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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA
CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A
PERCEPÇÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-
GUERRA FRIA (1991-2001)
TRABALHO FINAL DE GRADUÇÃO
Junior Ivan Bourscheid
Santa Maria, RS, Brasil
2013
HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA
CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A
PERCEPÇÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-
GUERRA FRIA (1991-2001)
Junior Ivan Bourscheid
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Relações
Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Bacharel em Relações Internacionais.
Orientador: Prof. Dr. José Renato Ferraz da Silveira
Santa Maria, RS, Brasil
2013
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Departamento de Ciências Econômicas
Curso de Relações Internacionais
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho Final de
Graduação
HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA
CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A PERCEPÇÃO DO
SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA (1991-2001)
elaborado por
Junior Ivan Bourscheid
como requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Relações Internacionais
COMISSÃO EXAMINADORA:
José Renato Ferraz da Silveira, Dr.
(Presidente/Orientador)
Reginaldo Teixeira Perez, Dr.
(UFSM)
Igor Castellano da Silva, Ms.
(UFRGS)
Santa Maria, 20 de dezembro de 2013.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos meus pais, Maria e Arno Osvaldo, prestando um ínfimo
reconhecimento pelo esforço que empreenderam para que pudesse alcançar o presente
momento em que este trabalho é escrito. Tenham a certeza de que toda a vossa labuta foi
recebida de minha parte como a mais pura representação de vosso amor, portanto, nunca será
menosprezada ou preterida, é a razão fundamental para que cumprisse esta etapa.
Aos meus irmãos, Imelda e Jair, ao meu cunhado Ornei e aos meus sobrinhos
Fernanda e Henrique, um agradecimento especial pela contribuição inestimável que aportaram
à minha pessoa e, direta ou indiretamente, ao presente trabalho. Do mesmo modo agradeço
aos demais familiares que incentivaram e participaram ativamente de minha jornada até aqui.
Não poderia deixar de agradecer a todos os amigos e amigas, seja de Pato Bragado,
Santa Maria, do Paraguai ou Argentina, que de distintas maneiras colaboraram para que
alcançasse o cumprimento deste percurso, com a apresentação do presente estudo. Neste
sentido, agradeço especialmente aos amigos de Santa Maria e do Curso de Relações
Internacionais, Fábio, Tiago, Gustavo, Rodrigo, Vinicius, Renan, Eduardo, Pedro, Thiago,
Matheus, Sr. Mosar da Costa, entre tantos outros, que auxiliaram-me oferecendo muito mais
do que simples relacionamentos interpessoais, ofereceram amizade, carinho e afeto, de
imprescindibilidade para a vida longe da terra natal.
Agradeço ao Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa
Maria pela oportunidade da formação superior, esperando que possa retornar à sociedade todo
o empenho e estrutura fornecida por meio desta instituição. Neste âmbito, agradeço aos
professores que participaram ativamente de minha formação acadêmica neste período, bem
como aos servidores técnico-administrativos, Maria Medianeira e Rui Tiago, por sua
contribuição com minha formação acadêmica. Agradeço, igualmente, aos membros da Banca
Examinadora, por sua contribuição ao presente trabalho.
Finalmente, ao agradecer às pessoas imprescindíveis para a conclusão do curso de
graduação e do presente trabalho, não poderia deixar de agradecer ao Orientador, Professor,
Coordenador e, principalmente, amigo José Renato, uma das mais inestimáveis surpresas que
a vivência em Santa Maria poderia trazer. Vossa amizade nunca será esquecida.
Concebo esta como uma obra coletiva. Apenas expressei sentimentos, inquietações,
indagações e concepções resultantes de minha vivência com todos os supracitados.
RESUMO
Trabalho Final de Graduação
Curso de Relações Internacionais
Universidade Federal de Santa Maria
HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: UMA ANÁLISE DA
CONTRIBUIÇÃO DE CAETANO VELOSO PARA A PERCEPÇÃO DO
SISTEMA INTERNACIONAL PÓS-GUERRA FRIA (1991-2001)
AUTOR: JUNIOR IVAN BOURSCHEID
ORIENTADOR: JOSÉ RENATO FERRAZ DA SILVEIRA
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 20 de dezembro de 2013.
O presente estudo visa contribuir para a análise dos períodos de transição
das relações internacionais, enveredando num escopo que permita aportar
alternativas tanto para o esclarecimento dos principais fatores e fenômenos que
permeiam a estrutura histórica vigente, quanto para fornecer linhas de
desenvolvimento passíveis de conformarem-se sob a manutenção destas
circunstâncias. Para tanto, compreendem-se os obstáculos que apresentam-se ao
cientista social, sob o âmbito das rigidezes teórico-científicas, fomentando a
iminência da apreciação de outra atividade humana potencialmente eficaz e
reveladora das relações sociais na realidade momentânea, a produção artística. A
sensibilidade e perspicuidade inerentes aos esforços artísticos comprometidos
com o desvelamento dos relacionamentos sociais tornam-nos ferramenta
empírica imprescindível aos ímpetos teórico-científicos empenhados em
depreender os períodos de transição, essencialmente nas relações internacionais
contemporâneas. Neste afã, encontramos na produção musical de Caetano
Veloso uma contribuição potencialmente esclarecedora da ordem internacional
conformada ao final da Guerra Fria. Partindo da análise da construção identitária
nacional, Caetano empreende uma linha de desenvolvimento analítico
possibilitando perceber as relações do doméstico com o internacional,
culminando numa percepção sistêmica das relações internacionais, partindo da
compreensão dos atores fundamentais nestas, tanto estatais quanto não-estatais,
convergindo para o estabelecimento de uma abordagem alternativa aos estudos
internacionais. Tendo em vista tais perspectivas, realiza-se a aproximação da
contribuição de Caetano para a percepção do Sistema Internacional pós-Guerra
Fria com a teoria crítica coxiana, entendendo tal ordenamento internacional
como imerso nos limites da hegemonia, contrapondo-se, assim, às principais
teorias surgidas no centro hegemônico, vinculadas aos desígnios do
estabelecimento e manutenção deste projeto.
Palavras-chave: Hegemonia. Ordem Mundial. Pós-Guerra Fria. Contestação.
Caetano Veloso. Teoria Crítica.
ABSTRACT
Senior Thesis
International Relations Major
Universidade Federal de Santa Maria
HEGEMONY AND CONTESTATION: AN ANALYSIS OF THE
CAETANO VELOSO’S CONTRIBUTION TO THE PERCEPTION OF
THE POST COLD WAR INTERNATIONAL SYSTEM (1991-2001)
AUTHOR: JUNIOR IVAN BOURSCHEID
ADVISER: JOSÉ RENATO FERRAZ DA SILVEIRA
Defense Date and Place: Santa Maria, December 20th, 2013.
This study aims to contribute to analyze the transition periods of
international relations, embarking on a scope that allows both alternatives
contribute to the clarification of the main factors and phenomena that underlie
the current historic structure, and to provide lines of development to comply
maintenance under these circumstances. To do so, understand the obstacles that
present themselves to the social scientist, in the context of theoretical and
scientific rigidities, fostering appreciation of the imminence of another
potentially effective and revealing human activity of social relations in
momentary reality, the artistic production. The inherent sensitivity and
perspicuity of the artistic endeavors committed with the unveiling of social
relationships making a indispensable empirical tool for the theoretical-scientific
impulses committed to deduce the transition periods, mainly in contemporary
international relations. In this effort, we find in the musical production of
Caetano Veloso potentially enlightening contribution of international order
formed at the end of the Cold War. Based on the analysis of national identity
construction , Caetano undertakes a range of analytical development allowing to
realize the relationships of domestic with international spaces, culminating in a
systemic perception of international relations, based on the fundamental
understanding of these actors, both State and non-state, converging to the
establishment of an alternative approach to international studies. Given these
perspectives, we make the approximation of the contribution of Caetano for
perceived post-Cold War international system with coxian critical theory,
understanding the international order such as submerged within the limits of
hegemony, opposing thus the major theories arising in the hegemonic center,
linked to the plans for the establishment and maintenance of this project.
Keywords: Hegemony. World Order. Post-Cold War. Contestation. Caetano
Veloso. Critical Theory.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................08
1 ALÉM DO OTIMISMO E DO PESSIMISMO: UMA TEORIA CRÍTICA
PARA A ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS PÓS-
GUERRA FRIA.................................................................................................26 1.1 Implicações do processo de desenvolvimento histórico às relações internacionais:
sobreposição aos mitos nas ciências sociais...........................................................................26
1.2 A lógica hegemônica das relações internacionais no pós-Guerra Fria: perspectivas e
desafios à estabilização e manutenção da ordem mundial..................................................36
2 ENTRELAÇAMENTOS DE ARTE E POLÍTICA EM CAETANO
VELOSO: CONTESTAÇÃO E CRÍTICA ÀS RIGIDEZES
ANALÍTICAS....................................................................................................48
3 HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: A APROXIMAÇÃO DE CAETANO
VELOSO À TEORIA CRÍTICA COXIANA.................................................64 3.1 Alguma coisa está fora da nova ordem mundial............................................................64
3.2 A função das mídias na difusão do projeto hegemônico................................................69
3.3 O caráter multifacetado da disseminação da democracia: perspectivas domésticas e
internacionais..........................................................................................................................74
3.4 Limitações à atuação da potência hegemônica: o sofisma entre a premissa dos
Direitos Humanos e a segurança interna..............................................................................84
CONCLUSÃO...................................................................................................92
REFERÊNCIAS................................................................................................98
ANEXOS..........................................................................................................103
INTRODUÇÃO
Os períodos de transformação marcam decisivamente as relações humanas, por não
comportarem exercícios de predição, seus efeitos não são planejáveis, determinando a
conjuntura no período seguinte, cabendo ao intelecto – conservador ou revolucionário –
decifrar a realidade presente. De acordo com Gramsci (1978, p. 162), o esforço de
previsibilidade refere-se aos eventos embebidos pela atuação prática, onde verifica-se a
aplicação do esforço voluntário de forma a contribuir “concretamente para criar o resultado
‘previsto’”, gerando uma “vontade coletiva” que permita a consecução dos trâmites que
acarretam o resultado esperado pela atuação.
Considerando-se grandes agregados humanos, como os Estados, tais preocupações são
acrescidas pelas amplas dissensões entre os diversos grupos sociais que os compõe, tendo
como único fator de certeza – por vezes momentânea – o poder superior do Estado, garantido
pelo seu monopólio do poder coercitivo.
Ao evoluir esta análise para o espaço global, os momentos de transição das relações
internacionais impulsionam sobremaneira complicações para a percepção dos movimentos
que alteram a configuração do poder mundial, por tal poder não estar concentrado em uma
única instituição política, consubstanciando-se numa organização anárquica das instituições
nacionais dentro do Sistema Internacional1.
Daí porque o problema da identidade de teoria e prática se coloque especialmente
em determinados momentos históricos, os quais se chamam de “transição”, isto é, de
mais rápido movimento de transformação, quando realmente as forças práticas
1 A acepção da ordem internacional enquanto anárquica consiste no foco da análise de Hedley Bull, buscando
diferenciar os meandros que delimitam a ordem interna da internacional. De tal modo, o autor conceitua um
Sistema Internacional (ou sistema de Estados) como o fenômeno surgido quando “dois ou mais estados têm
suficiente contato entre si, com suficiente impacto recíproco nas suas decisões, de tal forma que se conduzam,
pelo menos até certo ponto, como partes de um todo” (BULL, 2002, p. 15). Contudo, o desenvolvimento dos
relacionamentos entre os Estados possibilita o aprofundamento dos vínculos recíprocos, consubstanciando
aproximações das sociedades internas, criando, assim, uma Sociedade Internacional. Esta é compreendida como
conformada “quando um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma
sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e
participam de instituições comuns” (BULL, 2002, p. 19). De ambas as concepções, depreende-se que o ator
fundamental é o Estado. Neste sentido, Hedley Bull aponta que o ordenamento internacional é
fundamentalmente anárquico, pois não existe uma instituição superior aos Estados que lhes constranjam as
ações, estando estes limitados pelos fatores estruturantes da Sociedade Internacional, bem como de seus
interesses específicos, que lhes impelem a moldarem suas políticas quando da atuação no âmbito internacional.
9
desencadeadas demandam a sua justificação a fim de serem mais eficientes e
expansivas, ou então se multiplicam os programas teóricos que demandam, também
eles, a sua justificação realista, o que ocorre na medida em que demonstram a sua
possibilidade de assimilação por movimentos práticos, que só assim se tornam mais
práticos e reais (GRAMSCI, 1978, p. 52).
A literatura das relações internacionais recorrentemente trata dos turning points
(pontos de virada) do Sistema Internacional e seus efeitos que implicarão no novo
ordenamento internacional. Revoluções sócio-econômicas e políticas, conflitos internacionais,
são eventos que acarretam diretamente nas ações externas dos Estados, podendo fazê-las
avançar ou retroceder nos rumos da paz ou da conflituosidade. Portanto, “a história é
liberdade enquanto é luta entre liberdade e autoridade, entre revolução e conservação, luta na
qual a liberdade e a revolução continuamente prevalecem sobre a autoridade e a conservação”
(GRAMSCI, 1978, p. 224). Esta afirmação de Gramsci sobressalta-se quando inserida no
cenário internacional, onde as fontes de autoridade e conservação não são tão perceptíveis
quanto nos cenários domésticos.
Paralelamente, os produtos artísticos possibilitam capturar os distintos modos de
percepção da realidade em seu contexto de produção, fornecendo aos atores políticos
subsídios que permitem compreender os grupos sociais e projetar suas ações políticas
estabelecendo a maximização de seus benefícios.
Nesta situação a arte aparece como forma de conhecimento e investigação,
constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a
realidade. Daí que, em certos momentos ou como parte de um projeto pessoal, a
produção artística consegue representar a condição humana, os mecanismos do
poder e da economia, ou a estrutura social na qual o artista está envolvido (CHAIA,
2007. p. 22).
Consequentemente, a arte é um instrumento para a percepção e compreensão da
conjuntura política. A sensibilidade com que o artista logra capturar e apresentar o momento
em que procede à produção possibilita aprofundar o entendimento do processo político
vigente no momento de transição. Isto é possível, na concepção gramsciana, pois na arte a
relação entre forma e conteúdo permite potencializar a utilização da arte como instrumento de
absorção da realidade.
O fato de que forma e conteúdo se identifiquem significa que, na arte, o conteúdo
não é o “assunto abstrato”, isto é, a intriga romanesca e a massa particular de
sentimentos genéricos, mas a própria arte, uma categoria filosófica, um momento
“distinto”, do espírito, etc. (GRAMSCI, 1978, p. 196-197).
10
Segundo o cientista político Miguel Chaia, são inúmeras as relações entre arte e
política, encadeando instrumentos amplamente capacitados para os estudos das
transformações nas relações políticas.
As relações entre arte e política ganham diferentes matizes no transcurso histórico,
em função de inúmeros fatores como as particularidades das formações sociais, os
períodos de valorização do coletivo ou do individual, os contextos de guerras e
revoluções, a importância de ações artísticas de grupos, vanguardas ou movimentos
e os domínios de gênero, escolas ou tendências artísticas. Assim, sob diferentes
condições, o artista alcança a capacidade de expressar poeticamente a sua sociedade,
de maneira que a obra passa a conter – de forma mais ou menos explícita – o
conjunto de fatores sociais circundantes a ela (CHAIA, 2007, p. 13).
Por ser uma ação intrinsecamente humana, a arte “é um exercício dos sentidos e um
grande indício de liberação humana” (CHAIA, 2007, p. 18). Deste modo, os mais distintos
movimentos sociais se utilizam da arte e da cultura como uma forma de difundir seus
programas de transformação da sociedade. Não obstante, por vezes a própria obra de arte é
um objeto de conscientização social e desperta os desejos revolucionários da sociedade.
Os aspectos culturais voltam-se como elementos imprescindíveis para a análise do
capitalismo contemporâneo, bem como para os projetos que visem sua reparação ou
superação. Em Gramsci já era nítida a preocupação com a consideração da esfera cultural para
a “filosofia da práxis”, readequando-a aos novos contornos que a humanidade tomava na
primeira metade do século passado.
Pode-se dizer que não só a filosofia da práxis não exclui a história ético-política,
como, ao contrário, sua mais recente fase de desenvolvimento consiste precisamente
na reivindicação do momento de hegemonia como essencial à sua concepção estatal
e à “valorização” do fato cultural, da atividade cultural, de uma frente cultural como
necessária, ao lado das frentes meramente econômicas e políticas (GRAMSCI, 1978,
p. 219).
Conseguintemente, considera-se a arte como ferramenta revolucionária,
potencialmente reveladora das estruturas sociais obscurecidas pelas transformações sofridas
ao longo do tempo, seguindo-se a senda de Nietzsche, é uma atividade que possibilita a (des)
construção da realidade, retirando o véu que a encobre, tornando-a surpreendentemente
límpida.
Pois agora entendemos o que significa na tragédia querer ao mesmo tempo olhar e
desejar-se para muito além do olhar: estado que, no tocante à dissonância empregada
artisticamente, precisaríamos caracterizar exatamente assim, isto é, que queremos
ouvir e desejamos ao mesmo tempo ir muito além do ouvir. Esse aspirar ao infinito,
o bater de asas do anelo, no máximo prazer ante a realidade claramente percebida,
lembram que em ambos os estados nos cumpre reconhecer um fenômeno dionisíaco
que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e desconstruir do mundo
11
individual como eflúvio de uma arquiprazer, de maneira parecida à comparação [...]
entre a força plasmadora do universo e uma criança que, brincando, assenta pedras
aqui e ali e constroi montes de areia e volta a derrubá-los (NIETZSCHE, 2001, p.
141-142).
Tais considerações voltam-se demasiado verificáveis, no último grande período de
transição das relações internacionais, a década de 1990. O fim da Guerra Fria – que ditou a
tônica da política mundial no período de 1945 a 1991 –, de maneira inesperada
(HOBSBAWM, 2005), acarretou sobejo fluxo de teorias aspirantes à compreensão do novo
momento histórico da humanidade.
No afã de apreender e analisar as Relações Internacionais após o esfacelamento das
tensões que marcaram o período da Guerra Fria encontra-se na produção artística um
elemento profundamente indutor da capacidade criativa humana, imersa nas condições de
tempo e espaço específicas do “momento unipolar” norte-americano, erigido com o colapso
da União Soviética em 1991 (KRAUTHAMMER, 1991).
O ordenamento bipolar estava arraigado nas concepções sociais da realidade
internacional de tal forma que as duas superpotências constituíam-se em atores trans-
históricos. Os analistas recorriam a modelos explicativos para as crises que afetavam as
superpotências, contudo, não as considerando como potencialmente transformadoras dessa
distribuição de poder perenal (HOBSBAWM, 2005).
Agrega-se ao fator da redistribuição do poder internacional, o colapso das ideologias
que ditaram os programas globais dos séculos XIX e XX, as crises econômicas recorrentes –
em diversos níveis e locais – que desde a década de 1970 assolavam a economia
internacional, implicado em uma absoluta desorientação e impotência para com o período que
se seguiria. “O motivo dessa impotência estava não apenas na verdadeira profundidade e
complexidade da crise mundial, mas também no aparente fracasso de todos os programas,
velhos e novos, para controlar e melhorar os problemas da raça humana” (HOBSBAWM,
2005, p. 541).
Todavia, a passagem do momento de disputa ideológica – qualificada pelos fatores
econômicos e políticos – para um novo momento, ainda difuso, não absorvido claramente
pelos intelectuais, é um evento revelador do poder interpretativo e do valor científico que a
arte toma para os estudos políticos, sobremodo quando estes apoiam-se em paixões
econômico-corporativas. Isso é observado, pois:
12
[...] enquanto a obsessão político-econômica (prática, didascálica) destroi a arte, a
moral, a filosofia [...] estas atividades também são “política”. Isto é, a paixão
econômico-política é destrutiva, quando é exterior, imposta pela força, segundo um
plano preestabelecido [...]; contudo, ela pode se tornar implícita na arte, etc., quando
o processo é normal, não violento, quando entre a estrutura e as superestruturas
existe homogeneidade e o Estado superou a sua fase econômico-corporativa
(GRAMSCI, 1978, p. 274-275).
Dos escombros da velha ordem bipolar emergiram teóricos ávidos por reavivar antigos
sistemas explicativos das interações sociais em âmbito internacional. Sua importância não
residia simplesmente no escopo científico, mas também numa ferramenta imprescindível ao
poder hegemônico a estabelecer-se, que deve compreender a realidade na qual desempenhará
tal processo, e repassar essa concepção aos demais atores.
Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica, que se
verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças, que a
compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de
civilizações nacionais e continentais (GRAMSCI, 1978, p. 37).
Duas teorias destacaram-se neste contexto, suscitando extensivos debates acadêmicos
acerca das relações internacionais na década de 1990, e seus efeitos no novo milênio que se
acercava. Samuel Huntington recorreu às tensões dos fatores culturais – uma releitura dos
conflitos pré-modernos marcados pela disputa religiosa – para construir cenários prováveis
das relações internacionais no século XXI. Francis Fukuyama reavivou a clássica teoria
liberal – com suas raízes no final do século XVIII – motivado pelo colapso do socialismo
soviético, considerando-a a única plausível de desvendar e orientar as ações humanas,
especialmente na esfera global.
Ambos os modelos interpretativos apelam a sistemas clássicos, numa manobra que
desconsidera os fenômenos do período anterior, extraindo deste apenas os elementos que
legitimam suas pretensões. Cria-se uma realidade restrita aos desígnios explicativos de seu
arcabouço conceitual, seguindo-se a lógica do “bater de asas do anelo” de Nieztsche,
eliminando os resíduos que lhe emperravam seu vôo futurista. Tal artifício foi analisado por
Walter Benjamin evocando-se:
À forma de um meio de construção que, no começo, ainda é dominada pela do modo
antigo (Marx), correspondem imagens na consciência coletiva em que o novo se
interpenetra com o antigo. Essas imagens são imagens do desejo e, nelas, a
coletividade procura tanto superar quanto transfigurar as carências do produto social,
bem como as deficiências da ordem social da produção. Além disso, nessas imagens
desiderativas aparece a enfática aspiração de se distinguir do antiquado – mas isto
quer dizer: do passado recente. Tais tendências fazem retroagir até o passado remoto
a fantasia imagética impulsionada pelo novo. No sonho, em que ante os olhos de
cada época aparece em imagens aquela que a seguirá, esta última comparece
13
conjugada a elementos da proto-história, ou seja, a elementos de uma sociedade sem
classes. Depositadas no inconsciente da coletividade, tais experiências,
interpenetradas pelo novo, geram a utopia que deixa o seu rastro em mil
configurações da vida, desde construções duradouras até modas fugazes
(BENJAMIN, 1991, p. 32).
O retorno da civilização e do liberalismo como fontes de inteligibilidade do Sistema
Internacional são justificados pelo momento em que ocorre. A distribuição de poder, o
relacionamento das potências mundiais, as forças motrizes da humanidade que esclareciam as
relações internacionais do período anterior haviam sido dissipadas, entretanto, a conformação
de tais fatores na nova realidade estava obstada pela tradição modernista, enfática em
“grandes projetos coletivos” (JAMESON, 1997, p. 44), em fenômenos gerais que explicassem
a realidade e lhe permitissem depreendê-la. Qual o principal fator explicativo das relações
internacionais no novo milênio? Esta era a pergunta que os teóricos apressavam-se em
responder.
Desse modo, Roland Barthes analisou o processo de adequação da realidade aos
objetivos de um sistema explicativo como consistindo no “mito” contemporâneo. Neste
fenômeno, toda a história abarcada na criação de um determinado objeto é subtraída, e este
aparece como natural, incontestável e eterno.
Quando o mito fala sobre um objeto, despoja-o de toda a História. Nele, a história
evapora-se, transforma-se numa empregada ideal: prepara, traz, coloca; o patrão
chega e ela desaparece silenciosamente: podemos usufruir desse belo objeto sem nos
questionarmos sobre a sua origem (BARTHES, 1999, p. 171).
A eliminação dos resíduos da Guerra Fria à nova ordem servia aos interesses desses
intelectuais. Para construir um novo modelo de compreensão da realidade, era necessário
compô-la, de modo que as tensões ideológicas entre capitalismo e socialismo fossem
apaziguadas, num amplo movimento de afirmação capitalista, descaracterizando a luta de
classes, dissolvendo os conceitos de burguesia e proletariado em prol da conceituação
civilizacional ou universalista/individualista.
A deserção do nome burguês não é portanto um fenômeno ilusório, acidental,
acessório, natural ou insignificante: é a própria ideologia burguesa, o movimento
pelo qual a burguesia transforma a realidade do mundo em imagem do mundo, a
História em Natureza (BARTHES, 1999, p. 162).
Era um esforço calcado na remodelação da concepção do mundo dominante, marcada
por novas contradições, porém, estruturada de modo a ser percebida como a “mais
explicativa” da realidade. “Uma concepção do mundo não pode revelar-se como capaz de
impregnar a toda uma sociedade e de transformar-se em ‘fé’, a não ser quando demonstra ser
14
capaz de substituir as concepções e fés precedentes em todos os graus da vida estatal”
(GRAMSCI, 1978, p. 212).
É no retorno do liberalismo clássico e no fortalecimento do neoliberalismo que
sobressalta-se o elemento mitificador da ordem pós-Guerra Fria. Para compreender e justificar
a nova realidade, esses intelectuais despojam-na das contradições e tensões inerentes à sua
natureza, especialmente por estas serem as grandes impulsionadoras da estruturação do
período anterior. Esses artifícios “podem ser igualmente analisados como uma série de
tentativas de nos distrair e nos desviar dessa realidade, ou de disfarçar suas contradições e
resolvê-las na aparência de várias mistificações formais” (JAMESON, 1997, p. 95).
Executa-se uma operação de cisão no encadeamento histórico, cada momento presente
transforma-se em história, e seus precedentes são destituídos da realidade, sendo aludidos
apenas para a comprovação da realidade atual como histórica e natural. Cria-se um presente
eterno, a cada novo período da humanidade, sendo suprimido quando da ascensão de um novo
presente. “Com a ruptura da cadeia de significação, o esquizofrênico se reduz à experiência
dos puros significantes materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes, não
relacionados no tempo” (JAMESON, 1997, p. 53).
A avidez com que os acadêmicos atuavam na procura dos conceitos que tornassem a
realidade menos obscura ao intelecto humano, voltava-se como a fomentadora da própria
obscuridade da realidade, por esquecerem-se do desenvolvimento histórico vivenciado pelos
conceitos que explicavam a realidade anterior, influenciadores na atual, ainda não
desvendada.
Se é necessário, no perene fluir dos acontecimentos, fixar conceitos, sem os quais a
realidade não poderia ser compreendida, deve-se também – aliás, é imprescindível –
fixar e recordar que realidade em movimento e conceito da realidade, se podem ser
logicamente distinguidos, devem ser concebidos historicamente como unidade
inseparável (GRAMSCI, 1978, p. 247).
Tais indícios do novo período histórico já haviam sido observados na criação artística,
desde o alto modernismo e o pós-modernismo, com a expansão da indústria cultural. Esta
indústria passou a nortear-se pela reprodução ampliada dos produtos culturais, a fim de
atender à demanda oferecida pelo setor de entretenimento, invenção do capitalismo global de
meados do século XX. Segundo Theodor W. Adorno, este novo cenário acarretou a
disseminação da mediocridade artística, através do álibi da identidade, que padronizava o
15
estilo do entretenimento como naturalmente acessível às novas massas consumidoras de tais
produtos.
O momento pelo qual a obra de arte transcende a realidade é, com efeito, inseparável
do estilo, mas não consiste na harmonia realizada, na problemática unidade de forma
e conteúdo, interno e externo, indivíduo e sociedade, mas sim nos traços em que
aflora a discrepância na falência necessária da apaixonada tensão para com a
identidade. Em vez de se expor a essa falência, na qual o estilo da grande obra de
arte sempre se negou, a obra medíocre sempre se manteve à semelhança de outras
pelo álibi da identidade. A indústria cultural finalmente absolutiza a imitação
(ADORNO, 2009, p. 13-14).
Por conseguinte, a indústria cultural tornou-se instrumento essencial para a mitificação
da realidade, com a reprodução ampliada de seus produtos, facilitada pela difusão tecnológica
dos meios de comunicação. A cultura comercializada voltou-se substancial para a ideologia
globalizante, no contexto internacional pós-1991. Não obstante:
[...] a nova cultura pós-moderna global, ainda que americana, é expressão interna e
superestrutura de uma nova era de dominação, militar e econômica, dos Estados
Unidos sobre o resto do mundo: nesse sentido, como durante toda a história de
classes, o avesso da cultura é sangue, tortura, morte e terror (JAMESON, 1997. p.
31).
E esta nova cultura, pretensamente universal, fomentadora da paz e garantidora de
uma nova ordem mundial, tornou-se a base das relações internacionais. Todavia, além desse
fator, agregou-se outro, mais palpável, potencialmente com maior poder explicativo e a
essência dos argumentos construtores do neoliberalismo, a economia liberal.
O novo período da história, após um século violento, onde a barbárie revelou-se muito
mais frequente que em qualquer outro, pelo poder destrutivo que o ser humano evidenciou
possuir, “traduzir-se-ia no fim das guerras e revoluções sangrentas. Os homens, de acordo
quanto aos objectivos, não teriam grandes razões para lutar. A actividade económica satisfaria
as suas necessidades, pelo que já não teriam de arriscar a vida em batalhas” (FUKUYAMA,
2007, p. 300).
No entanto, a pretensa ordem pacífica fornecida pelo triunfo do capitalismo e do
liberalismo não se realizou, frustrando por conceber a economia como atividade pacificadora,
desconsiderando suas contradições inerentes. “Na economia, o elemento ‘perturbador’ é a
vontade humana, vontade coletiva, cuja atitude varia de acordo com as condições gerais nas
quais vivem os homens, isto é, ‘conspirante’ e organizada de maneiras diversas” (GRAMSCI,
1978, p. 300).
16
A vontade humana é concebida por Gramsci enquanto “vontade coletiva”,
polemizando com a análise de Fukuyama, que atribui ao caráter individual a proeminência nas
relações econômicas e políticas no novo momento histórico. Para Gramsci, isto reitera a
crítica às teorias individualistas, por estruturarem-se em bases “anti-históricas”. “O
‘individualismo’ que se tornou anti-histórico, contemporaneamente, é o que se manifesta na
apropriação individual da riqueza, ao passo que a produção da riqueza tem se socializado cada
vez mais” (GRAMSCI, 1978, p. 48).
O desenvolvimento histórico consiste em uma unidade temporal, tendo cada fase sua
devida relevância para as posteriores, não havendo espaço para “pontos de partida”
fundamentalmente inovadores, enquanto continuar sendo a humanidade a estabelecer sua
essência.
De fato, toda fase histórica deixa os seus traços nas fases posteriores; e estes traços,
em certo sentido, tornam-se o seu melhor documento. O processo de
desenvolvimento histórico é uma unidade no tempo, pela qual o presente contém
todo o passado e do passado se realiza no presente o que é “essencial”, sem resíduo
de um “incognoscível” que seria a verdadeira “essência” (GRAMSCI, 1978, p. 119).
Os traços característicos da ordem internacional anterior mantiverem-se, a
conflitualidade persistiu, motivada pela competição econômica no espaço globalizado,
multinacional, transfronteiriço, ademais da proliferação de conflitos étnicos e guerras civis,
dificultando a atuação das potências internacionais, especialmente dos Estados Unidos, pois
alguns atores possuíam estatuto internacional, não obstante, internamente perdiam
paulatinamente seu monopólio do poder coercitivo.
O colapso da União Soviética e o fim do socialismo real introduziram importantes
mudanças no equilíbrio do poder mundial, que não podem ser ignoradas ou
subestimadas. O sistema da bipolaridade, no qual o mundo tinha se acostumado,
ainda que perigosamente, a viver desde o final da Segunda Guerra Mundial, foi
rompido e as expectativas da criação de uma nova ordem internacional não foram
realizadas, e dificilmente o serão em curto prazo. Esta nova ordem, desejada por
muitos e que se supunha poder ser mais homogênea e igualitária, ficou no terreno
das ilusões. O que predomina atualmente na cena internacional são aspectos
profundamente negativos e que contribuem não para uma estabilidade do sistema
mas, ao contrário, para a irrupção de uma série de focos nos quais a tensão vem se
tornando crescente, seja no plano estratégico, seja no plano econômico-financeiro
(PEIXOTO, 2002, p. 39-40).
Prosseguindo neste escopo, outra teoria célebre dos anos 1990 foi o “choque de
civilizações” de Samuel P. Huntington. Segundo o autor, as disputas no seio da economia
global estariam condicionadas por um fator civilizacional, que seria a principal fonte das
tensões no novo século. O êxito econômico elevaria a autoafirmação cultural e civilizacional
17
das nações emergentes, em contraposição ao retrocesso das potências estabelecidas, que
teriam seus valores e concepções de mundo contestadas pelas novas potências, num cenário
de crescente acirramento das contendas. Sob esta ótica:
Decréscimos de poder econômico e militar conduzem à dúvida sobre si mesmo, a
crises de identidade e a tentativas de encontrar em outras culturas as chaves para o
êxito econômico, militar e político. À medida que sociedades não-ocidentais
aumentam sua capacidade econômica, militar e política, elas cada vez mais
trombeteiam as virtudes de seus próprios valores, instituições e cultura
(HUNTINGTON, 1997, p. 111).
Incorre-se aqui na mitificação das relações internacionais, no retorno à lógica
conflituosa das civilizações, utilizando-se das demais variáveis sócio-político-econômicas
para justificar o empreendimento teórico-científico de elevar as tensões culturais da
humanidade ao patamar de novo fator fomentador de conflitos e ordenador do Sistema
Internacional pós-Guerra Fria.
Estruturam-se as premissas e suas justificativas com os métodos captados e analisados
por Barthes (1999) e Benjamin (1991). O mito do choque de civilizações é despojado de toda
historicidade. Concluído este procedimento, agregam-lhe elementos da proto-história para
justificá-lo como traço marcante da história da humanidade. Todas as demais tensões no
interior das agrupações humanas, e em seus relacionamentos, quedam-se destituídas de
história, voltando-se apenas como explicações acessórias para a inovadora organização das
relações internacionais.
