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HISTÓRIA DA GEOLOGIA II: DO SÉCULO XIX À DERIVA CONTINENTAL 2 TÓPICO Silvia F. de M. Figuerôa 2.1 Do século XIX à deriva continental

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HISTÓRIA DA GEOLOGIA II: DO SÉCULO XIX À DERIVA CONTINENTAL 2 TÓ

PICO

Silvia F. de M. Figuerôa

2.1 Do século XIX à deriva continental

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2.1 Do século XIX à deriva continentalO século XIX é considerado a “Idade de ouro” da Geologia, por diversos motivos: cada

vez mais instituições ensinavam esta ciência e formavam profissionais; surgem as primeiras

associações científicas – em 1807, a Geological Society de Londres, e em 1830, a Societé Géologique

de Paris; os museus proliferavam nos quatro cantos do mundo, exibindo suas belas coleções

de minerais, fósseis e rochas. Pelo que acompanhamos no capítulo anterior, a Geologia que se

constituiu como ciência moderna incorporou quatro vertentes de trabalho, que correspondiam,

por sua vez, a quatro modos de ver e explicar o planeta, segundo Martin Rudwick (1996):

A ‘ciência de espécimes’ relacionava-se diretamente aos minerais, rochas e fósseis, conectan-

do-se com os gabinetes e museus por meio das coleções que agrupavam grandes quantidades

e enorme variedade de materiais. Na perspectiva da História Natural, disciplina que lhe dava

a sustentação teórica, as leis gerais a governar estas áreas seriam obtidas a partir das regularida-

des observáveis no maior número possível de exemplares (leis indutivas); assim, quanto mais

exemplares, maior o grau de confiança da lei. Já a ‘ciência estrutural’ congregava tudo o que se

relacionava à ordem e relações entre as camadas de rochas, bem como outras feições associadas,

pretendendo também explicar a gênese de várias delas. As teorias da Terra, como vimos antes,

procuravam combinar a história do planeta com Cosmologias e Cosmogonias mais amplas. A

vertente da ‘ciência histórica’ buscava a sequência, ao longo do tempo, da sucessão de camadas

e pacotes de rocha – em suma, de sua História. Uma obra marcante nesse sentido foi a Les

Époques de la Nature (As Épocas da Natureza), de autoria do naturalista francês Georges Leclerc,

conde de Buffon (1707-1788), que postulava que o globo, inicialmente fundido, havia se res-

friado até atingir o estado atual. A história que propunha dividia-se em seis ‘épocas’ e referia-se

a feições como vulcões extintos e fósseis como “arquivos” ou “monumentos” da natureza, pois

poderiam ser vistos como relíquias de um estado de coisas anterior. Por conseguinte, as feições

naturais foram usadas cada vez com mais frequência na reconstrução de uma História da Terra

GeologiaCiência de Espécimes

História NaturalCiência estrutural

GeognosiaCiência especulativa

Teorias da TerraCiência histórica

Estratigrafia

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que, por ser intrinsecamente contingente, não poderia ser predita a priori por nenhuma teoria

mais geral. Isto significava uma profunda transformação na perspectiva das Teorias da Terra que

vigoravam anteriormente.

Não é coincidência que este novo entendimento seja contemporâneo do uso dos arquivos

e monumentos para a História humana por historiadores e antiquários, a serviço de uma nova

concepção da própria História. Dessa forma, uma ‘História Natural’ estática, integrada por es-

pécimes conectados apenas por suas semelhanças externas, passava a uma história mais verda-

deiramente temporal do planeta.

