Histo.direito.portugues Sebenta 2

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    HISTRIA DO DIREITO - 2 FREQUNCIARESUMOS DAS MATRIAS

    INTRODUO

    A diviso histrica do direito portugus em perodos tem sido encarada a partir de critriosdiversos. De acordo com o pensamento do Prof. Almeida Costa (tese adoptada no curso),distinguem-se, desde os alvores da nacionalidade at poca presente, trs ciclos bsicos: a) operodo da individualizao do direito portugus; b) o perodo do direito portugus de inspiraoromano-cannica; c) o perodo da formao do direito portugus moderno. O perodo daindividualizao do direito portugus, decorre da fundao da nacionalidade (concretamentedo ano em que D. Afonso Henriques se intitulou rei), aos comeos do reinado de Afonso III, isto ,desde 1140 at 1248; independncia poltica de Portugal no correspondeu, de imediato, umaautonomia do direito; assiste-se, por isso, neste perodo, introduo lenta das fontes tipicamenteportuguesas. O perodo do direito portugus de inspirao romano-cannica, inicia-se emmeados do sculo XIII prolongando-se at segunda metade do sculo XVIII; corresponde-lhe a

    fora da penetrao do chamado direito comum (ius commune); subdivide-se em dois perodos:a poca da recepo do direito romano renascido e do direito cannico renovado (direito comum) ea poca das Ordenaes. O perodo da formao do direito portugus moderno , tem o seucomeo com o consulado do Marqus de Pombal (associando-se esta viragem jurdica a doisimportantes factos: a Lei da Boa Razo, em 1769 e o da Estatutos da Universidade, em 1772), at actualidade; subdivide-se em trs perodos: a) a poca do jusnaturalismo racionalista; b) a pocado individualismo (tambm designada por poca liberal); c) a poca do direito social.

    I - PERODO DA INDIVIDUALIZAO DO DIREITO PORTUGUS

    Inicia-se com a fundao da nacionalidade, em 1140, prolongando-se at ao reinado de D. AfonsoIII. uma fase caracterizada pela continuao bsica do quadro jurdico estabelecido, ou seja,pela ascendncia das fontes do direito leons (recorde-se que Portugal resulta dodesmembramento do Reino de Leo), que se mantiveram em vigor nos primrdios danacionalidade; alguns exemplos dessas fontes: 1 - Cdigo Visigtico: as aluses a estenormativo encontram-se em algumas citaes anteriores e posteriores nacionalidade, e, tantopodem dizer respeito a meras reminiscncias ou frmulas eruditas dos tabelies no tradutoras deuma verdadeira aplicao daquela fonte, como, pelo contrrio, serem testemunhos de vignciaefectiva dos seus preceitos; o ambiente jurdico da poca era propcio a tais discrepncias; asreferncia a esta fonte comeam a escassear a partir do incio do sculo XIII, devendo-se talocorrncia, oposio de preceitos consuetudinrios locais e, sobretudo, medida que alegislao geral e a eficcia do direito romano-cannico se foram incrementando. 2 - Leisdimanadas das Crias e dos Conclios: outras fontes de direito anteriores nacionalidade quese mantiveram no territrio portugus (destacam-se a Cria de Leo em 1017 e os Conclios deCoiana em 1055 e Oviedo em 1115); Cria, filiao da Aula Rgia visigtica, era um rgoauxiliar do rei que tinha, por isso, um carcter eminentemente poltico; os Conclios

    caracterizavam-se pela sua natureza eclesistica; contudo, os altos dignitrios da Igreja, no rarasvezes, tinham assento nas Crias, o que se percebe facilmente face s circunstncias da poca. 3- Forais de terras portuguesas anteriores independncia: tambm continuaram a ter eficcia,depois da fundao da nacionalidade, os forais outorgados pelos monarcas leoneses (exemplos:S. Joo da Pesqueira, Penela, Paredes, Ancies, Santarm, Linhares) a algumas localidades quese vieram a transformar em territrio portugus; recorda-se a definio de foral ou carta de foral,como o diploma concedido pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesistico, a determinada terra,contendo normas que disciplinam as relaes dos povoadores ou habitantes, entre si, e destescom a entidade outorgante; o foral representa a espcie mais significativa das chamadas cartasde privilgio, distinguindo-se das cartas de povoao, justamente, por se dirigirem a um

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    destinatrio concreto; primeiramente, observa-se documentos muito rudimentares, que se baseiamfundamentalmente em contratos agrrios colectivos, onde avulta o intuito de povoar o que estermo, ou, to-s, atrair mo-de-obra para locais j habitados - so as cartas de povoao (souma espcie de contratos de adeso); Alexandre Herculano adopta, a respeito desta matria,uma posio restritiva do conceito de foral; na sua perspectiva, apenas se qualifica de forais, osdiplomas que conferem existncia jurdica a um municpio, indiciada que seja, por uma qualquermagistratura prpria e privativa; Paulo Mera, contesta este ponto de vista, desvalorizando aquesto das magistraturas municipais; daqui se conclui, que o contedo dos forais so variveispodendo disciplinar diferentes matrias: liberdades e garantias das pessoas e dos bens dospovoadores; impostos e tributos; composies e multas devidas pelos diversos delitos; imunidadescolectivas; servio militar; encargos e privilgios dos cavaleiros vilos; nus e provas judiciais;aproveitamento de terrenos comuns; citaes, arrestos e fianas; em suma, incluem-seprincipalmente normas direito pblico. O costume: conservou entre ns a sua vigncia anterior; odireito privado, designadamente, tinha como fonte principal ou quase exclusiva o costume, queprosseguia a linha das normas consuetudinrias leonesas; o conceito de costume, nesta poca,era utilizado em sentido muito amplo ou residual; isto , abrange todas as fontes de direitotradicionais que no tenham carcter legislativo; incluem-se as sentenas da Cria Rgia(posteriormente designadas costumes da Corte), de juzes municipais, de juzes arbitrais(nomeados por acordo das partes) cujas decises revestiam precedentes vinculativos e pareceresde juristas consagrados.

    NOTA:- Diviso dos forais de acordo com Alexandre Herculano: concelhos rudimentares - apenasexistem magistrados ou fiscais; concelhos imperfeitos - j existe um magistrado judicial (soimperfeitos atendendo forma de apresentao e estruturao de rgos do municpio);concelhos perfeitos ou completos - magistratura colegial d dois ou mais juzes (estes declarama existncia do direito e possuam capacidade coerciva).

    Ao lado destas antigas fontes de direito, herdadas como se referiu do Estado leons, comearama surgiroutras tipicamente portuguesas, se no quanto ao seu contedo, pelo menos, do ponto devista formal (e a penas formal, na medida de em que ainda no se pode falar de uma identidadecultural e, muito menos ainda, de uma conscincia jurdica - a autonomia material surgiria,apenas, com as Ordenaes). A elas se deve a progressiva individualizao ou

    autonomizao do sistema jurdico do nosso pas. A saber: 1 - Leis gerais dos primeirosmonarcas: os primrdios da nacionalidade no permitiram aos monarcas (certamente maispreocupados com problemas decorrentes da consolidao da independncia, da definio doslimites territoriais e aces de fomento), dispensar muito tempo a matrias legislativasconducentes, de imediato, constituio de uma personalidade relevante ao direito portugus;contudo, sabe-se por via indirecta (referncia em bulas papais) da existncia de uma lei de D.Afonso Henriques; de igual modo relativamente a Sancho I; com Afonso II surge a legislaolaboral e comea a desenhar-se a tendncia de o monarca sobrepor as leis aos preceitosconsuetudinrios que se considerem inconvenientes; tais disposies apresentam uma certaligao e sistematizao, no formando, contudo, um corpo legislativo unitrio - so, todavia, umconjunto de preceitos organizados com algum mtodo; aqui se inclui uma norma, na qual seconsagra uma soluo para dirimir confl itos surgidos entre o direito cannico e as leis do Reino emque se d primazia ao primeiro. 2 - Forais: compensando a escassez de leis gerais, abundamnesta poca, as fontes de direito local, onde assumem particular relevncia os forais e as cartas

    de povoao; tal facto tem uma explicao lgica: as preocupaes de conquista e depovoamento das terras constituam, em ltima anlise, uma defesa contra as investidassarracenas e as ameaas leonesas - os forais e as cartas de povoao so, sem dvida, atAfonso III, uma das mais importantes fontes de direito portugus. Concrdias e concordatas: soacordos efectuados entre o rei e as autoridades eclesisticas, comprometendo-se, reciprocamente,a reconhecer direitos e obrigaes relativos ao Estado e Igreja; distinguem-se aqueles doisconceitos da seguinte forma: as concrdias derivam de negociaes entre o rei e as autoridadeseclesisticas nacionais; as concordatas (ainda hoje assim se denominam) implicam negociaescom o Papa.

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    Resulta do exposto, que o direito portugus, at meados do sculo XIII, teve uma baseconsuetudinria e foraleira; por outro lado, o esforo de fomento social e econmico conduzia difuso de fontes de direito local, assumindo relevo, as cartas de povoao e os forais. Trata-seassim, de um sistema jurdico rudimentar, altamente influenciado por uma amlgama de culturas,donde se destacam os preceitos do chamado direito romano vulgar (em virtude da permannciaromana na Hispnia), de influncias cannicas (indirectamente, por via da legislao romanaposterior a Constantino, directamente, na poca medieval), costumes germnicos (influncia deSuevos e de Visigodos), influncia rabe e outras, como a franca, motivada principalmente pelascolnias estabelecidas no solo peninsular. Acresce uma referncia ao empirismo que presidia criao jurdica, orientada, no mbito do direito privado, fundamentalmente, pelos tabelies,atravs dos contratos e outros actos que elaboravam, no existindo, via de regra, preceitos geraisindividualizadores dos vrios institutos - so as chamadas escrituras tabelinicas, redigidas deacordo com a vontade concreta dos outorgantes que modelam os negcios jurdicos.Impe-se uma aluso aos contratos de explorao agrcola e indstrias conexas, visto queconstituam uma das traves mestras da vida econmica e social medieva; destacam-se duasimportantes modalidades: a enfiteuse (mais tarde tambm designada por aforamento ouemprazamento), que consistia num contrato pelo qual se operava a repartio, entre oscontraentes, daquilo a que a cincia do direito chamaria mais tarde domnio directo e domniotil de um prdio; o primeiro pertencia ao senhorio e traduzia-se essencialmente na faculdade dereceber do forerio ou enfiteuta, a quem cabia o domnio til, uma penso anual (foro ou cnon),

    em regra consistindo numa parte proporcional dos frutos que o prdio produzia; este instituto teveuma vasta importncia para o cultivo das terras ainda no arroteadas ou insuficientementeprodutivas, visto que caracterizava o negcio o encargo assumido pelo agricultor de aplicardiligente esforo no seu aproveitamento; entre as faculdades compreendidas no domnio til doenfiteuta contava-se a de alienar a respectiva posio a terceiro, com ou sem direito depreferncia do senhorio; a complantao, derivava igualmente das mesmas necessidadeseconmico-sociais e jurdicas; contudo, o trabalho e a propriedade da terra equilibram-se de mododiverso; o proprietrio de um terreno cedia-o a um agricultor para que o fertilizasse, em regra, coma plantao de vinhas ou de outras espcies duradouras; uma vez decorrido o prazo estabelecido,que variava de quatro a oito anos, procedia-se diviso do prdio entre ambos, geralmente empartes iguais.Alm destes institutos, que se dirigiam explorao agrcola ou a indstrias conexas,desenvolveram-se, um pouco mais tarde, outros dois negcios que, embora tendo igualmente aterra por objecto, desempenharam uma relevante funo de crdito ou financeira. A saber: o

    contrato de compra e venda de rendas (mais tarde denominado por censo consignativo), aoabrigo do qual, o proprietrio de um prdio, carecido de capitais, cedia a uma pessoa que delesdispusesse, em compensao de determinada soma para sempre recebida, o direito a umaprestao monetria anual imposta como encargo sobre esse prdio; o negcio representava umaforma de investimento que teve funo anloga ao emprstimo a juros, sem que fosse proibidopela usura; o penhor imobilirio, que previa a transmisso do prdio pelo proprietrio-devedor aoseu credor com vrios objectivos: desde o de pura funo de garantia e de compensao dacedncia do capital, at ao de lhe proporcionar o reembolso progressivo da dvida, que se iaamortizando com o desfrute do prdio.

