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Histórias de Marias Tatiana Santos Perrone organizadora Histórias de vida, lembranças doídas, momentos presentes, superações. Este é o Histórias de Marias, um livro produzido por mulheres que participaram do 7º curso Maria, Marias – realizado pelo IBCCRIM em parceria com a União de Mulheres de São Paulo. Ao longo de seis meses alunas, sob a coordenação da antropóloga Tatiana S. Perrone, narraram lembranças, colocaram corajosamente no papel, em forma de conto ou poesia, memórias de trajetórias de violências ou mesmo violações ainda presentes. Cada história é única, mas há um fio que perpassa todas – a fibra de mulheres em luta, que buscam o fim da violência de gênero e a construção de um mundo menos desigual e mais justo. Além das palavras, um delicado ensaio fotográfico, feito pelo fotógrafo Eduardo Mojzka, acompanha os textos. Esse livro não está sozinho, mas compõe um mosaico de tantas outras ações espalhadas pelo Brasil voltadas para a superação das violações que nos cercam. Já tendo cumprido com seu objetivo principal, que era justamente o de encorajar as Marias a elaborarem suas histórias e narra-las livremente, a missão agora é divulgar esta importante iniciativa que é o curso Maria, Marias e este belo produto, dentre tantos outros, que surgiu de seus encontros. Estamos juntas e em luta pelo fim das violências que nos oprimem. Estamos juntas e em luta pela igualdade de gênero. Boa leitura e boas lutas. Bruna Angotti Coordenadora do Núcleo de Pesquisas IBCCRIM Histórias de Marias IBCCRIM Agência Brasileira do ISBN ISBN 978-85-99216-42-2 9 788599 216422

Histórias de Marias - IBCCRIM · Rafael de Souza Lira Bruna Angotti Ana Gabriela Mendes Braga Carmen Silva Fullin Gorete Marques ... Antes Maria era só um nome. Hoje é um simbolo

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Histórias de MariasTatiana Santos Perrone

organizadoraHistórias de vida, lembranças doídas, momentos presentes, superações. Este é o Histórias de Marias, um livro produzido por mulheres que participaram do 7º curso Maria, Marias – realizado pelo IBCCRIM em parceria com a União de Mulheres de São Paulo. Ao longo de seis meses alunas, sob a coordenação da antropóloga Tatiana S. Perrone, narraram lembranças, colocaram corajosamente no papel, em forma de conto ou poesia, memórias de trajetórias de violências ou mesmo violações ainda presentes. Cada história é única, mas há um fio que perpassa todas – a fibra de mulheres em luta, que buscam o fim da violência de gênero e a construção de um mundo menos desigual e mais justo. Além das palavras, um delicado ensaio fotográfico, feito pelo fotógrafo Eduardo Mojzka, acompanha os textos. Esse livro não está sozinho, mas compõe um mosaico de tantas outras ações espalhadas pelo Brasil voltadas para a superação das violações que nos cercam. Já tendo cumprido com seu objetivo principal, que era justamente o de encorajar as Marias a elaborarem suas histórias e narra-las livremente, a missão agora é divulgar esta importante iniciativa que é o curso Maria, Marias e este belo produto, dentre tantos outros, que surgiu de seus encontros. Estamos juntas e em luta pelo fim das violências que nos oprimem. Estamos juntas e em luta pela igualdade de gênero. Boa leitura e boas lutas.

Bruna Angotti Coordenadora do Núcleo de Pesquisas IBCCRIM

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Agência Brasileira do ISBNISBN 978-85-99216-42-2

9 788599 216422

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Histórias de MariasTatiana Santos Perrone

organizadora

São Paulo2015

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INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM)Rua 11 de Agosto, 52, 2° andarCEP 01018-010 - São Paulo, SP, BrasilTel: (xx 55 11) 3111-1040 (tronco-chave)http://www.ibccrim.org.brTiragem: 1.500 exemplares

CDD: 345 CDU: 343.541

© Desta edição - IBCCRIMProdução Gráfica, capa e fotografias:

Revisão de texto:

P543h

Perrone, Tatiana Santos (org.)

Histórias de Marias / Tatiana Santos Perrone (org.). São Paulo: IBCCRIM, 2015.

71 p.

ISBN 978-85-99216-42-2

1. Violência contra mulher. 2. Violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. Violência

Familiar. 4. Lei Maria da Penha. I. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. II. Título.

Eduardo MojzkaTel: (11) 994-141-441 - [email protected]

MicroartTel: (11) 3013-2309 - [email protected]

TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOSExemplar de distribuição restrita e comercialização proibida.

Impresso no Brasil - Printed in BrazilJulho - 2015

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Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Diretoria da Gestão 2015/2016

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1.º Vice-Presidente2.º Vice-Presidente

1.º Secretário2.ª Secretária

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Juliana Garcia BelloqueMilene Cristina SantosAlexis Couto de BritoGiancarlo Silkunas VayHumberto Barrionuevo FabrettiCristiano Avila MaronnaBruno Shimizu

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Presidentes das Comissões Organizadoras 21.º Seminário Internacional

19.º Concurso de Monografias de Ciências Criminais – IBCCRIM

Atualização do Vocabulário Básico Controlado – VBCConcessão de bolsas de estudo e desenvolvimento

acadêmico

Comissão Especial IBCCRIM – CoimbraPresidente

Secretário-geral

Coordenadora- chefeCoordenadoras Adjuntas

PresidentaVice-Presidenta

Coordenadora dos projetos Promotoras Legais Populares e Maria, Marias

Sérgio Salomão ShecairaFábio Roberto D’Avila

Renato Watanabe de MoraisEleonora Rangel Nacif

Beatriz Dias RizzoRafael de Souza Lira

Bruna AngottiAna Gabriela Mendes Braga Carmen Silva FullinGorete MarquesMaíra Cardoso ZapaterMaria Amélia de Almeida TelesMaria Rosa RoqueNara RivittiTatiana Santos Perrone

Rute Alonso SilvaArlene RicoldiMaria Amélia de Almeida Teles

Núcleo de Pesquisas IBCCRIM

União de Mulheres de São Paulo

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Quando a violência nos atinge,são as Marias que nos fazem lutar.

Antes Maria era só um nome.Hoje é um simbolo de lutas e conquistas.

Viver sem violênciaé um direito das Muheres.

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Projeto Maria, Marias

Não se pode falar do Projeto Maria, Marias sem antes explicar sua origem em termos de conteúdo e metodologia e, sobretudo, em relação a sua proposta central que é a educação feminista em direitos sob uma perspectiva de igualdade de gênero, antirracista e antissexista na construção de uma sociedade justa e igualitária.

O Projeto de Promotoras Legais Populares foi introduzido no Brasil pela União de Mulheres de São Paulo (organização autônoma feminista criada desde 1981) juntamente com o grupo Thêmis/RS nos primeiros anos da década de 1990. Em 1994, foi organizado o Seminário Nacional de Introdução ao Projeto de Promotoras Legais Populares pelas duas entidades feministas, com o apoio do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo,

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com objetivo de mobilizar e organizar conteúdos e metodologias, com a participação de 35 lideranças feministas de diversos Estados brasileiros. No Estado de São Paulo, foi, então, criado o curso anual de Promotoras Legais Populares que começou na capital e que hoje se realiza em diversos municípios, onde foram formadas mais de 5 mil promotoras legais populares. Na cidade de São Paulo, o curso encontra-se em sua 20.ª edição, e por isso está sendo realizado o Encontro Comemorativo dos 20 anos dos Cursos de Promotoras Legais Populares, com a participação de diversas entidades e grupos de mulheres tanto da capital como do interior. São muitos os impactos deste projeto na vida das mulheres e da sociedade. A partir dos debates e discussões, as promotoras legais populares criam movimentos e organizações de mulheres, fortalecem práticas feministas em seus locais de trabalho, de estudo e de moradia.

É bom destacar que este projeto nasceu quando fazia cinco anos de promulgação da Constituição de 1988, a primeira a ser feita depois do triste e sombrio período da Ditadura Militar. Durante os trabalhos da constituinte as mulheres se mobilizaram e conquistaram direitos que até então não lhes eram reconhecidos. Por isso entendemos ser necessário o investimento na educação feminista em direitos para que a população feminina se aproprie dessas conquistas.

Quando em 2006, foi promulgada a Lei 11.340, que se tornou conhecida como Lei Maria da Penha, de imediato pensamos em desenvolver um curso específico sobre a lei e seus desdobramentos no cotidiano da vida das mulheres. No final de 2007, a União de Mulheres de São Paulo foi procurada pela Campanha Bem Querer Mulher/Unifem para desenvolver alguma atividade relacionada à implantação da lei. De imediato, apresentamos a ideia do curso e assim foi feito o primeiro em 2008, com a participação de 17 mulheres com o objetivo central de mobilizar e conscientizar mulheres para acompanhar e exigir a implementação da Lei Maria da Penha.

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A principal atividade é um curso anual, com 94 horas de duração, que capacita sobre a lei, serviços e ONGs que têm como meta o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres. Sabemos que para desconstruir a cultura patriarcal e sexista, interromper o ciclo da violência, há necessidade de criar condições para que se construam relações igualitárias de poder entre mulheres e homens. É necessário enfrentar as relações desiguais de gênero.

Infelizmente, as mulheres continuam a sofrer a violência doméstica e familiar e, no Brasil, a sua incidência é alarmante. Nosso país ocupa o 7.º lugar no ranking dos assassinatos de mulheres. A cada hora e meia, há um assassinato de uma mulher e, na maioria das vezes, é devido à violência de gênero. Portanto, temos muito o que fazer para reduzir, prevenir e erradicar a violência contra as mulheres.

A nossa perspectiva é alcançar a igualdade de oportunidade e de condições entre mulheres e homens. Oxalá, a alcançaremos um dia!

Por ora, o Projeto Maria, Marias pretende organizar e mobilizar mulheres para aplicação integral da Lei 11.340/2006.

A Lei Maria da Penha é um instrumento de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres e significa as mobilizações feministas que se deram nas últimas três décadas. Mas principalmente é o resultado da condenação do estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), em 2001. Na ocasião, o Brasil foi condenado por negligência e omissão em relação à violência doméstica e familiar contra as mulheres, quando foi apresentado o caso de Maria da Penha Maia Fernandes que sofria violência praticada pelo seu marido e a justiça brasileira não a tratou com o devido respeito e dignidade, atuando de forma inerte e conivente. Maria da Penha se tornou símbolo na luta contra a violência doméstica e familiar e contra a impunidade. Este foi o motivo pelo qual a lei ganhou o seu nome: Maria da Penha.

