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CU55975178 655.5 C22 Bale ao de livraria. DEC lo 1963 HERBERT CARO BALCÃO DE LIVRARIA RIO DF. JANEIRO - 1960

Herbert Caro - Balcao de Livraria

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CU55975178 655.5 C22 Bale ao de livraria. DEC lo 1963

HERBERT CARO

BALCÃO DE LIVRARIA

R I O DF. J A N E I R O - 1960

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H E R B E R T C A R O

BALCÃO DE LIVRARIA

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA SREVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO

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Para N I N A e ERICO, que me animaram a escrever a série dos "Balcões".

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I

MEMÓRIAS DE UM LIVREIRO

Jt^AZ cinco anos que trabalho atrás do balcão de uma livraria. Cinco anos cheios de experiências simpáticas ou amargas, comparáveis, na sua variedade, àquilo que a crônica social costuma chamar de "lauta mesa de doces e salgados". Numa época em que muito ado-lescente empata as economias do papai na publicação de um diário íntimo, um lustro me parece para lá de suficiente para iniciar a redação de minhas memórias de livreiro.

Quando comecei a exercer essa profissão mais honrosa do que lucrativa, não era novato em assunto de livraria. Desde a minha infância lido com livros. Gosto de vê-los enfileirados nas prateleiras; gosto de acariciá-los; gosto até mesmo de lê-los. Mas verifi-quei que a metamorfose que transforma um rato de livraria num livreiro representa algo mais do que um simples pulo por cima de um balcão de apenas 75 cen-tímetros de largura. Há entre os doÍ3 uma distância tão grande que nem sequer Ademar Ferreira da Silva

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conseguiria tran&pô-la num salto tríplice. Es/tão se-parados por um mundo.

O livreiro nutre o desejo muito compreensível de vender os livros que tem em estoque; o freguês pro-cura de preferência os que não há, que estão esgotados nas casas editoras cu talvez nunca tenham sidc publi-cados. O livreiro prefere vender livros caros, o freguês anda à cata de pechinchas. Aprendi aos poucos que o livro mais procurado no Brasil deve ter aproximada-mente os seguintes característicos: seiscentas páginas bem impressas, fartamente ilustradas, de preferência em cores; aparência vistosa; encadernação em couro; con-teúdo capaz de agradar tanto a um erudito de sessenta e cinco anos como à sua netinha de nove; e um preço nunca superior a quinze cruzsiros. Por enquanto não encontrei esse livro, mas vejo-o nos meus sonhes, como os poetas românticos fazem com a flor azul.

Igual a todo livreiro que se preze, faço esforços desesperados para manter um estoque variado, interes-sante, para todos os gostos. Estou ainda longa de rea-lizar êsse objetivo, como pude depreender das palavras de um jovem freguês que, depois de lançar um olhar psrfunctório por cima das minhas estantes, exclamou desdenhosamente: — Eu queria saber por que os li-vreiros de Pôrto Alegre só importam porcaria!

Apesar de compungido por uma crítica tão severa, não desanimo. Continuo firme a trilhar a senda es-treita, íngreme, que é a vida de um livreiro nessa terra abençoada. De derrota em derrota, com a "lanterni-nha" na mão, almejo o campeonato das profissões.

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Aprendi, no entanto, que não é possível satisfazer todos os caprichos de meus fregueses. Mesmo fazendo abstração daqueles que confundem a porta da livraria com a da drogaria vizinha e me pedem injeções de penicilina, mesmo limitando-me aos que entram na li-vraria sabendo que ali se vende papel impresso — há alguns cujos desejos vão um tanto longe.

Nem sempre é a palavra escrita o que interessa ao freguês. Há pessoas para as quais a invenção de Gutenberg seria perfeitamente dispensável. Lembro-me, por exemplo, de uma que procurava certos cartões postais com fotografias de. . . (Como dizê-lo, sem en-trar em conflito com a Censura?) Bem, tratava-se sim-plesmente de "nus artísticos no plural". Quando ex-pliquei ao homem que não tínhamos êsse tipo de mer-cadoria, uma vez que a polícia não gostava dela, bra-dou muito decepcionado: — Mas eu gosto!

Ora, êsse cavalheiro sabia ao menos o que dese-java, no que se distinguia favoravelmente de muitos outros fregueses. Vou descrever uma cena típica que se repete com pequeníssimas alterações três vêzes por semana: Surge à minha frente um brotinho encanta-dor, na maioria dos casos acompanhado por uma ami-guinha de igual qualidade. Passa um olhar lânguido pelas prateleiras. Suspira levemente. Feito isso, per-gunta: — O senhor tem livros?

Vem então a minha vez de olhar as prateleiras cheias — ai de mim! — de obras ainda não vendidas.

— Eu queria um livro para o meu namorado, — prossegue o brotinho.

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conseguiria transpô-la num salto tríplice. Estão se-parados por um mundo.

O livreiro i.utre o desejo muito compreensível de vender os livros que tem em estoque; o freguês pro-cura de preferência os que não há, que estão esgotados nas casas editoras cu talvez nunca tenham òiJc publi-cados. O livreiro prefere vender livros caros, o freguês anda à cata de pechinchas. Aprendi aos poucos que o livro mais procurado no Brasil deve ter aproximada-mente os seguintes característicos: seiscentas páginas bem impressas, fartamente ilustradas, de preferência em côres; aparência vistosa; encadernação em couro; con-teúdo capaz de agradar tanto a um erudito de sessenta e cinco anos como à sua netinha de nove; e um preço nunca superior a quinze cruzeiros. Por enquanto não encontrei esse livro, mas vejo-o nos meus sonhes, como os poetas românticos fazem com a flor azul.

Igual a todo livreiro que se preze, faço esforços desesperados para manter um estoque variado, interes-sante, para todos os gostos. Estou ainda longe de rea-lizar êsse objetivo, como pude depreender das palavras de um jovem freguês que, depois de lançar um olhar psrfunctório por cima das minhas estantes, exclamou desdenhosamente: — Eu queria saber por que os li-vreiros de Pôrto Alegre só importam porcaria!

Apesar de compungido por uma crítica tão severa, não desanimo. Continuo firme a trilhar a senda es-treita, íngreme, que é a vida de um livreiro nessa terra abençoada. De derrota em derrota, com a "lanterni-nha" na mão, almejo o campeonato das profissões.

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Aprendi, no entanto, que não é possível satisfazer todos os caprichos de meus fregueses. Mesmo fazendo abstração daqueles que confundem a porta da livraria com a da drogaria vizinha e me pedem injeções de penicilina, mesmo limitando-me aos que entram na li-vraria sabendo que ali se vende papel impresso — há alguns cujos desejos vão um tanto longe.

Nem sempre é a palavra escrita o que interessa ao freguês. Há pessoas para as quais a invenção de Gutenberg seria perfeitamente dispensável. Lembro-me, por exemplo, de uma que procurava certos cartões postais com fotografias de. . . (Como dizê-lo, sem en-trar em conflito com a Censura?) Bem, tratava-se sim-plesmente de "nus artísticos no plural". Quando ex-pliquei ao homem que não tínhamos êsse tipo de mer-cadoria, uma vez que a polícia não gostava dela, bra-dou muito decepcionado: — Mas eu gosto!

Ora, êsse cavalheiro sabia ao menos o que dese-java, no que se distinguia favoravelmente de muitos outros fregueses. Vou descrever uma cena típica que se repete com pequeníssimas alterações três vêzes por semana: Surge à minha frente um brotinho encanta-dor, na maioria dos casos acompanhado por uma ami-guinha de igual qualidade. Passa um olhar lânguido pelas prateleiras. Suspira levemente. Feito isso, per-gunta: — O senhor tem livros?

Vem então a minha vez de olhar as prateleiras cheias — ai de mim! — de obras ainda não vendidas.

— Eu queria um livro para o meu namorado, — prossegue o brotinho.

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— Muito bem! Que é que êle gosta de ler? — digo eu, com a voz vibrando de otimismo. E se faz um silêncio que parece não ter fim, interrompido final-mente pela amiguinha, visivelmente irritada:

— Olha, Tereza, o Pedrinho já tem um livro. Por que não lhe compras uma gravata?

Antes que eu possa objetar que o rapaz provà-velmente já terá gravata também, fogem as duas a passo lépido.

Às vêzes, as conversas entre freguês e livreiro assumem o caráter de perguntas e respostas premiadas num quiz-program de rádio. Que acham, por exem-plo, daquela velhota simpática que desejava adquirir os poemas daquele homem que era amante daquela mulher que andava de calças? E como Chopin, segundo as minhas informações colhidas no filme "A noite so-nhamos . . .", nunca publicou um volume de poemar.. ofereci Musset, com êxito completo. Bem ao contrá-rio de um colega que fracassou redondamente, quando se tratava da biografia de "um escritor brasileiro que bebia muito". Há tanto borracho no ramo da litera-tura que as biografias de todos êles não caberiam numa única estante . . .

Mas um livreiro experiente nunca deve deixar transparecer a própria ignorância, nem sequer nas si-tuações mais escabrosas. Houve lá uma senhora im-ponente, desejosa de possuir o mais depressa possível "aquêie iivro de que fala todo o mundo em Paris". Notando a minha perplexidade, repetiu com certa im-paciência: — Mas o senhor deve conhecer o livro de

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que fala todo o mundo em Paris! — Veio-me então a idéia aliviadora que nem o estalo do Padre Vieira: — A senhora refere-se àquele livro de capa azul? Que lástima! Ontem vendemos o último exemplar!

Outros casco haverá em que talvez seja preferível bancar o idiota. Recordo-me de um môço de alma e gravata avermelhadas, e que procurava certas obras de literatura marxista. Ao saber que estavam em falta, indagou de mim: — Por que não encomenda êsses livros? Não gosta de Marx? — Surpreendido pela per-gunta direta, respondi: — Claro que gosto de Marx. Especialmente do Harpo!

Muito piores são os mal-entendidos que podem ocorrer com fregueses de pronúncia indistinta. Um de-les, certa vez, pediu um livro de "Catch-as-can". Meu colega deu uma olhada na prateleira de livros de esporte, onde não encontrou nada sôbrs "catch". Mas, como era hábil na nobre arte de vender, ofereceu em lugar da mercadoria desejada outra melhor, a saber, um ma-nual de jiu-jitsu. Sem resultado positivo, infelizmente, uma vez que o freguês ansiava por um tratado de filo-sofia intitulado "De Descartes a Kant".

Nem sempre o freguês e o balconista chegam a um acordo quanto ao gênero de mercadoria desejado. Há pouco, quando um professor quis adquirir na nossa li-vraria o "Fauno de Mármore", tendo em mente o ro-mance de Hawthorne, recém^publicado em tradução portuguêsa, uma colega, pensando que se tratasse de um pêso para papéis, disse ingênuamente: Fauno não te-mos, mas temos cavalo e cabeça de cachorro. . .

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Depois de tanta história de negócios malogrados, pode-se ter a impressão de que a venda de livros é uma coisa praticamente impossível. Não é bem assim. Con-sigo realizar ésse milagre, e até com relativa freqüên-cia; façanha que se explica não só pela bondade de minha freguesia como também pela astúcia que adquiri no contacto cotidiano com ela. Fiquei calejado. Apren-di a persuadir o doutor Fulano de que a edição enca-dernada de determinado clássico é muito mai-3 durá-vel do que a brochada, embora no meu íntimo tenhí». certeza de que o homem nunca abrirá o livro, de manei-ra que o fator durabilidade não tem tamanha impor-tância. Anos de experiência ensinaram-me que o velho rifão de "água mole em pedra dura" tem seu valor in-discutível, e depois de meia hora de lábia desenfreada, o desembaragador Sicrano sai convencido de que gosta mesmo de Picasso ou de poesia surrealista. Nos meus tempos de aprendizagem ainda me acontecia deixar es-capar um "Deus me livre!", quando uma freguesa me perguntava se eu já tinha lido o último romance da Coleção das Moças. Hoje agüento tais insinuações sem pestanejar. E quando certos adolescentes, ostentando camisas côr-de-malha, perguntam ruborizados se tenho o "Corydon" de André Gide, dou a resposta afirmativa r.um arrulho surdinado. Numa palavra: não há mais nada que me possa causar surprêsa, e dentre as lições que a vida atrás do balcão me fêz decorar, esta me parec? a mais importante: numa livraria há uma única coisa pior do que os fregueses; a saber, a falta de fre-gueses.

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II

DA SANTA IGNORÂNCIA

U MA das primeiras — e por sinal, das mais curio-sas — experiências que tive que assimilar durante os meus anos de aprendizagem é esta: fregueses novos que pela primeira vez entram na livraria assumem freqüentemente em face do balconista uma atitude entre agressiva e desdenhosa. Ora, quando pessoas que mais tarde consigo identificar como pacatas, sim-páticas. bem educadas, comportam-se assim ao primeiro contato com um desconhecido, deve haver razões pon-derosas, ancoradas no seu subconsciente. Não posso acreditar que se trate de um complexo de Édipo, trans-ferido do progenitor para o livreiro. Creio antes que nisso se manifesta um traumatismo vindo de tempos remotos, quando o freguês adolescente queria comprar um livro alegre para a namorada que ultimamente an-dava sorumbática, e o livreiro ingênuo, baseando-se no título da obra e na capa enfeitada de anjinhos e diabi-nhos, oferecia-lhe a "Divina Comédia".

Seja como fôr, cada vez que entra na livraria um freguês que nunca vi, já sei que dificilmente haverá

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amor à primeira vista. Pelo contrário! Quase sempre o distinto cavalheiro, ao transpor o limiar da porta, pas-sará um olhar rápido por cima das estantes, o olhar resignado de quem procura o que já sabe que não vai en-contrar . Aproximo-me meio tímido, meio atencioso, mas sou rechaçado por um grunhido que parece dizer: "Só quero olhar". Às vêzes, o freguês acrescenta áspe-ramente: "Pode-se olhar? Ou está proibido?" Mante-nho-ms na respeitosa distância que a situação impõe. O homem mete-se a perscrutar uma a uma as estantes de romances franceses, de livros de arte, de literatura alemã e de poesia italiana. Finalmente, dando sinais de esgotamento e impaciência, volta-se para mim: "Vo-cês têm alguma obra americana sôbre entomologia? En-to-mo-lo-gi-a, entendeu?" Quem sabe ouvir "as en-trelinhas", percebe nitidamente nessa maneira de es-candir as sílabas que o freguês diz de si para si: "Agora êsse desgraçado vai me mostrar um manual de etnolo-gia". Longe disso! Chegou o meu momento supremo: corro até a estante dos livros científicos, onde realmenta há um tratado de entomologia, que durante longos anos só despertava o interêsse das traças, talvez por motivos de parentesco. Para dar bom pêso, agarro ainda umas monografias sôbre a Psicopatologia dos Percevejos e a Vida Amorosa dos Gafanhotos. Empilho tudo à frente do freguês. Imediatamente êste muda de tática. Pensa que um destino bondoso lhe colocou no caminho, em vez do ignorantão esperado, um perito em entomo-logia. Sem demora me brinda com uma preleção sôbre as baratas domésticas que são a sua especialidade. Tudo

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vai bem até que comece a apertar-me com perguntas. E\idencia-se então que meus conhecimentos a respeito dêsses bichinhos não ultrapassam os da famosa Dona Judite, e que, igual a esta, prefiro a chinelada certeira aos mais afamados inseticidas. E ruidosamente des-morona a precária pontezinha que havia pouco ainda ligava freguês e livreiro. . .

Com os habitues da livraria dá-se justamente o contrário. As más línguas entre os meus conhecidos espalharam, na intenção de me abalarem o crédito ban-cário, que sou "um intelectual". Isso tem por conse-qüência que muita gente incauta me confunde com a Enciclopédia Espasa-Calpe em 89 volumes e vai à livraria para folhear-me. Ora, todo o mundo sabe que as enciclopédias têm suas falhas, e eu uso e abuso do direito de ter as minhas também. Falhas em abun-dância. Ninguém, nem sequer o mais exigente dos fregueses pode esperar que o livreiro tenha lido tudo quanto se publica neste mundo. Êle, como qualquer outra pessoa, pode e deve ler nas horas vagas o que lhe interessa e não o que alguns querem que se leia. Penosas experiências convenceram-me de que muitos dentre os tão falados best-sellers não passam em reali-dade ds (desculpem o trocadilho infame) pest-sellers, e que nem todo livro premiado em Paris é bom, uma vez que há tanto prêmio literário na França que des-cobrir uma obra não premiada será quase tão difícil como encontrar numa biblioteca particular um volume de poesia sem dedicatória do autor. Lembro-me de uma cena quase cômica que tive com uma garota um

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tanto pernóstica. Tirando da prateleira alguns roman-ces da moda, perguntou se eu tinha lido èsses livros. Diante da minha resposta negativa, exclamou: — Mas como! O Sr. não lê livros? — Expliquei então que ela confundia as nossas posições: que eu vendia livros e quem devia lê-los era a senhorinha.