Nessa história, ganharam destaque os espécimes de seres vivos extintos, que já haviam

complicado bastante a incipiente Paleontologia em seu nascimento. Com o sucesso crescente

do emprego dos fósseis para datações e correlações

de terrenos, avançado por William Smith, Georges

Cuvier e Alexandre Brongniart, como citado no

tópico anterior, de algum modo era necessário resol-

ver o problema que persistia: como e quando esses

animais e plantas desapareceram? Chamava parti-

cularmente a atenção desses naturalistas a variedade

de formas extintas, que iam desde enormes ossos de

vertebrados semelhantes a elefantes (mastodontes) até

grandes conchas com estrutura espiralada, como amo-

nitas (conhecidos há alguns séculos como ‘Cornos de

Amon’ por se assemelharem aos chifres de carneiro

portados pelo deus egípcio Amon), figura 1.

Uma explicação inovadora e mais precisa do que as anteriores, sem invocar a intervenção

divina, foi desenvolvida, sobretudo, pelo mencionado Georges Cuvier. Valendo-se das ricas co-

leções de ossos fósseis disponíveis no Museu de História Natural de Paris, onde trabalhava, ele

aplicou um dos princípios da Anatomia Comparada, qual seja, o da correlação entre função e

estrutura, para reconstruir vertebrados extintos como sáurios, pássaros e mamíferos, antes ini-

magináveis. A ‘ciência de espécimes’ conhecia, assim, profunda transformação, em decorrência

do reordenamento interno das relações entre as amostras. Além disso, Cuvier interessava-se pela

integração entre Zoologia e Geologia, por meio da reconstrução integral do ambiente físico de

cada época em que viveram essas criaturas extintas, entendidas como estágios particulares do

desenvolvimento da vida na Terra. A cada um corresponderiam condições climáticas e terrestres

Figura 1: Fóssil de Amonita

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específicas, uma fauna e uma flora. Iniciava-se, assim, o que hoje é corrente na Paleontologia:

a reconstrução de ambientes antigos, ou reconstrução paleoambiental. No trabalho de Cuvier

e daqueles que seguiram seus passos, populações inteiras de crustáceos e sáurios, pássaros e

mamíferos, todos extintos, foram reconstruídas. Na medida em que esse registro paleontológico

era montado peça por peça, subindo-se na escala do tempo e das camadas até os períodos mais

próximos, sugeria que tais populações existiram numa sucessão temporal: desde um período

sem evidências de vida (Azoico), seguido pelo dos invertebrados, e então pelo dos vertebrados;

dos peixes aos répteis e mamíferos; dos simples aos complexos; dos extintos aos ainda existen-

tes. Ainda que algumas generalizações propostas nessa época tenham sido revistas e mesmo

abandonadas por investigações posteriores, sem dúvida, a imagem fornecida pelo registro fóssil

cada vez mais sólido, visto que se ampliavam as coleções, revelava uma progressiva sucessão de

formas de vida que culminavam no homem, cada população aparentemente separada da outra

por períodos de “revolução”, isto é, de mudanças abruptas (Figura 2).

Grandes debates se travaram para explicar essas mudanças, ou passagens, de uma época

a outra. No fundo, o que se discutia eram aspectos do método científico em Geologia e

questões teóricas da natureza do conhecimento dessa ciência, que se conectavam por meio

do problema da construção de uma interpretação teórica sobre o planeta. Como reconstituir

uma história sem testemunhas, tampouco com um relato mais geral (como o bíblico) que

lhe conferisse consistência a priori? Os espécimes, redefinidos como ‘relíquias’ e ‘monumen-

tos’, e não mais como objetos singulares, estavam na base do novo modo de interpretar:

Figura 2: Megatério reconstituído por Georges Cuvier

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constituíam evidências, testemunhos, a partir dos quais poderiam ser feitas interpretações,

deduções e reconstruções. Guardavam, na maioria dos casos, semelhanças com situações pre-

sentes, a partir das quais poderiam ser estabelecidas analogias. Mas, ainda assim, mais de uma

alternativa metodológica se apresentava. De um lado, uma ‘escola de pensamento’, por assim

dizer, vinha se desenvolvendo desde James Hutton (ver tópico anterior), propugnando que

o método de investigação mais adequado deveria explicar o passado da Terra em termos de

causas de mesmo tipo e intensidade das atualmente existentes. Ir adiante significava mera

especulação, e mesmo o apelo a milagres ou intervenções divinas. Em vista da proposta de

ação uniforme e constante das forças terrestres, essa concepção metodológica ficou conhe-

cida como ‘Uniformitarismo’ e a frase que a sintetiza é: “o presente é a chave do passado”.

