperspectivadele.Oteóricoalemãoabordaoépico,o lírico e o dramático em suas características específicas,mas deixaclaro que, quando vamos às obras literárias, o que encontramos é a

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consubstanciaçãodessesestilos.ValeaindaobservarqueHegeleStaigerconstroemsuasteoriasàguisadepoéticase,aoassimfazer,abduzemaspoéticasclássicasdeAristóteleseBoileauparaconstituíremassuase,dessemodo,asatualizam.

Quanto ao épico, os dois pensadores, Aristóteles e Boileau,definem-no como sendo uma imitação narrativa de longa duração.Alémdisso,acrescentamqueapoesiaépicadevepossuirunidadedeação;Aristóteles(2005,p.45),inclusive,criticaosquenarramtodososepisódiosdedeterminadaépoca,bemcomoosquecontamtudooqueaconteceuaumapessoa.SegundoAristóteles,aepopeiadeveseateranarrarosfatosquesejamrelevantesparaalcançarofimalmejado.5Aristóteles e Boileau afirmam que a razão e a naturalidade devemser levadasemcontaa todoomomento,poisque,paraeles, razãoenaturalidadepropiciamboaarticulaçãodo texto(coesão),emrelaçãoaoqueéverossímilenecessário.

Aristóteles (2005, p. 46-48), sempre contrapondo/comparandoa epopeia à tragédia, comenta que a extensão do poema épico sedeve à possibilidade, por ser narrativo, de apresentar muitas partescomo simultâneas.Tambémafirmaquena epopeiahá espaçoparaoirrascívelequeamelhormaneiradesecontaroqueéfalsoéatravésdoparalogismo.Boileau-Despréaux(1979,p.46-51)constróiseutextoàguisademanual–porprescreveroqueumpoemadedeterminadogênerodeve terpara ser consideradobom–e citaos elementosquedevemestarpresentesemumaboaepopeia:linguagemgrandiloquente;omitopagão;umheróiemtudovirtuoso,desdeonome;6iníciodotextodemodo simples, curto e semafetações; alegria e agradabilidadenanarração,comelegânciaaprimoradanaspartesdescritivas;7queopoetanãoseprendaaobjetose/oucircunstânciassemimportância.

A respeito do gênero lírico nada falaAristóteles e pouco falaBoileau.Oprimeiro(aristóteLes,2005,p.19-20)apenascitaosditi-ramboseosnomos–hinosem louvoraosdeusesDionísioeApolo,respectivamente–comoexemplosdeimitaçõesqueutilizamoritmo,amelodiaeometroemsuascomposições.Noentanto,elenãodistingueaíoquepoderiasertomadocomoumgênero.Aristóteles(2005)trata,emsuaPoética,dasimitaçõesdepessoasemação,logo,seufocoénatragédiaenaepopeia.Somentemaistarde,apartirdoRenascimento,équeostiposdepoemasnãoidentificadoscomoépiconemdramático

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vãocomporumnovogênero:olírico.Inclusive,Horácio(2005)faladeváriasespéciesdepoemasquemaistardeserãotomadoscomolíricos,no entanto, em termos do que chamamos de gênero, para ele só há,comoparaAristóteles,oépicoeodramático.

Boileau-Despréaux (1979, p. 29-35) descreve alguns tipos decomposiçãoque,hoje, consideramoscomo típicasdogênero lírico:oidílio,aelegia,aode,osoneto,aepigrama,orondó,abaladaeomadrigal.Entretanto, as tratará separadamente, considerando-as como gênerosmenores. Pode-se aferir disso que a descrição das características dogênerolíriconãoeraumapreocupaçãoparaosclássicos,assimcomonãoeraparaosantigos.Osgênerosdramáticoeépicoerammaisimportantespara eles. São os românticos que buscamno gênero lírico sua formaprimordialdeexpressão,conformenosdizHegel (1997,p.551).EéHegel(1997,p.510-555)quemnosmostraogênerolíricocomoolugardaexpressãosubjetivadaalma,naqualopoetadescreveaexterioridadesempreapartirdecomoeleavê,ouseja,desuainterioridade.

