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105 Artigo Comunicação & Inovação, São Caetano do Sul, v. 15, n. 28:(105-113) jan-jun 2014 Barbara Heller Pós-doutora em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP); Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista (UNIP) – São Paulo (SP), Brasil. E-mail: [email protected] José de Mello Junior Doutorando em Comunicação Social pela UNIP – São Paulo (SP), Brasil. E-mail: [email protected] Artigo recebido em 30/10/2013 Artigo aprovado em 13/02/2013 Crítica ao determinismo tecnológico: teóricos da Sociedade da informação e periódicos de tecnologia Critique of technological determinism: theorists of the information Society and technology magazines Resumo Os periódicos dedicados à tecnologia nos meios digitais e impressos exprimem em seus discursos uma posição de apologia aos novos lançamentos da indústria da Tecnologia da Informação e de culto às personalidades que a lideram. O objetivo deste artigo é evidenciar o caráter determinista do discurso em questão relacionando-o a uma cadeia de validação dos interesses da indústria em detrimento de outras possibilidades de conformação tecnológica. A teoria crítica e a crítica genealógica auxiliarão este empreendimento, bem como os recentes movimentos de contestação desse tipo de hegemonia desenvolvidos pelos Cypherpunks. Palavras-chave: determinismo tecnológico; sociedade da informação; indústria cultural. Abstract The Periodicals dedicated to technology in the digital and printed forms express in their reports an apology to the new releases from the Information Technology industry, and the cult to the personalities that command them. The objective of this article is to show the deterministic character of this speech. Relating it to a chain of validation linked to the industries interest, in detriment of other possibilities of technological conformation. The critical theory and the genealogical criticism will assist this enterprise as well as the recent contestation movements to the hegemony created by Cyberpunks. Keywords: technological determinism; information society; cultural industry.

HELLER, Barbara; MELLO Jr._crítica Ao Determinismo Tecnológico_2014

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Crítica ao determinismo tecnológico

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    Comunicao & Inovao, So Caetano do Sul, v. 15, n. 28:(105-113) jan-jun 2014

    Barbara HellerPs-doutora em Comunicao pela Universidade Metodista de So Paulo (UMESP); Professora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Paulista (UNIP) So Paulo (SP), Brasil. E-mail: [email protected]

    Jos de Mello JuniorDoutorando em Comunicao Social pela UNIP So Paulo (SP), Brasil. E-mail: [email protected]

    Artigo recebido em 30/10/2013 Artigo aprovado em 13/02/2013

    Crtica ao determinismo tecnolgico: tericos da Sociedade da informao e peridicos de tecnologiaCritique of technological determinism: theorists of the information Society and technology magazines

    Resumo

    Os peridicos dedicados tecnologia nos meios digitais e impressos exprimem em seus discursos uma posio de apologia aos novos lanamentos da indstria da Tecnologia da Informao e de culto s personalidades que a lideram. O objetivo deste artigo evidenciar o carter determinista do discurso em questo relacionando-o a uma cadeia de validao dos interesses da indstria em detrimento de outras possibilidades de conformao tecnolgica. A teoria crtica e a crtica genealgica auxiliaro este empreendimento, bem como os recentes movimentos de contestao desse tipo de hegemonia desenvolvidos pelos Cypherpunks.

    Palavras-chave: determinismo tecnolgico; sociedade da informao; indstria cultural.

    Abstract

    The Periodicals dedicated to technology in the digital and printed forms express in their reports an apology to the new releases from the Information Technology industry, and the cult to the personalities that command them. The objective of this article is to showthe deterministic character of this speech. Relating it to a chain of validation linked to the industries interest, in detriment of other possibilities of technological conformation. Thecritical theory and the genealogical criticism will assist this enterprise as well as the recent contestation movements to the hegemony created by Cyberpunks.

    Keywords: technological determinism; information society; cultural industry.

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    Crtica ao determinismo tecnolgico tericos da Sociedade da informao e peridicos de tecnologia

    1. Introduo

    Steve Jobs, como os grandes revolucionrios John Lennon, por exemplo , foi capaz de mudar o mundo a partir de um sonho e de uma imaginao. E se os Beatles ou a Apple j acabaram ou vierem a desaparecer um dia, o que importa? Graas aos gnios, o mundo evolui, progride e se desenvolve.1

    AApplepoder anunciar uma terceira verso do tablet iPad nesta quarta-feira (7), em evento marcado para as 15h (horrio de Braslia) na cidade de San Francisco, nos Estados Unidos, dando fim a uma srie de rumores sobre o que teria o aguardado aparelho. [...] Diversos sites divulgaram informaes de que um novo tablet da Apple teria uma tela com maior defini-o, processador de quatro ncleos, seria mais fino e, por conta da nova tecnologia, mais caro. OG1separou dez novidades que so esperadas em um novo iPad, segundo os rumores que circularam recentemente.2

    As duas notcias acima, selecionadas de peridicos online, mas facilmente encontradas em verses impressas, reve-lam o culto dos veculos informativos tecnologia da infor-mao. Uma leitura completa da matria do G1 revelaria as suas especulaes acerca das novidades que acompa-nhariam o IPad 3 da Apple, produto que, dentre outros, cor-roboraram a fama de gnio revolucionrio de Steve Jobs, realada na coluna de Attuch.