    NOTA:- ao desenvolvimento destes dois institutos (compra e venda de rendas e penhor imobilirio) nofoi estranha a proibio cannica e civil da usura ou mtuo oneroso.

    II - PERODO DO DIREITO PORTUGUS DE INSPIRAO ROMANO-CANNICA

    1. POCA DA RECEPO DO DIREITO ROMANO RENASCIDO E DO DIREITO CANNICORENOVADO (DIORITE COMUM)

    1.1. O direito romano justinianeu desde o sculo VI at ao sculo XI

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    Entra-se neste perodo num ciclo da histria jurdica portuguesa profundamente influenciada pelarevitalizao do direito romano justinianeu, que se inicia em Itlia ainda durante o sculo XI;marco relevante desta poca, sem dvida alguma, o novo interesse terico e prtico pelascolectneas do Corpus Iuris Civilis; a este fenmeno se atribui o nome de renascimento dodireito romano. Esta designao no inteiramente pacfica, porquanto a terminologiarenascimento faz pressupor que o direito romano justinianeu tenha deixado, em absoluto, de serconhecido, estudado e aplicado (o direito justinianeu vigorou sempre no Imprio do Oriente e tersobrevivido em alguns locais do Ocidente). As colectneas justinianeias chegaram ao mundoocidental por volta do sculo VI, sendo conservadas e at analisadas nos centros de culturaeclesistica; contudo, isto no significa que durante os primeiros sculos medievos, tenhamconseguido uma divulgao notria ou alcance efectivo. , justamente para assinalar o contrasteentre essa modesta difuso ou indiferena, e o interesse decisivo que o seu estudo, j comantecedentes no sculo XI, assume do sculo XII em diante, que se explica e mesmo justifica aqualificao de renascimento do direito romano; o ponto de partida de uma longa e diversificadaevoluo que conduziria cincia jurdica moderna.

    1.2. Pr-renascimento do direito romanoAs causas conducentes ao renascimento do direito romano inserem-se num quadro complexo deantecedentes; evoquemos algumas dessas causas:a) a restaurao do Imprio do Ocidente, o chamado Sacro Imprio Romano-Germnico,

    cujo sistema jurdico encontrava as suas razes no direito romano justinianeu; sob a gide daIgreja, operou-se, no s essa renovao poltica, mas tambm a aplicao do direito dascolectneas justinianeis s matrias temporais; o direito romano justinianeu vai, a partir da mortede Carlos Magno, assumir um relevante papel no robustecimento da posio imperial perante oPapado; o perodo das querelas volta da questo do Estado, da sua funo social e das formasde governo e da orgnica interna da prpria Igreja;b) o universalismo da f e do esprito de cruzada , que unifica os homens acima das fronteiras,da raa e da histria; a exaltao da romanidade, entre os sculos XI e XII, em consequncia dainterpretao crist do mundo, associada a um progresso geral da cultura;c) a influncia dos factores econmicos, traduzida no aumento geral da populao, o xodo docampo, as potencialidades de uma economia citadina com o seu carcter monetrio, a suaindstria, o seu comrcio, as novas classes sociais; em suma, colocavam-se ao direito questesde redobrada complexidade.Em concluso, podemos afirmar, que motivos de natureza poltica, religiosa, cultural e econmica,

    apontavam para o incremento do estudo do direito romano justinianeu; neste contexto, forma-seuma dinmica que se aceleraria no sculo XII com os juristas bolonheses. Na Pennsula Ibrica, arecepo do direito romano renascido atrasou-se relativamente generalidade da Europa; osesforos e os sintomas pr-renascentistas do direito romano, reconduzem-se essencialmente Itlia, o que se compreende, dado que noutras regies ocidentais, o direito justinianeu nunca tiverapromulgao oficial, o que o tornava desconhecido.

    1.3. Renascimento propriamente dito do direito romano com a Escola de Bolonha ou dosGlosadoresO verdadeiro renascimento do direito romano, isto , o seu estudo sistemtico e a divulgao, emlargas dimenses, da obra jurdica justinianeia, inicia-se apenas no sculo XII, com a Escola deBolonha. Deve-se a Irnrio, o grande mrito de autonomizar o ensino do direito (at entomisturado no conjunto da disciplinas que compunham o saber medieval, nomeadamente a lgica

    e a tica), nas tambm estudar os textos justinianeus numa verso completa e originria,superando os extractos e os resumos da poca precedente. A Escola de Bolonha no nasceu logocomo uma Universidade; limitou-se a constituir um pequeno centro de ensino baseado naspreleces de Irnrio (a candeia do direito, conforme seu cognome); deste modo, ia formandodiscpulos e o seu prestgio transps as fronteiras de Itlia, o que fez atrair inmeros estudantesdos mais variados locais; assim nasce a Universidade, que se veio a tornar no plo europeu deirradiao da cincia jurdica. A Escola de Bolonha recebe, tambm, as designaes de EscolaIrneriana e de Escola dos Glosadores; a primeira homenageia o fundador, enquanto a segundaderiva do mtodo cientfico ou gnero literrio fundamental utilizado por Irnrio e seus sequazes,que era a glosa.

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    Os Glosadores estabeleceram uma diviso das vrias partes do Corpus Iuris Civilis (a quemprestam um respeito sagrado) diferente da originria (ver nota abaixo); esta diviso deveu-se, porum lado, ao facto, das colectneas justinianeias no terem sido conhecidas ao mesmo tempo, e,por outro lado, variedade e amplitude muito diversas dessas colectneas, pelo que a divisotambm se justificava a fim de facilitar o seu ensino em cadeiras autnomas.A glosa, como j se referiu, constituiu o principal instrumento de trabalho dos juristas da Escolados Glosadores; a glosa consistia num processo de exegese textual j antes utilizado emdomnios culturais estranhos ao direito, que de incio se cifrava num pequeno esclarecimentoimediato, via de regra, numa simples palavra ou expresso, com o objectivo de tornar inteligvelalgum passo considerado obscuro ou de interpretao duvidosa; eram ntulas ou apostilas tobreves que se inseriam entre as linhas dos manuscritos que continham os preceitos analisados -chamavam-se por isso, glosas interlineares. Com o decurso do tempo, estas interpretaestornaram-se mais completas e extensas: passaram a referir-se tambm, no apenas a um trechoou a um preceito, mas a todo um ttulo; escreviam-se por isso, nas margens dos textos - daadveio a designao de glosas marginais.As glosas constituram apenas um ponto de partida. Ao lado destas, os Glosadores consoante asua preferncia e o seu flego, dedicavam-se a outros meios tcnicos a que se d breve conta: asregulae iuris ou generalia e brocarda (princpios ou dogmas jurdicos fundamentais), os casus(meras exemplificaes de incio, exposies interpretativas mais tarde), as dissensionesdominorum (entendimentos de autores diversos sobre questes jurdicas), as quaestinoes (as

    diversas opinies, favorveis e desfavorveis, de certos problemas jurdicos controversos), asdistinctiones (anlise dos vrios aspectos em que o tema jurdico em apreo podia serdecomposto) e as summae (abordagem completa e sistemtica dos temas, apenas ao alcance doGlosadores mais famosos, superando a littera que tinha representado o seu primitivo objecto deestudo).Um aspecto determinante, a propsito do mtodo de trabalho dos Glosadores, o respeitosagrado que tinham pelo Corpus Iuris Civilis; estudaram-no com uma finalidade prtica: a deesclarecer as respectivas normas de forma a poderem aplic-las s situaes concretas;deslumbrava-os a perfeio tcnica dos preceitos da colectnea justinianeia, que consideravam altima palavra em matria legislativa; o papel do jurista, nesta perspectiva, deveria reduzir-se aoesclarecimento de tais preceitos com vista soluo das hipteses que superasse e muito menoscontrariasse as estatuies a contidas; neste esforo interpretativo, (os Glosadores) nunca seconseguiram desprender suficientemente da letra dos preceitos romanos, chegando a construesinovadoras. neste ltimo contexto que se lhes dirigem algumas crticas: atribui-se-lhes uma

    profunda ignorncia nos domnios filolgico e histrico; desconheceram as circunstncias em queas normas do direito romano haviam surgido, e isso, levou-os, por vezes, a interpretaesinexactas ou manuteno de realidades desfasadas com os novos tempos; compreende-se queassim tenha sucedido, se recordarmos a sua grande preocupao de estudar os textos justinianeusgenunos e as dificuldades de penetrao do sentido desses textos.A Escola dos Glosadores teve o perodo ureo no sculo XII. A partir do sculo XII, comearam aser visveis os sinais de decadncia; as finalidades a que se haviam proposto estavamesgotadas; j no se estudava directamente o texto da lei justinianeia, mas glosa respectiva;faziam-se glosas de glosas. o legado cientfico acumulado por geraes sucessivas de juristasvem a ser compilada na Glosa Ordinria, Magna Glosa ou apenas Glosa; Acrsio, um dosexpoentes mximos deste movimento, o seu autor; procedeu a uma seleco das glosasanteriores relativas a todas as partes do Corpus Iuris Civilis, conciliando ou apresentandocriticamente as opinies discordantes mais credenciadas; da em diante, as cpias do Corpus Iuris

    Civilis apresentam-se acompanhadas da glosa acursiana; a importncia desta obra reflecte-se nofacto de ser aplicada nos tribunais dos pases do Ocidente europeu ao lado das disposies doCorpus Iuris Civilis; entre ns, constituiu fonte subsidiria de direito conforme disposio expressanas Ordenaes. Com a Magna Glosa encerra-se um importante ciclo da cincia do direito; vaiseguir-se-lhe um perodo de transio para uma nova metodologia que se inicia verdadeiramenteno sculo XIV; os juristas deste perodo intermdio recebem a designao de ps-acrursianos oups-glosadores.

    NOTA:- Diviso do Corpus Iuris Civilis adoptada pelos Glodadores:

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    1 - Digesto Velho - Livros I a XXIII, mais os dois primeiros ttulos do Livro XXIV2 - Digesto Esforado - Livros XXIV (desde o ttulo III9 at ao Livro XXXVIII3 - Digesto Novo - Livro XXXIX a Livro L (fim do Digesto)4 - Cdigo (codex) - nove livros5 - Volume Pequeno - trs livros.