Um sistema conceitual filosófico baseado em premissas civilizacionais peca, segundo
Gramsci, quando não considera que foi estabelecido por preceitos sócio-culturais das classes
dirigentes das nações hegemônicas em seu surgimento.
Isto pode ser visto mais claramente pelo fato de que estes termos se cristalizaram,
não a partir do ponto de vista de um hipotético e melancólico homem em geral, mas
do ponto de vista das classes cultas europeias, que, através de sua hegemonia
mundial, fizeram-nos aceitar por toda parte (GRAMSCI, 1978, p. 172).
Tanto Huntington (1997) quanto Fukuyama (2007), ao constatarem o encerramento da
ordem anterior, cogitam que suas tensões fundamentais foram eliminadas da realidade
juntamente com a dissolução do conflito bipolar. O primeiro reconhece a agitação inerente a
tais fenômenos, no entanto, considera que sua conflituosidade no novo contexto é
determinada por linhas civilizacionais. O segundo aprecia que com o fim da ordem anterior
não haveria uma alternativa factível às problemáticas inerentes ao capitalismo, logo, volta-se
18
inevitável a manutenção do capitalismo, em sua forma mais livre e autônoma, proporcionando
o desenvolvimento decisivo do progresso humano, em todas as regiões, como a solução
plausível no desenvolvimento humano nesta etapa. “As aparentes diferenças na situação de
cada uma delas não parecerão reflectir distinções permanentes e necessárias entre as pessoas
que as utilizam, mas apenas o produto das suas posições distintas ao longo do caminho”
(FUKUYAMA, 2007, p. 324-325).
Entrementes, erigir um sistema filosófico, político, econômico e social que explique a
interação dos atores internacionais após o esfacelamento de um ordenamento que manteve-se
por mais de quatro décadas, baseando-se na convicção de que os elementos contraditórios
estruturadores haviam sido mitigados é empresa científica arriscada. “Mas não acredito que
existam muitos a sustentar que, com a modificação de uma estrutura, todos os elementos da
superestrutura correspondente devam necessariamente cair” (GRAMSCI, 1978, p. 273).
Ambas as teorias tem sua fortaleza e sua debilidade advindas da mitificação da
realidade. Entretanto, incorrer no regresso histórico no afã de proporcionar seu progresso é
um procedimento de alto risco.
Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento
do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base,
vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da
sociedade, é a escuridão (HOBSBAWM, 2005, p. 562).
Similar indefinição quanto ao novo quadro dos relacionamentos internacionais vigente
na década de 1990 é observável na atuação das potências internacionais neste período, fator
que favorecia análises amplamente divergentes quanto ao ordenamento mundial emergente
para o novo milênio.
Os Estados Unidos, superpotência resistente ao fim da Guerra Fria, ascendiam como a
potência que disporia pacificamente a ordem internacional, controlando os focos de
conflituosidade internacional, nos moldes da teoria da estabilidade hegemônica de Charles
Kindleberger2. Fukuyama (2007) foi ferrenho defensor de tal argumentação, baseando-se nos
elementos do liberalismo republicano, intentando evidenciar que numa ordem internacional
2 Esta percebe as estruturas hegemônicas de poder, quando dominadas por um único Estado, possuindo maior
propensão a desenvolver regimes internacionais fortes, nos quais as regras são relativamente precisas e bem
obedecidas. Concebe, desse modo, a relevância que a autoridade de normas e instituições internacionais tem no
ordenamento internacional, não obstante, subestima a utilização de tais instituições para legitimar o projeto da
potência hegemônica, promovendo, por vezes, a conflituosidade em contraposição à estabilidade (COX, 1986).
19
democrático-liberal, os focos de conflito virtualmente devastadores seriam eliminados, pela
natureza dos regimes políticos, facilitadores do processo de pacificação.
Por outro lado, Huntington (1997) analisava os efeitos de uma política externa baseada
em extremos, atribuindo-lhe consequências perversas para o futuro nacional. O país deveria
atuar externamente com posições moderadas, definindo suas ações numa base civilizacional, a
fim de preservar não apenas sua colocação no Sistema Internacional, mas sua sobrevivência
na ordem civilizacional.
Nessa era [...] os Estados Unidos não podem nem dominar o mundo nem escapar
dele. Nossos interesses não serão mais bem servidos nem pelo internacionalismo
nem pelo isolacionismo, nem pelo multilateralismo nem pelo unilateralismo. O que
os servirá da melhor forma será evitar esses extremos contrapostos e, ao contrário,
adotar uma política aliancista de íntima cooperação com seus parceiros europeus a
fim de proteger e promover os interesses e valores da singular civilização de que
compartilham (HUNTINGTON, 1997, p. 397-398).
Há de se apreciar também outra análise, não tão pretensiosa quanto as duas
anteriormente referidas, que aborda a nova conjuntura internacional de modo histórico,
considerando – acertadamente como se comprova na atualidade – a década de 1990 como um
período de transição, de transformação, em que os atores internacionais não atuavam da forma
como se lhes cogitava adequada. Em relação às análises célebres desse momento, Hobsbawm
diz que:
A reação imediata dos comentaristas ocidentais ao colapso do sistema soviético foi
que ratificava o triunfo permanente do capitalismo e da democracia liberal, dois
conceitos que o menos sofisticado dos observadores americanos do mundo tendiam
a confundir. Embora o capitalismo certamente não se achasse na melhor das formas
no fim do Breve Século XX, o comunismo do tipo soviético estava
inquestionavelmente morto, e era muito improvável que revivesse. Por outro lado,
nenhum observador sério no início da década de 1990 podia ser tão confiante em
relação à democracia liberal quanto ao capitalismo. O máximo que se podia prever
com alguma confiança [...] era que praticamente todos os Estados iam continuar a
declarar sua profunda ligação com a democracia, a organizar algum tipo de eleição,
com uma certa tolerância por uma oposição às vezes conceitual, mas dando sua
própria interpretação ao significado do termo (HOBSBAWM, 2005, p. 553).
Essas indefinições decisivas à nova época são determinantemente observáveis no caso
da Europa. Com o fim da Guerra Fria, e da divisão proporcionada pela Cortina de Ferro, a
Europa enfrentou-se com a imprescindibilidade da definição de seu espaço territorial.
Segundo Huntington (1997, p. 197) a pergunta essencial neste momento era: “o que é a
Europa?” A fronteira oriental da Europa, que no período anterior estava demarcada pela
separação bipolar, agora deveria encontrar um novo fator delimitador. Tal (in) definição
determina as pretensões tanto da União Europeia, quanto da OTAN na sua nova configuração.
20
Nas teses gramscianas encontram-se apontamentos que corroboram, em partes, esse
argumento, referindo-se a necessidade que um grupo social tem de precisar sua tradição, seu
passado, para elencar a partir deste os elementos que permitam a superação das contradições
momentâneas e prosseguir seu desenvolvimento.
Todo grupo social tem uma “tradição”, um “passado”, e o considera como o único e
total passado. Aquele grupo que, compreendendo e justificando todos estes
“passados”, souber identificar a linha de desenvolvimento real – linha contraditória,
mas passível de superação na contradição – cometerá “menos erros”, identificará
mais elementos “positivos” sobre os quais apoiar-se para criar uma nova história
(GRAMSCI, 1978, p. 254).
Não obstante, enquanto Huntington constatava a indefinição identitária europeia,
Hobsbawm encontrava problemas de ordem político-econômica, empecilho fundamental para
as principais organizações do poder europeu no novo cenário.
Qual era o status político internacional da nova União Europeia, que aspirava a uma
política comum mas se mostrava espetacularmente incapaz de até mesmo fingir ter
uma, ao contrário das questões econômicas? Não estava claro nem mesmo se todos
os Estados, grandes ou pequenos, velhos ou novos – com exceção de uns poucos –,
existiriam em sua presente forma quando o século XXI atingisse o seu primeiro
quartel (HOBSBAWM, 2005, p. 538).
Enquanto a Europa estagnava em sua redefinição no quadro das relações
internacionais, outro ator substancial seguia na mesma direção, intentando reconfigurar sua
política externa em um patamar sumamente discrepante das últimas quatro décadas e meia. A
Federação Russa, maior Estado resultante da dissolução soviética e Estado-núcleo daquela
região, via-se sob pressões e contenções de todos os lados. A União Europeia e a OTAN
expandiam-se cada vez mais ao Leste; o Islã reafirmava-se e obstaculizava qualquer investida
russa na fronteira sul e sudoeste; e a China mantinha seu crescimento econômico
extraordinário, limitando as opções russas no sudeste do continente (HUNTINGTON, 1997).
Ademais da atuação japonesa, que mantinha-se como potência econômica na
economia globalizada, potências emergentes inseriam-se paulatinamente nas análises e
projeções de relações internacionais no novo milênio. Indubitavelmente, a China era o mais
evidente exemplo deste grupo de novos atores relevantes na esfera internacional. Todavia,
acrescentam-se a tal grupo a Índia, o Brasil e, em menor grau, a África do Sul e o Irã
(HUNTINGTON, 1997).
Adentrando-se nos aportes de Huntington, essas tensões no novo cenário global
estariam determinadas pelos aspectos cultural-civilizacionais. Por outro lado, Fukuyama,
21
crendo no triunfo do liberalismo, apresenta um quadro totalmente distinto que, todavia, se
verificou utópico e mitificador do período de transição. Neste escopo, acredita-se que:
O nacionalismo continua a ser mais intenso no Terceiro Mundo, na Europa do Leste
e na União Soviética, e aí subsistirá por mais tempo do que na Europa ou na
América. [...] As forças económicas encorajaram o nacionalismo ao substituírem as
classes por barreiras nacionais, criando entidades centralizadas e linguisticamente
homogéneas. Agora, com a criação de um mercado mundial único e integrado, essas
mesmas forças estão a encorajar o derrube das barreiras nacionais. O facto de a
neutralização política do nacionalismo poder não ocorrer nesta geração ou na
próxima não afecta a perspectiva de que tal acabará por acontecer (FUKUYAMA,
2007, p. 268).
Nesta pequena passagem da obra de Fukuyama, é nítida a mitificação da ordem
internacional observada naquele momento. Todas as problemáticas que implicaram no
ordenamento de 1945 a 1991 simplesmente dissolveram-se juntamente com a União
Soviética. O processo de globalização, facilitado com o desenvolvimento tecnológico, de
transportes e comunicações, conduzia-se pacífica e beneficamente em bases liberalizantes,
conduzido pela infalível “mão invisível” – verdadeiro fetiche histórico, que retornava aos
debates acadêmicos.
Quase que profeticamente – se seguirmos a seara mitificadora que embasou as
apreciações de Fukuyama – as análises de Huntington e, principalmente, Hobsbawm
contestavam o otimismo dos ensaios liberais, apresentando as indefinições da política externa
norte-americana como a promotora desta ordem globalizante, pois quando a potência mundial
voltou-se às ações unilaterais na conformação de seus objetivos para a estruturação deste
cenário, o potencial do argumento liberal esfacelou-se, e o período de transição completou-se,
com a inauguração definitiva da ordem permeada pela busca estadunidense da dominação, a
partir da Doutrina Bush.
As recentes atitudes do governo norte-americano e o surgimento da já denominada
“Doutrina Bush” – a guerra preventiva, a utilização da força, mesmo sem mandato
internacional ou com fraco apoio externo, e a manutenção a qualquer custo da
unipolaridade estratégica (leia-se superioridade militar incontestável dos Estados
Unidos) – levam-nos a adotar um critério analítico tentador, mas, talvez seja nas
atuais circunstâncias, parcial e equivocado, pois estamos, mais do que nunca, no
mais aberto e desabusado reino do interesse nacional. Nunca os diferenciais de
poder de um país perante os demais, coligados ou não, foram tão grandes
(PEIXOTO, 2002, p. 37).
Constatando-se as indefinições nas políticas das grandes potências no período de
transição que caracterizou as relações internacionais de 1991 a 2001, o presente estudo visa
estabelecer um marco teórico-conceitual que permita fornecer inteligibilidade a este período e
22
decifre as suas implicações para a estruturação do Sistema Internacional pós-Guerra Fria,
vigente na atualidade.
Para tanto, se utilizará dos entrelaçamentos de arte e política (CHAIA, 2007),
possibilitando a percepção e a captura da realidade neste momento histórico. É neste âmbito
que, no intuito de captar as colaborações brasileiras para a assimilação desse novo movimento
de ordenação do Sistema Internacional, este trabalho se propõe a analisar os procedimentos
artísticos do cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso (1942- ), um dos principais
artistas brasileiros no âmbito musical nas últimas décadas, inovador no trato dos vínculos de
arte e política e ator central na produção de arte internacionalista brasileira.
Deste modo, empreende-se o estudo da contribuição de Caetano Veloso para a
transmutação da Música Popular Brasileira (MPB) e em seu avanço enquanto arte
internacionalizada, bem como sua aproximação com os aportes da teoria crítica para a
percepção das Relações Internacionais contemporâneas, possibilitando o debate de categorias
analíticas brasileiras para examinar o Sistema Internacional pós-Guerra Fria.
Partindo das tensões artísticas que resultaram no surgimento da música tropicalista,
procura-se posicionar as contribuições de Caetano Veloso para a transformação da Arte
Crítica brasileira, agregando a esta as colaborações provenientes dos avanços técnicos
internacionais, permitindo a afirmação da música popular brasileira e seu caráter original.
Para tal, envereda-se no debate que marcou o turning point cultural mundial nos anos
1960, a passagem do alto modernismo para o pós-modernismo, verificando-se a atenuação
dos “grandes projetos coletivos” em escala mundial, exacerbando seus limites, apontando para
posteriores mudanças políticas no cenário internacional e interno brasileiro, sob o marco dos
apontamentos de Jameson (1997).
O foco do trabalho estará contido na apreciação das transformações mundiais
ocorridas com o fim da Guerra Fria e na função da obra de Caetano Veloso para a percepção
brasileira deste novo cenário. Neste sentido, propõe-se a aproximação da produção musical de
Caetano Veloso nas décadas de 1990 e 2000 com os aportes da teoria crítica de Relações
Internacionais, e suas análises quanto à hegemonia no Sistema Internacional.
De tal modo, se analisarão as canções Fora da ordem (VELOSO, 1991), Santa Clara,
padroeira da televisão (VELOSO, 1991), O heroi (VELOSO, 2006), e Base de Guantánamo
(VELOSO, 2009). As temáticas concernentes à agenda das Relações Internacionais
23
contemporâneas abordadas nestas canções serão foco do estudo, tanto no modo como são
apresentadas e debatidas por Caetano Veloso nas canções, quanto em seu debate no interior da
teoria crítica de Relações Internacionais, observando os aspectos fronteiriços (CHAIA, 2007)
entre ambas as contribuições e suas inter-relações.
Conseguintemente, esta apreciação acarretará a delimitação de traços gerais do
pensamento brasileiro da política internacional, no concernente à definição do panorama
sistêmico da hegemonia estadunidense, e suas implicações para a atuação dos mais variados
atores internacionais, especialmente o Brasil.
Para realizar tais propósitos, utilizar-se-á da conceituação dos diferentes tipos de
entrelaçamento entre arte e política, efetivada por Miguel Chaia. Ademais, a consideração dos
efeitos da passagem do período modernista para o pós-modernista trará a contribuição
essencial de Fredric Jameson, analisando as implicações do esfacelamento das ideologias
coletivas fundadas no Ocidente durante o século XIX, juntamente com a nova onda de
expansão do capitalismo mundial presenciada a partir de 1970, a globalização.
Ao lançar-se mão destes dois teóricos, consequentemente se fará necessária a
apreciação dos pensadores clássicos de arte e política, como Nietzsche, Benjamin e Adorno,
principalmente os dois últimos com sua colaboração para a compreensão dos efeitos do
contexto histórico vivido na produção artística de determinado período e o modo como estes
fenômenos influenciam na percepção do artista quanto ao mundo a sua volta, de modo que a
produção artística não se torne mitificada (BARTHES, 1999).
Em busca de compreender a contribuição artística de Caetano Veloso analisa-se a obra
escrita Verdade Tropical, de autoria do próprio cantor e compositor baiano, concomitante a
outros escritos compilados nos volumes Alegria, Alegria e O Mundo não é chato, bem como
de pesquisadores que trabalham com a produção de Caetano. A partir desta análise é possível
estabelecer os parâmetros de aproximação de Caetano Veloso com a teoria crítica de Relações
Internacionais, ao se observar as preocupações do artista com o ordenamento do poder
internacional e suas implicações para o Brasil, bem como suas críticas ao pensamento
hegemônico de universalização das estruturas político-econômicas da potência hegemônica e
suas consequências para a afirmação cultural nacional.
24
Se empregará uma estruturação gramsciana para o estudo da atuação profissional e
política do artista, concebendo-as como evolução histórica tanto do artista como do ambiente
que o cerca.
Estabelecidas estas premissas, o trabalho deve seguir estas linhas: 1) a reconstrução
da biografia, não apenas no que diz respeito à atividade prática, mas principalmente
no que toca à atividade intelectual; 2) o registro de todas as obras, mesmo das menos
importantes, em ordem cronológica, estabelecido segundo motivos intrínsecos: de
formação intelectual, de maturidade, de domínio e aplicação do novo modo de
pensar e de conceber a vida e o mundo (GRAMSCI, 1978, p. 95).
Debatendo esta possibilidade, torna-se essencial a contribuição de Robert Cox para a
teoria crítica, bem como do teórico político que fora a base para construção de seu modelo de
compreensão da esfera internacional, Antonio Gramsci. A análise do novo ordenamento do
Sistema Internacional se enfocará na hegemonia estadunidense neste novo contexto, em suas
bases de manutenção e desdobramentos, fundamentalmente para o Brasil.
Ademais, visa-se analisar o debate intelectual estabelecido com o fim da Guerra Fria
acerca de qual seria o ordenamento internacional ascendido neste momento, contrapondo a
teoria crítica de Cox com as teorias de Francis Fukuyama (“o fim da história”) e de Samuel
Huntington (“o choque de civilizações”). Como estas últimas estão profundamente atreladas a
aspectos culturais das sociedades contemporâneas, permitirão uma maior aproximação do
debate com as contribuições de Caetano Veloso para a percepção de tais eventos.
Considerando que a (des) ordem que marcou – e ainda marca em certos âmbitos – o
período de transição é fruto de um processo histórico de construção da realidade momentânea,
se lançará mão da obra de Hobsbawm, O Breve Século XX, intentando tornar esta realidade
perceptível e capturável ao analista, e permitir a compreensão dos apontamentos efetuados
pelo artista, condicionado por essa realidade, todavia, evidenciando que este procedimento
não reproduz um eterno “bater de asas do anelo” de Nietzsche, e sim o entendimento da
realidade presente e a construção da futura.
O trabalho é composto por duas fontes de documentos analisados, os secundários,
contribuições de comentaristas dos fenômenos debatidos ao longo do trabalho, e os primários,
as músicas de Caetano Veloso que são foco de análise neste estudo.
Realizar-se-á a análise qualitativa, com pesquisa em referencial teórico acerca dos
temas abordados, de acordo com o elenco de teorias e conceitos anteriormente apresentados,
25
visando estabelecer um debate acadêmico-científico sobre a aproximação da obra de Caetano
Veloso nas décadas de 1990 e 2000 com a teoria crítica de Relações Internacionais.
Deste modo, intenta-se incorrer através do método crítico-analítico no debate das
implicações da produção artística de Caetano Veloso para a revolução estilística da música
popular brasileira, bem como suas contribuições para o pensamento brasileiro acerca dos
acontecimentos internacionais, especialmente após o fim da Guerra Fria.
No primeiro capítulo, será analisado de modo mais detido o período de transição das
relações internacionais no pós-Guerra Fria, de 1991 a 2001, apreciando as suas características
principais a fim de estabelecer um panorama conceitual para o ordenamento vigente à época,
recorrendo-se aos apontamentos de Robert Cox e Antonio Gramsci, para compreender a
lógica hegemônica deste período, que se explicitaria pela dissensão em relação ao período
posterior a 2001, com a atuação unilateral da superpotência sobrevivente à Guerra Fria. De tal
modo, empreender-se-á um debate acerca das teorias surgidas no centro hegemônico, e seu
ímpeto de caracterizar as inovações presentes no novo contexto internacional.
No segundo capítulo, será apresentada e debatida a biografia do artista, Caetano
Veloso, apresentando os entrelaçamentos de sua obra com as relações políticas nacionais e
internacionais, utilizando-se das situações expostas por Miguel Chaia: arte crítica; politização
da arte; estetização da política; e presença política da obra. Compõe-se assim um quadro
analítico revelador da relevância obtida pela produção artística de Caetano Veloso para a
apreciação do cenário político internacional, bem como a inserção do Brasil no mesmo.
No terceiro capítulo, empreende-se a análise interna de quatro canções, contemplando
as construções teóricas efetuadas anteriormente, visando a percepção do ordenamento
internacional pós-Guerra Fria, aproximando-as dos aportes da teoria crítica, evidenciando o
papel hegemônico desempenhado pela mesma, e seus efeitos para a década seguinte. O estudo
se deterá aos fenômenos debatidos pelo artista nas canções, apresentando seu potencial
explicativo das relações políticas na realidade contemporânea.
1 ALÉM DO OTIMISMO E DO PESSIMISMO: UMA TEORIA CRÍTICA
PARA A ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS PÓS-
GUERRA FRIA
1.1 Implicações do processo de desenvolvimento histórico às relações internacionais:
sobreposição aos mitos nas ciências sociais
Na busca de compreender as forças motrizes que permearam os relacionamentos entre
os atores internacionais no período imediatamente posterior ao final da Guerra Fria, o
presente capítulo envereda no debate de algumas das teorias surgidas neste contexto, e como
as mesmas estavam comprometidas com o projeto hegemônico emergido neste momento.
Para tanto, lançar-se-á mão dos aportes teóricos de Robert Cox, sob o âmbito da teoria crítica
internacional, a fim de compreender o processo histórico que acarretou na conformação de tal
ordenamento mundial, e suas principais características, elucidando o caráter hegemônico das
relações internacionais durante o período de 1991 a 2001.
Com a rápida erosão interna do socialismo soviético, reforçada pelos
constrangimentos externos da corrida bipolar pela supremacia, a dissolução da União
Soviética iniciada em 1991 trouxe complicações determinantes às clássicas teorias de
Relações Internacionais. Desde a década de 1980 o realismo e o liberalismo, com suas
vertentes adaptadas às transformações do Sistema Internacional vivenciadas na década
anterior – o neorrealismo e o neoliberalismo –, empenhavam-se em oferecer novas
abordagens aos problemas da realidade internacional, todavia sem considerar possíveis
alterações irreversíveis na conjuntura internacional (COX, 1986).
Ambas as teorias centravam-se na análise da ordem mundial vigente, visando
apresentar entraves e desequilíbrios no seu interior, a fim de fornecerem medidas necessárias
para sanar tais problemáticas que dificultam o desempenho do sistema. O neorrealismo
focava-se no estudo das estruturas de poder que dominavam o cenário da Guerra Fria em suas
27
etapas decisivas, em termos das capacidades relativas dos atores estatais, enquanto o
neoliberalismo lançava-se ao estudo das novas relações econômicas internacionais, com a
ampliação do livre-mercado e da globalização financeira, buscando apresentar os benefícios e
a imprescindibilidade da abertura econômica frente aos desafios que se colocavam ao
capitalismo no quartel final do século XX.
Na abordagem crítica de Robert Cox, estas são teorias de solução de problemas, que
“tomam o mundo como o encontram, com as relações sociais e de poder prevalecentes, e as
instituições nas quais elas estão organizadas, como o marco para a ação” (COX, 1986, p. 125,
tradução nossa). Deste modo, estas teorias desconsideram a possibilidade de transformação da
ordem como alternativa para solucionar os desequilíbrios estruturais do sistema. “Dado que o
esquema geral das instituições e das relações não está em questão, os problemas particulares
devem ser considerados em relação com as áreas especializadas de atividade nas quais eles se
apresentam” (COX, 1986, p. 125, tradução nossa).
A década de 1980 mostrou-se potencialmente favorável às mudanças nas Relações
Internacionais. Por um lado, (re) emergiam fenômenos como o terrorismo, nacionalismo,
autoritarismo, institucionalização internacional, regionalismo, democratização, globalização,
descolonização, entre tantos outros, que minavam a intangibilidade do Estado, até então
unidade fundamental das abordagens de Relações Internacionais (HOBSBAWM, 2007).
O problema parece estar, então, na incapacidade de pensar a política para além do
Estado, ou melhor, na insistência em pensar a política como domínio exclusivo e
excludente de uma comunidade circunscrita a um determinado espaço territorial
(MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p. 154).
Por outro lado, enquanto as teorias clássicas digladiavam-se pela condução dos
estudos internacionais, firmava-se uma crítica contundente aos seus métodos de análise e seus
principais preceitos filosóficos, fomentando uma ampla rediscussão acerca dessa área de
estudos e favorecendo a (re) inclusão desses fenômenos às Relações Internacionais,
ampliando sua agenda de estudos.
Aproximando-se da Escola de Frankfurt, Robert Cox critica o positivismo das teorias
de Relações Internacionais e seu esforço para formular “métodos científicos e neutros” (COX,
1986), afirmando que as teorias de ciências sociais são “para alguém e têm algum propósito.
Todas as teorias têm uma perspectiva. As perspectivas derivam de uma posição no tempo e no
espaço, especificamente tempo e espaço social e político” (COX, 1986, p. 124, tradução
nossa), negando assim a neutralidade do cientista social, por este fazer parte de seu objeto de
28
estudo. Este debate já havia sido travado no âmbito mais amplo das ciências sociais por
Adorno e Horkheimer, na década de 1930, não obstante, no campo internacional a afirmação
do realismo, e em menor escala do liberalismo, como teorias fundamentais obstaculizava tal
debate.
Adorno analisa o processo de mitificação do positivismo com o desenvolvimento da
indústria cultural, transformando-o em ideologia conservadora, utilizando-se dos artifícios
disponíveis para apresentar-se como método mais coerente para a compreensão do mundo.
A nova ideologia tem por objeto o mundo como tal. Ela usa o culto do fato,
limitando-se a suspender a má realidade, mediante a representação mais exata
possível, no reino dos fatos. Nesta transposição, a própria realidade se torna um
sucedâneo do sentido e do direito. Belo é tudo o que a câmera reproduz (ADORNO,
2009, p. 28).
A manutenção do cenário de Guerra Fria e da lógica estadocêntrica nas análises
internacionais marginalizava as demais pautas do debate, apresentando as relações de poder –
político ou econômico – como as únicas relevantes neste contexto. Cox (1986, p. 129,
tradução nossa) assinalava que “os períodos de aparente estabilidade ou firmeza nas relações
de poder favorecem o enfoque de resolução de problemas. A Guerra Fria foi um desses
períodos”.
Claramente a bipolarização do Sistema Internacional neste momento auxiliava tais
escolhas metodológicas, contudo, o problema central de tais abordagens era sua pretensão
universalista. Analisando o neorrealismo – especialmente a contribuição de Kenneth Waltz –
Cox aponta que:
O neorrealismo, tanto na forma estruturalista waltziana como na forma interativa
teórica, aparece ideologicamente como uma ciência a serviço da gestão dos grandes
poderes do sistema internacional. Há uma inequívoca qualidade panglossiana em
uma teoria publicada nos últimos anos setentas, que chega à conclusão de que um
sistema bipolar é o melhor de todos os mundos possíveis. O momento histórico
deixou sua marca indelével sobre essa ciência pretensamente universalista (COX,
1986, p. 195, tradução nossa).
Deste modo, as teorias de solução de problemas possuem sua fortaleza na
previsibilidade e reprodutibilidade irrestrita de seu modelo analítico. Todavia, esta é também
sua grande fraqueza, pelo fato da ordem social e política não ser fixa, ao menos no longo
prazo é suscetível de transformações. Consequentemente, esta classe de teorias é
fundamentalmente conservadora, pois “procura resolver os problemas que surgem em
29
diversas partes de uma integridade complexa com o propósito de suavizar o funcionamento do
conjunto” (COX, 1986, p. 127, tradução nossa).
A teoria está, neste caso, comprometida com a reprodução das formas de dominação
que possibilitam a manutenção da estrutura histórica vigente. Claro está que para isso ocorrer,
faz-se necessária a vontade da classe dirigente de transfigurar suas exigências de conservação
em regras universais, com a aquiescência dos dominados. “Pela subordinação da vida inteira
às exigências de sua conservação, a minoria que manda garante, além da própria segurança, a
permanência do todo” (ADORNO, 1996, p. 49).
Por sua parte, a teoria crítica busca compreender as estruturas fundadoras da ordem
vigente, questionando acerca do processo histórico pertinente às relações sociais e políticas
necessárias para tal ordem de fatores, não tomando-a como fato dado, mas sim construída
historicamente, é dizer, relativa a um tempo e espaço específicos. Como consequência, “a
teoria crítica permite uma opção normativa favorável a uma ordem social e política diferente
da ordem prevalecente, mas limita a margem de opções às ordens alternativas que são
transformações viáveis do mundo existente” (COX, 1986, p. 128, tradução nossa).
Por ende, favoreceram-se as perspectivas para a teoria crítica das Relações
Internacionais com a nova configuração dos assuntos internacionais.
A teoria crítica ganhou força como uma perspectiva adequada a um período de
transição para uma nova ordem mundial. Ela é, bem entendido, uma teoria
interessada na emancipação e tem um claro conteúdo normativo que a torna objeto
de constantes críticas das teorias positivistas. Ainda assim, sua análise do período de
transição é bastante aguçada e convincente porque consegue formular um modelo
que contempla uma das características mais marcantes e, ao mesmo tempo, mais
complicadas das relações internacionais de hoje: a diluição da fronteira entre os
espaços doméstico e internacional (MESSARI; NOGUEIRA, 2005, p. 147)
Observa-se, assim, que a teoria crítica é a mais apta para tratar dos períodos de
transição, justamente por buscar oferecer maior clareza sobre os mesmos, enquanto as teorias
de solução de problemas são definitivamente contestadas pela própria realidade, sendo
ineficazes na análise de uma reorientação do status quo, uma reordenação das forças sociais,
econômicas e políticas mundiais.
Com a dissipação da ordem bipolar, inevitavelmente emergiram inúmeras dúvidas
acerca da nova configuração do poder mundial. Neste cenário, a teoria neorrealista passou a
ser profundamente questionada enquanto teoria dominante no âmbito internacional, já que a
estrutura que analisava e julgava imutável derrocou juntamente com a União Soviética. Seu
30
maior equívoco refere-se à pretensão de universalidade histórica, pretender explicar os
eventos analisados sem atentar profundamente aos constrangimentos específicos da realidade
momentânea (COX, 1986). De fato, segundo Messari e Nogueira (2005), com o fim da Guerra
Fria as abordagens tradicionais das relações internacionais passaram a ser interpeladas por
abordagens alternativas, especialmente pela conformação de amplos desafios aos conceitos
centrais daquelas abordagens. Logo, segundo Fred Halliday:
O realismo convencional não pode explicar o fim do comunismo. A questão teórica
colocada pela Guerra Fria e o seu encerramento é precisamente àquela de olhar para
os mecanismos da competição internacional e para o tipo de interação que a teoria
interestatal ortodoxa esconde: isto inclui o conceito, como aqui definido, de
“sociedade internacional” (HALLIDAY, 1999, p. 110).
Por conseguinte, avançaremos o debate teórico para além do apresentado por Cox.
Tomaremos os principais debates teóricos travados na década de 1990 como base para este
estudo, utilizando-se da abordagem de Cox da teoria crítica como guia para empreendermos
tal exercício.
Lançar-se-á mão desta metodologia em conformidade com os apontamentos efetuados
por Cox quanto às características inerentes a uma teoria crítica internacional, essencialmente o
materialismo histórico e a dialética. “Ao nível da história real, a dialética é a possibilidade de
formas alternativas de desenvolvimento que surjam da confrontação de forças sociais opostas
em alguma situação histórica concreta” (COX, 1986, p. 137, tradução nossa). Quanto ao
materialismo histórico, Benjamin (1991, p. 162) o contrapõe aos métodos do historicismo,
apontando que enquanto “o historicismo pretende apresentar a imagem ‘eterna’ do passado; o
materialista histórico, uma experiência dele que se coloca como única”.
Portanto, surgem quatro pontos essenciais, nos quais a abordagem do materialismo
histórico é potencialmente mais esclarecedora em relação às teorias de solução de problemas:
1 – vê o conflito como provável causa de uma alteração estrutural, e não como consequência
de uma estrutura contínua; 2 – concebe as relações de poder na esfera internacional como
verticais, dado seu enfoque sobre o imperialismo, contrariando a dinâmica de rivalidade
horizontal marcante nas abordagens realistas; 3 – apoiando-se na concepção de Gramsci da
relação recíproca entre estrutura e superestrutura, possibilita-se a consideração do complexo
Estado/sociedade como ator participante da ordem mundial, a fim de explorar as formas
históricas particulares que este complexo toma, contrapondo-se assim à premissa realista de
separação da política doméstica da internacional; e 4 – dá enfoque aos processos de produção
como elementos fundamentais para a explicação das formas históricas particulares tomadas
31
pelos complexos Estado/sociedade, enquanto teorias de solução de problemas, fundadas sob o
realismo, os consideram elementos das políticas de poder nacionais, pautadas pelo interesse
nacional (COX, 1986, p. 138-139).
Atento e arguto leitor do pensamento de Gramsci, Cox percebe a necessidade de
debater a dicotomia universalismo-particularismo com base nos conceitos. Segundo Cox, por
serem abstrações adaptadas aos seus contextos de aplicação, os conceitos podem estar tão
abstraídos que diferentes usos de um mesmo conceito podem conter contradições ou
ambiguidades. Consequentemente, Cox apresenta a efetiva aplicabilidade dos conceitos, no
escopo da teoria crítica, em contraste com as teorias de solução de problemas.
Um conceito, no pensamento de Gramsci, é frouxo e elástico e alcança precisão
apenas quando entra em contato com uma situação particular que ajuda a explicar -
um contato que também desenvolve o significado do conceito. Esta é a força do
historicismo de Gramsci e é aí que reside o seu poder explicativo. O termo
"historicismo" é, no entanto, muitas vezes incompreendido e criticado por aqueles
que buscam uma forma mais abstrata, sistemática, universalista e não-histórica do
conhecimento (COX, 1993, p. 50, tradução nossa).