De maneira resumida, o Uniformitarismo defende que, dado tempo suficiente, o passado da

Terra poderia ser explicado em termos do efeito cumulativo de forças e causas graduais. Ao

longo do tempo, os rios escavariam seus próprios vales; ao longo do tempo, uma sucessão

de pequenos terremotos, ou o lento soerguimento pela dilatação de camadas inferiores (por

ação do calor interno), construiria continentes inteiros ou cadeias montanhosas acima de

oceanos pretéritos; ao longo do tempo, as pressões do ambiente, gradualmente, causariam a

extinção ou a migração de populações inteiras. A ciência geológica, assim, seria o estudo de

processos e dos objetos/espécimes nesses processos, e não mais tomados isoladamente. Além

de Hutton, podemos citar como outros nomes fundamentais para o desenvolvimento dessa

linha de raciocínio: John Playfair (1748-1819), o principal vulgarizador e disseminador da

obra de Hutton; Constant Prévost (1787-1856), um dos fundadores da Société Géologique de

France em 1830; e, o mais conhecido, Charles Lyell (1797-1875).

Lyell cursou Direito em Oxford, mas já era um geólogo amador e, depois de algum

tempo, seguiu Geologia também. Segundo alguns autores, sua formação em Direito teve

um papel fundamental na defesa de suas ideias uniformitaristas, por sua habilidade de

persuasão, convencimento e retórica. Entre 1830 e 1833, Lyell publicou sua obra Principles

of Geology, em três volumes, que se propunha a apresentar uma abordagem apropriada ao

estudo moderno da Terra. Não por coincidência o título ostentava a palavra ‘Princípios’,

pois, como já observado por Rudwick (op. cit.), seu autor almejava que alcançasse status

equivalente ao da obra de Isaac Newton para a Física. Quase o conseguiu, pois é consi-

derado um dos livros mais influentes na História da Geologia: conheceu sucesso imediato

quando de sua publicação, e quando surgiu o terceiro volume, em 1833, os dois primeiros

já haviam sido reeditados. E, em 1834, o conjunto foi reorganizado e ampliado numa nova

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publicação em quatro volumes. Como afirma Gould (1991, p. 109), “ao contrário do que

frequentemente se afirma, o grande tratado de Lyell não é um livro didático que resume de

maneira sistemática todo o conhecimento existente, e sim uma síntese apaixonada de um

único argumento bem elaborado, implacável e persistentemente repetido. Todas as seções

do texto, incluindo a história introdutória, desenvolvem o mesmo tema, enquanto sua

ordem também reflete a síntese que vai pouco a pouco desabrochando”. Em 1838, publi-

cou Elements of Geology, livro em que aplica os princípios por ele defendidos e propostos

à história da Terra, o qual conheceu também grande sucesso. O subtítulo do Principles é

esclarecedor do cerne do método uniformitarista: “uma tentativa de explicar alterações

ocorridas na superfície da Terra por referência a causas hoje atuantes”. Nessa formulação,

o uniformitarismo é aceitável e praticado até hoje. No entanto, Lyell era mais radical em

seus argumentos: para ele, todos os eventos do passado – todos, sem exceção – poderiam

ser explicados por causas hoje atuantes, inclusive no mesmo grau e intensidade de hoje.

Tal formulação, nesses termos, é claramente problemática e acabou por ser descartada, após

intensos debates e crescentes investigações.

