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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do ... · livre, mas sem dúvida o cativeiro criava certas condições especiais de mortalidade. Nos dois livros de óbitos

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 51, dez. 2011

EXPECTATIVA DE VIDA E MORTALIDADE DE ESCRAVOS:

Uma análise da Freguesia do Divino Espírito Santo do Lamim – MG (1859-1888)

Luiz Fernando Veloso Nogueira1

Resumo: O presente artigo busca analisar a mortalidade escrava em Lamim-MG, entre 1859 e 1888, anos da criação da Paróquia e do fim da escravidão respectivamente, priorizando as condições de morte e expectativa de vida dos escravos. Com base nos registros de óbitos da paróquia, este trabalho visa contribuir com os estudos em torno da expectativa de vida e morte de escravos na segunda metade do século XIX. Palavras-chave: Escravidão. Mortalidade escrava. Expectativa de vida. Abstract: This article aims to analyze mortality slave in Lamim-MG, between 1859 and 1888, years of the creation of the parish and the end of slavery respectively, prioritizing the conditions of death and life expectancy of slaves. Based on mortality records in the parish, this paper aims to contribute with the studies around the expectation of life and death of slaves in the second half of the nineteenth century. Keywords: Slavery. Slave mortality. Expectative of life.

Introdução

A historiografia brasileira tem mostrado a importância da análise dos registros

paroquiais enquanto fontes essenciais para a compreensão do período colonial e imperial

brasileiro. Os registros paroquiais de batismos, casamentos e óbitos generalizaram-se a

partir do Concílio de Trento (1545-1563) e ocupam lugar de destaque no desenvolvimento

historiográfico, sobretudo na Demografia Histórica. No Brasil, a produção dos registros

paroquiais assumiu algumas particularidades. Até a instituição da República, em 1889, o

clero ocupou lugar de destaque na máquina burocrática do Estado Colonial e Imperial. A

constituição de paróquias, a nomeação de padres, a remuneração de parte do clero, dentre

outras coisas, eram funções do Estado. Em contrapartida, os padres desempenhavam uma

série de papéis como simples funcionários civis. O mais destacado deles era a constituição

e controle do sistema de registro de eventos demográficos. Dessa forma, era

responsabilidade do clero registrar e coletar informações sobre nascimentos – formalizados

por meio do batismo –, matrimônios e óbitos da população brasileira.

Para conhecer melhor os seus membros, a Igreja Católica passou a fazer uso dos

registros individuais de cada católico. Além do batismo e do casamento, era preciso registrar

as mortes de seus fiéis para evitar abusos, como a bigamia. Além do mais, sendo o

catolicismo a religião oficial do Brasil desde a Colônia e em todo o período do Império, todos

1 Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Professor de História no ensino fundamental e médio da SEE/MG. E-mail: [email protected].

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os que aqui nascessem, casassem ou morressem deveriam passar pelo registro da

Paróquia, que se revestia de um caráter religioso e administrativo ao mesmo tempo. Para

dar uniformidade a esses registros, a Igreja determinou o que deveria ser anotado pelo

pároco em cada acontecimento. Segundo Maria Luiza Marcílio:

Para o registro dos óbitos as regras não eram tão rigorosas e iguais. Bastava registrar a data do falecimento, o nome do morto, seu estado civil. No caso de solteiros, dever-se-ia nomear os pais, ou o fato de ter sido exposto ou ser ilegítimo. No caso dos casados e dos viúvos(as), além desses dados, era necessário indicar o nome do esposo(a). Em muitas paróquias assinalava-se a naturalidade do morto, sua idade, e atividade que exerceu. Em alguns casos indicava-se a causa da morte e se o morto havia deixado testamento. As condições do enterramento vinham por vezes mencionadas: tipo e cor da mortalha ou do caixão (século XIX) e local do enterramento. Estes dados eram porém mais raros.2

Na maioria dos registros de óbitos de escravos entre os anos de 1859, ano de

criação da Paróquia, e 1888, os sacramentos recebidos pelo falecido são constantes. Isso

não nos informa se os escravos eram católicos e, sequer, se eles tinham uma religião. O

que vale notar, como afirmou Iamara Viana3, é que o ritual católico de bem morrer era

exercido pelo seu proprietário ou pelo pároco. As relações de poder existentes na sociedade

escravista permitiram ao cativo, em certa medida, o direito a uma morte nos moldes

católicos.

Nossa pesquisa tem como área de abrangência a Freguesia de Lamim4, um pequeno

município do estado de Minas Gerais, com cerca de 4 mil habitantes, localizado na Zona da

Mata mineira. Sua economia se baseia na agricultura de subsistência e na pequena

pecuária leiteira. Sua população tem ascendência europeia, indígena e africana. A

religiosidade é uma característica marcante de seus habitantes, com destaque para o

catolicismo, que abrange mais de 95% da população.