Mas que significa vender livros? Acho que é algo mais do que apenas tirar a nota no talão de vendas à vista. É conhecer o estoque, informar o freguês, guiá-lo se isso fôr necessário. Quando uma criadinha pede vinagre no armazém, tem certeza de que não lhe ofe-recerão açúcar. O dono do armazém tem noções su-ficientes da mercadoria exposta, e nenhuma fábrica lançará no mercado um novo tipo de massas alimen-tícias sem informá-lo sôbre as vantagens de preço ou qualidade que o artigo oferece. Não é preciso que êle prove todas as latas de conservas empilhadas nas prateleiras. Basta que saiba o que elas contêm. É exatamente isso que também o freguês de livraria pode esperar de um bom livreiro: que êste tenha ao menos uns vagos conhecimentos quanto ao conteúdo e gênero dos livros expostos. E são justamente esses conheci-mentos que nem sempre se encontrarão. Por que?

Meus queridos colegas que como eu labutam atrás do balcão de uma livraria não são na sua vasta maio-ria nem broncos nem preguiçosos. Aquêles que con-sideram a "Divina Comédia" um livro humorístico são felizmente casos excepcionais. Verdade é que poucos balconistas têm o curso superior. Se o tivessem, pro-vavelmente extrairiam apêndices ou fariam outra coisa

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mais lucrativa do que vender livros num mundo infes-tado por televisão, futebol e histórias em quadrinhos. Quem apesar de todos os pesares trabalha no ramo de livraria tem fibra e quer vender mesmo. O que lhe falta são apenas fontes de informação.

Na livraria onde trabalho, dirijo uma secção de livros estrangeiros. Todo santo dia chegam para mim montões de catálogos, revistas bibliográficas, es-pécimes, prospetos. O pobre do carteiro mal pode com essa carga. É comovente vsr como os editores estran-geiros se esforçam por bem apresentar-me os seus pro-dutos, embora, devido à situação cambial, levem tanto tempo a receber o pagamento dos livros que me ven-dem. Continuam até a bombardear-me com material de propaganda, quando já suspenderam os fornecimen-tos por causa de nossos célebres "atrasados comerciais". E que propaganda bem feita! Cada país tem seu jeito especial na confecção de catálogos. Os inglêses fazem-nos sóbrios e instrutivos; os americanos, coloridos, atraentes, às vezes enfeitados de caricaturas; e os fran-ceses? Ah, les français! têm de tudo: não somente me mandam ensaiozinhos litcrárics para lá de sérios como também procuram tentar-me com páginas de amostra de livros veementemente fesceninos. Mas todos, sem exceção, comunicam-me tudo quanto me cumpre saber a respeito das suas novidades editoriais. Enviam re-senhas, fotografias de capas, excertos de críticas. Ex-plicam qual o tipo de freguesia que poderá interessar-se pela obra em aprêço, para evitar que eu ofereça um livro primário a um catedrático de universidade. Se

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com tudo isso à mão eu não soubesse dar aos meus fregueses as informações indispensáveis a respeito das obras que tenho em estoque, a culpa caberia exclusi-vamente a mim, já que os editores fizeram o possível para me facilitarem a venda.

Só raras vezes acontece o mesmo com o livro nacional. Causa dó o escasso material informativo com o qual meus colegas precisam contentar-se. Pa-rece-mo que muitos dentre os nossos editores pensam que para '"'lançar um livro" basta compô-lo, imprimi-lo, brochá-lo, distribuí-lo. Segundo a definição que en-contrei num dicionário da língua portuguesa, lançar significa: atirar com fôrça. Nesse caso há muito editor fracalhão na nossa terra, pois sua fôrça é apenas sufi-ciente para jogar o candidato a best-seller na cabeça do assustado livreiro.

Em geral, êste só trava conhecimento com os aba-caxis que deverá vender, quando já se encontram na sua mesa. Com o sinistro espectro do encalhe diante dos olhos espavoridos, começa então a estudar a capa e as abas. A capa, como de costume, mostra uma bela tricromía, fruto da imaginação de um renomado artista, que, devido aos seus múltiplos afazeres, não teve tempo para ler o livro. (Lembro-me de um policial ameri-cano que traduzi, e no qual a vítima morre envene-nada; logicamente, a capa mostra um cadáver de mu-lher com um revólver fumegante ao lado). Quanto às abas, há algumas boas e instrutivas, mas a maioria não passa de uma brilhante coleção de generalidades banais. De preferência depara-se com chavões como: "A obra-prima do famoso romancista. O vigor e a

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beleza do tema, quer do ponto de vista humano, quer do ponto de vista da realidade social, fazem dêste ro-mance uma obra literária do mais alto valor". Não acham que basta ler essas frases com a devida atenção para estar a par dc conteúdo da obra?

Resignadamente, o meu colega aguarda a reação da crítica literária. Ai dêle! Embora seja relativa-mente reduzido o número de lançamentos no mercado nacional, menor ainda é o de jornais que mantêm uma página literária. E os nossos críticos quase sempre preferem a terra firme da literatura de séculos pas-sados ao terreno pantanoso da produção contemporâ-nea. É mais interessante contribuir com mais um en-saio para a já avultada bibliografia de uma celebridade defunta a arrasar o livro de um autor vivo, capaz de escrever cartas desaforadas ao dono do jornal.

Assim se explica que o pobre do nosso livreiro geralmente andará muito bem informado com respeito à obra de Machado de Assis ou Raul Pompéia, mas só conhecerá o caráter de uma novidade literária, quando os fregueses voltarem à livraria para apresentar quei-xas. Em conseqüência disso, o mesmo balconista que oferecia despreocupadamente os primeiros exemplares da obra, empurrará a contragosto e com a consciência pesada a pilha que sobrou.

No meio dos fregueses que zombam da sua igno-rância e dos editores que acham que no Brasil se vende pouco livro, ergue-se a figura quixotesca do livreiro nacional. É o caso de se falar de "santa" ignorância, porque êle não tem culpa dela.

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III

LIVROS, LIVROS E MAIS LIVROS

H OJE em dia, todo o mundo anda se queixando de alguma coisa. Há crises por atacado. Crises das mais paradoxais. Quando os orizicultores acham muito baixo o preço do arroz e o resto do povo já não pode pagar o preço atual, fala-se de crise econômica. Quandc há mais automóveis na cidade do que espaço na rua, é crise de tráfego, e quando não entra bastante "rabo-de-peixe" no país, é crise de importações. Temos a crise do teatro, por causa do cinema, a crise do cinema, por causa do rádio e da televisão, e quando um filme enche a casa por semanas a fio, é tirado do cartaz, por causa da crise da moral. No meio de tanta lamúria, os livreiros não podem viver risonhos. Eis o porquê da "crise do livro".

Um amigo meu que de vez em quando me visita na livraria, costuma plantar-se em frente das estantes, contemplá-las longamente e dizer-me com ar pensativo:

— Pois é, meu caro Caro, livros, livros e mais livros!

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Parece-me que esta frase aparentemente despre-tensiosa encerra em si todo o problema do livreiro: há livros, livros e mais livros nas suas prateleiras, e deveria haver menos livros.

Trata-se, pois, de vender mais. Mas como e a qu3m? Procurei resolver o problema ao menos teori-camente. Como me ensinaram na Universidade, recorri r.os dicionários para saber o que é um livro e para que serve. Fiquei sabendo que é "um conjunto de folhas de papel, reunidas em volume", o que pouco me adian-tou. Verifiquei com certa surprêsa que é também "o menor dos estômagos dos ruminantes". Não entendo bem essa história, mas acho que no terreno da litera-tura os ruminantes devem ser aqueles tratadistas que fazem de noventa e nove livros velhos um centésimo. Quem precisa então de "estomago", mas grande, é o leitor.

Nada encontrei nos dicionários que fosse além dessas definições. Nenhuma resposta à pergunta cru-cial: "Para que serve um livro?" Os sábios que con-sultei limitaram-se a dizer lacónicamente: "Para ler, ora essa!" Já se vê que dessa forma restringem o cír-culo dos meus presuntivos fregueses às pessoas alfabe-tizadas e àquelas que têm tempo e vontade de ler. Isso é insuficiente. Desejo justamente vender livros a analfabetos também. E pensando maduramente en-contrei uma porção de casos em que o livro teria muita serventia, sem que fôsse preciso lê-lo.

Vivemos na era dos esportes. Livros pesados tipo "tijolo" podem ser usados com grande vantagem

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pelos haltsrófilos. Clubes de atletismo que compras-sem enciclopédias receberiam descontos especiais. Ver-dade é que certas obras têm um número ímpar de vo-lumes, mas também haverá gente com um braço só. . .

Livros são muito úteis para calçar móveis. Obtive excelentes resultados, quando se tratava de equilibrar uma escada-de mão sôbre degraus de diferente altura, cclocando embaixo dela seis volumes de uma História Universal.

Numa cidade onde metade da população perturba periodicamente o sono da outra metade, soltando fo-guetes em homenagem a clubes de futebol ou caudilhos políticos, não quero deixar de apontar para as possibi-lidades pirotécnicas do livro. Fogueiras de livros, como demonstraram os nazistas, são eficientes, lumi-nosas, e não fazem barulho.

Há também livros só para ouvir. Trata se quase sempre de livros na fase embrional, livros em botão, anteprojetos de livros. São livros de bolso por exce-lência, porque o autor os traz consigo. De inopino surge êle diante de uma vítima calmamente sentada num café ou num banco de praça, tira um calhamaço do bôlso e profere as palavras tradicionais: "Já conhece o capítulo final do meu último romance?" Na época da safra literária, nenhum intelectual pode andar de-sarmado na rua. Ao ver o vulto de um colega apa-recer no horizonte, convém sacar o manuscrito car-regado e dizer em tom de ameaça: "Cuidado, meu velho! Se me lês, te leio!"

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Infelizmente ainda não existem livros comestíveis. Intragáveis e indigestos há de sobra. Aos meus fre-gueses que vêm trocar livros recebidos de presente costumo explicar com profunda mágoa que manchas de manteiga ou de ovos, embora tornando a obra mais rica em calorias, não lhe aumentam o valor comercial.

Mas temos livros, graças a Deus, cuja finalidade exclusiva é serem vistos na prateleira, livros "para inglês ver". Não me refiro aos livros de arte que são antes livros para olhar. Falo daquelas coleções de en-cadernação vistosa que enfeitam uma parede de casa. Que dia de festa para um livreiro, quando entra um ricaço que acaba de construir um palacete e precisa urgentemente de dois metros de Dickens, um e meio de Balzac e dois e meio de César Cantu! E que decep-ção, quando no dia seguinte a esposa do ricaço devolve o Dickens, porque o vermelho da lombada não com-bina com a côr das cortinas do gabinete! Uma sugestão para as nossas casas editoras: lançai coleções em mui-tas cores, como fazem os fabricantes de automóveis! Hoje em dia, os fregueses são exigentes, e para satis-fazer as prescrições estéticas do arquiteto só serve às vêzes uma determinada tonalidade de amarelo.

Até o livro para ver já sofre as influências per-niciosas de uma concorrência desleal. Vi há pouco numa revista americana de decoração interna uma pa-rede forrada, na aparência, de um sem-número de livros. Mas, na realidade, o que havia eram duas portas pin-tadas de dorsos de livros, e atrás delas viam-se garrafas de uísque, conhaque e gim. Se esta moda pegar, ai de

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nós, os livreiros! Já fomos bastante prejudicados, quando o friso de calça caiu em desuso, uma vez que deixamos de vender os famosos livros de passar roupa.

Continua, porém, firme o mercado de livros para dormir. Fabricam-se êles em dois modelos: o livro de travesseiro, preferido pela mocidade estudantil, que o coloca na cama, emaixo da cabeça, na qual o conteúdo, de um modo misterioso, deve entrar durante a noite; e o livro de cabeceira, que é de efeito sedativo. Êsse tipo de livro não representa aliás nenhuma novidade. Os próprios gregos já o conheciam, como demonstra a "Teogonia" de Hesíodo. Mas foi muito aperfeiçoado por certos autores modernos, de maneira que hoje dis-pomos de obras irresistivelmente soporíferas. É de admirar qu2 o Departamento de Saúde admita a sua venda sem receita médica.

Apenas para completar a lista seja mencionado que existem livros até mesmo para ler.

Cada profissão sonha com seu paraíso parr ;cular. Os açougueiros imaginam-no povoado de bois que con-sistam exclusivamente de iilet mi ¿non. No jardim ds Eden dos barbeiros, os cabelos dos fregueses crescem tão depressa que é preciso cortá-los todos os dias. E eu almejo um recanto abençoado onde, para livros, livros e mais livros, haja leitores, leitores e mais leitores.

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XVI

A GENTE PRECISAVA DE UMA PLATAFORMA!

N UMA fase remota de minha existência agitada fa-briquei dicionários. Desde então tenho um fraco por êsses paquidermes entre os livros. Consulto-os a cada instante, não somente para resolver palavras cruzadas, mas também p^ra esclarecer penosas dúvidas que de vez em quando surgem no meu lsr. Ainda na semana passada aprendi com satisfação que a dona do armazém era uma "harpia", e não uma "hárpia"; sabedoria que poderá ser útil durante as crises do futuro. Com o tempo criei o hábito de recorrer aos dicionários mesmo sem necessidade, por mera brincadeira. Verifiquei que nunca me decepcionam e invariàvelmente me ensinam coisas curiosas.

Ontem abri um de vernáculo. Meu olhar fixou se na palavra "periódico". Li que, sendo adjetivo, signi-fica: "que se repete com intervalos regulares", e na forma substantiva, é sinônimo de jornal ou revista. O autor do dicionário em aprêço é meu amigo, mas, mesmo que não o conhecesse, simpatizaria com êle à primeira vista. Um brasileiro que estabelece sinonímia

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entre "periódico" e "revista" deve ser otimista por ín-dole. Há alguns gigantes entre os nossos magasines que são publicados em dias certos e levam muito a sério a obrigação de se repetirem com intervalos regu-lares: aplicam-na até às anedotas das suas páginas hu-morísticas. A maior parte das nossas revistas, porém, — sobretudo as de caráter literário — parecem-se antes com aquela efêmera que, na definição de meu dicio-nário, é um inseto de corpo muito delicado e vive ape-nas algumas horas em estado de adulto.

Do ponto de vista biológico, a revista literária re-presenta um fenômeno singular. Normalmente é o pro-duto de uma partenogênese coletiva. Costuma nascer nos cérebros de três ou quatro pais, simultáneamente. As mães, que são 03 enunciantes, só entram c-m ação muito mais tarde, para amamentarem o embrião. Na maioria das vêzes, a revista é concebida da seguinte maneira: alguns jovens estão reunidos em tôrno de uma mesa de bar. Discute-se a situação espiritual do país, que todos acham desoladora. Segundo o ritual adotado nos conciliábulos de literatos, são desferidas algumas flechas mortíferas contra a burguesia, as academias, as escolas da penúltima moda. Depois do segundo chope, tudo quanto existia até então está arrasado, triturado, pulverizado. O terceiro torna o ambiente mais cons-trutivo. Trata-se de erguer sôbre as ruínas do passado algo de novo, grandioso, nunca visto. Chega o mo-mento para alguém pronunciar as palavras mágicas, germinantes: "A gente precisava de uma plataforma!" E como Minerva da cabeça de Júpiter, salta a revista

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literária das testas enrugadas de seus quatro progeni-tores .

Grande parte da sua vida é intra-uterina. No co-meço há intermináveis discussões, copiosamente rega-das com cerveja. É preciso dar um nome à recém-con-cebida. Surgem sugestões de tôda espécie, sonoras como "Clarinada", luminosas como "Labareda", tremen-das como "Terremoto", irrequietas como "Moto Per-pétuo". Finalmente consegue-se um acordo, fruto dq euforia que o sexto chope costuma acarretar. O nome definitivo é "Terremoto Perpétuo". No dia seguinte, porém, surgem novas divergências fundamentais sobre questões de princípio. Metade dos pais desejava que a revista tivesse tendências neo-surrealistas, ao passo que a outra preferiria um órgão subexistenciaüsta, com algumas manchas infra-verrnelhas. Depois de um bate-bôea acalorado, o grupo dos pais subdivide-se em dois, que daí em diante levam vidas próprias, feito minhoca cortada pelo meio. Teremos, pois, duas re-vistas em vez de uma, com a possibilidade sumamente grata delas se combaterem reciprocamente.

Inicia-se então a via crucis dos atarefados proge-nitores. Mencionar uma a uma as suas estações, desde o anunciante pouco disposto a cooperar com o futuro da literatura nacional até ao impressor abertamente desconfiado quanto à solvência de literatos, descrever todos os contratempos, peripécias, crises, exigiria o es-paço total de vinte páginas desta fôlha. Depois de terem esbanjado boa parte de seu talento com lábia infrutífera, os pais passam as últimas semanas da ges-

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tação em estado desinteressante: só sabem falar "da Revista" — sempre se usa êsse singular da majestade, que também os políticos empregam, quando se referem "ao Partido". A revista parece ser o centro do mundo. A revista vai ser isto, a revista vai fazer aquilo.. .