Do outro lado posicionavam-se o já mencionado Cuvier, William Buckland (1784-

1856), Adam Sedwick (1785-1873), Louis Agassiz (1807-1873), Alcide d’Orbigny

(1808-1857) ou Élie de Beaumont (1798-1874), para citar alguns, na resposta para as

populações extintas. Esta visão recusava o rótulo de não-científicas às explicações que

postulavam que grandes e repentinos eventos, como catástrofes, haviam ocorrido em

tempos passados, mesmo que atualmente não fossem mais observados. Para eles, de fato,

as evidências demandavam tais interpretações. A magnitude das rupturas de estratos em

regiões montanhosas do globo, como os Alpes, testemunhava deslocamentos súbitos e

catastróficos. Vales secos, de igual modo, pareciam provar que a teoria da erosão fluvial

gradual era falsa. A vasta extensão de materiais aluviais e blocos erráticos espalhados por

toda a Europa não poderia ser explicada por nenhuma causa ou processo conhecidos.

D’Orbigny (1852 (2), p.833-34), por exemplo, argumentava com clareza que “qualquer

mudança de topografia durante um terremoto é, para nós, em pequena escala e com

efeitos muito menos acentuados, o mesmo fenômeno das grandes perturbações gerais

às quais atribuímos o fim de cada era geológica”. Por causa das explicações baseadas em

eventos extremos, essa ‘escola de pensamento’ ficou conhecida como ‘Catastrofismo’.

Encontramos uma bela passagem deste teor num texto de 1801 (Memória sobre as Minas

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da capitania de Minas Gerais...) do médico e naturalista mineiro José Vieira Couto (1752-

1827), formado em Filosofia e Matemática em Coimbra:

“Observo ainda mais outros fenômenos, que todos eles indicam uma revolução que aqui tem

remexido e alterado toda a superfície da terra (...). Que pasmosa força sacudiu as entranhas destes

montes, revirou o seu interior para fora, levou de rojo estes cristais? (...) Por toda a parte vejo o

selo da desolação, de ruínas e calamidades por que um dia passou esta parte do globo; vejo por

toda a parte os vestígios dos elementos conjurados contra ele, do fogo, das águas e dos ventos; vejo

as pegadas de um lapso de tempo que foge a toda compreensão humana; e nós, com tudo isso,

dormimos descansados sobre tal monte de ruínas! ”

O debate envolvia mais do que questões de método: implicava concepções rivais dos pró-

prios padrões e direção da história da Terra. De um lado, Hutton e Lyell defendiam um planeta

em estado de equilíbrio e, portanto, mudanças contínuas, incessantes e de pequena intensidade

eram as responsáveis pelas transformações, num processo sem fim e sem direção a priori – um

tempo ‘cíclico’. De outro, Cuvier, D’Orbigny e outros endossavam uma visão mais direcional da

história terrestre, concebendo o tempo como uma ‘seta’: uma Terra que se resfriara lentamente,

uma crosta que se solidificara desde então, sucessões não repetidas e irreversíveis de camadas, a

diminuição da energia total alocada no planeta. No entanto, ‘catastrofistas’ e ‘uniformitaristas’

nunca estiveram totalmente separados e, por volta de 1840, puseram em prática uma espécie

de compromisso: concordava-se que muitas feições geológicas resultavam de agentes ainda

observáveis em ação no tempo presente, como sedimentação, erosão, vulcanismo e elevação

crustal. Mas também era amplamente aceito que esses processos deveriam ter diminuído de

intensidade, tendo sido muito mais poderosos nos primórdios da Terra. O compromisso parecia

inescapável, já que muitos fenômenos continuavam a resistir ao tipo de explicação dada por

Lyell. Embora se reconhecesse, de maneira crescente, justiça no seu argumento de que muitas

das explicações catastrofistas refletiam ignorância e apelavam a intervenções divinas, muitos

geólogos e naturalistas resistiam em aceitar que a ciclicidade era ininterrupta, e que espécies

hoje consideradas extintas poderiam reaparecer. Muitos consideravam inequívoca a sucessão

de faunas e floras (ou estágios de vida) ao longo da história do planeta. Todos concordavam,

porém, que o mais importante a fazer era inventariar seriamente a variedade, amplitude, grau e

extensão das chamadas ‘causas atuais’ ou ‘modernas’.