Nomomento em que partimos para o poema “Suíte do courooulouvaçãodocouro”–oquefaremosaseguir–,observamosqueépossíveldestacarelementostipicamenteépicosoulíricosdele,masnãosemdificuldade,vistoqueumgêneroestáconsubstanciadonooutro,logo,nãoépossívelsepará-los.Poressemotivo,amelhormaneiraqueencontramosparatratardopoemadeMelloMourãoéconsiderando-ocomoum“problema”degênero,ouseja,umaobrahíbrida.Paratratardohibridismointergêneros,convocamosBakhtin(2002),Silva(2006)eGreenfield (2006).Éapartirdopensamentodesses teóricos,edosquejáabordamosanteriormente,quedesenvolveremosnossadiscussãosobreotema.

Bakhtin (2002), ao tratar do problema de se desenvolver umateoria para o romance, pelo fato de ele ser ainda um gênero por seconstituir, afirma que o romance convive muito mal com os outrosgêneros,principalmenteporqueosparodia.Oreferidoteóricopartedopressupostodeque,antesdeoromanceassumiropapelprincipalnaproduçãoliteráriaoficial,osoutrosgêneros jáconsolidados(o lírico,oépicoeodrama)selimitavamesecompletavam,acrescentandoqueas poéticas antigas davam conta dessa harmonia. Entretanto, com aascensãodoromance,osgênerosjáconsolidados,eatéjámeiomortos–queéocasodaepopeia–,sedesagregam,ou,namelhordashipóteses,

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romancizam-se.Bakhtin se refere, aodizerqueosoutrosgêneros seromancizaram, ao fato de que os demais gêneros se tornaram maislivresemaissoltos,comlinguagemrenovada,graçasaoplurilinguismovigente nas novas línguas; os gêneros dialogizaram-se, e se abrirampara o riso, a ironia e o humor. ParaBakhtin (2002), os gêneros setornaramhíbridosapósaascensãodoromanceaoquadrodaliteraturaoficial.Mas ele explica que essamudança na estrutura dos gênerosnãosedeveaofatodosurgimentodoromance,nãounicamente,masque essesgênerospassarama ter contato comopresente inacabado,coisaqueoromance,porserumgênerosurgidonestaépoca,apreendeuprimeiramenteecommaiorênfase.

Silva (2006, p. 1-14) eGreenfield (2006, p. 15-28) não apre-sentam,aocontráriodeBakhtin,ummomentoetampoucoummotivopara a hibridização dos gêneros ocorrer. Aliás, eles não utilizam otermo“hibridização”emseus respectivos estudos.Oque eles fazemé considerar os gêneros como uma norma prescrita na teoria, masqueé transgredidaquandodapráticaliterária.Arespeitodisso,Silva(2006, p. 1) diz, pautando-se no pensamento de Schaeffer, sermaisfácil encontrar o seguimento da normatização dos gêneros entre ostextosconsideradospopulareseparaliteráriosdoqueentreoseruditos.Assimpensando,pode-seaferirqueémaiscomumatransgressãodasnormasdosgênerosdoqueocontrário.Etambémqueessadelimitaçãodegêneroséumameraconvenção.Dessemodo,falaremhibridizaçãoseria desnecessário, visto que não existiriam os gêneros. Entretanto,derruiradelimitaçãoexistenteentreosgênerosnãoénossointento,aomenosnãoporora.Mantê-la-emos,bemcomoo termohibridização,seguindoateoriadeStaiger(1969),queprevêamiscigenaçãoentreosgêneroscomoomaisusualnomundomoderno(econtemporâneo)–apesardejulgarmosque,maisdoqueserusual,ahibridizaçãoéprópriadetodasasobrasdomundoatual.

“Suíte do couro ou louvação do couro” é um poema longo,8divididoemsetepartesousetesuítes.Eletrataotododoqueocourorepresentaparaopoeta,paraosertão,paraoBrasileparaaAmérica.JamessonBuarquedeSouza,emboracommaiorênfaseemOs peãseemInvenção do mar,investigouaobradeGerardoMelloMourãoemsuatesededoutoramentoe,arespeitode“Suítedocourooulouvaçãodocouro”,afirmou:

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Pode-seobservarqueemtodoopoemaapresençamíticadocouro,ou o próprio couro comomito, é capturada de maneira que suaessência nos informe o transbordar do folclore nordestino, comoculturadopovo,matérianaturaltransformadapelamãodohomem.A sobrevivência do couro através dos séculos supera a hipérbolequeconsubstanciaomaravilhosonocernedenossomundopossívelpara se deixar às vistas de todos. O couro não se faz somentevizinho,masprópriotantodeanimalehumano,comoseresúnicosque, parafraseando amáximabíblica, vieramdo couro, do courovivem e ao couro retornarão. Gerardo Mello Mourão nos incitapara que observemos o couro como matéria utilizável, a qual,como ferramenta e obra de arte, resiste através das épocas.Comisso,opoetametaforizaqueocourodizrespeitoàprópriavidanosertãonordestino:ocouroécadapessoaali,cadapovo,cadagadoebichovivente,cadacurral,cadacasa,eaté,épossívelpelasimilarresistênciaàseca,cadaxerófito.(souza,2007,p.74)

Aindaemsuatese,oqueSouzafalasobreOs peãspodetambémseaplicara“Suítedocourooulouvaçãodocouro”:

Homem comum como seus concidadãos,GerardoMelloMourãoentendeque cantar suavida seria, por extensão, cantar a vidadeseus compatriotas.OCeará, Pernambuco,Alagoas e a Paraíba, aGrécia – porque fomenta a tradição mitológica e o pensamentofilosófico ocidental –, Portugal – berço da língua e demuito dapsicologia social brasileira –, o cristianismo católico – que estána base religiosa da cultura brasileira –, as tradições familiaresdoNordeste–registradasnosbrasõesdosMellos,Mourões[...]–congregamocabedaldehumanidadequedásignodenacionalidadecomomotivoépico.(souza,2007,p.66-67)

Na“Suítedocouro–1:Chãodopaís”,opoetaobservaaterrabrasileiradecima,provavelmentedeumavião,pelousodaexpressão“céusaeronáuticos”(mourão,2002,p.13),eadescrevecomosendoum “couro duro esticado” (mourão, 2002, p. 13), que pode sercompreendidopelasemelhançadodesenhodomapabrasileirocomumcouroesticadoe/oupelofatodeaterrasempreterdependidodocouroparasuaexistência.Essasegundainterpretaçãoéreforçadaquandodaleituradosegundoverso:“Contemplaochãodacapitania–província,país,paíshereditário,digamos”–(mourão,2002,p.13).Assim,em

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gradação,faz-seumaenumeraçãodosnomes(referentesaomododegoverno e/ou (in)dependência administrativa) que a terra brasileirapossuiuaolongodahistóriae,emtodosessesperíodos,oqueopoetaobservaéumaterrafeitade(o)couro.Aimagemdocouroesticadoecurtidoassocia-setambémàdochãoressequidodosertão,retratadonopoema.Essadescriçãodaterracomoquerevestidodecouroéacrescidadaenumeraçãodoslugaresondehavia/háacriaçãodegado,partindodoNordesteaorasodaCatarinaedaíparaorestodasAméricas:“Nestepaísnosso–decouronosso–todaesta/Américanossa–ArgentinaseChiles,Paraguais–/Américadecouroecouro/Decadaumdenós/NicaráguaseTexaseMéxicosalém”(mourão,2002,p.14).

O tratamento que o poeta dá ao objeto é épico, pois não éabordadocomo“eu”imersoemsimesmo,cantandooobjetoapartirdasubjetividadedesseeu.Pelocontrário,oobjeto–ocouro–évistodemodoobjetivo,cantadoemdiversasdesuasfaces,ecomoalgoessencialparaanaçãobrasileira.Issoreforçasuaepicidade,poisocourocantadocomo imprescindívelparaopaís culmina,nopoema, em louvaçãoeexaltaçãodocouro,ouseja,emlouvaçãoeexaltaçãodaprópriapátria,que deriva do couro. Ou, usando as palavras do próprio GerardoMelloMourão (2002,p.23),“Noprincípioeraocouro/Navegavamnos couros o sertão de couro/ E o sertão era o couro e o couro eraosertão”.AaproximaçãodeMelloMourãoaocouro,jávimos,pois,épropriamenteépica,noentanto,hánissoalgumasmodulações.ParaGerardoMelloMourão,eissosomentepodemosasseverarpelotododesuaobrapoética,enãoespecificamentepelopoema“Suítedocourooulouvaçãodocouro”,aideiadenação–eopróprioexemplodepátria–compreendecincodimensõesinterpostas:osertãodaIbiapaba,oestadodoCeará(chamadoporeledeSiarahGrande),oNordeste,oBrasileasAméricas.Logo,aoaproximar-sedocouro,emboraesteobjetonãosejarepresentativodetodooBrasil,eleoédaquelesertão,doSiarahGrande,bemcomoda Ibiapaba.Assim,MelloMourão fazcomque,pormetonímia,ocourotambémsejaprópriodoBrasiledasAméricas,oquenãoéfalso,mastambémnãoécomum,nãoéconsensual.Essasubjetividadeinsinuacertolirismo,emboraaindasejaprópriadoépico.