E um belo dia sai ela ã luz. Sai realmente. Tem a capa enfeitada por uma gravura de estilo vanguar-dista. No frontispício afirma ser uma publicação men-sal (ou bimestral, ou trimestral), o que no fundo fica indiferente, já que o segundo número nunca ultrapassa a fase do anteprojeto. Durante oito dias bem con-tados pode ser vista nas vitrinas de tôdas as livrarias de sua cidade natal, que são diariamente percorridas pelos pais desejosos de saber como vão as vendas. Não vão muito bem, obrigado. Venderam-se dois exem-plares aos membros de outros tantos grupos literários, de tendência oposta, e que haviam feito uma "vaca" para adquirir um número, na intenção manifesta de falarem mal das contribuições. O resto do público não se sente abalado pelo "Terremoto Perpétuo". E silen-ciosamente morre a efêmera, após ter vivido apenas poucas horas em estado de adulta.

Tôda esta história melancólica, que nas cidades grandes do Brasil "se repete com intervalos regulares", deveria servir de lição para mim. Ainda assim, sou da opinião de que não há bastantes revistas no nosso país. Falta, ao meu ver, pelo menos uma, que poderia ser de grande utilidade para muita gente, a saber: os livreiros, os editores e até mesmo o público ledor. Fi-nalidade dêste artigo é encarecer a necessidade de uma

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revista bibliográfica, de caráter mais ou menos oficial, editada pelo Sindicato dos Livreiros, pelo Instituto do Livro, pela Câmara do Livro, ou por tôdas essas insti-tuições em conjunto. Revistas congêneres existem em muitos outros países. Menciono apenas a "Bibliogra-phie de la France", o "Bookseller" inglês, o "Buchha-endlerboersenblatt" alemão. Seria incumbência dessa revista informar os livreiros sobre o programa de lan-çamentos e reedições das casas editoras, comunicando-Ikes tudo quanto precisam saber para fazerem pedidos adequados, em tempo oportuno, e serem capazes de bem vender a mercadoria. Além disso poderia ela de-fender os interêsses da classe dos livreiros em assuntes fiscais, lutando, por exemplo, em prol de uma modifi-cação das tarifas alfandegárias, que, a respeito de li-vros, contêm uma porção de coisas absurdas. Outra secção valiosa deveria ser um serviço de procura de obras esgotadas, importantíssimo num país onde tão pouco se reedita. Graças a êle, os livreiros teriam uma possibilidade para conseguir de outros colegas ou de segunda-mão certos livros que de há muito deixaram de estar disponíveis nas casas editoras.

O financiamento de uma revista dêste gênero não me parece excessivamente difícil, já que os editores terão o máximo interêsse em anunciar os seus livros num órgão assinado por tôdas as livrarias. Para a classe dos livreiros, tradicionalmente muda, um porta-voz teria valor inestimável. Por isso é com certo oti-mismo que lanço o grito fecundante: "A gente precisa de uma plataforma!" Que Deus e o pessoal competente no Rio me ouçam!

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IX

PLANTANDO D Á . . .

H Á algns dias, uma graciosa senhorinha pediu-me um livro que um amigo muito lhe recomendara: o "Ham-leto", na tradução de André Gide. Ao ver a obra, disse espantada: — Mas eu pensava que era em português! — E não se conformou com a explicação de que talvez fôsse um tanto difícil para um escritor francês verter uma peça de Shakespeare para o idioma de Camões.

Por mais exagerada que me pareça a exigência da mocinha em aprêço, não posso deixar de admitir que nem todos os fregueses são poliglotas, e que o pú-blico tem razão quando espera encontrar determinadas obras-primas da literatura universal em boas traduções brasileiras. Seria injusto negar que o nível geral das nossas traduções melhorou muito durante o último de-cênio. Mas a quantidade da nossa produção editorial não acompanhou em absoluto o progresso qualitativo. Publica-se ridiculamente pouco no Brasil, e muito livro de valor jamais consegue ser lançado em língua nacio-nal. Ora, nós, os livreiros, sabemos que justamente os

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livros que não existem são os mais procurados. Não se passa nem um único dia sem que eu ouça as seguintes palavras: "Vi na sua vitrina um livro francês (ou in-glês, italiano, espanhol, alemão) sobre tal e tal assunto. O Sr. não tem êsse livro em português?" E minha resposta, quase sempre, será negativa.

Tenho alguns amigos entre os nossos editores, e já tive ensejo de lhes perguntar por que se publicavam tão poucos livros nesta terra abençoada. Em geral evito êsse tipo <íe conversa, uma vez que me comove em demasia. Meus olhos transbordam de lágrimas, quando ouço tanta choradeira. Tem-se a impressão de que editar livros no Brasil não é negócio, mas puro heroísmo. Atravessar o Pacífico numa jangada tipo Kon-tiki deve ser café-pequeno em comparação com os perigos que oferece um lançamento no mercado na-cional. Mendigar numa esquina mais ou menos mo-vimentada é infinitamente mais lucrativo. E r;m se-guida apanho um autêntico bombardeio de razões, to-das elas baseadas em fatores adversos: mão-de-obra caríssima, escassez de papel, dificuldades de distribui-ção, reduzido número de leitores, etc. Depois de meia hora de argumentação entrecortada pelos convulsivos soluços de meu interlocutor, tenho que concordar com êle: não é verdade que faltam livros no Brasil; temos até demais!

No dia seguinte, porém, quando os meus fregueses procuram desesperadamente a edição brasileira desta ou daquela obra, volto a duvidar. Será que o nosso mercado realmente não comporta maior número de lan-

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çamentos? Será que entre os livros nunca publicados no Brasil não haverá muitos que sejam interessantes não somente para os leitores, senão também para os cofres das casas editoras? Será que os livros editados por meus amigos, os editores, e que lhes deram pre-juízo, foram todos eles bem escolhidos, lançados em momento oportuno, apresentados de forma eficiente? Será q u e . . .

Embora o livro seja uma mercadoria sui gerieris, não deixa de ser uma mercadoria. Sua fabricação e venda obedecem às mesmas leis econômicas que vigo-ram em outros setores da indústria e do comércio. Só se fabrica o que provavelmente terá procura; só r.e pode vender o que desperta o interêsse dos fregueses. Ne-nhuma fábrica de tecidos imitará cegamente quaisquer padrões estrangeiros, sem antes estudar o gôsto talvez muito diferente do nosso público. Mas houve entre nós editores que compravam sistemáticamente os di-reitos autorais de todos os best-sellers norte-americanos, sem se preocuparem nem um pouquinho com as incli-nações literárias de nossa gente. E o resultado? A mais potente dentre essas casas foi fechada há alguns anos.

Há experiências que todo livreiro faz com o ¡.empo, e que muito editor parece ignorar. Certos preconceitos dos nossos fregueses não se justificam, mas, desde que existem, temos que contar com êles. Grande parte dos leitores brasileiros não gostam, por exemplo, de roman-ces de guerra, se bem que se vendam bem livros de reportagens sôbre o último conflito universal. Obras

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de ficção sobre assuntos relacionados à historia dos Es-tados Unidos têm geralmente fraca aceitação. O mesmo vale para o cenário do Extremo Oriente. " . . . E o vento levou", bem como "A Boa Terra", são exceções que confirmam a regra. Livros deprimentes, romances de tese social, estudos profundos da psique humana e so-bretudo das suas aberrações costumam agradar pouco aos nossos leitores. Tal mentalidade "escapista" pode ser lamentável, mas predomina de fato. Os editores que a contrariam são comparáveis aos azaristas no turfe: quando ganham dinheiro é surprêsa para todos os entendidos, e quando perdem, não têm motivo para queixas. Mudar determinado gôsto do público não é impossível, mas requer um esforço especial, como, por exemplo, uma vasta campanha propagandística.

Por outro lado, os nossos editores não aproveita-ram csrtas oportunidades para lançamentos de êxi!:o quase que garantido. Um caso típico é "Don Camillo e seu pequeno mundo", de Guareschi. Quem lia as crí-ticas estrangeiras vislumbrava as perspectivas de um grande negócio. Entretanto, o livro saiu em Portugal, com muito atraso, aliás, e como sempre acontece com a produção editorial lusa, foi apenas precàriamente dis-tribuído entre nós. Outra mina de ouro não explorada por nossas casas editores era a "Vigésima quinta hora", de Gheorghiu. Também nesse caso, os patrícios do Sr. Salazar mostraram-se mais perspicazes.

E com isso chagamos a outro ponto nevrálgico da nossa vida editorial: os lançamentos nacionais quase sempre são tardios. A tradução brasileira de um ro-

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manee americano costuma sair um ano ou mais após a publicação da mesma obra na França, Alemanha, Ar-gentina, etc. Por mais difícil que seja o vernáculo, a culpa do atraso não cabe aos tradutores. Traduzir um romance inglês para o nosso idioma não leva mais tempo do que vertê-lo em alemão ou francês. Quem se atrasa e perde dinheiro por causa desta morosidade são os editores. Quero dar um exemplo concreto: Por êsses dias foi lançado no mercado brasileiro uma obra que me parece fadada a obter um êxito sem par entre os nossos leitores, a saber "O Cardeal", de Henry Mor-ton Robinson. Trata-se de um romance cheio de ação, que se passa num ambiente colorido, raras vezes mos-trado, e acompanha a carreira de um alto dignitário da Igreja, desde a ordenação até ao cardinalato. O livro foi lançado nos Estados Unidos com grande habilidade, simultáneamente numa edição comum, encadernada, e numa outra, popular, brochada. No decorrer dos tem-pos saiu ainda como pocket book. Faz um ano ou mais que as edições francesa, alemã e argentina foram publicadas. Acho que somente na nossa livraria já vendemos muito mais de setenta exemplares nos dife-rentes idiomas, e as outras livrarias do nosso país devem ter vendido o "Cardeal" na mesma proporção. Isto significa que, devido à demora do lançamento da edição nacional, a casa editora perdeu milhares de presuntivos fregueses, que na sua vasta maioria teriam preferido ler o romance na sua língua materna. Até agora nin-guém conseguiu explicar-me por que os brasileiros, tão velozes e infiltradores no campo de futebol, são tão

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lentos no terreno das edições, onde invariàvslmente chegam em último lugar.

Mas, por vagarosos que sejam os nossos editores, um belo dia sai a obra projetada. Sai, como que fur-tivamente, sem propaganda alguma, como já demons-trei sm outro artigo desta série. Contudo, às vezes acontece um milagre: o livro vende-se apesar dos pe-sares; os leitores gostam dêle; um recomenda-o a outro; e — surpresa das surpresas! — a primeira tiragem es-gota-se depressa. Seria normal que a segunda surg-.sse no mercado imediatamente, enquanto perdurasse o en-tusiasmo dos leitores. Longe disso! Parece que o pró-prio editor está tão esgotado quanto o livro e precisa de um ano para refazer-se das dores do primeiro parto. A tragédia das nossas reedições têm aspectos contra-ditórios: os fregueses de boa memória que ainda se lembram vagamente da obra, rejeitam-na como "ve-lharia", e os demais precisam ser conquistados a duras penas, como se se tratasse de uma novidade qualquer.

Depois de térem feito pouco ou nada para estimu-larem a venda dos seus produtos, depois de sacrifica-rem boa parte da freguesia à concorrência estrangeira, os nossos editores lamentam-se de que o mercado na-cional "não comporta". Ouve-se que o brasileiro não lê, que o número de analfabetos é grande, que o cinema, que a televisão, que isto ou aquilo.. . Não nego que há métodos mais rápidos para multiplicar um capital invertido do que justamente editar livros. Acharia muito compreensível que alguém deixasse de ser editor e se dedicasse a outra ocupação. Mas não compreendo

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como aqueles meus amigos continuam lançando livros no mercado, sem procurarem conquistar a freguesia até o último homem. Pode ser que o campo não seja lá muito grande, mas plantando daria. Plantando na época, em solo devidamente adubado.

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XVI

LIVROS QUE NOS FAZEM SONHAR. . .

l ^ M fenômeno que causa espanto ao europeu radi-cado no Brasil é a rapidez com que se modificam certos hábitos do nosso povo. No Velho Mundo, um costume arraigado levaria séculos para ser abolido. Na nossa terra, porém, bastam às vêzes uns poucos anos para revolucionar por completo o estilo de vida de vastas camadas da população.

Há quase vinte anos, logo após a minha chegada a Pôrto Alegre, aproveitei um belo domingo de verão para dar um passeio pelas praias do Guaíba. Encon-trei-as desertas. Nenhum excursionista. Ninguém que procurasse escapar ao bafo estival da cidade, refres-cando-se com um banho nas águas do rio, então muito mais limpas e convidativas do que hoje. Naquela época o pôrto-alegrense preferia passar as horas de lazer na paz e r.o conforto de sua casa. E imaginem! menos de um lustro depois já se me tornara difícil descobrir perto de Pôrto Alegre um lugarzinho onde eu pudesse estirar-me na areia, sem que o vizinho me acotovelasse a cada instante.

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No mercado livresco, uma mudança não menos brusca e igualmente fundamental está se produzindo no que diz respeito à apreciação dos livros de Arte. Quan-do pela primeira vez percorri as livrarias da nossa ci-dade, procurei em vão uma secção de Arte. Consultei um velho e experimentado livreiro, e o homem quase que se benzeu. — Livros de Arte? Que esperança! — exclamou. — Ninguém pode vendê-los em Pôrto Ale-gre. O gaúcho é macho, sabe? Tem horror de cava-linhos pintados. Só lhe interessa cavalo de verdade, cavalo para montar. — O que acrescentou com refe-rência a pessoas admiradoras de naturezas mortas ou de quadros de efebos despidos, procuro esquecer. Acho que um touro sadio e normal falaria da mesma forma sobre aquêle seu colega Ferdinando, que tanto gostava de cheirar ramalhetes de flores.

Hoje vendemos livros de Arte aos montes. Pa-rece que fregueses que moram em apartamentos têm pouquíssima oportunidade para domar potros chucros, de maneira que satisfazem sua saudade de cavalgadu-ras, olhando reproduções de estátuas Eqüestres. Mas, não é só por isso que muita gente tem um fraco por livros de Arte. São livros que nos fazem sonhar, que nos levam para esferas distantes das atribulações da vida quotidiana, que descansam a alma assustada pelo

, tétrico aspecto de um mundo agitado por violentas con-vulsões. São um ópio inocente, que não deixa ressaca nem prejudica a saúde.

Bem ao contrário do romance policial — outra '"cachaça" do púbiico leitor — diminuem a tensão dos

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nervos. Quem os contempla fica despreocupado, calmo, eufórico. Pode-se qualificar tudo isso de '"escapismo". Pode-se objetar que é o nosso dever, também nas horas vagas, dedicar-nos à solução de problemas insolúveis. Tenho, no entanto, para mim que uma pessoa que, depois de um dia exaustivo de trabalho, afaste por al-gumas horas o olhar da situação precária deste mundo e o dirija sôbre o que de mais sublime foi criado pelo homem, nem por isso vive numa tôrre de marfim. A infinita beleza das obras reproduzidas num livro de Arte talvez lhe restaure aquela fé na Humanidade que a leitura da página política do jornal da manhã lhe abalou cruelmente. Admirando estátuas gregas ou catedrais góticas certamente não chegaremos a respon-der às angustiadas perguntas que a Vida nos íaz todos os dias. Mas, quem sabe se o convívio com elas não nos dará a necessária confiança e fôrça para encontrar-mos a resposta no dia seguinte.

Seja como fôr, é sem a menor sensação de culpa que, depois do jantar, costumo refestelar-me numa ca-deira de balasço, com um livro de Arte na mão. A primeira página que ontem abri ao acaso exibia a asa de uma ânfora persa do século IV A . C . O próprio vaso não resistiu à inclemência dos tempos, sobrando apenas a asa de prata, executada por um ourives ge-nial. Mostra ela tim cabrito alado, erguido, numa ati-tude graciosa, sôbre as patas traseiras, prestes a dar uma cambalhota alegre. A fisionomia do bichinho traz uma expressão nitidamente irônica, e seus cascos re-pousam sôbre a cabeça de um filósofo um tanto parecido com Sócrates. Estava eu muito cansado para deter-

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me longamente com o simbolismo zombeteiro da obra, que parecia escarnecer com bom humor de tôda a nossa sabedoria. Virei algumas páginas e já me encontrava em plena Idade Média, à frente de uma dessas deli-ciosas miniaturas que os monges, na solidão de sua cela, pintavam pacientemente, com finíssimos pincéis. Era uma fôlha de um Livro de Horas, como então se cha-mavam as agendas de nossos dias. Estamos em outu-bro, mês da vindima. Vemos os vinhateiros a traba-lharem nos parreirais. Um dêles descansa ao lado de uma cesta cheia, e a alguma distância observa-se alé a carinhosa conversa de um casalzinho de namorados. Evidentemente sabia o artista que a vida humana é algo mais do que apenas faina e luta. Atrás da vinha sobe uma vereda sinuosa que se perde num bosque. Fechei os olhos e me lembrei de lindos passeios atra-vés da zona italiana do nosso Estado, que de repente se confunde com os vinhedos da Borgonha. Comecei a sonhar. . .