Portanto, estava dado o estímulo para um levantamento mais acurado e detalhado do planeta.

De fato, para todas as quatro vertentes integrantes da moderna Geologia citadas no início, era

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essencial o trabalho de campo – ou seja, em contato

direto com a natureza. E foi por meio do trabalho de

campo que se unificaram e permitiram, em consequ-

ência, que também a cartografia geológica conhecesse

notável expansão. As figuras 3 e 4, ambas do século

XIX, ilustram muito bem essa importância, além de

sua especificidade.

A par e passo avançava também a representação das

feições mapeadas. Mapas e secções geológicas foram se

sofisticando e constituindo-se como absolutamente es-

senciais na comunicação científica em Geociências, seja

entre pares, seja com os leigos, pois têm papel episte-

mológico no fazer científico dessas ciências. Não são, de

modo algum, meras ilustrações. Na verdade, mapas e sec-

ções geológicas nascem e fazem nascer o conhecimento

geológico e, a partir do século XIX, juntamente com a

cartografia geológica, conformam o campo disciplinar,

do ponto de vista conceitual e institucional, como veremos a seguir.

Paralelamente, o século XIX assistiu à expansão dos modernos im-

périos coloniais (Britânico, Francês, Germânico etc.) e ao avanço da I

Revolução Industrial, que impactou a demanda por matérias-primas.

Nesse sentido, o conhecimento que visava ao controle e exploração

dos territórios sofreu grande impulso, ensejando um contexto favo-

rável ao levantamento e à cartografia dos recursos naturais. Como

sabemos, o motor da expansão colonial é a existência de recursos

naturais, o que implica devassamento e apropriação de novas terras.

Tradicionalmente, o chamado “interior desconhecido” foi encarado

como sinônimo de ‘terra de abundância’, de ‘Eldorados’, e as áreas

não devassadas (fundos territoriais), tais como sertões e fronteiras, se

constituíram em estoques para apropriação futura.

As instituições encarregadas da execução dos mapas, com ênfase

no levantamento dos recursos naturais, foram os chamados Serviços

Geológicos (Geological Surveys), que se tornaram a ‘marca registrada’ Figura 4: William Buckland em indumentária para atividade de campo nas geleiras

Figura 3: Pintura romântica mostrando geólogo em campo

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do desenvolvimento institucional da Geologia a partir desse período, graças à consagração do

mapeamento geológico como forma de se fazer pesquisa científica neste campo disciplinar.

Financiados pelo Estado, representavam oportunidades únicas de exploração de novos territó-

rios, ao mesmo tempo em que davam emprego aos primeiros geólogos, contribuindo para a

profissionalização dessa categoria. De modo geral, os Serviços Geológicos tinham por objetivo:

a cartografia dos territórios, os levantamentos de terras para agricultura e para projetos de co-

lonização, os levantamentos de recursos naturais, o cadastro de propriedades agrícolas, de vias

de comunicação e de núcleos urbanos. Um traço comum a todos eles foi seu acentuado caráter

prático de aplicação: no caso da Prússia (e, posteriormente, da Alemanha), fundado em 1873,

sustentaram a política colonial anterior à I Guerra Mundial, bem como apoiaram a preparação

e implementação da II Guerra; no caso da Hungria (1869), procederam ao mapeamento de

solos adequados à vinicultura; na França (1825 e 1868), coletaram dados para a indústria e a

agricultura. Na Grã-Bretanha (1824 e 1832), atuaram nas demandas sociais associadas à reforma

da sociedade vitoriana, em conjunto com o Serviço Sanitário. Surgiram ainda, por exemplo, no

Canadá (1842), na Irlanda (1845), em Portugal (1848), na Áustria (1849), na Espanha (1851), na

Índia (1851), na Suécia (1858), na Itália (1868), na Saxônia (1872), no Japão (1878), na Rússia

(1882), na Bélgica (1882), na Finlândia (1886) e na China (1911). De 1824 a 1959 foram

criados 126 Serviços Geológicos, perfazendo uma média de 0,93 ao ano.