    1.4. Difuso do direito romano justinianeu e da obra dos GlosadoresDois importantes motivos esto na origem da difuso do direito romano justinianeu e da obra dosGlosadores: a permanncia de estudantes estrangeiros em Bolonha e a fundao deUniversidades nos vrios Estados europeus. A fama de Irnrio e seus continuadores expandiu-serapidamente; Bolonha tornou-se, em pouca dcadas, o centro para onde convergia um nmeroavultado de estudantes oriundos de diversos pases europeus, muito dos quais eram jpossuidores de uma razovel formao jurdica; de volta s suas terras, e graas especializaoobtida em Bolonha, no raras vezes, atingiam posies cimeiras no campo do ensino ou da vida

    jurdica; em concluso, pode-se afirmar com segurana, que a introduo do direito romanorenascido nos vrios pases europeus, mais do que a imposies dos poderes pblicos, foisobretudo atravs da aco de juristas de formao universitria adquirida em Bolonha, queencontrou o seu veculo difusor. Todavia, um outro facto concorreu decisivamente para a difusoromanstica; se inicialmente, era necessrio ir a Itlia fazer a aprendizagem jurdica, pouco apouco, ela tornou-se possvel nos diversos pases europeus; com efeito, assiste-se durante os

    sculos XII e XIII, criao progressiva de Universidades, onde se cultivam os ramos do saberque ento constituam o ensino superior; entre estes, figurava o direito cannico e o direito romanodas colectneas justinianeias; saliente-se a propsito, que nesta altura a designao Universidadeno tinha ainda o significado actual de escola superior, mas sim o de corporao de mestres eescolares; a origem das Universidades dspar: as primeiras surgiram espontaneamente, comoque consuetudinariamente (ex consuetudine); outras resultaram de um desmembramento ouseparao de uma outra (ex secessione); finalmente, outra ainda, encontra a sua gnese, nainiciativa de um soberano (ex privilegio). A Pennsula Ibrica no constituiu excepo a esteprincpio; eram indicadores de introduo do direito romano renascido, j nos finais do sculo XII,as regies hispnicas que tinham maior contacto com o resto da Europa - seria o caso daCatalunha; contudo, e em bom rigor, apenas ao longo do sculo XIII, que o movimentoromanstico atingiu verdadeiramente os pases aqum-Pirenus; em Portugal, no obstante oconhecimento dos textos dos Glosadores por parte de alguns colaboradores dos nossos primeiros

    reis (Mestre Alberto, chanceler de Afonso Henriques, o Mestre Julio e o Mestre Vicente, so dissoexemplo), por fora de algum relacionamento com a Itlia e a Frana, no se pode ainda falar deum novo surto jurdico ou de uma recepo efectiva da romanstica e da canonstica medievais;esta recepo do direito romano renascido foi, portanto, um movimento progressivo e moroso;mais rpido e eficaz nos meios prximo da corte e dos centros de cultura eclesistica do que nospequenos ncleos populacionais; para que se possa falar de efectiva recepo do direito romanorenascido, torna-se necessria a prova de que este tenha entrado definitivamente na prtica dostribunais e do tabelionato, que exercia influncia concreta na vida jurdica do pas.

    1.5. Factores de penetrao do direito romano renascido na esfera jurdica hispnica eportuguesaImporta agora referir alguns elementos determinantes na penetrao do direito romano renascidonos estados Peninsulares; de um modo geral, a recepo desse direito fez-se a partir das mesmascausas verificadas noutros pases europeus, assumindo desde logo particular relevncia, as j

    aludidas presenas de estudantes peninsulares em Bolonha e a criao de universidades; citemosento, sucintamente, essas causas:a) Estudantes peninsulares em escolas jurdicas italianas e francesas e jurisconsultosestrangeiros na Pennsula - existem testemunhos de uma presena significativa (desde oscomeos do sculo XIII) de estudantes peninsulares, com predomnio de eclesisticos, em centrositalianos e franceses do ensino de direito (as preferncias, contudo, recaiam na Universidade deBolonha); dentro destes legistas e canonistas, vulgarmente apelidados de letrados, atingeparticular notoriedade um jurista portugus: Joo de Deus; estes letrados, semelhana do queacontecia com alguns famosos jurisconsultos estrangeiros que ascendiam, muitas vezes, a

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    chanceleres e conselheiros dos monarcas, acabavam por ocupar lugares destacados do ensino, nacarreira eclesistica e na poltica;b) difuso do Corpus Iuris Civilis e da Glosa - naturalmente, que os estudantes quandoregressavam do estrangeiro, traziam consigo, via de regra, os textos relativos disciplina quecultivavam; compreende-se deste modo, a enorme difuso e multiplicao do Corpus Iuris Civilis eda respectiva Glosa; tal ocorrncia, veio a revelar-se como um instrumento determinante ehistrico no incremento do direito comum;c) ensino do direito romano nas Universidades - o surto universitrio no tardou a espalhar-se Pennsula; entre ns, sabe-se que foi no tempo de D. Dinis que surgiu o Estudo Geral (discute-se a data exacta da sua criao, que deve ter ocorrido entre 1288 e 1290); a sede da Universidadefoi transferida diversas vezes entre Lisboa e Coimbra, mas o que importa salientar que os cursos

    jurdicos ocuparam desde o comeo uma posio destacada no mbito do nosso Estudo Geral(recorde-se a bula do Papa Nicolau IV, de 9 de Agosto de 1290, que confere nossa Universidade,a possibilidade de licenciar em direito cannico e direito civil, podendo os diplomados ensinar emtoda a Cristandade);d) legislao e prtica jurdica de inspirao romansitica - releva-se a importncia dainfluncia do direito comum nas leis e noutras fontes jurdicas nacionais, bem como, ao nvel daprtica jurdica, com particular incidncia no domnio tabelinico.e) obras doutrinais e legislativas de contedo romano - enquadram-se no movimento globalde difuso romanstica peninsular, algumas obras jurdicas, de ndole doutrinal e legislativa,

    inicialmente escritas em castelhano e posteriormente traduzidas para portugus, o que revela asua importncia, inclusive como fontes subsidirias; salienta-se o Fuero Real, que basicamenteconsistiu numa compilao das normas jurdicas municipais baseada em preceitos do CdigoVisigtico, e, as Siete Partidas, que constituram uma exposio jurdica de carcter enciclopdico,essencialmente inspirada no sistema de direito comum romano-cannico.

    1.6. Escola dos ComentadoresDurante o sculo XIV desenvolveu-se uma nova metodologia jurdica - a Escola dosComentadores, assim chamada porque os seus representantes utilizavam o comentrio comoinstrumento de trabalho caracterstico; semelhana do que ocorreu com os Glosadores arespeito da glosa. Dois aspectos explicam o aparecimento desta nova orientao do pensamento

    jurdico: a decadncia da Escola dos Glosadores e o prestgio e a generalizao do mtododialctico ou escolstico; esta nova filosofia, caracteriza-se, antes do mais, por uma abertautilizao da dialctica aristotlica no estudo do direito: os novos esquemas de exegese dos textos

    legais so agora acompanhados de um esforo de sistematizao das normas e dos institutos jurdicos muito mais perfeito do que o dos Glosadores; encara-se a matria jurdica,predominantemente, de uma perspectiva lgico-sistemtica e no, sobretudo, exegtica; paratanto, articulam-se parmetros analticos, filolgicos e sintticos; a atitude do Comentadores foi degrande pragmatismo - voltaram-se para a dogmtica dirigida soluo dos problemas concretos;em vez de estudarem os prprios textos romanos, aplicaram-se, de preferncia, s glosas e,depois, aos comentrios sucessivos que sobre elas iam sendo elaborados; ao lado de taiselementos, socorreram-se de outras fontes, designadamente de costumes locais, dos direitosestatutrios e do direito cannico, chegando assim, criao de novos institutos e de novos ramosde direito; o perodo mais criativo dos Comentadores decorre dos comeos do sculo XIV aosmeados do sculo XV, e, tem em Brtolo o seu mximo intrprete; assim como Irnrio simboliza osculo XII e Acrsio o sculo XIII, Brtolo o jurisconsulto mais famoso do sculo XV, quer pelasua extensa produtividade, quer pela influncia que exerceu; os seus comentrios adquiriram

    prestgio generalizado, tornando-se, no raras vezes, fonte subsidiria de direito no ordenamentojurdico de vrios pases europeus (em Portugal, as Ordenaes determinaram a sua aplicaosupletiva ao lado da Glosa de Acrsio).Os aspectos bsicos da metodologia dos Comentadores foram a utilizao dos esquemas mentaisdialcticos ou escolsticos, o afastamento crescente da estrita letra dos textos justinianeus,interpretados ou superados de maneira desenvolta, a utilizao de um sistema heterogneo defontes de direito e o acentuado pragmatismo das solues. Tudo isto contribuiu decisivamentepara um avano significativo da cincia jurdica e a sua maior conformidade s necessidades dapoca; daqui resultaram os alicerces de instituies e novas disciplinas que no tinham assento no

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    direito romano: direito comercial e martimo, direito internacional privado, direito civil, direito penale direito processual.Ao longo da segunda metade do sculo XV, inicia-se o declnio dos Comentadores; o seu mtodoescolstico tinha permitido descobrir o verdadeiro esprito (ratio) dos preceitos legais; noentanto, logo que se passou a um emprego rotineiro, conduziu estagnao e mera repetio deargumentos e de autores; segue-se um perodo de uso e abuso do princpio da autoridade e oexcesso de casusmo; os juristas perderam a preocupao da originalidade, limitando-se agora, aenumerar e citar, a propsito de cada problema, no s todos os argumentos favorveis edesfavorveis a determinada soluo, mas tambm a lista de autores num e noutro sentido - aopinio comum ou mesmo a opinio mais comum, assim obtida, era considerada a exacta.

    1.7. O direito cannico e a sua importnciaAbordou-se at agora o problema do renascimento do direito romano e da correspondenterecepo em Portugal. Cabe de seguida, aludir renovao simultnea verificada no mbito dodireito cannico e influncia que exerceu entre ns.

    1.8. Conceito de direito cannicoEntende-se pordireito cannico, o conjunto de normas jurdicas que disciplinam as matrias dacompetncia da Igreja Catlica; entre outras designaes que tem recebido, destaca-se a dedireito eclesistico; as fontes de direito cannico, quanto ao seu modo de formao, podem ser de

    duas espcies; a saber:a) Fontes de direito divino - constitudas pela Sagrada Escritura (Antigo e Novo Testamento) epela Tradio (ensinamentos e preceitos de Jesus Cristo no consignados por escrito, mas stransmitidos oralmente);b) Fontes de direito humano - s fontes atrs citadas, acrescentou-se o costume (influnciaromana), j pertencente aos modos de formao do direito humano; so inmeras, a partir dosculo IV, as normas jurdico-cannicas derivadas das fontes de direito humano: os decretos oudecretais dos pontfices romanos (quanto forma podem ser bulas, breves, etc.); as leis oucnones dos conclios ecumnicos; os diplomas emanados de autoridades eclesisticas infra-ordenadas (bispos, superiores de ordens religiosas); concrdias ou concordatas (acordos entre omonarca e a Santa S; a doutrina e a jurisprudncia, integradas, respectivamente, pela obracientfica dos canonistas e pelas decises da jurisdio eclesistica.