Formosos sonhos, aprazíveis devaneios — eis o efeito que produz a contemplação das < ilustrações de um livro de Arte. Sonhos coloridos, fantásticos, varie-gados como os contos das Mil e Um Noites. A gama das sensações que a Arte provoca no nosso espírito é sumamente extensa. Vai da profunda reverência que nos inspira a ponderosa dignidade da estatuária egípcia até ao sorriso divertido que o ingênuo mundo de brin-quedos do aduaneiro Rousseau nos faz aflorar aos lá-bios. Sentimo-nos humildes diante do majestoso gesto criador de Deus, na Capela Sixtina de Miguel-Ângelo. Avassala-nos a fôrça do misticismo religioso dos Grune-

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wald e El Greco, mas logo nos acalma a expressão se-rena, ensimesmada dos anjos de Botticelli. Rimos com Daumier; bailamos com Degas; participamos de baru-lhentas festanças rústicas com os campônios de Brue-ghel. E a paisagem? Pode ela apresentar-se risonha, serena, como os rios ou lagos de Constable; dramática, agitada, como os trigais de Van Gogh; teatral, altaneira, como os bosques de Poussin; vaga, misteriosa, como a Veneza de Turner; grandiosa, heróica, como as "Três árvores" de Rembrandt. Mas, para sonharmos, nem sequer precisamos de um assunto concreto. Basta-nos a formosura dos arabescos de um tapête oriental ou ^a roseta de uma igreja gótica; basta até o conjunto ds côres, linhas e formas de uma composição abstrata de Mondrian. Podemos sentir a perfeição de uma obra de arte, sem nos preocuparmos com seu signiíi-cado, assim como a pura música dos alexandrinos de Corneille por vêzes nos embala, sem que façamos o menor esforço para compreender o que o poeta dese-java dizer com éles.

E com isso chegamos a outra maneira de tirar de obras de arte um gôzo mais requintado ainda: pode-se juntar o haxixe da música ao ópio do livro de Arte. Será fácil combinar artistas contemporâneos, de estilo e mentalidade afins, como, por exemplo, Watteau e Mozart, ou Lautrec e Offenbach. Mas, indo mais longe, poderemos descobrir estranhas harmonias entre coisas separadas por séculos, como um desenho de Durer e uma fuga de João Sebastião Bach, ou por continentes, como uma xilogravura do japonês Hoksai e um prelú-dio para piano de Debussy.

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Verdade é que este modo de lidar com as obras-primas da Arte universal requer um certo traquejo que não se adquire senão depois de algum tempo. É pre-ciso ter-se assimilado diversos estudos básicos e pelo menos um bom compêndio de História da Arte. São indispensáveis alguns conhecimentos fundamentais a respeito de estilos, épocas, personalidades de artistas, para que nos possamos deliciar com a simples contem-plação de uma estampa, sem necessidade de recorrer-mos às explicações do ensaio introdutor que geralmente acompanha os álbuns ilustrados. Quem não procura enfronhar-se pelo menos superficialmente nos princípios da Estética nunca terá aquêle senso de qualidade que lhe permita distinguir a obra boa da medíocre e o gênio do charlatão. Convém aprendermos a olhar, assim como se deve educar o ouvido e acostumá-lo à música fina. Espíritos incultos preferem nas Artes invaria-velmente o que há de mais barato e vulgar. Por outro lado, a apuração do gosto artístico não oferece dificul-dades intransponíveis. Algumas sugestões neste sen-tido formarão o assunto do próximo artigo desta série.

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XVI

DO BIFE À SOBREMESA

Ç^)UANDQ uma criança travêssa recusa-se a comer seu bife com batatinhas fritas, quando nem sequer o exemplo do Marinheiro Popeye a pode induzir a tocar num prato de espinafre, a mãe freqüentemente lança mão de um recurso simples e eficaz: faz menção de suprimir a sobremesa. Pouco filho, por mais cabe-çudo que seja, resiste a tão terrível ameaça.

No cardápio dos livros de Arte, aqueles álbuns bonitos, com estampas coloridas, acompanhadas apenas de uma dose homeopática de texto elucidativo, corres-pondem à sobremesa. Como esta, são saborosos, dão prazer, causam alegria, em que pese o seu reduzido valor nutritivo. Felizmente, o livreiro não tem a obri-gação de zelar pelo equilíbrio da alimentação intelec-tual da freguesia. Quando alguém me pede um livro sôbre Rafael, não me cabe responder: "Não, senhor! Coma primeiro o seu bife, em forma de um manual de História da Arte, e mais algumas verduras, como, por exemplo, um compêndio sôbre o estilo do Renascimento e um tratado de Estética!"

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A experiencia ensinou-me que a maioria dos fre-gueses prefere as gulodices apetitosas e não faz ques-tão de exibir músculos à maneira de Popeye. Fico muito satisfeito, quando compram os referidos álbuns "doces" de preço "salgado". Não quero, porém, deixar de adverti-los contra os efeitos funestos de uma avita-minose. Verifiquei com certa apreensão que pessoas com fraca base de noções acêrca da História das Artes procuram sempre os mesmos livros, como se em todo o vasto mundo houvesse apenas meia dúzia de artistas de valor. Para elas seria amplamente suficiente, se o livreiro limitasse o seu estoque a umas poucas obras sôbre Miguel-Ângelo, Leonardo, Rafael, Rembrandt, Renoir e Van Gogh.

Se insisto na necessidade delas lerem alguns livros fundamentais, que lhes possam alargar o horizonte cora relação às artes plásticas, não o faço somente na inten-ção de evitar que certas outras obras encalhem nas mi-nhas prateleiras. Acho que um freguês que demonstrar o seu interêsse pela pintura, adquirindo álbuns com reproduções de quadros de Van Gogh, etc., poderá go-zar delícias jamais imaginadas, estabelecendo contato com outros grandes pintores que não pertencem à meia dúzia em aprêço. Às vêzes, o Cinema ajuda ao livreiro, de forma inesperada: o filme "Moulin Rouge" teve poi conseqüência uma súbita procura de livros sôbre Toulouse-Lautrec. É, no entanto, pouco provável que Hollywood chegue um dia a mostrar-nos na te:a per-sonalidades como Giotto, Holbein, Vermeer, Zurbaran ou Ingres, e todavia vale a pena travarmos conheci-mento com elas, e com muitas outras também. Não

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é difícil encontrar o caminho que nos leve até aos gran-des pintores. Basta abrirmos uma História da Arte Universal.

Surge então mais uma vez o velho problema: temos cu não livros adequados em língua portuguêsa? Ora, não estamos mal servidos no que toca a compêndios de caráter puramente histórico. O adolescente desejoso de avançar das histórias em quadrinhos para a história dos quadros "com q maiúsculo" pode estribar-se nas "Artes", de Hendrik Van Loon, obra redigida em estilo agradável, não muito profunda, e que o guiará suave-mente pelo roteiro milenar das Artes Plásticas. Para leitores mais exigentes existe ainda, a preço bem aces-sível, a "História da Arte", de Pierre de Colombier, editada ein Portuga!, com um material de ilustrações muito superior ao da edição original francesa. Fre-gueses abastados poderão adquirir a bela edição nacio-nal, em quatro volumes, da obra do americano Sheldon Cheney. Desta forma, o leitor brasileiro não terá difi-culdades em construir uma base mais ou menos sólida de conhecimentos históricos, a qual poderá ser am-pliada grandemente pelo estudo dos clássicos cinco to-mos de Elie Faure, disponíveis em tradução espanhola, e cujo lançamento em língua portuguêsa já foi anun-ciado .

Tudo isso não nos conduz, todavia, além de uma idéia sumária acêrca de estilos e artistas. Não nos ensina a ver, não nos leva à compreensão da obra de arte, não nos dá aquele senso de qualidade que nos permita separar o trigo do joio. Esta é a tarefa que

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procuram realizar alguns livros excelentes que, por infe-licidade, ainda não foram vertidos para o português. Cito em primeiro lugar cs "Kunstgeschichtliche Grund-begriffe" (Princípios fundamentais da História de Arte), do suíço Heinrich Wólfflin obra que também pode ser obtida em edições espanhola, francesa e inglesa. Em francês ou italiano existe a brilhante monografia de Bernard Berenson sôbre "Esthétique et Histoire des Arts Visuels". Nos mesmos idiomas encontramos "Pour comprendre la Peinlure", de Lionello Venturi, uma ver-dadeira mina de conhecimentos estéticos. Para quem deseje enfronhar-se nas tendências da Arte moderna, recomendo encarecidamente um livrinho americano, editado pela Oxford University Press: "A Layman's Guide to Modera Art", de M . C . Rathbun e B . H . Hayes. A tradução portuguesa de qualquer uma des-sas obras preencheria unia lacuna sensível.

Não se pode negar que, do ponto de vista do edi-tor, os livros de Arte representam um problema sério. São livros de confecção cara, devido às despesas e 1 eva-das que acarreta a impressão das ilustrações, especial-mente quando se trata de estampas coloridas. Há, en-tretanto, um meio de reduzir o custo do livro de Arte, e que, no Estrangeiro, muitas casas editoras empregam com bons resultados. É muito simples: basta alguns editores se reunirem e encarregarem um só estabele-cimento gráfico da confecção das estampas, que serão aproveitadas para tôdas as edições nos diversos idiomas dos países de distribuição. Assim se consegue uma tiragem muico grande, e por isso relativamente barata,

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das ilustrações. Certa coleção de livros de Arte — Os grandes mestres da Pintura — pode ser obtida em edições holandesa, francesa, italiana, alemã, inglêsa, americana, espanhola, sempre com texto diferente, mas com o mesmo material de gravuras impressas na Ho-landa. Esta lista comprida talvez nem seja completa, mas posso garantir que ainda não há edição portuguesa da série, uma vez que os nossos editores não querem sa-ber de livros de Arte.

Verdade é que também a freguesia se importa menos com o idioma do texto do que com a qualidade cias estampas, havendo muitas pessoas que comprem álbuns estrangeiros, embora normalmente só leiam li-vros em língua nacional. A preferência do público dirige-se para a reprodução em côres. Tendo que es-colher entre uma boa fotografia em prêto e branco e uma tricromia borrada, os fregueses quase que invaria-velmente se inclinarão para a segunda. Parece-me que Bernard Berenson vai um tanto longe, quando tacha esta atitude de "mania infantil do colorido". Mas, cada vez que alguém antes de adquirir um volume das "Mi-niatures Hypérion", que pelo preço de pouco mais de cinqüenta cruzeiros, oferecem meia dúzia de estampas coloridas, ao lado de outras trinta em prêto e branco, não posso deixar de sorrir.

Nenhuma reprodução em côres passa de uma apro-ximação. O máximo que atualmente se consegue neste sentido, são as estampas fabricadas por casas como Piper, Twin Prints ou Aepli, para enfeitarem as paredes dos nossos lares. Uma única estampa desta qualidade

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custa hoje em dia milhares de cruzeiros. E' óbvio que nem sequer os esplêndidos álbuns da editora suíça Skira podsm alcançar tal nível, uma vez que, por preços que variam entre trezentos e quinhentos cruzeiros, contêm de oito a dezesseis estampas. E quanto mais barato o livro de Arte, menor será a fide-lidade das ilustrações. Eu, pessoalmente, prefiro uma boa reprodução em prêto e branco, que conserve as tonalidades e os valores do quadro original, a todos os Ticianos com môlho pardo dos nossos álbuns de baixo preço.

Tudo isso deve parecer de somenos importância diante da situação calamitosa em que se encontra o mundo atual. Em cidades onde periodicamente faltam água, luz, carne, banha, ovos, e "otras cositas mas", a escassez de livros de Arte em língua nacional dificil-mente causará indignação geral. As Belas-Artes não gozam cotação muito alta numa época que valorizou a nobre arte da Balística, muito mais útil, já que nos en-sina a lançar não somente granadas atômicas, como também garrafas contra juízes de futebol. Depois de ter lido o "Balcão de Livraria" anterior a êsíe, um amigo perguntou-me a queima-roupa se eu não tinha cutras preocupações. Tenho, e de sobra. Mas, de vez em quando gosto de perdê-las de vista, e os livros de Arte são a sobremesa entre as minhas preocupações.

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XIII

MEDITAÇÕES DE BALANÇO

U MA vez por ano, na época do balanço, o livreiro passa em revista, uma a uma, todas as obras que no decorrer dos tempos se ajuntaram nas suas estantes. E nunca deixa de estacar diante de uma prateleira abar-rotada de brochuras magrinhas. Apesar da roda-viva em que o mantêm os negócios, sejam êles bons ou ruins, o aspecto desta prateleira torna-o meditativo.

Faz exatamente um ano que o livreiro não se de-tém diante dela. Foi um ano cheio, que não lhe deu, em última análise, motivo para queixas. Foram ven-didos muitos livros, — manuais técnicos, enciclopédias, compêndios de direito, romances, tratados de história, álbuns com reproduções de quadros célebres — mas essa prateleira só raríssimas vêzes despertou a atenção da freguesia. Contudo, o livreiro não encara os del-gados livrinhos com antipatia ou desdém.

Agarrando um, fixa um olhar pensativo nas pági-nas amareladas, que combinam singularmente bem com suas próprias cãs, que de há muito cessaram de ser fe-nômenos isolados. Comercialmente falando, êsse livro

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já não existe, está fora de balanço, mas na harmonia das esferas ainda se percebe a sua vozinha, uma voz suave, pausada, longínqua. O livreiro como que sa-boreia as poucas linhas impressas em meio a muito papel outrora branco, enquanto no seu íntimo evoca a imagem do autor, que em tempos idos lhe dedicara outro exemplar de sua obra.

Pois é! Êsse tipo de livro costuma ser dado de presente, em vez de ser vendido em livraria. Até mesmo o autor já se distanciou de seu filho intelectual, alimentado com o sangue de seu coração, publicado, à custa de inúmeros sacrifícios, por conta própria. Per-deu os cabelos, mas, em compensação, criou barriga e tornou-se dono de uma próspera banca de advocacia. O livreiro clha o caderno com uma expressão entre ca-rinhosa e melancólica, assim como faria o pai com o filho predileto que jamais correspondeu às expecta-tivas da família. Com uma palmadinha afetuosa sa-code a poeira que se acumulou nas páginas e, ao invés de pesar sôbre o livro, parece, contra tôdas as leis da Física, torná-lo mais leve ainda.

Essa visita anual que o livreiro paga à prateleira de Poesia assemelha-se curiosamente àquela romaria que no dia de Finados as viúvas e os órfãos fazem aos túmulos dos seus entes queridos. Quando um freguês o chama, para adquirir um tratado de Economia Polí-tica, o livreiro sente-se aliviado, como quem regressa do reino dos Mortos.

Seis e meia. Hera de fechar a loja. No cami-nho para casa, o livreiro compra um jornal, a fim de

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ingerir, depois do jantar, a sua dose cotidiana de des-gosto, que as manchetes berrantes lhe oferecem em abundância. Conferências fracassadas, experiências com bombas de hidrogênio, crises, carestia, homicídios, es-cândalos, negociatas. . . Um panorama sinistro, que nem sequer as fotografias de algumas "misses" sinuosas e insinuantes podem alegrar grandemente. Com um suspiro, o livreiro larga o "amargo vespertino" e se encaminha ao Teatro São Pedro, onde o espera um — recital de Poesia.

Essa nova incursão no domínio das Musas resulta ainda mais singular, mais perturbadora do que a ante-rior. O livreiro encontra uma platéia quase que repleta de adolescentes e brotinhos, na sua vasta maioria uni-versitários, que vieram ouvir alguns jovens do Teatro de Estudantes local recitarem versos do famoso poeta ¡uso Fernando Pessoa.

Cabeças grisalhas, como a do livreiro, reluzem ape-nas de raro cm raro. O espetáculo que se oferece não deixa de ser original. Os artistas não se limitam à mera declamação dos poemas, senão apresentam como elo entre uma e outra peça pequenas cenas engenhosa-mente encenadas, que lhes sintetizam o espírito.

Um caixão vazio, com a tampa convidativamente removida, chega ao palco, carregado por quatro homens vestidos de branco, e um dos atores, não resistindo à atração, deita-se nêle. Um jovem brinda uma rapariga com um ramo de flores, num mudo simulacro de amo-roso arroubo, e um dos declamadores acompanha-lhe o gesto com um comentário desdenhoso. Depois de um

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poema agitado pela mais violenta aflição, um persona-gem, ao beber numa taça que simboliza a Vida, afirma que a poção íhe dá vontade de vomitar.

As próprias poesias escolhidas na volumosa obra de Fernando Pessoa transbordam de desespêro. Ne-nhum raio de luz que consiga penetrar os muros do bêco sem saída em que se encerra o poeta. Nenhum sorriso. Apenas o ricto da risada cínica. São versos arrancados de um coração torturado, lancinantes gritos de revolta, um mundo refletido por um espelho incapaz de lhe captar o lado belo. Até os lírios e as rosas de que se fala são abstratos, carecem de aroma e côr. É poesia que sai do nada, em busca do nada. É um vá-cuo, mas — estranho paradoxo! — um vácuo em ebu-lição.