Nos Estados Unidos, de onde o Brasil importou mais diretamente o modelo em 1875, os Serviços

Geológicos surgiram já em 1824, na Carolina do Norte, e o modelo se espalhou pelos demais

Estados da federação. Somente em 1879 surgiu um Survey de âmbito nacional, o que não foi empe-

cilho para que os estaduais se constituíssem em poderosos auxiliares na ocupação e exploração

econômica do país, em especial na agricultura e na mi-

neração, e mesmo na ‘marcha para oeste’. Quase todos os

surveys norte-americanos incluíram levantamentos e

análises de solos e se orgulhavam de contribuir para o

enriquecimento da vida intelectual da população local.

Nas palavras do norte-americano Charles Frederic Hartt

(1840-1878), ao propor ao governo imperial, em 1874, a

criação de um Serviço Geológico brasileiro, nos EUA

“não se espera a população para explorar uma região: o geólogo

precede o imigrante”. O primeiro survey surgiu no Brasil

em 1875, justamente sob a chefia de Hartt: a Comissão

Figura 5: Exploração do Sertão (Rio Feio) pela Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1906)

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Geológica do Império. Extinta em 1878, numa história que não será contada aqui, deixou raízes que

vingaram em São Paulo e em Minas Gerais, respectivamente em 1886 e 1891, nas Comissões

Geográficas e Geológicas desses estados (Figura 5 e Figura 6). E, posteriormente, em 1907, no

Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, de abrangência nacional. Todos atuaram no levanta-

mento de terras para a cafeicultura e de esquadrinhamento do território, para controle da exploração

mineral, industrial e cadastro de municípios.

A intensa atuação dos Serviços Geológicos acabou por aumentar o número de problemas a

resolver pela Geologia do século XIX, na medida em que alargou e aprofundou cientificamente as

fronteiras conhecidas, e ampliou enormemente a quantidade de dados disponíveis, a tal ponto que

se fizeram necessários comitês e comissões supranacionais e internacionais para uniformizar nomen-

claturas, metodologias, definições e até mesmo cores a serem empregadas nos mapas. O I Congresso

Internacional de Geologia ocorreu em Paris em 1878, repetindo-se quase ininterruptamente até

hoje com periodicidade de quatro anos, em geral. Os conhecimentos estratigráficos (isto é, o empi-

lhamento de camadas e seus respectivos fósseis) acumulavam-se e reclamavam uma ordenação e sub-

divisão gerais, que pudessem ser empregadas a terrenos de diferentes partes do mundo. Já em 1822, as

rochas que contêm carvão, na Inglaterra, foram denominadas “Carbonífero” (359 a 299 m.a.), o que

Figura 6: Planta Geral do Rio do Peixe com perfil longitudinal do rio, elaborada pela Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1906)

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implicava também associá-las a uma idade relativa. Os terrenos de gipso (ou greda) foram chamados

“Cretáceo” (145 a 65,5 m.a.) por Omalius d’Halloy (1783-1875) também em 1822. Em 1829, os

terrenos dos montes Jura, na divisa da França com a Alemanha, foram denominados “Jurássicos”

(199,5 a 161 m.a.) por Alexander Brongniart, de quem já falamos. E a expressão “Triássico” (251

a 199,5 m.a.), para designar as camadas inferiores às jurássicas, foi empregada em 1834. A partir

de 1835, Roderick Murchinson e Adam Sedgwick exploraram, com muitos conflitos pessoais e

disputas científicas, os terrenos inferiores ao carvão, de início na parte oeste da Inglaterra, mas,

posteriormente, até na Rússia, propondo suas subdivisões nos sistemas “Cambriano”, “Siluriano” e

“Devoniano” (416 a 359 m.a.). Lyell estabeleceu, por sua vez, o essencial do conceito do “Terciário”

(251 a 199,5 m.a.) e de suas subdivisões em três épocas – Eoceno, Mioceno e Plioceno.