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A lei foi sancionada em 07.08.2006. Mesmo assim, continuamos a assistir a uma avalanche de atos de violência que afetam a vida das mulheres, em suas diferentes fases, acarretando prejuízos, muitas vezes irreversíveis, tanto às suas vítimas diretas como às suas crianças, à vizinhança e à comunidade.

Por isso a importância do Projeto Maria, Marias que prepara mulheres para que elas próprias e as demais que com elas convivam tomem a iniciativa da palavra e de usar suas vozes para darem um basta à violência. Preparar as mulheres para se fazerem ouvir, escutar e falar. A proposta é conseguir efetivar relações democráticas entre mulheres e homens de maneira a alcançar uma vida sem violência.

O conteúdo e a metodologia

O curso, realizado de abril a outubro ou novembro (por volta de 6 meses), contém atividades semanais, oferece informações sobre a Constituição Federal, os tratados internacionais de direitos humanos das mulheres e oferece reflexões sobre o conceito de violência contra as mulheres, violência de gênero e o ciclo da violência doméstica e familiar. Traz reflexões e análises sobre todos os artigos da Lei Maria da Penha. Informa sobre o histórico da lei, suas principais diretrizes, o conceito de violência doméstica e familiar nas suas diversas formas: física, psicológica, patrimonial, moral e sexual. Enfatiza como devem funcionar os serviços públicos, as delegacias de defesa da mulher e outras delegacias de polícia, a Defensoria Pública, o Ministério Público, o Judiciário e como deveria ser estruturado o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Mostra como criar condições para formular e analisar as medidas protetivas, como elas devem ser requeridas e encaminhadas.

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A metodologia aplicada parte do princípio da construção coletiva de conhecimentos e ações, oferecidos pelo conteúdo dos direitos e da própria Lei Maria da Penha, mas principalmente, nos saberes e experiências apresentados pelas participantes.

São realizados mais de 20 encontros e, pelo menos, visitas a cinco instituições responsáveis pela implementação da Lei Maria da Penha. Realizamos, por ocasião do aniversário da Lei (07.08) um ato chamado “Abraço Solidário às Mulheres em Situação de Violência” para manifestar o apoio à lei e os desafios colocados na sua aplicação. Os dois primeiros abraços foram feitos em frente ao Tribunal de Justiça para mostrar a necessidade de se criar os juizados de violência doméstica e familiar com o caráter híbrido, conforme o que diz a lei, de maneira a atender as mulheres nas áreas criminal e civil. O terceiro abraço, nós fizemos junto à Defensoria Pública para reivindicar a prioridade no atendimento às mulheres em situação de violência. O quarto abraço foi realizado no vão do MASP, na Av. Paulista. Ali reivindicamos a necessidade de se articular a Rede de Atenção às Mulheres em Situação de Violência. Em 2014, fizemos o abraço em frente à 1.ª Delegacia de Defesa da Mulher, que é o serviço mais procurado pelas vítimas e, no entanto, ainda apresenta vários problemas: não há o acolhimento necessário, as mulheres ficam expostas em um balcão, demora-se para fazer um boletim de ocorrência policial, fazem exigências descabidas para pedir a medida protetiva, entre outros problemas.

Em cada encontro semanal, abre-se um espaço de reflexão e para obter habilidades de comunicação, planejamento e organização e outras atividades que facilitem o exercício de liderança.

Estimula-se a prática solidária ente as mulheres de maneira que as participantes possam orientar e acolher outras mulheres em situação de violência e divulgar as diretrizes gerais da lei, de modo a sensibilizar profissionais e fortalecer as mulheres para que façam a denúncia e se conscientizem de que têm direito a viver sem violência.

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As atividades são: oficinas, palestras, apresentação de vídeos, debates, grupos de trabalho, visitas ao Judiciário, à Defensoria Pública, à Delegacia de Polícia, ao Centro de Referência da Mulher, ao Ministério Público, ao Hospital da Mulher, à Casa Eliana de Grammont, entre outros serviços.

Temos tentado fazer uso do “diário de atividades”, destacando-se registros de casos atendidos ou vivenciados na comunidade, notícias de jornais ou fatos presenciados na rua, no trabalho, denunciados na TV ou atividades realizadas pelas participantes relativas ao enfrentamento da violência doméstica e familiar.

O Projeto Maria, Marias teve seu primeiro curso em 2008, na sede do IBAP – Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, e, em 2009, o curso veio para o IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, onde foi tão bem acolhido. O IBCCRIM colocou sua infraestrutura, assim como profissionais, na coordenação e realização das atividades. Isso contribuiu para melhorar muito a qualidade do curso.

Em 2009, por ocasião da realização do 15.º. Seminário Internacional do IBCCRIM, foi realizada audiência pública (25/08/2009) com a Maria da Penha. Foram convidadas as participantes do Projeto e também os movimentos sociais, as promotoras legais populares e demais pessoas interessadas. O resultado é que a audiência cumpriu seu objetivo de divulgar a lei e também de denunciar as dificuldades que impedem sua aplicação e que representam ameaças concretas de esvaziar o conteúdo da lei tanto técnico quanto político.

O número de participantes do curso fica dentro do ideal que é de 15 a 25, de forma que se possam organizar grupos de 5 a 6 mulheres para participar de atividades teóricas e práticas. As participantes são colocadas em círculo, para que possam se comunicar com facilidade, trocando experiências, fazendo reflexões e análises e podendo ver o rosto de cada uma assim como sua expressão corporal. A participação

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em círculos coloca todas mais ativas e presentes no processo de construção dos conhecimentos. Estabelece também condições mais igualitárias entre as participantes.

A veiculação de informações e imagens é facilitada com o uso dos equipamentos instalados no auditório do IBCCRIM.

Outro detalhe que torna o ambiente ainda mais agradável é que, ao lado da sala onde funciona o curso, há uma máquina de café, que as participantes podem usar livremente.

As aulas expositivas são acompanhadas por debates e apresentação de audiovisuais. Muitas vezes, transformam-se em diálogos, rodas de conversa. As oficinas são temáticas e envolvem dinâmicas distintas desde trabalho em grupo, dramatizações, júri simulado e jogos.

Após essas atividades, são escolhidas as participantes que farão o resumo do conteúdo a ser apresentado na próxima semana. É uma forma de avaliar o que foi aprendido.

No final, é realizado um encontro comemorativo da finalização do curso com a entrega de certificados.

Todas essas atividades só foram possíveis até hoje graças ao apoio de Alessandra Teixeira, Aline Yamamoto, Caio Santiago, Fernanda Fernandes, Fernanda Matsuda, Carolina Costa, Bruna Angotti, Rafael Vieira (estagiário) e Tatiana Perrone. Por isso gostaria de registrar aqui os nossos sinceros agradecimentos a essas pessoas.

Amelinha Teles

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Histórias de Marias

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Histórias de Marias é um livro que teve sua primeira semente plantada na primeira aula da 7.ª edição do curso Maria, Marias. Uma primeira aula cheia de histórias emocionantes de Marias que superaram a violência e de Marias que ainda vivem em situação de violência. Após lágrimas compartilhadas por todos tive uma forte sensação de que aquelas histórias não poderiam ficar apenas entre os presentes e deveriam ser compartilhadas. A ideia foi apresentada ao grupo e imediatamente abraçada, sendo esse livro fruto do trabalho conjunto realizado com as alunas.

Nas próximas páginas você irá encontrar essas histórias e também histórias de outras Marias. São Marias que estiveram ou estão em situação de violência, Marias que compartilham a felicidade de poder contar que superaram e que lutam para que outras Marias não passem pelo que elas passaram. As violências foram várias, dentro e fora de casa, de conhecidos e de desconhecidos, além da violência estrutural fruto de uma sociedade desigual.

A escolha do título do livro foi inspirada no nome do curso e sugerido pelas alunas. Nós entendemos que as histórias aqui contadas não foram apenas vividas por uma pessoa em particular, e sim que elas contêm histórias de outras tantas Marias que não tiveram a oportunidade de poder narrar sua própria história, ou por falta de espaço ou por que a violência acabou por lhes retirar a vida. A esperança surge ao lermos as histórias aqui narradas por Marias que quase perderam a vida e que hoje podem não só narrar esses acontecimentos, mas também afirmar que vivem uma vida sem violência.

Aproveito para agradecer a colaboração das alunas do 7.º curso Maria, Marias na construção do livro e a generosidade de compartilhar suas histórias e as histórias de outras Marias que cruzaram os seus caminhos.

Boa leitura.

Tatiana Santos Perrone

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Lá vai Maria, acorda bem cedo todos os dias e lembra-se de tudo como se fosse o primeiro dia. Faz tudo com a mesma alegria, tudo limpo, tudo bem feito, todos os dias. Todos que conhecem Maria sabem como ela é admirada: uma boa mãe e excelente esposa – comentam – faz tudo e não reclama de nada, sempre pensa em tudo para nada faltar.

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Lá vai Maria, levar suas filhas para escola, cumprimenta Ana e Claudinha, que da janela a admiram, com um sorriso largo confirma às vizinhas sua alegria. Mãos fortes seguram suas crias, com a esperança que tenham um belo dia. Maria faz tudo sempre para que elas vivam o que não viveu, sejam felizes e tenham uma história diferente.

Cheirinho bom, almoço pronto, prato predileto na mesa. Maria já está no tanque, roupas perfumadas estendidas no varal e um cesto cheio de roupas para passar. Com rodo na mão, brilha o chão, nem sente a correria de tantas tarefas, faz tudo sem sentir, sem esquecer dos detalhes. Chinelos no pé do sofá, pensamento no jantar, aguarda o tempo passar para buscar suas filhas no portão. Maria vive para agradar.

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De volta da escola, o banho, o jantar, a lição, direto para a cama sem reclamar. Maria ansiosa aguarda, nem vê o tempo passar, espera convicta de que nada faltou, nada pode faltar. A porta bate, o coração acelera, chegou o “Seu João”, homem respeitado e bem quisto por todos, exemplo de cidadão. O provedor, o dono de tudo, João. Homem forte, bem vivido, chega do trabalho, encontra na poltrona seu chinelo, lembra de tudo como se fosse o primeiro dia, senta-se confortável, mas não lhe dá nenhum sorriso, parece não ver Maria, logo liga a televisão e aguarda o jantar.