    1.9. O direito cannico anteriormente ao sculo XII

    Em geral qualificado como perodo do direito cannico antigo; a uma primeira fase caracterizadapela quase exclusividade das chamadas fontes de direito divino, seguiu-se o progresso docostume e das outras fontes de direito humano; no admira, que a breve trecho, se sentisse anecessidade de colectneas que reunissem e sistematizassem essas normas; exemplos maisimportantes: os Capitula Martini(563) e a Collectio Hispana, tambm conhecida porCollectioIsidoriana (633); esta ltima, mandada elaborar pelo Concilio de Toledo, recebeu mais tardeaprovao oficial do Papa Alexandre III para a Igreja hispnica; continha normas dos concliospeninsulares, entre os quais se contam os de Braga que assim passaram ao Decreto Graciano; odesenvolvimento do direito cannico postulava uma crescente necessidade do seu estudo.

    1.10. Movimento renovador do direito cannicoVerifica-se a partir do sculo XII em diante uma grande renovao na esfera do direito cannico;representa um facto histrico paralelo ao incremento dado ao estudo do direito romano, que

    encontra idnticas ou aproximadas causas justificativas; no se afigura, contudo, considerarcorrecto que existiu um renascimento canonstico (qualificativo j objecto de reticnciasrelativamente ao direito romano), dado que, em boa verdade, nunca houve qualquer quebra decontinuidade na evoluo jurdico-cannica, ou seja, o direito da Igreja sempre conheceu umalinha de progresso; nesta poca, ocorre to-s um impulso de transformao normativa edogmtica que, ao lado do sucedido com o direito romano justinianeu, teve os seus pressupostosno sculo XI; dois vectores caracterizam, de facto, a renovao canonstica:a) Colectneas de direito cannico - tendncia para a uniformizao e centralizao destesistema jurdico - o Decreto de Graciano, eleborado por volta de 1140, significa um marcoimportante na evoluo do direito cannico: Joo Graciano, monge e professor em Bolonha,

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    procurou fazer uma sntese e compilao dos princpios e normas vigentes, numa perspectiva decoordenar, harmonizar e esclarecer preceitos de diversas provenincias, agrupando-os de formasistemtica e no cronolgica ou geogrfica (preocupao de autonomizao do direito cannicoperante a teologia); seguiram-se as Decretais de Gregrio IX, que so uma colectnea de normaspontifcias posteriores obra de Graciano, promulgadas pelo Papa em 1234, divididas em cincolivros, que revogam as disposies cannicas subsequentes ao Decreto nela no includas; oDecreto e as Decretais completavam-se, numa relao idntica ao que acontecia entre Digesto eCdigo, em sede de direito romano; continuaram a publicar-se numerosas epstolas pontifcias,das quais se destacam o Livro Sexto ou Sexto de Bonifcio VIII (a designao deriva da suacomplementaridade relativamente s Decretais, que eram compostas por cinco livros) e asClementinas, editadas pelo Papa Clemente V, decorrido o Conclio de Viena (Frana), em1311/1312, que se emanou a compilao dos cnones dele resultantes, acrescentados dedecretais prprias; encerram esta srie mais duas compilaes de ndole privada: por volta de1500, deram-se estampa, pela primeira vez, as quatro colectneas atrs referidas, acrescidascom os decretais posteriores a 1317, agrupando-as em seces distintas: numa, as de Joo XXII -Extravagantes de Joo XXII, e noutras, as dos Papas subsequentes - Extravagantes Comuns. Asreferidas colectneas de direito cannico, no seu conjunto, vieram a integrar o Corpus IurisCanonici, que corresponde ao complexo das obras jurdicas romano-justinianeias inseridas noCorpus Iuris Civilis, tornou-se corrente a partir de 1580, quando Gregrio XIII aprovou a versorevista de tais compilaes anteriores.

    b) renovao da cincia do direito cannico - as colectneas de direito cannico organizadasdo sculo XII ao sculo XIV demonstram uma extraordinria actividade legislativa da Igreja.Confrontam-se assim, dois ordenamentos de direito comum, isto , bsicos e de vocaouniversal: o direito cannico e o direito romano; as relaes entre o Imprio e a Igreja, assinalamnesta poca, o problema poltico nuclear, com evidentes reflexos sobre a relevncia a atribuir aosdois sistemas normativos; esta querela desenvolvida entre canonistas e civilistas no se limitou aocampo da especulao; envolveu, igualmente, aspectos prticos; todavia, a actualizaonormativa do direito da Igreja, pautou-se, essencialmente, pelos mesmos caminhos cientficospercorridos pelos seguidores do estudo do direito romano; isto , a construo do direito cannicoteve lugar mediante o emprego sucessivo da metodologia dos Glosadores e do Comentadores;dito de outro modo, os processos de exegese, em especial as glosas e os comentrios, que oslegistas utilizavam em face dos textos romanos foram transpostos para a interpretao dascolectneas de direito cannico, nomeadamente do Decreto e das Decretais; consoante oscanonistas se dedicavam primeira ou segunda dessas fontes, era-lhes dada, respectivamente,

    a designao de decretistas ou decretalistas.

    1.11. Penetrao do direito cannico na Pennsula IbricaA renovao legislativa e doutrinal do direito cannico no tardaria a difundir-se pela Europa;desde cedo teve reflexos aqum - Pirinus; recorde-se que os peninsulares que se haviamdeslocado aos centros italianos e franceses de ensino do direito eram na sua maioria eclesisticos,a quem as respectivas instituies proporcionavam grandes facilidades para incio ouprosseguimento de tais estudos no estrangeiro; embora se dedicassem ao estudo do direitoromano, cuja dogmtica se lhes tornava necessria, orientavam-se, sobretudo, para o estudo dodireito cannico; longa a lista dos decretistas e dos decretalistas com o cognome de hispanos: o caso paradigmtico (j anteriormente citado) de Joo de Deus; opera-se, igualmente, a umadivulgao considervel dos textos de direito cannico, bem como, se inclui o ensino do mesmonas Universidades peninsulares;

    este sistema jurdico aplicava-se, quer nos tribunais eclesisticos, quer nos tribunais civis ouseculares - existia, de facto, uma organizao judiciria da Igreja, ao lado da organizaojudiciria do Estado; Importa, todavia, estabelecer algumas distines no mbito de aplicao dodireito cannico naquelas duas vertentes:a) nos tribunais eclesisticos - o direito cannico, apresentava-se antes de tudo, como oordenamento jurdico prprio dos tribunais eclesisticos; a competncia destes fixava-se emfuno de dois fundamentos: em razo de matria, onde se integram as questes inerentes aomatrimnio, aos bens da Igreja, aos testamentos com legados e demais benefcios eclesisticos,e, em razo da pessoa, que determinava que certas pessoas apenas podiam ser julgadas porestes tribunais (os clrigos, ainda que a contraparte no possusse a mesma qualidade);

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    b) Nos tribunais civis - discute-se quanto a saber se alguma vez vigorou, entre ns, como fonteimediata e mesmo prevalecente sobre o direito nacional; a opinio generalizada manifesta-se emsentido afirmativo, com base numa deciso tomada por D. Afonso II, em 1211, no decurso daCria de Coimbra; em todo o caso, ainda que tenha sido, num primeiro momento, direitopreferencial, o sistema jurdico-cannico passaria, a breve prazo, ao plano de fonte subsidiria,portanto, que s intervinha na ausncia do direito ptrio.

    1.12. O direito comumDesigna-se direito comum (ius commune), o sistema normativo de fundo romano queconsolidou com os Comentadores e constitui, embora no uniformemente, a base da experincia

    jurdica europeia at finais do sculo XVIII; alude-se, ainda, a direito comum romano-cannico, ou,em paralelo, a direitos comuns (iura communia), o que salienta a relevncia deste segundoelemento (ius canonicum); deste modo, a expresso, tanto se encontra usada, restritivamente,para abranger apenas o sistema romanstico, como, num sentido amplo, que compreende tambmoutros segmentos integradores, muito em especial o cannico, mas no esquecendo o germnicoe o feudal; ao direito comum contrapunham-se os direitos prprios (iura propria), quer dizer, osordenamentos jurdicos particulares (direitos locais ou dos vrios Estados, normalmente

    justificados por razes de natureza poltica e econmica); de um modo geral, durante os sculosXII e XII, o direito comum, pelo menos num plano terico, sobreps s fontes que com eleconcorreram; nas centrias seguintes assiste-se a um perodo de aparente equilbrio, pois os

    direitos prprios foram-se afirmando como fontes primaciais dos respectivos ordenamentos e odireito comum tendeu a passar aos simples posto de fonte jurdica subsidiria; o termo desse ciclo,d-se nos incios do sculo XVI com a independncia plena do ius proprium, que se torna aexclusiva fonte normativa imediata, assumindo o ius commune o papel de fonte subsidiriaapenas merc da autoridade ou legitimidade conferida pelo soberano, que personificava o Estado.

    1.13. Fontes do direito portugus desde os meados do sculo XIII at s OrdenaesAfonsinasa) Legislao geral transformada na vontade do monarca - importa agora, referir as fontes dodireito portugus deste perodo, ou seja, anterior s Ordenaes Afonsinas, que marcam aautonomizao progressiva em face das ordens jurdicas dos outros Estados peninsulares. A partirde Afonso III, parece existir uma supremacia das leis gerais no quadro das fontes de direito;todavia, era ainda o costume que configurava o grande lastro jurdico da poca, no obstante a leipassar a ter o predomnio entre os modos de criao dos preceitos novos - a est uma evidente

    influncia romano-canonstica: os dois aspectos denunciam um nexo de reciprocidade; arecepo, maxime, do direito romano justinianeu veio favorecer a actividade legislativa domonarca, e, vice-versa, o desenvolvimento da legislao geral fomentou a divulgao dospreceitos do direito romano e do direito cannico; o surto legislativo resulta grandemente daautoridade rgia; a difuso dos princpios romanos do primado dos poderes pblicos ilimitados domonarca nas esferas executiva, legislativa e judiciria, para isso muito concorreram; o caminhoda centralizao poltica, em que o rei polariza a criao do direito: a lei passa a ser no s umproduto da vontade do soberano, mas ainda a sua actividade normal - vive-se, nesta poca, oapogeu das constituies imperiais (vid estud do Direito Romano - 1 semestre) - a lei avontade do monarca e ele est acima dela; a lei deixa de ser uma fonte espordica e transforma-se no modo corrente de criao de direito; o monarca passa a recorrer ao apoio tcnico de juristasde formao romanstica ou canonstica; tornou-se frequente a utilizao de tabelies para darpublicidade aos preceitos legais; consoante a importncia da lei, variava o seu prazo e a sua

    periodicidade; tambm o incio da vigncia da lei no obedecia a um regime uniforme; prticacorrente era a da aplicao imediata; contudo, conhecem-se diplomas em que se fixava umavacatio legis mais ou menos extensa;b) Resolues rgias - tratavam-se de providncias legislativas tomadas pelo monarca(independentemente das que ele proclamava nas Cortes), perante solicitaes ou queixas que lheeram presentes; sempre que continham normas a observar para futuro, estava-se peranteautnticas leis do ponto de vista substancial; apenas diferiam dos diplomas que o rei elaborava demotu proprio pelo processo de formao;c) Decadncia do costume como fonte de direito - face a estas circunstncias, fcil deperceber a crescente perda de importncia do costume como fonte de criao de direito novo,