A retorica de Fernando Pessoa é avassaladora, inelutável. Há frases que caem sôbre a plateia como chicotadas: ''Arre, estou farto de semideuses. . . En-tão sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?. . . Sou quem falhei ser. . . A nossa realidade é o que não con-seguimos nunca.. . E o Universo reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança.. . Nada me prende a n a d a . . . Não sou nada. Nunca serei nada".

Desnorteado, abatido por tal avalancha de "nadas", o livreiro regressa ao seu lar. Assistira ao êxito es-trondoso que tivera o espetáculo, e êle mesmo não con-seguira resistir ao vigor e à veemência da torrente whitmaniana daquela poesia.

Não sendo crítico, não se sente com a necessária competência para julgar-lhe o valor literário. Tam-

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pouco se preocupa com pormenores da interpretação. Intriga-o antes de mais nada um problema de ordem psicológica, o de saber porque aquêles jovens inteli-gentes, prendados, futurosos, escolheram justamente êsses poemas para o seu recital. Será que realmente nada os prende a nada? Falavam eles com sinceridade ao proclamarem que o Universo se lhes reconstruía sem ideal nem esperança? E a platéia que tão delirante-mente aplaudia aquela frase sôbre a Vida que apenas dava vontade de vomitar — não era ela a mesma que poucas semanas antes, quando a nossa Orquestra Sin-fônica executava a Nona Sinfonia de Beethoven, en-chia o poleiro e batia palmas entusiásticas ao hino à Alegria? Muitos dentre aquêles que tão enfaticamente aclamavam o ator que, farto da vida, recolhia-se ao caixão aberto, haviam, mal fazia um mês, demonstrado enorme vitalidade, quando no desfile dos "bichos" pu-lavam que nem cabritos através das ruas da cidade. Por que então êsse asco à vida, êsse niilismo estéril, essa mórbida saudade da morte? Muitas perguntas que ficam sem resposta.. .

Elas acarretam, porém, outra pergunta que inte-ressa mais diretamente ao livreiro: por que não se vendem os livros dos poetas de nossos dias? Em outros tempos não era assim. As bibliotecas dos nossos an-cestrais andavam cheias daqueles volumezinhos enca-dernados de vermelho e ouro, e cujo conteúdo era citado a cada instante. Ainda a geração do próprio livreiro, a que se criou após a Primeira Guerra Mundial, devo-rava os seus Rilke e Werfel, Péguy e Romains. Poe-tas antigos, como Hoelderlin, desprezados e incompri-

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endidos pelos contemporâneos, ressuscitavam glorio-samente .

Mas, já naqueles dias notava se uma tendência perigosa da Poesia moderna. Entre os grandes poetas havia quem evitasse propositadamente o contato com o "vulgo profano", encerrando-se em torres de marfim e publicando os seus versos em tiragens restritas, des-tinadas tão somente aos olhos de um reduzido c;rupo de eleitos. Os Valéry, Mallarmé, George serviam-se de uma linguagem nebulosa, enigmática, que requeria comentaristas e intérpretes. E não se limitavam a isso as exigências que a Poesia moderna fazia ao leitor. Com crescente intensidade, os poetas exploravam as profundezas do seu subconsciente. Abandonavam a '"ma. Transformavam os poemas em gritos abruptos, frases soltas, alusões incompreensíveis a pessoa-, estra-nhas. Por mais fielmente que tais versos refletissem o íntimo de seu autor, nada comunicavam ao leitor per-plexo, desorientado.

É escusado dizer que êsse íntimo, na nossa era apocalíptica, não podia ser muito alegre. Quem, no entanto, lê poesia não quer nem resolver enigma-} nem dedicar-se a estudos psicanalíticos. Deseja escapar aos horrores da realidade. Procura um tênue véu que se interponha entre éle e a terrífica visão de um futuro sem luz. Espera que o poeta seja o guia que o con-duza para além do deserto. Ai da Poesia que perde a esperança! Ai dos poetas que já não sabem sonhar!. . .

O livreiro quase que se assusta ao ver aonde o levaram um recital de poesia e algumas perguntas in-

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gênuas. Chegado em casa, põe-se de chinelos. Aco-moda se numa poltrona. Para mudar de idéias, es-tenda o braço e agarra o livro mais próximo. Como não pode deixar de ser, um volume de poesias. Na primeira página que abre, lê êstes versos:

"Un vaste st tendre Apaisement Semple descendre Du firmament Que 1'astre irise. . . C'est l'heure exquise."

Que belos tempos eram aquêles, amigo Verlaine!

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IX

O DOUTOR ZÉ-POVO FILHO RECLAMA. . .

F AZ poucas semanas, entrou na minha secção um fre-guês novo. Era um môço de aparência simpática e que meu olhar de Sherlock Holmes identificou como engenheiro, pelo anel de formatura que lhe cintilava na mão direita.

— Quero um romance em inglês. — disse. E acrescentou: — Mas um que seja bom mesmo! K um presente para minha sogra. Ela prefere livros de am-biente exótico.

Ora, uma sogra que lê romances em inglês e um genro bastante atencioso para preocupar-se com as suas predüeçõc-s tão dignos da mais elevada consideração e merecem ser bem atendidos. Depois de ter oferecido as últimas obras de Rumer Godden e Pearl Buck, ro-mances cuja ação se passa, respectivamente, no Tibet e na China, recomendei por fim calorosamente um livro novo da autoria do sul-africano Alan Paton.

Apesar do meu entusiasmo, o môço oermanecia indeciso. Quem sabe se um romance apenas ótimo lhe parecia insuficiente para recompensar as qualidades ex-54 —

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cepcionais de sua sogra. Ou talvez dispusesse também êle de olhos de detective e, tendo descoberto a aliança no meu anular esquerdo, suspeitasse, de genro para para genro, da sinceridade de minha ênfase. Fôsse como fôsse, cortando o fluxo de minha eloqüência, per-guntou secamente: — O Sr. leu êsses livros?

Confessei que ainda não tivera tempo para tanto. — Mas, — prossegui — li críticas favoráveis a respeito dêles.

— Então o Sr. me deixe ver uma dessas críticas, — pediu o freguês, ainda desconfiado.

Mostrei-lhe um número da Saturday Review que exibia na capa o retrato de Alan Paton. Com muita atenção, o jovem engenheiro leu de fio a pavio a apre-ciação do livro que se achava à sua frente no balcão. Nela, um escritor competente analisava a obra em frases claras, concisas; descrevia-lhes o ambiente e o enrêdc; aquilatava-lhe o conteúdo espiritual e o valor literário. Quem lêsse êsse ensaiozinho de apenas meia página podia fàcilmente formar uma opinião sôbre o caráter do romance.

— O Sr. me convenceu, — disse o môço. — Que pena não têiraos no Brasil uma revista dêste gênero.

Acostumado a ouvir como os fregueses se queixam da falta disto ou daquilo no Brasil, limitei-me a um leve suspiro, enquanto destacava a nota do talão de vendas à vista.

Quis o acaso que no dia seguinte o carteiro me trouxesse um alentado envelope, vindo de Washington,

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e no qual Érico Veríssimo me enviava um monte de recortes de jornais austríacos, alemães e suíços, com apreciações da edição alemã de "O Tempo e o Vento", que acabava de sair do prelo. Encontrei publicações de cidades grandes, como Berlim, Hamburgo, Viena, Brasiléia, mas também topei com nomes de lugarejos que me soavam completamente desconhecidos, como Ibbenbüren ou Mühlviertel. Verifiquei que cada qual dêsses jornais dispunha de uma página literária, apre-sentada semanal ou quinzenalmente, sob os mais di-versos títulos: "O Livro Bom"; "Vitrina de Livraria"; 'Mercado de Livros", etc. O tamanho das críticas va-riava muito, indo de apenas quinze a mais de cem li-nhas. Havia algumas de certa fluência literária, e ou-tras, comoventemente mal escritas. Mas tôdas elos tinham em comum o objetivo de informar o leitor de um modo simples e inequívoco.

A título de curiosidade traduzo uma delas, tirada do "Diário de St. Gallen", na Suíça:

A FORSYTE-SAGA BRASILEIRA E R I C O V E R Í S S I M O : O Tempo e o Vento. Romance. Editor:

Paul Neff , Viena. A crônica de uma família, abundantemente ramificada, vasta

no seu curso, como os poderosos rios do Brasil. No destino e nas personagens dessa única família desfila diante de nós a colo-rida e sangrenta história dêsse país meridional, desde os dias da grandiosa república dos jesuítas até o fim do século X I X .

Do ponto de vista formal, o livro apresenta uma tripartição interessante: sete capítulos bastante distanciados um do outro, e cuja ação se passa em 1890, na casa de um prefeito, sitiada por forças revolucionárias, formam uma espécie de moldura para

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outros tantos trechos que iluminam épocas mais longínquas, sem-pre seguidos por um epílogo de estilo baladesco, no qual são esboçados em traços seguros quadros brilhantes da vida brasi-leira .

Um belo livro, redigido com apaixonado amor e profundo conhecimento do povo e da terra do Brasil. O sem-número da personagens — portugueses, espanhóis, alemães, negros, índio3 — faz parte de um panorama gigantesco, diante do qual estabele-cemos contato imediato com um país estranho, de exuberante fecundidade, de imensa vastidão, com seus costumes românticos, austeros, originários da península ibérica, e com seus filhos q>je só raras vêzes morrem de morte natural.

Quem gostou de ler "E o Vento levou. . ." há de se deliciar com êste livro.

sp. Ninguém afirmará que o modesto trabalho do

Sr. sp. é uma das grandes jóias da crítica literária. Mas tampouco se pode negar que, em tôda a sua sin-geleza, é claro, informativo, e permite ao Herr Schulze ou à Frau Meier terem uma vaga idéia do gênero de romance que representa a obra de Erico Veríssimo.

Depois de ter lido um dúzia de apreciações do mesmo quilate, comecei a estudar os raros suplementos literários dos nossos jornais e algumas das nossas revis-tas críticas, para ver onde o doutor Zé-Povo Filho — que, ao contrário do velho, não limita as suas leituras à crônica policial e à página de turfe — possa encon-trar informações semelhantes sôbre as mais recentes publicações dos editores brasileiros.

Verifiquei à primeira vista que o nível intelectual das nossas páginas literárias era infinitamente mais ele-vado. Nelas escrevia uma elite de críticos, com a evi-

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dente intenção de agradar aos colegas. Deparei com um profundo ensaio sôbre o "Problema do Além na poesia romântica brasileira". Detive-me por algum tempo com uma análise lúcida do livro de um autor inglês sôbre o pensamento alemão entre as duas guer-ras. Mas procurei em vão uma crítica dos romances traduzidos do inglês ou do francês, que as nossas casas editoras acabavam de lançar.

Por mais intenso que seja o interêsse do doutor Zé-Fovo Filho pela nossa poesia romântica, tenho cei-teza de que, no momento em que êle entra numa livra-ria, muito mais o preocupa a questão de saber se o úl-timo romance de Cronin "presta ou não presta". Antes de empatar duzentos cruzeiros e seis horas de seu tempo na leitura do "Renegado" de Mika Waltari, desejava êle ser Informado se "vaie a pena''. E a êsse respeito nada lhe respondem os sublimes ensaios de nessas re-vistas e suplementos literários.

Não objetem que para isso basta ler a aba do li-vro, cujos dizeres às vêzes são copiados pelos nossos jornais, quando, numa página mais ou menos obscura, há falta de matéria. A aba foi fabricada pela secção de publicidade da casa editora, e nas mãos de um pro-pagandista, qualquer "obra-quinta" torna-se uma obra-prima. O que o freguês de livraria inutilmente se es-força por achar são opiniões imparciais de críticos sérios, que conheçam o livro e lhe digam claramente se con-vém cu não comprá-lo.

A nossa crítica literária, por mais sagaz, por mais brilhante que seja, é o caviar da literatura; iguaria refi-

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nada que só os cresos da "Inteligência" apreciam devi-damente, quando se banqueteiam nas dependências do Parnaso. O doutor Zé-Povo Filho, que gostaria de alimentar-se prosaicamente com a feijoada completa de uma despretensiosa crítica de livros, encarregou-me de lhe conseguir um bom cozinheiro.

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IX

OS RATOS E OS NOVATOS

N AS entradas de livrarias tradicionais, com uma fre-guesia de lealdade comprovada há muitos anos, de vez em quando se pode observar a seguinte cena: um dis-tinto cavalheiro aproxima-se e, estacando no limiar, lança para o livreiro um olhar cheio de curiosidade; o livreiro, por sua vez, levanta a mão direita, com o dedo indicador em riste, e faz sinal de resposta negativa; ao ver êste gesto peremptório, o distinto cavalheiro afasta-se, visivelmente decepcionado.

Não se assustem! Nem o livreiro nem o seu "in-terlocutor" são surdos-mudos. Não se trata tampouco de uma conspiração tramada por membros de uma so-ciedade secreta. Traduzido para o vernáculo, o diá-logo de filme mudo que acabo de descrever, significa apenas:

D . C . — Chegou alguma obra sôbre Paleonto-logia?

L. — Não, senhor. Não chegou nada. Mas, se sabem falar, por que não falam? Simples-

mente porque a relação entre o "macaco velho" atrás

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do balcão de livraria e os seus fregueses de caderno já é tão antiga que dispensa palavras. Lembra e!a aquêle venerando casal cuja historia nos é contada numa fa-mosa canção parisiense: os cônjuges emudeceram de-pois das bodas de prata. Para que falar, quando o marido já sabe de antemão o que a esposa tenciona dizer? Há casos em que também o livreiro e seus fre-gueses prediletos poderiam cantar o monótono estribi-lho daquela cantiga: "Car je sais que tu sais que je sais que tu sais. .Quando entra o professor Fulano, já sei que procura livros sobre os moluscos, e que ne-nhum vertebrado, por vistoso que seja, será capaz de tentá-lo. E o doutor Sicrano leva a delicadeza ao ponto de pedir desculpas, cada vez que adquire uma obra fora de sua especialidade: "O amigo deve com-preender: às vêzes tenho vontade de ler outra coisa, só para variar"'.

Oxalá muita gente sentisse essa vontade de afas-tar-se por alguns instantes dos limites estreitos, traça-dos pela especialização. As pessoas que se atrevem a enganar a ciumenta companheira que é a sua profis-são, atirando se aos braços de uma leitura apenas agra-dável estão se tornando cada vez mais raras. A escassez do tempo, a alta dos preços, os laboriosos es-tudos que o progresso da Ciência impõe aos seus servi-dores — tudo isso tem por conseqüência que grande parte dos nossos acadêmicos lê exclusivamente o que precisa ler para não ficar irremediàvelmente atrasada. Tal limitação voluntária talvez seja lamentável do ponto de vista da cultura geral, mas não se pode negar que faciüta o trabalho do livreiro. Os próprios fre-

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gueses encomendam as obras de que necessitam, e mos-tram-se sumamente gratos, quando o livreiro perscruta para êles os catálogos e as revistas bibliográficas, em busca de títulos novos que por acaso hajam escapado à sua atenção.

Durante onze meses do ano, os "ratos de biblio-teca" dão vida à iivraria. Freqüentam-na quase todos os dias; fazem dela ponto de reunião; são amigos dos livros e do livreiro, que confia nêles nos momentos crí-ticos da batalha pela vida, como o general romano de-positava a sua última esperança nos veteranos da ter-ceira linha do seu exército.

No mês de dezembro, porém, o aspecto da livraria muda completamente. A "boa literatura", os tratados de filosofia, as obras científicas, que antes determina-vam o estiio da loja, dando-llie unia aparência de dig-nidade sóbria, desaparecem das mesas, onde reluzem, como por encanto, as capas multicores de romances amorosos ou de livros de contos de fada. E com a mer-cadoria exposta modifica-se também a freguesia. Ao invés dos rostos familiares dos hsbitués, o livreiro de-para com as fisionomias desconhecidas de novatos cm matéria de livros. Parecem um tanto cansadas essas fisionomias, uma vez que seus portadores já percorreram a cidade inteira à cata de um presente adequado para o tio Chico e a prima Rosinha. Depois de terem veri-ficado que entre as gravatas de pouco preço não havia nenhuma bonita s que todos os chalés mais ou menos apresentáveis eram exorbitantemente caros, lembraram-se finalmente de que o titio talvez gostasse de um livro. E sôbre as pernas doloridas arrastam-se até a livraria.

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Entram e — ficam apavorados. Desalenta-os pre-cisamente aquilo que delicia ao rato de biblioteca: a quantidade de livros, todos diferentes, que se acham agrupados nas prateleiras. Sentem-se que nem caipi-ras no meio do tráfego da metrópole. Um provérbio afirma ser o livro o melhor amigo do homem. Pode ser. Mas, para conquistar-lhe a amizade é preciso avançar até o seu coração'. A quem não estabeleceu contato íntimo com êle, parece virar as costas, hostil-mente. Assim se explica que vêzes sem conta vejo uma nuvem de desânimo passar pelos semblantes de fregueses novos. Totalmente desnorteados, murmuram então: "É tão difícil, tão difícil. . ." E já estão prestes a fugir.