Sendo assim, a teoria crítica de Cox é o modelo metodológico mais coerente para as
proposições deste estudo, permeado pelo período de transição do pós-Guerra Fria,
configurando uma abordagem histórica das diversas forças em oposição ou aproximação, que
delinearam a ordem mundial tal qual fora conformada entre 1991 e 2001. Por conseguinte,
esta é uma forma de análise contraposta às míticas, baseadas no ahistoricismo3 e em
formulações universalistas4 (BARTHES, 1999).
Não obstante, quando do surgimento de novos elementos para a conformação de uma
ordem mundial distinta à bipolaridade, novas abordagens apareciam com formulações
universalistas para explicar o momento particular que se vivenciava. Neste âmbito, as teorias
de Huntington (1997) e Fukuyama (2007) foram os principais baluartes da mitificação da
ordem pós-Guerra Fria.
3 Nesse âmbito, Barthes (1999) caracteriza os intentos de apresentar uma “história universal”, considerando
movimentos específicos relativos a um momento histórico determinado como condicionados por uma linha
histórica evolutiva geral. Sendo assim, quando ocorrem os momentos de ruptura nessa linha evolutiva, estes são
apreciados como fenômenos inovadores em relação ao período imediatamente anterior, pertencendo ao processo
geral de evolução histórica. Por conseguinte, ao considerarmos o pós-Guerra Fria, de acordo com as abordagens
mitificadoras, este seria um período histórico sumamente distinto da Guerra Fria, as problemáticas que
permearam o período anterior haviam dissipado-se ou mitigado-se pela ação do desenvolvimento histórico
universal, sendo possível o retorno de antigas forças motrizes da história. 4 Ferramenta extensamente utilizada pelas abordagens mitificadoras, a formulação universalista procura oferecer
uma resposta genérica para todos os desafios relativos a um fenômeno (BARTHES, 1999). Efetuam-se
generalizações que acomodem as linhas explicativas gerais, não obstante, estando condicionadas a tempos e
espaços específicos. Neste momento, utilizam-se do ahistoricismo concatenado com a formulação universalista,
tomando um evento específico no tempo e espaço como fator explicativo para toda a estrutura histórica.
32
Ambas as análises centravam seus esforços explicativos em duas categorias de
elementos que delineariam as possibilidades dos atores internacionais no novo período, por
um lado as oposições civilizacionais, e por outro a inevitabilidade das aproximações da
economia global livre. Assim como o neorrealismo, sua força é também sua debilidade, a
simplificação e a universalização de fenômenos particulares.
De acordo com Kissinger (1999), o universalismo pertence à tradição americana, que
prefere a construção de máximas universais em contraposição à observação dos
constrangimentos históricos.
A rejeição da história exalta a imagem do homem universal, que vive de máximas
universais, independente do passado, da geografia, ou de outras circunstâncias
imutáveis. Como a tradição americana dá ênfase a verdades universais, em vez de
destaque a características nacionais, os planejadores políticos americanos preferem,
em geral, abordagens multilaterais, não as nacionais: agendas de desarmamento,
não-proliferação e direitos humanos, em vez de assuntos essencialmente nacionais,
geopolíticos ou estratégicos. [...] A recusa americana em ater-se à história, e a
insistência na possibilidade perpétua de renovação, conferem grande dignidade,
beleza mesmo, ao modo de vida americano. O temor nacional, de que os obcecados
com história fazem profecias que se auto-realizam, é de grande sabedoria popular.
Contudo, do ditado de Santayana, de que aqueles que ignoram a história estão
condenados a repeti-la, podem-se apresentar muito mais exemplos (KISSINGER,
1999, p. 913).
Claro está que, enquanto estadunidense, Kissinger (1999) observa no ahistoricismo
uma “possibilidade perpétua de renovação”, todavia, ao analisarmos mais atentamente tal
argumento, encontramos seu elemento mitificador. Ao desconsiderar-se o processo de
desenvolvimento histórico simplesmente nega-se o passado, não há experiência histórica a ser
superada. É dizer que a cada novo momento, surge consigo um novo homem, desvinculado
dos momentos anteriores, uma completa inovação coletiva. Contudo, a passagem referida de
Kissinger (1999) demonstra-nos que as abordagens de Huntington (1997) e, especialmente, de
Fukuyama (2007) inserem-se no escopo do projeto hegemônico estadunidense de forma
decisiva, representando elementos do próprio ideário coletivo norte-americano.
Por sua parte, na abordagem coxiana de Relações Internacionais, uma teoria que visa
explicar uma estrutura histórica deve levar em conta três categorias de forças potenciais, que
interagem no interior da estrutura: capacidades materiais, ideias e instituições. “Nenhum
determinismo de um só caminho deve ser assumido entre essas três categorias; as relações
podem ser assumidas de maneira recíproca” (COX, 1986, p. 142, tradução nossa).
As capacidades materiais referem-se aos potenciais tanto produtivos quanto
destrutivos, englobando capacidades tecnológicas e de organização, capacidades acumuladas
33
como os recursos naturais que podem ser transformados com a utilização de sua tecnologia
disponível, ademais de estoques de equipamentos como as indústrias e os armamentos, e o
agregado de riquezas disponíveis (COX, 1986).
As ideias dividem-se em duas classes. A primeira consiste em pensamentos
intersubjetivos, as noções compartilhadas da natureza das relações sociais tendentes a
perpetuação de hábitos e expectativas de conduta. A segunda diz respeito às imagens coletivas
da ordem social que os diferentes grupos têm. São perspectivas diferentes, tanto da natureza e
legitimidade das relações de poder, quanto das noções de justiça e bem público, dentre outras
(COX, 1986). “A colisão de imagens coletivas rivais proporciona evidências sobre a
possibilidade de formas alternativas de desenvolvimento e sugere questões tais como a
possível base material e institucional para que emirja uma estrutura alternativa” (COX, 1986,
p. 144, tradução nossa).
E a institucionalização é vista como meio para estabilizar e perpetuar uma ordem
particular. Consequentemente, as instituições refletem as relações de poder predominantes em
seu ponto de origem e tendendo (ao menos no início) a apoiar imagens coletivas que
consistem com estas relações de poder. As instituições podem, eventualmente, assumir uma
vida própria, podem se converter em campo de tendências opostas ou então as instituições
rivais podem refletir tendências diferentes. “As instituições são amálgamas particulares de
ideias e poder material que, por sua vez, influenciam o desenvolvimento de ideias e
capacidades materiais” (COX, 1986, p. 144, tradução nossa).
Cabe, então, analisarmos como essas três categorias coxianas se apresentaram durante
o período do pós-Guerra Fria, considerando também as duas principais teorias surgidas do
principal centro de poder, apreciando assim um quadro geral das possibilidades analíticas para
a compreensão desse momento histórico.
O historiador Eric Hobsbawm aponta precisamente uma grande motivação para o
caráter de incerteza quanto ao período estudado, especificamente nos principais centros de
poder da antiga estrutura internacional, pois:
[...] pela primeira vez em dois séculos, faltava inteiramente ao mundo da década de
1990 qualquer sistema ou estrutura internacional. O fato mesmo de terem surgido,
depois de 1989, dezenas de Estados territoriais sem qualquer mecanismo
independente para determinar suas fronteiras – sem querer terceiras partes aceitas
como suficientemente imparciais para servir de mediadoras gerais – já fala por si.
Onde estava o consórcio de grandes potências que antes estabelecia, ou pelo menos
ratificava, fronteiras contestadas? [...] (HOBSBAWM, 2005, p. 537-538).
34
Para Huntington (1997), as potências estavam preocupadas em conformar ou
fortalecer alianças baseadas em fatores civilizacionais, a fim de precaverem-se de um
provável futuro conflituoso pela dominação global. Esta visão pessimista das novas relações
internacionais utilizava-se de fenômenos crescentes de violência no cenário nacional e
internacional, que já haviam sido considerados e analisados por outras fontes analíticas e que,
não obstante, permaneciam marginalizadas pelos centros de poder. Segundo tal perspectiva:
Os Estados-nações continuam sendo os principais atores no relacionamento mundial.
Seu comportamento é moldado, como no passado, pela busca de poder e riqueza,
mas é moldado também por preferências culturais, aspectos comuns e diferenças. Os
agrupamentos mais importantes de Estados não são mais os três blocos da Guerra
Fria, mas sim as sete ou oito civilizações principais do mundo (HUNTINGTON,
1997, p. 20).
Assim, percebe-se uma esquizofrenia desta classe de teoria, essencialmente
mitificadora (BARTHES, 1999) e de solução de problemas (COX, 1986), preocupada com a
conservação do poder das antigas potências, essencialmente dos Estados Unidos da América e
seus aliados da Europa Ocidental, a chamada civilização ocidental. As ameaças a esta ordem
de fatores, o terrorismo, o fundamentalismo religioso, o nacionalismo e regionalismo, o
autoritarismo, são postos como as novas ameaças à civilização e à liberdade.
Esta segunda categoria ameaçada é amplamente abordada por Fukuyama (2007),
tratando de posicionar suas ameaças como desafios particulares e momentâneos, referentes ao
momento de transição que, todavia, não impediriam o avanço rumo à liberalização e
integração irrestrita à economia global liberal. Apontam-se os exemplos de parcela notável
dos países da Ásia Oriental como respaldo ao argumento da liberalização econômica como
força motriz para o êxito econômico.
O seu desenvolvimento indica que países pobres, sem outros recursos além de suas
próprias populações laboriosas, podem aproveitar a abertura do sistema econômico
internacional e criar quantidades inimagináveis de nova riqueza, eliminando
rapidamente o fosso que os separa dos poderes capitalistas mais bem estabelecidos
da Europa e da América do Norte (FUKUYAMA, 2007, p. 61).
Hobsbawm (2007) não compactua desse otimismo quanto ao processo de globalização
econômica, no tocante às possibilidades de gestação de uma ordem pacífica nas relações
internacionais. Segundo este:
A globalização, na forma atualmente dominante do capitalismo de mercado livre,
trouxe também um aumento espetacular e potencialmente explosivo das
desigualdades sociais e econômicas, tanto no interior dos países quanto
internacionalmente (HOBSBAWM, 2007, p. 56).
35
A “nova geopolítica do mundo” apresentava uma face sumamente hierarquizada,
contudo, instável e limitando de forma decisiva a “eficácia dos estados nacionais” que
encontram-se nas camadas intermediárias e inferiores da divisão hierárquica da ordem
mundial. “Neste novo cenário, as estratégias econômica e militar do hegemon apontam numa
mesma direção: a da redução crescente da autonomia dos estados mais frágeis, que ficam
incapacitados para estabelecer e sustentar seus próprios objetivos nacionais” [...] (FIORI,
2000, p. 214).
Estes fenômenos são consequências de distúrbios sócio-econômicos nos países pobres,
que não eram solucionados simplesmente pela expansão do capital internacional,
principalmente por meio dos investimentos diretos. Para Cox (1986), a rápida industrialização
do Terceiro Mundo foi contraposta pela habilidade dos governos locais em manter o controle
sobre suas forças de trabalho industriais, sendo que a maioria das populações desses países
não observava melhoras e, em muitos casos, provavelmente se deterioravam suas condições
de vida.
As novas condições de trabalho industriais estavam atrasadas em relação aos
incrementos da força de trabalho, concomitantemente com as transformações na agricultura,
com a mecanização intensiva, provocando o amplo deslocamento da população rural. Por
conseguinte, não importa como se dê a distribuição da produção internacional, uma
importante parcela da população mundial nas regiões mais pobres permanecerá marginalizada
em relação aos avanços da economia mundial, não contando com empregos ou renda, muito
menos o poder de compra derivado de tais condições (COX, 1986).
Concatenando com os apontamentos de Hobsbawm, Cox também observa a
potencialidade conflituosa residente nas disparidades inerentes ao processo de globalização
econômica. Segundo este, “um grande problema para o capital internacional em suas
aspirações de hegemonia é como neutralizar o efeito dessa marginalização de talvez um terço
da população mundial, para prevenir que essa pobreza seja o combustível de uma rebelião”
(COX, 1986, p. 177, tradução nossa).
Entretanto, a análise do “fim da história” de Fukuyama, por seu enfoque universalista
e ahistórico, não considera todos os componentes de uma estrutura histórica, fixando-se
apenas nos fatores pertinentes aos seus intentos, ficando em consonância com a descrição de
Barthes (1999) acerca do mito nas ciências sociais. Conseguintemente, Fukuyama (2007)
afirma que uma ordem livre e democrática seria o novo arranjo das relações internacionais.
36
Do ponto de vista das abordagens legitimadoras da nova realidade, o Império
representa o fim da história; nesse sentido, os autores reconhecem as bases concretas
que alimentam perspectivas como a de Fukuyama, para quem desapareceram
definitivamente as alternativas ao capitalismo, eliminando as bases de conflito
originárias de forças externas ao sistema (AYERBE, 2005, p. 332).
Isto ocorreria pela acomodação das tensões relativas aos períodos anteriores, com sua
absorção pelo ideário liberalizante. Portanto, as duas dimensões pessoais fundamentais da
conflituosidade anterior, a megalothymia, que podemos sintetizar como o desejo de ser
reconhecido como superior aos demais, a glória, o “amor-próprio”, e a isothymia, sintetizada
como o desejo de ser reconhecido como igual aos demais, a justiça (FUKUYAMA, 2007, p.
186), são mitigadas e incorporadas pela democracia liberal, forma de governo otimizada para
o novo período.
No entanto, é necessário observar que Fukuyama (2007) aponta para a necessidade de
bases culturais e sociais favoráveis a essa estruturação política. Notavelmente, o modelo para
tal processo é a sociedade americana, tida como exemplo suficientemente bem sucedido do
apaziguamento das tensões causadas pela megalothymia e pela isothymia, que são
incorporadas à sociedade americana por meio do jurisdicismo, que visa manter a liberdade
individual na busca por seus anseios, todavia, restringindo seu espaço de ação até a liberdade
individual dos demais.
É então que a teoria se transforma em mito e em solução de problemas, ao conceber o
homem como uma entidade separada do processo histórico, um homem geral e universal, não
relacionado com os inumeráveis contextos particulares, o que converte o postulado
democrático liberal em uma cruzada aos redutos conservadores dos elementos potencialmente
perigosos ao seu projeto.
Estamos atualmente engajados no que pretende ser um reordenamento planejado do
mundo, protagonizado pelos países poderosos. As guerras do Iraque e do
Afeganistão são apenas uma parte de um esforço supostamente universal de criação
de uma nova ordem mundial por meio da “disseminação da democracia”. Essa ideia
não é apenas quixotesca: é perigosa. A retórica que envolve essa cruzada implica
que tal sistema é aplicável de forma padronizada (ocidental), que pode ter êxito em
todos os lugares, que pode remediar os dilemas transnacionais do presente e que
pode trazer a paz, em vez de semear a desordem. Não é verdade (HOBSBAWM,
2007, p. 116).
Huntington (1997) reconhece as limitações que tais propósitos contêm, entretanto,
argumenta que as contraposições ao projeto ocidental se dariam com base no contexto
avaliado pela teoria realista, ou seja, coalizões não-ocidentais a fim de contrapor a expansão
37
ocidental, de forma a manter um novo equilíbrio de poder, constituído por pressões
civilizacionais.
Em grande medida, ambas as concepções são marcadas pela imprecisão gerada pelo
turning point que representou o fim da Guerra Fria. Ambas comprometem-se com a
manutenção da hegemonia ocidental, basicamente dos Estados Unidos, no novo Sistema
Internacional. No entanto, não encontram subsídios suficientes para apresentar uma visão
mais ampla e factível de comprovar-se como linha diretriz das novas Relações Internacionais.
1.2 A lógica hegemônica das relações internacionais no pós-Guerra Fria: perspectivas e
desafios à estabilização e manutenção da ordem mundial
É neste contexto que retornamos a Robert Cox e suas três categorias analíticas que
permitem compreender a estrutura vigente. Primeiramente, deve-se observar que há uma
estreita relação entre a institucionalização coxiana e o conceito de Gramsci de hegemonia.
Segundo Cox (1986), as instituições são provedoras de modos distintos para o enfrentamento
dos conflitos e, consequentemente, a minimização do uso da força. Deste modo, quando uma
potência concebe sua missão como hegemônica, e não simplesmente dominante ou ditatorial,
“se deseja fazer concessões que possam assegurar a aquiescência do débil com relação a sua
liderança e se pode expressar sua liderança em termos de interesses universais e gerais, mais
que como mero apoio e seus próprios interesses particulares” (COX, 1986, p. 145, tradução
nossa).
Em termos gerais, a hegemonia nas Relações Internacionais é descrita por Cox da
seguinte maneira:
A hegemonia mundial é descritível como uma estrutura social, uma estrutura
econômica, e uma estrutura política, e não pode ser simplesmente uma dessas coisas,
mas tem de ser todas as três. A hegemonia mundial, além disso, é expressa em
normas universais, instituições e mecanismos que estabelecem regras gerais de
conduta para os Estados e para as forças da sociedade civil que atuam além das
fronteiras nacionais - regras que apoiam o modo de produção dominante (COX,
1993, p. 62, tradução nossa).
38
Neste âmbito, ao avaliarmos os governos de George Bush (1989-1993) e Bill Clinton
(1993-2001), compreendemos que ambos atuaram internacionalmente de modo a manter e
intensificar a hegemonia estadunidense. Ao tomarmos o conceito de hegemonia de Gramsci,
adaptado por Cox para a análise internacional, percebemos que os Estados Unidos na década
de 1990 utilizaram-se dos dois tipos de recursos de poder necessários a uma potência
hegemônica, tanto o consenso quanto a coerção. O pensamento coxiano concebe tais recursos
enquanto imprescindíveis a uma ordem hegemônica:
Na medida em que o aspecto consensual de poder está na vanguarda, a hegemonia
prevalece. A coerção é sempre latente, mas só é aplicada em casos marginais,
desviantes. A hegemonia é suficiente para assegurar a conformidade do
comportamento na maioria das pessoas, na maioria das vezes (COX, 1993, p. 52,
tradução nossa).
Ações militares como na Guerra do Golfo (1990-1991), na Guerra da Bósnia com os
ataques aéreos de 1994 e a resolução diplomática com o Acordo de Dayton (1995), na Guerra
do Kosovo com os ataques aéreos de 1999 que levaram da mesma forma a retomada das
conversações diplomáticas, são todos exemplos de momentos em que após as tentativas de
mediar conflitos com considerável potencial de expansão para as regiões mais próximas,
utilizou-se de meios de coerção com intervenção militar nas áreas de conflito e posterior
retorno do diálogo diplomático (HOBSBAWM, 2007).
Em alguns momentos, premidos pelas circunstâncias, os Estados Unidos
efetivamente intervieram, como no caso da Guerra do Golfo, quando encabeçaram
uma coligação internacional que expulsou Saddam Houssein do Kuwait. Esta
mesma ação pôde ser verificada na Guerra da Bósnia, que se arrastava há muitos
anos e que, só depois de uma intervenção mais energética norte-americana, se
obteve uma trégua temporária, mas garantida pela presença de tropas americanas na
área. Da mesma maneira, os Estados Unidos também intervieram em crises de outras
naturezas – econômicas – como no caso do México, no final de 1994 e começo de
1995, e também por meio do Fundo Monetário Internacional, para socorrer as
economias asiáticas submetidas a fortes pressões especulativas e que levaram à sua
desestabilização durante o ano de 1997 (PEIXOTO, 2002, p. 45).
Kissinger (1999) observa na atuação internacional dos Estados Unidos ao final da
Guerra Fria, pela terceira vez no século XX, a intenção de construção de uma ordem mundial
fundada na aplicação universal de valores internos. Neste sentido, atesta que:
Pela terceira vez, neste século, os EUA proclamaram, assim, sua intenção de
construir uma nova ordem mundial, através da aplicação dos seus valores internos
ao mundo inteiro. E, pela terceira vez, os EUA pareciam destacar-se de forma
absoluta, no palco internacional. Em 1918, Wilson dominou a Conferência de Paz de
Paris, na qual os aliados da América estavam por demais dependentes dela, para
poderem insistir em expressar seus receios. Próximo ao fim da Segunda Guerra
Mundial, Franklin Delano Roosevelt e Truman pareciam em posição de refazer o
mundo ao modelo americano. [...] O fim da Guerra Fria foi uma tentação ainda
39
maior de remodelar o ambiente internacional à imagem dos Estados Unidos. Wilson
foi contido pelo isolacionismo em casa, e Truman colidiu no expansionismo
stalinista. No mundo pós-Guerra Fria, os Estados Unidos são a única superpotência
restante, com capacidade de intervir em qualquer ponto do globo. O poder, contudo,
ficou mais difuso e diminuíram as questões onde a força militar é relevante
(KISSINGER, 1999, p. 882).
Discorrendo acerca das análises de Cox, Messari e Nogueira (2005, p. 147)
formularam um quadro geral das relações internacionais no pós-Guerra Fria, segundo a teoria
crítica. Essa nova ordem seria composta por: globalização desigual, baseada em corporações
globais, em organizações internacionais e na crescente atuação de movimentos sociais; uma
ordem mundial caracterizada pela unipolaridade, pela hegemonia e pelo aprofundamento dos
processos de regionalização, tanto econômica quanto política; e mudanças nas formas estatais,
com o advento dos Estados falidos, semiprotetorados e territórios sem governo.
No que tange a economia internacional, a rápida expansão das políticas de ajustes
neoliberais para as regiões do Segundo e Terceiro Mundo entre o final da década de 1980 e a
de 1990, em consonância com as necessidades apresentadas pela globalização liberal a estes
países, concatena com os aportes coxianos. Primeiramente, há de se observar que seus
resultados ficaram aquém do esperado. Abordando o caso das ex-repúblicas soviéticas,
Hobsbawm (2005, p. 542) aponta que:
(...) quando se fizeram tentativas para instituir-se de uma hora para outra,
essas economias de laissez-faire em substituição às antigas economias
soviético-socialistas, através de “terapias de choque” recomendadas por
assessores ocidentais, os resultados foram economicamente apavorantes, e
política e socialmente desastrosos. As teorias em que se baseava a teologia
neoliberal, embora elegantes, pouca relação tinham com a realidade.
O grande problema, segundo Hobsbawm (2005), residia na perpetuação e acirramento
das desigualdades sócio-econômicas. Os principais exemplos bem sucedidos das políticas de
industrialização globalizante – Hong Kong, Cingapura, Taiwan e Coreia do Sul – representam
menos de 2% da população do Terceiro Mundo. Com a liberdade crescente para os
movimentos de capitais, estes fluíam naturalmente para as regiões mais lucrativas, no caso do
capital produtivo, para os países pobres onde a mão de obra era mais barata.
Deste fenômeno surgiam duas complicações: “a transferência de empregos de regiões
de altos salários para outras de baixos salários e, com base em princípios de livre mercado, a
queda de salários nas regiões de altos salários, sob a pressão da competição salarial global”
(HOBSBAWM, 2005, p. 550). O que o otimismo liberal não conseguiu visualizar
adequadamente foi o ator beneficiado com essas novas relações econômicas.
40
À medida que as economias nacionais se integraram mais na economia mundial,
foram as maiores e mais avançadas empresas as que se adaptaram melhor às novas
oportunidades. Um novo eixo de influência vinculou as redes de política
internacional com as agências centrais chave dos governos e com os grandes
negócios. Esta nova estrutura corporativa informal eclipsou o mais antigo
corporativismo nacional formalizado e refletiu na dominação do setor orientado para
a economia mundial sobre o setor orientado mais nacionalmente na economia de um
país (COX, 1986, p. 168, tradução nossa).
Tais ajustes estruturais foram possíveis apenas com a anuência das elites locais, em
um claro processo de “revolução passiva”. Este conceito gramsciano, empregado por Cox,
refere-se ao cenário em que sociedades importam – ou lhes são impostos – aspectos de um
ordenamento criado no exterior, sem que a sua ordem antiga tenha sido deslocada. Desse
modo, essas sociedades apanham-se numa dialética de revolução-restauração, que tende a
bloquear-se de maneira que nem as novas forças, tampouco a tradição, poderiam vencer.
Nestas sociedades, a nova burguesia industrial não conseguiu alcançar a hegemonia.
O impasse resultante com as classes sociais dominantes tradicionais criou as
condições que Gramsci chamou de "revolução passiva", a introdução de alterações
que não envolvam qualquer excitação das forças populares (COX, 1993, p. 54,
tradução nossa).
Para Cox (1986), esse rearranjo da economia mundial acarretou reformulações na
hierarquia das classes sociais. No topo da estrutura global de classes, estaria a classe
administradora transnacional, com um conjunto próprio de ideologia, estratégia e instituições
visando à ação coletiva. Seus principais expoentes organizativos seriam a Comissão
Trilateral5, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico6, e por meio destas, empreende seu esforço de
internacionalização do Estado, utilizando-se do rol de políticas neoliberais para adentrar nos
países do Terceiro Mundo, tendo estas políticas como fatores imprescindíveis para a
concessão de empréstimos por meio das instituições supracitadas.
Depois aparece a classe dos capitalistas nacionais, distintos da classe transnacional.
Como reflexo da expansão do capital e da produção internacional, sua postura foca-se no
protecionismo e no desejo de utilizar-se do Estado como agente central da economia nacional
independente, e quando isto não é possível, utiliza-se da “oportunidade de preencher nichos
5 Fórum de discussão privado, constituído por nomes proeminentes do empreendedorismo mundial, visando
debater perspectivas econômicas e políticas para o capitalismo mundial, sendo formado por membros da
América do Norte, Europa e Ásia/Oceania. 6 Fundada em 30 de setembro de 1961, é formada atualmente por 33 países membros, comprometidos com os
princípios da democracia representativa, da economia de livre mercado, buscando conformar uma plataforma de
políticas econômicas compartilhadas que permitam solucionar problemas comuns e coordenar políticas públicas
domésticas e internacionais.
41
desejados pela produção internacional em uma relação simbiótica subordinada com os
anteriores” (COX, 1986, p. 173, tradução nossa).
Aparecem, então, os trabalhadores industriais, que passaram por um duplo processo de
fragmentação. O primeiro diz respeito à separação entre o trabalho estabelecido, onde os
trabalhadores conseguiram relativa segurança e estabilidade em seus empregos, tendo também
algumas perspectivas de evolução nas suas carreiras, com certo grau de especialização e
organização sindical, e o trabalho não estabelecido, onde os trabalhadores não contam com a
mesma segurança em seus empregos, sem perspectivas de evolução na carreira e
relativamente menos especializados, enfrentando grandes obstáculos para a conformação
efetiva de sindicatos.
O segundo processo de fragmentação dos trabalhadores industriais refere-se à
separação entre os envolvidos na produção com capital nacional e com o capital internacional.
Os trabalhadores do setor de capital nacional estão potencialmente mais suscetíveis à
influência do protecionismo e do capital nacional, enquanto os trabalhadores do setor de
capital internacional são “aliados potenciais do capital internacional” (COX, 1986, p. 174,
tradução nossa). Ocorre, assim, a “criação de um corporativismo empresarial, no qual ambas
as partes percebem seus interesses como resultado da expansão contínua da produção
internacional” (COX, 1986, p. 175, tradução nossa).
É necessário observar ainda a crescente relevância adquirida pelo trabalho não
estabelecido, na lógica da globalização do capital, tornando-se importante fonte de mão de
obra para o investimento externo direto nos países pobres.
O trabalho não estabelecido adquiriu uma importância particular na expansão da
produção internacional. Os sistemas de produção são desenhados de tal modo que se
possa utilizar uma recente proporção de trabalhadores semi-especializados (e, em
consequência, frequentemente não estabelecidos) em relação com os especializados
(e estabelecidos) (COX, 1986, p. 175, tradução nossa).
Em suma, a internacionalização da economia liberal fomentou o aprofundamento do
processo de hierarquização do poder em escala mundial. Ademais, com a expansão do aspecto
globalizado da produção mundial, foram as grandes corporações trans e multinacionais que
mais se beneficiaram desse processo.
Cabe agora adentrarmos no debate da institucionalização da hegemonia estadunidense
no pós-Guerra Fria, a fim de apreciarmos os movimentos recíprocos da estrutura histórica
coxiana. Destarte, faz-se necessário definir precisamente o conceito de hegemonia na
42
abordagem coxiana, essencialmente destoante dos enfoques das teorias tradicionais, nos
seguintes aspectos:
Em uma ordem hegemônica, o poder dominante faz certas concessões ou
compromissos para assegurar-se a aquiescência de poderes menores até um nível em
que possa ser expressa em termos de interesse geral. É importante, ao avaliar uma
ordem hegemônica, conhecer: a. que funciona basicamente por consentimento, de
acordo com princípios universalistas e b. que permanece dentro de certa estrutura de
poder e serve à manutenção dessa estrutura. O elemento consensual distingue as
ordens mundiais hegemônicas das não hegemônicas. Também tende a mistificar as
relações de poder nas quais, em última instância a ordem permanece (COX, 1986, p.
193, tradução nossa).
Depreende-se deste pequeno fragmento dois fatores que endossam a compreensão do
fenômeno de mitificação das teorias de Huntington (1997) e Fukuyama (2007) da ordem
mundial do período estudado. Os princípios universalistas do projeto hegemônico
estadunidense não representam um movimento geral rumo à pacificação, por meio da
globalização econômica e da difusão da democracia liberal e dos direitos humanos.
Representam o consentimento de parcela considerável das nações menos poderosas a essa
configuração da estrutura histórica, e a modelação por meio da potência hegemônica,
considerando os limites impostos pelas particularidades desse novo cenário.
Consequentemente, a aquiescência dos submetidos à ordem hegemônica não
representa sua incorporação irrestrita, e sim a conclusão de que as alternativas existentes são
demasiado custosas em relação à submissão. Assim, o temor de Huntington (1997) com
respeito a um levante não-ocidental contra a hegemonia da civilização ocidental, fomentado
pela agregação de potencial material, não encontra justificativa plausível, num curto ou médio
prazo.
De fato, o que Hobsbawm (2007) apresenta, numa perspectiva histórica, é a
inexistência de uma “autoridade global efetiva” que possa dirimir os conflitos armados, não
havendo hegemonia política ou militar que pudesse se estender permanentemente a todo o
planeta. “O mundo é demasiado grande, complexo e plural. Não existe nenhuma
probabilidade de que os Estados Unidos, ou qualquer outra potência singular, possam
estabelecer um controle duradouro, mesmo que o desejassem” (HOBSBAWM, 2007, p. 29).
Todavia, isto não acarreta uma percepção dos não-ocidentais de que possam contrapor
esta hegemonia, por meio da conflituosidade. Por um lado, pelo fato de os Estados Unidos
possuírem incontestavelmente o maior agregado de potencial material, seja com fatores
econômicos ou com fatores militares, no pós-Guerra Fria. E, por outro, por serem a primeira
43
potência hegemônica a possuir interesses efetivamente globais, estando engajados nos
assuntos de todas as regiões do globo, seja por fatores econômicos, políticos, estratégicos
(HOBSBAWM, 2007).
Para manterem sua hegemonia no Sistema Internacional pós-Guerra Fria, os Estados
Unidos valeram-se de um amplo conjunto de instituições internacionais adaptadas às
necessidades que emergiam como complicadoras ao novo cenário internacional. No
pensamento coxiano, as organizações internacionais são um mecanismo que possibilita que as
normas universais de uma hegemonia mundial se expressem. São o processo que desenvolve
as instituições de hegemonia e sua ideologia.
Entre as características da organização internacional que expressam o seu papel
hegemônico estão as seguintes: (1) elas incorporam as regras que facilitam a
expansão das ordens mundiais hegemônicas; (2) são elas mesmas o produto da
ordem mundial hegemônica; (3) ideologicamente legitimam as normas da ordem
mundial; (4) cooptar as elites dos países periféricos; e (5) absorvem ideias contra-
hegemônicas (COX, 1993, p. 62, tradução nossa).
No âmbito econômico, a doutrina do livre mercado e da globalização benéfica foram
as ideias universalistas que permearam a ação internacional da potência hegemônica. Aos
países do Terceiro Mundo, de modo mais intenso na América Latina e no antigo bloco
soviético, as políticas neoliberais – advindas do Consenso de Washington7 – tornaram-se
receituário fundamental para as economias que quisessem equilibrar suas finanças, por meio
de empréstimos aos órgãos financeiros internacionais e, consequentemente, serem aceitas no
escopo da globalização liberal. Cria-se, assim, um mecanismo profundamente eficaz para a
dominação econômica destas regiões.
Cox observa como inegável a dominação exercida pelas economias das nações
poderosas sobre as nações subordinadas. O fator agravante neste fenômeno é a discrepância
entre as economias subordinadas, relativas ao seu contexto histórico-espacial, que determinam
distintas reações ao ímpeto dominador. “A vida econômica das nações subordinadas é
penetrada por, e entrelaçada com, a de nações poderosas. Isto é ainda mais complicado pela
7 Em novembro de 1989 é formulado o chamado Consenso de Washington, no qual relevantes instituições com
sede nesta cidade (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Departamento do Tesouro dos Estados
Unidos), elaboram um planejamento de ação para as economias em desenvolvimento. Essas diretrizes visavam o
apaziguamento da onda de crises que ocorria nestes países, baseados nos pressupostos de uma nova forma de
política econômica (já surgida após a crise do petróleo de 1973-1974), o neoliberalismo. Dentre as principais
medidas indicadas destacam-se: a disciplina fiscal; a redução dos gastos públicos; a reforma tributária; os juros
de mercado; o câmbio livre de mercado; a abertura comercial; a intensificação dos investimentos estrangeiros
diretos, com eliminação de restrições; a privatização das empresas estatais; a flexibilização das leis trabalhistas;
e a regulamentação do direito à propriedade intelectual.
44
existência dos países de estruturalmente diversas regiões, que possuem padrões distintos de
relação às forças externas” (COX, 1993, p. 59, tradução nossa). É neste contexto que
fortificam-se os argumentos universalistas, tornados essenciais para a ampla dominação
econômica dos países subordinados.