Doenças e mortalidade da população escrava

Um dos primeiros trabalhos sobre a temática da saúde e das doenças que ceifavam

a vida dos cativos foi a obra de Karasch5. A autora explica que os cativos morriam devido a

uma correlação complexa entre descaso físico, maus tratos, dieta inadequada e doença. A

falta de alimentação, roupas e moradias apropriadas, em combinação com os castigos,

enfraqueciam-nos e preparavam-nos para serem liquidados por vírus, bacilos, bactérias e

2MARCÍLIO, Maria Luiza. Os registros paroquiais e a História do Brasil. Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 31, p. 13-20, jan. 2004. 3 VIANA, Iamara da Silva. Morte de escravos, forros e livres na Vassouras oitocentista: uma análise comparativa ,1840-1870. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA, 13., 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpuh, 2008. 4 Mais informações a respeito do município, ver NOGUEIRA, Luiz Fernando Veloso. Ouro e Fé: as origens do município de Lamim – MG. História e-História, Campinas, v. 1, p. 1-4, 2010. 5 KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

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parasitas que floresciam na população densa do rio urbano. As ações intencionais ou não

dos senhores contribuíam diretamente para o impacto de doenças específicas ou criavam

indiretamente as condições nas quais uma moléstia contagiosa poderia se espalhar

rapidamente pela população escrava.

Gorender, em Escravismo Colonial6, afirma que é necessário levar em conta as

condições cotidianas da vida para entender o tratamento dispensado aos cativos, tais como:

quantidade e qualidade da alimentação, vestuário, habitação, duração da jornada laboral e

outras condições de trabalho, nesse caso, os tipos e a frequência dos castigos impostos aos

escravos.

Na mesma linha de pensamento dos autores aqui apresentados, Schwartz, em seu

trabalho sobre a temática na Bahia7, demonstrou que as condições de insalubridade, a

subnutrição e a falta de assistência médica afetavam um grande segmento da população

livre, mas sem dúvida o cativeiro criava certas condições especiais de mortalidade.

Nos dois livros de óbitos8 pesquisados, encontramos 139 registros de escravos ou de

filhos de escravos, de um total de 638 registros. Um número relativamente pequeno de

falecimentos de cativos, se pensarmos nas duras condições de vida do cativeiro. Isso pode

ser explicado ao se fazer uma análise demográfica da população escrava da Freguesia. Em

18319, 628 pessoas eram escravas. Já em 186610, a população cativa caiu para 358

indivíduos e, em 187211, não passava de 324. Certamente, o fim do tráfico internacional de

escravos em 1851 contribuiu para essa queda.

Um fator que dificulta um maior entendimento da mortalidade escrava em Lamim é a

ausência da causa da morte nos registros. Dos 139 óbitos de escravos, 55 não trazem a

causa do falecimento. Entre os que a trazem, entretanto, há, na maioria, imprecisão quanto

ao que provocou a morte do indivíduo, conforme nos mostra a tabela abaixo:

Hidropsia 14

Moléstia ou enfermidade 43

Morte súbita (de repente) 6

Hemorragia interna 1

Defluço 1

Queimadura 1

Congestão 2

6 GORENDER, Jacob. Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978. 7 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Cia. das Letras, 1988. 8 Paróquia do Divino Espírito Santo de Lamim-MG. Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883) e Livro de Óbitos n° 2 (1877-1903). 9 Ver Lista Nominativa do Districto do Lamim de 1831 – disponível em: www.poplin.cedeplar.ufmg.br. 10 Museu e Arquivo Antônio Perdigão. Conselheiro Lafaiete. Relação dos escravos do Districto do Lamim. 11 Recenseamentos Gerais do Brasil Império – 1872 – Biblioteca do IBGE.

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Tumores nas coxas 1

Dilatação no coração 1

Picada de cobra 1

Febre 7

Indigestão 1

Mal de Lázaro 1

Cólera 2

Coqueluche 2 Fonte: Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883) e Livro de Óbitos n° 2 (1877-1903).

Como podemos observar, mais da metade dos registros apontam “moléstia” ou

“enfermidade” como causas das mortes, impossibilitando-nos, de fato, de sabermos que tipo

de doenças acometiam os escravos. Até onde fomos com nossa pesquisa, pudemos

constatar que não havia médicos na Freguesia de Lamim. Isso explicaria a limitação ou a

ausência da causa mortis nas anotações feitas pelo pároco, que se limitava a registrar as

doenças mais comuns e fáceis de serem identificadas, ou simplesmente não as registrava.

Outro fato que nos chamou a atenção foi o sepultamento de escravos dentro da

igreja. Era comum, no período analisado, que pessoas ricas e com destacada relevância

social fossem enterradas no interior das igrejas. Pessoas simples, forros e escravos,

normalmente, eram sepultados em cemitérios que rodeavam as igrejas. De modo geral,

eram os cemitérios e não as igrejas os lugares onde preferencialmente eram depositados os

corpos dos escravos, constatando um reflexo da posição ocupada por eles dentro da

sociedade, uma vez que os enterros dentro das igrejas eram feitos, muitas vezes, em troca

de concessões financeiras a ela, por meio de doações. Em Lamim, 27 escravos foram

enterrados na Matriz, demonstrando uma preocupação dos senhores com um enterro aos

moldes católicos para alguns escravos selecionados. Esse fato nos sugere uma demarcação

social, que poderia funcionar como instrumento de controle, mas indica também o respeito e

o prestígio que alguns escravos adquiriam ao longo de suas vidas.

Mortalidade e expectativa de vida

Aos 21 dias do mês de Maio de 1871, nesta freguesia do Espírito Santo do Lamim, faleceu Miguel, de nação, de idade 90 anos, escravo de Francisco Pinto de Morais, desta mesma freguesia, foi encomendado e sepultado o seu corpo no adro desta matriz, do que para constar, fiz este assento. O vigário Antônio José Neto.12

O registro acima retrata uma rara exceção para os padrões do período. Viver 90 anos

12 Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883). Registro n° 251.