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    plano em que cedeu a primazia lei; os jurisconsultos passam a considerar os preceitosconsuetudinrios, no j, apenas, na perspectiva de uma manifestao tcita do consenso dopovo, mas, tambm, como expresso da vontade do monarca; ou seja: se o rei no publica leiscontrrias ao costume, revogando-o, porque tacitamente o aceita.d) Forais e foros ou costumes - a importncia dos forais manteve-se com D. Afonso III e D.Dinis; contudo, a partir de D. Afonso IV, praticamente deixaram de se outorgar forais, em benefciode uma outra e relevante fonte de direito local: os foros ou costumes; d-se o nome de foros oucostumes a certas compilaes medievais concedidas aos municpios ou simplesmenteorganizadas por iniciativa destes; tratam-se de codificaes que estiveram na base da vida

    jurdica do concelho, abrangendo normas de direito poltico e administrativo, normas de direitoprivado, como as relativas a contratos, direitos reais, direito da famlia e sucesses, normas dedireito penal e de processo; so na verdade fontes de alcance muito vasto, que do incio a umanova era na codificao do direito peninsular, porquanto, no obstante as deficincias da tcnicaprprias da poca, j se procuram expor neles duma maneira completa e ordenada as normas dedireito consuetudinrio, fixando-as com preciso e dispondo-as num sistema; os elementosutilizados na elaborao destas colectneas tinham provenincia diversa: ao lado de efectivospreceitos consuetudinrios, encontram-se sentenas de juzes arbitrais ou de juzes concelhios,opinies de juristas, normas criadas pelos prprios municpios a respeito de polcia, higiene eeconomia, e at mesmo normas jurdicas inovadoras de natureza legislativa; convir observar queos foros ou costumes se agrupam em famlias e que o estudo dessas reas jurdicas de fixao do

    direito consuetudinrio medieval apresenta, sob vrios aspectos, grande interesse histrico;e) Concrdias e concordatas - resta salientar que sempre persistiram mltiplos diferendos, entreo clero e a realeza, aps a subida ao trono de D. Afonso III; da que aumentassem os acordos quelhes punham termo, quer celebrados com as autoridades eclesisticas do Reino, querdirectamente com o Papado;f) Direito subsidirio - apenas a partir das Ordenaes Afonsinas, o legislador estabeleceu umaregulamentao completa sobre o preenchimento de lacunas; at ento, o problema era deixadoao critrio dos juristas e dos tribunais; quando as fontes jurdicas portuguesas no forneciamsoluo para hipteses concretas, recorria-se em larga escala ao direito romano e ao direitocannico, assim como ao direito castelhano; na generalidade, os juzes apresentavam-se nopreparados para um acesso directo s fontes romano-cannicas; da, que numa primeira fase, sehajam utilizados textos de segunda mo, quer dizer, influenciados por essas fontes; assim seexplica, que circulassem no nosso pas, com o carcter de fontes subsidirias, certas obras deprovenincia castelhana; a aplicao supletiva destas obras apenas derivava da autoridade

    intrnseca do contedo romano-cannico que lhes servia de alicerce; tanto assim, que a suautilizao abusiva (especialmente das Partidas), em detrimento dos preceitos genunos de direitoromano e de direito cannico, foi objecto, de protestos levados at ao rei. Entendia-se, em sntese,que as fontes subsidirias se circunscreveriam ao direito romano e ao direito cannico, onde querque se contivessem; comearam, ento lentamente, a proceder-se traduo de algunsimportantes textos legislativos (as Decretais de Gregrio IX em 1359 e o Cdigo de Justiniano,acompanhado da Glosa de Acrsio e dos Comentrios de Brtolo, em 1426); o monarcadeterminou, inclusive, que se fizessem resumos interpretativos dos vrios preceitos, sempre quese tornassem necessrios, com o objectivo de evitar discrepncias jurisprudenciais. No houve ointuito de promover o direito romano a fonte imediata de direito, mas to-s de assegurar a suacorrecta aplicao a mero ttulo subsidirio; todavia, muitas tero sido as preteries indevidasdas normas jurdicas nacionais, bem como, tambm so frequentes, no mbito subsidirio, assobreposies de fontes indirectas s que proporcionavam o conhecimento genuno dos preceitos

    romansticos e canonsticos.

    NOTA:- o direito castelhano no era reconhecido como direito subsidirio embora na prtica severif icasse o recurso a esse direito castelhano.

    1.14. Colectneas privadas de leis gerais anteriores Ordenaes AfonsinasO progressivo acrscimo de diplomas avulsos tornava necessria a sua compilao: todas aspublicaes anteriores s Ordenaes Afonsinas apresentam o trao comum de no terem sidoobjecto de promulgao; apenas duas chegaram at ns; o saber:

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    a) Livro das Leis e Posturas - a mais antiga; a sua elaborao situa-se nos fins do sculo XIVou princpios do sculo XV; no se encontra nesta obra o propsito de coordenar a legislao, masapenas o de coligi-la; daqui se infere da ausncia de um plano sistemtico e da repetio dealguns textos, em diversos lugares, com variantes significativas.b) Ordenaes de D. Duarte - trata-se de uma colectnea privada que deriva o nome por que conhecida do simples facto de ter pertencido biblioteca de D. Duarte, o qual lhe acrescentou umndice da sua autoria e um discurso sobre as virtudes do bom julgador.

    1.15. Evoluo das instituiesProduziu-se nesta poca, uma crescente penetrao das normas e da cincia dos direitos romanoe cannico, com progressiva substituio do empirismo que predominava na vida jurdica da faseprecedente; mostram-se significativas as alteraes realizadas nos domnios do direito pblico ena esfera do direito privado; a defesa da ordem jurdica torna-se encargo exclusivo do Estado;verifica-se a ciso entre o direito civil e o processo criminal, sobrepondo-se, no segundo, osistema inquisitrio, ou seja, de actuao oficiosa, ao antigo sistema acusatrio; no mbito dodireito criminal, de acordo com uma progressiva publicizao, observa-se certa tendncia para opredomnio das penas corporais, em detrimento das penas pecunirias, acentuando-se assim, oseu fim repressivo; em sede de direito privado, verificam-se profundas modificaes nasinstituies familiares e sucessrias; despontam igualmente novas doutrinas, quer sobre contratose obrigaes, quer sobre os modos de aquisio da propriedade, a posse, a enfiteuse, as

    servides, a hipoteca, o penhor e outros institutos; as influncias do direito cannico manifestam-se tambm na famlia, mas so mais expressivas nos domnios da posse, do usucapio e dodireito e processo criminais.

    NOTAS:- por influncia do direito romano, surge a ideia dos recursos; os novos meios de tutela(preferencialmente documentais) vo estimular o aparecimento dos recursos para instncia

    jurdico superior.

    2. POCA DAS ORDENAES

    2.1. Ordenaes Afonsinas

    Surgem na sequncia de insistentes pedidos formulados em Cortes, no sentido de ser elaboradauma colectnea do direito vigente que evitasse as incertezas derivadas da grande disperso econfuso das normas, com graves prejuzos para a vida jurdica e a administrao da justia. D.Joo I viria a atender a esses pedidos, mas apenas em 1446/1447 (no possvel afirmar umadata exacta), se procede publicao das Ordenaes, em nome de D. Afonso V (recorde-se queos trabalhos duraram os reinados de D. Joo I e de D. Duarte, cabendo ao Infante D. Pedro,regente na menoridade de D. Afonso V, o papel de grande impulsionador da concluso da obra);difcil se torna precisar o incio da sua vigncia, dada a inexistncia na poca, de uma regradefinida sobre a forma de dar publicidade aos diplomas legais e o incio da correspondentevigncia. Com as Ordenaes Afonsinas procurou-se, essencialmente, sistematizar e actualizar odireito vigente; na sua elaborao, utilizam-se diversas espcies de fontes anteriores: leisgerais, resolues rgias, concrdias, concordatas e bulas, inquiries, costumes gerais e locais,estilos da Corte e dos tribunais superiores, e, ainda normas extradas das Siete Partidas epreceitos de direito romano (leis imperais ou direito imperial), de direito cannico (santos

    cnones ou decretal) e aluses ao direito comum. Quanto tcnica legislativa, empregou-se,via de regra, o estilo compilatrio; isto , transcrevem-se na ntegra, as fontes anteriores,declarando-se depois os termos em que esses preceitos eram confirmados, alterados ouafastados; noutras passagens da obra (o Livro I, por exemplo), recorreu-se ao estilo decretrio oulegislativo, que consiste na formulao directa das normas sem referncia s suas eventuaisfontes anteriores. Talvez por influncia dos Decretais de Gregrio IX, as Ordenaes Afonsinasencontram-se divididas em cinco livros, correspondendo a cada um, certo nmero de ttulos, comrubricas indicativas do seu objecto, e estes, frequentemente, acham-se divididos em pargrafos.NOTA:

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    - sistematizao das Ordenaes Afonsinas:Livro I - 72 ttulos - regimento dos cargos pblicos.Livro II - 123 ttulos - bens e privilgios da Igreja e direitos reais.Livro III - 128 ttulos - processo civil, executivo e recursos.Livro IV - 112 ttulos - direito civil (obrigaes, coisas, famlia, sucesses).Livro V - 121 ttulos - direito e processo criminal.

    As Ordenaes Afonsinas assumem uma importncia destacada na histria do direito portugus.Constituem a sntese do trajecto que, desde a fundao da nacionalidade, ou, maisaceleradamente, a partir de D. Afonso III, afirmou e consolidou a autonomia do sistema jurdiconacional no conjunto peninsular; alm disso, representam o suporte da evoluo subsequente dodireito portugus; conforme se verificar, as Ordenaes que se lhes seguiram, a bem dizer,pouco mais fizeram do que, em momentos sucessivos, actualizar a colectnea afonsina; noapresentando, contudo, uma estrutura orgnica comparvel dos modernos cdigos e se encontrelonge de revelar uma disciplina jurdica completa, trata-se de uma obra que nada fica a deverquando comparada com outras compilaes da poca elaboradas noutros pases europeus. A suapublicao liga-se ao fenmeno geral da luta pela centralizao poltica; por outro lado, perceptvel uma acentuada independncia do direito prprio Reino em face do direito comum,subalternizado no posto de fonte subsidiria por mera legitimao da vontade do monarca. AsOrdenaes Afonsinas oferecem investigao histrica, um precioso auxiliar, no sentido de

    melhor conhecer certas instituies, pelo menos de um modo to completo e em aspectos queescapam nos documentos em avulso da prtica.