Apresenta-se a lógica da liberalização comercial como imprescindível para o êxito
dessas economias. Entretanto, para que a liberalização não seja prejudicada pelos
desequilíbrios dos períodos anteriores, essas economias devem se estabilizar, recorrendo aos
fundos internacionais para tanto. Estes recursos, provenientes das instituições comandadas
pelas potências econômicas como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, são
disponibilizados apenas após a adoção de políticas de ajustes de coorte neoliberal. Lograda a
estabilização, o país recebe crescente fluxo de capitais das grandes corporações
transnacionais, e como sua base de políticas sociais fora profundamente alterada pelos ajustes
anteriores, emergem as problemáticas do subemprego, das más condições de trabalho e do
desemprego.
Percebe-se que, no quadro geral das relações econômicas internacionais inseridas
nesse contexto, o fenômeno da dispersão do poder implica na consubstanciação de novos
desafios à potência hegemônica, que serão visualizados com maior clareza quando de sua
contestação efetiva. Apresentando um quadro analítico geral, Ayerbe concebe a transição da
hegemonia dos Estados Unidos para um período de busca de afirmação unipolar, inaugurado
com as respostas aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, distinguindo a crise
hegemônica estadunidense com as transições hegemônicas anteriores, expondo quatro
situações específicas que distinguem este momento.
1) A potência em declínio não tem concorrentes no campo militar, mas tornou-se
dependente, na administração do seu poder, de recursos financeiros de outros
centros de acumulação de capital, marcadamente Europa ocidental e Japão. 2)
Diferentemente do processo de globalização das últimas décadas do século XIX, em
que os Estados-nação eram protagonistas fundamentais da internacionalização do
capital, há uma diminuição do seu poder em detrimento do setor privado
transnacional. 3) Em comparação ao aumento dos conflitos sociais que acompanhou
os períodos de transição holandesa e britânica, especialmente os vinculados à luta
antiescravista e ao movimento operário, os autores identificam uma perda
conjuntural de poder dos movimentos sociais. No entanto, os efeitos estruturais
desagregadores da atual configuração global criam novas fontes de conflito para as
quais não existe capacidade adequada de resposta. 4) Nas transições hegemônicas
anteriores, a emergência de uma nova potência precipitou o desmoronamento do
antigo poder: Inglaterra em relação à Holanda, Estados Unidos em relação à
Inglaterra. Embora os autores coloquem em evidência a crescente expansão
econômica do Leste da Ásia, isto não configura uma ameaça ao poderio militar
estadunidense. Esta situação impõe uma marca peculiar à atual mudança no sistema
45
mundial, cujo desfecho poderá ser mais ou menos problemático dependendo da
atitude dos Estados Unidos (AYERBE, 2005, p. 333-334).
Do ponto de vista político, a ordem do pós-Guerra Fria pautou-se por uma agenda
expansiva de questões fundamentais no debate internacional. Destarte, ressalta-se a
inexistência de contraposição à reconfiguração do poder mundial, centrado nos Estados
Unidos, não havendo oposição real que revivesse os antigos equilíbrios de poder. Não que os
Estados Unidos submetessem as demais potências ao seu poderio absoluto, e sim que estas
potências não se engajavam na contraposição à hegemonia, cabendo aos Estados Unidos
edificarem uma nova ordem, e agirem internacionalmente a fim de mantê-la quando
ameaçada.
A longa década de 1990 [...] viu, enfim, uma frente democrática e liberal liderada
pelos Estados Unidos batalhando no Iraque, na Sérvia ou no Afeganistão, onde as
outras potências preferiram acomodar-se aos Estados Unidos, no lugar de buscar
alguma forma de equilíbrio entre si, influenciando neste processo, pelo qual
provavelmente não sentiram ameaçados seus interesses vitais (GHOTME, 2011, p.
50, tradução nossa)
Recordemos Cox e Hobsbawm quando estes autores elencam os principais desafios ao
Estado nas relações internacionais pós-Guerra Fria. Todos dizem respeito a ameaças ao
conceito clássico de soberania, norteador fundamental das relações internacionais desde a Paz
de Vestfália (1648), e ditaram o relacionamento entre os Estados Unidos e as potências
emergentes do novo cenário internacional, principalmente quando a superpotência agiu em
países subordinados em prol de ajustes pertinentes aos ideários dos direitos humanos.
O governo chinês desafiou estas regras do jogo mundial, no que concerne à
concepção da soberania como algo contingente, crença que no Ocidente se reforçou
desde a década de 1990 pelas múltiplas intervenções internacionais justificadas em
nome da defesa dos direitos humanos e a ajuda humanitária no Sudão, Somália,
Haiti ou Bósnia [...], ou na busca de terroristas, ditadores sanguinários ou Estados
que produzem e comercializam armas de destruição em massa; em todos estes casos,
a China e outras potências emergentes, como o Brasil, a Índia, a África do Sul, e
agora a Turquia, opuseram-se às medidas do Conselho de Segurança da ONU
referentes às violações dos direitos humanos na Birmânia, Sri Lanka, Sudão ou
Zimbábue [...] (GHOTME, 2011, p. 52, tradução nossa).
O fator complicador deste cenário é o incremento do número de ameaças e
vulnerabilidades enfrentadas pelas potências para afirmarem seu poder e influência. Isto se dá
pelo transbordamento das capacidades materiais (principalmente das com poder destrutivo)
para muitos atores, não apenas para organizações globais, corporações transnacionais,
terroristas ou Organizações Não Governamentais, mas também para outros Estados que
incrementaram suas capacidades em termos absolutos (GHOTME, 2011). “O sistema mantém
um caráter hierárquico, mas apresenta uma maior dispersão do poder. A hegemonia vai se
46
desestruturando e com ela produzem-se mudanças no poder relativo dos Estados principais”
(PIRES; CASTRO, 1991, p. 86).
O fim da Guerra Fria criou aquilo que alguns observadores chamaram de mundo
“unipolar” ou de “uma superpotência”. Mas os Estados Unidos não estão, na
verdade, em posição melhor para ditar a agenda global, unilateralmente, do que
estavam no início da Guerra Fria. Os EUA preponderam mais que há dez anos,
porém o poder tornou-se também mais difuso. Assim, a capacidade dos EUA de
empregá-lo, para moldar o resto do mundo, realmente decresceu (KISSINGER,
1999, p. 886).
Se, por um lado, a China tornava-se crescentemente foco das atenções dos Estados
Unidos para manterem seu poderio hegemônico, tendo em vista seu crescente protagonismo
no jogo político mundial, por outro, mantinha-se a percepção do potencial contestatório
relativo à Rússia, essencialmente em seu espaço próximo de projeção de poder. Estes foram
argumentos que possibilitaram a manutenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN), mesmo após o fim da Guerra Fria8.
Se o desaparecimento do sovietismo deu muito maior jogo à OTAN, a importância
estratégica da Rússia não foi, todavia, passada por alto. Por razões táticas e
estratégicas, os atlânticos nunca duvidaram de seu peso na arena internacional. Isto
explica a criação, em 1991, do Conselho de Cooperação do Atlântico Norte
(COCONA), no qual os antigos membros do Pacto de Varsóvia se aliaram junto com
os da OTAN num acordo de assistência mútua, cooperação e colaboração
comprometendo-se a respeitar as fronteiras dos Estados membros. A COCONA
tendeu, sem dúvida alguma, a equilibrar o jogo de forças entre uma potência em
declínio, a Rússia, e a OTAN, equilíbrio que tornava-se essencial, especialmente no
marco da integração da Alemanha Oriental com a Federal (ALDÁS, 2011, p. 35,
tradução nossa).
Nessa seara, a relação do antigo bloco soviético com a Europa Ocidental e os Estados
Unidos, sob o marco da OTAN, no pós-Guerra Fria sugere três grupos de problemas:
[...] as relações internas na estrutura da aliança tradicional; as relações das nações
atlânticas com os ex-estados satélites da União Soviética, na Europa Oriental; e,
finalmente, o relacionamento dos estados sucessores da União Soviética,
especialmente da Federação Russa, com as nações do Atlântico Norte e com a
Europa Oriental (KISSINGER, 1999, p. 901).
8 A OTAN consiste em uma aliança militar estabelecida em 1949, entre nações da América do Norte e Europa
Ocidental, a fim de conter o afã expansionista soviético e estabilizar o ordenamento mundial emergido com o
fim da Segunda Guerra Mundial. Em 1955 sobreviria a contestação do bloco soviético com a conformação do
Pacto de Varsóvia. Desta forma, a existência de ambas as organizações permeou-se pela manutenção do
confronto bipolar. Portanto, com o encerramento da ordem mundial da Guerra Fria e a extinção do Pacto de
Varsóvia em 1991, projetava-se o mesmo desfecho à OTAN. Contudo, a aliança atlântica manteve-se e serviu à
potência hegemônica como a instituição multilateral que pauta seu relacionamento no aspecto político-militar
com a Europa.
47
Todas essas considerações voltam-se relevantes para a análise da política externa
norte-americana para o antigo bloco soviético, da mesma forma que para a ex-Iugoslávia, por
tratar-se do relacionamento com um império em decomposição.
Administrar a decadência de um império é uma das mais difíceis tarefas
diplomáticas. [...] Impérios em colapso geram duas causas de tensão: tentativas dos
vizinhos de tirar proveito da fraqueza do centro imperial, e esforço do império em
declínio para restaurar a autoridade na periferia (KISSINGER, 1999, p. 892).
Outro norteador para a definição das potências na ordem pós-Guerra Fria é a
capacidade tecnológica, preponderante para a renovação econômica e produtiva, induzindo ao
acréscimo ou decréscimo dos níveis de poder material das potências, posicionando-as de
forma superior ou inferior na hierarquia do poder mundial. Alexsandro Eugenio Pereira
utiliza-se do pensamento de Joseph Nye Jr. para apresentar um quadro analítico da produção
ligada a informação no Sistema Internacional pós-Guerra Fria. Neste afã, observa que:
Para determinar o impacto da revolução da informação sobre os países, Nye Jr.
considerou relevante examinar a capacidade de coletar e produzir informação nova
que exige grandes investimentos. A capacidade dos americanos, da Grã-Bretanha, da
França e da Rússia na alocação desses investimentos é muito superior às demais
nações. A informação nova está associada ao papel dos pioneiros, responsáveis pela
criação de padrões e pela arquitetura dos sistemas de informação. Nesse campo,
também, os Estados Unidos estão entre os principais responsáveis pelo
desenvolvimento de sistemas de informação, o que assegura sua liderança e
predomínio (PEREIRA, 2011, p. 248).
Apreciando-se tais perspectivas, o cenário político global pós-Guerra Fria pode ser
traçado nas seguintes linhas-mestras: 1) hierarquização profunda com a supremacia dos
Estados Unidos; 2) as demais potências – Inglaterra, Alemanha, França, Rússia, China e Japão
– não atuam de modo contestatório, apenas o fazem quando seus interesses são afetados; 3)
transbordamento de poder, nos espaços em que a atuação das potências é apenas reativo,
oferecendo possibilidades de projeção de poder às potências emergentes e países
subordinados; 4) ampla utilização das instituições internacionais, tanto como legitimadoras
das políticas universais da potência hegemônica, quanto como espaço de contra-hegemonia
para as demais nações.
Quanto à afirmação das grandes potências neste cenário, Kissinger (1999) elenca um
panorama genérico de sua atuação da seguinte forma:
De todas as grandes, e potencialmente grandes potências, a China é a que mais
cresce. Os Estados Unidos já são a mais poderosa, a Europa está na faina de uma
unidade maior, a Rússia é um gigante que cambaleia, e o Japão é rico mas, até agora,
tímido (KISSINGER, 1999, p. 909).
48
Este ordenamento internacional funciona adequadamente com os objetivos da potência
hegemônica – principalmente pela redução dos encargos –, bem como sem afetar
drasticamente os interesses das demais potências, durante a década de 1990. Crises
humanitárias e econômicas são contornadas, apaziguadas ou censuradas, de modo que não
desestabilizam o sistema como um todo. Todavia, os sinais de erosão já se mostravam antes
mesmo da configuração desta ordem.
Quando dos ataques terroristas da rede Al Qaeda em 11 de setembro de 2001, e a
posterior resposta norte-americana, com apoio de grande parte das demais nações e,
posteriormente, a invasão do Iraque a fim de destituir o regime de Saddam Hussein, baseada
nos princípios de direitos humanos e luta contra o terrorismo, de forma unilateral, foram
eventos que determinaram o fim da ordem hegemônica pós-Guerra Fria, e inauguraram um
breve período de dominação estadunidense, que, como fora observado por Hobsbawm (2007),
teria consequências marcantes para o rumo das Relações Internacionais e para a hegemonia
dos Estados Unidos.
Neste escopo, Jorge Sampaio e José Paulouro das Neves forneceram um quadro
analítico geral das relações internacionais a partir do fim da Guerra Fria marcadamente
efetivo, ao considerarem amplos movimentos das forças potenciais que aportavam desafios
distintos à estrutura história, que, por sua vez, constrangia as possibilidades práticas dos
atores internacionais.
Consolidaram-se, assim, tendências anteriores que hoje marcam o nosso viver: o
declínio do Estado-Nação, cujo ocaso alguns apressadamente profetizam, mas que
os acontecimentos posteriores ao 11 de Setembro desmentem nas suas formulações
mais excessivas, por terem mostrado que, não obstante a efectiva perda de anteriores
instrumentos de supervisão, verifica-se afinal que vem reganhando espaços de
manobra, nomeadamente pelo alargamento de certos dos seus poderes; o
enfraquecimento dos governos nacionais face a uma bem mais livre actuação das
grandes corporações económicas; a permeabilidade dos países às clandestinas tramas
da criminalidade transnacional; as preocupantes projecções securitárias nos direitos
individuais; o alargamento do fosso entre as nações que beneficiam da globalização
e aquelas que se vão enleando nas suas carências, de que as dolorosas imagens
quotidianas das migrações anárquicas constituem amarga ilustração; a crescente
importância das ONG, apesar da persistência de ambiguidades do seu modelo de
representatividade; ou a proliferação de movimentos que contestam com vigor as
omissões dos governos quanto a alguns efeitos predadores da globalização,
configurando esta (de formas crescentemente radicalizadas e de elevado poder
mobilizador popular) como instrumento de dominação económica e veículo de
estratégias de hegemonia cultural (NEVES; SAMPAIO, 2007, s/p).
Entrementes, enquanto os estudiosos das relações internacionais esforçavam-se para
formular o panorama analítico mais apto a desvendar seu objeto de estudo no novo momento
49
histórico, condicionados por suas metodologias específicas, encontramos em outra atividade
humana de grande repercussão, alguns elementos que permitem elucidar os anseios, angústias
e ímpetos que permeiam a ação humana – individual ou coletiva –, podendo ser a imitação da
realidade que observa, ou um suplemento que comporte sua superação.
Pois o fato de que na vida as coisas se passem realmente de maneira tão trágica seria
o que menos explicaria a gênese de uma forma artística, se, ao invés, a arte não for
apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico
dessa realidade natural, colocada junto dela a fim de superá-la (NIETZSCHE, 2001,
p. 140).
Neste escopo, concebemos a arte como “socialmente progressiva”, possibilitando a
construção de um quadro analítico das relações sociais que abarcam o contexto de produção
do artista, explanando as concepções de mundo que este e seus contempladores expressam.
Toda a grande arte é socialmente progressiva, no sentido de que, seja qual for a
filiação política consciente do autor [...], ela apreende as forças historicamente vitais
de uma época que vão no sentido da mudança e do crescimento, revelando o seu
potencial em desenvolvimento na mais plena complexidade (EAGLETON, 1978, p.
44-45).
A análise dos entrelaçamentos de arte e política é profundamente elucidativa,
justamente pelo fato do artista ter um grau muito maior de liberdade para expressar suas
inquietações em comparação ao cientista social. Por isso, enquanto o artista capta a essência
do espírito humano e busca assim construir um panorama genérico do que seja a realidade, o
cientista social – como nos casos de Huntington (1997) e Fukuyama (2007) – por vezes se
impacienta no afã de encontrar algum fator potencialmente explicativo da realidade. “Há o
enigma e a falta de paciência para decifrá-lo, no momento” (VELOSO, 2005, p. 199).
O homem precisa de arte porque além de ter nervos e músculos tem uma coisa que
se chama alma. E a arte é a maior carícia para a alma. Por isso ele sempre praticou
esses exercícios do espírito. Praticou ou contemplou. Porque a arte é prazer para
quem a faz e para quem a observa. E o homem necessita desse prazer. Para quem a
pratica é o prazer de externar seus sentimentos. Para quem a contempla é o prazer de
ver o belo ou de reconhecer, no sentimento do artista, seu sentimento (VELOSO,
2005, p. 253).
Deste modo, considerando-se os objetivos deste estudo, encontramos na obra de
Caetano Veloso uma trajetória artística que vai de encontro aos ímpetos da teoria crítica
coxiana, visando capturar os momentos de transição e explorá-los em toda sua potencialidade.
Caetano é um artista que teve sua carreira marcada pela adaptação, pela transitoriedade, pela
singularidade e pelo pioneirismo.
50
O “estilo” cancional de Caetano é não ter estilo definido, e poder transitar por
dicções diversas estabelecendo a sua especificidade na multiplicidade, como que a
transformar o sincretismo experimental tropicalista em marca pessoal, ao compor
canções de grande difusão. Há, portanto, traços inconfundivelmente singulares no
seu modo de articular música e letra, que vão desenhando, ao longo do tempo,
possibilidades imprevistas de encontro entre a sofisticada depuração bossa-novista e
a agilidade pregnante das baladas oriundas do rock (de Beatles a Roberto Carlos)
(WISNIK, 2005, p. 98).
Partindo da Tropicália, passando pelo exílio londrino, o experimentalismo dos anos
setentas, a evolução técnica dos oitentas, chegando ao internacionalismo dos noventas e do
novo milênio, o capítulo seguinte pretende lançar-se à análise da trajetória artística de
Caetano Veloso e sua contribuição para o estudo das relações internacionais, partindo de uma
concepção do posicionamento do Brasil no mundo.
2 ENTRELAÇAMENTOS DE ARTE E POLÍTICA EM CAETANO
VELOSO: CONTESTAÇÃO E CRÍTICA ÀS RIGIDEZES ANALÍTICAS
Captar e descrever desde os maiores conflitos às nuanças da alma humana,
apreciando-se seus impulsos e reações, seus efeitos para o indivíduo e para toda a coletividade
em que está imerso, havendo-se de ponderar a estrutura histórica que lhe constrange suas
ações, tornam a atividade artística indubitavelmente essencial para a superação da realidade.
Do mesmo modo que o cientista social vê-se por vezes imerso nos caleidoscópios
teórico-empíricos proporcionados pelos momentos de transição, o artista também é coagido
pelas transformações perpassadas pela humanidade, nos mais diversos momentos da história.
Todavia, retomando os aportes de Eagleton (1978) percebemos que a arte é socialmente
progressiva, e o artista é o agente histórico que apanha as forças históricas vitais implicadas
no desenvolvimento histórico humano.
Alguns artistas, além de apreender a realidade, participam ativamente da sua
construção, atuam na transição dos padrões artísticos de uma época, abrindo novas
perspectivas para tal atividade humana. Personalidades artísticas que ao se transmutarem
acarretam a transformação da arte são imprescindíveis para a evolução dos agrupamentos
humanos.
Caetano Veloso é, certamente, uma das mais “inexplicáveis” personalidades
brasileiras. Não apenas por ser um artista polêmico e camaleônico, cuja força
sempre esteve na capacidade de escapar às classificações e desautomatizar chaves
convencionais de interpretação, mas também por se tratar de alguém que não cansou
de se auto-explicar ao longo dos seus quarenta anos de vida artística (iniciada em
1965), a ponto de parecer esgotar tudo o que de novo se poderia dizer a seu respeito
(WISNIK, 2005, p. 8).
Nascido em sete de agosto de 1942 – dia de São Caetano9 –, em Santo Amaro da
Purificação, no Recôncavo Baiano, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso (VELOSO, 1997)
9 Conhecido como o Santo da Providência, Patrono do pão e do trabalho, Caetano de Thiene (1480-1547) é
nomeado padroeiro dos gestores administrativos, bem como das pessoas que buscam trabalho e dos
desempregados. Na concepção de Caetano Veloso, sua relação com o santo que lhe determinara seu nome não
consistia em uma relação de idiossincrasia. Valendo-se das análises do psicanalista italiano Contardo Calligaris,
Caetano considera que “é característico do brasileiro ser nomeado irresponsavelmente, sem vínculo simbólico
com, por exemplo, o santo correspondente ao dia do seu nascimento. Meu nome é Caetano porque nasci no dia
52
converteu-se em um dos principais ícones artísticos nacionais, desencadeando uma série de
revoluções culturais que evidenciariam toda a potencialidade da música brasileira.
Desde menino, na pequena Santo Amaro, Caetano Veloso deparou-se com a onda
avassaladora da cultura de massas norte-americana, e o esforço nacionalista pela preservação
das forças criativas da arte brasileira, em um país que caminhava paulatinamente ao
capitalismo alienante10 dos anos pós-Segunda Guerra Mundial.
Não era a inautenticidade cultural que criticávamos neles, uma alienação das raízes
regionais ou nacionais não lidávamos com tais noções, embora uma forma branda e
ingênua de nacionalismo não nos fosse totalmente estranha; o que se criticava nesses
meninos era a inautenticidade psicológica visível em seus esforços de copiar um
estilo que os deslumbrava mas cujo desenvolvimento eles não sabiam como
acompanhar (VELOSO, 1997, p. 12).
Entrementes, Caetano opunha-se tanto à alienação da cultura de massas quanto às
tentativas do “nacionalismo ingênuo”, ávido por rotular a cultura brasileira em qualquer
parâmetro que não remetesse aos Estados Unidos, depauperando o riquíssimo espírito criativo
brasileiro em uma acomodação a padrões estilísticos simplórios que representassem uma
pretensa essência brasileira.
O desejo de esboçar novas utopias deve nascer em mim menos da necessidade de
contrastar com esse ambiente desencadeado do que da responsabilidade de
compensar minha própria participação na criação do sentimento de desencanto.
Refiro-me aqui à minha atuação em música popular desde meados da década de 60
e, sobretudo, às atitudes algo escandalosas e algo superestimadas que, no final
daquela década, ganharam o apelido de tropicalismo. Esse movimento, no que me
diz respeito, teve todas as características de uma descida aos infernos. Para entender
isso que acabo de dizer, é necessário considerar o clima da MPB do meio dos anos
60, ou seja, os desenvolvimentos do samba-jazz, o surgimento da canção engajada e,
finalmente, a esdrúxula conjugação dos dois, como uma espécie de otimismo
superficial e ingênuo se comparado com a densidade da bossa nova (VELOSO,
2005, p. 46).
Neste escopo, torna-se possível aproximar as investidas de Caetano Veloso contra o
“nacionalismo ingênuo” à antropofagia que permeou os esforços dos modernistas da década
de São Caetano, em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos, mesmo na minha ausência.
Nunca me senti uma exceção por causa disso” (VELOSO, 1997, p. 176-177). 10 Podemos apreciar tal conceituação do período abordado por dois motivos: por um lado, a retomada do
crescimento econômico acentuado nas principais economias capitalistas mundiais, após as décadas da recessão
(pós-crise de 1929) e do conflito mundial, intensificando o processo de alienação do produtor quanto às
mercadorias por meio dos modelos produtivos utilizados; e, por outro lado, pelo desenvolvimento da indústria
cultural que, segundo Adorno (2009), efetuava procedimento adicional de alienação dos indivíduos em relação
tanto à estrutura quanto à superestrutura, fetichizando a realidade por meio de produtos frívolos que reproduziam
apenas elementos úteis aos interesses das classes dirigentes. Neste sentido, Adorno (2009) focava sua análise no
cinema e no rádio, contudo, será com a massificação da televisão que a indústria cultural passará a influenciar
decisivamente nos relacionamentos interpessoais e sociais, em aspectos tão amplos que implicaria efeitos aos
relacionamentos políticos (HOBSBAWM, 2005).
53
de 1920, mais especificamente Oswald de Andrade. Caetano compreende a contribuição de
Oswald para os debates sócio-culturais brasileiros de modo que superássemos a mera
imitação, utilizando-nos de nossa criatividade a fim de “abrasileirar” as informações novas
advindas do exterior.
Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de
onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, assimilar sob espécie brasileira
a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais
iniludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam,
em principio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto
internacional, como produto de exportação (VELOSO, 1997, p. 172).
Assim, a antropofagia cultural era compreendida como um fenômeno absolutamente
distinto da incorporação ingênua (comumente classificada como comercialista, e, no caso
brasileiro, americanista), consistia em elencar referências e orientações para a formação
cultural nacional.
Oswald subvertia a ordem de importação perene - de formas e fórmulas gastas - (que
afinal se manifestava mais como má seleção das referências do passado e das
orientações para o futuro do que como medida da força criativa dos autores) e
lançava o mito da antropofagia, trazendo para as relações culturais internacionais o
ritual canibal (VELOSO, 1997, p. 172).
Tendo em conta tais aspectos, Caetano reconhece a proximidade do movimento
deflagrado pelos modernistas na década de 1920 com o que fora perpetrado pelos tropicalistas
nos anos sessentas. Contudo, relativiza tanto o potencial crítico quanto os efeitos relativos a
ambos os movimentos, reconhecendo as realidades distintas em cada momento histórico.
Sendo assim, assinala que:
A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva.
Estávamos "comendo" os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a
atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e
exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem
cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos.
Procurei também - e procuro agora - relê-la nos textos originais, tendo em mente as
obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal
poética surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a
experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos
dos anos 60. [...] eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que a ideia de
antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada (VELOSO, 1997, p. 172-
173).
Consequentemente, gestava-se no interior do artista baiano um movimento que
encadearia a definitiva inserção da cultura brasileira no cenário internacional, de forma
abrupta, irresistível e libertadora, não obstante, demasiado complexo para o jovem que saía de
Santo Amaro para estudar em Salvador no início da década de 1960.
54
Um movimento que queria apresentar-se como uma imagem de superação do
conflito entre a consciência de que a versão do projeto do Ocidente oferecida pela
cultura popular e de massas dos Estados Unidos era potencialmente liberadora -
reconhecendo sintomas de saúde social mesmo nas demonstrações mais ingênuas de
atração por essa versão - e o horror da humilhação que representa a capitulação a
interesses estreitos de grupos dominantes, em casa ou nas relações internacionais
(VELOSO, 1997, p. 9).
Influenciado pelo rock’n roll norte-americano dos anos 1950, o jazz difundido
mundialmente como musicalidade “mais pura”, em relação aos avanços técnicos que a arte
comercial presenciava, pelo neo rock’n roll inglês dos anos 1960, o samba de roda da Bahia,
Caetano Veloso ainda não havia sido arrebatado pela música (WISNIK, 2005 e VELOSO,
1997).
A incerteza quanto aos seus rumos pessoais, permeados pela atividade artística,
dificultava o desenvolvimento de suas capacidades criativas. Caetano estava dividido entre o
cinema, sua grande paixão, a crítica artística, aprimorada em sua meia década em Salvador, a
pintura, que despendeu seus maiores esforços na adolescência, e a música, obstaculizada pela
sua timidez de garoto do Recôncavo Baiano (VELOSO, 1997).
Entretanto, ao mesmo tempo em que intensificavam-se as convulsões sociais
brasileiras instigadas pelo período democrático dos anos cinquentas e sessentas, surgiu no
Brasil um movimento artístico que alterou todos os padrões e debates culturais, imprimindo
uma realidade absolutamente inovadora e que necessitava de novas concepções de mundo,
desvinculadas da querela do americanismo versus nacionalismo.
A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias
para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança
de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e - o que é
mais importante – as nossas possibilidades (VELOSO, 1997, p. 21).
Certamente foi João Gilberto quem mais influenciou Caetano em sua decisão de
adentrar nos trâmites da produção musical (WISNIK, 2005). O disco Chega de Saudade
(1959) inaugurou uma nova era na Música Popular Brasileira, oferecendo novas
possibilidades para captar a essência do espírito brasileiro. Caetano Veloso destacava-se
gradualmente como compositor, desde sua transferência para o Rio de Janeiro na segunda
metade da década de 1960, e firmava-se como revelação artística da época.
Concomitantemente, ocorriam alterações profundas na estrutura histórica brasileira,
com o golpe militar de 1964, que buscava apaziguar os ímpetos de um pretenso “avanço
comunista”. Não obstante, Caetano e Gilberto Gil (companheiro desde os tempos de
55
Salvador) ainda planejavam o grande golpe à cultura brasileira, neste momento, em que o
antigo debate que marcara a adolescência de Caetano acirrava-se decisivamente, com a
afirmação das canções de protesto, contestatórias do regime militar e de qualquer
identificação com a arte comercial internacionalizada. Os ímpetos transformadores e
contestatórios de Caetano iniciam a delinear-se, conformando uma posição de auto-
transmutação constante e inconformismo com qualquer padronização.
Em 64, a esquerda parecia se compor de todos os brasileiros que merecessem sê-lo e
mesmo de todos os seres humanos dignos desse nome. [...] O que se pretende contar
é a aventura de um impulso criativo surgido no seio da musica popular brasileira, na
segunda metade dos anos 60, em que os protagonistas [...] queriam poder mover-se
além da vinculação automática com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da
revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim
reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre participação na realidade
cultural urbana universalizante e internacional, tudo isso valendo por um
desvelamento do mistério da ilha Brasil (VELOSO, 1997, p. 9).
Portanto, ao considerar-se o projeto tropicalista de transformação sócio-cultural do
Brasil, volta-se necessário apreciá-lo enquanto um projeto abrangendo duas esferas de
atividade humana, a artística e a intelectual. O processo de desenvolvimento histórico que se
apresentava aos tropicalistas colocava o seguinte problema:
A antítese corriqueira entre arte e ciência, que separa as duas em diferentes setores
culturais, a fim de que, enquanto setores culturais, elas possam ser ambas
administradas, faz com que cada uma delas, enquanto exato oposto, converta-se
finalmente na outra em virtude de suas próprias tendências. A ciência, na sua
interpretação neopositivista, torna-se esteticismo, um sistema de signos soltos,
destituídos de qualquer intenção que transcenda o sistema: jogo que os matemáticos,
já há muito tempo, orgulhosamente declararam ser o seu assunto. Mas a arte da
reprodutibilidade integral abandonou-se à ciência positivista até mesmo nas suas
técnicas. Mais uma vez, de fato, ela se torna mundo, duplicação ideológica, dócil
reprodução. A separação entre signo e imagem é inevitável. Todavia, se for mais
uma vez hipostasiada, num incauto contentamento consigo mesma, cada um dos
dois princípios isolados induz à destruição da verdade (ADORNO, 1996, p. 34).
Essa problemática emerge da pretensa desvinculação de alguns intelectuais em relação
à coletividade. Inicialmente, há de questionar-se, como o fez Gramsci (1982, p. 3), se “os
intelectuais constituem um grupo social autônomo e independente, ou cada grupo social
possui sua própria categoria especializada de intelectuais”? A complexidade inerente ao
problema é causada, segundo Gramsci (1982, p. 3), pela multiplicidade de formas assumidas
pelo “processo histórico real de formação das diversas categorias intelectuais”. De todas as
formas assumidas por tal processo sobressaltam-se duas. A primeira diz respeito ao grupo dos
intelectuais orgânicos, que pode ser assim concebida:
56
Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no
mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo
orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e
consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no
social e no político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o
cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo
direito, etc., etc. Deve-se anotar o fato de que o empresário representa uma
elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente e
técnica (isto é, intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade técnica, não
somente na esfera restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas ainda em outras
esferas, pelo menos nas mais próximas da produção econômica (deve ser um
organizador de massa de homens: deve ser um organizador da "confiança" dos que
investem em sua fábrica, dos compradores de sua mercadoria, etc.). [...] Pode-se
observar que os intelectuais "orgânicos", que cada nova classe cria consigo e elabora
em seu desenvolvimento progressivo, são, no mais das vezes, "especializações" de
aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à
luz (GRAMSCI, 1982, p. 3-4).
A segunda forma assumida refere-se ao grupo dos intelectuais tradicionais, forma
elementar da análise efetuada por Adorno (1996) quanto à problemática entre a arte e a
ciência. Esta segunda forma pode ser definida nestes limites:
Cada grupo social "essencial", contudo, surgindo na história a partir da estrutura
econômica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou
pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos dias categorias intelectuais
preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade
histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais
modificações das formas sociais e políticas. A mais típica destas categorias
intelectuais é a dos eclesiásticos, que monopolizaram durante muito tempo (numa
inteira fase histórica que é parcialmente caracterizada, aliás, por este monopólio)
alguns serviços importantes: a ideologia religiosa, isto é, a filosofia e a ciência da
época, através da escola, da instrução, da moral, da justiça, da beneficência, da
assistência, etc. [...] Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais
sentem com "espírito de gripo" sua ininterrupta continuidade histórica e sua
"qualificação", eles consideram a si mesmos como sendo autônomos e
independentes do grupo social dominante. Esta autocolocação não deixa de ter
consequências de grande importância no campo ideológico e político: toda a
filosofia idealista pode ser facilmente relacionada com esta posição assumida pelo
complexo social dos intelectuais e pode ser definida como a expressão desta utopia
social segundo a qual os intelectuais acreditam ser "independentes", autônomos,
revestidos de características próprias, etc (GRAMSCI, 1982, p. 5-6).
Retomando à análise do projeto tropicalista de transformação sócio-cultural,
concatenando com os apontamentos de Gramsci (1982) e Adorno (1996), é possível
percebermos a imprescindibilidade da atuação de Caetano Veloso tanto como artista quanto
como intelectual, a fim de efetivar a potencialidade buscada pelo movimento que o mesmo
gestava.
Sob tais perspectivas, podemos conceber o Tropicalismo enquanto um intento de
formação de uma nova cultura e uma nova intelectualidade, nos termos gramscianos. Desse
modo, ao falar-se de uma nova cultura:
57
Deve-se falar de lutar por uma nova cultura, ou seja, por uma nova vida moral que
não pode deixar de estar [intimamente] ligada a uma nova concepção da vida, até
esta voltar-se um novo modo de sentir e de intuir a realidade e, portanto, um mundo
intimamente conforme no artista e em suas obras (GRAMSCI, 1986, p. 97, tradução
nossa).
