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O Haiti antes e depois do terremoto
Federico Neiburg
Publicado em O Globo, 24 de janeiro de 2010, p. 34
O Brasil um ator no drama haitiano desde 2004, quando passou a chefiar a Misso da ONU
para a Estabilizao de Haiti (MINUSTAH). A responsabilidade do pas na conjuntura atual
ainda mais importante. Para discuti-la seriamente crucial ter um diagnostico da situao,
conhecer o Haiti de antes do terremoto. Trs elementos que o drama atual coloca em
evidencia de forma exacerbada no so novidade: o peso das foras estrangeiras (outros
pases, entidades multilaterais, ONGs), a denncia da ausncia do Estado haitiano, e a
necessidade urgente de ajuda populao local. A relao entre esses elementos constituiu
um sistema de produo de pobreza e desigualdade que se retroalimenta no pas h dcadas.
Sem levar isso em considerao o debate pblico sobre o futuro do Haiti estar mal colocado e
as polticas da comunidade internacional (dos governos, das agncias multilaterais e da
sociedade civil), por mais bem intencionadas que sejam, correm o risco, mais uma vez, de
fracassar ou de atingir objetivos limitados e pouco sustentveis, contribuindo para a
reproduo do drama humano que a fria da natureza parece hoje ter potenciado a nveis
dantescos.
Sabe-se que a crise haitiana de longa data e que ela se agravou de forma notvel aps o fim
da ditadura dos Duvalier (1957-1986). Governos instveis, golpes militares, milcias armadas,
bloqueios internacionais e intervenes estrangeiras produziram o colapso do Estado, da infra-
estrutura, da economia e do meio ambiente, criando a necessidade imperiosa de ajuda
humanitria. Muitas das imagens veiculadas pela mdia para descrever a tragdia destes dias,
poderiam ser de antes do terremoto. Porto Prncipe j era uma cidade quase sem eletricidade
e sem gua. O abastecimento alcanava uma poro nfima da populao, s alguns bairros,
poucas horas por dia, alguns dias da semana. No cair do sol, as ruas e avenidas ficavam
iluminadas pelas velas dos vendedores ambulantes, no havia iluminao pblica. As ruas
cheias de gente, engarrafadas (sem sinais de policiais nem de roubos, diga-se de passagem),
explicam-se pelo fato de que as pessoas procuram meios de vida andando, comprando,
vendendo e trocando. Em Porto Prncipe, antes do terremoto, segundo algumas estimativas, o
desemprego chegava a 80 %. Os dois principais itens do PIB do pas eram as divisas geradas
pela cooperao internacional e pelas remessas enviadas pelos haitianos da dispora. A crise
alimentar j era gravssima. Por um efeito combinado dos embargos internacionais, da
abertura irrestrita do mercado interno e da crise ecolgica, 80 % dos alimentos consumidos
eram importados.
A concorrncia entre as foras externas que intervm no pas (colocada de manifesto nesses
primeiros dias aps o terremoto) tampouco novidade. No sculo XIX o Haiti jogou um
importante papel na disputa entre potencias como Frana, Espanha, Inglaterra e os Estados
Unidos. A Frana proclama at hoje laos histricos com a antiga colnia. Os Estados Unidos,
que j ocuparam o Haiti entre 1915 e 1936 e na dcada de 1990, at hoje, mais de vinte anos
aps o fim da guerra fria, mantm naquele miservel pas uma das embaixadas mais grandes
do mundo (a terceira, depois do Mxico e do Iraque). Segundo dados oficiais, nela trabalham
pelos menos 3000 funcionrios, quase o triplo que o efetivo militar brasileiro da MINUSTAH.
Com argumentos que vo da importncia da imigrao haitiana nos Estados Unidos at razes
de segurana nacional, quem se encarregava de cuidar do Haiti dentro da administrao
americana era o Departamento de Segurana Interior e no a Secretaria de Estado,
responsvel pelas relaes exteriores, como se o Haiti fosse parte do territrio norte-
americano. Antes do terremoto, estava claro que, s vezes de forma coordenada e muitas
outras em tensa concorrncia, duas foras poltico militares atuavam no Haiti: a ONU e os
Estados Unidos.
Nas centenas de instituies humanitrias, como nas instancias do governo e na infinidade de
associaes comunitrias, havia no Haiti milhares de pessoas bem intencionadas, generosas,
solidrias, que desenvolviam idias ousadas, aproveitando a energia fantstica da populao e,
nos ltimos anos, a grande novidade da estabilidade poltica e da reduo da violncia no
s devido presencia da MINUSTAH mas tambm s aes de organizaes da sociedade civil,
inclusive do exterior, como a brasileira Viva Rio. A onda de solidariedade criada nesses dias
est ancorada em dcadas de trabalho comunitrio. Alm da perda alucinante de vidas
humanas, o terremoto destruiu uma infinidade de iniciativas e projetos bem sucedidos,
agravando com isso a penria ocasionada pelo desastre.
Diferentemente do estereotipo negativo que pesa sobre o Haiti h pelos menos 200 anos
(quando os escravos de Saint Domingue ousaram desafiar os cnones da poca se declarando
sujeitos polticos autnomos e fundaram a nao), e ao contrrio das dificuldades evidentes
em organizar a vida poltica nacional e a administrao pblica de forma transparente e
eficiente, a populao sempre esteve ansiosa por construir formas alternativas de vida
coletiva. Os haitianos possuem uma riqussima tradio de organizao comunitria: comits,
associaes, redes de famlias extensas, garantem a sobrevivncia das pessoas, o suprimento
de alimentos, o funcionamento de escolas, a ajuda em caso de necessidade. esse caldo social
da solidariedade o que permite compreender como no h mais violncia diante da catstrofe
de hoje, das pilhas de cadveres, das centenas de milhares de desaparecidos, desabrigados e
feridos, da escassez ainda maior de produtos de primeira necessidade, da demora na chegada
da ajuda humanitria.
A dor infinita produzida por esta catstrofe exige pensar seriamente o futuro do Haiti. Boa
parte das razes do drama haitiano que o terremoto colocou em escala incomensurvel estava
presente antes. preciso aceitar que nesse momento (e por um prazo que infelizmente hoje
mais do que nunca indeterminado) a vida haitiana no est organizada segundo o paradigma
do estado soberano. Isso obriga a definir novas atribuies da comunidade internacional,
criando (o que falta!) rgos executivos com poder de deciso (por exemplo, os Estados
Unidos tem que reconhecer a ONU ou assumir que pretendem mandar no pas, sem
eufemismos). Mas no se trata de forma alguma de negar o direito do povo haitiano a gerir
seu prprio futuro. Ao contrario, as associaes e as lideranas polticas e comunitrias tm
que participar do desenho de formas novas de gesto da vida coletiva. A avaliao das aes
passadas e o plano das aes futuras da MINUSTAH, do governo brasileiro e da sociedade civil
do nosso pas no Haiti, precisam de uma discusso clara e sem hipocrisias do que est em jogo
nessa hora.
Federico Neiburg Antroplogo, pesquisador do CNPq, professor no Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ. Desenvolve pesquisas no Haiti h
trs anos, em colaborao com o Instituto Interuniversitrio de Pesquisas e Desenvolvimento
(INURED, Haiti) e com a organizao brasileira Viva Rio ([email protected])