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extrapolava muito a expectativa de vida da época, ainda mais quando se tratava de um

escravo, cujo tempo de vida, em média, era menor do que o do homem livre.

Ao analisar dados de diversas fontes, Schwartz13 mostrou que no Brasil do último

quarto do século XIX a expectativa de vida dos escravos, ao nascer, variava em torno de 19

anos. O espanto que esse número pode causar ao leitor de hoje só não é maior quando se

sabe que a expectativa de vida de um brasileiro não escravo era de apenas 27 anos em

1879. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida dos escravos, por volta de 1850, era de 35

anos e meio, apenas 12% menor do que a da população total e muito superior à de um

brasileiro médio. As condições de vida, no século XIX, eram ruins para todos e muito piores

para os escravos.

Dos 139 registros de óbitos de escravos da Freguesia de Lamim, 120 deles trazem a

idade do falecido. A partir desses registros, fizemos agrupamentos por idade de falecimento,

conforme a tabela a seguir:

IDADE FALECIMENTOS PERCENTUAL

Menos de 1 ano 22 18,40%

1 a 5 anos 26 21,70%

6 a 10 anos 3 2,50%

11 a 15 anos 3 2,50%

16 a 20 anos 8 6,70%

21 a 30 anos 11 9,10%

31 a 40 anos 15 12,50%

41 a 50 anos 11 9,10%

51 a 60 anos 11 9,10%

61 anos ou mais 10 8,40%

TOTAL 120 100,00% Fonte: Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883) e Livro de Óbitos n° 2 (1877-1903)

Como nos mostra a tabela, a maior incidência de morte ocorre sobre o grupo de

crianças entre 0 e 5 anos, correspondendo a 40% das mortes de escravos. Essa alta taxa de

mortalidade infantil ocorreu em todo o Império, ganhando força após a Lei do Ventre Livre,

pois, além das péssimas condições de vida, cresceu o descaso pelos recém-nascidos. A

ajuda financeira prevista pela lei aos fazendeiros, para estes arcarem com as despesas da

criação dos ingênuos, jamais foi fornecida.

No que se refere à mortalidade geral de escravos, com base na média de idade de

13 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 303.

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falecimento obtida por meio dos registros de óbitos, concluímos que a expectativa de vida

de um escravo, na Freguesia de Lamim, era de 25 anos, um pouco maior que a encontrada

por Schwartz, que girava em torno de 19 anos.

Considerações finais

Sabemos que o número de óbitos analisados neste trabalho, devido ao seu caráter

reduzido, não pode servir como uma referência para outros pesquisadores que se propõem

a estudar o assunto, nem foi essa a nossa pretensão. Nosso objetivo foi procurar esclarecer,

na medida do possível, como ocorreu a mortalidade escrava no município de Lamim.

Certamente aconteceram falecimentos de cativos que acabaram não sendo registrados

pelos párocos do período, pois não era raro que escravos fossem enterrados nas próprias

fazendas, às vezes sem qualquer comunicação ou registro por parte de seus senhores.

Pudemos constatar que houve sim, apesar das limitações impostas pela escravidão,

uma apropriação dos escravos de Lamim pelos recursos que, segundo a tradição católica da

época, garantiriam um bom encaminhamento da alma, demonstrando que o universo

escravo sofreu uma grande influência do catolicismo. Além disso, não podemos esquecer

que o acesso aos recursos do “bem morrer” era muitas vezes oneroso, tornando-se,

frequentemente, inacessível e pouco atraente aos escravos.

Por possuir somente uma paróquia e ter um território pequeno, acreditamos que os

resultados encontrados para Lamim são válidos, visto que o pároco tinha o controle sobre

todos os registros eclesiásticos da freguesia e poderia circular com maior rapidez entre os

distritos e as fazendas, além de ter um contato mais próximo com seus fiéis. Acreditamos

também que os dados referentes à mortalidade escrava e a expectativa de vida dos

mesmos, encontrados em Lamim, são bastante semelhantes a diversas outras freguesias

mineiras, pois estas, em geral, também possuíam apenas uma paróquia, com pequeno

território, atividades econômicas e população (escrava e livre) semelhantes.

É preciso que os historiadores da escravidão intensifiquem o diálogo com outras

áreas do conhecimento, com destaque para os estudos relacionados às doenças e à

medicina em geral, e assim avancem nas pesquisas relacionadas à saúde da população

negra, tornando possível que novas faces do universo da escravidão sejam analisadas por

meio das experiências de mortalidade e enfermidade.