Lá vai Maria, tremendo sem disfarçar, faz tudo sem erro, sem uma palavra sequer, sem qualquer sorriso ou agrado. Já está acostumada com a ausência de João, mesmo quando ele está presente, tantos anos desta mesma maneira, ela não reclama mais, não lembra se um dia reclamou. Após o jantar, lava a louça correndo, o martírio já vai começar, umas doses a mais faz João falar e ele não para de falar. O forte João trabalhou o dia inteiro, se vê no direito de falar, sem importar com o que Maria sente, seguem as palavras, perdem-se entre os palavrões, baixaria, todo dia. A lágrima tímida de Maria escorre pelo seu rosto, ouve tudo em silêncio como no primeiro dia.

As palavras prosseguem perdidas e fora de ordem, mas são sempre as mesmas todo dia: fala dos seus cabelos, dos seus seios e da feiura do seu sorrido, fala do seu cheiro, fala que nada vale e que ninguém a vê, que nada sabe, fala do seu vestido e também do seu nariz. Sorri e continua sorrindo, sussurra baixarias enquanto Maria reza baixinho para que o dia acabe, para que o sonho de suas filhas seja lindo e profundo. Quando se deita, continua ouvindo tudo que João diz, todos os dias, e no fundo acredita em tudo, a tanto tempo ouve tudo isso, aguarda que o cansaço o faça adormecer.

Descanso, é o que Maria precisa, sabe que lhe espera um novo dia com muito para fazer, os olhos se fecham, mesmo com o coração dolorido. Todas as noites ela encontra seu travesseiro, como seu único amigo e companheiro, desabafa sem fazer nenhum barulhinho, as

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lagrimas dizem tudo o que não pode dizer. Tantos anos ouvindo tudo aquilo, quanto tempo não recebe carinho, acha que já esqueceu seu sorriso e quem realmente é.

Lá vai Maria para um novo dia, João sai respeitoso para o trabalho, dá um beijo nas filhas, bate a porta e sai, Maria ele não vê. Prepara o café como todo dia, recebe o abraço de sua filha Lia, dizendo o quanto lhe quer bem. Uma lágrima escorre e logo é escondida, abraça Lia e lhe retribui o carinho, abraça também a Julia, mesmo com os braços adormecidos. Apaga suas mágoas com aqueles abraços de braços curtos que a envolve, no rosto renasce o sorriso.

Lá vai Maria, fazendo o que faz todo dia, já não sente o mal que vive todas as noites para proteger e manter unida sua família. Sorri novamente para Ana e para Claudinha lhe diz “Bom dia”, que admiram mais uma vez seu caminhar. Maria acha que a vida é mesmo assim, que nasceu com uma sina e nada pode fazer, não escolheu, foi escolhida, nunca amou, apenas viveu o que a vida lhe preparou, assim vive desde o primeiro dia. Maria não sabe que pode mudar tudo o que vive, que não precisa ouvir tudo o que ouve, que é violência o que sofre e que tudo pode mudar. Suas filhas, seu bem mais precioso, ainda não entendem, talvez um dia sintam o que a mãe sente sem reclamar.

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Eu sou Maria. A minha infância e começo da vida adulta eu passei em uma cidade do nordeste brasileiro. Após a morte de minha mãe, eu e minhas três irmãs fomos morar com o meu pai e sua esposa.

Meu pai era de família militar e nós sentimos na pele toda a sua rigidez e violência. Apanhávamos muito e por qualquer motivo. Aos 16 anos apanhei novamente, mas dessa vez foi para defender a minha irmã doente que havia desobedecido a ordem

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de minha madrasta de não ir a um passeio da escola. Minha irmã tinha cateteres pelo corpo e eu temi pelo que pudesse acontecer com ela e pela primeira vez enfrentei o meu pai. Nesse dia passei a minha primeira noite na rua.

Quando voltei recebi uma sentença: “Ou eu ou ela!”. O meu pai escolheu a esposa e eu tive que morar na rua. A rua, um lugar sombrio e inseguro, como dormir ali? Fui para a rodoviária, fiz uma amiga e nós nos revezávamos para poder descansar. Sem comida, sem roupa,

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sem cama. Nunca roubei, nunca usei drogas. Minhas irmãs passavam por mim e fingiam não me conhecer. Promessas de ajuda apenas de desconhecidos, mas como confiar? Onde eles queriam nos levar?

Um dia apareceu um casal e nos ofereceu ajuda e resolvemos tentar a sorte. Foi nesse dia que conheci o cárcere privado. Trabalhamos costurando saco de pão e vivíamos cobertas de farinha branca. Para comer apenas pão duro e feijão preto. Consegui fugir e resgatei a minha amiga com a ajuda de conhecidos do meu pai. Fomos para as ruas novamente.

Tomávamos água para nos alimentar. Fome, sono, frio, fraqueza. Não queria passar o meu segundo Natal na rua. Bati em uma porta e recebi uma ajuda verdadeira. Fui acolhida e passei a ter um teto novamente. No radio escutei sobre uma seleção. Joana me emprestou uma roupa e sapatos e eu fui atrás de um sonho. Dois dias depois ligaram para avisar que eu havia sido selecionada. Nem acreditava que aquilo estava acontecendo comigo. Trabalhei muito, viajei e logo consegui o meu próprio canto.

Na minha casa acolhi todos os que me pediram ajuda, inclusive uma de minhas irmãs. Era uma mulher independente e aos 21 anos conheci o que era paixão. Apaixonei-me à primeira vista e noivamos para a alegria de nossas famílias. Não pudemos nos casar no papel, pois João era menor de idade. Fomos morar juntos.

Um dia escutei uma conversa proibida entre João e sua mãe. O homem por quem me apaixonei mudou completamente. Eu já estava grávida de nosso primeiro filho quando comecei a apanhar. Ele me espancava, humilhava e inventava histórias. Tive que largar o emprego. Vivia trancada em casa e nem na janela eu podia ir. A minha alegria morreu, eu morri por dentro.

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Nasceu o meu primeiro filho e no resguardo aconteceu o pior: eu fui violentamente estuprada pelo meu marido. Ele me amarrou com as cordas do varal, rasgou a minha roupa. Eu ainda tinha pontos não cicatrizados do parto. Corri, gritei por socorro. Percebendo que outras pessoas iriam aparecer ele me desamarrou e me ameaçou caso eu contasse alguma coisa. Bateram na minha porta, entraram no meu quarto e eu sem poder levantar porque sangrava, só repetia que tinha sido uma briga normal de casal sem conseguir olhar ninguém nos olhos.

Queria morrer, pois já estava morta por dentro. Pedi para ele cravar a faca que segurava em meu peito. Ele não teve coragem e resolveu fugir para São Paulo e me largou sozinha com o nosso filho.

Comecei a passar mal e fui a vários médicos e ninguém descobria o que eu tinha. Falavam que era um mioma. Seis meses após o estupro recebi uma notícia inesperada: eu estava grávida! Eu ia ter um filho fruto de um estupro. Após um parto difícil e extremamente dolorido nasceu a minha segunda filha. Não olhei para ela. Não conseguia olhar para ela. Não dei de mamar, não consegui cuidar. Deixei-a com minha família e vim apenas com o menino tentar sozinha a vida em São Paulo.

Cheguei sem nenhum cruzeiro no bolso. Comecei a trabalhar de doméstica e a reconstruir a minha vida. Depois de dois anos a minha filha veio morar comigo. Ela não me conhecia e fugiu de medo. Eu também não a conhecia e não a amava. Estamos juntas até hoje e não foi nada fácil, não é fácil. Hoje posso dizer que gosto dela, mas não a amo. Não desejo que ninguém passe pelo o que eu passei.

Em São Paulo reconstruí a minha vida e tive mais três filhos. Casei novamente e estou casada há 20 anos. Voltei a estudar e estou concluindo a faculdade em Serviço Social. Voltei a ser uma pessoa alegre e hoje posso dizer que vivo uma vida sem violência.

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Eu sou mais uma das tantas Marias existentes no Brasil...

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Pretendo aqui relatar minha história de vida, resumidamente, até os dias atuais e creio que com ela impulsionar muitas Marias a se libertarem da violência e de toda ditadura social que nos é imposta desde o ventre materno.

Tive uma criação muito severa. Sou a filha caçula de uma família numerosa, sou a 11.ª, e nem por isso fui poupada das agruras de uma criação bastante machista, onde ouvia minha mãe dizer várias vezes para nós, filhas mulheres, que as outras mães deveriam segurar suas éguas, porque os cavalos dela, que no caso são meus cinco irmãos homens, estavam soltos. E com esse pensamento cruel fui educada, ouvindo que só namoraria um homem e esse seria para sempre o meu marido, pai dos meus filhos e meu total provedor. Assim fui criada dentro de uma Igreja Evangélica, e sabendo que somente a morte poderia pôr fim a meu futuro matrimônio.

Casei aos 18 anos e de acordo com os dogmas da minha educação: virgem, inocente e com o meu primeiro e único namorado. Ele não era como eu, virgem e pudico, pois vinha de uma família menos rígida e foi para aquela denominação religiosa quando já era maior de idade. Sendo assim, casados e cada vez mais fincados dentro da religião, tive meus três filhos. A cada gestação e filho nascido, meu marido se tornava mais agressivo comigo e com os filhos, cheio de estupidez e impaciência. Dentro de casa um algoz, na rua com os estranhos ele era um cavalheiro.

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Aos poucos ele foi se distanciando da família, tornou-se extremamente amargo, agressivo, mas sempre passava a imagem de um homem exemplar, que morava em uma casa maravilhosa, confortável, com carro importado, filhos em escola particular, ótimo plano de saúde, empregada doméstica e toda a família praticava diversas atividades físicas na melhor academia da região. Minha família adorava hospedar-se na minha casa quando iam passear no interior, porque desfrutavam de muito conforto e alimentação com muita fartura. Financeiramente não faltava nada para nós.

Depois de oito anos de casada, o meu marido já era cooperador da igreja que frequentávamos há alguns anos, porém a nossa convivência em casa era péssima, pois eu era vítima de suas maldades, sofrendo todo tipo de violência: sexual, física, psicológica, moral etc. Os nossos filhos viviam com medo do que poderia nos acontecer. Ele também começou a agredi-los, até mesmo com armas brancas, pois eles não concordavam com seu machismo e autoritarismo desenfreado.