Em“Suítedocouro–2”temosapresençadedoispersonagens,artesãosdocouro:oprimeiroéAntônioAvelino,quetrabalhaocourocom as próprias mãos, feitas de couro, ou, nas palavras do poeta:

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“AntônioAvelinotrabalhavaaprópriamão,dedos,unhas–eamão/Trabalhava o couro: cosia vivo sobre couro morto/ A memória damortecosturasempreavida”(mourão,2002,p.15).Porseutrabalhoartesanal,AntônioAvelino transforma o couro em utensílios. MariaLinaaparececomooutraartesã,quetrabalhaocourodoprópriocorpoe o enfeita com os acessórios produzidos porAvelino. É inevitáveldepreenderdesse trechoum tomerótico, recorrente (souza,2007,p.75)nopoemadeMelloMourão:

NaáguagrossasoldadaasolagrossaCurtidaàcascadosangicosroxosGuardavaumcheiroforteacouroesexo.

MariaLinaabreobaúdesolatacheadaEacasacheiraacedrocheiraacourocheiraAocheirodamadressilvaemsuascoxas:

AvaquetaapelicaobezerrilCintosandáliasapatilhabolsa:MariaLinapasseianacalçada

ArgolasdeouroemmarroquinsvermelhosTodaagraçadoscourostrabalhados (mourão,2002,p.12)

O erotismo que se depreende da descrição de Maria Lina épropriamente lírico,principalmentenaalusãodocourodobaúcomosemelhanteaodocorpodapersonagem.Aquijáseobservaqueavozlírica salta de dentro da épica, nascida dela.Logo, esse cantar líriconão pode ser visto como algo separado da voz épica, visto que foisuscitadopor ela.Não se tratadeum trechoépicoou lírico,masdaconsubstanciação de ambos, causadora de um efeito estético único.Valeacrescentarquenãosepodedizerqueavozlíricaédependentedaépica,umavezquebrotadedentrodesta.Vistoqueosestilosestãoconsubstanciados,nãohádependência.

Em“Suítedocouro–3”ocouroéexaltadopelasuautilidadena literatura: ou para encadernar livros luxuosos, ou para servir dematérianaqualforamescritosasprimeirasletrasgregaseosprimeirosdocumentosde leidaBíblia.Oquenoscolocadiantedeoutro temarecorrentenapoesiadeGerardoMelloMourão(souza,2007,p.66):

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trataramitologiaouhistóriagregaebíblicas,pelofatodeseremelasosdoiselementosformadoresdenossatradiçãoreligiosa.Ocantoterminacomabelaimagemdasbibliotecasrecheadasdelivros,encadernadosdecouro,assombradaspeloúltimobalidodosanimaissacrificadosemproldacivilização.Imagemqueseráreiteradanassuítes4e6.

Os baús, as lombadas de livros, os instrumentos usados pelosvaqueiros,osacessórios,ouseja,osobjetosdecouroproduzidosartesa-nalmente são transformadosemmonumentoatravésdocantar épico.Isso se dá pela apresentação deles, no presente, como um passadoacabado. É a rememoração, frequente no poema, a responsável pelatransformaçãodessesobjetosemmonumentoépico.Oquenoslevaa,maisumavez,depreenderocaráterhíbridodessepoema,poispassamosaobservardemododiferentesimplesobjetos.