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Referências

GORENDER, Jacob. Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978. KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000. MARCÍLIO, Maria Luiza. Os registros paroquiais e a História do Brasil. Varia História, Belo Horizonte, n. 31, p. 13-20, jan. 2004. NASCIMENTO, Washington Santos. Padrões e Tendências das Enfermidades e Causas Mortais entre os escravos e libertos na Região Sudoeste da Bahia (1867-1887). In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA: PODER, CULTURA E DIVERSIDADE, 3., 2006, Caetité; Vitória da Conquista, Bahia. Anais..., v. 1. Vitória da Conquista, BA: Eureka, 2006. NOGUEIRA, Luiz Fernando Veloso. Ouro e Fé: as origens do município de Lamim – MG. História e-História, Campinas, v. 1, p. 1-4, 2010. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988. VENÂNCIO, Renato Pinto. Pobreza carioca: uma sondagem nos registros de óbitos de fins do século XVIII. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA QUANTITATIVA E SERIAL, 2., 2001, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 2001. VIANA, Iamara da Silva. Morte de escravos, forros e livres na Vassouras oitocentista: uma análise comparativa ,1840-1870. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA, 13., 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpuh, 2008. Fontes manuscritas Museu e Arquivo Antônio Perdigão. Conselheiro Lafaiete. Relação dos escravos do Districto do Lamim – 1866 Paróquia do Divino Espírito Santo de Lamim-MG. Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883) e Livro de Óbitos n° 2 (1877-1903) Fontes digitalizadas Lista Nominativa do Districto do Lamim - 1831 – disponível em: www.poplin.cedeplar.ufmg.br Recenseamentos Gerais do Brasil Império – 1872 – Biblioteca do IBGE

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O HOSPÍCIO DE ALIENADOS DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO

Isabel Maria Alves Mezzalira1

Ornella Regina Flandoli2

Resumo: A ocupação da chácara do cônego Monte Carmelo, no centro da cidade de São Paulo e às margens do Rio Tamanduateí, em meados do século 19, possibilitou à Província implantar o Hospício de Alienados, a fim de acompanhar as recentes modificações constitucionais do Império e acolher doentes mentais recolhidos indevidamente em prisões comuns. Transferido da Rua São João para a Rua Tabatinguera, esse Hospício atendeu à demanda, apesar dos problemas de estrutura e má localização, até a construção do Hospital do Juquery, em 1903. Palavras-chave: Hospício. Tabatinguera. Cônego Monte Carmelo. Abstract: The occupation of the farm of Canon Mount Caramel in the city center of São Paulo and the river Tamanduateí in the mid-19th century, enabled the province to deploy Asylum for the Insane, in order to monitor the recent constitutional changes and embrace the Empire mental improperly collected in ordinary prisons. Transferred from St. John street to street Tabatinguera, this hospice has met the demand, despite the problems of structure and poor location, until the construction of the Juquery Hospital in 1903. Keywords: Hospice. Tabatinguera . Canon Mount Caramel.

Introdução

Aquilo que jaz no coração de todas as coisas vivas não é uma chama, nem um hálito quente, nem uma faísca de vida, e sim a informação, palavras, instruções. (Richard Dawkins, 1986).

Localizada na Várzea do Carmo, próxima a um desvio do Rio Tamanduatei e de

autoria desconhecida, a edificação original, um sobradão com porão, tem data aproximada

de 1842. Porém, enquanto chácara é possível que tenha uma datação inferior a esta. O

acesso a ela era permitido pela ponte de Tabatinguera – também chamada do Fonseca, a

1 Bacharel em História pela USP; especialista em História da Arte (Semiótica) pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP); especialista em Arquivologia (ECA/IEB-USP) e como bolsista, em 1992, no curso de Organización de Archivos Históricos, promovido pelo Archivo Nacional de España (AECI) e Organização dos Estados Americanos (OEA). É especialista em Conservação e Restauração, suporte papel, tendo participado de inúmeros cursos, desde 1980, e ministrado outros tantos. Como funcionária de carreira da Prefeitura Municipal de São Paulo, de 1979 a 2010, trabalhou na Biblioteca Mário de Andrade e no Arquivo Histórico de São Paulo. É coautora do Dicionário de Terminologia Arquivística, publicado em 2000. Atualmente, é mestranda do Programa de História da Ciência na PUC-SP, com tema sobre História Natural. 2 Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Católica de Santos-SP. Possui Curso de Restauro de Monumentos e Centros Históricos – Facultà di Architettura – Univercità di Roma, Itália e Curso de História da Arte – Univercità per Stranieri in Perugia, Itália. É consultora em Projetos Especiais na área da Preservação da Memória e Desenho Gráfico.

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partir do século 18. Esse “Fonseca” era um “cirurgião”, licenciado – Domingos da Fonseca

Leitão –, proprietário na vizinhança3 da ponte.

O imóvel era a sede da Chácara do Fonseca, mais tarde conhecida como Chácara

do Freitas. Limitava-se com a Chácara do Ferrão, que foi desmembrada, e o seu núcleo

central passou a chamar-se Chácara da Figueira (da Marquesa de Santos).

A Chácara do Fonseca ia da ponte do Carmo – demolida e substituída pelo viaduto

da Avenida Rangel Pestana sobre a Rua Frederico Alvarenga – até a ponte do Fonseca (por

toda a extensão da Rua Frederico Alvarenga), transpondo o rio até a atual Rua da Figueira.

Interessante notar que a ponte do Fonseca ficava onde hoje se inicia o viaduto que liga o

centro da cidade à Avenida Alcântara Machado, ligando a Rua da Mooca à Rua

Tabatinguera. Em plantas da época foi possível localizar seu desenho primitivo.

APESP – Área da Chácara, com o braço do Tamanduateí, 1850. Foto: Ana Rita.

O corpo principal da edificação é o mais antigo, em dois pavimentos, e ainda são

visíveis partes dos elementos originais além de prováveis pinturas murais. Cada pavimento

deste bloco mede cerca de 1.400 metros quadrados. Os demais blocos, em 2 pavimentos,

têm cerca de 500 metros quadrados cada um. O último bloco, em 1 pavimento, contém

cerca de 280 metros quadrados4.