    Na dcada de 1980, com o avano das tecnologias da infor-mao e comunicao (TICs) nas empresas e sua rpida disseminao no ambiente domstico, os temas relativos cultura informacional ganharam destaque nos peridicos. Em 1983, surgiu o caderno semanal de informtica do jor-nal Folha de So Paulo. O grupo Abril lanou em 1987 a revista INFO, voltada para temas relacionados computao pessoal. Esses peridicos tratam de forma excessivamente otimista as mudanas tecnolgicas, operam considerando naturais os avanos e depositando sobre os novos produ-tos a crena de que alteraro de forma irreversvel aspec-tos da cultura, da poltica e da sociedade. O processo de segmentao da mdia no novo e, por certo, est ligado

    1 Attuch, Leonardo. O futuro no morreu. Disponvel em: . Acesso em 10 de maro de 2013.

    2 Portal G1. Notcias de tecnologia. Disponvel em: < http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2012/03/novo-ipad-pode-ser-lancado-nesta-quarta-veja-o-que-se-espera.html>. Acesso em 10 de maro de 2013.

    diretamente a necessidades mercadolgicas, mas no ape-nas a essas. No caso dos cadernos dedicados s TICs, o que chama ateno a adeso absoluta dos cronistas aos enunciados da indstria, manifesto pela hegemonia nas matrias dos produtos, em detrimento de qualquer considerao a respeito dos impactos sociais, polticos e culturais que a introduo dessas inovaes representam.

    Essa apologia tecnologia est alinhada a um movimento que emergiu no meio acadmico nas dcadas de 1970 e 19803. Esse movimento originado em crculos cientficos esta-dunidenses e europeus difundiu-se pelo mundo. Refiro-me emergncia de novos paradigmas de poca, que procu-ravam definir o momento em que se vivia como de supe-rao da sociedade industrial. Os mais conhecidos so os paradigmas da sociedade da informao, do ps-fordismo e do ps-modernismo. Segundo Kumar:

    As teorias do ps-industrialismo [...] coincidem em muitos pontos. As diferenas so, certamente mais do que de nfase, embora reapaream em todas elas alguns temas e nmeros. A TI, por exemplo, que decerta forma define a ideia relativa sociedade de informao, tambm fundamental para a anlise das duas outras teorias. Na globalizao encontramos mais um denominador comum. (KumAr, 1997, p. 49)

    Neste artigo, desejamos demonstrar que existe alinhamento acrtico entre as ideias que constituem o paradigma4 de poca sociedade da informao e o discurso praticado por peridicos dedicados a temas como tecnologia e inform-tica, e que, a partir deste discurso, constri-se um campo5 de adeso s novas tecnologias sem uma perspectiva cr-tica nem a anlise de alternativas no prprio campo tec-nolgico. Sero investigados dois recentes artigos de capa da revista INFO, peridico que h 25 anos atua junto a um grande pblico, em especial os enunciados presentes em suas chamadas (manchetes).

    Tentaremos identificar quais condies permitem a propa-gao hegemnica de tais enunciados, os fatores que os

    3 Caso consideremos a Ciberntica, essa origem remontaria aos anos 1950. Porm, sua disseminao e extrapolao do ambiente tecnolgico deram-se a partir dos anos 1970.

    4 Os conceitos ps-modernidade e ps-fordismo no sero abor-dados neste artigo devido ausncia de espao, entretanto os conceitos presentes na sociedade da informao que sero tra-tados reverberam de forma semelhante tambm nesses outros paradigmas de poca.

    5 Campo no sentido em que foi elaborado por Pierre Bourdieu.

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    tornam possveis em detrimento de outros e as condies de poder que engendram como mecanismos multiplicadores de um modelo especfico de sociedade. Para esta anlise utilizaremos os conceitos de arqueologia e genealogia concebidos por Michel Foucault. Tambm nos valeremos da crtica contida no conceito de indstria cultural de Adorno e Horkheimer6 a fim de demonstrar o carter sistmico destes enunciados tecnolgicos, ou seja, a relao direta entre o sistema capitalista, os produtos da indstria tecnolgica e sua articulao com a indstria cultural na tarefa de cap-turar o tempo dos indivduos, submetendo-os a uma lgica de consumo que retroalimenta a inovao tecnolgica, ao mesmo tempo em que reproduz modelos hegemnicos. Por fim, abordaremos as propostas do movimento Cypherpunk,7 que h duas dcadas desempenha papel de vanguarda na crtica ao modelo hegemnico assumido pelas tecnologias da informao e comunicao.