    2.2. Ordenaes ManuelinasDuraram pouco tempo as Ordenaes Afonsinas. J em 1505 se advogava a sua reforma. Comefeito, nesse ano, D. Manuel encarregou trs destacados juristas da poca (Rui Boto, Rui da Gr eJoo Cotrim), de procederem actualizao das Ordenaes do Reino, alterando, suprimindo eacrescentando o que entendessem necessrio. Dois motivos, se apresentam geralmente, como

    justificativos desta deciso de D. Manuel: a introduo da imprensa, em finais do sculo XV, emdiversas vilas e cidades do pas, facilita a difuso da obra, o que a concretizar-se, afigurava-selgico que apenas ocorresse aps uma cuidada reviso da colectnea; por outro lado, admite-seque um reinado pautado por momentos altos na gesta dos descobrimentos, estimulasse D. Manuela ligar o seu nome a uma reforma legislativa de vulto. Depois de algumas atribulaes prprias de

    um empreendimento desta natureza, a edio definitiva das Ordenaes Manuelinas acaba por terlugar em 1521 (ano em que morre D. Manuel), impondo-se, atravs de Carta Rgia de 15 deMaro de 1521, e a fim de evitar possveis confuses, a total destruio, num prazo de trsmeses, das anteriores colectneas (esta destruio refere-se s vrias fases por que passou aelaborao desta obra, e, no s Ordenaes Afonsinas), sob pena de multa e degredo. EstasOrdenaes Manuelinas conservam a estrutura bsica dos cinco livros, integrados por ttulos epargrafos; a distribuio das matrias semelhante da colectnea afonsina, assinalando-se,todavia, algumas diferenas de contedo (exemplos: a supresso dos preceitos aplicveis aosMouros e aos Judeus, que entretanto tinham sido expulsos do pas, assim como das normasautonomizadas nas Ordenaes da Fazenda, a incluso da disciplina da interpretao vinculativada lei, atravs dos assentos da Casa da Suplicao e algumas importantes alteraes produzidasem matria de direito subsidirio); no se pode falar de uma profunda e radical alterao do direitoportugus, mas to-s, meros ajustamentos de actualizao; em termos formais, a obra marca umimportante progresso de tcnica legislativa, que se traduz, sobretudo, no facto de os preceitos se

    apresentarem sistematicamente redigidos em estilo decretrio, ou seja, como de normas novasse tratasse; a esta vantagem corresponde um menor interesse para a reconstituio do direitoprecedente.

    2.3. Coleco das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do LioA dinmica legislativa acelerada, tpica da poca, teve como efeito que, a breve prazo, asOrdenaes Manuelinas se vissem rodeadas por inmeros diplomas avulsos; estes no srevogavam, alteravam ou esclareciam muitos dos seus preceitos, mas tambm dispunham sobrematrias inovadoras; a isto acresciam as interpretaes vinculativas dos assentos produzidos naCasa da Suplicao: eis as fundadas razes que estimulavam a imperiosa elaborao, pelo

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    menos, de uma colectnea que constitusse um complemento sistematizado das Ordenaes,permitindo a certeza e a segurana do direito. Coube ao Cardeal D. Henrique, regente namenoridade de D. Sebastio, a escolha de Duarte Nunes do Lio, data procurador da Casa daSuplicao e possuidor de larga experincia, com vista organizao de um repositrio do direitoextravagante que vigorava fora das Ordenaes Manuelinas. A colectnea (que ficou conhecidapor Coleco das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lio), compe-se de seis partes edisciplina matrias vrias tais como, os ofcios e os oficiais rgios, as jurisdies e os privilgios,os delitos, a fazenda real e uma lei importante de D. Joo III sobre os trmites dos processos nostribunais; a verso final da obra, em lugar de procurar transcrever textualmente as leis e osassentos, optou por efectuar resumos ou excertos da essncia dos diversos preceitos, permitindoassim, uma consulta mais cmoda; claro que os preceitos resumidos valiam, doravante, com osentido que se continha na sua verso sinttica. O legislador bem podia alterar o contedo dostextos condensados, mas autolimitou-se; a preocupao de fidedignidade dos extractos,insistentemente repetida no alvar de aprovao, indicava o caminho para solucionar as dvidasinterpretativas que surgissem: seria o da consulta dos originais.

    2.4. Ordenaes FilipinasA Coleco das Leis Extravagantes no passou de uma obra intercalar. Impunha-se, igualmente,uma reformulao das Ordenaes Manuelinas. Foi assim, de um modo natural, que Filipe I, alisna sequncia de outras providncias tomadas na esfera do direito (destaque para a substituio da

    Casa do Cvel, que funcionava em Lisboa, pela Relao do Porto, a que o monarca concedeuregimento e para uma lei de reformao da justia), incumbiu alguns juristas renomados, entre1583 e 1585, de iniciarem os trabalhos preparatrios conducentes actualizao da colectneaManuelina; acrescia uma razo de natureza eminentemente poltica: relevar o respeito de Filipe Ipelas instituies portuguesas, empenhando-se na sua actualizao dentro da tradio jurdica doPas. Neste contexto, apenas no reinado de Filipe II, atravs da Lei de 11 de Janeiro de 1603,iniciam a sua vigncia (as Ordenaes Filipinas), constituindo o mais duradouro monumentolegislativo operativo em Portugal (entre ns, apenas foram integralmente revogadas pelo CdigoCivil de 1867, e, no Brasil, isso apenas sucederia em 1 de Janeiro de 1916). As OrdenaesFilipinas conservam a estrutura tradicional dos cinco livros, subdivididos em ttulos e pargrafos;mantm, igualmente, o contedo dos livros. Procedeu-se, via de regra, reunio, num nico corpolegislativo, dos dispositivos manuelinos e dos muitos preceitos subsequentes que se mantinhamem vigor; a introduo de algumas normas de inspirao castelhana, (poucas, diga-se em abonoda verdade), no permitem que se retire o carcter predominantemente portugus das

    Ordenaes Manuelinas; merece destaque, contudo, a mudana das matrias relativas ao direitosubsidirio do Livro II para o Livro III, o que deixa entender uma nova filosofia de enquadramentodas questes inerentes ao problema da integrao das lacunas, sem que tal ocorrncia, tenharevestido qualquer modificao intrnseca nos respectivos critrios de preenchimento. Acrescereferir, uma modificao de contedo relevante: nas Ordenaes Filipinas, pela primeira vez, seinclui um conjunto de preceitos sobre o direito de nacionalidade (os naturais do Reino, de acordocom esses novos preceitos, no se determinam, exclusivamente, por recurso aos conhecidoscritrios do princpio do territrio - ius soli e do princpio do sangue - ius sanguinis, mas tambmpela conjugao de ambos, porventura, com predomnio do primeiro). As Ordenaes Filipinasforam confirmadas e revalidadas por D. Joo IV, em Lei de 29 de Janeiro de 1643, na sequnciade um genrico sancionamento de toda a legislao promulgada durante o governo castelhano.Os compiladores filipinos tiveram, sobretudo, a preocupao de rever e coordenar o direitovigente, reduzindo-se ao mnimo as inovaes; pretendeu-se assim, uma simples actualizao das

    Ordenaes Manuelinas; s que o trabalho no foi realizado mediante uma reformulaoadequada dos vrios preceitos, mas apenas aditando o novo ao antigo; da subsistirem normasrevogadas ou cadas em desuso, verificarem-se frequentes faltas de clareza e, at, contradiesresultantes da incluso de disposies opostas a outras que no se eliminaram. A ausncia deoriginalidade e os restantes defeitos mencionados receberam, pelos fins do sculo XVIII, adesignao de filipismos; essas imperfeies encontram difcil explicao fora da ideia de umrespeito propositado pelo texto manuelino (propsito j atrs manifestado em relao ao respeitode Filipe I pela tradio jurdica portuguesa); bastar recordar os juristas que, seguramente,participaram nos trabalhos preparatrios para reconhecermos a sua capacidade de realizao deobra isenta, ao menos, de alguns dos graves inconvenientes assinalados.

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    2.5. Legislao extravagante. Publicao e incio da vigncia da lei.A colectnea filipina ver-se-ia, sem demora, alterada ou complementada por um ncleo importantee extenso de diplomas legais avulsos: a chamada legislao extravagante; saliente-se, antes domais, que o conceito de lei utilizado nesta poca, num sentido muito mais amplo do que aqueleque se lhe atribui no direito moderno (basta pensar, que ainda se ignorava o princpio daseparao dos poderes); ao tempo, qualificava-se a como lei, de um modo geral, toda e qualquermanifestao da vontade soberana destinada a produzir alteraes na ordem jurdicaestabelecida; espcies de diplomas que vigoravam na poca:a) Cartas de lei e alvars: eram os mais importantes, na medida em que passavam pelachancelaria rgia; quanto ao formulrio, as cartas de lei comeavam pelo prprio nome domonarca (exemplo: Dom Manoel per graa...), ao passo que os alvars continham a simplesexpresso Eu ElRei...; alm disso, criou-se a prtica de, na assinatura, aparecer,respectivamente, ElRei ou apenas Rei; no que respeita durao, deviam promulgar-se emcarta de lei as disposies destinadas a vigorar mais do que um ano e atravs de alvar as quetivessem vigncia inferior; desde sempre, contudo, foram-se sucedendo as excepes a estesprincpios, pelo que no tardou o aparecimento dos chamados alvars de lei, alvars com fora delei ou em forma de lei.b) Decretos: so menos relevantes do que as figuras anteriores; no se iniciam pelo nome domonarca; dirigiam-se, as mais das vezes, a um ministro ou ao tribunal, pelo que, via de regra,

    terminavam com uma expresso endereada ao destinatrio; no obstante, visarem em primeiraanlise, determinaes respeitantes a casos particulares, como o decurso do tempo, acabariampor conter alguns preceitos inovadores.c) Cartas rgias: constituam verdadeiras cartas, isto , epstolas dirigidas a pessoasdeterminadas, que comeavam pela indicao do destinatrio, mas cujo formulrio variavaconsoante a sua categoria social; terminavam como os alvars (o monarca assinava-as somentecom Rei).d) Resolues: os diplomas em que o monarca respondia s consultas que os tribunais lheapresentavam, normalmente acompanhadas dos pareceres dos juzes respectivos; emboravisassem casos especficos, tendencialmente viram a ter aplicao analgica.e) Provises: os diplomas que os tribunais expediam em nome e por determinao do monarca;levavam assinatura dos secretrios de Estado de que dimanavam; as que eram subscritas peloprprio monarca, por vezes, confundiam-se com os alvars quanto ao seu valor legislativo; nestesentido, tomavam o nome de provises reais ou provises em forma de lei.

    f) Portarias e avisos: tratavam-se de ordens expedidas pelos secretrios de Estado em nome domonarca; distinguiam-se, entre si, pelo facto de as portarias serem diplomas de aplicao geral;ao passo que os avisos de destinavam a um tribunal, a um magistrado, a uma corporao ou at aum simples particular.