Aexaltaçãodosbaús,utilizadosdesdeaantiguidadedoOriente,queguardamvalores,peçasdeluxo,documentosimportantes(ounão),dinheirooulembranças,éotemada“Suítedocouro–4”.Tãovariadoquantooqueseguardanobaúéquemopossui:desdefaraósamatriarcasdafamíliadeGerardoMelloMourão,todosfizeramusodesseobjeto.Vemosqueaspersonagensdahistóriaoriental(XerxeseAtaxerxes)edahistóriaemitologiagrega(Ulisses,Aquiles,asraparigasdeLicomedes)andam em conjunto com personagens da família do poeta (Úrsula,Nazária,ElisaeElvina), levando-nosaapreendermaisumelementoque sempre se apresentanaobradeMelloMourão (souza, 2007, p.67):aapresentaçãodaformaçãodafamíliadosMelloseMourõescomometonímiaparaaformaçãodetodasasfamíliasdanaçãobrasileira,emesmodaAmérica(Pound,1996,p.81).9

Reforçamosquetodoopoemaéconstruídocomoumaexaltaçãodocouroedosobjetosproduzidosdele.Dessemodo,“Suítedocouroe louvação do couro” é feito à guisa de ode. E a ode é um gênerocaracteristicamente híbrido, visto que, pensando emHegel (1997, p.539-541), nela o poeta “sai de si” para se dedicar ao objeto que sepropõeacantar.Nessesentido,apesardeserumcantosemaimersãodoeupoéticoemsi,éesteeuquemescolheoobjeto,eissopartedesuasubjetividade.

“Vaqueiro–Suítedocouro–5”retomaasuíte1.Naquelavíamoso chão da pátria e o couro do boi como sendo uma só coisa, agoravemosohomemquelidacomessegadometamorfoseadoemcentauro;

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etudooqueocerca,desdesuasvestimentasatéasplantasqueformamapaisagemsãofeitasdecouro.Homem-terra-boise tornamum,quevêmdocouro.Opoetaseidentificacomessecentauro,aorememoraro pai vaqueiro e outros da família que viviamdo trato como gado.AhistóriadosMourõescourudoscaçadoresdecouroseránarradaemminúciasnasuíte7.

O poeta transforma os vaqueiros que povoaram sua infânciaem personagens-herói da suíte.Tal feito culmina na última parte dopoema,naqualsãodescritososfeitosdosvaqueirosdesuafamília–conformejádissemos.Observa-sequeMelloMourãosemprevestecomroupagemépicaoselementosquelhesãocomuns,ouaproximaoqueestádistante,paraqueopróximoseinvistadevozépicaporequidade.Exemplodissosedánaúltimasuíte,quandoopoetacolocaHomeronomesmopatamarqueoscantoresnordestinos.Masdissofalaremosembreve.

“Suítedocouro–6”éamaislongadetodas.Podemosdividi-laemsetepartes: aprimeira, compreendendodoprimeiroao trigésimoprimeiroversos,tomacomopontodepartidaumaparáfrasebíblicadoprimeiro capítulodo evangelho segundo João (1996, p. 1306):10“Noprincípio era o couro/ Navegavam nos couros o sertão do couro/ Eo sertãoerao couroeo couroerao sertão” (mourão, 2002,p.23).Partindodocourocomoessencialparaavidadosertão/sertanejo,desdeotratocomogado,necessárioparaodesenvolvimentoeconômicodopaís,passandopelosobjetosfeitosdecouroquevestemosvaqueiros,quesãocourudos,porcausadalidasolasol,atéchegaraosinstrumentosdos jogos de azar e de guardar vinho, que divertem os vaqueiros eoslevamaperderoquepossuemdemaisvalor.Ou,naspalavrasdopróprioGerardodeMelloMourão:

OsvinhosaguardenteseàsvezesApossedasmulasdosjumentosE–últimolance–araparigatrêmulaDerradeiroamorederradeirobemPerde-ganhanaúltimabatidadobozódesolaCompanheirodafortunadaviagemdoshomensNojogodeviver. (mourão,2002,p.24)

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Adiversãoéusadaparadistrairdaduralidasolasol,àqualosvaqueirossesubmetem,deacordocomopoeta,paracontribuíremcomacriaçãodanaçãobrasileira.Maisumavezvemososvaqueiroscomoosheróisdopoema,responsáveispelodesbravamentoepovoamentodaterra,bemcomopelodesenvolvimentoeconômicodopaís.HátambémdeseressaltarabelaimagemcriadaporGerardoMelloMourão,dosjogos de azar como metáfora para o jogo de viver, no qual somosdependentesdarodadafortuna.