Ao empreender-se o intento de efetivação de uma nova cultura é essencial conceber o
indivíduo enquanto imerso na sociedade, historicamente determinado. O artista deve ser
observado como membro da sociedade da qual participa, e na qual atua, e uma sociedade
determinada, historicamente. É assim que Gramsci (1999, p. 121, tradução nossa) considera o
artista pertencente ao projeto de objetivação de uma nova cultura, sendo “mais ou menos
amplo e global, mais ou menos ‘histórico’ ou ‘social’”.
No tocante à nova intelectualidade, do mesmo modo, faz-se necessário apreciar a
ligação intrínseca do intelectual com a estrutura histórica em que o mesmo insere-se. Quando
logra estabelecer tal nexo, aportando uma concepção de mundo perpassada pelo
desenvolvimento histórico, estamos considerando um intelectual orgânico. Em síntese:
O problema da criação de uma nova camada intelectual, portanto, consiste em
elaborar criticamente a atividade intelectual que existe em cada um em determinado
grau de desenvolvimento, modificando sua relação com o esforço muscular-nervoso
no sentido de um novo equilíbrio e conseguindo-se que o próprio esforço muscular-
nervoso, enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova
continuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma nova e
integral concepção do mundo (GRAMSCI, 1982, p. 8, grifo do autor).
Tendo em conta todos os processos de fragmentação que o capitalismo alienante
efetiva nas sociedades contemporâneas, o artista possui papel importante na construção de
imagens coletivas multifacetadas, que possibilitem aos indivíduos a percepção da totalidade
em que estão imersos.
Numa sociedade em que o geral e o particular, o conceptual e o sensual, o social e o
individual são cada vez mais dissociados pelas “alienações” do capitalismo, o
grande escritor une-os dialeticamente numa totalidade complexa. A sua ficção
espelha assim, de forma microcósmica, a totalidade complexa da própria sociedade.
Fazendo isto, a grande arte combate a alienação e fragmentação da sociedade
capitalista, projetando uma imagem rica e multifacetada da integridade humana
(EAGLETON, 1978, p. 43).
Portanto, ao analisarmos o projeto tropicalista e a participação de Caetano Veloso,
depreendemos a atuação deste enquanto artista e intelectual, visando o estabelecimento de
uma nova cultura e uma nova intelectualidade. Por construir um projeto nacional de
transformação artístico-cultural, que possibilitasse influenciar diretamente no âmbito político-
econômico, Caetano pode ser considerado um intelectual orgânico, atuando na contestação
58
das elites dirigentes e de suas superestruturas conformadas no momento histórico em que
deflagra-se o Tropicalismo.
O III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de 1967, realizado no
Teatro Paramount de São Paulo, representou o maior acontecimento artístico nacional pós-
bossa nova. Além de toda a discussão acerca dos rumos da cultura brasileira, Caetano e Gil
apresentaram as bases do que seria o Tropicalismo, uma completa virada artística para
oferecer novas possibilidades à arte no Brasil.
De fato, nós tínhamos percebido que, para fazer o que acreditávamos que era
necessário, tínhamos de nos livrar do Brasil tal como o conhecíamos. Tínhamos de
destruir o Brasil dos nacionalistas, tínhamos que ir mais fundo e pulverizar a
imagem do Brasil carioca (VELOSO, 1997, p. 31).
Neste evento histórico foram apresentadas ao público canções que marcariam uma
época, uma geração, delimitariam a transição da Música Popular Brasileira para rumos
absolutamente inovadores, reposicionando-a entre as principais formas de apresentação
artística no cenário pós-modernista.
Edu Lobo, acompanhado por Marília Medalha, venceu o festival com a canção
Ponteio, ode à arte musical brasileira. Chico Buarque apresentou, juntamente com o conjunto
MPB4, a canção Roda Viva, elevando o nível das canções politicamente engajadas quanto aos
seus arranjos e à musicalidade com que a poesia de contestação era apresentada. Todavia, não
há dúvidas que o maior impacto causado pelo festival referiu-se às apresentações de Domingo
no Parque de Gilberto Gil e os Mutantes, e Alegria, Alegria de Caetano Veloso e os Beat
Boys.
A utilização de guitarras elétricas e conjuntos de rock n’roll nas apresentações já
prenunciavam uma revolução cultural. As vestimentas pouco convencionais (excetuando-se
Gilberto Gil) apenas agregavam elementos à polêmica central: a música tradicional versus a
música comercialista e alienante internacionalizada. Caetano e Gil almejavam a dissolução
desta polêmica em um rito de exorcismo, uma “descida aos infernos”, em que todas as forças
criativas artísticas do espírito brasileiro fossem libertas das amarras do convencionalismo
modernista. Utilizavam-se de táticas próximas as que fundamentavam a guerrilha urbana, no
ímpeto de combater os desígnios da realidade dominante.
Nós não estávamos de todo inconscientes de que, paralelamente ao fato de que
colecionávamos imagens violentas nas letras das nossas canções, sons desagradáveis
e ruídos nos nossos arranjos, e atitudes agressivas em relação à vida cultural
59
brasileira nas nossas aparições e declarações públicas, desenvolvia-se o embrião da
guerrilha urbana, com a qual sentíamos, de longe, uma espécie de identificação
poética (VELOSO, 1997, p. 31-32).
Após o III Festival da Record, Caetano “organizou o movimento” e empenhou-se em
desenvolver a crítica aos padrões artísticos nacionais. O ano de 1968 foi significativamente
emblemático (mundialmente pelas mobilizações sociais da chamada geração de 6811,
estereotipadas nos movimentos estudantis franceses de maio daquele ano), despendendo a
maior parcela das energias criativas dos tropicalistas. Por ende, os fenômenos relativos à
micropolítica passaram a pautar os debates societários, num movimento diametralmente
oposto às concepções ideológicas fundadas na totalidade dos grupos humanos.
Os estilos modernistas se transformaram assim nos códigos pós-modernistas. A
questão da micropolítica demonstra claramente que também é um fenômeno político
a hoje extraordinária multiplicação dos códigos sociais em jargões de disciplinas e
de profissões (mas também em índices de adesão à afirmação étnica, sexual, racial,
religiosa ou à facção de classe). Se, antes, as ideias de uma classe dominante (ou
hegemônica) formavam a ideologia da sociedade burguesa, os países capitalistas
avançados são, em nossos dias, o reino da heterogeneidade estilística e discursiva
sem norma. Senhores incógnitos continuam a reajustar as estratégias econômicas
que limitam nossas vidas, mas não precisam (ou não conseguem) mais impor sua
fala; e a pós-alfabetização, característica do mundo do capitalismo tardio, reflete [...]
a ausência de qualquer grande projeto coletivo [...] (JAMESON, 1997, p. 44).
Caetano lança seu primeiro Long Play individual, Caetano Veloso, em 1968,
apresentando ao público o produto de seu esforço tropicalista. Não obstante, retomando aos
apontamentos de Chaia (2007), percebemos que neste primeiro momento da carreira de
Caetano Veloso, a canção Alegria, Alegria tornou-se emblemática para a compreensão de
todo o processo desencadeado. Por mais que o próprio artista posicione a canção como
simplória e sem grandes atributos, sua representatividade no contexto da estrutura histórica
em que foi concebida a situam como obra com presença política.
Independentemente ou não da vontade do sujeito e do projeto do artista, uma obra de
arte pode tornar-se um símbolo político que evoca um conjunto de ideias ou
condições sociais, sempre recuperável no presente político. Destacam-se, nesse caso,
mensagens, conteúdos ou valores que entram em circulação com a obra
11 De acordo com Hobsbawm (2005, p. 325), o movimento surgido na segunda metade da década de 1960
consistia numa crítica dos velhos padrões sociais, uma atitude dos jovens de rejeição das convenções sociais
precedentes, visando estabelecer novos parâmetros para as temáticas mais particulares referentes aos
relacionamentos pessoais. Desse modo, adentrou-se num subjetivismo, no fortalecimento das concepções
individuais, essencialmente das liberdades individuais. “Mesmo quando tais desejos eram acompanhados de
manifestações, grupos e movimentos públicos; mesmo no que parecia, e às vezes tinha, o efeito de rebelião de
massa, a essência era de subjetivismo” (HOBSBAWM, 2005, p. 326). Lutava-se pela liberação pessoal e
liberação social, buscando subverter a dominação do Estado, dos pais e de toda a “velha sociedade”, de suas leis
e convenções. “Mais significativo ainda é que essa rejeição não se dava em nome de outro padrão de ordenação
da sociedade, embora o novo libertarismo recebesse uma justificação daqueles que sentiam que ele precisava de
tais rótulos, mas em nome da ilimitada autonomia do desejo humano” (HOBSBAWM, 2005, p. 327).
60
resignificada. As imagens tornam-se essenciais tanto para a contestação quanto para
a propaganda política e estratégias econômicas (CHAIA, 2007, p. 28).
Alegria, Alegria deflagra um novo estilo cancional, comprometido com a
decomposição de tudo o que seja padronizado, permeada pela colagem de imagens justapostas
que lhe oferecem certa uniformidade, lançando mão de figuras cotidianas com um discurso
político transfigurado, afastando-se do apelo da canção de manifesto.
Em “Alegria, Alegria”, a eficácia do discurso cancional estava na afirmação de
independência ideológica do eu que canta, que, sob uma cama orquestral de cordas
sintetizadas, soando como um órgão de igreja, numa marchinha propositalmente
ingênua, podia desenhar claramente linhas melódicas descendentes (“O sol nas
bancas de revista/ Me enche de alegria e preguiça/ Quem lê tanta notícia?”)
concluídos ascendentemente (“Por que não?”), reforçando sua atitude de deslocar-se
decididamente no espaço (WISNIK, 2005, p. 18-19).
Pode-se conceber o Tropicalismo, de tal modo, enquanto um esforço de repensar o
Brasil e a brasilidade, bem como o papel da arte na (des) construção do fenômeno Brasil. O
ímpeto tropicalista centrava-se em descaracterizar os arcaísmos patriarcais nacionalistas e
imergi-los na “geleia geral” da cultura de massas internacionalizada, para assim liberar o
impulso criativo intrínseco a arte brasileira.
No caso da música popular, o mesmo espírito de negatividade alimentou o assim
chamado tropicalismo, na incorporação da música comercial “cafona”, dos
instrumentos eletrônicos “importados” e do ruído dissonante, na colagem heteróclita
de referências várias com vistas à dissolução dos gêneros musicais, e na construção
paródica e alegórica de imagens sincréticas do Brasil, em que se justapõem
modernidade internacional e arcaísmos patriarcais (WISNIK, 2005, p. 46).
Neste escopo, o tropicalismo aproximava-se dos movimentos pós-modernos, no que
concerne ao seu comprometimento com a desconstrução de figuras universais, a
desconstrução das figuras homogeneizantes da sociedade, encontrando na fragmentação das
forças sociais um impulso para tais ímpetos.
O sentido do pós-moderno, como um conjunto de referências pré-teóricas que
estabelecem certas “semelhanças familiares” entre suas diversas manifestações, é
dado pelo processo de erosão e desintegração de categorias tais como “fundação”,
“novo”, “identidade”, “vanguarda” etc. O que a “situação de pós-modernidade”
contesta não é tanto a diferenciação e a escolha de identidades sociais e culturais,
mas sim o status e a lógica de sua construção (LACLAU, 1992, p. 129)
O projeto de Caetano reconhecia a importância que deveria ter a apresentação de
Alegria, Alegria (VELOSO, 1997), entretanto, o artista não contemplava a potencialidade
inerente à canção, a empatia dos ouvintes às imagens transmitidas pela canção com sua forma
melódica simples e poderosa, por sua ruptura com os padrões estéticos até então vigentes.
61
Definitivamente inaugurava-se um novo período artístico na Música Popular Brasileira. Por
conseguinte, a canção ganhou autonomia em relação aos desígnios que o artista lhe atribuía,
perpassando suas expectativas e tornando-se ícone do movimento em geral.
A obra de arte possui presença autônoma, dada a sua estrutural potencialidade,
expondo diferentes formas de falas, linguagens ou expressões, disponibilizando
fluxos para trafegar poderes, sejam eles estéticos ou ideológicos. Assim, ao abrir
inúmeras possibilidades em sua apropriação, a obra coloca inusitados, ou até
improváveis, recursos para o conhecimento e a ação no mundo (CHAIA, 2007, p.
28).
Não obstante, o desenvolvimento do movimento da Tropicália influenciou de tal forma
o cenário artístico nacional, seus precursores empenharam-se profundamente no acirramento
de todas as tensões que lhes instigavam seus impulsos artísticos, empreenderam a “descida
aos infernos” (VELOSO, 2005), confrontando-se com uma estrutura histórica conduzida pelo
conservadorismo do regime militar. Como resultado, Caetano Veloso e Gilberto Gil são
presos em 27 de dezembro de 1968 – duas semanas após a decretação do AI-512 –, após uma
sucessão de golpes deflagrados pelo movimento Tropicalista, simbolicamente enterrado no
programa Divino, maravilhoso da TV Tupi (WISNIK, 2005).
A nossa descida aos infernos se efetuou como estratégia de iniciação ao grande
otimismo – ainda não superamos a fase sombria iniciada em 1967. “Alegria, alegria”
era um começar a mexer no lixo – claro que ela trata da alegria real, mas apenas para
ter mais eficácia no tratamento do tema fundamental que é o mesmo de
“Superbacana” e de “Geleia geral”, a saber, uma visão autodepreciativa da nossa
vida cotidiana e do seu quase nenhum valor no mundo (VELOSO, 2005, p. 51).
Em julho de 1969, Caetano e Gil, acompanhados de suas esposas, partem para o exílio
em Londres, em um novo momento de transição na trajetória artística de Caetano Veloso. A
desconstrução total proposta pela Tropicália seguiu a evolução esperada pelo movimento,
possibilitando a fase de experimentalismo dos anos setentas, em que Caetano apresentará
inovações na técnica vocal que lhe elevarão a um novo patamar de produção artística.
O lançamento do disco Caetano Veloso de 1971, em Londres, representou o ponto de
transição da desconstrução tropicalista para a explosão criativa da nova Música Popular
Brasileira. O impacto causado pelos novos empreendimentos artísticos perpetrados por
Caetano neste trabalho evidenciaria ao público suas profundas pretensões criativas
impulsionadas pelo experimento tropicalista.
12 O Ato Institucional Número Cinco fora instaurado durante o governo de Artur da Costa e Silva, delegando
poderes extraordinários ao executivo, suspendendo garantias constitucionais e representando o decisivo
fortalecimento do regime militar. O AI-5 recrudescia a censura, estendendo a censura prévia à imprensa, à
música, ao teatro e ao cinema (WISNIK, 2005).
62
O disco esteve marcado por canções representativas do momento pessoal do artista,
exilado em Londres, envolvendo-se num simbolismo acerca das forças históricas que
movimentavam as relações de poder no Brasil à época. London, London foi a mais
significativa canção permeada por tal escopo, compartilhando as atenções com as demais
canções em que Caetano aventurou-se profundamente na língua inglesa para produzir canções
com marcante difusão ideológica do projeto de um novo Brasil, internacionalizado e que
reconhecesse, ao mesmo tempo, sua singularidade.
Entrementes, o maior impacto causado pelo disco refere-se à interpretação da clássica
Asa Branca, na qual Caetano inova sua técnica vocal, explorando possibilidades estéticas de
altíssimo requinte e exigência na execução, que envolvidas pela áurea política da própria
canção, configuraram-se em um manifesto contra a severidade da vida no campo brasileiro,
especificamente na região Nordeste, concatenando com a situação dos exilados políticos do
regime militar que, assim como os retirantes nordestinos, esperam uma renovação de sua terra
natal para regressarem ao espaço que lhes caracteriza enquanto atores sociais.
“Asa Branca”, em particular – a mais perfeita canção do exílio, que fala de alguém
que se vê forçado a abandonar o sertão castigado pela seca, deixando guardado ali
seu coração como promessa de volta –, marca o momento inaugural de sua hoje tão
consagrada vocação de intérprete criador. [...] a gravação de “Asa Branca” significa
um salto para outro patamar criativo. Um salto que implica tanto a criação de um
estilo pessoal de interpretação, na poderosa integração formal entre os modos de
cantar e de tocar violão, envolvendo experimentações silábico-sonoras que parecem
mastigar antropofagicamente os antigos exercícios mentais, quanto a amplificação
de uma perspicácia definitivamente aguçada na capacidade lírica de extrair sentidos
exponencialmente novos do cruzamento de elementos dados (WISNIK, 2005, p. 37).
Tomando-se o disco de forma unitária, observamos que o mesmo aportou
contribuições para a politização da arte (CHAIA, 2007, p. 24), onde voltam-se relevantes “a
existência de componentes ideológicos, a influência de orientações partidárias e a circulação
de ideias brotadas dos manifestos de vanguardas permeando a produção artística”. Certamente
a contestação ao cerceamento da liberdade de expressão, seja a perpetrada pelo aparato
estatal, seja a difundida pelos meios tradicionais conservadores, fora a principal colaboração
desta obra de Caetano Veloso. Seu “manifesto do movimento Joia” expressa pontualmente
suas aspirações quanto à liberdade de criação, ao apontar que:
Nenhum círculo é vicioso a ponto de impossibilitar o verde, o aparecimento do
verde, a esperança do aparecimento do verde, escravo livre da insensatez azul e do
equilíbrio amarelo. [...] Respeito contrito à ideia de inspiração. Joia. Meu carro é
vermelho. Inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma
música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e
o milênio (VELOSO, 1977, p. 163).
63
Agregam-se a tais considerações, o fato de o projeto do disco Caetano Veloso (1971)
intencionalmente visar esclarecer seus consumidores quanto à sua mobilização pela liberdade
irrestrita de expressão artística, possibilitada pela deflagração do anterior movimento
tropicalista, ideário mantido durante a década de 1970, coroada com a canção Terra, de 1978,
em que Caetano liricamente aborda sua prisão em 1969, concatenando com o progresso
mundial que representaram as primeiras fotografias do planeta obtidas desde o espaço.
Na politização da arte, a obra tende a adquirir um sentido pragmático, a partir da
fusão de interesses individuais e institucionais, tanto que nessa produção se
manifesta a ambiguidade nascida da livre vontade do artista e do entendimento de
que a arte é um meio de transformação (gradativa ou revolucionária) da sociedade.
Artista e obra incluem-se no fluxo da propagação difusa de algum projeto político,
sem deixar-se apanhar completamente pela rede do poder centralizado e impositivo
de alguma instituição (CHAIA, 2007, p. 24).
No decorrer dos anos setentas, Caetano intensificou seu experimentalismo,
culminando em sua principal obra de tal cunho, o disco Araçá Azul (1973), que por sua
completa despretensiosidade comercial resultou em grande número de devoluções. Joia
(1975), Qualquer coisa (1975), Bicho (1977), Muito (1978) e Cinema Transcendental (1979)
conformaram o empreendimento de Caetano Veloso na década de 1970, a transfiguração do
escândalo absoluto da Tropicália em liberdade criativa e expressiva, recolhendo seus ônus e
bônus, inerentes ao experimentalismo que, todavia, seja pelos comentários da crítica
especializada, pela arrecadação lograda pelos discos (não todos, claro está) e pela difusão que
a obra e o artista tiveram nessa década, posicionando-o definitivamente no seleto rol de
personalidades artísticas nacionais, demonstraram que o projeto de Caetano brindou
resultados positivos tanto ao artista quanto à arte brasileira em geral.
Nesse arco de tempo, que compreende quase toda a década de 70, está concentrada
boa parte da produção musical mais intensa de Caetano (13 discos lançados), que,
como vimos, irá reincorporar, após a prisão e o exílio, o lirismo antes renegado pela
“máscara anti-bossanovista” do tropicalismo: “Às vésperas de acontecimentos
violentos, nossa poesia queria aniquilar o lirismo para dar lugar a uma saúde feroz.
Mas isso é muito mais profundo, essa história da alma lírica”, reconheceu Caetano,
numa carta escrita em Londres. “Eu sou brasileiro, os meus olhos costumam se
encher de água, eu sou humilde e miserável, estou na janela e na rua” (WISNIK,
2005, p. 74).
O êxito logrado pela difusão do trabalho de Caetano Veloso guarda estreita relação
com a combinação, efetuada pelo artista, da produção de obras com maior preocupação
técnica e outras vinculadas ao consumo de massas. Caetano busca equilibrar ambos elementos
diametralmente opostos, proporcionando maior abrangência de público, captando os anseios
64
do consumismo massivo de produtos culturais em consonância com seus projetos de inovação
artística.
Uma das razões por que eu gosto de manter uma produção de canções “de massa” é
a vontade de reequilibrar a média da criação pop brasileira a cada passo, em
detrimento de um possível afastamento para pesquisar algo fundador. É como se
fosse um não-querer estar demasiado à frente, ou acima, ou à margem (VELOSO,
2005, p. 69).
Guilherme Wisnik capta de modo sagaz os limites genéricos da obra de Caetano nessa
década, mencionando que as canções de tal período estavam profundamente perpassadas pelas
reflexões do artista sobre “o ser e o tempo”, bem como acerca do “ser e o nada”. “Quer dizer,
sobre questões importantes postas pelo existencialismo sartriano13, tais como a
responsabilidade da ação individual em meio à coletividade e a condenação à liberdade”
(WISNIK, 2005, p. 75).
Neste período, novamente sobrevêm à análise da obra de Caetano Veloso sua relação
com o pós-modernismo, especificamente em seu esforço de crítica à totalidade nas
apreciações da realidade humana.
De forma geral, a nova sensibilidade pós-moderna dirige suas forças para a
desconstrução sistemática dos mitos modernistas questionando não só o papel do
iluminismo para a identidade cultural do Ocidente mas também o problema da
totalidade e do totalitarismo na epistemologia e na teoria política modernas
(HOLLANDA, 1992, p. 9).
Contudo, o projeto artístico-político de Caetano Veloso esteve ligado a uma posição
alternativa dentro das considerações pós-modernas, na qual a postura crítica, de resistência e
transformação do status quo perpassava suas contribuições artísticas, colaborando
representativamente com as transformações sociais e culturais do país. Sua atuação, de modo
algum pode ser enquadrada na simplória negação absoluta, mas sim no escopo crítico-
propositivo.
Contra o codificado alto modernismo das décadas precedentes, o pós-modernismo
dos anos 60 tentou revitalizar a herança da vanguarda europeia e dar-lhe uma forma
norte-americana (...). Na década de 70, esse pós-modernismo vanguardista dos anos
60 havia esgotado seu potencial, embora algumas de suas manifestações tenham
sobrevivido na nova década. O que havia de novo nos anos 70 era, de um lado, a
emergência de uma cultura do ecletismo, um pós-modernismo amplamente
afirmativo que abandonara qualquer reivindicação de crítica, transgressão ou
13 O aporte existencialista sartriano envolve-se numa concepção humanista, antropocêntrica, todavia, sem
considerar o homem como fim, pois o toma como incompleto ou modificável, constantemente estando por fazer-
se. Através do existencialismo a vida humana se torna potencialidade e possibilidade, abordando o homem
enquanto ator primário. Afirma, em suma, a liberdade do ser humano como agente histórico, lutando contra as
diversas formas de dominação que lhe constranja a potencialidade de suas ações.
65
negação; e, por outro lado, um pós-modernismo alternativo em que resistência,
crítica e negação do status quo foram redefinidas em termos não-vanguardistas e
não-modernistas, que se adequavam mais efetivamente aos avanços políticos da
cultura contemporânea do que as antigas teorias do modernismo (HUYSSEN, 1992,
p. 31).
Tendo a transformação como constante em sua trajetória artística, Caetano Veloso
novamente altera as linhas produtivas de sua obra na década de 1980. Impelido pelo crescente
retrocesso econômico do regime militar, concomitante aos primeiros sinais da transição
democrática, Caetano transita da politização da arte para a estetização da política, situação na
qual a obra visa estabelecer o gozo estético coletivo de um projeto político perpetrado por
determinado grupo social (CHAIA, 2007). Não obstante, carecemos de elementos que
permitam estabelecer uma relação de causalidade ou intencionalidade da obra de Caetano
neste período com qualquer tendência política ou ideológica, especialmente pelas
características do próprio artista, “camaleônico” (WISNIK, 2005).
A causa difundida por Caetano, desde a Tropicália, era a da liberdade de expressão e
criação, de forma irrestrita. Mesmo tomando as canções que favorecem a concepção da
situação da politização da arte em Caetano Veloso, como Quero Ir a Cuba (1983), Podres
Poderes (1984), O Quereres (1984), Trilhos Urbanos (1986) e Merda (1986), não é possível
estabelecermos definitivamente tal nexo, sendo preferível tomarmos a produção de Caetano
Veloso nos anos oitentas enquanto um esforço de difusão do projeto libertário de Caetano,
lançando-se mão de imagens políticas coletivas que permitissem sua contestação da ordem
vigente e a apresentação de realidades alternativas, enquanto opções postas ao ímpeto
brasileiro de retorno à normalidade institucional democrática.
Quer dizer, no limiar da abertura política do país, Caetano está situado no polo
oposto do sentimentalismo ufanista de “Coração de Estudante” (Milton Nascimento
e Wagner Tiso), que marcou a eleição (indireta) de Tancredo Neves e a comoção
nacional com a sua morte inesperada. Mas está, também, distante da exaltação
apoteótica – embora irônica – de “Vai Passar” (Chico Buarque), igualmente
emblemática desse período. Pois enquanto Chico, ligado aos anseios de
transformação social representados pela emergência histórica do Partido dos
Trabalhadores, se engajava positivamente no ideal de libertação ali representado,
Caetano desconfiava da imaturidade política do país, preferindo enxergar o futuro
democrático como um equacionamento de extremos [...] (WISNIK, 2005, p. 113).
Este particular ceticismo de Caetano quanto aos delineamentos do futuro sócio-
político brasileiro com o fim do regime militar refere-se à insuperada transição do
tradicionalismo arcaico, do paternalismo, para a sociedade ampliada, democrática e livre,
permeada por uma infinidade de interesses conflitantes, mediados pelos constrangimentos que
o projeto de coletividade impõe. “Para Caetano, a violência da situação brasileira impõe ao
66
artista a necessidade de desrespeitar os pruridos de sensatez que normalmente cercam as
opiniões políticas [...]” (WISNIK, 2005, p. 113).
Nesse deslocamento da adesão ao clima otimista da abertura política, há uma
sensível coerência com a postura tropicalista de não demonizar a ditadura militar, e
não ceder, portanto, à nostalgia do Brasil nacional-popular dos anos 50, país idílico
cuja pureza teria sido maculada pelo golpe de 64. Esta visão romântica, em que se
tenta frequentemente encerrar a obra de Chico Buarque, está de fato na antípoda da
posição assumida por Caetano Veloso, atento ao fato de que o Brasil e toda a
“América Católica” ao longo da sua história, frequentemente “optaram” por
substituir suas democracias por líderes carismáticos ou “ridículos tiranos”. “Será que
a gente consegue fazer um Estado democrático razoável, ter uma política liberal
respeitável?”, pergunta Caetano. “Ou a gente tem que estar sempre sob o regime de
força”? “Que gente somos nós?” (WISNIK, 2005, p. 115).
Fornecendo um esclarecedor quadro analítico da situação política e cultural brasileira
desde os anos cinquentas, Caetano Veloso concebe a evolução histórica das forças criativas
brasileiras em constante tensão com as estruturas históricas nacionais, não perpassando um
caminho de linearidade, envolvendo-se em utopias e frustrações que delimitariam as novas
possibilidades apresentadas ao Brasil, em seu ímpeto de solucionar as problemáticas que
obstaculizam o desenvolvimento da sociedade em âmbito geral.
(Qualquer um pode ver claro que os problemas culturais do Brasil estão bem longe
de serem resolvidos). Depois da euforia desenvolvimentista (quando todos os mitos
do nacionalismo nos habitaram) e das esperanças reformistas (quando chegamos a
acreditar que realizaríamos a libertação do Brasil na calma e na paz), vemo-nos
acamados numa viela: fala por nós, no mundo, um país que escolheu ser dominado
e, ao mesmo tempo, arauto-guardião-mor da dominação da América Latina. Se se
fechou o círculo vicioso da economia e da política abjetas, isto é, se os problemas
básicos estão distantes da solução a ponto de permitirem soluções às avessas, não
será no campo da cultura que nos teremos aproximado de uma autonomia definitiva
(VELOSO, 1977, p. 2).
No entanto, a promulgação da Constituição de 1988 forneceu os pilares para
estabelecer análises factíveis das possibilidades institucionais da democracia brasileira,
contornando os temores de Caetano pela legalidade institucional, mitigando as implicações do
personalismo político brasileiro.
A transição brasileira tem na Constituição de 1988 um momento fundamental para a
definição da nova institucionalidade, da qual se devem destacar a dimensão
propriamente "constitucional", isto é, os sistemas eleitoral, partidário e de governo, e
a dimensão "procedimental", ou seja, as regras que regulam o processo decisório,
fundamentalmente as relativas aos poderes de agenda e à capacidade de formulação
das políticas públicas por parte dos Poderes Executivo e Legislativo (MORAES,
2005, p. 2).
Determinantemente, Caetano posicionava-se criticamente quanto ao desenvolvimento
histórico das forças sociais brasileiras. A grave crise econômica da segunda metade da década
67
de 1980 contribuiu para seus apontamentos, concomitantemente aos arranjos políticos
efetuados a fim de manter a “governabilidade” da recente democracia brasileira, protelando o
mandato de José Sarney por 5 anos, e elegendo Fernando Collor de Mello para o executivo
nacional, em acirrada disputa com Luiz Inácio Lula da Silva, ambos representantes do anti-
tradicionalismo político nacional (RODRIGUES, 2000).
Entretanto, o turning point do Sistema Internacional com o fim da Guerra Fria, e suas
implicações para a realidade brasileira, instigaram riquíssima produção artística de Caetano
Veloso, oferecendo obras interessantíssimas para a percepção da nova realidade internacional,
bem como a inserção do Brasil em tal contexto, constrangida pelas inovações institucionais
internas permeadas pelos fatores determinantes da nova economia global liberal e pela
hegemonia estadunidense dos anos noventas. Portanto, “a obra de Caetano conseguiu não
apenas manter-se viva nos anos 80 e início dos 90, mas configurar-se como uma das mais
eloquentemente criativas nesse período” (WISNIK, 2005, p. 120).
O álbum Circuladô, de 1991, inaugura um período da produção artística de Caetano
permeado pela crítica aos ideais universalizantes, fundamentalmente aos concernentes à
globalização liberal e ao modelo ocidental de organização social. Por conseguinte, Caetano
empenha-se num movimento de contestação ao recente projeto hegemônico estadunidense,
utilizando-se de sua realidade enquanto brasileiro para despertar a observação crítica dos
fenômenos internacionais.
Situado no início dos anos 90, o disco Circuladô (1991) prolonga e complementa
aspectos de uma importante mudança na obra cancional de Caetano, processada no
álbum Estrangeiro (1989). Mudança que se verifica tanto em termos sonoros, com a
incorporação das guitarras e teclados eletrônicos de Arto Lindsay e Peter Sherer, do
grupo nova-iorquino Ambitious Lovers, quanto de discurso poético, fundando um
ponto de vista novo, marcado por um estranhamento radical em relação ao momento
presente (WISNIK, 2005, p. 15).
A canção Fora da Ordem revela o emblema empunhado por Caetano a partir da
constatação do esforço norte-americano em circunscrever sua atuação mundial nos limites da
hegemonia. Ao apontar que “alguma coisa está fora da Ordem” (VELOSO, 1991), o artista
posiciona-se definitivamente como crítico das abordagens dominantes. Entre o pessimismo
civilizacional e o otimismo liberal, Caetano decididamente está à margem, imerso na teoria
crítica coxiana.
Em rápidas palavras, eu próprio poderia dizer que não vivencio o que me interessa
em minha criação a partir da perspectiva do "século americano" e sim de uma sua
possível superação. Mas isso sobretudo porque no século americano ainda sobra
68
espaço para que se teime em fazer dos Estados Unidos da América o mastim de um
grupo racial e religioso. O livro de Huntington tem algo de profundamente
antiocidental: ele expõe o esforço dos conservadores em transformar a cultura de
Camões, Lutero, Washington e Picasso numa cultura fechada. Simplesmente não dá
(VELOSO, 1997, p. 346-347).
A inquietação de Caetano refere-se à universalização de estruturas históricas
específicas e à homogeneização de forças potenciais dissonantes. As abordagens surgidas no
centro hegemônico endossavam tais fenômenos. Fukuyama (2007) intentava elucidar a
consubstanciação de uma nascente “sociedade global”, derivada do triunfo do capitalismo
globalizado na corrida bipolar das décadas anteriores, num processo que o próprio autor
caracterizou como inevitável.
Huntington (1997), em contrapartida, observou no encerramento da bipolaridade a
polarização civilizacional. “[...] Samuel P. Huntington descreve o retorno das antigas forças
civilizacionais que estiveram recalcadas pela guerra fria, a volta de um mundo mais velho e
muito mais resistente do que a aventura ocidental que culminara com os Estados Unidos
(VELOSO, 1997, p. 344)”.
Caetano empenhava-se na desconstrução dos mitos que permeavam o projeto
hegemônico. Para tanto, utilizava-se da exposição do caso brasileiro, suas conjunturas
específicas e a interação destas com a estrutura histórica presente, a fim de elucidar os limites
que as abordagens dominantes impunham à análise do novo momento histórico.
Sob o marco de tal atuação, torna-se possível analisá-la tendo em conta a
categorização de Miguel Chaia da arte crítica, encontro de arte e política que permite a
contestação da realidade vigente, pois consiste em:
Uma relação básica entre arte e política [que] se estabelece a partir de uma aguçada
crítica do artista, propiciando a um indivíduo ou a um pequeno grupo criar obras
baseadas na sensibilidade social, no gozo da liberdade e nos esforços e pesquisas
para o avanço ou a revolução da linguagem. Estão unidos, neste caso, aspectos
formais e questões sociais (CHAIA, 2007, p. 22).
Seguindo nessa senda, encontramos na situação da arte crítica a consubstanciação da
atuação do indivíduo enquanto artista e intelectual, sob o âmbito da intelectualidade orgânica
(GRAMSCI, 1982), tendo o artista logrado estabelecer um projeto que comporte o desejo de
intervenção na sociedade. Neste sentido:
A arte crítica deixa transparecer os caracteres filosófico, intelectual e analítico da
arte e deve ser remetida diretamente à pessoa do artista, exercendo um papel que o
aproxima do estudioso social e, não raras vezes, do cidadão combativo. [...] De tais
69
considerações nascem obras de reflexão que carregam o desejo de intervir na
sociedade – sendo que estas obras, nas formas tradicionais, conceituais ou tornadas
ações, deixam transparecer ideias articuladas e concepções de mundo dissonantes
com a ordem estabelecida (CHAIA, 2007, p. 23).