    2. Sociedade da Informao e determinismo tecnolgico

    Os tericos da Sociedade da Informao (SI) por vezes so apologticos quando se referem s transformaes sociais e culturais que ocorrem com a adoo de novas tecnolo-gias. O progresso tcnico visto como redentor e promotor de transformaes em todos os campos da sociedade. Ele subordina tecnologia todas as outras dimenses da reali-dade. Cultura, sociedade, economia e poltica se transfor-mam em espaos erodidos e reconfigurados pela atuao teleolgica do avano tcnico, que, por sua vez, encontra-se subordinado lgica do capital.

    A centralidade da informao na sociedade aparece primeiro nas obras do terico da ciberntica, Norbert Wiener, que na dcada de 1950 influenciou estudos comunicacionais e o

    6 A relao de Foucault com a primeira gerao da escola de Frankfurt foi demonstrada por Axel Honneth (2009, apud Hilrio e Cunha, 2012), que observa na crtica genealgica de Foucault as mesmas debilidades de dficit sociolgico encontradas nos escritos de Adorno e Horkheimer, que realizam uma crtica fun-cionalista ao subordinarem a razo sua vertente instrumental que busca de todas as formas dominar a natureza.

    7 Os cypherpunks constituem um movimento aberto que defende a utilizao da criptografia e mtodos similares para provo-car mudanas sociais e polticas. No incio dos anos 1990 foi criado o movimento, que atingiu o seu auge durante as crip-toguerras e, aps a censura da internet em 2011, durante a primavera rabe. O termo a fuso de cipher (escrita cifrada) com punk e consta desde 2006 como verbete no Oxford English Dictionary. Seurepresentante mais conhecido Julian Assange, do WikiLeaks.

    desenvolvimento de dispositivos computacionais. O termo Sociedade da Informao foi cunhado por Daniel Bell nos anos 1970. O autor considera que a superao da socie-dade hegemonizada pelo setor industrial por uma sociedade marcada pelos servios e pela emergncia da informao como insumo econmico predominante marcam essa nova etapa. Bell foi cauteloso quanto influncia das mudanas econmicas nas dimenses social e cultural, mas muitos de seus seguidores estenderam o conceito para todas as dimenses da sociedade. O caso mais exemplar o de Alvin Tofler, autor estadunidense de best sellers, especializado em obras de anlise de tendncias para o futuro. Em seu livro mais conhecido, vaticina:

    A Terceira Onda traz consigo um novo modo de vida genuinamente novo, baseado em fontes de energia diversificadas e renovveis; em mtodos de produ-o que tornam obsoletas as linhas de montagem das fbricas; em novas famlias no-nucleares; numa nova instituio que poderia ser chamada a cabana eletrnica; e em escolas e companhias do futuro, radicalmente modificadas. [...] Esta civilizao nova, desafiando a velha, deitar por terra as burocracias, reduzir o papel do estado-nao e ir gerar econo-mias semiautnomas num mundo ps-imperialista. (tofler, 1980, p. 24)

    Nas palavras de Tofler, possvel notar os ecos de Marshall McLuhan, um grande difusor de ideias que concedem tecnologia um papel determinante nas transformaes sociais e culturais.

    Com o advento da internet e sua crescente expanso sur-giram softwares que visam interao online em ambien-tes digitais de indivduos. Banalizados com o nome de redes sociais, renem de milhares a centenas de milhes de pessoas. O Facebook atualmente o mais conhecido e utilizado. Uma srie de livros e publicaes acadmicas tem sido escrita, dedicada ao tema. Lanado recentemente no Brasil, Clay Shirky um dos mais conhecidos autores sobre o tema. Em sua obra L vem todo mundo: o poder de organizar sem organizaes, ele torna clara a motivao conceitual que suporta as suas hipteses sobre o poder organizador espontneo das redes sociais:

    Quando mudamos a maneira de nos comunicarmos, mudamos a sociedade. As ferramentas que uma sociedade usa para se criar e se manter so to cen-trais para a vida humana quanto uma colmeia para a vida das abelhas. [...] A colmeia um dispositivo social, uma pea de tecnologia da informao das abelhas que fornece uma plataforma, literalmente,

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    para a comunicao e a coordenao que tornam a colnia vivel. No possvel compreender abelhas individuais parte da colnia ou do ambiente que compartilham e criaram em conjunto. D-se o mesmo com as redes humanas: abelhas fazem colmeias, ns fazemos telefones celulares. (ShirKy, 2012, p. 20)

    Quer sejam totalmente aderentes ideia de uma socie-dade hegemonizada pela tecnologia, como Tofler, Shirky ou McLuhan, quer aderentes com ressalvas, como Bell, esses autores so responsveis por uma cadeia de legitimao de um conceito, hoje naturalizado, de que o desenvolvi-mento tecnolgico o vetor principal das mudanas polti-cas, sociais e culturais. Sabemos que, de certo modo, esse tipo de crena na tecnologia j se encontrava presente nos primrdios da modernidade, em especial na crena depo-sitada pelo Iluminismo no poder emancipador do conhe-cimento cientfico. Mas hoje esse tipo de discurso ganhou nova intensidade e plasmou-se em produtos e personali-dades da indstria tecnolgica.