Outros dois pontos relevantes para os quais a crescente quantidade de dados traz modificações

são a origem das rochas (novamente) e das cadeias montanhosas. Vejamos, primeiro, o que concerne

à formação rochosa. Nas primeiras três décadas do século XIX encerram-se os ecos do Netunismo.

Aceita-se, portanto, que rochas como granitos e basaltos, e outras muitas, se originam do resfriamento

de material em fusão (magma), em profundidade (rochas plutônicas) ou em superfície, após extrava-

samento (rochas vulcânicas). Aceitam-se, também, as rochas sedimentares, formadas pela deposição e

consolidação de material erodido de outras rochas. No entanto, há outro grande tipo de rocha, que

só começará a ser diferenciado das plutônicas por Lyell. Embasado na teoria huttoniana, denominou

rochas metamórficas as rochas e formações sedimentares alteradas pela ação das subidas de magma,

que as envolveriam e, pela brutal diferença de temperatura, as modificariam. Mais tarde, o prussiano

Christian Leopold von Buch (1774-1853), que igualmente era adepto da ideia das subidas de magma,

a elas credita a formação química dos calcários (processo hoje aceito apenas para a transformação

dos calcários em mármores). Como aponta Gohau (1992), a noção de rocha primitiva, tão cara aos

Netunistas, tende a desaparecer e, em 1842, o francês Virlet d’Aoust declarava que “todas as rochas que

até agora se têm chamado de primitivas poderão muito bem não passar da segunda, da terceira, etc., formação,

se é que não são mesmo de uma formação muito mais antiga.” Alguns, como o próprio d’Aoust e Élie de

Beaumont, ainda distinguem dois tipos de metamorfismo: um, dito normal, provocado pelo “fogo

central” sobre as rochas mais profundas; e outro, dito “anormal”, resultante do calor das rochas ígneas

intrusivas, injetadas periodicamente (ou seja, as ‘subidas de magma’). O metamorfismo anormal

estaria relacionado aos momentos de “Revoluções do Globo”, como propunham os catastrofistas.

Quanto às cadeias de montanhas, sempre estiveram na mira dos naturalistas e filósofos naturais, em

virtude de sua associação sistemática com recursos minerais que estariam depositados em suas entranhas.

No final da década de 1820, mais precisamente em 1829, o mesmo Élie de Beaumont propôs que se

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poderiam identificar Sistemas de Montanhas – que, em nosso entendimento atual, equivaleriam a fases

tectônicas. A quantidade de sistemas propostos foi variável, indo dos quatro iniciais a 22, e talvez a mais

de 100, segundo ele mesmo previu, certamente estimulado por seu trabalho de mapeamento como

engenheiro de minas. E qual seria o motor dessas movimentações? Para ele, era o “arrefecimento da

Terra”, isto é, seu resfriamento desde o início em estado de fusão, numa linha de raciocínio que vinha,

grosso modo, de Buffon. Para Beaumont, o arrefecimento interno causaria a contração do material

e sua consequente diminuição de tamanho, provocando afundamento e pregueamento/plissamento

das capas rochosas. Em 1852, avança um pouco mais nas suas interpretações, comentando que certas

porções quebradas da crosta pareciam ter sido apertadas num torno, e reconhecendo que um bloco

de rocha pode “cavalgar” um outro (Gohau, 1992, p.139). Além disso, confere grande importância às

direções das cadeias montanhosas, propondo que se organizavam e distribuíam geometricamente, num

padrão de Redes Pentagonais, cuja orientação era variável no tempo. Essa geometrização, entretanto,

em muito enfraquecia a proposta, que acabou sendo abandonada.