Nesse ínterim, me vi com 21 anos de casada e 39 anos de idade. Sempre carreguei sozinha o peso da responsabilidade de criar e educar os nossos filhos, e sendo maltratada devido ao ciúme doentio que ele tinha, inclusive dos próprios filhos, de meus parentes e de minha mãe e meus irmãos. Muitas vezes quis me enclausurar dizendo que era para me proteger de pessoas más. Percebi que não queria mais aquela vida e resolvi pedir a separação, o comuniquei e ele retrucou dizendo que iria me matar. Como insisti na separação, ele disse que iria matar um dos filhos para que eu sentisse a dor que ele sentia quando eu falava em separação. Por um ano dormimos em quartos separados, mesmo que por vezes ele quisesse arrombar a porta do quarto onde eu estava. Os nossos filhos, na época adolescentes, interviam para que eu não sofresse um estupro.

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Pedi ajuda a minha família que morava na capital de São Paulo, e no dia 26 de julho de 2006, meu irmão foi me buscar com meus filhos. Eu estava com 40 anos e meus filhos tinham 17, 16 e 7 anos. Era um domingo e ele tinha reunião no ministério em Araraquara e só voltaria às 17h. Meu irmão me buscou às 12h30. Fomos morar na zona leste de São Paulo em uma edícula minúscula, sem nenhum conforto, dormindo no chão, e sem condições básicas necessárias para sobrevivência. Lá residimos durante seis meses. Comecei a trabalhar fazendo faxina, passando roupas e cuidando de crianças pequenas.

Logo depois que cheguei a São Paulo, procurei a Defensoria Pública e fui orientada a não entrar na justiça requerendo meus direitos e dos filhos. A advogada disse que por ser ele um homem violento poderia nos localizar e cumprir a promessa de nos matar. Decidi arquivar o processo. Também fomos encaminhados para passar por um psicólogo. Ao todo foram três sessões em dias alternados e previamente agendados pelo Poder Público. O psicólogo, que tinha por sobrenome Querido, após as três sessões me parabenizou por ter conseguido criar os meus filhos em meio a toda violência sofrida sem deixá-los “traumatizados” e afirmou que a separação não os deixaria com sequelas e que era um caso muito diferente do que ele estava acostumado a atender. Desejou-me boa sorte, e eu lhe disse que estava no ponto zero negativo de minha escala da vida. Ele respondeu que eu era privilegiada por ter filhos ótimos, os quais eu soube criar, e que eu era uma mulher forte que apenas estava partindo do zero, porque o negativo é quando precisa de acompanhamento psicológico por anos ou para sempre, devido ao grande sofrimento psicológico. Ele disse que o meu caso era bem mais fácil de resolver, era só trabalhar e continuar todos estudando que daríamos a volta por cima dentro de pouco tempo. Conversei com a Assistente Social da Defensoria, Dona Alice, a mesma que nos encaminhou ao psicólogo, e pedi que me enviasse para um abrigo junto com meus filhos. Ela disse que não poderia fazer isso, fiquei triste, porque tinha muito medo de que ele nos localizasse, embora ele não gostasse da minha família e não os visitasse. Por precaução, acabei trazendo comigo todas as agendas

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com endereços e números telefônicos, de maneira que ele só pudesse ir até a casa da minha mãe, que era na mesma cidade. Não forneci o meu endereço para a minha mãe, apenas ligava uma vez por semana do orelhão para dar notícias e saber como ela estava.

Segui em frente. Passado cerca de dois meses, consegui uma vaga como entrevistadora na empresa Ipsos Brasil, e posteriormente no Ibope. Trabalhei por cinco anos como autônoma, todos os dias, inclusive sábados, domingos e feriados, para que pudéssemos ter uma vida digna.

Dois anos depois, em 2008, descobri que após nossa “fuga”, ele teve coragem de fazer mais uma violência contra mim, a patrimonial. Eu tinha talões de cheque e cartões de crédito em meu no nome, mas quem sempre administrou tudo foi ele, que inclusive assinava os cheques. Para se vingar, ele passou cheques e estourou todos os limites dos cartões de crédito deixando-me com uma dívida de 30 mil reais. Quando fugi, decidi não levar nada comigo, para que ele não tivesse como me localizar. Acabei descobrindo a dívida após o meu filho, que trabalhava em uma imobiliária, fazer uma pesquisa para saber como estava o meu nome. Tínhamos essa preocupação por conhecer a natureza perversa dele. Já na época da separação, todos os créditos que haviam sido feitos em meu nome para comprar pertences para ele, não haviam sido pagos. Eu fui pagando as lojas aos poucos até quitar tudo e ficar em paz. Por isso pensamos que se ele não pagou o que estava usando, o que será que ele tinha feito com os talões de cheque e cartões de crédito que estavam em meu nome e em poder dele? Desesperei-me na época, chorei muito, pois tive uma educação severa demais quanto à dignidade de pagar o que se deve e preservar o nome. Entrei em contato com o Banco do Brasil, informei que na data dos cheques e uso dos cartões já estava separada e que não tinha feito nenhum daqueles gastos absurdos, que não estava em Barretos e região e já morava em São Paulo. Eles disseram que por não estar separada legalmente e não haver comunicado à instituição financeira, tenho que arcar com a dívida, dívida que hoje eu não

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tenho nenhuma possibilidade de quitar. O que fazer? A vida continua e para dizer a verdade, eu deixei isso de lado para não sofrer e fui tocar minha vida da melhor maneira possível, ou seja, trabalhando muito para manter minha dignidade e a dos meus filhos.

Nesse mesmo ano, comecei a cursar faculdade de Serviço Social. Trabalhava ininterruptamente para pagar a faculdade e o aluguel da kit net onde morávamos. No segundo ano do curso, entrou uma tutora nova e tive a impressão de conhecê-la, mas não lembrava de onde. Um dia ela pediu para que eu chegasse mais cedo no curso e a procurasse na sala dos professores. Na segunda-feira seguinte cheguei uma hora antes da aula e ela já me aguardava e fomos para uma sala reservada. E, então, qual não foi minha surpresa, ela me disse que há uns três anos ela tinha atendido uma mulher muito educada, fina, e que parecia muito frágil, delicada e falava muito baixo, com seus três filhinhos muito bem educados e que tinha fugido do marido violento, de uma cidadezinha do interior de São Paulo, e que fisicamente eu lembrava muito aquela mulher. Ela disse que esse caso havia mexido muito com ela, porque vir para uma selva de pedras como São Paulo com três menores, pareceu muito perigoso, então ela tinha o desejo de saber o que havia acontecido com aquela família, já que a mulher nunca mais havia voltado à Defensoria, como é de costume, e simplesmente havia desaparecido. Imaginem qual não foi a minha surpresa ao descobrir que minha nova tutora da faculdade era a Dona Alice, Assistente Social da Defensoria. Chorei muito e disse para ela que era eu sim, e que a atitude dela havia me levado a ter certeza em cursar Serviço Social, porque queria entender por qual motivo ela não encaminhou a mim e a meus filhos para um abrigo, vendo a situação, que estávamos na casa de parentes. Ela me abraçou e choramos juntas. Um choro de alegria e de vitória. Vitória por estar ali estudando e vencendo, e alegria por saber que consegui marcar a vida daquela mulher, e dela por saber que eu e meus filhos estávamos muito bem, todos estudando e trabalhando, exceto a caçula que só estudava. E nessa segunda-feira pude ouvir a sua justificativa por haver nos negado o abrigo público. Alice disse

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que ao ouvir minha história e de meus filhinhos, viu que éramos uma família muito diferente do que estava acostumada a atender e que meus filhos eram muito puros e educados, falavam baixo e tinham bons modos e que eu era uma mulher muito educada e que os abrigos não condiziam com o nosso perfil familiar. Ela analisou e achou melhor me deixar morando de favor e disse que o ambiente é muito pesado e pensou que poderíamos sofrer muito, pois nosso contexto de vida era muito diferente. Disse também que viu um brilho nos meus olhos naquele dia, embaixo de toda aquela fragilidade e pensou: Essa mulher vai vencer! Depois desse ano, ela saiu da faculdade e parece que foi morar na Europa. Porém, antes de sua mudança em uma conversa informal, afirmou que agora eu havia me tornado uma outra mulher, muito segura e me parabenizou pelas conquistas alcançadas.

Em 2010, após três anos de separação, divorciei-me. Para não ter que reencontrá-lo, assinei uma procuração abrindo mão de todos os meus direitos, pois, sinceramente, espero nunca mais vê-lo e muito menos ouvi-lo!

Em 2010, também mudamos da kit net para um edifício localizado na mesma rua, mas que tinha um apartamento bem pequeno, só que com o dobro do tamanho. Ele tinha quarto, sala, um corredor que chamamos de cozinha e um banheiro. Estávamos super felizes em ter mais espaço, mas quando íamos fazer três anos nesse local, a proprietária resolveu vender e me pediu uma proposta, pois gostava muito de mim e conhecia minha história de vida. Fiz uma oração muito sincera a DEUS e disse que não aguentava mais mudar, não tinha um fiador e estava muito cansada da labuta diária, para que ELE tivesse misericórdia de mim e dos meus filhos. Passado um mês, a proprietária foi até o meu lar, com o seu filho caçula, e perguntou qual era minha proposta, já que o advogado dela havia feito uma

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oferta para comprar à vista. Meu filho tinha feito uma avaliação na imobiliária em que trabalhava e disseram que se ela pedisse 160 mil reais, que era para comprarmos correndo, porque o imóvel está localizado no centro de São Paulo. Resolvi perguntar quanto o advogado tinha oferecido e ela respondeu 35 mil reais, mas que para mim ela daria um desconto. Fiquei surpresa com o preço e então eu lhe disse que em cinco anos em São Paulo, da maneira que cheguei e trabalhando como uma desvairada, eu havia conseguido juntar apenas 12 mil reais e que poderia dar de entrada no apartamento e pagar o restante como um aluguel. Ela parou, pensou por um tempo e perguntou ao filho o que ele achava, e ele disse: “Você é quem sabe. O que fizer está feito!” Então ela concordou e dois dias depois, uma segunda-feira, fiz a transferência do valor para conta dela, e na terça-feira fomos ao Cartório passar o contrato de venda para o nome do meu filho. Conseguimos quitar o apartamento em dois anos, trabalhando eu e os meus filhos em dois empregos, sem ter sábado, domingo e feriados. Eu agradeço a DEUS, que creio que tocou no coração dessa senhora e me proporcionou esse grande bem que é poder ter o meu próprio imóvel comprado e pago com o meu próprio suor e ajuda dos meus filhos.