    O calendrio da sociedade passou a contar com uma nova modalidade de sincronizao: a dos lanamentos de novos gadgets (dispositivos como tablets, celulares, etc.), ou de novas verses, que se aproveitando dos ganhos contnuos nas capacidades de processamento e armazenamento, oferecem novas funcionalidades ao mesmo tempo em que buscam a miniaturizao. Quando escreveram sua crtica indstria cultural,8 os autores da Dialtica do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer, identificaram que o entretenimento propiciado por essa indstria visava prolongar o controle exer-cido sobre os trabalhadores durante as horas de trabalho. Dos anos 1940 para c, a indstria cultural transformou-se significativamente: enquanto no passado ela buscava captu-rar a ateno dos indivduos em seus instantes de cio, hoje fundiu-se s demais indstrias e os gadgets so os meios pelos quais a ateno dos indivduos capturada em todas as esferas da vida. No importa se no trabalho ou no lazer, celulares, laptops, tablets e demais artefatos so as por-tas de conquista do tempo presente e futuro dos indivduos.

    Sim, os contratos de controle do tempo j no se contentam em capturar as horas de cio, eles querem obter o controle

    8 O conceito elaborado por Adorno e Horkheimer passvel de diversas crticas. A principal delas se refere ao modelo hist-rico filosfico sobre o qual constroem a sua tese. Esse fun-cionalista e atribui cultura um papel de mera reprodutora das relaes econmicas e de trabalho da sociedade. No obstante essa crtica, consideramos vlida a ideia de que a conquista do tempo ocioso dos trabalhadores era uma das caractersticas da cultura de massas emergente. Esse processo continua vigente.

    sobre o tempo futuro, o estoque de horas ainda no traba-lhadas, ainda no vividas, e isso se consegue com o sis-tema de crdito e com acelerada obsolescncia dos gad-gets e acessrios. Nesse modelo, o trabalhador dedica suas horas laborais empresa capitalista como um operrio da informao trabalha consumindo contedos em seus gad-gets (no se engane, nenhum firewall9 conseguir impedir o acesso s redes sociais durante o expediente), pode ser na estao de trabalho, mas tambm no celular. O traba-lhador executa as tarefas de seu trabalho, mas ao mesmo tempo consome contedo. Em meio aos contedos, por vezes de forma hegemnica, esto plantadas as necessi-dades por futuros gadgets e seus respectivos contedos inovadores. E esse ciclo de inovao-consumo-obsoles-cncia alimenta e alimentado pelo discurso tecnolgico. Seu fluxo constante tende a minar o pensamento crtico daqueles nele inseridos. O processo de consumo cultural no qual os gadgets tecnolgicos se inserem respaldado por um discurso hegemnico presente nas diversas mani-festaes da mdia tradicional dedicadas ao tema tecnologia. Tal discurso vincula-se tradio filosfica determinista e j assumiu diversas formas no desenrolar da modernidade.

    A forma vulgar de determinismo pressupe que os acon-tecimentos so decorrentes de condies prvias e que o conhecimento dessas condies de determinao signifi-caria a possibilidade de prever o que aconteceria no futuro. A viso filosfica do determinismo mais complexa:

    Em sua influente forma filosfica articulada por Hume e por Mill, o determinismo surge como o determinismo da regularidade, isto , para todo acontecimento x h uma srie de acontecimentos y1...........yn, tal que eles so regularmente conjugados. (Bottomore, 2012, p.145)

    O determinismo tecnolgico seria uma apropriao vulgar do conceito filosfico, uma espcie de pr-determinismo que consideraria a sociedade humana como em estado decons-tante evoluo, que se d a partir da construode novos conhecimentos, encontrados em constante inovao e que se plasmam regularmente em artefatos tecnolgicos novos. Para essa viso, cincia e tecnologia seriam neutras e seus desenvolvimentos, inerentes ao inexorvel progresso social.

    O discurso tecnolgico est repleto deste tipo de imperativos. Aspoucas citaes deste artigo, as quais podem ser somadas a inmeras outras presentes em variadas literaturas, como teses acadmicas e livros de autoajuda profissional, demonstram a

    9 Software de proteo de redes digitais de informao.

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    crena na hegemonia do tecnolgico sobre as outras dimen-ses da vida, bem como exilam os conflitos polticos e sociais, considerando tais artefatos neutros e naturalmente gerados.