Contudo, o fato da obra estar permeada por um projeto coletivo mais amplo não
condiciona suas qualidades estéticas, suscitando, de fato, uma relação tênue e de difícil
equação entre o elemento artístico e o político do projeto perpetrado pelo artista.
Na situação da arte crítica se estabelece uma tênue relação entre arte e política, de
difícil equacionamento, uma vez que o artista independente deve resguardar a sua
obra da pressão da política que tende a ser exercida de forma contínua ou
programada. Neste delicado equilíbrio, a posição política assumida pelo artista não
subjuga a obra que mantém suas qualidades estéticas, conseguindo sensível e
poeticamente transmitir a arguta percepção que o seu autor tem da realidade
(CHAIA, 2007, p. 23).
Nesta seara, compreendemos a atuação de Caetano Veloso em dois escopos: enquanto
artista e enquanto intelectual. Com base nos apontamentos gramscianos, apoiando os esforços
analíticos de Chaia (2007), podemos considerar o projeto artístico-político de Caetano Veloso
como ímpeto de apresentar e desenvolver uma nova cultura e nova intelectualidade, fundada
em concepções do Brasil e da brasilidade, num espaço mundial crescentemente hierarquizado,
contudo, universalizante.
É instigante o fato da obra de Caetano presenciar transformações ao mesmo tempo em
que a estrutura histórica sofre alterações. Torna-se possível – como o objetivo geral deste
trabalho esforça-se em comprovar – aproximar a produção artística de Caetano Veloso com a
evolução das estruturas históricas que sobrevêm à análise das relações internacionais.
Portanto, o turning point do Sistema Internacional ao iniciar-se o novo milênio, com
os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, e a resposta dos Estados Unidos, veio
acompanhado de uma nova transformação na produção de Caetano. Durante a década de 2000
a contribuição artística de Caetano Veloso para a análise dos fenômenos internacionais
remeteu-se a uma crítica da atuação da potência dominante, contrapondo seus atos neste
período com o que seria a atuação de uma potência hegemônica. Para tanto, Caetano
apresenta o sofisma da atuação norte-americana em relação aos direitos humanos, difundindo
tal ideário, ao mesmo tempo em que comete violações em seu projeto de combate ao
terrorismo internacional (A Base de Guantánamo – 2009).
Em suma, Caetano apresentará a transformação dos parâmetros de ação da potência
norte-americana, evidenciando que o caráter consensual fora suprimido em prol da
70
manutenção dos interesses nacionais, confrontados por novas ameaças que, na concepção da
classe dirigente, deveriam ser combatidas com recursos coercitivos, marcando o turning point
do ordenamento hegemônico do pós-Guerra Fria para um novo período, de busca unilateral
pela dominação, lançando-se mão de meios coercitivos de forma preventiva.
3 HEGEMONIA E CONTESTAÇÃO: A APROXIMAÇÃO DE CAETANO
VELOSO À TEORIA CRÍTICA COXIANA
Neste capítulo se efetuará a análise de quatro canções de Caetano Veloso relativas ao
período dos anos 1990 e 2000, evidenciando sua contribuição para a compreensão das
relações internacionais deste período, com enfoque nas temáticas centrais apresentadas pelo
artista nas canções. Elucidar-se-á a crítica de Caetano ao projeto hegemônico estadunidense,
aportando seus desafios e limites que, quando confrontados definitivamente, resultaram na
transformação do modo de atuação dos Estados Unidos, recorrendo aos meios coercitivos para
a manutenção do Sistema Internacional. Portanto, ao realizar tais análises, intenta-se
aproximar as contribuições de Caetano Veloso para a percepção dos fenômenos internacionais
com os apontamentos da teoria crítica coxiana, compreendendo sua lógica hegemônica e
fornecendo alternativas viáveis para a solução das problemáticas humanas centrais que
permeiam tal contexto.
3.1 Alguma coisa está fora da nova ordem mundial
O desfecho do período bipolar das relações internacionais trouxe consigo uma ampla
gama de dilemas e desafios para os analistas e policymakers. Resgatando o aporte de Gramsci
e Cox concebe-se que, sob esse panorama, emergiram perspectivas analíticas fundadas na
necessidade do projeto hegemônico de permear-se de elementos universalizantes, a fim de
obter a aquiescência dos dominados, prescindindo do fator coercitivo, renegado às situações
marginais e desviantes.
Não obstante, observa-se um marcado dissenso entre tais abordagens, fundadas em
concepções diametralmente opostas dos fenômenos centrais para a percepção das relações
72
internacionais no pós-Guerra Fria, bem como nas possíveis implicações que tais fenômenos
aportariam ao desenvolvimento histórico da humanidade. Dentro dos limites inerentes a este
trabalho, focamos em dois grupos de teorias, e seus principais baluartes, a fim de expor e
analisar suas contribuições para o discernimento dos arranjos de poder prevalecentes no
período estudado: o otimismo provindo do triunfo do capitalismo na disputa bipolar, tendo
seu principal expoente na teoria do “fim da história” de Francis Fukuyama, e o pessimismo
com o aprofundamento das tensões reprimidas pela lógica estruturante do período anterior,
exemplificada na teoria do “choque de civilizações” de Samuel Huntington.
Contudo, numa observação geral de ambos os argumentos sobressalta-se a
compactuação quanto a existência de uma civilização ou sociedade ocidental homogênea,
“fechada” (VELOSO, 1997), base para as duas teorias. Enquanto uma concebe a
imprescindibilidade da difusão dos elementos estruturantes desta sociedade como modelo
universal visando a estabilização das relações humanas, a outra atenta à necessidade de
proteção dessa civilização num mundo intercivilizacional crescentemente conflituoso. “As
perspectivas tanto de Fukuyama quanto de Huntington padecem de tentar encaixar o mundo
pós-Guerra Fria em um ou outro padrão. No entanto, não se pode falar em um padrão único
que sirva para todos” (NYE, 2009, p. 314).
E é justamente nesse “fechamento” da cultura ocidental proposta pelas teorias
universalizantes onde encontramos a base do inconformismo de Caetano, expresso em sua
recusa da “nova ordem”. O artista reconhece os fatores estruturantes de tal ocidentalismo,
presente tanto em Huntington (1997), quanto em Fukuyama (2007). “Foi no Ocidente que se
desencadeou um processo de secularização do conhecimento que resultou na ciência de
eficácia universal tal como a conhecemos, e na moral individualista ateia em que se baseiam
os ‘direitos humanos’” (VELOSO, 1997, p. 345).
Portanto, Caetano lança-se ao esforço de contrapor a categorização civilizacional, suas
limitações intrínsecas, propondo uma abordagem paralela às considerações de Huntington
(1997), que levasse em conta o vasto rol de nuances presentes no seio das civilizações
propostas pelo autor. Inquieta-se, do mesmo modo, com o pretenso triunfo do capitalismo
liberal e sua extensão inevitável a toda humanidade. Caetano preocupava-se em caracterizar
“um Ocidente ao ocidente do Ocidente”.
E quando falo, a esse respeito, de "um Ocidente ao ocidente do Ocidente", penso não
num fundamentalismo dessa cultura particular, mas no compromisso com alguns
conseguimentos historicamente ocidentais irreversíveis, Takeshi Umehara (citado
73
por Huntington) escreveu que "o completo fracasso do marxismo e o espetacular
esfacelamento da União Soviética são apenas os precursores do colapso do
liberalismo ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser a
alternativa do marxismo e a ideologia dominante no final da História, o liberalismo
será a próxima pedra de dominó a cair". Essa observação leva Huntington a sugerir a
união estratégica dos Estados Unidos com os países europeus "cristãos" (VELOSO,
1997, p. 345).
Tendo em conta as pretensões explicativas das teorias surgidas no centro hegemônico,
Caetano Veloso lança-se à crítica e ao questionamento da aplicabilidade de tais aportes. Tanto
o otimismo liberal quanto o pessimismo civilizacional comprometiam-se com a
universalização de fenômenos específicos, referentes aos processos mais recentes do
desenvolvimento histórico. De tal forma, se efetivamente estávamos adentrando em uma
“nova ordem mundial”, onde estaria o Brasil nesta ordem?
No disco Circuladô, o que parece estar deslocado é novamente o lugar: o Brasil,
visto como um estrangeiro diante do quadro restritivo de uma “nova ordem
mundial”. O que não quer dizer que o mal-estar ante o neoconservadorismo dos
novos tempos tenha sido apaziguado. Ao contrário, o sujeito indeterminado
(“alguma coisa”) que na canção “Fora da Ordem” aparece como estando deslocado –
em que adivinhamos a referência ao Brasil –, nada mais é do que uma extensão
coletiva (cultural, geográfica) [...], representa um aprofundamento de sua fratura,
mirando a falta de lugar definido para um país como o Brasil no cenário de uma
globalização excludente, que o presidente americano George Bush (pai) havia
chamado de “nova ordem mundial” (WISNIK, 2005, p. 20).
Caetano empenhava-se na desconstrução dos mitos que permeavam o projeto
hegemônico. Para tanto, utilizava-se da exposição do caso brasileiro, suas conjunturas
específicas e a interação destas com a estrutura histórica presente, a fim de elucidar os limites
que as abordagens dominantes impunham à análise do novo momento histórico. “Eu sei o que
é bom/ Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de diversas
harmonias bonitas possíveis sem juízo final” (VELOSO, 1991).
[...] em meados dos anos 80 dá-se uma importante guinada na obra de Caetano em
direção a uma nova focalização temática do Brasil – tanto como afirmação de um
potencial singular-construtivo contido na sua riqueza cultural quanto como acusação
da miséria de sua realidade social urbana. Há, portanto, um retensionamento da
relação de suas canções com o país [...] (WISNIK, 2005, p. 111).
Ao apreciar a estrutura histórica vivenciada no Brasil do início dos anos noventas,
Caetano percebe a persistência de elementos que permearam a vida social brasileira no
período anterior. A manutenção da criminalidade nos grandes complexos urbanos nacionais,
fundada no estabelecimento e fortalecimento do setor narcotraficante, as mazelas econômicas
enfrentadas pelo país desde a eclosão das complicações inflacionárias de meados da década de
1980, e intensificadas na nova década, faziam com que o artista estivesse convicto de que a
74
pretensa nova ordem mundial não era observada na realidade doméstica. Neste sentido, atesta
na canção Fora da Ordem o seguinte panorama:
Vapor Barato, um mero serviçal do narcotráfico,/ Foi encontrado na ruína de uma
escola em construção/ Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína/ Tudo é
menino e menina no olho da rua/ O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua/ Nada
continua (VELOSO, 1991).
Analisando este trecho, a frase “aqui tudo parece construção e já é ruína” sobressai-se
como instigante para a compreensão do argumento de Caetano. Define certa desilusão com o
Brasil, enquanto projeto nacional, escondendo por detrás de si uma revigoradora esperança de
que a construção seja retomada, pois ainda há a necessidade de se construir. O dilema
proposto entre o ceticismo quanto às possibilidades de efetivação do projeto Brasil e sua
antítese, a confiança na possibilidade de êxito em tal empreendimento, surge como elemento
motriz dos exames efetuados pelo artista ao mencionar que:
Uma das vantagens da nossa abominável situação é podermos pensar que tudo ainda
está por fazer. Dito assim, isso parece um lugar-comum estéril. E, pior, pode trazer a
seguinte pergunta como complemento: e se justamente o Brasil tivesse sido uma
grande oportunidade que se perdeu irremediavelmente, deixando-nos apenas com a
degradação social que é demasiadamente complexa para servir de papel em branco
ou ponto de partida, ou seja, se estivermos diante da mera entropia, e não do caos
inicial de onde se pode extrair uma ordem bela (VELOSO, 2005, p. 61-62)?
O ímpeto de Caetano foca-se na desconstrução das convenções teórico-científicas
surgidas com o fim da Guerra Fria no seio da potência hegemônica, e suas pretensões de
universalização. Mais especificamente, visa elucidar a situação dissonante do Brasil neste
cenário, para além dos anseios hegemônicos, evidenciando as debilidades estruturais
historicamente presentes na realidade nacional, persistentes na nova conjuntura mundial.
[...] o que aparece tematizado na canção não é exatamente a exclusão que os países
ricos, alinhados a essa “nova ordem”, impõem àqueles considerados
economicamente pobres, como o Brasil, mas a exclusão congênita, intestina, que se
auto-alimenta da própria miséria do país: assassinatos, tráfico de drogas, crianças
morando nas calçadas e brincando com armas, montanhas de lixo nas ruas, esgotos a
céu aberto; um estado precário de eterna construção que não chega a se completar,
transformando-se logo em ruína (WISNIK, 2005, p. 20).
De tal forma, era inconcebível ao artista a inclusão do Brasil nessa ordem benéfica e
progressista, que levaria toda a humanidade - de acordo com as capacidades de cada parcela –
rumo à liberalização (FUKUYAMA, 2007). O Brasil era, nesta acepção, um ator marginal,
envolvido nessa estrutura histórica, todavia, destoando de suas linhas-mestras.
75
Terrível e luminoso, o Brasil não está nem incluído na “nova ordem”, podendo
gozar de seus privilégios, nem comprometido ideologicamente com suas causas. E é
justamente tal ambiguidade que vem determinar a dificuldade de se encontrar um
lugar certo para o Brasil nessa “nova ordem” (WISNIK, 2005, p. 21).
Conseguintemente, torna-se possível aproximarmos as inquietações e inconformismos
de Caetano Veloso, presentes na canção Fora da Ordem, com o empreendimento
contestatório da teoria crítica coxiana. As forças potenciais, os relacionamentos entre os
diversos atores relevantes na análise das relações internacionais do novo período, delimitando
a estrutura mundial de poder, eram todos fatores amplamente dispersivos, desbordando-se das
lógicas de “fechamento” em categorias rígidas. É neste sentido que Caetano provoca tais
abordagens, mencionando a dinâmica dos relacionamentos sociais contemporâneos, e a
dificuldade de enquadrá-los em categorias rígidas: “Te encontro em Sampa de onde mal se vê
quem sobe/ ou desce a rampa/ Alguma coisa em nossa transa é quase luz forte demais/ Parece
pôr tudo à prova, parece fogo, parece, parece paz/ Parece paz” (VELOSO, 1991).
Nietzsche havia analisado as disputas relativas à ciência e à cultura, com as pretensões
universalistas e racionalistas da ciência que, por vezes, intentavam captar a essência do mais
íntimo do ser humano por meio de seus métodos, logrando tão somente apresentar sua
aparência e, de tal modo, empenhar-se em caracterizá-la como a essência de seu objeto de
estudo.
Enquanto o infortúnio que dormita no seio da cultura teórica começa paulatinamente
a angustiar o homem moderno, e ele, inquieto, recorre, tirando-os de suas
experiências, a certos meios a fim de desviar o perigo, sem que ele mesmo creia
nesses meios; isto é, enquanto esse homem começa a pressentir as suas próprias
consequências, grandes naturezas, com disposições universais, souberam utilizar
com incrível sensatez o instrumento da própria ciência, a fim de expor os limites e
condicionamentos do conhecer em geral e, com isso, negar definitivamente a
pretensão da ciência à validade universal e a metas universais: prova mediante a
qual, pela primeira vez, foi reconhecida como tal aquela ideia ilusória que, pela mão
da causalidade, se arroga o poder de sondar o ser mais íntimo das coisas
(NIETZSCHE, 2001, p. 110).
Percebemos, assim, a relevância do papel desempenhado pela difusão da obra de
Caetano Veloso ao debate do novo ordenamento mundial emergido na década de 1990. A
clareza, precisão e sensibilidade com que o artista logra apresentar sua inquietação com as
abordagens hegemônicas do novo período das relações internacionais apenas endossam e
auxiliam o empreendimento da teoria crítica coxiana, determinada à contestação do
positivismo e do universalismo dessas abordagens.
76
Enquanto Fukuyama (2007) buscava elucidar a formação de um Sistema Internacional
benéfico, tendente à acomodação das tensões conflituosas por sua absorção ao projeto da
globalização liberal, Huntington (1997) temia o acirramento da conflituosidade causado pela
necessidade de coletivização do ser humano, tendo na civilização o grupo social mais
propenso a englobar os interesses expansivos das distintas agrupações humanas, mantendo
sua vinculação à coletividade por meio da identificação de valores, cultural e religiosa. Por
sua parte, a teoria crítica coxiana, Hobsbawm (2005 e 2007) e Caetano Veloso questionavam
aqueles modelos analíticos, por sua aproximação decisiva com a conservação dos novos
arranjos de poder.
Os fenômenos que eram tidos pelas novas abordagens do centro hegemônico como
balizadores das relações internacionais no novo período histórico já haviam sido considerados
por outras matrizes analíticas. O que se observou, de fato, foi a manutenção das problemáticas
que instigavam os estudos das teorias contestatórias nas décadas anteriores, contudo,
favorecidas agora pelo desbordamento de tais complicações no cenário internacional. Sob tais
apreciações, poderíamos considerar que a ordem mundial proposta por Fukuyama ou por
Huntington seja o próprio fator que “está fora da ordem”. A observação de tais eventos fez
com que Nye (2009, p. 307) lança-se o veredicto: “Com o fim da Guerra Fria, houve uma boa
quantidade de conversações sobre as perspectivas de ‘uma nova ordem mundial’. Como
descobrimos depois, estávamos longe de entender com clareza seu significado”.
3.2 A função das mídias na difusão do projeto hegemônico
Todavia, o discurso do presidente estadunidense George Herbert Walker Bush (1989-
1993) – endossado pela teoria do “fim da história” – de que emergia uma nova ordem
mundial, difundia-se amplamente pelos meios de comunicação, que, como apontado por
Gramsci e Cox, reservam papel de suma importância ao projeto hegemônico. Tal discurso
fora avalizado pelo êxito da segurança coletiva no episódio da Guerra do Golfo, no afã de
77
demonstrar que os desafios à segurança internacional também seriam solucionados de modo
conjunto, fomentando o estabelecimento e manutenção da ordem hegemônica estadunidense.
A invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990 foi a primeira crise pós-Guerra Fria. Uma
vez que a União Soviética e a China não exerceram seus vetos, a segurança coletiva
da ONU foi usada pela primeira vez em quarenta anos. Houve três razões para essa
notável ressurreição. Primeiro, o Iraque cometeu uma agressão extraordinariamente
bem definida, muito semelhante à da década de 1930, que lembrou aos líderes o
fracasso da segurança coletiva. A segunda razão foi o sentimento de que, se a
segurança coletiva da ONU falhasse nesse caso tão bem definido, então ela não seria
um princípio para a ordem num mundo pós-Guerra Fria. Terceiro, os pequenos
estados das Nações Unidas apoiavam a ação porque a maioria deles era frágil e tinha
fronteiras pós-coloniais questionáveis (NYE, 2009, p. 216).
A receptividade que tal discurso teve nos países subordinados, especialmente no Brasil
sob o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), entusiasta do rompimento com o
legado do período anterior, foi percebida argutamente por Caetano Veloso na canção Santa
Clara, padroeira da televisão14 (VELOSO, 1991), oferecendo outro elemento de aproximação
de sua contribuição artística com a teoria crítica coxiana.
A cobertura midiática de eventos internacionais, notadamente após a participação
norte-americana na Guerra do Vietnã (1965-1973), o crescente interesse pelos assuntos
internacionais e a difusão massiva das mídias, especialmente da televisão, tornaram o papel da
mídia um elemento crucial para a análise das relações internacionais contemporâneas.
O papel central da grande imprensa na política moderna é flagrante. Graças a ela, a
opinião pública é mais poderosa do que em qualquer período anterior, o que explica
a ascensão ininterrupta das profissões que se especializam em influenciá-la. Menos
compreendido é o vínculo crucial que existe entre a política de imprensa e a ação
direta, ou seja, a ação vinda de baixo e que influencia diretamente os principais
tomadores de decisões, ignorando os níveis intermediários da representação
governamental oficial. Isso é particularmente óbvio quando tais níveis
intermediários não existem, isto é, nos assuntos transnacionais (HOBSBAWM,
2007, p. 108).
Neste sentido, o fim da Guerra Fria, o consenso neoliberal e os genéricos discursos da
globalização, emergem como fenômenos sobremaneira relevantes para analisarmos o papel da
mídia na difusão do projeto hegemônico estadunidense.
Caetano Veloso, partindo de uma observação da realidade brasileira, aponta para os
desafios postos à difusão dos meios de comunicação e seus efeitos na sociedade.
Primeiramente, deve-se considerar que Caetano estava presenciando o processo de
14 Segundo registros da época, um ano antes de sua morte em 1253, Santa Clara (Clara de Assis) assistiu a
Celebração da Eucaristia sem precisar sair do seu leito. É por tal evento que é aclamada contemporaneamente
como protetora da televisão.
78
democratização, iniciado com o governo de José Sarney (1985-1990), e que acabava de
presenciar a primeira eleição direta para a presidência após o regime militar, realizada em
1989. Neste contexto, a liberdade de expressão afirmava-se paulatinamente na realidade
brasileira, ao mesmo tempo em que recebia amplas pressões dos centros de poder mundial
para a consideração de fenômenos e eventos essenciais para a humanidade no novo cenário.
Consequentemente, Caetano alerta para uma dupla necessidade relativa ao que tange o papel
das mídias nesse cenário.
[Por um lado,] Que o menino de olho esperto saiba ver tudo/ Entender certo o sinal
certo se perto do encoberto/ Falar certo desse perto e do distante porto aberto [...].
[Por outro,] Que a televisão não seja o inferno, interno, ermo/ Um ver no excesso o
eterno quase nada (quase nada) (VELOSO, 1991).
O sujeito “menino” utilizado por Caetano pode ser compreendido em outro contexto,
ao considerarmos a estrutura histórica que envolve o momento da produção do artista. No
início dos anos 1990, a democratização brasileira possibilitava a participação universal,
independente de classe, etnia, gênero, religião, escolaridade e, de tal modo, atores sociais que
até então eram “infantilizados” pelos processos políticos nacionais, passavam a atuar,
recebendo direito de decisão no processo eleitoral. Sendo assim, a categoria “menino” pode
ser expandida para todos aqueles atores marginalizados nos períodos anteriores.
Se, de uma parte, os “meninos” deveriam ter consciência das informações que
recebiam, e saberem discernir os fatos dos artifícios relativos às tendências do meio de
comunicação que estes consumiam, de outra parte, Caetano alerta para a premência de que a
televisão não se torne um “inferno, interno, ermo” e, principalmente, “quase nada”
(VELOSO, 1991). Neste trecho, Caetano foca no papel social da mídia, que não deve ater-se
ao seu ambiente interno, e sim atuar enquanto ator social com potencial de influenciar nos
distintos processos humanos.
É aqui que voltamos à aproximação de Caetano Veloso com a teoria crítica de Robert
Cox. Segundo Cox (1986), dentre as ideias relevantes para o estabelecimento e manutenção
de uma estrutura histórica, as imagens coletivas recebem função essencial. Tais imagens
coletivas referem-se ao modo como os diferentes grupos percebem a ordem social vigente,
resultando em visões distintas, relativas às concepções de justiça e bem público, como
exemplificado pelo autor.
As imagens coletivas possuem um caráter dual. Da coalizão entre imagens coletivas
rivais é que surgem possibilidades de formas distintas de desenvolvimento para a estrutura
79
histórica (COX, 1986). É dizer, podem servir tanto aos projetos alternativos quanto aos
hegemônicos, residindo aqui sua importância crucial. E, no mundo do pós-Guerra Fria,
haviam elementos mais eficientes para a difusão de imagens coletivas que os meios de
comunicação?
Estamos todos familiarizados com o chamado efeito CNN: o sentimento
politicamente poderoso, mas totalmente desestruturado, de que “algo precisa ser
feito” em função das imagens televisivas de terríveis atrocidades cometidas – no
Curdistão, no Timor ou onde quer que seja –, cuja força é tão grande que gera em
resposta ações governamentais mais ou menos improvisadas. Mais recentemente, as
demonstrações em Seattle e em Praga mostraram a efetividade que têm as ações
diretas bem enfocadas, realizadas por pequenos grupos atentos às câmeras, mesmo
sobre organizações construídas para serem imunes aos processos políticos
democráticos, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Se hoje
aparecem editoriais como “Líderes financeiros do mundo escutam advertências”,
isso se deve, pelo menos em parte, aos fotogênicos combates havidos entre grupos
violentos de manifestantes com balaclavas negras e policiais antidistúrbio armados
com capacetes e escudos, como nas batalhas medievais, que apareceram na maior
parte das manchetes e destaques da imprensa (HOBSBAWM, 2007, p. 108-109).
Com a universalização do projeto hegemônico estadunidense, a divulgação dos
ideários da globalização liberal, da democracia liberal e dos direitos humanos passaram a
pautar parcela considerável das informações transmitidas. Por outro lado, com a imersão
definitiva da sociedade brasileira na indústria cultural (ADORNO, 2009), após a reabertura
democrática, os meios de comunicação, definitivamente a televisão, depararam-se com a linha
divisória da informação e do entretenimento, havendo que adequarem-se às necessidades do
mercado, não obstante, correndo o risco de frivolidade. Por conseguinte, Caetano sugere que:
Possa o mundo ser como aquela ialorixá/ A ialorixá que reconhece o orixá no
anúncio/ Puxa o canto pra o orixá que vê no anúncio/ No caubói, no samurai, no
moço nu, na moça nua/ No animal, na cor, na pedra, vê na lua, vê na lua/ Tantos
níveis de sinais que lê/ E segue inteira (VELOSO, 1991).
O foco do aporte de Caetano reside na resistência da consciência individual e coletiva
frente às investidas da publicidade, em seus anseios de fetichizar elementos da realidade
social. O ator social deve discernir entre sua realidade efetiva, a estrutura histórica em que
está inserido, e as imagens transmitidas pela mídia, pertinentes ao escopo comercialista que
ganhou novo fôlego com sua compactuação com os meios de comunicação de massa.
Quando o ator social compreende esta lógica, pode então utilizar-se dos meios de
comunicação como ferramenta para a divulgação de seus projetos. O potencial de penetração
da televisão na vida social a transforma em um instrumento eficiente aos movimentos
contestatórios, restando a estes a adaptação às oportunidades postas. É, então, necessário:
80
“Saber calar, saber conduzir a oração/ Possa o vídeo ser a cobra de outro éden/ Porque a
queda é uma conquista/ E as miríades de imagens suicídio/ Possa o vídeo ser o lago onde
Narciso/ Seja um deus que saberá também/ Ressuscitar” (VELOSO, 1991).
Neste âmbito, Eric Hobsbawm registra o papel da mídia como elemento fomentador
da agitação social, contudo, a disposição das massas em manifestar-se seguia sendo o fator
essencial para que tais eventos ocorressem.
O que quer que tenha estimulado as populações até então inertes a entrar em ação –
comunicações modernas como TV e gravadores de fita tornavam difícil isolar
mesmo as mais isoladas das questões mundiais –, era a disposição das massas de
manifestar-se que decidia as questões (HOBSBAWM, 2005, p. 444).
A opção de Caetano Veloso por tratar da televisão em sua contribuição para a análise
das implicações políticas dos meios de comunicação não reside apenas em sua declarada
paixão por esta forma de mídia específica (VELOSO, 1997) – explicitada no trecho “Que a
televisão não seja sempre vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada
pelo que ela é/ De poesia” (VELOSO, 1991) –, senão que na potencialidade inerente a um dos
aparelhos mais influentes nas relações sociais da segunda metade do século XX.
[...] embora um aparelho de TV continuasse sendo muito mais caro e fisicamente
desajeitado que um de rádio, logo se tornou quase universal e constantemente
acessível mesmo para os pobres de alguns países atrasados, sempre que existia uma
infra-estrutura urbana. Na década de 1980, cerca de 80% de um país como o Brasil
tinha acesso à televisão. Isso é mais surpreendente que o fato de nos EUA o novo
veículo ter substituído tanto o rádio quanto o cinema como a forma padrão de
diversão popular na década de 1950, e na próspera Grã-Bretanha na década de 1960.
Sua demanda de massa era esmagadora (HOBSBAWM, 2005, p. 484).
Outra implicação da atuação da mídia nos processos políticos é apresentada e debatida
por Eric Hobsbawm, evidenciando a função política dos meios de comunicação sob o marco
dos regimes democráticos, aportando elementos substanciais para a análise de um dos pilares
do projeto hegemônico estadunidense, qual seja, a universalização da democracia liberal. Sob
este âmbito, o historiador inglês evidencia que:
[...] a tendência cada vez mais sistêmica de governos contornarem o processo
eleitoral ampliou a função política dos meios de comunicação, que agora chegavam
a todas as casas, proporcionando de longe o mais poderoso meio de comunicação da
esfera pública para os homens, mulheres e crianças privados. Sua capacidade de
descobrir e publicar o que as autoridades desejavam manter na sombra, e de dar
expressão a sentimentos públicos que não eram, nem podiam ser, articulados pelos
mecanismos formais da democracia, transformavam esses meios de comunicação
nos grandes atores no cenário público. Os políticos os usavam e temiam
(HOBSBAWM, 2005, p. 559).
81
A necessidade que os governantes passaram a ter de manterem vínculos com a mídia,
cautelosamente, imbuiu-a de um poder singular, que se acrescia àquele advindo da própria
potencialidade intrínseca aos meios de comunicação. Ademais, como analisa Hobsbawm, com
todo o progresso da tecnologia de informação, os meios de comunicação sobressaíram, e
muito, aos possíveis constrangimentos do aparato repressor estatal no pós-Guerra Fria.
O progresso técnico tornava-os cada vez mais difíceis de controlar, mesmo em
países altamente autoritários. O declínio do poder do Estado deixava-os mais difíceis
de monopolizar nos Estados não autoritários. Quando o século acabava, tornou-se
evidente que os meios de comunicação eram um componente mais importante do
processo político que os partidos e sistemas eleitorais, e provavelmente assim
continuariam – a menos que os políticos dessem uma forte guinada para longe da
democracia. Contudo, embora fossem enormemente poderosos como um contrapeso
aos segredos do governo, não eram de modo algum um meio para um governo
democrático (HOBSBAWM, 2005, p. 559).
Conseguintemente, emerge a necessidade de debatermos outra categoria central do
ordenamento hegemônico pós-Guerra Fria, e que fora perspicazmente captada e analisada por
Caetano Veloso, a democracia.
3.3 O caráter multifacetado da disseminação da democracia: perspectivas domésticas e
internacionais
Como abordado anteriormente, o tema da democracia esteve presente na obra de
Caetano marcadamente durante a década de 1980, quando o Brasil finalizava seu processo de
transição democrática, com o fim do regime militar, as eleições indiretas no Colégio Eleitoral
em 1984, o governo de José Sarney, a promulgação da Constituição de 1988 e as eleições
nacionais diretas de 1989. Entretanto, o êxito na transição pacífica para a democracia
contrapunha-se à manutenção das assimetrias que corroíam a sociedade brasileira. Este
fenômeno recebeu consideração especial por Caetano em seus escritos nas décadas de 1990 e
2000, enquanto em sua obra cancional tal preocupação expressar-se-á na canção O heroi
(2006), foco desta análise. Deste modo, Caetano Veloso se destacará pela:
82
[...] capacidade de desafiar a sobrevivência de práticas arbitrárias e retrógadas no
seio da “Nova República”, como o obscurantismo moralista da censura imposta pelo
presidente José Sarney ao filme Je Vous Salue, Marie, de Godard, apoiada por
Roberto Carlos, o individualismo boçal dos motoristas que desrespeitam as leis de
trânsito e “avançam os sinais vermelhos”, e o racismo generalizado no apartheid
social brasileiro, indicando uma permanência velada da escravidão. Práticas que
indicam um mesmo diagnóstico severo: “Ninguém é cidadão” (“Haiti”). Portanto,
retirado o álibi da opressão política e ideológica, era necessário mostrar, naquele
momento, que não tínhamos mais o direito de reproduzir visões colonizadas de nós
mesmos (WISNIK, 2005, p. 114-115).
A democracia representa a faceta política do projeto hegemônico, ademais, exprime o
desenvolvimento histórico desta que é uma das instituições fundamentais da sociedade
estadunidense. Portanto, o desfecho da bipolaridade trouxe consigo a intensificação da crença
na democracia por parte dos governantes norte-americanos. “O sucessor democrata de Bush, o
presidente Bill Clinton, definiu os objetivos americanos em termos muito parecidos,
preceituando sobre o tema de ‘expandir a democracia’” (KISSINGER, 1999, p. 881).
Destarte, faz-se necessário expormos os riscos advindos da difusão da ideologia da
democracia liberal, enquanto integrante do projeto universalizante da potência hegemônica,
aos países receptores das mudanças preconizadas pelos centros de poder mundial.
Primordialmente, há de se considerar os desafios advindos dos demais atores – internos e
internacionais – aos Estados-nações, impondo-lhes constrangimentos que delimitam a eficácia
das estruturas políticas.
Do lado prático, os governos dos Estados-nações, ou dos Estados territoriais
modernos – quaisquer governos –, apoiam-se em três presunções: primeiro, que eles
têm mais poder do que qualquer outra unidade que opere em seus territórios;
segundo, que os habitantes dos seus territórios aceitam mais ou menos de bom grado
sua autoridade; e terceiro, que eles podem proporcionar aos habitantes serviços que
de outra maneira não poderiam ser prestados com efetividade, como é o caso da
manutenção da lei e da ordem. Nos últimos trinta ou quarenta anos, essas presunções
têm perdido cada vez mais a validade (HOBSBAWM, 2007, p. 104).
Tais implicações relacionam-se à capacidade do Estado para manter o monopólio do
uso da força dentro de seu território, com instituições que lhe permitam a direção da
sociedade sobre as bases da lei e da ordem. Portanto, ao apreciarmos esses fenômenos,
devemos ter em mente que ao referimo-nos às capacidades do Estado, estamos considerando
“[...] a extensão das intervenções dos agentes estatais em recursos não estatais, as atividades e
as conexões interpessoais alteram as distribuições existentes desses recursos, atividades e
conexões interpessoais, bem como as relações entre as distribuições” (TILLY, 2013, p. 174).