Além da alegria da casa própria, também consegui concluir a faculdade sem nunca ter deixado de pagar uma mensalidade, sem ficar de exame ou DP. Sempre tive uma preocupação grande em como eu iria atuar dentro da minha área de formação. Trabalhava arduamente como autônoma, mas sabia que eu não tinha nenhuma chance dentro do mercado de trabalho. Fiz meu estagio voluntário e depois de encerrado, sempre que eu podia, eu ia à instituição fazer voluntariado. Nesse meio tempo, a Assistente Social ficou doente e se afastou. Eu, já sendo formada, fui convidada a trabalhar lá. Foi algo totalmente inesperado, e eu não credito tudo isso apenas a sorte, mas creio que DEUS cuida de mim.

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Ainda quero deixar claro que devido a minha condição financeira ter ficado muito precária, praticamente toda minha família se afastou de mim. Diziam que eu deveria parar de besteira e voltar com meu ex-marido, que eu era muito orgulhosa e que estava passando dificuldades porque queria. Diziam que ele me amava muito e que eu devia estar louca por deixar minha vida no interior para vir para São Paulo com três filhos menores e dependentes. Tudo isso porque eu sempre enviei dinheiro quando eles estavam em dificuldade financeira, procurava ajudar escondido. Quando essa fonte secou, eles se afastaram de mim, pois não queriam ter obrigação de solidarizar-se comigo. O afastamento aumentou muito quando meu filho do meio, na época com 16 anos, assumiu ser homoafetivo. Essa foi a gota d’água que faltava para chegarmos quase a exclusão total familiar, mas tudo isso só nos fez ficar mais fortes e unidos.

Hoje, meu filho mais velho de 26 anos mora em Balneário Camboriú, faz faculdade de Logística e trabalha dentro da sua área. O segundo está com 24 anos, terminou a faculdade de Geografia e é professor efetivo com acúmulo de cargo na rede pública estadual, sendo que no último concurso passou em primeiro lugar da nossa região em Geografia. A minha caçula está com 17 anos, terminou o ensino médio e vai começar a cursar Odontologia. Com a ajuda de todos, a minha e a dos seus irmãos, e eu creio a de DEUS, ela vai conseguir concluir esse curso, que é seu sonho desde a primeira infância.

Em 2014, eu consegui obter minha carteira de habilitação. Por muitos anos ouvi de meu ex-marido que eu não tinha competência para tirar minha habilitação, mas, ao realizar os testes fui aprovada de primeira em todas as etapas.

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Tudo o que eu passei com o meu ex-marido não tinha ainda sido nomeado por mim até o ano de 2012, época em que fiz o curso de Promotoras Legais Populares (PLPs). Nesse ano me vi descobrindo o quanto fui uma mulher em situação de violência doméstica desde o nascimento. Foi difícil me desfazer de todos os preceitos e amarras deterministas e machistas sobre a figura feminina na sociedade, e que eram predominantes em minha vida e me mantinham acorrentada e submissa a toda sorte de maus tratos por serem tão naturalizados e disseminados. Diante disso, fui me empoderando de mim mesma e de todos os direitos que me foram negados durante a minha existência. Assim, o curso de PLPs contribuiu para que eu conseguisse trilhar um novo caminho, onde eu me sinto Mulher e dona do meu destino. E hoje, após o curso Maria, Marias, posso dizer que saio de mais essa jornada da minha vida com muito mais conhecimento e sabedoria para lidar com a violência doméstica e poder, com sabedoria, ajudar toda mulher vítima de violência, e dessa maneira jamais permitir nenhum tipo de violência contra mim ou contra mulheres que estejam dentro do meu contexto social, ou que venham a cruzar o meu caminho. Sinto-me fortalecida para continuar a batalha no enfrentamento da violência contra mulheres e todas as minorias.

Quero aqui agradecer do fundo do meu coração a paciência e carinho que sempre recebi de minhas lindas e queridas amigas do curso, da nossa Coordenadora e muito amada Tatiana e de todas as mulheres maravilhosas que passaram pelo IBCCRIM para nos dar aulas, e que me fizeram entender melhor sobre os nossos direitos e como exigi-los dentro de nossa sociedade capitalista, machista e patriarcal.

Essa é a minha biografia até o presente momento. Gostaria de agradecer ao IBCCRIM por disponibilizar esse espaço que se tornou um local de combate e enfrentamento de todo o tipo de violência às quais as mulheres são submetidas em nossa sociedade.

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Sou mais uma Maria perdida nesta grande metrópole, nessa selva de pedra...

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Tudo começou aos 16 anos de idade quando eu conheci o único homem da minha vida, meu marido José João. Nós nos conhecemos em Alagoas, onde morávamos. Foi amor à primeira vista. Nós nos casamos e logo veio o alerta: “Aqui não temos como sobreviver!” Meu sogro era agricultor e cedeu uma porção de terra para plantio de nosso sustento, mas meu marido, acostumado já com a vida na cidade, não conseguiu se adaptar. Resolvemos ir para São Paulo onde tínhamos avós, tios e irmãos. Chegamos no dia 8 de abril de 1966 somente com uma mala e o primeiro filho na minha barriga. No mesmo ano, no dia 4 de setembro, nasceu o meu primeiro filho e logo conheci o outro lado do meu marido: violência, decepções e brigas por ciúmes.

A minha história é de muito sofrimento e não vou relatar tudo o que aconteceu na minha vida. Gostaria de falar apenas que foram anos de sofrimento físico e psicológico e que o meu marido tentou me matar várias vezes.

No decorrer do tempo e de muito trabalho chegamos a adquirir uma quantidade de bens para levar uma vida confortável, porém falsos amigos o fizeram perder quase tudo, ficando apenas com um terreno com uma casa em ruínas. Foi nessa fase que ele me pediu perdão e eu fiquei ao lado dele, e novamente lutamos e conseguimos construir a casa dos nossos sonhos e um carro do ano. Nesse mesmo ano ele teve um infarto fulminante.

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O que tenho a dizer a vocês é que eu tive que ter muita sabedoria para conseguir viver com esse homem violento. O meu modelo de educação não me fez ver outra opção a não ser aguentar até o fim. Não acho certo, nos dias de hoje, uma mulher, mesmo que tenha quatro filhos, ser obrigada a sofrer calada para não destruir um casamento ou por medo de ficar sozinha e perder o rumo da educação dos filhos. Vi o filho de algumas mulheres que se separaram irem para a criminalidade e era disso que eu tinha medo. Acreditava que para os meus filhos era bom com ele e pior sem ele. Meus filhos nunca me decepcionaram em nenhum aspecto, pois o que aprendi com a minha mãe foi suficiente para dar uma boa formação, principalmente moral. Meus quatro filhos são a razão da minha vida.

Hoje eu vivo sem me preocupar com o amanhã. Lembro-me de minha infância, com seus momentos tristes e alegres. E penso em quantas vezes Deus me deu livramento até de morte por parte do meu marido. Tento reciclar aquilo que me fez sofrer e transformar o sofrimento na força para ir em frente nesse caminho de ajudar outras mulheres a evitar passar pelo o que eu passei.

Para concluir vou citar uma frase:

“A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos” (Charles Chaplin)

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a princípio um rapaz trabalhador e dedicado à família e a tudo o que fazia. Porém, já no início de namoro José se apresentava muito ciumento e eu não gostava daquele controle que tinha comigo, mas pensava que talvez fosse por ele ser quase oito anos mais velho do que eu.

Passaram os anos e José continuou com muito ciúme e não deixava que eu trabalhasse fora, pois dizia que me dava de tudo e que gostaria de me encontrar em casa quando ele chegasse do trabalho.

Depois de dois anos de casados tivemos o nosso primeiro filho, um menino lindo, pesando quase quatro quilos. Com a chegada do nosso filho ficaria muito mais difícil minha recolocação no mercado de trabalho. Sem a minha mãe por perto, quem poderia me ajudar? José começou a nos deixar em casa nos finais de semanas e sair com os amigos para o jogo de futebol. Voltava para casa cheirando a bebida e a cigarro. Ele tinha o vício do jogo e muitas vezes saía no sábado à noite e só chegava domingo pela manhã. Eu e meu filhinho ficávamos sozinhos à noite.

No dia 09 de janeiro de 1982, aos 20 anos de idade me casei com José,

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Quando eu questionava por que ele ficava à noite jogando, José respondia que isso é coisa de homem e que lugar de mulher é em casa cuidando dos filhos. Essa situação me entristecia muito, pois eu sonhava em trabalhar, estudar e construir uma família sempre junto com meu esposo.

Os anos passaram e tivemos uma menina. Agora eu pensava que o meu sonho de me tornar uma mulher independente estava cada vez mais distante. José não me ajudava com as crianças. As crianças estavam crescendo, precisavam de mim e em breve já iriam para a escola e a minha situação se tornaria muito mais complexa.

A ausência de José nos finais de semana foi me deixando uma pessoa triste e melancólica, a ponto de passar a noite chorando. Eu via que não tinha um marido para me acompanhar em algum lugar, sair comigo e com as crianças. Não tinha o marido que sonhara. Tudo que eu fazia era somente na companhia dos meus filhos.

Sofri anos de angústia com seu desprezo e sem saber nem mesmo onde ele passava a noite jogando. Pensava em me separar de José. Mas como me separar? Para onde iria com as crianças? Assim, fiquei muitos anos suportando tudo calada, pois não tinha ninguém com quem eu pudesse contar para ajudar a olhar as crianças para eu trabalhar e dar um basta naquela situação.

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Um dia conheci Maria, uma mãe que levava a filha na mesma escola que eu levava os meus e fizemos amizade. Maria disse que vendia roupas no nosso bairro, que ela ia até o cliente oferecer sua mercadoria. Ela me convidou para revender suas roupas, e falou que pelas vendas que eu fazia receberia uma comissão. Fiquei feliz, pois agora eu podia cuidar da casa, das crianças e ganhar o meu dinheiro.