Eis o instante crucial em que o livreiro deve agir depressa, sob pena de perder uma vez por tôdas a opor-tunidade de arar o solo virginal que representam os novatos. Convém explicar-lhes que a compra de um livro não é nenhum bicho de sete cabeças; que há li-vros para todos os gostos e de todos os preços, de ma-neira que será fácil encontrar um que se adapte à fina-lidade desejada; que basta um pouco de carinho e de psicologia para acertarem em cheio.

Sim, uma pontinha de carinho é indispensável. Aquêles fregueses que agarram a tôda pressa um vo-lume qualquer, olhando apenas o preço marcado, sem se preocuparem com o conteúdo, transformam a aqui-sição de um livro numa espécie de loteria, e sua chance de ganhar não é muito grande. Mas, quem escolhe com vagar, na intenção de alegrar o destinatário do presente, tem boas probabilidades de não errar.

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Verdade é que até mesmo o carinho pode ser ex-cessivo, como no caso de certa loirinha que me pediu um livro de Direito, "mas um bem bonito". Havia um fervor tão genuíno na maneira como ela pronunciava as palavras "bem bonito", que ainda hoje lastimo sin-ceramente que Gustavo Doré tenha omitido de ilustrar o Código Penal Brasileiro.

Dar um presente requer também um quê de psi-cologia. Muita gente se esquece de que o livro deve agradar a quem o recebe e não somente a quem o oferta, lembrando aquêle menino que comprou um tam-bor de brinquedo para o aniversário da vovó. Ora, eu já vi a mesma veneranda anciã trocar, horrorizada, um álbum de estampas cubistas, com o qual a presenteara outro neto de vinte anos.

Cabe ao livreiro envidar esforços para impedir tais gafes. Êle, que tem a obrigação de saber alguma coisa sôbre o conteúdo das obras expostas, pode servir de casamenteiro entre o presente e o destinatário. Como na maioria das vêzes desconhecerá o segundo, deverá indagar do tipo de pessoa que êste representa, dos as-suntos que lhe interessam e, melhor ainda, dos livros que nos últimos tempos tenha lido com agrado. Em-bora na época do Natal haja muito movimento até nas livrarias, sempre sobrará o tempo necessário para fa-zer algumas perguntas rápidas neste sentido. No co-mêço, alguns fregueses estranham o pequena inter-rogatório ao qual os submete o livreiro, mas depois de pouco tempo notam que desta forma se facilita a es-colha e se evitam trocas. Em última análise ficam bem impressionados e voltam para comprar mais livros.

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Assim, aos poucos, os calouros transformam-se em ha-bitués.

Dizsm que "a cavalo dado não se olha o pêlo", mas sou da opinião de que sentirá o duplo prazer quem receber um cavalo da qualidade desejada. Certos anúncios de casas editoras norte-americanas demons-tram que os problemas que acabo de ventilar, existem também por lá. Os ianques são grandes na invenção de slogans eficientes. Gostei especialmente do seguin-te: "Um presente individual é um presente bem pen-sado. Livros são presentes bem pensados".

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IX

A INVASÃO DOS BÁRBAROS

A historia que ora vou contar nada tem que ver com livros nem com literatura em geral. Poderia ter acon-tecido em qualquer loja da cidade. Mas é verídica, palavra de honra, e casualmente se passou diante do balcão da livraria onde trabalho, quando me deixam trabalhar. E isto me dá o direito de incluí-la no grupo das minhas crônicas habituais.

Estava eu sentado calmamente, num recanto tran-qüilo da livraria, a estudar alguns catálogos recém-chegados. De repente senti uma mão peluda no meu ombro. Levantei a cabeça e — dei um grito de susto. Deparei com um rosto terríficamente pintado de listras vermelhas. Para aumentar o aspecto horripilante, o portador da fisionomia assim arrebicada usava o casaco virado às avessas. Pela porta aberta ouviam-se uns ululos lancinantes.

— Ça y est.' — suspirei de mim para mim. (Uso ( botões poliglotas, e quando converso com êles, falo fran-cês) . — Ça y est! Os índios chateantes desceram nova-mente de suas árvores no pátio da Universidade e irrom-

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peram na rua da Praia. Estão em pé de guerra e, para mostrá-lo, andam descalços.

Nesse meio tempo, outros membros da mesma tribo tinham invadido a loja e faziam tôda espécie de ''indio-tices". Atrás déles surgiram alguns caciques à paisana, que se distinguiam por uma expressão de crueldade feroz. Como aprendi mais tarde, pertenciam êles à tribo dos mata-bichos, que exerce forte ascendência sô-bre os demais índios.

A um sinal dado, o meu guerreiro dirigiu-me a palavra. Para minha maior surprêsa, não se serviu da língua guarani. Falou um português castiço, em-bora com leve acento en-tupi-do. — Quer me vender meio quilo de filet mignon? — disse. Fiquei aliviado ao perceber que, apesar das aparências, não era cani-bal. Com as mãos trêmulas, ofereci-lhe o libreto de "Mignon". Mas, evidentemente, não era o que êle desejava. Bruscamente me virou as costas e, entre gritos selvagens, meteu-se a assaltar uma casa de discos na vizinhança.

Seguiram-no os seus patrícios, depois de terem pu-lado numa perna só ao redor da caixa registradora. Um indiozinho de feições um tanto mais delicadas de-teve-se ainda para ajoelhar diante de um brotinho pas-mado, fazendo-lhe uma declaração de amor. Mas logo a voz severa do cacique de plantão chamou-o para ou-tras façanhas igualmente gloriosas. Lentamente, sen-tindo-me mais seguro, voltei aos meus catálogos.

Por pouco tempo apenas. As invasões repetiram-se com assustadora freqüência. Uma tribo revezava-se com a outra. Vinham os sioux da Engenharia, os iro-

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queses da Medicina, os seminoles da Filosofia, os com-pletamente noles da. . . Ora, não me lembro mais; sei, porém, que tôdas as faculdades estavam bem represen-tadas, com a única exceção das faculdades mentais. E os feitos d'armas tornavam-se cada vez mais grandio-sos: dançava-se em volta de sexagenárias apavoradas; beijavam-se os pés de inocentes criancinhas; pediam-se envelopes de "Melhorai" em sapatarias R calçados em drogarias. Enquanto isso ecoavam pela rua da Praia estrondosas ululações e diabólicas gargalhadas.

Com o tempo notei que o perigo era menor do que antes supunha. Reconheci sob a maquilagem he-dionda alguns semblantes simpáticos de jovens fregue-ses que, em épocas não muito remotas, haviam adqui-rido na minha secção dicionários e outras obras. Um belo dia reuni tôda a minha coragem e perguntei a um dêsses guerreiros, que me parecia menos agressivo, por que êle, que afinal de contas não ignorava que eu só tinha livros a vender, contudo me pedia cordões de sapato. Ruborizado, até mesmo nos lugares não pin-tados do rosto, o adolescente começou uma confissão espantosa: não era um índio de verdade, senão um jovem estudante universitário, que, forçado por uma tradição pré-diluviana, tinha de submeter-se a um ritual disparatado, a fim de ser admitido nos meios acadê-micos. Não trotava pela rua por livre e espontânea vontade; era trotado pelos caciques. Mal escapado da Scylla do exame vestibular, -caíra na Charybdes do trote. Ai dêle, se se opusesse! A vingança dos caci-ques do segundo ano seria terrível. Tendo gravado na memória aquilo por que haviam passado apenas um

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ano atrás, imporiam penas draconianas ao calouro re-belde. O pobre do rapaz falou-me de cabeças raspa-das, roupas dilaceradas e outras represálias do mesmo quilate.

Alguns dias após, tive que falar com a bibliotecá-ria de uma das nossas faculdades. No saguão do edi-fício havia um quadro negro, onde estava afixado um cartaz singular: numa fôlha de cartolina branca acha-va-se pregada com alfinetes uma tira de fazenda, evi-dentemente parte de uma fatiota de homem, e em torno da qual se lia em letras garrafais: "Pedaço de um bi-cho violento". Já me acostumei a ver e ouvir como criaturas humanas eram tratadas de "bichos", embora continue alérgico a essa palavra, desde o dia em que tive a infelicidade de escutar a "Hora do Bicho" de uma das nossas emissoras. Mas foi somente quando vi aquele cartaz que me decidi a escrever esta crônica.

Ainda me lembro dos dias, hoje tão distantes, em que eu mesmo cursava a Universidade. S'e bem que me tenha esquecido de muitas coisas que então me ensinaram, sempre hei de me recordar de uma que é a mais preciosa de tôdas, a saber: o ideal da liberdade acadêmica. Em todos os tempos, as Universidades vangloriaram-se desta sagrada liberdade, até aos dias tristes das ditaduras totalitárias, que foram as primei-ras a violá-la. Cada acadêmico tem o direito de agir e pensar em conformidade com as suas opiniões par-ticulares, desde que, com isso, não infrinja nem a Lei nem a Moral. Inúmeras gerações de professores e estu-dantes têm lutado em defesa dêste ideal, e cada geração sente o dever de legá-lo à sua sucessora. Sou da opinião

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que coações, represálias e violências não são um método adequado para iniciar um calouro nos conceitos funda-mentais da liberdade acadêmica.

Não me entendam mal! Nada tenho contra os dis-parates normalmente inofensivos que os calouros co-metem nas suas passeatas através das ruas da cidade. Quem gostar de andar com o rosto pintado de verme-lho e com uma boina de presidiário na cabeça, que ande à vontade! Acho imperdoável apenas que um grupo de marmanjos musculosos possa brutalizar livremente a quem não queira sujeitar-se às suas exigências, as quais recrudescem de ano em ano, visto que cada gera-ção de segundanistas procura superar a sua predeces-sora. Nos Estados Unidos, o "trote dos calouros" já teve por conseqüência ferimentos graves e até mesmo alguns casos de morte violenta. Mas, ali há uma grande diferença: só precisa agüentar o trote quem deseje entrar numa das chamadas fraternidades de es-tudantes. Ninguém pensa em molestar cidadãos paca-tos que não queiram fazer parte de tais grêmios.

Infelizmente não posso rir-me às gargalhadas, quando um "bicho" manifestamente envergonhado de si próprio pede a uma balconista igualmente constran-gida certos artigos sanitários destinados ao uso exclu-sivo de senhoras. Mas prometo dar uma gostosa risada no dia em que uma turma inteira de calouros se rebelar contra os caciques. Para o churrasco com que ela fes-tejar o seu triunfo, venderei até filet mignon no balcão de livraria.

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XII

DA ORNITOLOGIA POÉTICA

UANDO, nos meus tempos de ginásio, a gente se queixava do excesso de matérias, o professor, com o dedo em riste, explicava-nos que não era para a escola e sim para a vida que se aprendia isto ou aquilo. "Non ficholae sed vitae discimus!" — dizia, convencido de que um chavão se tornava menos banal, quando pro-ferido em latim. Mais tarde, nos labirínticos caminhos da vida, notei que muita coisa que outrora se me afi-gurara supérflua, tinha de fato certa serventia. Assim emprego hoje regularmente a trigonometria esférica e o cálculo das probabilidades, quando me esforço por equilibrar o orçamento do fim do mês. Há, porém, outras matérias, pesadelos do meu curso secundário, e que segundo me parece ainda hoje, não têm nenhuma utilidade prática. A rigor, podem ser aproveitadas para ponto de partida de um "Balcão de Livraria".

Um exemplo típico do que acabo de dizer é a ornitologia poética. Essa ciência, que representa um subproduto das aulas de literatura, trata das diferentes aves que desempenharam um papel relevante na mito-

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logia e na história. É surpreendentemente grande o número dêsses animais, e a inclemência dos meus mes-tres me fêz decorar todos êles.

No galho supremo do imenso aviário encontramos a velha Fênix, refratária ao fogo, sempre churrasqueada e jamais macia, até que enfim, cansada das brasas, le-vante vôo, rumo a um país fabuloso, deixando atrás apenas o seu nome para inúmeras mercadorias e com-panhias de seguro.

Na mitologia antiga pontifica a águia de Júpiter. Nunca me entusiasmei por ela. Apesar das suas ati-tudes majestáticas, não passa de uma alcoviteira, que rapta meninos indefesos, a fim de satisfazer as paixões lúbricas de seu amo. Tampouco simpatizo com a co-ruja de Minerva. Casmurra e insociável, tal e qual a sorumbática solteirona que é a sua patroa, bem me parece simbolizar todas aquelas sabedorias áridas que meus professores me faziam engolir. Muito mais me agrada o ganso de Juno. Pintam-no empenhado na salvação do Capitólio, e gosto dêle assim, embora o prefira assado, sobretudo com aquela maçã que Páris injustamente não entregou à sua ama, quando as pri-meiras "misses" da história desfilavam diante dêle. Quanto a Netuno, já não me lembro do nome da ave que êle patroniza. Talvez seja um peixe voador, ou bem o abnegado pelicano, celebrizado por Musset, e que é o modêlo do pai de família: desesperado em face da escassez de peixe e da carestia da vida, abre as pró-prias entranhas com uma bicada furiosa, para alimentar a prole voraz com o sangue das suas úlceras.

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Da mitologia germânica, apenas me recordo do si-nistro corvo de Wotan. Depois de ter pousado durante alguns milênios solitariamente nos ombros do dono de Valhala, encontrou uma companheira, e mudou-se para as espáduas do imperador Barbarroxa. Mas tenho a impressão de que não se deu bem com a vida de ca-sado, pois, quando foi visto pela última vez, na casa de Edgar Allan Poe, andava bastante deprimido e só sabia crocitar: "Nunca mais!"

Já muito longe do ginásio, verifiquei que os meus professores, por mais meticulosos que fossem, haviam deixado de completar os meus conhecimentos de orni-tologia poética. Por motivos que ignoro, tinham esque-cido de mencionar uma ave, cuja existência, breve e todavia gloriosa, parece-me cheia da mais alta poesia. Não me refiro ao pagagaio das anedotas cariocas, já que a ornitologia pornográfica somente nos é minis-trada no curso superior. Não, amigo leitor! a ave; de que falo é o galletto di primo canto.

Sempre me sinto profundamente emocionado, quan-do acompanho, no meu espírito, a brilhante e efêmera trajetória de cometa que percorre êsse malogrado aspi-rante a frango. Faz poucas semanas que sa ;u do ôvo. Mal se emancipou do aconchego das asas maternas. Prematuramente abandonou os brinquedos de pinti-nho. E abrangendo com um olhar admirado o mundo vasto, hostil, abre pela primeira vez o bico para cantar. Canta, enquanto já se crispam em torno de seu pescoço as impiedosas mãos do Destino. Canta o que lhe enche o coração e os demais miúdos. Canta revolucionárias variações sôbre o tradicional cocorocó. Canta o seu

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frustrado amor a uma galinha jamais alcançada. Canta os sonhos, os castelos de areia, os ideais de uma alma penada. Profere o primeiro canto, que também será o derradeiro. Canta-o, tendo diante dos olhos arrega-galados a tétrica visão de uma mortalha de toucinho, de um coroa de folhas de salva, e sobretudo de um fu-turo que é — espeto, igual ao presente de grande parte das criaturas humanas.

O galletto di primo canto — que exemplo lumi-noso, edificante, para os autores da nossa época! Há muitos dentre êles que não têm assunto senão para uma única obra e sem embargo lançam um volume após cutro, repetindo-se sem cessar. Se essa gente assimi-lasse a lição do gaV.etto, limitaria a sua produção ao primeiro canto e permaneceria grande, ao invés de tor-nar-se maçante. Quem pode cantar uma só vez na vida, guarda na gaveta tudo quanto não merece sair à luz, pesa as palavras, compenetra-se da responsabili-dade que o talento de escritor impõe. Obrigado a con-centrar todo o seu sentir e pensar num único e defini-tivo livro, cada autor poliria pertinazmente os seus ver-sos e períodos, para que nenhuma nota desafinada pas-sasse à posteridade. Desta forma, quanto livro ruim deixaria de ser impresso, quanto papel ficaria economi-zado! E nós, os livreiros, teríamos muito menos en-calhe . . .

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XIII

DEMOS ASAS AO LIVRO. . .

S E I por experiência própria que não é fácil para um livreiro alcançar a alta dignidade do tubaronato. Quando muito, crescemos até o tamanho respeitável das traíras, mas, na maioria das vêzes, ficamos lam-baris tòda a vida. E quando, numa tarde muito calma, plantamo-nos na porta da livraria, para confrontar a fila interminável que se formou diante do guiché do ci-nema vizinho com a quase absoluta falta de fregueses no interior da nossa loja, é apenas humano que a alma se nos encha de fel e rancor. Começamos então a fa-lar mal de quem despreze os tesouros intelectuais espa-lhados pelos nossos balcões.