Tilly (2013) empenha-se em descrever e explicar as variações e alterações que
ocorrem na extensão com que o Estado comporta-se ao deparar-se com as demandas
83
expressas pelos seus cidadãos. Por conseguinte, no afã de esclarecer tais pretensões, o autor
divide sua investigação em quatro partes, que são amplamente úteis para nossa compreensão e
investigação do que seja a democracia, contrapondo esta concepção com a fornecida pela
ideologia hegemônica da democracia liberal. As quatro partes trabalhadas por Charles Tilly
são:
[...] o quão amplas são as demandas expressas pelos cidadãos, como diferentes
grupos de cidadãos experimentam a tradução de suas demandas em termos do
comportamento do Estado, em que extensão a própria expressão das demandas
recebe proteção política do Estado, e quanto o processo de tradução compromete
ambos os lados, cidadãos e Estado. Estes quatro componentes levam diretamente à
nossa definição operacional: um regime é democrático na medida em que as relações
políticas entre o Estado e seus cidadãos engendram consultas amplas, iguais,
protegidas e mutuamente vinculantes (TILLY, 2013, p. 73).
Paulatinamente, definimos as linhas analíticas que permeiam um conceito de
democracia na contemporaneidade. Assim, podemos apontar que “um regime democrático
inclui eleições que são limpas e institucionalizadas, assim como uma aposta
institucionalizada, inclusiva e universalista” (O’DONNELL, 2013, p. 29). Deste modo, é na
aposta institucionalizada democrática que reside um dos fatores imprescindíveis às pretensões
de um projeto democrático. Enquanto os atores políticos aceitarem que esta é a forma mais
eficiente, ou menos custosa, de atingirem seus objetivos, aceitarão participarem da
competição eleitoral. Quando não o percebem de tal modo, valem-se de outros meios,
normalmente coercitivos e violentos, a fim de substituírem a ordem vigente.
Proeminente figura da política externa norte-americana, Henry Kissinger alerta, do
mesmo modo, para a observação das assimetrias existentes entre as sociedades dos países
dominados e a estadunidense, as capacidades materiais dos Estados, bem como a
conformação das oposições e sua atuação no jogo político-institucional. Por conseguinte,
aponta que:
Refrear o poder do governo central tem sido uma das principais preocupações dos
teoristas políticos ocidentais, enquanto, na maioria das outras sociedades, a teoria
política tem tentado sustentar a autoridade do estado. [...] Na maioria das outras
partes do mundo, o estado tem precedido a nação; ele foi, e frequentemente continua
sendo, o elemento principal na sua formação. Os partidos políticos, onde existem,
refletem identidades fixas e geralmente locais; minorias e maiorias tendem a ser
permanentes. Em tais sociedades, o processo político trata de dominação, e não de
alternância nos cargos, que ocorre, quando ocorre, através de golpes, em vez de
procedimentos constitucionais. O conceito da oposição leal – essência da
democracia moderna – raramente se firma. O mais normal é a oposição ser vista
como ameaça à coesão nacional, igualada à traição, e impiedosamente reprimida
(KISSINGER, 1999, p. 889).
84
Logo, ao efetivarem a aposta democrática, os atores políticos pressupõem, e
necessitam de, algumas liberdades e direitos que lhes sejam garantidos a fim de apresentarem,
discutirem e efetivarem seus projetos para a sociedade. Desse modo:
A cidadania política consiste da atribuição universal (embora territorialmente
delimitada) dos direitos e liberdades vinculados a uma aposta democrática inclusiva,
ou seja, tanto de algumas liberdades circundantes quanto dos direitos à participação
em eleições limpas e institucionalizadas, incluindo votar e ser eleito(a)
(O’DONNELL, 2013, p. 34).
Consequentemente, ao analisar os processos de democratização e desdemocratização,
Charles Tilly apresenta três caminhos que os Estados podem percorrer ao buscarem
incrementar sua capacidade e avançarem na democratização. Primeiro, aparecem os Estados
fortes, nos quais a capacidade do Estado aumenta muito antes da evolução da democratização.
Segundo, apresentam-se os Estados médios, onde ocorre a concatenação do aumento na
capacidade do Estado com o processo de democratização, e, portanto, qualquer alteração no
movimento da capacidade do Estado tem efeito similar na democratização. E terceiro, o
caminho dos Estados fracos, possuidores de poucos recursos, refletindo em baixa capacidade
do Estado, que, por conseguinte, dificulta o processo de democratização, especialmente na
contenção de agentes complicadores, tornando a desdemocratização muito mais frequente – e
fácil de ocorrer – que nos outros dois caminhos (TILLY, 2013).
Não obstante, a retórica universalizante da democracia liberal ignora essas nuances da
construção democrática, referentes às assimetrias dos Estados quanto às suas capacidades
materiais essenciais para o estabelecimento e a manutenção do regime democrático.
Ao considerar a realidade brasileira, Caetano Veloso fornece uma contribuição
reveladora da manutenção das assimetrias sócio-econômicas, mesmo após a democratização,
fazendo com que sejam necessários esforços sobremaneira custosos para a manutenção do
regime democrático. Numa apresentação pessoal do “heroi” da canção, este relata sua
trajetória de vida do seguinte modo: “Nasci num lugar que virou favela/ cresci num lugar que
já era/ mas cresci a vera/ fiquei gigante, valente, inteligente/ por um triz não sou bandido/
sempre quis tudo o que/ desmente esse país/ encardido” (VELOSO, 2006).
Neste trecho, o artista explicita que o sujeito da canção teve sua trajetória pessoal
permeada pela desigualdade social, que lhe constrangeu as opções e escolhas na construção de
sua identidade e de sua carreira. Ao rejeitar tudo o que considera imundo, e que está
impregnado em sua sociedade, o “heroi” constata a existência de tratamentos diferenciados
85
por parte do Estado. Esse fenômeno é profundamente corrosivo para o regime democrático,
por ser fundamental a isonomia e a igualdade de tratamento de todos os cidadãos pelos
agentes estatais. “Na democracia, as instituições do estado têm o dever (correlativo aos
direitos da cidadania política e civil) de tratar a todos com a equidade, consideração e respeito
devidos a um agente” (O’DONNELL, 2013, p. 55). Essas disparidades entre os indivíduos são
fatores que minam o processo de democratização, restringindo-lhe as possibilidades de êxito.
A desigualdade social impede a democratização e mina a democracia sob duas
condições: primeiro, a cristalização de diferenças contínuas (tais como aquelas que
distinguem você de seu vizinho) e diferenças categóricas cotidianas em virtude de
fatores como raça, gênero, classe, etnia, religião e outros tipos de agrupamentos
similares; segundo, a tradução direta dessas diferenças categóricas em diferença nos
processos políticos públicos (TILLY, 2013, p. 123).
As diferenças categóricas são aprofundadas por Caetano na canção, quando o “heroi”
define seu projeto individual, expressando as consequências que este teria para a coletividade
em que ele está inserido. Neste sentido, ele menciona: “descobri cedo que o caminho/ não era
subir num pódio mundial/ e virar um rico olímpico e sozinho/ mas fomentar aqui o ódio
racial/ a separação nítida entre as raças” (VELOSO, 2006).
O argumento apresentado por Caetano é poderosamente fomentador de reflexões
acerca das implicações do reconhecimento/não reconhecimento e da igualdade/subordinação
para os processos políticos relativos ao regime democrático. Sob tal âmbito, Nancy Fraser
ofereceu uma análise reveladora dos efeitos de se considerar o reconhecimento – e, portanto, a
igualdade – como uma questão de status.
Entender o reconhecimento como uma questão de status significa examinar os
padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus efeitos sobre a
posição relativa dos atores sociais. Se e quando tais padrões constituem os atores
como parceiros, capazes de participar como iguais, com os outros membros, na vida
social, aí nós podemos falar de reconhecimento recíproco e igualdade de status.
Quando, ao contrário, os padrões institucionalizados de valoração cultural
constituem alguns atores como inferiores, excluídos, completamente “os outros” ou
simplesmente invisíveis, ou seja, como menos do que parceiros integrais na
interação social, então nós podemos falar de não reconhecimento e subordinação de
status (FRASER, 2007, p. 108).
Portanto, o “heroi” empreende uma busca por reconhecimento, em novos padrões de
identidade, que rompam com os vigentes em sua realidade social. Neste sentido ele diz que:
“já fui mulato, eu sou uma legião de ex mulatos/ quero ser negro 100%, americano,/
sul-africano, tudo menos o santo/ que a brisa do Brasil briga e balança” (VELOSO, 2006).
Todavia, seu empreendimento no intento de ser reconhecido pela coletividade está fundado no
reconhecimento da diferença, e não na igualdade. Ele quer ser reconhecido como um
86
indivíduo distinto do agrupamento criado pela sociedade, que o mesmo define como “santo”.
Então, depara-se com as dificuldades advindas da reivindicação pelo reconhecimento da
diferença.
Normas de justiça são pensadas como universalmente vinculatórias; elas sustentam-
se independentemente do compromisso dos atores com valores específicos.
Reivindicações pelo reconhecimento da diferença, ao contrário, são mais restritas.
Por envolverem avaliações qualitativas acerca do valor relativo de práticas culturais,
características e identidades variadas, elas dependem de horizontes de valor
historicamente específicos que não podem ser universalizados (FRASER, 2007, p.
104).
Além disso, regressando à distribuição dos recursos materiais, os indivíduos
marginalizados devem ser integrados na sociedade democrática enquanto cidadãos, de modo
que a redistribuição dos recursos materiais possibilite sua independência e o porte de voz
participativa. Esta seria uma condição objetiva da paridade participativa. Por outro lado, há
uma segunda condição, denominada de condição intersubjetiva, requerendo dos padrões
institucionalizados de valoração cultural a expressão de igualdade no respeito a todos os seus
participantes, assegurando igualdade de oportunidade para alcançar a estima social. Assim,
“são excluídos os padrões institucionalizados de valores que negam a algumas pessoas a
condição de parceiros integrais [...], seja sobrecarregando-os com uma excessiva atribuição de
‘diferença’, seja falhando em reconhecer o que lhes é distintivo” (FRASER, 2007, p. 119-
120).
Deparando-se com a dualidade do padrão de socialização que havia recebido ao longo
de sua vida, fundado em preceitos universais dentro da sociedade em que participa, e do novo
padrão que buscava implantar, o “heroi” percebe o choque de valores, crenças e ideais
inerentes ao seu intento de universalização do reconhecimento através da diferença. Neste
momento, ele realiza a auto-avaliação de seu projeto, concluindo que: “no entanto, durante a
dança/ depois do fim do medo e da esperança/ depois de arrebanhar o marginal, a puta/ o
evangélico e o policial/ vi que o meu desenho de mim/ é tal e qual/ o personagem pra quem eu
cria que sempre/ olharia/ com desdém total” (VELOSO, 2006).
Essa alteração na percepção da realidade, ocorrida com o sujeito, bem como de sua
concepção do projeto que havia perpetrado, vincula-se com um fato inerente à própria
condição humana, podendo ser potencializada ou mitigada pela ação da estrutura histórica.
Esse fato é consequência de restrições institucionais e econômicas, mas também da
diversidade social que advêm da agência humana e, portanto, das diversas
perspectivas, estilos de vida, ideologias e interesses que os agentes representam, seja
87
(estaticamente) num momento determinado, seja quando essas características se
desenvolvem e se modificam (dinamicamente) no transcorrer do tempo
(O’DONNELL, 2013, p. 83).
É possível notar, até aqui, que o “heroi” da canção de Caetano Veloso consiste em um
líder de determinado setor da sociedade, que perpetrou a implantação de um projeto de
sociedade, flagrantemente contrário àquele vigente. Este projeto é sintetizado na declaração
do “heroi” de que: “É como em plena glória espiritual/ que digo:/ eu sou o homem cordial/
que vim para instaurar a democracia racial/ eu sou o homem cordial/ que vim para afirmar a
democracia racial” (VELOSO, 2006).
Assim, Caetano analisa o processo de democratização do Brasil concomitantemente
com a afirmação das disparidades sociais, especificamente as relativas à etnia, comparando o
processo vivenciado no âmbito brasileiro com o estadunidense, logrando atingir as seguintes
conclusões:
Para mim é óbvio que os Estados Unidos, ao superar (sic.) a situação de racismo
institucionalizado, em poucas décadas tinham um negro como chefe do Estado-
Maior das suas Forças Armadas, três prefeitos negros nas suas três maiores cidades,
muitas aeromoças negras em seus aviões e crianças negras em seus anúncios de
televisão – enquanto nós não temos generais negros sequer e o nosso único
governador negro, o do Espírito Santo, teve sua filha barrada na entrada “social” de
um prédio na capital do seu estado; mas isso não nos deve levar a pensar que
institucionalizar o racismo teria sido necessariamente melhor para nós: o que faz a
enorme diferença entre o nazismo e outras formas de perseguição assassina de raças
e minorias é o fato de, no caso do nazismo, esses massacres serem oficiais
(VELOSO, 2005, p. 45).
No entanto, quais são as implicações deste projeto para o processo de democratização?
Retornando aos apontamentos de Charles Tilly, existem três categorias centrais de mudanças
para os processos de democratização e de desdemocratização:
1) Aumento ou diminuição da integração entre redes de confiança interpessoais (por
exemplo, parentesco, pertencimento religioso e relações de mercado) e processos
políticos públicos. 2) Aumento ou diminuição no insulamento dos processos
políticos públicos em relação às principais desigualdades categóricas (por exemplo,
as de gênero, raça, etnia, religião, classe, castas) em torno das quais os cidadãos
organizam suas vidas cotidianas. 3) Aumento ou diminuição na autonomia em
relação aos processo políticos públicos por parte dos principais centros de poder
(especialmente aqueles que se valem de meios coercitivos significativos), tais como
as milícias, as redes de clientelismo, o exército, e as instituições religiosas (TILLY,
2013, p. 37).
Todas essas categorias de mudanças são potencializadas ou amenizadas de acordo com
as capacidades do Estado. Referem-se à atuação de atores não-governamentais, que, desde a
década de 1970, passaram a influenciar diretamente os processos políticos, econômicos e
88
sociais. Esta afirmação é sobremaneira verificável no âmbito dos “Estados fracos” e seus
esforços para a democratização.
As implicações são óbvias, ao menos em teoria: um Estado fraco enfrenta
importantes obstáculos à democratização até encontrar um ponto limítrofe. Esses
obstáculos existem porque um Estado fraco falha em suprimir ou subordinar os
centros de poder autônomos, permitindo aos cidadãos insular suas redes de
confiança do processo político público e tolera ou mesmo encoraja a inserção de
desigualdades categóricas em seus processos políticos públicos. Quando
comparados com os estados fortes e médios, os estados fracos enfrentam uma maior
proporção de conflitos, geralmente violentos, nos quais o Estado se vê envolvido de
forma apenas periférica. [...] eles também são o maior palco da maior parte das
guerras civis que ocorreram no mundo (TILLY, 2013, p. 177).
Na América Latina, os efeitos do projeto hegemônico na década de 1990 revelaram
distintas e inovadoras perspectivas e desafios à evolução da democratização. Concatenando
elementos trabalhados por Caetano Veloso na canção Fora da Ordem (VELOSO, 1991) com
os aportes específicos da canção O Heroi (VELOSO, 2006), o artista registra a perpetuação de
algumas problemáticas relativas às assimetrias sociais, que dificultam o fortalecimento dos
direitos políticos dos cidadãos afetados por esta lógica permanente. Nestes termos:
Em contraste com os países pioneiros, na maior parte da América Latina (e, em
termos de população, para a grande maioria da população desta região), os direitos
políticos foram obtidos, ou têm sido recuperados recentemente, antes de completar-
se uma generalização dos direitos civis. Por sua vez, dependendo da trajetória
seguida por cada país, alguns direitos sociais foram outorgados antes ou depois dos
direitos políticos, mas em todos os casos esses direitos foram limitados e
ultimamente têm sofrido, em muitos países, retrocessos significativos
(O’DONNELL, 2013, p. 70).
Cabe ainda ressaltar outro fator indicador dos limites do projeto hegemônico de
disseminação da ideologia democrática liberal. Ao defrontarem-se com os principais dilemas
do pós-Guerra Fria, as potências mundiais utilizam-se de foros e organizações democráticas
de modo seletivo, sendo que algumas das principais problemáticas para as sociedades são
debatidas e suas resoluções definidas por mecanismos frequentemente não democráticos. De
tal modo:
Além de ter possibilidades muito baixas de êxito, o esforço de disseminar a
democracia ocidental padronizada sofre também de um paradoxo fundamental. Em
grande medida, ela é concebida como solução para os perigosos problemas
transnacionais dos nossos dias. Uma parcela crescente da vida humana ocorre
atualmente fora do âmbito de influência dos eleitores – em entidades transnacionais
públicas e privadas que não têm eleitorados, ou pelo menos eleitorados
democráticos. Uma democracia eleitoral não pode funcionar efetivamente fora de
unidades políticas como os Estados nacionais. Os países poderosos estão, portanto,
tratando de disseminar um sistema que eles próprios consideram inadequado para
enfrentar os desafios da nossa época (HOBSBAWM, 2007, p. 119).
89
É nesse linear que emergem as principais críticas das demais nações à atuação das
potências mundiais nas instituições internacionais. O ex-chanceler brasileiro Celso Amorim
(1993-1994/2003-2010) reforça a percepção de que as potências mundiais não podem mais
negar o surgimento de novos centros de poder, assegurando sua participação nos debates das
problemáticas mundiais. “O realinhamento de forças no sistema internacional está construindo
o caminho para uma ordem mais multipolar” (AMORIM, 2010, p. 215, tradução nossa).
Entretanto, do mesmo modo como observado por Eric Hobsbawm, Celso Amorim constata
que:
Esta tendência para a multipolaridade não foi seguida por uma democratização das
instituições multilaterais, que sofrem de obsolescência progressiva. A governança
global deu-se com pouca legitimidade, transparência e efetividade, entre outras
razões, porque os países em desenvolvimento continuam sub-representados
(AMORIM, 2010, p. 216, tradução nossa).
Entrementes, considerando-se a anarquia inerente ao espaço internacional, as
organizações internacionais tornam-se relevantes atores do jogo político mundial, pois os
atores estatais reconhecem sua utilidade prática aos seus anseios e à estabilização das relações
internacionais. Assim, as organizações internacionais “são uma parte importante da realidade
política, porque influenciam a maneira como os estados se comportam. Os estados têm
interesse na legislação internacional por duas razões: previsibilidade e legitimidade” (NYE,
2009, p. 211).
Na concepção de Joseph Nye Jr. emergem, então, dois fatores que impelem os Estados
a recorrerem às instituições internacionais quando de sua atuação na arena internacional,
visando à resolução dos problemas que lhes são postos.
O tratamento desses problemas pela legislação internacional e segundo princípios
aprovados ajuda a despolitizá-los e torna-os previsíveis. A previsibilidade é
necessária para que as transações prosperem e para o controle ordenado dos
conflitos que inevitavelmente se as acompanham. [...] A legitimidade é a segunda
razão pela qual os governos têm interesse na legislação internacional. A política não
é meramente uma luta pelo poder material, mas também uma disputa pela
legitimidade. Poder e legitimidade não são antiéticos, mas complementares. Os seres
humanos não são nem puramente morais nem totalmente cínicos. É um fato político
que a crença no certo e no errado ajuda a induzir as pessoas a agir, e portanto a
legitimidade é uma fonte de poder. Se os atos de um estado são percebidos como
ilegítimos, os custos de uma política serão altos. Os estados apelam à legislação e à
organização internacional para legitimar suas próprias políticas e deslegitimar a dos
outros, e isso geralmente dá forma a suas táticas e seus resultados. E a legitimidade
aumenta o poder brando de um estado (NYE, 2009, p. 212).
Todavia, podemos acrescentar às considerações de Joseph Nye Jr. uma outra categoria
analítica acerca da utilização das instituições internacionais pelos Estados. Refere-se ao caso
90
da contestação e proposição de novos modos de tratamento das questões internacionais,
fundadas no multilateralismo, sendo empreendidas pelas potências emergentes e, em certos
casos, pelas potências mundiais quando afetadas pelos desígnios da potência hegemônica.
Neste sentido, ressalta-se a atuação internacional do Brasil sob o marco do multilateralismo
recíproco, participando das discussões dos principais problemas postos à ordem mundial após
a Guerra Fria.
Para descrever o multilateralismo recíproco que caracteriza a política externa
brasileira no século XXI, nós elencamos exemplos em cinco áreas, para propósitos
didáticos. (1) reciprocidade na economia internacional e nas decisões dos grandes
poderes econômicos: o G-8, cujas reuniões são atendidas pelo Chefe de Estado
brasileiro; e o G-20, cuja primeira reunião ocorreu em novembro de 2008 para
combater os efeitos da crise e da estagnação do desenvolvimento desses países; (2)
comércio internacional e a conduta brasileira na Rodada de Doha da OMC
[Organização Mundial do Comércio], bem como sua determinação para estabelecer
coalizões com países emergentes; (3) segurança internacional, especialmente os
esforços perante o Conselho de Segurança [das Nações Unidas], e a valorização da
estratégia de negociação em vez daquela de violência para lidar com tais questões;
(4) mudanças climáticas e outros assuntos ambientais; (5) saúde e direitos humanos
(CERVO, 2010, p. 12, tradução nossa).
No concernente aos dilemas de segurança consolidados no novo cenário internacional,
a diplomacia brasileira alterou seu modus operandi, paulatinamente inserindo-se nos debates
travados nos fóruns internacionais desse âmbito, fundamentalmente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas. “O processo gradual mencionado [...] permitiu uma nova e
notável ferramenta na política externa brasileira: o movimento de uma aproximação reativa
para uma mais assertiva com relação às questões de segurança” (VIANA; VILLA, 2010, p.
91, tradução nossa).
Os esforços brasileiros para participar nas operações de paz da ONU – notavelmente
no Haiti – podem ser entendidos como uma estratégia circunscrita na aspiração do
país de participar no Conselho como membro permanente. É relevante destacar que
o Brasil juntou-se às missões de paz no Timor Leste e Angola durante os governos
de Cardoso. Não obstante, o ativismo no caso haitiano revela um caminho mais
explícito para aspirar a um assento no organismo (VIANA; VILLA, 2010, p. 96,
tradução nossa).
Regressando à análise interna da canção O Heroi, considerando as implicações
negativas de seu projeto, após a sua implementação, o “heroi” analisa-o sob perspectiva
histórica, concluindo que a atual situação que ele vivencia é seu dilema moral, indagando-se
acerca dos benefícios que seu projeto efetivamente trouxe. Isto é observado em sua afirmação
final: “eu sou o heroi/ só deus e eu sabemos como doi” (VELOSO, 2006). Deste modo,
podemos lançar apontamentos sobre a eficácia da disseminação da democracia, por um lado
91
para o projeto hegemônico, e por outro lado para as estruturas internas dos países afetados por
tais desígnios.
Primordialmente, ao considerarmos os aportes dos autores investigados até aqui, torna-
se evidente o entrelaçamento de três matérias, que, a nosso ver, devem ser tratadas de modo
conjunto: a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos. O’Donnell (2013) referiu-
se a tal entrelaçamento como decorrente da concepção do ser humano. Neste sentido, “a
democracia, o desenvolvimento humano e os direitos humanos estão baseados em uma
concepção similar de ser humano como um agente” (O’DONNELL, 2013, p. 16). Um dos
grandes equívocos do projeto de disseminação da democracia liberal é preterir tal
consideração pela crença no institucionalismo, cabendo à instauração de instituições
democráticas o papel central no processo de democratização. Isto pode ser encontrado nas
considerações de Fukuyama, quando o autor menciona que:
Kojève proclama que chegamos ao fim da história porque a vida, neste estádio
universal e homogéneo, satisfaz completamente os seus cidadãos. Por outras
palavras, o mundo liberal democrático moderno está livre de contradições. [...] O
cerne da questão tem a ver com princípios – isto é, se as “coisas boas” da nossa
sociedade são verdadeiramente boas e satisfatórias para o “homem enquanto
homem” ou se existe uma forma superior de satisfação que um outro tipo de regime
ou organização social poderia proporcionar (FUKUYAMA, 2007, p. 148).
As generalizações e conclusões precipitadas de Fukuyama, ao serem testadas pelos
eventos do pós-Guerra Fria, revelaram-se demasiado otimistas, e profundamente apressadas.
Como analisado anteriormente, esses apontamentos foram efetivados de tal modo como uma
contingência do momento em que surgiram. Serviram como respaldo ao projeto hegemônico
estadunidense que, contudo, quando de sua implantação deparou-se com fenômenos
internacionais para os quais seus desígnios não estavam adequadamente preparados.
92
3.4 Limitações à atuação da potência hegemônica: o sofisma entre a premissa dos
Direitos Humanos e a segurança interna
Destarte, estamos compelidos a apresentar uma definição mínima de tais elementos,
fundamentalmente dos direitos humanos, foco no presente momento. Sendo assim, diretrizes
eficazes são trazidas por O’Donnell (2013), analisando tanto o desenvolvimento humano,
quanto os direitos humanos.
Estas duas perspectivas têm alguns elementos cruciais em comum: ambas começam
e terminam pelos seres humanos e ambas se perguntam qual pode ser, ao menos, um
conjunto mínimo de condições, direitos e/ou capacidades que os permitam viver de
forma apropriada a sua condição de tais. Na verdade, em suas origens, o conceito de
desenvolvimento humano se concentrava no contexto social, enquanto que o de
direitos humanos o fazia no sistema legal e na prevenção e reparação da violência
estatal (O’DONNELL, 2013, p. 18).
Consequentemente, partindo destas considerações e, principalmente, atribuindo ao ser
humano a agência no contexto analisado, adentramos no debate do universalismo de tais
concepções, sendo este distinto em duas categorias, o universalismo limitado – restrito à
lógica interna – e o universalismo irrestrito – aplicado aos ímpetos internacionais.
Note-se que esta atribuição implica designar a condição de agentes a todos os que se
aplica – os(as) cidadãos(ãs). Esta condição diz respeito às relações diretamente
referidas a um regime – democrático – baseado em eleições limpas e
institucionalizadas. Observe-se, no entanto, que esta é uma atribuição de agência
feita mediante um universalismo limitado: se aplica a quase todos os adultos no
território de um estado organizado segundo um regime democrático, não, por
exemplo, aos estrangeiros nesse território. Este universalismo limitado se distingue
do universalismo ilimitado, pois este último se predica para a garantia e expansão do
desenvolvimento humano e os direitos humanos através de todo tipo de países,
estados e regimes. Entretanto, o universalismo limitado dos direitos políticos tem
uma vantagem distintiva sobre o segundo, a de identificar claramente aos
destinatários desses direitos: esses podem ser reclamados, por meio do sistema legal,
ao estado e a qualquer indivíduo que possa tê-los infringido. Trata-se, então, de
direitos subjetivos (legalmente acionados) que existem pelo simples, mas
fundamental, fato de que estes indivíduos vivem em um estado territorialmente
delimitado que contém um regime democrático (O’DONNELL, 2013, p. 28).
É inerente aos preceitos de direitos humanos a sua universalização, a sua difusão por
meio de normas, valores, instituições e ideias que permitam sua penetração nas distintas
sociedades humanas. Portanto, “em termos da lógica de seus argumentos, [...] os
patrocinadores [...] dos direitos humanos devem ser rigorosos universalistas, ao menos no que
93
se refere à realização e defesa dos direitos, condições sociais e capacidades ‘básicas’ que
propiciam” (O’DONNELL, 2013, p. 19).
A universalidade intrínseca ao preceito de direitos humanos tornou-se notória na
retórica de atores políticos e de grupos da sociedade civil com o final da Guerra Fria. Se, por
um lado, Fukuyama apresentava esse evento histórico como representando o último estágio da
história, por outro lado, para a interpretação solidarista dos direitos humanos, representava a
conformação das perspectivas de paz perpétua, nos moldes kantianos.
Com o final da Guerra Fria [...] a perspectiva da paz perpétua parece ter voltado a
seduzir intelectuais e políticos, e mais uma vez o ensaio de Immanuel Kant foi
resgatado para tentar compreender o mundo contemporâneo e propor medidas no
sentido de construir uma paz internacional duradoura, particularmente no que diz
respeito ao papel que os Direitos Humanos devem ocupar nessa nova ordem pós-
Guerra Fria, na qual o processo de globalização parece ter acelerado ainda mais o
processo pelo qual se estabelece “uma comunidade entre todos os povos da Terra”
(REIS, 2009, p. 61).
Todavia, tomando esses direitos como universais, o projeto hegemônico os adéqua a
fim de legitimar tanto a dominação quanto o uso de poder coercitivo, em casos que possam
ser enquadrados como flagrantes – ou com evidências mais modestas – violações dos direitos
humanos, desconsidera necessidades imprescindíveis ao reconhecimento dos direitos
humanos numa sociedade. Portanto, a universalização dos direitos humanos volta-se como
fator potencialmente conflituoso, sobretudo por sua utilização como apologia para o uso do
poderio militar dos Estados Unidos. Hobsbawm (2007), comparando a ideologia dos direitos
humanos com a da abolição do tráfico de escravos pela Grã-Bretanha do século XIX, aponta
as implicações que tal ideia pode tomar, ao observar que:
[...] a abolição do tráfico de escravos foi usada como justificativa para o poder naval
britânico, assim como os direitos humanos são hoje utilizados com freqüência para
justificar o poder militar dos Estados Unidos. Por outro lado, os Estados Unidos,
como a França e a Rússia revolucionárias, são uma grande potência que tem por
base uma revolução universalista – e, por conseguinte, crê que o resto do mundo
deveria seguir seu exemplo e que deve até ajudar a libertar o resto do mundo. Poucas
coisas pode haver que sejam tão perigosas quanto os impérios que buscam satisfazer
seus próprios fins acreditando que estão fazendo um favor à humanidade
(HOBSBAWM, 2007, p. 155).
Não basta a substituição de regimes políticos para a alteração do padrão de
reconhecimento dos direitos humanos. Estes se referem ao reconhecimento dos seres humanos
como agentes. Sob tal âmbito, O’Donnell menciona que:
[...] esses direitos pertencem a todos os seres humanos na medida em que os
reconhecemos como agentes, e que seus direitos como tais agentes na esfera política
94
dificilmente podem ser exercidos se os indivíduos carecem das capacidades
“básicas” aos que se referem os direitos humanos (O’DONNELL, 2013, p. 77).
Ademais, não basta o reconhecimento de um Estado da necessidade de implementação
de políticas públicas que visem à prevalência dos direitos humanos, do mesmo modo como da
democracia. É fundamental o reconhecimento dos indivíduos enquanto agentes, dotados de
direitos e liberdades, bem como a eliminação das assimetrias que impossibilitem sua agência.
Neste sentido, não basta o discurso dos direitos humanos, pois este vincula-se estreitamente
ao que Hobsbawm (2007) definiu como o “efeito CNN” (previamente abordado).
Por sua vez, o núcleo histórico dos direitos humanos (à vida, à integridade física, à
proteção e reparação de violências de diferentes tipos, e semelhantes) tem sido
consagrado pelos sistemas legais de praticamente todos os países no mundo atual.
Nos dias atuais poucos aspirariam, ao menos publicamente, que esses não fossem
direitos válidos e exigíveis, ainda que tenhamos visto que numa parcela da América
Latina estejamos distantes da sua implementação plena (O’DONNELL, 2013, p. 94-
95).
Não obstante, a incompatibilidade do discurso com os atos não está restrita apenas aos
Estados subordinados. Neste âmbito, na canção Base de Guantánamo (VELOSO, 2009),
Caetano Veloso aponta para os limites da atuação da própria potência hegemônica, ao
denunciar os desrespeitos aos direitos humanos que esta realiza, em sua luta contra o
terrorismo internacional.
A Base Naval da Baía de Guantánamo é utilizada pelos Estados Unidos, desde 2002,
como prisão para suspeitos de terrorismo internacional. Os métodos utilizados, denúncias de
prisões com escassas evidências, bem como das condições dos prisioneiros levaram algumas
organizações a condenarem a atuação estadunidense na Base.
O foco da preocupação de Caetano Veloso refere-se à facilidade com que os Estados
Unidos violam uma política basilar de seu projeto hegemônico, implicando indivíduos de
outros Estados-nações e, principalmente, em instalações localizadas fora de seu território
nacional. Por conseguinte, esta é sua denúncia:
O fato de os americanos desrespeitarem os direitos humanos/ em solo cubano/ é por
demais forte/ simbolicamente/ para eu não me abalar/ A base de Guantánamo/ a base
da Baía de Guantánamo/ a base de Guantánamo/ Guantánamo (VELOSO, 2009).
A canção desenvolve-se sob o ritmo marcado de uma marcha militar, com presença
determinante do elemento de percussão, um bumbo que repetidamente é acionado, somado à
evolução lenta da interpretação de Caetano. O teor nefasto que permeia a canção refere-se
justamente à nocividade da realidade observada. Como poderiam os norte-americanos
95
desrespeitarem os direitos humanos? A nação que mundialmente portava-se como baluarte da
defesa de tais direitos, quando desafiada por atores não-estatais que se utilizavam de meios
violentos na execução de seus projetos, acaba preterindo a realização dos direitos humanos
em prol dos interesses de Estado, considerados ameaçados pela proliferação dos grupos
terroristas e suas atividades em território estadunidense.
Portanto, tendo em conta a contribuição de Caetano Veloso com a canção Base de
Guantánamo (VELOSO, 2009), concomitante com os aportes teórico-empíricos tratados,
torna-se possível elencarmos três implicações gerais da política norte-americana de
disseminação dos direitos humanos: a importância da doutrina de direitos humanos para o
projeto hegemônico dos Estados Unidos no pós-Guerra Fria; os desafios enfrentados quando
de sua implementação nos países subordinados; e a falácia empírica quando a potência
hegemônica confrontou-se com o dilema que opunha os direitos humanos aos seus interesses
de segurança.