Apartirdoverso32atéo35,11 háumperíododetransiçãoespácio-temporal que se pode observar pelos fragmentos “noutrosmundos”(mourão, 2002, p. 24) e “outros vinhos, antes” (mourão, 2002, p.24), que nos remetem ao senhor galego e, aindamais longínquo, aPropércio,aHorácioeaAnacreonte,queguardavamovinhoembotasdesolaouodres,respectivamente.Cabeaquiressaltaraantitaxeusadaem todaessasuíte, responsávelpela ligaçãoentreas setepartesnasquais a dividimos.É a palavra vinho a usada para ligar a realidadedos viajantes sertanejos à das novas figuras que surgem na estrofeseguinte,podendoserinterpretadocomooelementoqueparticipadetodosostemposedetodososlugares.Aparteseguinteteminícionoverso36evaiatéoverso54.Nelaopoetanosapresentaoperíodonoqualosgregoschamavamdeócioaocouroemquesedeitavamparadescansar,paratocaralirae,àsvezes,paraamar.12Ócioéapalavraquenoslevaàparteseguinte,compreendidadoverso55ao57,sendoeleonomequeoseremitasdaTebaidaeosmongescenobidasdavamaochicotee aocilíciodecourousadosparao flagelo.Aocontráriodovinho,queindependentedolugaréoqueinebriaealegraosdiaseasnoites,oócio temsignificadodiversoemcadaumadaspartes:representa o descanso para uns e o sacrifício/tortura decorrente docredoreligiosoparaoutros.

Éareligiãooelementodeconexãoentreaparteanterioreessanova,quecompreendeosversosde58a75.Nessemomentoérelatadaahistóriabíblica(1996,p.322)dojovemDavidque,comumafundadecouroealgumaspedrinhaslisas,conseguiusalvaropovodeDeus.OpoetaacrescentaqueDavidobserva,aoolharparaotemplodaarcasagrada,quetantooshomensquantoosdeusesvivemnocouro.Enãoapenashomens edeuses,mas também todosos elementosvivemnocouro.Éoquenosmostramosversosaseguir:

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Dormiamnocourooselementos–aáguaoareofogoNofolesoprador,asbrasas,nasestrelassaltadasentreMalhoebigornadoferreiroSalú–Possidôniotambém–Endemoniadoentreaschamas–Hephaistosdabeirado [açudeAventalluvasgrossasdesolaeopulmãodesolada [oficina. (mourão,2002,p.26)

OexcertonãosereferemaisàsobservaçõesdeDavid,masaumadescriçãodoperíodonoqualelevivia.Opoetaevidenciaaimportânciado couro para a humanidade, ao mostrar que é nele/dele que todosvivem.

Overso80ao139,últimaemaiorpartedessasuíte,voltaasereferir ao sertanejo, elencando os objetos de couro que sustentam avidano sertão,mas, dessavez, coma ressalvadequeosobjetosdecourosãoimportantesemtodasaspartesdomundo.Entretanto,opoetaafirmaque“nãosabemosdepeles/Luxoefriodeterrasestrangeiras”(mourão,2002,p.27)e,porisso,eleabordará,emborabrevemente,esses couros estrangeiros.Afinal, doqueele sabeeoqueo importaédaraconheceristo:“[…]apelesecaaosol–bodesdeAtanagildo/DasbandasdaCanabrava,ovelhadeÁguasBelasdeHermenegildo/às vezes caititus da serra ou veado galheiro das bandas de Josué naÁguaVerde–/VaquetaspelicasdebezerrosdeLaureano,tabuleirosda/Macambira”(mourão,2002,p.27-28)–apesardealegarquedaquelesele tambémpoucosabe,quesabemesmoésobre“oboieavacadocouroquotidiano”(mourão,2002,p.28).Arememoraçãodocouroedoboideseucotidianoremeteráopoetaaummomentobelíssimoderecordação,dosversos128a130:“Ocourocanta–ecomodói/Àsseisda tardeaquelesom/Pendidodocouroentrecéuse terra”(mourão,2002,p. 28).Essa recordação culminanaúltimaestrofeda suíte, naqualopoetadizsaberapenasdocouroqueocobreequeestarápresenteemsuamorteeverásuaressurreição.Observa-sequemaisumavezavozlíricaemergedaépicaeque,novamente,umanãoseriapossívelsemaoutra.