    No que respeita publicao e incio da vigncia da lei, as Ordenaes Afonsinas noexpressam qualquer norma nesse sentido, no obstante essa ser uma das atribuies dochanceler-mor; as Ordenaes Manuelinas abordaram directamente a questo, atribuindo aochanceler-mor, a competncias para a publicao das leis, bem como, para o envio dos trasladosrespectivos aos corregedores das comarcas; esta incumbncia, foi confirmada por D. Joo IIIatravs de um novo regimento da chancelaria-mor; as Ordenaes Filipinas limitaram-se a repetiro preceito. Durante largo tempo, manteve-se a prtica das cmaras promoverem a transcrio, emlivros expressamente destinados para o efeito, os diplomas gerais e os de interesse local; do

    mesmo modo, os tribunais dispunham de livros prprios para o registo das leis.Somente pelo finais de 1518 (Alvar de 10/12/1518), se providenciou acerca do incio da vignciadas leis: estas teriam eficcia, em todo o Pas, decorridos trs meses sobre a sua publicao nachancelaria e independentemente de serem publicadas nas comarcas; o preceito transitou para asOrdenaes Manuelinas, mas reduzindo-se o prazo de vacatio legis a oito dias quanto Corte;entendia-se, que nos restantes diplomas (ou seja, os no submetidos chancelaria), a suavigncia comeava na data da sua publicao; as Ordenaes Filipinas conservaram estesprazos; recorde-se que, pela chancelaria, apenas passavam as cartas de lei e os alvars; acresciauma dificuldade visvel: o conhecimento efectivo das leis no Ultramar; da que se estabelecesse, a

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    partir de 1749, que as leis apenas se tornassem obrigatrias para os territrios ultramarinos depoisde publicadas nas cabeas das comarcas.

    2.6. Interpretao da lei atravs dos assentosO problema da interpretao da lei com sentido universalmente vinculativo para o futuro foidisciplinado por um diploma da segunda dcada do sculo XVI; os seus dispositivos incluram-senas Ordenaes Manuelinas e passaram s Ordenaes Filipinas; a interpretao autntica dalei constitua uma faculdade do monarca; conhecem-se numerosos diplomas interpretativos depreceitos anteriores; tambm era frequente o rei presidir s reunies dos tribunais e logo a decidiras dvidas interpretativas que se levantavam; na origem do referido diploma (Alvar de10/12/1518) de D. Manuel I, que confere tais funes Casa da Suplicao, encontra-se o factode se ter perdido o uso do soberano presidir a essas sesses dos tribunais superiores, em virtudeda complexidade crescente da administrao, onde se analisam as vrias modalidades deassentos; determinou-se, igualmente que, surgindo dvidas aos desembargadores da Casa daSuplicao sobre o entendimento de algum preceito, tais dvidas deveriam ser levadas ao regedordo mesmo tribunal; este convocaria os desembargadores que entendesse e, com eles, fixava ainterpretao que se considerasse mais adequada; o regedor das Casa da Suplicao poderia,alis, submeter a dvida a resoluo do monarca, se subsistissem dificuldades interpretativas; assolues definidas eram registadas no Livro do Assentos e tinham fora imperativa parafuturos casos idnticos; surgem deste modo, os assentos da Casa da Suplicao como

    jurisprudncia obrigatria; trata-se do antecedente histrico dos assentos dos tribunais que estona cpula da organizao judiciria, maxime do Supremo Tribunal de Justia. A Casa daSuplicao era o tribunal do Reino que acompanhava a Corte, mas acabaria por se fixar emLisboa; na mesma cidade funcionava a Casa do Cvel, que constitua uma segunda instncia,competente para conhecer dos recursos das causas cveis de todo o Pas, ressalvadas assentenas proferidas no local onde se encontrasse a Corte e cinco lguas em redor, cuja apelaoiria ao tribunal da Corte, assim como para conhecer dos recursos das causas criminaisprovenientes de Lisboa e seu termo; com vista a descentralizar os tribunais de recurso, Filipe I,em 1582, indo ao encontro de solicitaes anteriores, deslocou a Casa do Cvel para o Porto,transformando-a na Relao do Porto; a nova Casa de Relao do Porto funcionava comotribunal de segunda instncia, quanto s comarcas do Norte, e, matria crime; e o mesmo severificava em matria cvel, excepto se o valor da causa ultrapassasse determinado montante(alada), hiptese em que existiria possibilidade de recurso para a Casa da Suplicao; mantinha-se assim, alguma subalternidade da Relao do Porto perante a Casa da Suplicao; em todo o

    caso, esse tribunal ficou com grande autonomia face s comarcas do Norte, pelo que osdesembargadores da Relao do Porto se arrogaram o direito de proferir tambm assentosnormativos, embora nenhum texto legal lhes atribusse tal competncia; daqui resultaram naturaisconfuses e contradies interpretativas; esta prtica viria estender-se s Relaes criadas noUltramar; isto , todas elas passaram a tirar assentos interpretativos. Apenas no sculo XVIII seps cobro a este abuso; a chamada Lei da Boa Razo, de 18 de Agosto de 1769 , estabeleceuque s os assentos da Casa da Suplicao teriam eficcia interpretativa.

    2.7. Estilos da Corte. O costumeAs Ordenaes indicam, como fontes de direito nacional, ao lado da lei, os estilos da Corte e ocostume; nunca se apurou uma doutrina rigorosa quanto distino destas duas fontes de direito,tanto que mais que apresentavam o trao comum de ambas se alicerarem no uso, ou seja, seremfontes de natureza no legislativa; para certos autores, o costume resultava da colectividade, ao

    passo que o estilo seria introduzido pela prtica de entidades pblicas, nomeadamente pelosrgos judiciais; segundo outra corrente, que se baseava na matria disciplinada, os estiloscircunscreviam-se aos aspectos de processo (praxe de julgar), deles se autonomizando oscostumes, em sentido prprio, de direito substantivo, que pudessem surgir no mbito do tribunal(contedo da deciso). Entre ns, o conceito de estilo adquiriu o sentido generalizado de

    jurisprudncia uniforme e constante dos tribunais superiores; devia obedecer aos seguintesrequisitos: 1) no se apresentar contrrio lei; 2) tivesse prescrito, quer dizer, possusse umaantiguidade de dez anos ou mais; 3) fosse introduzido, pelo menos, atravs de dois actosconformes de tribunal superior (alguns autores sustentam a ideia de serem necessrios trs actos

    judiciais).

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    O costume constituiu a fonte predominante do sistema jurdico dos comeos da nacionalidade,vindo a ceder essa posio lei a partir do sculo XIII; contudo, as Ordenaes a ele se referemexpressamente; determinada a sua observncia a par da lei e dos estilos das cortes; isto , ocostume mantinha a eficcia de fonte de direito, tanto se fosse conforme lei (secundum legem),ou para alm desta (praeter legem) ou se a contrariasse (contra legem). Todavia, importaobservar algumas alteraes produzidas ao longo de sucessivos textos; as Ordenaes Afonsinaslimitam-se a consagrar a vigncia do costume do Reino antigamente usado; as OrdenaesManuelinas, estabelecem uma nuance: por um lado, releva-se a validade dos costumes locais nomesmo plano dos costumes gerais; por outro lado, restringem a observncia do costume, local ougeral, como fonte imediata de direito, aos casos em que a doutrina romanstica e canonsticaadmitisse a sua vigncia (o legislador aproximou-se dos fundamentos e dos requisitos de validadeque a cincia jurdica da poca estabelecia em relao ao costume); nada pacficos seapresentavam os requisitos de validade da fora vinculativa do costume; a doutrina canonstica,aceitava a existncia de um costume contrrio lei, desde que se respeitasse os preceitos daordem pblica; duas questes que estacavam no mbito desses requisitos de validade: a daantiguidade, exigia-se, em regra, um perodo de durao igual ou superior a dez anos, excepto seo costume fosse contra legem, para que o canonistas apresentavam o prazo mnimo de quarentaanos, e a do nmero dos actos necessrios demonstrao da sua existncia, sobre a qualvariavam as opinies entre um e dez actos, mostrando-se mais seguida a que se contentava comdois actos, maxime de natureza judicial.

    2.8. Direito subsidirioEntende-se por direito subsidirio, um sistema de normas jurdicas chamadas a colmatar aslacunas de outro sistema; ser direito subsidirio geral ou especial, consoante se preenchamlacunas de uma ordem jurdica na sua totalidade, ou to-s de um ramo do direito ou simplesinstituio; o problema do direito subsidirio encontra-se ligado ao das lacunas e mesmo ao dasfontes do direito; o seu relevo encontra-se dependente de dois pressupostos: por um lado, aausncia, tanto de um sentido de verdadeira autonomia dos diversos ordenamentos jurdicos,como da pretenso de uma auto-suficiente totalidade unitria de regulamentao jurdica dodomnio ou campo do direito a que o ordenamento se destina; por outro lado, a possibilidade, emcoerncia com o pressuposto anterior, de remeter o julgador para quaisquer ordenamentos

    jurdicos disponveis. Destes pressupostos, resultou durante largo perodo de tempo (praticamenteat ao sculo XIX), que os juzes, perante a imperfeio ou a insuficincia dos sistemas jurdicosnacionais, sempre pudessem recorrer a um direito subsidirio, ou um qualquer direito pressuposto,

    ou mesmo, a uma outra fonte formal de direito, no sentido de ultrapassar as lacunas, em claroprejuzo do seu contributo pessoal para a constituio de direito por via integrativa.Os postulados poltico-jurdicos e cientfico-matemticos que animaram o pensamento do sculoXIX, no se compatibilizam com aquela atitude passiva dos juzes; exige-se agora, dogmtica

    jurdica, o enfrentamento directo e explcito do problema das lacunas; isto , no apenas oproblemas dos meios, dos critrios e dos mtodos do seu preenchimento, mas o problema daslacunas em si mesmo; concorda-se, universalmente hoje num ponto: o problema s pode serresolvido atravs da interveno constitutivamente integrante do julgador; ou seja, sempre o

    julgador ter uma relativa liberdade integradora, j que haver que dar resposta jurdica aos casosde verdadeira lacuna mediante uma deciso normativamente a constituir para alm dos dadosformais do direito. Neste quadro, lcito dizer-se que o problema das lacunas, em bom rigor, ssurge actualmente; quer dizer, esgotadas que sejam as possibilidades directas ou indirectas(remissivas) de aplicao imediata de um prvio direito constitudo, de uma fonte formal de

    direito. O problema, enquanto problema especfico, apresenta-se hoje em funo dos limites e daautonomia completa dos ordenamentos jurdicos; aqum desses limites, o que pode surgir aremisso normativa intra-sistemtica de um sector ou parte diferenciada do sistema jurdico globalpara outro sector ou parte do mesmo sistema, que com o primeiro tem particulares relaes noseio do sistema global em que ambos participam, com vista a suprir assim as formais carnciasprescritivas, seja voluntrias ou involuntrias, do parcial e dependente ordenamento remetente -nisto se cifra o actual relevo do direito subsidirio. Daqui se infere, que a importncia dodireito subsidirio aumenta medida que se recua no tempo; ou seja, o seu relevo particularmente sentido nos ordenamentos que vigoravam em pocas em que a escassez e aimperfeio, eram as notas dominantes desses ordenamentos jurdicos; assim se justificavam as

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    frequentes investidas a ordenamentos estrangeiros; este facto, desempenhou, todavia, umimportante factor de aproximao jurdica e cultural dos povos, que bem se revelam na histria dodireito portugus.