Resta-nos analisar a segunda dessas implicações – as outras duas já foram abordadas
anteriormente – que, notoriamente, não fora apreciada de modo adequado pela potência
hegemônica, constrangendo-lhe as aspirações consensuais e voltando-se complicadora para a
manutenção da dominação no início do século XXI. Eric Hobsbawm constata o aumento da
violência no pós-Guerra Fria, ao mencionar que:
Por um lado, a escala dos sofrimentos humanos aumentou terrivelmente na década
de 1990 e, por outro lado, as guerras religiosas que eram alimentadas por ideologias
seculares expandiram-se com o retorno a várias formas de fundamentalismo
religioso que se manifestam em cruzadas e contracruzadas (HOBSBAWM, 2007, p.
128).
Concomitantemente, Joseph Nye Jr. realiza um inventário dos conflitos armados no
período do pós-Guerra Fria, endossando os apontamentos de Hobsbawm quanto ao aumento
da escala dos sofrimentos humanos, apresentando o seguinte panorama:
As guerras maiores tornaram-se menos prováveis depois do fim da Guerra Fria, mas
os conflitos regionais e internos persistem e sempre haverá pressões para que outros
estados e instituições internacionais intervenham. Dos 116 conflitos que ocorreram
entre o fim da Guerra Fria e o início do novo século, 89 foram puramente
intraestatais (guerras civis) e outros 20 foram interestatais com intervenção
estrangeira. Mais de 80 protagonistas estatais estiveram envolvidos, assim como
duas organizações regionais e mais de 200 partidos não governamentais (NYE,
2009, p. 197).
Seguindo esta senda, Caetano Veloso apresenta seu inconformismo quanto ao fato do
Ocidente considerar-se a vanguarda universalizante da liberdade, da democracia e dos direitos
96
humanos, embasados na crença inequívoca de seu “dever” disseminador, por ser o berço de
tais fenômenos. Rebatendo, neste sentido, os aportes de Samuel Huntington, Caetano elucida
que:
Huntington cita também Arthur Schlesinger Jr.: "A Europa é a fonte – a fonte
singular- das ideias de liberdade individual, democracia política, império da lei,
direitos humanos e liberdade cultural. Essas ideias são ideias europeias, não são
asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio, a não ser por adoção". Mas, como
disse Ernest Gellner, que tais ideias tenham surgido no Ocidente (assim como a
ciência moderna) não significa que os povos brancos europeus sejam seus donos ou
mesmo que estejam mais capacitados para pô-las em prática ou desenvolvê-las
(VELOSO, 1997, p. 346).
Entrementes, a escalada da violência no novo contexto internacional não advém
apenas desse fenômeno de fundamentalismo religioso, o que ratificaria a análise de
Huntington (1997) acerca do choque de civilizações. Refere-se, de fato, ao radicalismo
tomado pelas posições político-ideológicas, que forneceu justificativas ao uso de meios
violentos na consecução de tais objetivos. Consequentemente, Hobsbawm aponta que:
Existe [...] um fator mais perigoso na geração da violência sem limites. É a
convicção ideológica, que desde 1914 domina tanto os conflitos internos quanto os
internacionais, de que a causa que se defende é tão justa, e a do adversário é tão
terrível, que todos os meios para conquistar a vitória e evitar a derrota não são só
válidos como necessários. Isso significa que tanto os Estados quanto os insurgentes
sentem ter uma justificativa moral para o barbarismo (HOBSBAWM, 2007, p. 127).
Especificamente no concernente à ideologia dos direitos humanos, a disseminação do
projeto hegemônico aos países subordinados resultou no aprofundamento de tendências que
paulatinamente retornavam às relações internacionais. Neste âmbito, o nacionalismo ganhou
ânimo renovado no pós-Guerra Fria, fomentado pelas intervenções estrangeiras com o ímpeto
de reestruturar as sociedades dessas nações (HOBSBAWM, 2007).
Além disso, outro desafio apresentava-se na nova realidade internacional, que se
agregava ao tradicional nacionalismo das nações dominadas. Estas mesmas nações são as que
presenciaram o desbordamento do poder coercitivo, que passou a ser utilizado amplamente
por atores não-estatais, imergindo-as em cenários profundamente violentos. “O que é novo
atualmente é que a tecnologia põe nas mãos de indivíduos e grupos transviados poderes que
antes eram reservados basicamente aos governos” (NYE, 2009, p. 321). Como consequência
desses fenômenos:
As guerras dentro dos Estados fracassados assumem características muito diferentes
das guerras tradicionais e revelam uma mistura de conflitos (terrorismo, guerrilha,
guerra urbana e crime organizado) com grande potencial para provocar verdadeiros
97
desastres humanitários e todos os tipos de ameaças à paz e à segurança
internacionais (NASSER, 2009, p. 121).
Neste âmbito, os conflitos nos chamados Estados falidos com intervenção das
potências internacionais tornaram-se úteis para estas em um novo sentido. Atores privados
ligados ao setor de segurança beneficiaram-se com os ímpetos intervencionistas, durante a
década de 1990 com a justificativa humanitária, e durante os anos 2000 sob o escopo da
doutrina de segurança preventiva.
O Estado falido, portanto, tem se transformado em uma instituição conveniente para
a ação das grandes potências em que a privatização do uso da força tem repercussões
nos níveis internacional e interno (segurança pública) como consequência da cessão
do monopólio do uso da força por parte do próprio Estado. Uma das consequências é
que Estados e empresas se associam no intuito de acumular riquezas por meio da
exploração de recursos naturais, mesclando as categorias tradicionais: civil/militar e
privado/público, gerando atores híbridos que trabalham frequentemente com redes
informais que favorecem a corrupção e criminalidade (NASSER, 2009, p. 123).
O fenômeno incompreendido pelos precursores do projeto hegemônico estadunidense
é a consubstanciação de uma crise global, representando as transformações que passa a
violência política no novo período histórico.
Elas parecem refletir os profundos desequilíbrios sociais causados em todos os
níveis da sociedade pelas alterações mais rápidas e intensas jamais experimentadas
pela humanidade, social e individualmente, dentro do período de vida de um ser
humano. Elas parecem refletir uma crise dos sistemas tradicionais de autoridade,
hegemonia e legitimidade do Ocidente e sua dissolução no Oriente e no Sul, assim
como uma crise dos movimentos tradicionais que pretendiam proporcionar
alternativas a eles. Elas têm sido exacerbadas pelos fracassos da descolonização em
certas regiões do mundo e pelo fim de um sistema internacional estável [...] desde o
colapso da União Soviética. E elas se revelarão estar além dos poderes utópicos dos
neoconservadores e neoliberais que acreditam na exportação dos valores liberais do
Ocidente por meio da expansão dos mercados e das intervenções militares
(HOBSBAWM, 2007, p. 137).
Por ende, é possível estabelecermos duas conclusões das análises até aqui efetuadas: o
ordenamento internacional surgido com o fim da Guerra Fria, observado com as ferramentas
teóricas da teoria crítica coxiana, caracterizou-se pela hegemonia dos Estados Unidos; a
contribuição artística de Caetano Veloso acerca de fatores estruturantes dessa ordem
internacional é surpreendentemente reveladora da realidade observada, sendo possível sua
aproximação com os aportes da teoria crítica coxiana.
O projeto hegemônico dos Estados Unidos baseou-se em três categorias de ideologias
fundamentais: a globalização liberal; a democracia liberal; e os direitos humanos. A utilização
de um amplo rol de instituições internacionais para respaldar suas atividades é outro
fenômeno que marca sua atuação hegemônica, além das alianças e acordos ad hoc,
98
envolvendo a efetivação de coalizões de Estados no afã de legitimar intervenções e a
utilização de meios coercitivos para a consecução de seu projeto. Ademais, as vantagens da
potência hegemônica quanto às forças potenciais – especialmente no âmbito militar, onde sua
superioridade fora elencada como incontestável (HOBSBAWM, 2007 e KISSINGER, 1999) –
apenas endossou o quadro que se lhe apresentava. Ainda assim, a atuação das demais
potências no novo cenário, não oferecendo elementos de contra-hegemonia, aceitando e, em
alguns casos – como da Rússia na Guerra da Bósnia –, esperando a atuação da potência
hegemônica, atuando apenas quando seus interesses estavam ameaçados, foram fenômenos
que dificultaram a estruturação do ordenamento internacional. A estagnação, ou mesmo
retrocesso, na aquisição de forças potenciais é um dos fatores que explica tal modo de
atuação. Portanto, a década de 1990 postulou dilemas sobremaneira relevantes para as
potências mundiais.
Iria, porém, caber a esta década atravessar o render do milénio. Contudo, o “devagar
depressa do tempo”, de que falava Guimarães Rosa, não tardou a mostrar que
começava mal o século, manchado pela tragédia de Nova Iorque, depois repetida em
Madrid, Londres, Bali, Beslan e outros lugares. Mal também, por ter sido um
período marcado por opções unilateralistas, como a invasão do Iraque, que iriam
abalar os alicerces do sistema da legalidade internacional, criando um perigoso
precedente no preciso momento em que a globalização dos problemas aconselha às
potências o abandono de estratégias individuais e antes recomenda políticas de
reforço de solidariedades e colaborações. Mal ainda pela célere expansão de
pandemias que desestruturam Estados e atrasam o desenvolvimento de continentes,
perante a impotência de muitos e as desatenções de alguns. Mal, finalmente, pelo
súbito avolumar de difusos riscos alimentados pela pregação de violências
indiscriminadas assentes em irracionais ideologias fundamentalistas com perigosa
capacidade mobilizadora ou pelo recente ressurgir da ameaça de uma desordenada
proliferação nuclear (NEVES; SAMPAIO, 2007, s/p).
Não obstante, quando a potência empreendeu a execução de seu projeto hegemônico,
deparou-se com os limites, desafios e dilemas da hegemonia. O principal, amplamente
analisado por Cox e Gramsci, diz respeito a manter a utilização do consenso como elemento
fundamental, deixando a coerção como elemento marginal, apenas para os casos desviantes.
Neste âmbito, Caetano Veloso logrou perceber e apresentar tais fatores em suas
canções dos anos 1990 e 2000. As quatro canções aqui analisadas aportam elementos
analíticos fundamentais para a compreensão da hegemonia norte-americana, evidenciando que
a pretensa nova ordem mundial, liberal, democratizada, globalizada, não efetivava-se do
modo como o otimismo liberal esperava. Um amplo rol de ameaças e desafios consolidou-se
nesse cenário, inúmeros eventos conflituosos atestaram a permanência da principal
característica das relações internacionais, sua complexidade.
99
O período que seguiu o fim da Guerra Fria testemunhou maior cooperação
internacional, especialmente na ONU. Testemunhou também crises globais
relacionadas com: mercados financeiros; segurança alimentar; energia; mudanças
climáticas; terrorismo; crime transnacional. O surgimento de numerosos atores não
governamentais influentes e alianças inconstantes são também fenômenos dos
nossos tempos que fazem a arena internacional um ambiente muito mais complexo
(AMORIM, 2010, p. 216, tradução nossa).
O início do século XXI demonstrou que as interpretações de Caetano Veloso da
realidade internacional, próximas dos apontamentos da teoria crítica coxiana, eram não apenas
justificáveis, mas também acertadas. Quando a potência hegemônica foi confrontada, em uma
escala muito restrita, é certo, contudo evidenciando que nem mesmo a maior potência militar
do mundo estava imune às ações fomentadas pelo aumento da violência e o transbordamento
do poder coercitivo para além dos limites do Estado, sua resposta suprimiu o projeto
hegemônico em prol dos seus interesses de segurança.
O fim da Guerra Fria e a disseminação transnacional da tecnologia podem produzir
uma perspectiva mais ampla de armas nucleares serem usadas em alguns dos novos
países que tentam entrar na corrida nuclear do que era o caso no último meio século.
E uma das maiores ameaças no futuro será o fato de os terroristas transnacionais
obterem armas de destruição em massa. Sabemos que Bin Laden e a rede al Qaeda
estiveram fazendo esforços para obter essas armas e fizeram contato com cientistas
que trabalhavam no programa nuclear do Paquistão (NYE, 2009, p. 320).
Apreciando a conformação de tal ameaça, e considerando a imprescindibilidade do
apoio da população doméstica às ações externas, os formuladores da política externa norte-
americana idealizam um cenário de oposições contingentes, visando à cessão de parcela da
liberdade em prol da manutenção da segurança.
A instrumentalização do terrorismo em prol da balança de poder americana fez-se,
especialmente, por meio da via ideacional, seja ela científica ou discursiva. Para
tanto, destaca-se o papel desempenhado pela tragédia, a qual surge como elemento
de choque capaz de alterar a balança social entre liberdade e segurança, a favor deste
último pendor. Isso é, a população traumatizada dispõe parcela de sua liberdade em
troca de maiores níveis de estabilidade, retroalimentando as vias formais de controle
público. Logo, à medida que a população concede porções de sua liberdade, o
Estado acresce proporcionalmente seu potencial autoritário, alcançando graus
elevados de liberdade prática e influência subjetiva (SELIS; GALLO; MASO, 2011,
p. 55).
De tal modo, quando o elemento consensual das relações internacionais da potência
hegemônica para a resolução das problemáticas com que se deparava fora transformado,
passando a utilizar-se da doutrina de segurança preventiva, lançando mão dos meios
coercitivos para a estabilização do sistema internacional, a ordem hegemônica dissolveu-se.
Por conseguinte, o período de análise foco deste trabalho, que marcou o Sistema Internacional
pós-Guerra Fria, é delimitado como abarcando desde a derrocada da União Soviética em 1991
100
até os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Este período esteve permeado pela
atuação dos Estados Unidos como potência hegemônica no novo ordenamento mundial.
CONCLUSÃO
As intrincadas redes de relacionamentos humanos historicamente despertaram os mais
notáveis esforços de compreensão por parte de indivíduos impelidos pelo afã de desvendá-las
e aportar-lhes inteligibilidade ao conjunto da coletividade. Neste escopo, as ciências sociais
receberam paulatinamente maior proeminência no desenvolvimento técnico-científico
perpassado pela humanidade em sua trajetória histórica.
Sob o âmbito das ciências sociais, inegavelmente as relações baseadas em recursos de
poder instigaram vigorosas contribuições analíticas, posicionando a ciência política como
campo de estudo recorrentemente apreciado tanto à manutenção quanto à transformação da
ordem utilizada para a redução dos sofrimentos humanos intrínsecos às interações
interpessoais e intercoletivas. A busca pela obtenção ou sustentação dos recursos de poder –
em qualquer das esferas da vida humana – fomentou (e continuará fomentando) inúmeros
conflitos e tensões entre grupos inseridos numa sociedade, bem como entre as sociedades.
É neste ponto que emerge a imprescindibilidade dos estudos das relações
internacionais para a contribuição científica à compreensão dos (des) encontros entre as
distintas sociedades no espaço internacional, propiciando uma ampla gama de eventos e
fenômenos que implicam em processos que afetam profundamente as dinâmicas internas.
O cientista social, imerso nas profundas tensões inerentes aos dilemas da
individualidade e da coletividade, constrangido pelos limites impostos pela estrutura histórica
em que está envolvido, recorrentemente depara-se com os períodos de transição do
desenvolvimento histórico humano. Sua tarefa de capturar a realidade momentânea, analisá-la
com as ferramentas metodológicas de que dispõe, tendo em conta o movimento histórico
transcorrido para que tal realidade se apresentasse, do modo como a observa, permeia-se de
incógnitas, e as tentações da simplificação e da precipitação voltam-se sobremaneira atrativas.
Este estudo lançou-se ao debate do período mais recente em que tais circunstâncias
conformaram-se, no que tange ao campo das relações internacionais. Considerando as
dificuldades substanciais encontradas pelos esforços teóricos que intentavam compreender a
lógica do cenário internacional conformado com o final da Guerra Fria, encontramos na
102
produção artística um elemento essencialmente revelador dos principais fenômenos
resultantes dos relacionamentos entre os diversos atores internacionais.
Analisando os principais fenômenos internacionais, percebemos a continuidade de
fatores observados durante o período anterior, sendo tão somente intensificados no novo
momento histórico. Enquanto algumas abordagens teóricas buscavam caracterizar o período
pós-Guerra Fria como um momento desvinculado do anterior, no qual as tensões relativas
àquele período haviam dissipado-se ou mitigado-se pela ação de uma nova estrutura histórica
que, todavia, remetia suas bases à fenômenos da antiguidade histórica, ressurgindo como
balizadores dos relacionamentos internacionais, fortaleciam-se algumas abordagens
alternativas.
De tal modo, como observado no capítulo I, os apontamentos efetuados por Robert
Cox, sob o marco da teoria crítica internacional, voltaram-se importantes para a percepção e
compreensão das relações internacionais no período de transição que representou o pós-
Guerra Fria. Por conseguinte, consideramos este período como fundamentalmente marcado
pela hegemonia dos Estados Unidos da América, utilizando-se de suas forças potenciais, das
instituições internacionais e do âmbito normativo-jurídico das relações internacionais, das
mídias, para difundirem e conformarem seu projeto hegemônico baseado nas premissas de
democracia liberal, globalização liberal e direitos humanos.
Tendo em conta a contribuição de Antonio Gramsci para o estabelecimento do debate
da hegemonia na ciência política, e de Robert Cox para a análise desta no escopo das relações
internacionais, percebemos que os Estados Unidos utilizaram-se dos elementos de consenso e
coerção para submeterem os demais países ao seu projeto hegemônico. Para tanto, foi preciso
entender o funcionamento da lógica hegemônica, na qual o aspecto consensual representa o
baluarte do projeto hegemônico, enquanto a coerção recebe papel marginal, sendo utilizada
apenas nos casos desviantes.
Consequentemente, encontramos linhas interpretativas similares na produção musical
de Caetano Veloso, que atuou durante as décadas de 1990 e 2000 em busca de apresentar as
características estritamente hegemônicas do ordenamento internacional vivenciado. Ademais,
o artista, em posição de contestação, crítica e inconformismo, empreende um debate acerca de
algumas teorias surgidas no centro hegemônico (sob o âmbito do que Robert Cox chamou de
teorias de solução de problemas) que visavam apresentar o quadro das relações internacionais
103
naquele momento como uma nova ordem mundial, oscilando entre posições otimistas e
pessimistas, porém, estritamente vinculadas com os desígnios do projeto hegemônico.
Neste escopo, o capítulo II realizou uma análise da vida e obra de Caetano Veloso, os
entrelaçamentos de sua produção musical com as principais discussões políticas, econômicas,
culturais e sociais do Brasil e do mundo. É altamente intrigante o fato de que ao mesmo
tempo em que Caetano transforma sua atuação artística, ocorrem transformações na estrutura
histórica, seja ela nacional ou internacional. Logramos, assim, traçar um paralelo entre a
produção musical de Caetano Veloso (bem como sua atuação política) e a análise das relações
internacionais, essencialmente no período pós-Guerra Fria.
Analisando o projeto do Tropicalismo, podemos conceber a atuação de Caetano
Veloso impelida ao estabelecimento de uma nova cultura e uma nova intelectualidade. De tal
modo, tendo em conta os apontamentos gramscianos, tornou-se passível considerarmos
Caetano Veloso enquanto intelectual orgânico, comprometido com a contestação dos padrões
artísticos e intelectuais vigentes ao longo de sua carreira. Contudo, foi no período pós-Guerra
Fria que a concatenação de ambas as facetas de Caetano tornaram-se sobremaneira
observáveis, em seus esforços de crítica e contestação às abordagens dominantes.
A emersão deste trabalho na teoria crítica coxiana e nas contribuições artísticas de
Caetano Veloso representa o reconhecimento da afirmação de Messari e Nogueira (2005) de
que a teoria crítica consiste na contestação da ordem vigente, bem como de suas ferramentas
analíticas, e no aporte de ordens alternativas viáveis, fundadas em concepções históricas,
normativas e materialistas, que apresentem as possibilidades de emancipação dos estreitos
limites impostos pela realidade presente.
Deste modo, foi possível efetuar a aproximação da produção artística de Caetano
Veloso para a compreensão do sistema internacionais pós-Guerra Fria com a teoria crítica
coxiana, fornecendo elementos teórico-empíricos, relativos aos métodos científicos, com a
observação empírica permeada da sensibilidade e subjetividade intrínsecas à produção
artística. De tais ímpetos, consubstanciou-se um quadro teórico, analítico e empírico que
buscou comportar os dilemas centrais das relações internacionais nesse momento histórico
específico.
Por conseguinte, as relações internacionais começaram a presenciar a intensificação do
processo de corrosão das estruturas estatais, inaugurando percepções pessimistas quanto à
104
intangibilidade do Estado em relação aos demais atores internacionais. O aprofundamento das
assimetrias internas e internacionais, a crescente preocupação com o meio ambiente, com a
cultura, a ascendente relevância da opinião pública para a política externa e as relações
internacionais, o acirramento da pobreza, o terrorismo transnacional, a complexificação da
luta de classes, o reavivamento do nacionalismo e do autoritarismo, além do aprofundamento
da alienação, com o desenvolvimento decisivo da indústria cultural, a institucionalização
internacional, o regionalismo (com a conformação dos blocos econômicos), a democratização
e a globalização são todos fenômenos que testemunham a conformação de novos desafios aos
Estados.
Apreciando os limites do ordenamento internacional emergido com o final da Guerra
Fria, delimitamos os fatores constitutivos essenciais desta estrutura histórica, destacando-se: a
globalização desigual, baseada em corporações globais, em organizações internacionais e na
crescente atuação de movimentos sociais; uma ordem mundial caracterizada pela
unipolaridade militar com crescente multipolarização nas demais esferas, pela hegemonia e
pelo aprofundamento dos processos de regionalização, tanto econômica quanto política; e
mudanças nas formas estatais, com o advento dos Estados falidos, semiprotetorados e
territórios sem governo.
Neste contexto, partindo das observações de Caetano Veloso, buscou-se estabelecer
uma discussão pertinente aos limites impostos à atuação hegemônica, os custos relativos a tal
modo de relacionamento no âmbito internacional, como apresentado no capítulo III. Com
esses ímpetos, realizou-se a análise interna de quatro canções de Caetano Veloso referentes às
décadas de 1990 e 2000, evidenciando os desafios e limitações ao projeto hegemônico
estadunidense dos anos noventas, bem como suas respostas unilaterais baseadas na coerção
que inauguraram o período de dominação e contra-ofensiva das demais nações ao iniciar o
novo milênio.
Portanto, ao cruzarmos a primeira década do século XXI, analisando
retrospectivamente as duas décadas anteriores, percebemos que nem o otimismo liberal,
tampouco o pessimismo civilizacional, são fontes amplamente efetivas para compreendermos
as relações internacionais no novo panorama. A conformação de tantos fatores que
constrangem as ações dos Estados, ademais do crescente protagonismo dos demais atores
internacionais, apenas reforçaram a imprescindibilidade de se analisar as temáticas mundiais
sob o marco de aportes que não se restrinjam pelas rigidezes tradicionais, tanto quanto pelas
105
conclusões apressadas (por vezes inconsequentes), reconhecendo a complexidade
fundamental dessa área do conhecimento.
Do mesmo modo, ao considerar-se o cenário mundial consolidado com o combate ao
terrorismo internacional por parte da maior potência militar, os Estados Unidos, não podemos
apressar-nos em nossas conclusões. A virada no projeto internacional dos Estados Unidos
marcou um novo turning point no Sistema Internacional. A globalização liberal enfrentou
desafios difusos, como a consolidação da ascensão de economias periféricas que passaram a
participar ativamente da economia internacional, tendo no crescimento da China uma
importante fonte de contestação quanto as suas premissas básicas. Soma-se a isso o
fortalecimento dos esforços de regionalização, tendo seu principal baluarte na União Europeia
e na consolidação da zona do euro, amplamente resgatada como modelo para as demais
regiões do globo.
Todavia, é na América Latina e no antigo bloco soviético que encontramos os
principais eventos que corroboram o fracasso do projeto hegemônico estadunidense de
globalização liberal. A colossal derrocada do neoliberalismo, após uma década de consenso
sobre sua imprescindibilidade, marcada pelas crises financeiras da segunda metade da década
de 1990, o retrocesso dos indicadores sócio-econômicos e o esfacelamento do poder estatal no
controle dos efeitos perversos da economia globalizada (como exemplificado pela Argentina),
foram todos fatores que, na virada do século, fomentaram a retomada de ideologias
desenvolvimentistas e progressistas, que em alguns casos marcaram o ressurgimento do
nacionalismo.
Contudo, no concernente à economia, indubitavelmente a crise financeira
internacional eclodida em 2007 representou o maior golpe às potências mundiais,
especialmente aos Estados Unidos. Os riscos advindos do endividamento público
demonstraram-se efetivamente aos norte-americanos, porém, foram sentidos mais
profundamente pelos europeus, incitando questionamentos acerca da viabilidade do projeto
integracionista europeu, ao menos nos moldes até então efetivados. Por outro lado, os efeitos
relativamente mais amenos apresentados às economias em ascensão ressaltaram seu papel
preponderante na nova economia mundial.
O cenário da disseminação da democracia é ainda mais instigante, tendo em conta os
inúmeros movimentos em direção tanto à democratização quanto à desdemocratização, sendo
necessário considerar as capacidades dos Estados para perpetrarem o desenvolvimento do
106
processo de democratização, limitadas pelas inconstâncias da economia globalizada, a
proliferação de novas ameaças não governamentais ao Estado, assim como os efeitos do
desenvolvimento histórico oscilante nas nações surgidas dos processos de descolonização e do
esfacelamento dos principais Estados do antigo bloco soviético.
Não obstante, é nos assuntos de segurança que a atuação dos Estados Unidos
modificou definitivamente as linhas para a compreensão do Sistema Internacional. Quando
premida pela atuação violenta de atores não estatais, a potência global empreendeu uma
estratégia unilateral e fundada em elementos essencialmente coercitivos. A doutrina de
segurança preventiva dos governos de George W. Bush (2001-2009), em seu combate contra
o terrorismo internacional, preteriu as premissas que permearam a atuação hegemônica dos
Estados Unidos na década de 1990 em prol dos interesses governamentais, especificamente os
vinculados à segurança doméstica. Neste sentido, a intervenção militar no Iraque iniciada em
2003 tornou-se emblema do novo posicionamento norte-americano nas relações
internacionais, assim como em 1990, no mesmo Iraque, a intervenção amplamente apoiada
prenunciava a “nova ordem mundial”.
Assim sendo, é possível apontar para fenômenos de desencontros que influenciaram
tanto nas limitações da estabilização da ordem mundial pós-Guerra Fria por meio da atuação
hegemônica dos Estados Unidos, quanto nas diversas crises internacionais estabelecidas no
novo século, com a atuação estadunidense baseando-se na dominação e, consequentemente,
em fatores coercitivos.
Durante a década de 1990 os Estados Unidos sentiram as implicações dos custos
(materiais, políticos, institucionais) de uma hegemonia mundial, especialmente pela opção das
demais potências mundiais de se resguardarem da atuação efetiva, fazendo-o apenas quando
seus interesses estavam diretamente afetados. Por conseguinte, os norte-americanos arcaram
em grande parte com os ônus da manutenção da ordem pós-Guerra Fria, desgastando-se e
abrindo espaço para posicionamentos fundados no insulamento.
Diametralmente oposto é o cenário dos anos 2000. Quando as demais potências
internacionais, especialmente as emergentes, aproximavam-se dos foros de debate das
problemáticas mundiais, ocorre a transformação do projeto internacional dos Estados Unidos,
afastando-se dos elementos consensuais e rumando perigosamente para a coerção. Não apenas
no concernente ao combate ao terrorismo e aos Estados párias, a atuação dos Estados Unidos
frente às principais crises internacionais do novo século esteve envolvida numa crescente
107
espiral de coerção. Seja no protecionismo econômico retomado com a crise financeira iniciada
em 2007, na difícil e travada evolução das conversações acerca dos regimes internacionais
relativos às mudanças climáticas e ao meio ambiente, bem como nos debates acerca das
problemáticas energéticas, fundamentais ao capitalismo contemporâneo, em todos esses
exemplos a resposta estadunidense às situações de crise foi unilateral, enfraquecendo o
diálogo com os demais atores que influenciam ativamente na realidade internacional.
Apreciando tal cenário, é na produção artística, e em Caetano Veloso, que
encontramos uma poderosa ferramenta norteadora das relações internacionais sob tais
perspectivas e desafios. O principal dilema posto às potências mundiais é a conformação de
estruturas vinculantes que possibilitem a atuação conjunta para a resolução das crises e
problemáticas que afligem a humanidade na atualidade, tendo em conta as experiências
históricas, especialmente as recentes, das duas últimas décadas.
Sob tal âmbito, é na experiência brasileira de construção nacional, no projeto do Brasil
que, segundo Veloso (1997), encontra-se um potencial de realização humana ainda
necessitando de exploração. Mesmo após todos os revezes que o desenvolvimento histórico
lhe imprimiu, o Brasil segue sendo algo em formação, uma utopia ávida por concretizar-se.
Se, com todas as comoções e adversidades que abateram-se sobre o Brasil, o país mantêm seu
ímpeto de realização, é passível de fornecer um exemplo às demais nações de que, por um
lado, não podemos olvidarmos do desenvolvimento histórico que nos coloca no momento
presente e, por outro lado, não devemos nos constranger pelas imposições desse momento, a
criatividade inerente ao ser humano deve procurar realizar-se em todas as esferas da vida,
desde a euforia dionisíaca proporcionada pela arte, até as tênues limitações que impelem-se
aos relacionamentos políticos.
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ANEXOS
Anexo A – Fora de Ordem
Vapor barato
Um mero serviçal
Do narcotráfico
Foi encontrado na ruína
De uma escola em construção...
Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína
Tudo é menino, menina
No olho da rua
O asfalto, a ponte, o viaduto
Ganindo prá lua
Nada continua...
E o cano da pistola
Que as crianças mordem
Reflete todas as cores
Da paisagem da cidade
Que é muito mais bonita
E muito mais intensa
Do que no cartão postal...
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...
Escuras coxas duras
Tuas duas de acrobata mulata
Tua batata da perna moderna
A trupe intrépida em que fluis...
Te encontro em Sampa
De onde mal se vê
Quem sobe ou desce a rampa
Alguma coisa em nossa transa
É quase luz forte demais
Parece pôr tudo à prova
Parece fogo, parece
Parece paz, parece paz...
114
Pletora de alegria
Um show de Jorge Benjor
Dentro de nós
É muito, é grande
É total...
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...
Meu canto esconde-se
Como um bando de Ianomâmis
Na floresta
Na minha testa caem
Vem colocar-se plumas
De um velho cocar...
Estou de pé em cima
Do monte de imundo
Lixo baiano
Cuspo chicletes do ódio
No esgoto exposto do Leblon
Mas retribuo a piscadela
Do garoto de frete
Do Trianon
Eu sei o que é bom...
Eu não espero pelo dia
Em que todos
Os homens concordem
Apenas sei de diversas
Harmonias bonitas
Possíveis sem juízo final...
Alguma coisa
Está fora da ordem
Fora da nova ordem
Mundial...
Composição: Caetano Veloso
In: VELOSO, Caetano. Circuladô. Rio de Janeiro: PolyGram, 1991. 1 CD digital, estéreo.
115
Anexo B – Santa Clara, Padroeira da Televisão
Santa clara, padroeira da televisão
Que o menino de olho esperto saiba ver tudo
Entender certo o sinal certo se perto do encoberto
Falar certo desse perto e do distante porto aberto
Mas calar
Saber lançar-se num claro instante
Santa clara, padroeira da televisão
Que a televisão não seja o inferno, interno, ermo
Um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada)
Que a televisão não seja sempre vista
Como a montra condenada, a fenestra sinistra
Mas tomada pelo que ela é
De poesia
Quando a tarde cai onde o meu pai
Me fez e me criou
Ninguém vai saber que cor me dói
E foi e aqui ficou
Santa clara
Saber calar, saber conduzir a oração
Possa o vídeo ser a cobra de outro éden
Porque a queda é uma conquista
E as miríades de imagens suicídio
Possa o vídeo ser o lago onde narciso
Seja um deus que saberá também
Ressuscitar
Possa o mundo ser como aquela ialorixá
A ialorixá que reconhece o orixá no anúncio
Puxa o canto pra o orixá que vê no anúncio
No caubói, no samurai, no moço nu, na moça nua
No animal, na cor, na pedra, vê na lua, vê na lua
Tantos níveis de sinais que lê
E segue inteira
Lua clara, trilha, sina
Brilha, ensina-me a te ver
Lua, lua, continua em mim
Luar, no ar, na tv
São Francisco
Composição: Caetano Veloso
In: VELOSO, Caetano. Circuladô. Rio de Janeiro: PolyGram, 1991. 1 CD digital, estéreo.
116
Anexo C – O Heroi
Nasci num lugar que virou favela
Cresci num lugar que já era
Mas cresci a vera
Fiquei gigante, valente, inteligente
Por um triz não sou bandido
Sempre quis tudo o que desmente esse país
Encardido
Descobri cedo que o caminho
Não era subir num pódio mundial
E virar um rico olímpico e sozinho
Mas fomentar aqui o ódio racial
A separação nítida entre as raças
Um olho na bíblia, outro na pistola
Encher os corações e encher as praças
Com meu guevara e minha coca-cola
Não quero jogar bola pra esses ratos
Já fui mulato, eu sou uma legião de ex mulatos
Quero ser negro 100%, americano,
Sul-africano, tudo menos o santo
Que a brisa do Brasil beija e balança
E no entanto, durante a dança
Depois do fim do medo e da esperança
Depois de arrebanhar o marginal, a puta
O evangélico e o policial
Vi que o meu desenho de mim
É tal e qual
O personagem pra quem eu cria que sempre
Olharia
Com desdém total
Mas não é assim comigo.
É como em plena glória espiritual
Que digo:
Eu sou o homem cordial
Que vim para instaurar a democracia racial
Eu sou o homem cordial
Que vim para afirmar a democracia racial
Eu sou o herói
Só Deus e eu sabemos como dói
Composição: Caetano Veloso
In: VELOSO, Caetano. Cê. São Paulo: Universal Music, 2006. 1 CD digital, estéreo.
117
Anexo D – A Base de Guantánamo
O fato dos americanos
Desrespeitarem
Os direitos humanos
Em solo cubano
É por demais forte
Simbolicamente
Para eu não me abalar
A base de Guantánamo
A base
Da baía de Guantánamo
A base de Guantánamo
Guantánamo
Composição: Caetano Veloso
In: VELOSO, Caetano. Zii e Zie. São Paulo: Universal Music, 2009. 1 CD digital, estéreo.