Aúltimasuíte,“Suítedocouro–7”,temcomoinícioumversodeDantasMotta–“AndavamnestasmontanhasunsMourõescascudos”–etodoopoemateráDantasMottacomointerlocutor.Trata-sedanarração

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dosfeitosdosMourõescascudos,caçadoresdecouro,quedesbravaramtodoosertãoeaindaoutraspartesdopaís“Porumacostelaeumcouroacadacaçadordeboi”(mourão,2002,p.31).AndavamoBrasiltodo,mas sempre voltavam a seus lares, a terra do sol, cercada de couro,tendo aqui a confluência de todas as suítes anteriores – o sertanejovivendodo/nocouro.Essesobjetosdecouro,essenciaisparaavidadosbrasileiros,sãoaressurreiçãodoboi:

OboiestánopoderdeseuscouroseseuscornosEocouroeoscornossãoaressurreiçãodoboiNoofícioenoexercício;eoboiinteiroseufenômenourraNacorreiadatampaqueabreefechaCornimboquedechifre,polvorimdelazarina. (mourão,2002,p.33)

AlémdosMourões,asuíteapresentaoutrospersonagens:primei-ro,o“profetadecouro[...]/NoRasodeCatarina”(mourão,2002,p.31),quefoisangradoportropasinimigas,aocontráriodosMourões,queretornavamsempreinteiros.Depois,numadasúltimasestrofesdopoema,vemosafiguradoCapitãoAlbuquerque13edeseusguerreiros,navegandoembuscadoReiSebastião, representandoospatriarcaseguerreirosformadoresdapátriabrasileira.

Nasestrofes finaisdopoema,pode-seapreenderqueosheróisdesbravadores da terra brasileira e os heróis gregos cantados porHomero são colocados pelo poeta nomesmo nível.Assim como oscantoresvioleirosdosalpendresnordestinos(cantadoresdosfeitosdeAntônioAvelinoedosMourõescourudos)–e,maisaofim,doprópriopoeta-cantorde“Suítedocourooulouvaçãodocouro”–,sãocolocadosnomesmonívelqueHomero,porseremoscantadoresdastradições/histórias de seu povo.O poeta, na última estrofe, retoma a imagemdeque“amemóriadamortecosturasempreavida”(mourão,2002,p.15),emais:“Courodocourodosencourados/Quecosomortoemcourovivo/Nesteaboio/Êiboiouboiêiboi”(mourão,2002,p.35),colocando-se elemesmo comoumartesão (de palavras) responsávelpelocantardosfeitosdospersonagensdahistóriabrasileira.

Atessitura,presentenosversosfinaisdopoema,podeserconsi-deradacomometáforado fazerpoético.Nesseponto,MelloMourãoevidenciaqueopoemaéfrutodeumarepresentação.ParaHegel(1997,

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p.436),oépicoéoqueaconteceudefatoeécantadodeformaobjetivano poema.Ainda descrevendoo pensamento do filósofo, a partir domomentoqueopoetamostraessaexterioridadeépicacomofrutodeumarepresentação,enãodemododistanciado,eleestáseimiscuindode subjetividade. E a subjetividade, como já dito anteriormente –aindaquedeoutromodo–,éacasadogênerolírico.Dessamaneira,mesmo sendo épico todo o tratamento dado ao poema, ele parte deumaconcepção lírica,porconcerniraumarepresentação,e também,conformejáacertamos,pelaescolhadoobjetosersubjetiva.