3 DICK, Maria Vicentina. A dinâmica dos nomes na cidade de São Paulo, 1554-1897. São Paulo: Annablume, 1996. 4 Fonte: Processo nº 42.962/02. Condephaat.

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De Hospício, para abrigar os alienados até 1903, passou a ser almoxarifado da

Secretaria de Justiça e Quartel da Guarda Cívica. Em 1916 há a retificação do Rio

Tamanduateí, e a urbanização da Várzea do Carmo traz novas perspectivas para a região.

A ocupação pelo Exército Brasileiro se dá até aproximadamente 1990, quando o Batalhão é

transferido para Osasco, em nova sede.

A ocupação pelo hospício de alienados

O período de uso e ocupação da edificação, para facilitar a busca em acervos

acessíveis, inicia-se em 1859, quando o governo Provincial de São Paulo, na figura de José

Joaquim Fernandes Torres, a comprou por 30 contos de réis, do então cônego Dr. Frei

Joaquim de Monte Carmelo (ver cópia da escritura de venda nos Anexos).

Frei Joaquim de Monte Carmelo nasceu em 1817 na cidade de Salvador-BA. Entre

1876 e 1888 esteve afastado do sacerdócio e foi para Guaratinguetá (SP), onde durante 12

anos assumiu a continuidade das obras da antiga capela que seria transformada na Basílica

Velha de Aparecida. As dificuldades exigiram o sacrifício de suas economias e patrimônio. O

proprietário da chácara, cônego Joaquim de Monte Carmelo, envolveu-se, em 1854, num

episódio muito comentado à época. Membro do cabido da antiga Sé Catedral, ele desacatou

em altas vozes o bispo D. Antonio Joaquim de Melo, na capela-mor do templo. Todo

paramentado, o bispo já se preparava para o começo da missa de Natal quando começou a

discussão. Tudo acalmado, desceu da capela-mor até uma grade que a dividia do resto da

igreja e dali repreendeu o povo, cancelando a cerimônia.

Tendo se reconciliado com o bispo, celebrou a missa de inauguração da Basílica, em 24 de

junho de 1888. A partir daí foi designado capelão. Ainda em vida, recebeu uma homenagem

em Aparecida, a qual passou a ter uma rua denominada Monte Carmelo. Foi cônego em

São Paulo e capelão do Mosteiro da Luz, de 1851 até 18565, e faleceu em 1899.

Para entender a instalação do primeiro Hospício provisório da Província temos de

voltar à Constituição Imperial de 1824, que previa a criação de prisões diferenciadas visando

um mínimo de higiene a fim de se evitarem sérias doenças que grassavam em áreas sem

qualquer sistema de captação e esgoto.

Em 1º de outubro de 1828, portanto, são criadas comissões que deveriam visitar

regularmente as prisões e apontar aquelas que não estivessem de acordo com a lei,

sugerindo novas obras e/ou lugares mais bem equipados para acolherem criminosos. O fato

5 LOURENÇO, Benedicto. Capelães e párocos: subsídios para a História Religiosa de Aparecida. Jornal O Lince, ano 1, n. 6, jun. 2007. Disponível em: <http://www.jornalolince.com.br/2007/jun/historia/capelaesparocos.php>. Acesso em: 7 dez. 2011; Almanak Paulistano.

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é que não apenas criminosos eram levados para a cadeia, mas também todo o tipo de

alienados, lazarentos, loucos furiosos, doentes, entre outros.

Através dos tempos, e da legislação, observamos inúmeras denominações, tanto à

doença (loucura) quanto ao doente, por absoluta ignorância da evolução e tratamento dos

diversos sintomas. Assim, temos desde os “possuídos por demônios” até expressões legais

como “sandeus”, “furiosos”, “desmemoriados”6, ou então “loucos de todo gênero”,

“alienados”, “insanos”, etc. A periculosidade do louco implicava sua segregação, daí a

necessidade de locais específicos para seu recolhimento.

Com a Lei nº 12, de 8 de setembro de 1848, o governo era autorizado a providenciar

a elaboração de plantas e orçamento visando a instalação de um Hospício para alienados. E

São Paulo sai na frente. Era presidente da Província o Padre Vicente Pires da Motta.

Depreende-se que o problema dos alienados recolhidos e aprisionados era muito

grave. Tão grave que o governo Provincial solicitou à Santa Casa de Misericórdia que

abrigasse e tratasse esses doentes. Mas ela se recusou obrigando o governo, em 1852, a

implantar o primeiro Hospício de Alienados na Rua São João, próxima à Avenida Ipiranga,

em prédio de propriedade de Felizardo Antonio Cavalheiro e Silva, alugado por 9 anos, a

360rs anuais. Seu diretor era um leigo, Alferes Thomé d’Alvarenga. Foi inaugurado com 9

doentes e funcionou até 1862 ou 1864 (as datas são conflitantes) nesta casa alugada pela

Província. O projeto era de H. Bastide (sic), orçado para adaptação da chácara de Felizardo

Antonio Cavalheiro e Silva, com 7 salas (para os furiosos), 2 salas e 5 quartos (para os

pacíficos), além de área para enfermeiros, administração, cozinha, quintal de serviços, poço,

etc., e deveria ficar pronto até o final de abril de 18527.