Quando José chegou eu contei a novidade. José ficou muito bravo e disse que eu queria sair de casa para encontrar outro homem e que mulher não precisa sair de casa, lugar de mulher é dentro de casa e que eu tratasse de esquecer essa história. Comecei a chorar e minha vontade era de acabar com a minha própria vida. Eu não via saída ao lado de José, uma pessoa ciumenta, ignorante e que só me puxava para baixo.

Os meninos já estavam grandinhos, eu os levava à escola e, depois, mesmo contrariando José, ia para um trabalho de meio período. À tarde saía do meu trabalho, pegava as crianças na escola, ia para casa e os ajudava a fazer as lições de casa. Comecei a me interessar em voltar à sala de aula. Terminei o ensino médio e depois entrei na faculdade, onde me formei em Serviço Social. Hoje sou uma mulher independente e livre das ameaças que sofri por anos em minha vida. Meu filho é advogado e minha filha farmacêutica bioquímica.

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Maria corajosa

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Não tem igual, na cidade de Pororó não há mulher mais corajosa que Maria, todos a conhecem por sua valentia e força, herança de família, Maria é filha mais velha de João Valentão da Silva Sansão. Cresceu em uma família grande de muitos irmãos e irmãs, quase sempre se confundia quando a meninada saía pelas ruas com bichos-de-pé e pé no chão, todos filhos de Maria da Conceição. Na terra seca, terra de poucas oportunidades, viu todos seguirem o mesmo destino, tudo muito parecido e sem qualquer instrução, conheciam apenas o peso da enxada para garantir o pão de cada dia, escola era apenas um sonho, era um sonho ter um lápis e caderno na mão.

Mesmo assim Maria cresceu a mais corajosa entre todos os seus irmãos, ia para a roça, carpia todo o mato, plantava e colhia, não tinha preguiça e cedo madrugava na plantação, corria atrás dos “bichos” e sempre os vencia. No fim de sua meninice, seu pai chamou-lhe a atenção: “Moça tem que se casar, tem que ser mulher de verdade, já espichou e eu não quero mais uma boca para sustentar” e deu a Maria para seu melhor amigo José Bandeira, homem de idade avançada, o dono da plantação. Maria não queria sair de casa e se afastar da sua mãe e de seus irmãos, não teve escolha e sem qualquer cerimônia se tornou mais uma posse, mudou-se para a casa do amigo de seu pai João. Com uma trouxa de pano na cabeça, chegou em um lugar afastado e escuro, sujo e desleixado como José, e com os olhos cheios de lágrimas perdeu sua pureza, com toda dor, sem qualquer pudor ou respeito, sem qualquer amor, tornou-se mulher.

Maria corajosa se perdeu em seus desalentos, sofria todos os dias por estar em um cativeiro e não ter mais esperança, ela deixou de lidar com a terra e com a plantação, seu trabalho era na cozinha e no fogão, entre as panelas, entre os esfregões, entre a tristeza de receber “carinhos” de quem nada sentia, servia-lhe apenas de diversão. Amigo José quando bebia, intensificada a ousadia, e forçava Maria a fazer tudo o que não queria e nem imaginava viver. Após todo o abuso ocorrido, batia-lhe repetidamente a face, e descartava Maria desprezando-a, como se tivesse apenas esta serventia: dar-lhe prazer.

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Assim Maria viveu por anos, gerou dois filhos, que frequentemente viam seu pai José agarrando sua mãe aos berros, enquanto Maria aos prantos tentava esconder.

José bebia, e bebia mais e mais, já não trabalhava, pois não aguentava mais viver em uma terra que nada se colhia, um lugar onde morria o gado, e nada crescia por causa do forte sol, sempre lhes faltavam água e muitas vezes o alimento do dia. Desesperado José bebia, e bebia mais e mais, e ao beber se vingava da vida quebrando tudo o que via pela frente, a casa já não tinha móveis inteiros, um só copo para revezar entre os irmãos, tudo ele quebrava, e cada vez mais perdia. Não ligava mais para Maria, nem para seus filhos, e se estivessem em casa na hora da euforia, jogavam-lhes os pedaços da mobília que estavam espalhados no chão. Seus filhos choravam e Maria não aguentava mais, ameaçou deixar-lhe, contudo ameaças ouvia: “Se fizeres isto mulher, te quebrarei todinha”. Maria, com medo, aguentava mais esse sofrimento, essa frustração.

Certo dia, Maria já cansada de tudo o que vivia, lembrou-se de sua ousadia e coragem, das lutas e desafios que enfrentava na roça, lembrou-se da mulher forte e incansável que nada temia e resolveu sua vida mudar. Conseguiu grandes sacos de pano e os colocou no fundo do terreno, pertinho da cerca, escondido entre as pedras, cada dia Maria levava uma peça: uma peça de roupa dos meninos, outro dia era um chinelo e um chapéu, mais um pouco de roupa e um travesseiro, enchia copo a copo uma garrafa com água limpa e um pouco de pão, e José nada percebeu. Preparou seus filhos pela manhã e, de repente, assim que o José saiu para o bar, Maria segurou nos braços das crias e em um só passo de pressa, com o saco de pano nas costas, deu adeus ao passado e a tudo que nunca deveria ter vivido e fugiu do sertão. Sem dinheiro e com pouca comida, na estrada revestiu-se de força e seguiu sem rumo para qualquer direção, pegou uma carona para qualquer destino, e esse destino a levou para a capital.

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Maria corajosa, a mulher de fibra e coragem, batalhadora e trabalhadora, filha de João Valentão da Silva Sansão mudou o seu caminho com uma decisão, diferente dos seus irmãos, foi morar na cidade grande, conseguiu ajuda para recomeçar sua vida com muito esforço, pois nunca teve medo de trabalhar. Maria alimentou seus filhos porque limpou muito chão, diz sem qualquer vergonha, seu sorriso brilhava mais do que as janelas ajudava a secar, sentia-se livre enquanto trabalhava com o seu esfregão. Maria realizou seu sonho: suas crianças estavam na escola, com lápis e caderno nas mãos, e aos poucos conquistou seu cantinho, arrumou tudo do seu jeito, sem um móvel quebrado sequer.

Seguiu sua vida, criou seus meninos, e deu espaço para os seus sentimentos e seu coração, Maria conheceu o Antônio, tão encantador, trabalhador, não bebia, um exemplo para seus filhos e além de bonitão. Antônio logo mudou-se para casa de Maria, não se entendia bem com seus filhos, mas tentava fazer amizades suprindo as suas necessidades, comprando-lhes com presentes e agrados: “Maria, você não precisa mais trabalhar, eu serei sua provisão!”. Com ele Maria teve mais um filho, a razão da vida de Antônio, o “Toninho”, bebê risonho, criança que representava o início de sua nova vida.

Com o passar do tempo, Antônio não era mais como no primeiro dia, seus galanteios foram diminuindo, seus horários de trabalho sempre eram estendidos sem qualquer explicação. Se Maria conversava com a vizinha Dora, ele já reclamava “que tanto assunto era esse pra conversar”, se assistia à televisão “que falta de coisa para se fazer, a casa está suja, levanta já do sofá”, Maria não podia sair na rua “vai se encontrar com outros homens, vai? pra quê se arrumar assim”, nem a consulta médica ela ia mais. Maria perdeu toda sua vaidade, novamente sua valentia, tudo era motivo para reclamar e Maria já enfraquecida se calou.

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Seus filhos já crescidos perceberam essa agressão, suas lembranças do tempo que eram crianças vieram à tona, quando sua mãe era escrava do lar e de José que bebia, mais uma vez essa história se repetia: Maria, escrava do lar, de Antônio e agora de si mesma, pois nada mais fazia para mudar. Perdeu sua alegria, nem com seus filhos conversava mais, vivia calada pelos cantos, sem uma lágrima sequer, pois a seca chegou a seu coração. Fazia apenas o que lhe pediam, as roupas limpas e a comida no fogão, dormia e acordava e tudo se repetia. Esqueceu-se de como era bom abraçar suas crias, antes lhes tratava com gritarias e empurrões, o coração de Maria azedou, perdeu a cor e nessa estiagem perdeu a vontade de viver. Maria pensava: “ser feliz era como uma miragem no sertão”. Condicionou-se à violência da vida e responde com obediência todas as vontades do “patrão”, Antônio, seu dono, seu amo, seu provedor, pai de “Toninho”, sem quaisquer sentimentos por Maria, sem qualquer agrado, sem coração.

Esperamos que Maria possa se lembrar de que ainda é uma mulher de coragem e de muita força, trabalhadora, valente, que não teme a enxada nem o esfregão, que ela possa mudar a sua história novamente e tomar uma nova decisão. Seus filhos aguardam isso ansiosamente e para lembrá-la de tudo colocaram sacos de pano atrás do portão.

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Um belo dia, ano de 1981, o pai de Maria que morava em um lugarejo no Estado da Bahia resolveu visitar a sua irmã que não via há anos. Quando o pai de Maria retornou, chegou dizendo que sua irmã Josefa era casada com um homem viúvo que tinha vários filhos, alguns casados e

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outros solteiros. Sua irmã também falou para ele que tinha o desejo de ter uma filha e perguntou para seu irmão: “Você não tem uma menininha para eu adotar como minha filha?” Ele respondeu: “Menino é o que não falta. Tenho nove filhos, sendo sete mulheres e dois homens”. Maria ouve a história e pergunta: “Pai, deixa eu ir morar com a minha tia?” Ele responde: “Quem sabe é a sua mãe. Ela é quem decide”. Maria pediu para sua mãe e ela disse: “Vivemos aqui na pobreza e se for melhor pra você, minha filha, eu deixo”.

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Maria começou a se preparar para ir para São Paulo. Apesar de muito nova, apenas 13 anos, Maria sonhava com uma vida melhor. Ela queria estudar e chegou a São Paulo em dezembro de 1981. Foi recebida com muita alegria e a tia falava para todo mundo que Maria era sua filha. Josefa se desdobrava para agradar a sobrinha. Apesar da imensa saudade que sentia de sua família, Maria acabou se apaixonando pela tia e a tia por Maria. No juizado, Josefa conseguiu a guarda definitiva da sobrinha.

Maria começou a trabalhar para ajudar a sua tia. Com o passar do tempo, Maria começou a ficar mais esperta e a perceber o quanto ela era discriminada por ser nordestina, pobre e sem instrução. Ela ouvia tantas piadas e pensava: “Por que será que eles têm tanta raiva de nordestino?” Maria ficava sem resposta.