    Analisemos, agora algumas fontes de direito subsidirias segundo as Ordenaes Afonsinas: nas colectneas afonsina que se estabeleceu, entre ns, um quadro sistemtico das fontes dedireito; no mesmo plano das leis do reino, aparecem os estilos da Corte e os costumesantigamente usados: eram estas as fontes imediatas. Apenas quando a elas no se pudesserecorrer, se tornava lcito o uso do direito subsidirio, cujas principais fontes eram:1) Direito romano e direito cannico este direito representava o primeiro recurso possvel, naimpossibilidade de utilizao das j referidas fontes imediatas: aplicavam-se normas do direitoromano, sempre que as questes revestiam um carcter temporal, excepto se da sua aplicaoresultasse pecado; no mbito do direito cannico, integravam-se as questes de naturezaespiritual, e, ainda, as questes de raiz temporal conducentes ao pecado.2) Glosa de Acrsio e opinio de Brtolo - na impossibilidade de solucionar a questo atravsdos direitos romano e cannico, devia atender-se Glosa de Acrsio e, em seguida, opinio deBrtolo ainda que outros doutores se pronunciassem de modo diverso.3) Resoluo do monarca - sempre que, atravs dos sucessivos elementos indicados, no seconseguisse disciplina para o caso omisso, impunha-se a consulta ao rei, cuja estatuio valeria,de futuro, para todos os feitos semelhantes; este mesmo procedimento era solicitado, quando a

    hiptese considerada, no envolvendo matria de pecado, nem sendo disciplinada pelos textos dedireito romano, tivesse solues diversas no direito cannico e nas glosas e doutores das leis.

    Vejemos agora, algumas alteraes introduzidas pelas Ordenaes Manuelinas e pelasOrdenaes Filipinas: os preceitos afonsinos sobre o direito subsidirio passaramfundamentalmente s Ordenaes Manuelinas e destas para as Ordenaes Filipinas; contudo,sofreram ampla remodelao: desde logo, e como j se referiu anteriormente, assume particularimportncia, a incluso da matria no livro dedicado ao direito processual; esta transposiosignifica que o problema do direito subsidirio deixou de ser disciplinado a propsito das relaesentre a Igreja e o Estado, deslocando-se para o mbito do processo; conforme cita Braga da Cruz,detecta-se a, a ruptura da ltima amarra que ligava a questo do direito subsidirio ideiaanterior de um conflito de jurisdies entre o poder temporal e o poder eclesistico, simbolizados,respectivamente, pelo direito romano e pelo direito cannico.Todavia, as mudanas substanciais aparecem logo nas Ordenaes Manuelinas; a vigncia

    subsidiria do direito romano justificada pela sua autoridade intrnseca e no por qualquerespcie de submisso do Reino portugus ao Imprio; basicamente, so duas as diferenasessenciais de contedo que separam, no mbito do direito subsidirio, as Ordenaes Manuelinase as Ordenaes Filipinas do precedente texto afonsino: 1) quanto aplicao dos textos dedireito romano e de direito cannico, deixa-se de referir a distino entre problemas jurdicostemporais e espirituais; apenas se consagra o critrio do pecado, que fornecia o nico limite prevalncia subsidiria do direito romano sobre o direito cannico, qualquer que fosse a naturezado caso omisso; 2) a respeito da Glosa de Acrsio e da opinio de Brtolo, cuja ordem deprecedncia se conserva, estabelece-se o requisito de a comum opinio dos doutores nocontrariar essas fontes; relativamente a Brtolo, a restrio seria definida to-s pelos autores quetivessem escrito depois dele.

    NOTA.- Alguns autores, perante a filtragem exercida pela comum opinio dos doutores em relao Glosa de Acrsio e opinio de Brtolo, entenderam que aquela, constitua, em si mesma, umafonte subsidiria; isto , na ausncia de direito nacional, de direito romano e de direito cannico,caberia recorrer opinio comum, antes da Glosa de Acrsio e da opinio de Brtolo.

    No obstante a clareza patenteada pelo legislador, no sentido de hierarquizar as fontes de direito,a verdade que ao longo de praticamente trs sculos (at reforma pombalina), a vida jurdica

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    portuguesa pautou-se por alguma confuso, gerada na maior parte das vezes, pelo uso eabuso das fontes subsidirias: no raro o direito ptrio era substitudo pelo direito romano,designadamente pelo prevalecimento da regra hermenutica (odiosa limitanda, favorabiliaamplianda) de que as regras jurdicas do Pas deveriam receber interpretao extensiva ourestritiva, consoante se apresentassem conformes ou no a esse direito; abusava-se da opinio ecomum e chegou-se, inclusive, a recorrer ao direito castelhano, que se encontrava fora das fontesde direito subsidirias.

    2.9. Reforma dos foraisA anlise que tem vindo a ser feita, relativamente s fontes de direito, no ficaria completa semuma aluso aos forais (importantes e antigas fontes de direito local); fcil ser de perceber, que adinmica da vida jurdica, ao longo do perodo das Ordenaes, os tornaram profundamentedesactualizados e mesmo obsoletos; o progressivo robustecimento do poder do rei e auniformizao jurdica, alcanada atravs da legislao geral, iam determinando o declnio dasinstituies concelhias, bem ntido ao longo do sculo XV; os forais perdiam o alcance anterior,transformando-se em meros registos dos tributos dos municpios; uma parte do seu contedoestava revogada pela legislao geral; as referncias a pesos, medidas, e moedas tinham cadoem desuso; a actualizao das prestaes, merc da desvalorizao monetria, originavaincertezas e contrariedades. Perante este quadro, e aps sucessivas solicitaes a diferentesmonarcas, concluiu-se em 1521, uma profunda reforma dos forais, imposta por D. Manuel I; deste

    modo surgem os forais novos ou manuelinos, por contraposio aos forais velhos, que eram osanteriores; os forais, alis em nmero reduzido, concedido depois da reforma de D. Manuel I sochamados de novssimos.

    2.10. Humanismo jurdico sabido que o Humanismo e a Renascena constituem dois fenmenos marcantes da evoluodo esprito europeu: restaurao dos textos da antiguidade clssica, seguiram-se transformaesgerais nos campos das artes, das cincias, da cultura e da filosofia; estiveram subjacentesmotivos polticos, religiosos, sociais e econmicos. No mbito do humanismo renascentista inclui-se, tambm, uma natural reviso crtica da cincia do direito: essa nova mentalidade enforma aorientao da chamada Escola dos Juristas Cultos, Escola dos Jurisconsultos Humanistas; EscolaHistrico-Crtica e, ainda, Escola Cujaciana. A ecloso desta nova directiva do pensamento

    jurdico prende-se a dois factos essenciais: oprogresso do humanismo renascentista j referidoe a decadncia da obra dos Comentadores (verificada durante a segunda metade do sculo

    XV).A no preparao e o menosprezo dos Comentadores quanto aos aspectos histricos provocaramviva censura dos espritos cultos da poca; a deselegncia do seu estilo no se tornava menoschocante. Eis o quadro em que surgiu o humanismo jurdico quinhentista; esta nova corrente viriaa desenvolver-se sob diversas tendncias: desde as filiolgico-crticas, at que reivindicava aliberdade e autonomia do jurista na exegese da lei, portanto perante a opinio comum ou ainterpretao mais aceite; em qualquer caso, o postulado bsico reportava-se ao livre exame dasfontes romanas. Esta atitude representou uma viragem profunda em face do pensamento dosComentadores. Comeou a encarar-se o direito romano como uma das vrias manifestaes dacultura clssica. Trs nomes esto intimamente ligados corrente humanista: o italiano Alciato, ofrancs Bud e o alemo Zasio. Entre ns,Antnio de Gouveia, natural de Beja e que cedo fezos estudos em Paris. Tendo Itlia como ponto de partida, em Frana que a Escola Humanistaconhece a sua mxima expresso; na Universidade de Bourges que Alciato inaugura o ensino do

    direito romano segundo a nova metodologia (1527/1532), que o humanismo jurdico conseguiuincremento decisivo. A poca de Cujcio (1522/1590) corresponde ao apogeu da EscolaHumanista; nascido em Toulouse, depressa se torna a referncia jurdica do sculo; marca a suaextensa obra, uma rigorosa exegese histrica e filolgica do direito romano, de que resultou aconsequente relativizao deste. Contudo, nem mesmo em Frana o humanismo jurdicoconseguiu um triunfo absoluto sobre o bartolismo; um pouco por toda a Europa se levantaramvozes crticas Escola Huamanista; iria assistir-se, do sculo XVI ao sculo XVII, a um debateentre o mtodo jurdico francs (mos gallicus) e o mtodo jurdico italiano (mos italicus); tem-sedestacado que os humanistas se envolveram demasiado na especulao pura e que, por isso,construram, sobretudo, um direito terico, de tendncia erudita, enquanto os processos dos

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    Comentadores levaram a um direito prtico, quer dizer, utilizao do sistema romano com oesprito jurdico de encontrar solues para os casos concretos; esta sntese do contraste das duasescolas , pelo menos, tendencialmente exacta. Cumpre, desta forma, o humanismo jurdico umciclo efmero; no venceu os critrios enraizados; contudo, lanaram-se inegveis sementes queo iluminismo viria a frutificar.

    2.11. Literatura jurdica

    Este captulo no precisa de ser estudado profundamente. O Dr. Vieira Cura sugeriu uma leiturasuperficialdas pginas 320 a 327.Houve juristas portugueses que aceitaram com maior ou menor evidncia os rumos dohumanismo jurdico; tiveram, contudo, uma aco irrelevante no quadro nacional, tanto na pticada construo cientfica, como da realidade prtica. No que diz respeito orientao humanistaque reivindicava fundamentalmente a liberdade e a autonomia interpretativa dos textos,reconhece-se que no conseguiu uma sorte muito diversa: os seus reflexos em Portugal foramespordicos.Os principais jurisconsultos portugueses do perodo que vai desde o sculo XVI aos meados dosculo XVIII costumam sistematizar-se em trs categorias: civilistas, canonistas e os cultoresdo direito ptrio (podiam ser comentadores, casustas e praxistas).

    2.12. O ensino do direito

    a) Antes de D. Joo III o ensino jurdico em Portugal recua fundao do Estudo Geraldionisiano; a confirmao da bula pontifcia de 9 de Agosto de 1290, j alude obteno dosgraus acadmicos em direito cannico e direito romano. Tanto D. Joo III como D. Manuel Iprocuraram melhorar o nvel dos nossos estudos superiores, chamando s ctedras daUniversidade alguns professores estrangeiros de nomeada e proporcionando subsdios pecuniriosaos estudantes que pretendessem deslocar-se aos centros culturais de alm - fronteiras: em 1431aparecem j expressos os graus universitrios de bacharel, licenciado e doutor: os primeiros,depois de concluda a instruo preparatria da Gramtica e da Lgica, cursavam durante trsanos, defendendo, seguidamente, em acto pblico as concluses; se pretendessem alicenciatura (o grau acadmico mais difcil de obter) estavam obrigados a uma frequnciacomplementar de quatro anos, antes de se submeterem aos respectivos exames; a colao dograu de doutor, era uma acto essencialmente solene onde as provas tinham reduzida importncia.b) Instalao da Universidade de Coimbra a Universidade foi definitivamente fixada emCoimbra por D. Joo III no ano de 1537; a razo decisiva teve a ver com a profunda reforma do

    ensino universitrio iniciada pelos dois monarcas que o precederam; impunha-se organizar, umensino digno da poca renascentista; exoneraram-se os professores que no apresentavammritos para leccionar na Universidade, passando para Coimbra aqueles que apresenta