Há relatos de rebelião obrigando a colocação de grades e janelas. Como o espaço

era restrito e a demanda continuava a crescer, a Província resolve comprar, por uma

bagatela, a chácara do cônego Monte Carmelo, na Tabatinguera, e ali instalar o Hospício,

transferindo seus loucos furiosos, pacíficos e demais doentes mentais.

Não é a proposta deste texto discutir a loucura e seu tratamento, mas sim apontar o

uso da chácara do cônego Monte Carmelo para esse fim. A edificação e sua localização no

centro da cidade e às margens de um rio mostrou estar absolutamente fora dos padrões

preconizados pelos protocolos da Medicina vigente à época, devido à insalubridade e

umidade, e aos perigos de rebeliões e fugas.

Em 1893 é contratado o Dr. Francisco Franco da Rocha, primeiro diretor clínico do

Hospício e figura muito conhecida pela criação e instalação do Juquery, este considerado

moderno para os padrões do final do século 19. O novo manicômio, distante do centro

6 Fonte: Ordenações do Reino. 7 Fonte: Documento assinado pelo Conselho de Engenheiros, em 20/3/1852 - Relatório.

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urbano, bem ao contrário do Hospício da Tabatinguera (?), era um misto de colônia agrícola

e hospital.

As buscas foram infrutíferas com relação a planos, desenhos, detalhes dos

elementos constitutivos à época (1859 em diante), restando apenas a descrição textual em

relatórios encaminhados pelo diretor do estabelecimento, Frederico Alvarenga, filho de

Thomé d’ Alvarenga.

Pedro Correa do Lago diz, em sua obra Iconografia Paulistana do Século XIX, que

“Nenhuma outra imagem de São Paulo ou de seus habitantes anterior a 1812 chegou até

nós.”8 São Paulo não era objeto de artistas, mas sim a fauna, flora e belezas naturais do Rio

de Janeiro, capital do Império. Segundo o autor, menos de 15 artistas, viajantes como

Ender, Pink, Bruchell, Landseer, Debret e Hildebrandt, retrataram a cidade de São Paulo.

Provavelmente os documentos iconográficos, produzidos por engenheiros e

arquitetos do Império Brasileiro, que retratam as alterações arquitetônicas, tenham se

perdido no emaranhado de registros de obras públicas, adormecidos em algum arquivo

público ou privado. De qualquer maneira, em seus relatórios, Frederico Alvarenga solicita

alterações significativas para melhorar o aspecto ruinoso do sobrado, ampliação dos “raios”

para abrigar e separar homens de mulheres, loucos furiosos de loucos pacíficos; solicita o

aterramento do Morro da Tabatinguera para ampliação da edificação e aproveitamento para

hortas, jardins, construção de mictórios, etc.

Alvarenga não conseguia recursos com o governo provincial, por isso empregava

dinheiro ganho na loteria nas obras de reparos necessárias para a continuidade de seu

trabalho. Os primeiros médicos a trabalharem no Hospício foram Xavier de Mesquita, João

César Rudge e Claro Homem de Mello.

As dificuldades estruturais e conjunturais

Já em 1870, Alvarenga questionava o espaço dedicado ao tratamento dos alienados:

Este edifício porem, construído em um lugar baixo, junto por um lado, de uma montanha, cujas infiltrações o tornão excessivamente húmido, e por outro lado, da várzea do rio Tamanduatehy, que, principalmente na estação chuvosa, augmenta consideravelmente o volume de suas águas, é reconhecidamente insalubre, e não offerece uma só das condições hygienicas recommendadas para estabelecimentos desta ordem De mais, foi esse prédio, desde os seus princípios, tão mal construído, são tão fracos os seus alicerces, tão inconstantes as suas paredes e de tão má qualidade o seu madeiramento, que sendo ainda novo, acha-se arruinado,

8 LAGO, Pedro Corrêa do (Org.). Iconografia paulistana do século XIX. São Paulo: Metalivros, 1998. p. 11.

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por tal modo que será necessário demolil-o todo, e construil-o desde as suas bases.9

O estado de ruína da edificação é apontado em dois relatórios, no de 31 de

dezembro de 1868 e no de 31 de dezembro de 1869. A verba destinada pela Assembleia foi

de 5:200$00 réis para reparos. O administrador Frederico Alvarenga solicitava, então, as

seguintes obras:

- reedificação a tijolos de paredes externas que sustentarão o grande peso do teto pelo

apodrecimento das madeiras;

- construção de alguns pilares de tijolos em outras paredes internas que sustentarão o

andar superior;

- abertura de portas e janelas para arejar o térreo;

- nova subdivisão do térreo construindo as prisões com paredes de tijolos forradas de

tábua, tendo todas elas uma janela ou ceteira que as tornem claras e ventiladas;

- reforma completa do “soalho” do térreo;

- construção de um “lanço” ou puxado ao sul do edifício para prisões fortes (loucos

furiosos);

- demolição de dois pequenos puxados que servem de cozinha, depósito e a construção

de outro grande para o mesmo fim ao lado norte do edifício;

- construção de muros de tijolos aos lados do edifício para servirem de divisas das

propriedades vizinhas;

- fecho de área para servir de jardim;

- mudança da porta de entrada para o centro do edifício ao lado do poente, que será a

parte principal do Hospício;

- rebocamento, caiação e pintura de toda a casa.