Uma dessas piadas ela escutou no trabalho. Recém-chegada a São Paulo, ela não tinha muita roupa e, apesar do frio, teve que ir trabalhar com uma camiseta. No trabalho uma colega falou: “Você não sente frio? Ah me esqueci que baiano tem couro sapo e não sente frio!” E começou a rir. Claro que Maria sentia frio, mas mal sabiam eles que ela não tinha roupa para vestir.

Aos 19 anos, Maria sentiu necessidade de estudar para ter um emprego melhor. A tia deu todo apoio, mas ela só tinha estudado até a 3.ª serie do ensino fundamental. Esta série só poderia ser cursada durante o dia, mas Maria tinha que trabalhar. O que fazer? Ela foi buscar informação em uma escola de supletivo e chegando lá eles informaram que ela poderia ir a uma determinada escola fazer uma prova como se ela tivesse feito a 4.ª série do ensino fundamental. Maria fez a prova e conseguiu a nota que precisava para se matricular no supletivo à noite. Começou cursando a 5.ª serie e terminou o ensino médio na mesma escola.

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Durante esse tempo, Maria conheceu um rapaz com o qual se casou e teve dois filhos. O primeiro morreu e hoje ela tem uma filha com 17 anos. Os sonhos de Maria não acabaram após terminar o supletivo. Maria queria mais e aos 42 anos ela entrou em uma faculdade. Em 2013 ela conseguiu o seu diploma em Serviço Social e hoje busca uma colocação no mercado de trabalho para realizar completamente o seu sonho. Ela tenta mostrar para as pessoas que independentemente de cor, raça, religião, local de nascimento somos todos iguais, e o fato de você não ter conhecimento disso ou daquilo não lhe coloca em desvantagem sobre aqueles que acham que sabem tudo.

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Maria MadalenaNanci Flor da Silva

Maria Madalena é uma mulher que tem pouco de Maria e muito de Madalena.Começou cedo na vida, no sexo e nas drogas.Primeiro fazia sexo e usava drogas por prazer, depois se drogava para fazer sexo e comprar drogas e agora faz qualquer negócio.Teve muitos parceiros... Muitos.Fixo foram cinco: Sebastião, João, José, Antonio e Manuel.Filhos foram treze, Maria Madalena é treze.Sebastião foi o seu primeiro amor, amor da adolescência, seu sonho de menina e de mulher. Dessa relação veio o seu primeiro filho e talvez o único que deu certo. Talvez por ter sido criado pelos avós paternos, talvez porque viveu longe de Maria. Como Terezinha de Jesus, da música de Chico Buarque, veio o segundo como quem chega do Bar e embriagada Maria Madalena teve o seu segundo filho, o seu terceiro e o seu quarto e foi trocada por um copo de água ardente.Novo amor, nova relação, novos filhos.Maria conheceu José e com ele teve mais três filhos, mas José não aguentou o tranco e abandonou Maria no celeiro da vida.Sem eira e nem beira, com muitas drogas e sexo, as crianças foram abrigadas. Uns passaram a ser filhos do Estado e criados pela mãe Instituição, os maiores de dois anos; os menores foram adotados por uma família francesa e perderam as suas raízes e a sua história.Foi bom? Foi ruim? Quem pode avaliar?Com muitas drogas, sexo e sem os filhos morre o pouco de Maria e se fortalece a Madalena.

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Com Antonio um novo recomeçar, uma nova família e mais filhos, são quatro agora. A vida parece brotar no deserto, mas Antonio sofre violência urbana e morre, a vida não imita a arte, ela é real.Maria Madalena não dá conta de quatro filhos sozinha e pede ajuda a Manuel, com quem tem mais três filhos, somando à segunda geração são sete.Manuel também não dá conta de Maria Madalena e vai embora, e volta José para a vida de Maria, para cuidar dos filhos que não são seus, os filhos que o sofrimento talhou, uns com saúde mental, outros sem saúde social.Maria Madalena já não é mais uma mulher, é um desses zumbis urbanos que vivem na cracolândia.Franciscleide, aos treze anos começa cedo na vida, no sexo e nas drogas...

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Maria nasceu em Uberlândia em 1929, sua mãe era lavadeira e seu pai trabalhava na ferrovia, tinha quatro irmãos e desde criança trabalhava cuidando dos irmãos e da casa. Com 12 anos conseguiu um emprego em uma fábrica e passou a sair de casa às 7 horas e só voltava tarde da noite. Como precisava trabalhar, Maria só pôde estudar até o 4.º ano primário.

Ela sempre gostou de dançar, adorava os bailes e foi ali que conheceu um rapaz com pinta de galã, o Dorival. Maria logo se apaixonou e escolheu sair de casa, pois sua mãe sempre dizia que menina que namorava é “putinha” e costumava bater por causa disso. Maria foi acolhida pela mãe de Dorival que apoiou o casal que logo se casaram, ambos tinham 18 anos. Tiveram cinco filhos e como o companheiro trabalhava como eletricista eles precisaram mudar muitas vezes em busca de uma oportunidade de emprego, nessas andanças tentaram morar no Rio de Janeiro onde tiveram que viver na rua, Maria sofreu um aborto devido à necessidade que passavam nessa época.

De volta a São Paulo, no bairro de Perus, Dorival conseguia trabalho nas cidades do interior e assim a família seguiu. A vida era difícil, Maria cuidava dos filhos, da casa e ajudava como podia lavando roupas para vizinhos. Dorival sempre foi de beber e tinha outras mulheres. Ela sabia, mas se mantinha mais preocupada com o sustento da casa e dos filhos. Em alguns momentos ele ficava agressivo e logo Maria respondia do jeito dela, como da vez em que Dorival jogou um prato no chão num momento de fúria, e Maria, sem demora, quebrou toda a louça que tinham dizendo: “Pronto agora não tem mais nada pra você quebrar!”. Depois disso, ele evitou se alterar e a família passou a fazer suas refeições em lata de goiabada por um bom tempo.

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Dorival morreu jovem em um acidente no trabalho, uma carga elétrica o pegou em cheio num poste em um dia chuvoso. Então, sem tempo para luto, Maria logo precisou agilizar o sustento da família e para isso deixou os filhos na casa da sogra em Perus para trabalhar no centro de São Paulo, e ainda enfrentando o preconceito de vizinhos por se tornar uma mulher sozinha.

Começou trabalhando com o que conhecia, lavando roupas, mas desta vez a responsabilidade pelo sustento dos filhos era só dela, assim com os contatos que fez passou a fazer programas agendados por telefone. Ela criou relações de amizade nesses encontros, muitos desses “amigos” ajudaram bastante afetiva e financeiramente. Anos depois, conseguiu um emprego de copeira em uma repartição pública, sendo somado a lavagem de roupa e os encontros, Maria conseguia sustentar os filhos que visitava todo fim de semana.

Então, Maria vive uma perda irreparável: o falecimento de seu filho mais velho por atropelamento quando ele já trabalhava, com 16 anos, como office boy. Ela procuraria a vida toda por um contato espiritual com o primogênito.

Conforme os filhos iam crescendo, eles passaram a morar com Maria em São Paulo onde trabalharam para ajudar nas despesas e puderam estudar. Os trabalhos de Maria continuaram sendo a principal renda da família e ainda ajudava familiares do interior. Com o tempo, Maria passou a ser procurada por amigos e conhecidos, que buscavam conselhos e apoio pelo seu jeito acolhedor e carismático. No trabalho, as coisas melhoram, de copeira passou para telefonista por sua curiosidade e prestatividade.

Maria se tornou vaidosa, caprichava no seu visual e procurava se sentir bonita todo o tempo. Os filhos cresceram e se casaram, e Maria continuou ocupando o papel de liderança da família, preocupava-se com todos e tentava ajudar como podia em qualquer situação, inclusive sua mãe, que visitava no interior sempre que podia.

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Durante os encontros, Maria conheceu Jorge, empresário, filho de alemães que se tornou seu grande companheiro, amante e amigo por 25 anos. Uma relação diferente para a época, pois Jorge era casado e se manteve assim todo o tempo e Maria manteve uma relação tranquila com a esposa por toda a vida. Jorge era muito querido pela família de Maria, que viam a felicidade que ele trazia para ela, sendo chamado de ‘avô’ pelos netos dela. Os netos de Maria viam nela uma companheira de bagunça, com seu jeito despachado cheio de palavrões, era sempre divertida e também um porto seguro sendo buscada quando alguém tinha um problema. Maria carregava com ela a lembrança dos netos, representada por uma corrente que usava no pulso, era uma para cada um deles.

Além de sair para dançar nas casas de baile da cidade, Maria adorava viajar, sempre que podia viajava para visitar amigos e familiares em diferentes cidades e estados. Até que um dia realizou um sonho antigo: ir à Disney! Feito criança, ela guardava com carinho fotos tiradas ao lado do Mickey. Maria viveu intensamente uma vida de luta e vitórias.

E assim, em uma noite de quarta-feira de cinzas, Maria morreu dormindo, serena, descansando depois de um carnaval animado em Ilha Bela.

Até hoje, depois de 21 anos de sua partida, seus filhos, netos e amigos ainda procuram na lembrança de Maria uma referência de amparo e orientação em momentos difíceis.

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Nasci em Pernambuco. Fui uma criança que não era para nascer.

Minha mãe já tinha perdido cinco filhos e teve que se internar para que eu pudesse vir ao mundo. Eu achava que não era filha dos meus pais, pois sempre sofri maus tratos. Batiam, prendiam e não me deixavam participar de nada na escola. Cresci no sítio ajudando os meus avós a plantar cana, cana que se transformava em dinheiro para comprar roupas no final do ano.

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Quando eu tinha nove anos a minha vida acabou! Fui pegar uma lata de manteiga na casa da minha tia a pedido de minha mãe. Nós usávamos essa lata para pegar água na cachimba. Entrei na casa de minha tia e o meu primo me puxou para dentro do quarto, tirou a minha roupa e me estuprou. Nunca pensei que isso pudesse acontecer. O meu primo de 15 anos me estuprou e me ameaçou de morte caso eu contasse alguma coisa para alguém.

Aconteceu mais quatro vezes e o medo tomou conta da minha vida e uma ferida enorme foi aberta. Fiquei atormentada, com medo e assustada. Não podia falar nada para ninguém e comecei a querer fugir de casa. Não ia mais para casa da minha tia e queria ficar mais na rua do que em casa. Toda a família morava perto. Eu andava pelas ruas com a perna fechada, pois as pessoas falavam que moça que abria as pernas não era mais nada e eu não queria que ninguém soubesse.