    3. Enunciados

    A seguir reproduzimos as chamadas (manchetes) e suas introdues extradas de dois nmeros da Revista INFO:

    Voc vai chegar em casa e, ao acenar e dizer ol para a parede da sala, surgiro jogadores de futebol, atores de Holywood e fotos de seus amigos em 3D. Todas as cenas pipocando na parede viro de uma tela finssima e transparente. Ela poder reconhecer quem est por perto e sugerir filmes, sries e jogos. Conectada a Internet, possibilitar compras online e compartilhamento em redes sociais. Sincronizada com o tablet e o celular, permitir assistir a progra-mao onde e quando o espectador quiser. Quem manda o contedo online, interativo e customizado. Bem-vindo a TV do futuro. (rothmAnn, 2012, p. 54)

    Abra sua carteira e examine com ateno o contedo, nela h cdulas de diferentes valores, moedas, algumas folhas dobradas de um talo de cheques quase nunca usado, cartes de dbito e crdito de um ou dois ban-cos [...] por mais til que parea, voc leva no bolso ou na bolsa um objeto ultrapassado [...] Ainda este ano as velhas carteiras de couro perdero sua exclusividade, em seu lugar entram os celulares. (BrASil, 2013, p. 50)

    A forma imperativa utilizada pelas duas matrias apresen-tam a inovao como um fato, algo que j aconteceu, e que livre de qualquer conflito se impe sociedade. A voz inti-mista que fala diretamente ao leitor como em um dilogo, disfara a impossibilidade de resposta. como se o jorna-lista se convertesse em um amigo que conta uma fofoca. Algo secreto, importante, que o leitor precisa saber, sob pena de perder algo, de ficar defasado.

    O no dito, neste caso, to ou mais importante do que o que expresso. Ao afirmar que o leitor em breve ser usu-rio destas inovaes, o enunciador coloca o leitor diante de uma certeza. Caso no seja usurio, ser um desviante, um outsider, uma pessoa defasada, mas candidato a upgra-des. O que cala, mas flana sobre o discurso do jornalista, ideia de obsolescncia, uma ameaa que no limite pode condenar o usurio condio de excludo.

    Outro aspecto interessante do discurso a forma como ele insere os gadgets na nova maneira de consumir contedos

    e realizar pagamentos. Celulares, tablets, TVs, tudo inte-grado. Se voc no possui um aparelho com estas capacida-des voc estar defasado. E, finalmente, o mais importante de tudo: o processo de inovao oferecido permite que o usurio faa compras da forma mais fcil, segura e mvel. No difcil imaginar as financeiras ofertando crdito to logo os recursos do comprador escasseiem. Ento, o cr-culo estar fechado, a lgica de consumo, dvida, empenho do tempo presente e do tempo futuro estaro completos. A crtica promovida por Adorno e Horkheimer indstria cultural nos ajuda a revelar este engenhoso mecanismo, porm outras ferramentas evidenciam as estratgias de poder engendradas nesse fenmeno.

    4. O discurso tecnolgico em face crtica de Foucault

    A filosofia de Foucault foi concebida como uma caixa de ferramentas da qual seus leitores podem se apropriar em suas crticas a objetos diversos. O mtodo arqueolgico desenvolvido na primeira fase de sua obra pressupe um rompimento com modelos historicistas que consideram a histria um fluxo sucessivo e contnuo. Foucault inte-ressavam os enunciados, que operam de forma transver-sal, diferentemente de frases e axiomas. Os enunciados e no os enunciadores. A arqueologia uma modalidade da anlise de discurso, compreendida em sua modalidade de arquivo. O discurso para Foucault seria composto por um conjunto de enunciados originados em um mesmo sistema de tal forma que poderamos falar de discurso filosfico, econmico, tecnolgico e clnico, entre outros.

    A Arqueologia procura entender como tais enunciados acontecem e quais condies possibilitam a sua existncia. Aarqueologia busca compreender as relaes entre enun-ciados e suas excluses. Para Foucault (1997), o enunciado uma proposio ou uma frase considerada desde a partir das condies que a tornaram possvel e no convencio-nalmente como proposio ou como frase. Foucault define desta maneira a possibilidade de existncia do enunciado:

    Existncia que faz aparecer algo distinto de um puro trao, mas como um domnio de objetos; no como resultado de uma ao ou de uma operao indi-vidual, mas como um jogo de posies possveis para um sujeito; no como uma totalidade orgnica, autnoma, fechada em si mesma e suscetvel de sozinha constituir um sentido, mas como um ele-mento em um campo de coexistncia; no como um acontecimento passageiro ou um objeto inerte, mas como uma materialidade repetvel. (foucAult, apud cAStro, 2004, p. 137)

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    Crtica ao determinismo tecnolgico tericos da Sociedade da informao e peridicos de tecnologia

    O nvel enunciativo se encontra entre a materialidade das formulaes e a regularidade expressa em frases e propo-sies. O Dicionrio de Foucault define o enunciado como o tomo do discurso.

    Outra definio importante ao mtodo arqueolgico o de formaes discursivas. Segundo Foucault (1997), so regras annimas surgidas historicamente que definiram o exerccio da funo enunciativa nos espaos econmicos, polticos e culturais de um dado perodo. Portanto, uma anlise das condies histricas que possibilitaram, em um certo momento, que apenas determinados enunciados tenham se efetivado, e no outros. E isto no apenas em um momento histrico, mas em vrios, nos quais enuncia-dos similares se tornaram possveis.