Há alguns dias recebi um cartão-postal que a Câ-mara Nacional do Livro distribui a título de propagan-da. Vê-se nêle um robusto camelo a carregar entre as roliças gibas um painel com os dizeres: "Eu não leio". Para destinatários de raciocínio lento, e que por acaso não percebam a semelhança entre o exótico ruminante e as pessoas avêssas à leitura, seguem-se ainda alguns

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comentários pouco amáveis sôbre a índole dos came-lídeos.

Tenho as minhas dúvidas quanto à eficiência dessa propaganda. Evidentemente, ela se propõe ampliar o círculo por demais reduzido dos leitores de livros. Não vejo, -cnlretanto, como novos fregueses de livrarias poderão ser atraídos por êsse tipo de cartões. Não consigo vislumbrar resultados positivos que possam ser obtidos entre os sêres humanos. Injuriar a quem não gosta de ler não me parece o método indicado para cativar-lhe o coração. Não receio que alguém se sinta melindrado pela comparação com o camelo. Quem prefere uma partida de canastra ou uma novela de rádio à leitura de um romance geralmente não pára diante das vitrinas e mesas de livrarias, de maneira que nem sequer notará a bofetada que lhe deseja vibrar a emi-nente Câmara Nacional do Livro. Quem dará pela existência dos cartões em aprêço serão, na melhor das hipóteses, os nossos fregueses de caderno, que os olha-rão com indiferença, não se sentindo atingidos, uma vez que de qualquer jeito compram livros. Quanto aos camelos, acho que são demasiado fleumáticos para esbo-çarem uma reação de protesto. Desta forma, o efeito prático dos cartões não será muito grande.

Quero evitar malentendidos: sendo liveriro. per-cebo melhor do que ninguém a necessidade de conquis-tarmos novos amigos para a nossa mercadoria. Sou, porém, da opinião que para tanto não é suficiente im-primir cartões-postais ou cartazes com dísticos exorta-dores, afirmando que "ler é bom" e "o livro é o melhor

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amigo". Não é com slogans e outros recursos de publi-cidade corriqueira que se curará a alergia ao livro de que padece grande parte do nosso povo e, em especial, da nossa juventude.

Êsse mal já vem de longe. A escola, a rigor, en-sina a criança a ler. As campanhas de alfabetização, muitíssimo louváveis, fazem com que o número de anal-fabetos decresça aos poucos. Mas, não basta saber ler para gostar-se de leituras. Pessoas alfabetizadas que ignorem o prazer que lhes poderia proporcionar um livro de valer lembram aquêle aprendiz de feiticeiro que possuía a fórmula mágica e não sabia empregá-la.

Trata-se, pois, de transformar os nossos aprendi-zes de leitura em mestres consumados na nobre arte de ler. Devemos mostrar-lhes que o alfabeto é apenas uma chave capaz de abrir um portão cerrado, e que, para conhecerem o mundo maravilhoso que se esconde atrás, será preciso dar uma volta na fechadura, que é o livro. Convém demonstrar que saber ler não é so-mente uma arma poderosa na luta pela vida, como tam-bém uma fonte inesgotável de diversões das mais va-riadas. Temos que educar crianças e adultos no sen-tido de usarem diàriamente o livro como utensílio da higiene mental, assim como empregam o sabonete e a escova de dentes para o asseio físico.

Não me iludo com respeito às enormes dificuldades que nesse caso se interporão entre o desejo e a reali-dade. Sei que esta última só pode ser o produto de intensos e demorados trabalhos. Sei que necessitare-mos lançar mão de recursos mais eficientes do que são

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gracejos impressos em cartões-postais. Mas sei tam-bém que tudo isso não é impossível nem tampouco re-quer o dispêndio de muito dinheiro. O Brasil não é o único país no mundo a enfrentar o problema da adap-tação das massas à boa leitura. Em outras terras já se conseguiram verdadeiros milagres nesse sentido, sem que fôsse preciso fazer gastos que onerassem exagera-damente o orçamento do Estado.

Em outra ocasião tratarei dos métodos que pode-riam ser empregados para se fomentar o gosto do livro em vastas camadas da nossa população. Por enquanto limito-me a apontar para um artigo publicado na "Sa-turday Review" norte-americana, em 26 de junho de 1954, e que é uma mina de sugestões inteligentes. Era de desejar que uma das nossas revistas literárias o tra-duzisse na íntegra. Estuda êle a estrutura e os serviços das bibliotecas públicas estadunidenses através de um inquérito que abrange o país inteiro, e cujo resultado pode ser resumido nestas frases: "As estatísticas de circulação, organizadas pelos bibliotecários das diferen-tes regiões, evidenciam tôdas elas o mesmo fato: basta que livros estejam disponíveis para que sejam lidos pelo povo. Trata-se apenas de colocá-los ao alcance da gente".

Eis, em poucas palavras, o "X" do problema. Desde que o público não vai ao encontro do livro, cumpre levar o livro ao encontro do público. Demos asas ao livro, para que êle possa abandonar as prate-leiras de livrarias e bibliotecas populares, para que saia em busca de quem o leia.

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XVI

A CATEDRAL E AS CAPELINHAS

V IVEMOS na idade da Estatística. Recenseamos, peça por peça, o mundo que nos cerca. Pesamos meticulo-samente tudo quanto se come e se elimina, na vaga esperança de podermos, por meio de cifras exatas, al-cançar o almejado ideal do homem-padrão. Só não se mede o que se pensa, mas tal omissãozinha não preo-cupa a ninguém, porque de qualquer jeito se pensa cada vez menos e em breve teremos máquinas que pensarão por nós.

Mantemos, porém, em dia a contabilidade dos nossos amores e desamores, tomando nota da sua fre-qüência, intensidade, técnica. Cada época tem seu livro representativo, que melhor lhe expressa o caráter e o espírito. Parece-me provável que futuras gerações ve-nham colocar ao lado dos Homero, Dante e Goethe, como a obra-chave do século XX, o monumental rela-tório do professor Kinsey sôbre a vida sexual do "ma-cho" e da "fêmea" americanos. Devo confessar que, por motivos inexplicáveis para mim mesmo, não me sinto feliz diante dessa perspectiva.

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Em 1950 tivemos um censo no Brasil. Preenche-mos questionários engenhosamente preparados, elucida-tivos, indiscretos, para lá de minuciosos. Contudo des-cobri eu, como livreiro, uma pequena lacuna na densa rêde de perguntas em que nos envolviam os recensea-dores. O Departamento de Estatística que se interes-sava por tanta coisa que fazia ou deixava de fazer a gente interrogada, não procurou saber se o cidadão bra-sileiro alfabetizado comprara ou não algum livro no decênio decorrido desde o levantamento anterior. Em caso de resposta afirmativa, a minha curiosidade pro-fissional gostaria de indagar ainda do gênero dos livros adquiridos: quantas obras escolares para os estudos da filharada? quanto manual técnico, destinado ao preparo de exame ou concurso? e finalmente: quanto livro escolhido simplesmente para satisfazer o desejo de au-mentar a cultura geral, livro a ser lido sem objetivo imediato, pelo mero prazer, no intuito de fugir à rigorosa padronização dos cérebros que nos impõem os progra-mas de ensino tanto como os programas de rádio.

Receio que as respostas positivas talvez não com-pensem o espaço que essa última categoria de livros ocuparia no questionário. Sob êsse aspecto decerto seria mais interessante contar o número de pessoas que durante os dez anos em aprêço hajam freqüentado ci-nemas, campos de futebol, salões de bilhar, hipódromos, cabarés. Mas, o confronto da cifra insignificante que obteríamos no caso dos livros, com a outra, gigantesca, que seria o resultado de um inquérito relativo às diver-sões públicas, não deixaria de ser instrutivo, pelo me-nos do ponto de vista econômico.

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Ficaria demonstrado de um modo insofismável por-que as tiragens das edições nacionais têm de ser tão ridiculamente pequenas. Via de regra, e fazendo abs-tração de raríssimos best-sellers que surgem de lustro em lustro, elas não ultrapassam cinco mil exemplares. Freqüentemente não chegam nem sequer a três mil. Por outro lado temos — teoricamente — um mercado consumidor de quase trinta milhões de pessoas alfa-betizadas. Quero ainda salientar que o número de livros que atualmente se publica entre nós é reduzidís-simo, de maneira que não cabe falar de hiperprodução. Os editores, amargurados pela recordação de certas aventuras malogradas, limitam-se ao lançamento de obras que prometam uma venda rápida, e mesmo assim não podem arriscar tiragsns maiores. Levando-se ain-da em conta o custo da confecção, expiica-se fácilmente que o livro nacional não pode ser barato.

Todos os dias, os meus fregueses me dizem que "os preços dos livros são proibitivos". Quem fala assim são, na maioria das vêzes, pessoas que gostam de livros, a ponto de se sujeitarem a certos sacrifícios para com-prá-los apesar dos pesares, em contradição com as suas próprias palavras. As grandes massas do nosso povo, porém, pouco se impressionam com a alta do livro na-cional. Se êste custasse a metade ou a quarta parte, nem por isso o adquiririam. É uma mercadoria que não lhes desperta o apetite, porque jamais provaram o sabor da boa leitura. Não estão acostumados a lidar com livros. Não são ledores nem por índole, nem por tradição. Uma simples redução de preços — supondo que ela seja realizável — em nada nos adiantaria.

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Quem ignora por completo o valor e a serventia de um objeto não o compra por preço algum.

A adaptação das massas brasileiras ao uso do livro não é portanto uma questão de preços. Para conse-gui-la será preciso empregar métodos e organizar planos que vão além das possibilidades e competências de edi-tores e livreiros.

Toda tentativa para resolver o nosso problema deverá ser feita a longo prazo, sem visar resultados ime-diatos. Hábitos arraigados de um povo não se modi-ficam de um dia para o outro. Desta forma, qualquer solução requererá inifinita paciência e grande abnega-ção. A que ora apresentarei não pretende ser a pedra filosofal. Não passa de uma sugestão, sôbre a qual me-ditei maduramente, e que submeto à discussão.

A tarefa a ser executada será dupla: em primeiro lugar teremos que implantar o gôsto do livro nas pes-soas adultas; em segundo, cumpre conduzir a juventude escolar pelo caminho da boa leitura. Tanto um como o outro trabalho são de capital importância. Da edu-cação "livresca" das crianças depende não só o destino do livro, mas também o do pensamento individual no Brasil. A dos adultos, mais laboriosa talvez, pode, no entanto, produzir efeitos muito benéficos no futuro, uma vez que pais que gostam de ler influem no mesmo sen-tido sôbre os filhos.

É dêste lado do assunto que tratarei no artigo de hoje.

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Para iniciar a série das minhas sugestões estabeleço três teses:

1) A adaptação do povo brasileiro ao uso do livro deve partir das biblioteecas públicas.

2) O livro deve ser oferecido na própria zona onde mora a pessoa que pretendemos conquistar.

3) O livro deve ser lido no lar do leitor. Para quem conhece as nossas bibliotecas públicas,

parece haver contradição entre essas três teses. No Brasil, a Biblioteca Pública — no singular — costuma encontrar-se no centro da cidade, onde ocupa um ca-sarão mais ou menos espaçoso. Ali o povo tem acesso às mesas e poltronas de um salão de leitura e pode escolher pelo catálogo um título que por acaso lhe apeteça. Não entra em contato com os proprios livros, nem tampouco os pode levar para casa. Nunca chega a saborear o prazer de folhear algumas obras ao mesmo tempo, na indecisão da escolha; nunca pode passar um olhar curioso pelo conjunto de estantes que tanto te-souro contêm; nunca pode sair com um livro enfiado no braço, para abri-lo em plena rua, na ânsia de pre-gustá-lo. As nossas bibliotecas públicas são freqüen-tadas quase que exclusivamente por pessoas que dese-jam estudar alguma matéria, com um objetivo deter-minado em mira.

Não vai lá quem queira descansar, lendo um livro bom. E não pode ser de outra forma. Lemos por prazer somente nas horas vagas, isto é: à noite, nos fins de semana e nos dias feriados. A Biblioteca Pú-blica não está aberta senão em dias úteis, de maneira

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que a gente humilde que trabalha oito horas só pode utilizar-se dela de noite. A essas horas, porém, o in-dustriário, o balconista, ou quem mais deveria apro-veitar os belos volumes enfileirados nas prateleiras, encontra-se em casa. Feliz por haver terminado um dia de faina exaustiva, por ter escapado ao suplício das filas e às sacudidelas dos veículos coletivos, refes-tela-se numa rêde ou na mais cômoda cadeira de que dispõe o seu lar. Abandoná-la exigiria muito espírito de sacrifício. A rigor sairia de casa para ir a um cinema situado na vizinhança. Mas essa idéia da gente voltar ao centro da cidade, para meter-se numa sala de biblio-teca e ler um livro — não, senhor! essa idéia nunca lhe passaria pela cabeça.

Assim se explica que as nossas imponentes biblio-tecas públicas estejam '"povoadas" de uns poucos estu-dantes e talvez ainda de algumas aves raras que» têm o seu ninho nas proximidades.

A Biblioteca Pública é a catedral da leitura. O que necessitamos são igrejas e capelinhas distribuídas pelos bairros.

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X V

SAUDADES D E UM "C" MAIÚSCULO

N AQUELES dias remotos em que meu pai cursava ginásio, um jovem que se prezasse devia adquirir aquilo que então chamavam de "cultura geral". Havia uma só cultura para todo o mundo, e o que então se ambi-cionava era a maior amplidão possível. Nos meus próprios tempos de colegial, o "C" maiúsculo dessa cul-tura já encolhera consideravelmente. Fora ela acome-tida por uma espécie de esquizofrenia, em conseqüência da qual o ensino secundário se desdobrara num curso clássico e num outro, científico. De repente brotavam do chão culturas especializadas para juristas, médicos, engenheiros, etc.

É nesse caminho que estamos "progredindo" numa velocidade espantosa. Não há quem não procure re-duzir ao mínimo os seus conhecimentos gerais, em prol de uma especialização cada vez mais intensa. Aos pou-cos deixamos de ter médicos; só temos oftalmologistas, pediatras, tisiólogos, cirurgiões. Já se pode prever o dia em que, no lugar dos cirurgiões, teremos apendi-cistas ou vesiculistas.

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Com botas de sete léguas aproximamo-nos daque-les "Tempos Modernos", de Carlitos, em que o homem, prêso, à sua máquina, repete sem cessar inúmeras vezes o mesmo gesto mecânico. Há um personagem de Mark Twain, que me parece simbolizar de forma maravilhosa o superespecialista ideal da nossa era. Refiro-me àquele indivíduo que nada sabia fazer a não ser uma única coisa: cuspir a três metros de distância através de um buraco de fechadura, sem jamais, jamais, jamais errar o alvo.

Arriscando-me a que alguns leitores de idéias avan-çadas me tomem por um saudosista incurável, devo confessar a melancolia que me invade cada vez que me lembro das figuras de Leonardo ou Goethe, cuja vida e obra representavam a totalidade do espírito da sua época. E ainda hoje ergue-se à nossa frente a perso-nalidade tão grandiosa quanto anacrônica de Albert Schweitzer, que ante os olhos estarrecidos dos especia-listas, consegue irmanar-se com êsses gênios universais. Será lealmente preciso fugir até as selvas africanas, para enxergarmos horizontes mais amplos do que nos abre a nossa civilização?

Ninguém me tira da cabeça que o nosso mundo está ficando mais pobre, espiritualmente. A estreiteza que nos impõe a especialização da nossa vida profis-sional não encontra compensação nas horas vagas, que enchemos de distrações padronizadas, como as oferecem o cinema, o rádio, os esportes, o jôgo. A humanidade de hoje passa por um processo de despersonalização, que ameaça aniquilar os últimos restos da nossa indivi-

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dualidade. Para contrabalançá-la, para enriquecer no-vamente a nossa existência mecanizada, só vejo um único recurso: a leitura.

Sei perfeitamente que um pregador que teima em oferecer uma cura patenteada para todos os males do mundo, torna-se maçante em pouco tempo. Sei tam-bém que um livreiro que recomenda a sua própria mer-cadoria como remédio infalível é de antemão sus-peito. Mas, por mais que me esforce, não consigo vis-lumbrar outro meio, a não ser o livro, para reajustarmos os nossos cérebros à sua função primordial que é: pensar. Pensar claramente, racionalmente, individual-mente. . .

Em dois artigos anteriores desta série explanei a necessidade de se acostumar a parte alfabetizada do povo brasileiro ao prazer da boa leitura. Aguardei com certa curiosidade a reação dos leitores. Verifiquei com satisfação que aquêles dois "Balcões" foram lidos por muita gente. Recebi o apoio quase entusiástico de alguns amigos e fregueses. Ouvi também algumas opi-niões céticas de pessimistas inveterados. Nada disso me surpreendeu. Fiquei, no entanto, pasmado, diante de um jovem acadêmico, que tachava de ingênuo o de-sejo de levantar o nível intelectual do povo, uma vez que homens incultos eram muito mais manejáveis nas mãos de um govêrno.

Embora eu seja normalmente um cidadão pacato, tive algumas dificuldades para não perder a linha, ao ouvir tal disparate cínico. Aprendi de La Fontaine que "la fourmi riest pas prêteuse; c'est là son moindre défaut".