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Fui estudar em um convento e eu queria ficar por lá, eu queria muito morar lá. A minha família que era de crentes não podia admitir que eu morasse em um convento e ficasse adorando imagens. Eles não aceitaram a minha decisão e não assinaram a autorização.

Aos 13 anos fui expulsa de casa. O meu pai disse que eu era uma vergonha para a família e como eu queria ficar mais na rua do que em casa, que era para eu viver definitivamente lá e jogou as minhas roupas no meio da rua. Fiquei atordoada e fui morar em uma casa de prostituição. Não sei dizer como fui parar nesse lugar, só sei que passei a morar lá. Não sabia como era, como funcionava, não sabia de nada. Peguei doença e fui alertada por um dos clientes que disse que eu precisava me cuidar, pois se passasse para alguém eu podia até ser morta.

Com 14 anos tive que sair dessa casa, pois um bandido que gostava de mim veio cumprir a promessa de que iria me matar caso me encontrasse com outro. Eu não tinha nada com esse homem e não queria desistir do cabeleireiro com quem eu namorava. Ele saiu da cadeia e foi me procurar. Comecei a gritar, pessoas apareceram e eu consegui fugir. Fui morar em outro lugar, em outro bairro, em outra casa de prostituição.

Nessa nova casa eu também quase morri. Dessa vez um cliente foi pagar, mas não encontrou a carteira e me acusou de roubo. Ele partiu para cima de mim e começou a me espancar. Fiquei adormecida com as pancadas na nuca e com os gritos vieram me acudir. Consegui fugir para dentro do mato, vomitei sangue. Chamaram a polícia e fomos para delegacia. O garçom que viu a mulher do homem tirando a carteira do bolso dele foi depor e esclareceu todo o mal entendido.

Com 15 anos fui para Minas Gerais morar em um restaurante. Na estrada passei boa parte da minha adolescência. Sempre na boleia de um caminhão.

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E aos 18 anos me vi novamente na primeira casa de prostituição que morei. Nessa casa conheci um caminhoneiro de três corações que sempre passava por lá. Ele transportava charque. Nessa época engravidei da minha primeira filha e voltei para a casa da minha mãe. O caminhoneiro que sempre passava por lá deixou de passar. Tive a menina, mas a recuperação do parto não foi fácil. Passei dois meses na cama com os pontos inflamados. Fui melhorando aos poucos sob os cuidados de minha mãe. Deixei a menina com a minha mãe e fui para Sergipe.

Em Sergipe morei com um rapaz que me tirou da boate. Fui morar em outra boate, mas não para trabalhar de noite. Ele era garçom. Foi nessa época que engravidei do meu segundo filho. Fomos morar na casa da sogra, mas nunca tive sorte com homem. Depois de dois anos em Sergipe, ele começou a desgostar de mim.

Voltei para a Bahia e lá encontrei uma pessoa que já tinha conhecido. Começamos um romance e fui morar na casa da mãe dele. Engravidei do meu terceiro filho. Morei 3 anos e 7 meses com ele, mas ele era muito violento. Ele me batia muito, não me dava nada, dependíamos dos pais dele e era extremamente mulherengo. Um dia fui atrás dele e ele não gostou e quebrou o meu nariz. Eu era louca por ele, mas foi acabando. Eu fazia tudo direitinho e ele continuava me batendo.

Um dia fiquei sabendo que um caminhoneiro conhecido estava pela região. Como na hora da novela eu sempre ia dormir, resolvi fugir nessa hora. Mandei um bilhete para o caminhoneiro marcando um encontro. Sai com o menino e com algumas roupas. Ele veio ao meu encontro e eu disse que eu não podia explicar, mas eu precisava fugir agora. Conseguimos fugir. O pai do menino ficou em estado de choque e foi atrás da gente, mas não conseguiu nos achar. Foi assim que eu cheguei em São Paulo no ano de 1978.

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Em São Paulo fui morar na casa de uma tia. Foi aí que começou outra luta na minha vida. Primeiro morei na casa dos outros, depois consegui alugar um quarto. Naquela época não tinha creche e eu tinha que deixar o menino com a minha prima. Nós morávamos longe, então deixava ele no domingo e só pegava na sexta-feira. No domingo era um chororô danado e na sexta só alegria.

Nessa época conheci o meu atual marido. Ele era casado e vivia dando em cima de mim, me convidava para sair, mas eu não dava bola. Um dia acabei ficando grávida de outro rapaz. Foi um desespero, pois eu não podia ter esse bebê, a vida estava muito difícil. Aconteceu essa tragédia e fui obrigada a tomar o remédio, mas não tinha nem dinheiro para comprar. Tive que pedir para ele. E foi assim que fomos morar juntos. Fomos morar juntos por causa de uma necessidade. Não era o que eu queria, mas fui me apegando. Estamos a 27 anos casados e foram muitas decepções. Com ele eu tive mais três filhos.

Hoje continuo em uma situação de violência dentro de casa. Estou me fortalecendo para sair de mais essa situação. Tenho pena dele, mas não aguento mais. Hoje conheço os meus direitos e sei que eu e os meus filhos merecemos uma vida sem violência.

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Ela nasceu na Bahia, em Mundo Novo, no ano de 1935. Veio para São Paulo em busca de uma vida melhor. Aos 18 anos, começou a trabalhar na fábrica de tecelagem Matarazzo. Ao chegar a São Paulo, Maria foi morar com seu irmão em um cortiço familiar. Depois de um tempo, conseguiu alugar um quarto e foi morar sozinha.

Um dia, recebeu a notícia de que seu pai estava internado em um hospital de deficientes e que tinha sido transferido para São Paulo para se tratar em Franco da Rocha. Ficou internado um ano e veio a falecer aos 50 anos. Foi muito difícil para a sua mãe aceitar a morte do marido e Maria se mostrou muito forte para ajudar a mãe que precisava de muita atenção.

Nessa época, conheceu uma senhora que estava com um bebê recém-nascido, que não era dela, e queria que alguém o adotasse. Maria vendo a situação da criança doente e desnutrida, resolveu pegar para cuidar até que alguém adotasse, o que nunca aconteceu. Aos 22 anos, Maria se viu solteira, trabalhando, pagando aluguel e cuidando de um bebê. A cunhada ajudou-a olhando a menina enquanto Maria ia trabal-har. Na mesma época conheceu o meu pai, o qual achou estranho uma moça solteira e virgem criando uma criança sozinha.

Aos 24 anos Maria casou com José e logo ficou grávida de sua primeira filha. Com a chegada da menina bateu uma vontade em José de voltar para a Bahia. Maria não queria, mas seguiu o marido já com o seu segundo filho na barriga. Chagando lá, viram que iriam passar necessidade e retornaram para São Paulo.

Ela nasceu na Bahia, em Mundo Novo, no ano de 1935. Veio para São Paulo em busca de uma vida melhor. Aos 18 anos, começou a trabalhar na fábrica de tecelagem Matarazzo. Ao chegar a São Paulo, Maria foi morar com seu irmão em um cortiço familiar. Depois de um tempo, conseguiu alugar um quarto e foi morar sozinha.

Um dia, recebeu a notícia de que seu pai estava internado em um hospital de deficientes e que tinha sido transferido para São Paulo para se tratar em Franco da Rocha. Ficou internado um ano e veio a falecer aos 50 anos. Foi muito difícil para a sua mãe aceitar a morte do marido e Maria se mostrou muito forte para ajudar a mãe que precisava de muita atenção.

Nessa época, conheceu uma senhora que estava com um bebê recém-nascido, que não era dela, e queria que alguém o adotasse. Maria vendo a situação da criança doente e desnutrida, resolveu pegar para cuidar até que alguém adotasse, o que nunca aconteceu. Aos 22 anos, Maria se viu solteira, trabalhando, pagando aluguel e cuidando de um bebê. A cunhada ajudou-a olhando a menina enquanto Maria ia trabal-har. Na mesma época conheceu o meu pai, o qual achou estranho uma moça solteira e virgem criando uma criança sozinha.

Aos 24 anos Maria casou com José e logo ficou grávida de sua primeira filha. Com a chegada da menina bateu uma vontade em José de voltar para a Bahia. Maria não queria, mas seguiu o marido já com o seu segundo filho na barriga. Chagando lá, viram que iriam passar necessidade e retornaram para São Paulo.

Vou contar a história de uma Maria guerreira. Essa Maria é a minha mãe.

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Meu pai não permitia que minha mãe tomasse contraceptivos e a cada ano ela tinha um filho. No total foram 13, 4 mulheres e 9 homens. O meu pai também era muito violento, batia em minha mãe e bebia muito. Presenciei muitas vezes minha mãe sendo machucada, e em uma delas o meu pai chegou a enfiar uma caneta na barriga de minha mãe que estava grávida. Por sorte não perfurou.

Ela pensou em deixá-lo muitas vezes, mas não sabia como ia cuidar de tantas crianças e pagar aluguel. Maria nunca deixou de trabalhar para ajudar no sustento de seus filhos e voltou a morar perto do irmão para ter alguma ajuda. Um tempo depois, José teve tuberculose e foi internado em Campos do Jordão. Ela ficou seis meses desamparada e teve que pedir ajuda da Legião Brasileira de Assistência, no Tatuapé, e por muito tempo recebeu ajuda de uma pessoa de coração enorme.

Depois de recuperado, meu pai voltou para casa, mas não deixou de ser violento. Maria nunca se separou, mas não foi por falta de vontade e sim por causa de seus filhos.

Um dia, minha mãe conseguiu comprar um terreno, no qual construiu uma casa de três cômodos. Nossa vida melhorou, mas as violências continuaram até o meu pai morrer precocemente aos 46 anos. Ele passou mal sozinho na construção onde trabalhava. Teve um derrame cerebral.

Maria teve que continuar sua batalha sozinha para manter sua família sempre unida e para criar os 11 filhos menores. Criou seus filhos com muita garra e determinação e também ajudou a criar três netos. Hoje, Maria está com 79 anos e cheia de saúde.

Eu e todos os meus irmãos não sofremos mais violência e temos consciência do que minha mãe sofreu durante 24 anos de casada. Hoje, trabalho com mulheres em situação de violência, ajudando-as a saírem dessa situação.

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