Duranteadescriçãodopoemaprocuramosmostrarqueoépicoeolíricoencontram-seconsubstanciadosumnooutro,formandoalgonovo.Hádefatoessehibridismointergêneros.Entretanto,ficaclaroqueem“Suítedocouroelouvaçãodocouro”oépicopredomina.Issoporqueéobjetivodopoetaatransformaçãodoobjetocantadoemmonumentorepresentativo da nação brasileira. Além do mais, a voz épica é aprincipalemtodaaobradeGerardoMelloMourão.Inclusive,pode-seafirmarqueeleéoúnicopoetabrasileiroapossuiressaverveépicaqueculminounacomposiçãodeInvenção do mar,umaverdadeiraepopeia.14

Apresençadavoz lírica imiscuídana épicapredominantenosmostraqueocantarpoéticonãoseprendeaprescriçõesouacartilhas,no mundo moderno e contemporâneo. A expressão da atualidadeultrapassaos limitesdelimitativosdosgêneros, apontodenos levararefletiracercadaprocedênciadetaislimites.Porora,nosmantemosnalinhadeStaiger(1969),aopreferirconsiderarestilosenãogêneros,pelofatodeaquelesserempassíveisdesehibridizarem.Valelembrarque émais comum a existência de textos literários híbridos do que“puros”.Aliás,ousamosafirmar,erepetimos,que julgamoshavernamodernidade apenas produções literárias híbridas, aomenos no queconcerneàsproduçõesconsideradascomoaltarealizaçãoliterária.15

inteRgenRes hybRidism in “Suíte do couro ou Louvacão do couro” by geRaRdo mello mouRao

abstRact

This paper studies the hybridism inter-genre in the poem Suite do courooulouvacao do couro(Theleather’ssuiteortheleather’slaudation),byGerardoMelloMourao.Thestudyshowsthatthispoempresentstheepicand

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thelyricgenres’sconsubstantiation.Inthispointweshowedthatthehybridismisn’t considered as the genres’s juxtaposition or agglutination, but as thepresenceof“one-in-the-other-in-the-one”,whichcreatessomethingnew.

Key words: Hybridism inter-genre, epic style, lyric style, Gerardo MelloMourão.

notas

1 Para a biografia e cartas de intelectuais sobre Gerardo Mello Mourão,consultarovolumedefortunacríticareunidaporGumercindoRochaDorea(1996).

2 Hegeldescreve todasasmanifestaçõesartísticasdesuaépoca,mas,paranossoestudo,interessaapenassuateoriadosgênerosliterários,estritamentenosentidodaartepoética.

3 Bakhtin(2002)foioprimeiroadesenvolverumateoriadoromancecomogêneroliterário.

4 Hegele(ojovem)Lukácssepautamnoidealismo,aopassoqueBakhtinutilizaasideiasdomarxismoparaconstruirsuateoria.Valenotificarque,emsuafaseseguinte,LukácssetornaumdosprincipaisfilósofosmarxistasdoséculoXX.

5 Porexemplo,nocasodaIlíada,narram-seapenasos52diasdoúltimoanodeumaguerraquedurouumadécada,vistoqueopropósitodeHomeroeraapenascantarairadeAquiles.

6 Boileaudemonstratotaldesconhecimentodocaráterreligiosodosmitosparaosgregos,chegandoacriticarveementementeosqueusammitoscristãosnumpoemaépico,sobo“erro”deconfundirumDeusdeverdadecomumdementira; tambémdápreferênciaaosnomesdosheróisdaantiguidade,acreditando que aqueles já possuíam nomes que se relacionavam a seusfeitosvalorosos.

7 ElementotambémelencadoporAristóteles(2005,p.48).

8 Ateoriadopoemalongoaindaéincertaeháestudoemandamento,aesserespeito,denossaparte.

9 Anote-sequeEzraPoundserefereaopeã“OpaísdosMourões”.Contudo,ocomentáriodoautordeOs cantosémesmoobservávelemtodaaobradeverveépicadeMelloMourão.

10No texto original do Evangelho segundo João consta: “No início era overbo,eoVerboestavavoltadoparaDeus,eoVerboeraDeus”.

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11Anumeraçãodosversosénossa.

12Entenda-se:estabelecerrelaçãosexual.

13O personagem histórico herói do poemeto épicoProsopopeia, de BentoTeixeira.

14WilsonMartins(1998,p.5),arespeitodeInvenção do mar,afirmouquedepoisdediversastentativas,“emqueonúmerodefracassoscorrespondeaodetentativas”,foiescrita,afinal,aepopeiabrasileira.

15ComrelaçãoàaltarealizaçãoliteráriaverSouza(2007,p.156).

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