O termo “lanço” significava “extensão do pano de um muro, de uma parede, de uma

fachada...” segundo Antenor Nascentes, no seu “Dicionário da Língua Portuguesa”. Poderia

ser entendido como acréscimo de um cômodo ou extensão de fachada. O lanço seria o

módulo que serviria de orientação na atribuição de valor aos imóveis. “Sendo a São Paulo

Colonial uma cidade predominantemente de taipa de pilão, talvez o ‘lanço’ correspondesse a

dois taipais, totalizando 4,40m, uma vez que o taipal media uma braça (i.e. 2,20m)”10.

Esse espaço destinado ao Hospício da Tabatinguera já não atendia à demanda,

apesar das ampliações e alterações devido ao lugar ser úmido e insalubre. A proximidade

do Tamanduateí e suas enchentes devia ser um tormento para funcionários e pacientes.

9 Fonte: Relatório do Presidente da Província, em 1870, p.35. 10 BUENO, Beatriz Piccolotto. Produção do espaço urbano colonial pela iniciativa privada: Metodologia de estudo com base na Décima Urbana de SP em 1809. Revista Urbanismo de Origem Portuguesa, Lisboa, 2006.

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O edifício sofreu grandes reformas em 1871 e, em 1873, com as intervenções

realizadas no Rio Tamanduateí, ganhou um espaçoso largo11. O Presidente da Província era

João Teodoro Xavier, que, no período compreendido entre 1872 e 1875, realizou uma série

de melhoramentos urbanos na cidade de São Paulo.

Visando melhor acolher os alienados, as alas laterais foram construídas no final do

século 19, mais precisamente de 1871 em diante, conforme os relatórios do diretor

Alvarenga. Acredita-se que os blocos posteriores, em alvenaria de tijolos, tenham sido

erguidos entre 1880 e inícios do século 20.

O engenheiro militar Henrique Luiz de Azevedo Marques – da Província de São

Paulo, que assina o orçamento de 1871 – era capitão ajudante e engenheiro diplomado.

Pertencia à 13ª Brigada de Infantaria12. Seus projetos eram considerados de baixa

qualidade, como no caso do Chafariz Sete de Setembro, projetado em 1874, que precisou

ser desmontado e reconstruído. Contemporâneo seu e crítico contumaz, Antonio Bernardo

Quartim era capitão, depois coronel, da Guarda Nacional (1822-1888), exercendo a função

de empreiteiro de obras públicas13.

A Abertura da Rua do Hospício (em 1874/1875) até a ponte da Mooca, e escavações

operadas sobre o alto morro da Tabatinguera, que estava de 6 a 7 metros do Hospício,

abriu, diante do edifício, vasto largo. Os terrenos desapropriados que acompanhavam a

margem do Rio Tamanduateí foram incorporados onde a parte adjudicada ao Hospício tem,

por todas as faces laterais e posterior, uma divisa natural a do mesmo rio.

A Comissão de Obras (1875), encarregada de levar adiante as obras no Manicômio,

era composta pelo administrador do Hospício, pelo médico e pelo arcipreste Dr. João

Jacintho Gonçalves de Andrade. Esta Comissão providencia o aterramento do terreno para

construção das prisões, casas de banho e jardins (1880). Em 1883 é concluído o novo “raio”

com “casas fortes” e outros cômodos para melhorias da edificação.

Boa parte do edifício está ocupada pelas prisões provisórias construídas no centro

da casa. Obras iniciadas em maio de 1883, pela Comissão do Arcipreste com o pavimento

superior forrado, assoalhado e guarnecido, visam a colocação de grades de ferro, caixilhos,

portas, janelas e do revestimento externo do edifício, além do necessário aterramento de

área para jardim e hortas.

Em ofício de 22 de março de 1886 o diretor Alvarenga pede para trocar 22 janelas

gradeadas em madeira por gradeamento em ferro. Também pede nova porta para o páteo

11 MARTINS, Antonio Egidio. São Paulo antigo (1554 a 1910). São Paulo: Conselho Estadual de Cultura; IMESP, 1973. (Coleção História, 18). 12 Fonte: D.O.U. de 6/8/1898 – Seção I – p. 2. 13 CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura burguesa em São Paulo. 1997. 814 f. Tese (Doutorado em Arquitetura)– Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1997. 4 v.

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dos fundos para limpeza e pequenos compartimentos para mictórios. Nesse mesmo período

é inaugurado o novo “raio” para as mulheres. Em novembro de 1887 é concluído o novo

“raio” para homens. Essas obras foram iniciadas pelo engenheiro Luiz Biancchi Bertholdi e

continuadas por Carlos Daniel Rath, da Repartição de Obras Públicas. Também solicita

providências no sentido de que o extremo norte do primitivo edifício se comunique com o

novo “raio” para homens (em 1888). Já em ofício de 16 de junho de 1890, o diretor

Alvarenga solicita reparos no telhado do corpo principal do edifício e limpeza dos canos de

cobre que o circundam.

No final do século 19, por iniciativa de Franco da Rocha, com projeto de Ramos de

Azevedo, o governo compra um terreno de 170 hectares próximo à estrada de ferro para

abrigar o novo hospício, Juquery. Em área rural e longe do centro urbano, o novo hospício

atenderia à demanda e, ao mesmo tempo, propiciaria a recuperação dos doentes menos

graves.