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Mas, sempre pensava que a avareza das formigas abas-tadas se limitasse aos bens materiais. Era preciso que um adolescente me ensinasse a sovinice relativa às pre-cárias sabedorias que os homens conseguiram acumular em cinco mil anos. Que idéia engenhosa, essa de barrar o caminho que nos conduz até elas a todos os que não pertençam a um grupo reduzido de super-homens! Que golpe de mestre, êsse de fazer da inteligência um mo-nopólio de alguns eleitos! Só me pergunto porque não fechamos logo todas as escolas. São perigosas. Uma pessoa que aprendeu a ler será capaz de ler mesmo um belo dia. De ler o que lhe der na veneta, e não aquilo que lhe prescrevem os clarividentes desenhistas das respectivas linhas justas. Deus me livre!

Percebo com espanto que a beirada de meu ino-cente balcão de livraria se transformou num alcantil. Por pouco não caí num abismo em cujas profundezas me esperava a hidra voraz do pensamento totalitário. Apavorado, dou um pulo para trás e — mais uma vez me acho face a face com o espinhoso problema da organização de bibliotecas populares. Mas o susto foi muito grande. Vou precisar de alguns dias de descanso para refazer-me.

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XVI

AS IGREJINHAS DA BOA LEITURA

O Brasil é um país muito grande. Essa constata-ção parece acaciana, mas o próprio fato em que se baseia não deixa de exercer forte influência sôbre a mentali-dade da nossa gente. A extensão do território acostu-mou-nos a pensar, projetar, calcular em escala ampliada, como se todos os nossos problemas exigissem soluções grandiosas. Assim se explica a tendência para a cons-trução de edifícios enormes, nos quais centralizamos as repartições, os hospitais, os institutos do ensino, etc. Prevejo com algum receio que as planejadíssimas me-trópoles do futuro terão no coração da cidade um arra-nha-céu de dez andares, destinado às mesmas finalida-des do famoso "monumento" de Clochemerle.

Há certos casos em que a centralização é contra-producente. Depois de tudo quanto acabo de expor nos artigos anteriores desta série, não será surprêsa para ninguém que me refira às bibliotecas públicas. Temos algumas muito lindas. Não incluo neste número a de Pôrto Alegre, que há muitos anos vive se definhando, devido à parcimônia do Govêrno estadual. Mas a de

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São Paulo é um encanto de modernidade e beleza. É até bela demais, uma vez que não há necessidade de tanto glamour livresco.

Por mais imponente que seja a catedral, a maioria do rebanho vai à missa da igreja de seu bairro. Os fiéis sentem-se à vontade num ambiente mais simples; não gostam de deslocar-se; evitam a despesa e o descon-forto que acarretam os veículos públicos.

O mesmo acontece com os — possíveis — fre-qüentadores das bibliotecas populares. A suntuosidade das nossas catedrais de leitura não os fascina a ponto de se sujeitarem ao sacrifício de uma viagem noturna de bonde ou de ônibus. Por outro lado, não há nos seus bairros nenhuma "capelinha", onde se possa ler. E assim vão ver um filme ou jogar uma partida de snooker. Para isso existem oportunidades em tôda parte.

Se tivéssemos bibliotecas populares em todos os recantos da cidade, decerto não encontraríamos à sua frente aquelas filas intermináveis que infelizmente ob-servamos nas proximidades de açougues ou leitarias. A necessidade de alimentar o intelecto ainda não se laz muito sensível no nosso meio. Quem esperasse resultados imediatos, fulminantes, assombrosos, da ins-talação de capelinhas de leitura, melhor faria abando-nando a idéia como irrealizável e utópica. Acho que deveremos dar-nos por satisfeitos, sobretudo nos pri-meiros anos, se cada biblioteca popular conseguir re-crutar algumas dezenas de neófitos entre as pessoas an-teriormente alérgicas ao contato com livros. Nem isso será muito fácil.

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Mesmo assim vale a pena fazer uma tentativa, tanto mais que esta pode ser realizada com recursos relati-vamente modestos.

As "igrejinhas da boa leitura" que eu imagino não tém a ambição de rivalizar com a grandeza e a opulên-cia da "catedral". Ficariam instaladas numa salinha singela, situada numa das ruas mais acessíveis do bairro, de preferência ao rés-do-chão; salinha de dimensões reduzidas, já que a mobília que nela deve caber é pou-quíssima; uma estante a conter uns duzentos a trezen-tos volumes bem selecionados, uma mesa, meia dúzia de cadeiras, um fichário e uma escrivaninha para a pessoa encarregada da biblioteca. Tudo isso de uma simpli-cidade monacal. É dispensável qualquer luxo: os fre-qüentadores da biblioteca popular só passarão ali o tempo estritamente necessário para escolherem um livro, que levarão consigo e lerão calmamente em casa, durante os próximos quinze dias.

Aprendi do relatório anual das Bibliotecas Públi-cas norte-americanas que naquele país muito mais rico do que o nosso amiúde se recorre à abnegação e ao civismo de particulares ou de casas comerciais a fim de obter-se de graça o espaço imprescindível para a instalação de uma biblioteca popular. Também para o serviço de administração encontram-se fácilmente idealistas desinteressados que, revezando-se enti3 si, dediquem regularmente algumas horas por semana à biblioteca popular. Em distritos rurais do Estado de Tennesse há tais bibliotecas abrigadas em filiais de banco, postos de gasolina, armazéns de secos e molha-dos, estações de bombeiros, e até mesmo em delegacias

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de polícia, sendo que em toda parte os bibliotecários trabalham sem remuneração.

Talvez possamos imitar em alguns lugares êsse luminoso exemplo de espírito cívico. Mas, na impos-sibilidade de conseguirmos para tal serviço à coletivi-dade um número suficiente de voluntários entre pessoas aposentadas, estudantes, etc., tampouco será preciso gastar somas elevadas para os ordenados do pessoal. As bibliotecas populares não carecem permanecer aber-tas durante o dia inteiro. É apenas indispensável que estejam à disposição do público nas noites de segunda a sexta-feira, para que a população que trabalha possa abastecer-se de livros.

O número de volumes expostos numa biblioteca náo precisa ultrapassar trezentos, uma vez que serão mudados periodicamente, transferindo-se o estoque do bairro A para o bairro B, e vice-versa. Deve, porém, haver uma seleção carinhosa de literatura boa, adequada ao nível intelectual dos prováveis leitores. Convém colocar nas estantes romances de valor, livros de divul-gação científica, biografias de personalidades célebres, compêndios de história, filosofia, arte, religião, obras de autores clássicos, tratados de orientação técnica. Numa palavra: um pouquinho de tudo.

Conjeturo uma objeção: "É perigoso entregar os livros da biblioteca ao público, para que êste os leve para casa. Haverá extravios. Muita obra voltará danificada, etc." Está certo. Como, no entanto, as bi-bliotecas populares não emprestarão livros muito valio-sos e ainda menos raridades insubstituíveis, sou da opi-

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nião que o prejuízo não será muito grande. Perder-se de vez em quando um livro é preferível a deixá-lo criar poeira na estante, abandonado à voracidade de traças e cupins. Nenhum bibliotecário, por mais consciência que tenha do valor dos tesouros que lhe foram confiados, deve esquecer que sua finalidade principal é serem lidos e não apenas figurarem no catálogo. O resto depende de um regulamento cuidadosamente elaborado.

E por fim quero responder a uma pergunta indis-creta que me fizeram alguns amigos.

— Por que cargas d'água — indagaram êles -— empenha-se você, um livreiro, numa campanha em prol de bibliotecas populares? Não acha que elas represen-tarão uma concorrência às livrarias? Quem lê de graça não compra livros.

Seria bonito dizer que escrevi esta série de artigos por puro idealismo, impelido pelo desejo irresistível de servir à causa do livro e de aprofundar a cultura do nosso povo. Seria bonito, sim! mas prefiro falar com sinceridade. Há um pouquinho de tudo isso nos meus motivos, mas há também uma pontinha de interêsse. A experiência me ensinou que o livro pode ser uma mer-cadoria extremamente sedutora para quem pegou "o vício" de ler. Quem se acostumou a lidar com livros, a tê-los em casa, a folheá-los no bonde, acaba desejando possuir uma estantezinha tôda sua. Converter um fre-qüentador da biblioteca popular em rato de livraria será infinitamente mais fácil do que transformar um ouvinte assíduo de novelas de rádio num fan apaixonado da boa leitura.

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Quem luta pela sobrevivência do livro, sèriamente ameaçada nos nossos dias, defende também a classe dos livreiros. Desculpem o meu egoísmo: ganho o meu pão com manteiga, vendendo livros, e gostaria de ver entrar na livraria onde trabalho, um número cada vez maior de fregueses. Poderia ter andado atrás de lucros mais fáceis, mas escolhi esta minha profissão porque tinha — como ainda tenho — fé no valor intrínseco da minha mercadoria. Ando convencido de que o velho e surrado slogan "Ler é bom" contém uma grande e pro-funda verdade. Quem se habituou a desperdiçar as horas vagas jogando canastra ou escutando o que lhe oferecem as nossas estações de rádio, nem sequer ima-gina as delícias que a leitura de um livro é capaz de nos propiciar.

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XVII

DA CRÔNICA SOCIAL

T ENHO loucura pela crônica social dos nossos jornais. Embora eu mesmo seja um partidário daquele colono que não comprava pijama, porque não ia a bailes e reuniões, gosto de acompanhar de longe os rumos es-quisitos em que as altas rodas andam rodando altanei-ramente. Admiro de todo coração a terminologia poli-glota dos cronistas especializados. Quem me dera saber distinguir à primeira vista entre uma robe "ali black" e um vestido "tout noir"!

Ainda mais me fascina, porém, o lado sentimental dessas crônicas. Quanta tragédia passional, ministrada em doses homeopáticas, não se esconde nas entrelinhas! Quando leio, por exemplo, que "no baile do Clube do Comércio, a Srta. Shirley Anabela Beltrano (uma sim-patia!) não dançou nem uma única vez com determi-nado môço loiro", já visiono a formosa garota a disfar-çar o seu pranto no toilette de senhoras, enquanto o • rapaz soturnamente se embriaga no bar. Deixe de chorar, menina! Não há de ser nada. Não tardará a chegar o dia em que tôdas as Anabelas são noivas.

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Às vezes, os decotes baixam a tal ponto que nem sequer o repórter mais indiscreto pode desvendar se-gredos inéditos. Nesses momentos cruciais de premente falta de matéria mais substancial, as páginas sociais enchem-se de artigos puramente didáticos. Eis senão quando nos ensinam a preparar doces de côco, a tirar manchas de tinta e a alcançar a felicidade conjugal.

Tenho à minha frente um artigo modestamente intitulado "Problemas das Moças", e que, apesar da sua brevidade, contém o máximo de sugestões úteis para um brotinho ansioso de organizar a sua vida sem des-necessária perda de tempo. Com muita razão, o arti-culista afirma no início que "as moças têm, freqüente-mente, grandes problemas". Depois de tecer algumas considerações filosóficas de somenos importância, co-meça a resolver êsses problemas, um a um, eni forma de uma espécie de catecismo para garotas de dezesseis anos. Dez perguntas com as respectivas respostas — é o que basta para dissipar as últimas dúvidas que, por acaso, possam surgir em cérebros de adolescentes.

A primeira parte refere-se à educação física. Es-tabelece o sábio mentor que a mocinha de dezesseis pri-maveras deve pesar menos de cinqüenta quilos. Ne-nhuma jóquei mais pesada tem esperanças de obter boas montarias no "Grande Páreo da Felicidade". Conse-qüentemente seguem-se alguns conselhos relativos à ginástica e à natação, indispensáveis para quem almeje a tão necessária "flexibilidade para dançar".

O terceiro mandamento resolve, uma vez por tôdas, o problema das boas maneiras, decretando sumariamente

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que ninguém se deve pentear no salão de chá, ao ter-minar o sorvete. Como se vê, a boa educação torna-se fácil para quem, como eu, tem cada vez mais testa e menos cabelo.

Progredindo rumo a mens sana in corpore sano, o autor resume nas respostas 4 e 5 tudo quanto um bro-tinho deve saber antes de namorar. Chegamos, pois, à parte intelectual do decálogo, a que mais interessa ao leitor livreiro. "Quantos nomes de capitais sabe de cor?", indaga a quarta pergunta, e a resposta exige de uma guria culta que conheça, no mínimo, dez grandes capitais. Confesso francamente que para mim seria difícil responder. Hesito porque ignoro o gênero da palavra "capital", que, como se sabe, pode ser masculina ou feminina. Pessoalmente me inclinaria para a pri-meira dessas alternativas, uma vez que deve ser mais importante para uma pequena ambiciosa saber na ponta da língua a hierarquia dos Aga Khan, Rockefeller e Van-derbilt do que sobrecarregar a memória com nomes de cidades longínquas como Nova Delhi ou Copenhague. A quinta pergunta, entretanto, é menos equívoca: "Re-conhece a marca de um automóvel pela sua carroceria"? Segundo o autor, a resposta deve ser um "sim" irrestrito. Acho essa exigência um tanto rigorosa. Numa época em que ninguém quer aprender coisas que não sejam de utilidade imediata, nenhuma garota que preze carece desperdiçar o seu precioso tempo com carros humildes, como Anglia ou Volkswagen, em vez de es-tudar, de fora e de dentro, a aristocracia dos Cadilac, Lincoln e Rolls Royce.

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Após ter completado, desta forma, a cultura geral do brotinho inteligente, o articulista passa a dar, nas respostas seguintes, algumas sugestões de natureza prá-tica: convém deitar uma bebida num copo, sem der-ramar ao lado; em compensação é feio pisar nos pés do par, quando se dança. E tudo culmina no décimo man-damento: "Keep smiling! Desperte com os lábios escan-carados num vasto e convidativo sorriso!"

Esqueci de mencionar que li o artigo em apiêç<< numa das nossas praias do Atlântico. Terminada a leitura, olhei em tôrno de mim. A alguma distância, um grupo de mocinhas jogava volibol, evidentemente para se livrarem, o mais depressa possivel, daqueles an-tipáticos quinhentos gramas que ainda as separavam dos gloriosos cinqüenta quilos e da felicidade garantida. Outros brotos viravam ávidamente as páginas da re-vista "Cruzeiro", à cata daquela única marca de auto-móvel que lhes faltava para a plenitude da sabedoria humana. A noite, na boite, (parece rima, não é?) re-encontrei a mesma turma em companhia de alguns ra-pazes, a cujos ouvidos segredavam, ao ritmo de samba, tudo quanto haviam aprendido: dez capitais, dez marcas de automóveis. É escusado dizer que nunca ninguém pisou nos pés de ninguém.

Como não danço, comecei a meditar. Senti-me, de repente, acossado por uma dúvida terrível: "Devo mesmo continuar a oferecer livros a essas lindas cria-turas?" As próprias coleções das moças, de capa azul ou côr-de-rosa, são suscetíveis de desenvolver-lhes o cére-bro, ao passo que a ordem do dia é reduzir o pêso em

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tôda a parte. Dez capitais, dez marcas de automóveis — eis a fórmula mágica, eis a engenhosa receita da con-densação delinitiva, radical, insuperável, da nossi sabe-doria! Que adianta imprimir livros quando vinte pala-vras bastam para satisfazer quaisquer pretensões que a môça moderna deve ter em matéria de erudição? Ga-rotas que limitam prudentemente os seus conhecimen-tos àquele mínimo estipulado pelo autor do decílogc, recebem como brinde o globo terrestre em dois colo-ridos elegantes, côr-de-rosa ou azul, à escolha do fre-guês. Ai do brotinho que deseja saber demais! Para êle. o Criador fabrica o artigo numa terceira côr: "tout roir" ^respectivamente "ali black"). Tal visáo tene-brosa pode fazer com que o sorriso regulamentar lhe desapareça dos formosos lábios e a ir;ão trêmula der-rame guaraná ao lado da taça.

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Todos os artigos selecionados para êste caderno foram publicados em primeira mão no suplemento lite-rário do "Correio do Povo", de Pôrto Alegre, com a única exceção do número XI, que é inédito. Os artigos de I a VII saíram também no "Jornal de Letras", do Rio de Janeiro. A revista "Coletânea" reimprimiu o artigo I.

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Í N D I C E

I . Memórias de um livreiro S II. Da santa ignorância 10

III. Livros, livros e mais livros 18 IV. A gente precisava de uma plataforma 23 V . Plantando dá 28

VI . Livros que nos fazem sonhar 35 VII . Do bife à sobremesa 41

VIII . Meditações de balanço 47 I X . O doutor Zé-Povo Filho reclama 54 X . Os ratos e os novatos 6(J

X I . A invasão dos bárbaros 66 X I I . Da ornitologia poética 71

XIII . Demos asas ao livro 75 X I V . A catedral e as capelinhas 79 X V . Saudades de um "C" maiúsculo 85

X V I . As igrejinhas da boa leitura 8 9

XVII . Da crônica social 95

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