Uma nova formulação para explicar o surgimento das cadeias montanhosas (processo já

então denominado ‘orogênese’) veio do norte-americano James Dana (1813-1895), autor de

manuais de grande impacto e de prolongado uso em diversos cantos do mundo. Em arti-

gos publicados no ano de 1873, Dana apresentou sua teoria que dava conta da formação de

montanhas, da origem dos continentes e dos oceanos, chamada de Teoria Geossinclinal, que

abordava e explicava os problemas dos afundamentos (subsidência), elevação (soerguimento)

e deformação (dobramento), assim como do metamorfismo – ou seja, todos os aspectos já

claramente presentes nas questões envolvidas na orogênese. De forma resumida e simplificada,

um geossinclinal seria uma fossa marítima, na qual a sedimentação é contínua durante longos

períodos, em consequência de seu abaixamento constante (subsidência) devido à dinâmica

interna e ao próprio peso dos sedimentos. Isso impediria que fosse completamente preenchido.

Ao se soerguerem, formariam as elevadas cadeias montanhosas. Esta teoria foi aceita e esteve

em voga até os anos 1970, aproximadamente, quando começou a ser definitivamente substituída

pela Tectônica Global. Mas este tema será objeto de um capítulo à parte.

Um último ponto merece comentário, dada sua relevância: a precisa idade da Terra. Seguindo-se

– e misturando-se, em parte, ao debate entre uniformitaristas e catastrofistas – estava o princípio da

transformação orgânica evolucionista, que acabou por ser progressiva e amplamente adotado (mas não

sem acalorados debates) na sequência da publicação, em 1859, de Origin of Species, de Charles Darwin

(1809-1882). Isso ajudou a confirmar as proposições de alguns de que a vida se havia desenvolvido

numa sucessão significativa de níveis, marginalizando a proposta excessivamente gradualista e cíclica

Page 13: HISTÓRIA DA GEOLOGIA II: DO SÉCULO XIX À DERIVA … · pécimes conectados apenas por suas semelhanças externas, passava a uma história mais verda-deiramente temporal do planeta

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AMBIENTE NA TERRA Evolução

de Lyell. Ao mesmo tempo, entretanto, a sucessão de mudanças – evolução – teria sido bem menos

brusca ou catastrófica do que outros pensavam, implicando, por conseguinte, um período de tempo

muito longo para a sua consecução. Nesse quadro, desenvolve-se a pleno vapor a Termodinâmica, e

Lorde Kelvin, figura de destaque nesse campo, aplica a 2ª Lei para desenvolver o conceito de entropia

ao resfriamento da Terra, partindo do calor inicial de seu estado de fusão. Esse trabalho indicava que a

Terra seria muito mais nova do que aquela proposta pelos Uniformitaristas, ou do que demandavam os

evolucionistas seguidores de Darwin. Contrariava também a formulação de Hutton, ao postular que o

planeta teria um começo e teria, certamente, um fim. Seguiu-se, por um bom tempo, um difícil debate

sobre a questão: leis matemáticas e físicas seriam aplicáveis a problemas geológicos? Muitos geólogos

propugnavam que a Terra tinha suas próprias leis, não redutíveis às leis gerais da Física. Apenas com a

descoberta da radioatividade na transição para o século XX e, com ela, uma fonte de geração de calor

além do original, foi possível rever os cálculos de Kelvin e restaurar a escala geológica de um tempo

muito longo. No entanto, quase por ironia, como o decaimento radioativo permitiu, no século XX,

a determinação precisa da idade de cada rocha (conhecida por datação absoluta), verificou-se que a

idade advogada pelos geólogos e biólogos no século XIX era, ainda assim, muito pequena, quando

comparada aos atuais 4,5 bilhões de anos admitidos para a Terra.

A partir daí abrem-se e aprofundam-se cada vez mais os temas de pesquisa da Geologia, num

processo de crescente diversificação. Apesar de tudo o que foi dito até aqui, muito ainda ficou

de fora. Mas uma parte destes conhecimentos será detalhada nos próximos tópicos.

Bibliografia

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história social e institucional. São Paulo: HUCITEC, 1997. 270p.

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