    Outra ferramenta utilizada por Foucault foi a genealogia, pre-sente na segunda fase de sua obra, inspirado em Nietzche, mas em alguns aspectos distintos de seu precursor.

    A mudana para a genealogia ocorrida no incio dos anos 70 uma mudana no foco do seu questiona-mento. O que lhe interessava na histria da cincia no eram mais questes concernentes s regras internas e condies da emergncia de prticas discursivas, ou se o desenvolvimento da cincia era contnuo ou descontnuo. Ele se voltou, em vez disso, para o estudo da conexo entre relaes de poder e a formao do conhecimento cientfico. Aprincipal assero de sua genealogia que as regras que regulam as prticas cientficas esto sempre asso-ciadas s relaes de poder da sociedade em ques-to. (oKAlA, 2011, p. 63)

    Ao submetermos o discurso tecnolgico, permeado por enunciados deterministas, a uma anlise arqueolgica identificamos a presena enunciativa materializada nos produtos em permanente mudana de funcionalidades e design. Esta constante e acelerada transformao, que altera tudo para no alterar nada, evidencia a con-dio paradoxal, ao mesmo tempo visvel e oculta desse processo enunciativo. Independente de quem sejam os seus criadores, autores e enunciadores, as condies histricas que propiciam a constante manifestao desse discurso so aquelas que constituem a modernidade tardia: uma sociedade especializada, na qual o dis-curso do especialista possui a prerrogativa da verdade; uma sociedade de indivduos cada vez mais solitrios que precisam preencher seu tempo ocioso com objetos que mimetizem a presena de outros indivduos; uma sociedade hedonista, na qual a busca do prazer uma regra moral.

    A crescente unidade entre os diversos segmentos da eco-nomia capitalista e sua interveno organizada na esfera social tambm so condies de possibilidade de um discurso tecnolgico que se materializa na apologia dos artefatos convertidos em avatares de felicidade. Essa articulao pressupe a sincronizao da realidade a partir dos meios de comunicao e seus contedos, sincronizao que s possvel graas proliferao universal de dispositivos tecnolgicos que atuam o tempo todo na distribuio dos contedos miditicos. Os enunciados presentes nesses contedos so aqueles que objetivam promover a coeso social, com base no estabelecimento de consensos, obti-dos, sobretudo, a partir da supresso ou desqualificao de posies discordantes. Ou como diria Flusser (2011), os aparelhos que nos programam so sincronizados, e aqui podemos entender os aparelhos no sentido estrito, material e evidente, como sendo os gadgets, mas em um sentido mais amplo tambm podemos entender por apare-lhos a indstria de contedos que tambm opera de forma sincronizada e sincronizante.

    A arqueologia trata dos discursos e sua condio de exis-tncia. Nos primrdios da Modernidade, cincia e tecno-logia conviviam de forma dissociada. Enquanto a primeira estava ligada ao conhecimento, a segunda associava-se especialmente s artes mecnicas (WilliAmS, 2007). No final do sculo XVIII, o conceito de tecnologia passou a asso-ciar-se cincia, correspondendo aplicao prtica dos conhecimentos cientficos. O Iluminismo via na cincia a condio de luz necessria para dissipar as sombras que envolviam a sociedade, a cincia como prova da superio-ridade da razo em relao ao pensamento mgico e ms-tico presente nas supersties, mas tambm no discurso religioso. Essa caracterstica fundamental do Iluminismo parece plasmar-se no conceito de tecnologia em sua mani-festao a partir do final sculo XVIII, fortalecendo-se no sculo seguinte. interessante notar que a oposio tecnologia se deu em campos diversos: no movimento operrio, os ludistas viram nas mquinas uma ameaa ao trabalho e tentaram destru-las; na literatura de fico, em especial no gnero fico cientfica, sempre houve ambi-guidade em relao tecnologia, as inovaes exerciam seu fascnio, mas havia sempre uma perigosa sombra por ela engendrada. Nasobras de Julio Verne, Edgar Rice e H. G. Wells possvel notar esta tenso. Mas foi principal-mente em autores da segunda metade do sculo XX que a tecnologia passou a ser associada a profundas distopias. Autores como Phillip K. Dick, Arthur Clark e Isaac Asimov apresentaram o potencial da tecnologia para o controle e a destruio. A fico cientfica como gnero cinematogr-fico tambm explorou esse aspecto em filmes, entre eles Matrix e O exterminador do futuro, para ficar apenas nos

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    Crtica ao determinismo tecnolgico tericos da Sociedade da informao e peridicos de tecnologia

    de maior sucesso. interessante notar que enquanto o dis-curso hegemnico presente na mdia e em compndios de autoajuda profissional promovem as ideias de neutralidade e avano natural da tecnologia, a crtica massiva a esses conceitos se realiza no mbito da fico, como uma diviso entre o discurso a ser levado a srio e outro a ser consu-mido como diverso e, que no limite, desfigurar a crtica poltica, feita a apologia tecnolgica.

    A genealogia do discurso tecnolgico revela que ele arti-culado a partir dos centros de poder e se propaga para a periferia. Nessa teia enunciativa, existem ns de diversas densidades que os ecoam e amplificam. Eles podem ser desenvolvidos nos ncleos militares da maior potncia blica do planeta, em colaborao com grupos empresariais que possuem a prerrogativa de propag-lo a partir de seus produtos, marcas e de seus departamentos de marketing. Podem tambm surgir no meio acadmico, serem absor-vidos pelo meio editorial que os propagaro na forma de manuais de autoajuda profissional, ou de gurus futurologistas que escrevem um livro por ano a fim de levar aos leigos as novas promessas do desenvolvimento tecnolgico. O fato que todo esse aparato de disseminao do discurso tecno-lgico existe, e tem funcionado de forma eficiente. Sua pre-sena em revistas e cadernos de jornais mais uma mani-festao de seu percurso enunciativo. Ospequenos lugares de poder, os insignificantes agentes em suas posies de fora, tornam possvel a sua propagao. Demaneira mali-ciosa, penetram na vida de todos, esto no seu bolso, no meu, os vi pela manh, os verei novamente tarde, eles me veem o tempo todo. s vezes, fingimos que no esto presentes, mas basta um clique, um toque no cran para que voltem a nos contemplar. Para Foucault, assim como para Nietzsche, o poder uma questo de exerccio da fora articulado em uma guerra permanente:

    Uma segunda resposta: se o poder em si prprio ativao e desdobramento de uma relao de fora, em vez de analis-lo em termos de cesso, contrato, alienao, ou em termos funcionais de reproduo das relaes de produo, no deveramos analis-lo acima de tudo em termos de combate, de confronto e de guerra? Teramos, portanto, frente a primeira hiptese, que afirma que o mecanismo do poder fundamentalmente do tipo repressivo, uma segunda hiptese que afirma que o poder guerra, guerra prolongada por outros meios. (foucAult, 1999, p. 176)

    A genealogia do discurso tecnolgico demonstra que ele nasce com a burguesia em seu movimento por superar as velhas formas medievais de controle exercidos pela igrejae nobreza. O conhecimento e o poder migram dos castelos

    e dos mosteiros para as fbricas. A cincia e a tecnologia demonstram que possvel dominar o infortnio, suplantar as velhas formas de controle e dominao por novos mode-los mais eficazes e de maior escala. Da aldeia para o globo, ou aldeia global, como preferem os tericos da sociedade da informao. Mas o discurso mutante, e as condiesde existncia que possua no passado no so as mesmas deagora. Elas mudaram, se tornaram mais sutis e difusas e, por isso, mais eficazes. O discurso tecnolgico, outrora uma fora revolucionria contra os velhos basties de poder religioso e nobilirquico, transformou-se no discurso de legi-timao de uma forma de controle social baseada no con-sentimento hednico. Continua sendo hegemonizado pela mesma classe social, mas agora se propaga com outro fim, de um centro capitalista para todo o globo, com o objetivo de assegurar que de forma sincronizada toda a populao do planeta esteja submetida a um mesmo programa de poder.

    E esse poder precisa que acreditemos que um homem talen-toso, que criou, juntamente com centenas de engenheiros e milhares de operrios, uma srie de programas de com-putador e de computadores pessoais (refiro-me a Steve Jobs), efetivamente fez a diferena e far grande falta. E se acreditarmos, deixamos de perguntar sobre que condies propiciaram a existncia desse homem e no outro, e que condies tornaram possvel a hegemonia desua indstria e no de outras. E a resposta talvez sejade que elas serviam de forma exemplar propagao de um modelo de domina-o e exerccio da fora, no propiciados por outros modelos.

    O discurso tecnolgico em sua manifestao moderno tar-dia serve exclusivamente para perpetuar as estruturas de poder vigentes e as prticas de consumo que esto aba-lando o ecossistema planetrio. Ao naturalizar a obsoles-cncia, promovendo ciclos de consumo de bens cada vez mais curtos, essa ordem discursiva leva acelerao do descarte e da aquisio de novos bens, multiplicando os impactos ambientais do consumo. A crtica a esse discurso usando os conceitos de Foucault, almeja trazer tona os conflitos que o prprio discurso tenta omitir.

    5. Cypherpunks, o olhar do grande irmo

    O movimento Cypherpunk surgiu a partir de uma lista de discusses na Internet que reuniu hackers de todo mundo. O objetivo era contrariar a lgica crescente de uma Internet controlada por corporaes e Estados. Os agentes desta contracultura digital so adeptos do software livre (open source) e das licenas livres. Sua principal arma a crip-tografia na troca de arquivos e informaes. O produto mais conhecido dessa iniciativa o site de informaes ou,

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    deveramos dizer, de vazamento de informaes, conhe-cido como Wikileaks. Uma constatao importante de um dos principais porta-vozes da lista anima o debate sobre as estruturas de controle as quais nos submetemos ao uti-lizarmos as modernas TICs:

    A vigilncia muito mais bvia atualmente do que quando o grosso dela era feito apenas pelos Estados norte-americanos, britnico, russo e alguns outros, como o suo e o francs. Hoje isso feito por todo mundo e por praticamente todos os Estados, em consequncia da comercializao da vigilncia em massa. E ela tem sido muito mais totalizadora agora, porque as pessoas divulgam suas ideias polticas, suas comunicaes familiares e suas amizades na internet. (ASSAnge etal., 2013, p. 43)

    A crtica dos Cypherpunks est na forma como corpora-es, em especial as ligadas cultura digital, como Google e Facebook, juntamente com governos, tm atuado para obter controle completo sobre a Internet, subvertendo as promessas de liberdade de acesso informao que a rede representou em seus primrdios. As informaes so estarrecedoras e ultrapassam em muito vises distpicas presentes em obras de fico cientfica. Em primeiro lugar, a rede explode completamente a soberania de estados-nao cujos princpios fundamentais so o controle destes sobre a economia, as foras armadas e a estrutura jurdica. Ora,no atual estgio, os Estados ainda controlam suas foras armadas, mas abriram mo de suas estruturas jur-dicas fortemente impactadas pelas leis internacionais que servem a poucos agentes, e principalmente abriram mos de suas moedas ao submeterem-se a sistemas de paga-mentos hegemonizados por um nico Estado:

    triste dizer, mas este o problema insolvel do mundo eletrnico atualmente. Duas companhias de crdito, ambas com uma infraestrutura eletrnica de autoriza-o centralizada nos Estados Unidos o que implica acesso aos dados na jurisdio norte-americana , controlam a maioria dos pagamentos em carto de crdito do planeta. [...] Isto significa que os Estados Unidos tem acesso aos dados, alm da opo de impor controles aos pagamentos internacionais. (ASSAnge etal., 2013, p. 105)

    Finalmente, mas no menos importante, uma nova e emer-gente tendncia tecnolgica, a computao em nuvem tem promovido a centralizao de servidores. Com o avano das ferramentas de virtualizao se tornou possvel a converso de grandes quantidades de recursos fsicos (servidores) em recursos virtuais. O aumento da disponibilidade de banda,

    somado queda do preo de armazenamento de dados, tornou vivel a concentrao de operaes dessa natureza em grandes datacenters. Os principais clientes desse tipo de tecnologia so empresas e governos, mas a imensa maioria dos usurios domsticos tambm consome algum recurso em nuvem, como o e-mail ou as redes sociais:

    Essa transio para a computao em nuvem tem uma tendncia bastante preocupante. Enormes clusters de servidores tm sido montados em uma nica localizao, porque mais eficiente padroni-zar tanto o controle do ambiente quanto o sistema de pagamento. uma tcnica competitiva, j que amonto-los em um nico local sai mais barato do que ter servidores espalhados. [...] nestes locais que a NSA instala alguns de seus pontos de inter-ceptao. A Internet poderia existir sem essa cen-tralizao, no que tal tecnologia seja impossvel, s que simplesmente mais eficiente centralizar tudo. Na competio econmica, a verso centrali-zada vence. (ASSAnge etal., 2013, p. 92)

    Os Cypherpunks denunciam essa tendncia, que em vrias dimenses do ambiente digital tem tornado o controle sobre os usurios algo corriqueiro e natural. As batalhas se do nos ambientes digitais, mas tambm nas arenas poltica e jurdica, j que por meio de legislaes restritivas da pri-vacidade que diversos governos e corporaes tm con-quistado o direito de acompanhar os passos de cada um de seus cidados/clientes.

    Os tericos da primeira gerao da Escola de Frankfurt identificaram na cultura de massas do capitalismo a tendncia ao controle que se estendia da fbrica ao lar. Sua crtica apresentava os limites do funcional, pois no viam nos receptores o poder de resistncia e negociao. Oconceito de poder de Foucault presente na genealo-gia compreende essa questo como uma disputa per-manente entre sujeitadores e sujeitados, com possveis mudanas nas posies e intensidades de controles exer-cidos. Apresena cada vez mais intensa de dispositivos que nos conectam ao ambiente digital controlado faz necessria a emergncia de instrumentos de resistn-cia. Aodenunciarmos o discurso determinista presente no jornalismo tecnolgico, buscamos contribuir com a articulao desses instrumentos. Outras formas de con-figurar o tecnolgico so possveis quando desvincula-das do domnio de grandes corporaes e de ciclos de obsolescncia curtos, formas colaborativas que preser-vem a identidade e a liberdade daqueles que navegam por estes oceanos. Tornar disponveis essas alternativas uma das tarefas da Crtica.

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    Crtica ao determinismo tecnolgico tericos da Sociedade da informao e peridicos de tecnologia

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