Segundo autores, o Hospício dos Alienados funcionou na edificação da Rua

Tabatinguera até meados de 1903. Não foram encontrados registros desta data, nem o

translado dos internos para o Juquery, inaugurado parcialmente em 1898.

ANEXOS

ESCRITURA DE VENDA DA CHÁCARA DO TABATINGUERA

[transcrita por Celina Yoshimoto]

Doc 1

1ºT

2 b l

Borba ?

14.5.53

t – x

3.6.8

Borba ?

26.5.69

Escriptura de venda que faz o lvare Joaquim dos Santos

Carmello, a Fazenda Provincial de uma lvares no Taba

tinguera pela quantia de trinta contos de reis, pelo pra

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zo de trez annos a contar do primeiro de Janeiro futuro

como abaixo se declara.

Saibão quantos este publico Instrumento de Escrip

tura de venda virem que no anno do Nascimento de Nos

so Senhor Jesus Christo de mil oitocentos cincoenta ter

nos vinte cinco dias do ter de Novembro do dito anno

nesta Imperial cidade de São Paulo, em meu lvares compa

recerão o lvare Joaquim do Monte Carmello como vendedor

e o Doutor Francisco José de Azevedo Junior, Procurador Fis

cal Provincial por parte da Fazenda Provincial como com

pradora, pessoas reconhecidas de mim Tabelião pelas pro

prias de que dou fé, pelo vendedor me foi dito perante as

testemunhas ao diante nomeadas e assignadas que ele

é senhor possuidor de uma lvares sita nesta Cidade no

lugar denominado = Tabatinguera, o qual consta de um

grande sobrado e terrenos cercados em parte pelo rio Tamandu

atehy e em parte do lado com a lvares de Dona Maria

Joanna da Lus, pelo lado da ladeira do Tabatinguera com

diversas propriedades que ahi existe, como tudo cons

ta da Escriptura que lhe foi entregue pela troca que desta

fora o Doutor João Crispiniano Soares o que entregara

por parte desta Escriptura, cuja lvares assim passou

venda _________o desembargador vendia, como de facto vendera

soma a Fazenda Provincial pela quantia de trinta ter

tos de Reis, a prazos de um, dois e lva annos, a ter

tar de primeiro de Janeiro próximo futuro, em letras

de dez contos de Reis cada uma e com a forma de seis

por cento ao anno desde a dacta das mesmas, conceden

do a parte do seu lvare sobrado na Rua da Esperan

ça necessário para o novo Theatro a cargo do Capitão

Quartim (?) não só para o assentamento do Edifício

como também para a Rua na forma do plano actu

al adotado pelo Excelentíssimo Governo, e alem disto

obrigando-se a fornecer a mobília para o Seminário

dos Educandos que se estabelecera na mesma lvares

____________com colchoens, e travessaeiros e louça para

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uso em relação ao numero actual dos Educandos, e tam

bem a mobília decente para a salla da __________ tu

tudo na forma de sua proposta, despacho do Excelen

tissimo Prezidente desta Província de vinte e sinco de No

vembro do corrente anno, e Officio do Inspetor do The

souro Provincial numero duzentos e setenta e seis de

onze de Novembro do corrente anno dirigido ao ter

mo Excelentíssimo Presidente da Província, sendo

paga a siza e mais despesas em partes iguais ter

ter elles vendedor e comprador. E pelo Doutor Pro

curador Fiscal Provincial dito Francisco José de

Azevedo Junior foi dito que aceitava a venda ci

tadas as condiçoens acima referida. E de como as

sim acharão, outorgarão me pedirão ahi lavrar

a presente nesta data que me foi distribuída pelo

Colletor da distribuição que me foi apresentado, com

o conhecimento da siza e são as seguintes ___________

Escriptura de venda que faz o Reverendo lvare Joa

quim do Monte Carmello a Fazenda Provincial

de uma lvares sita no Tabatinguera pela quantia

de trinta contos de Reis pelo prazo de lva annos a

contar do primeiro de Janeiro lvares futuro em

diante paga a taxa por ambas as partes, e com as

condiçoens que ainda se declarara. São Paulo, vinte

cinco de Novembro de mil oito centos cincoenta nove

Moreira. Colletoria do Districto da Cidade de São

Paulo. Anno financeiro de mil oito centos trinta no

l a mil oito centos e secenta. A folhas vinte e nove

do Livro da Receita fica lançada a quantia de um

conto e oito centos mil Reis que pagou o Senhor Dou

tor Procurador Fiscal Francisco José de Azevedo Ju

nior nos vinte cinco de Novembro do dito anno de Si

za correspondente a seis _____ contos, importan

cia por que comprou para a Fazenda Provincial

uma lvares sita no Tabatinguera Reverendo lvare

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11

Joaquim do Monte Carmello, sendo pago a competente

Siza entre ambos. O Colletor Manoel Joaquim do________

O Escrivão Antonio Alves da Cruz Em consequen

cia de cuja distribuição e siza lavrou a presente que

sendo elas lida aceitarão e assignarão com as teste

munhas lvares Nunes Munhos e o Capitão Regi

naldo Antonio da Cunha, reconhecido o escrivão Emilio

José lvares Tabelião que o escrevi

Joaquim do Monte Carmelo Francisco José de Azevedo Junior

Jerônimo Nunes Munhos Reginaldo Antonio da Cunha

Plantas

São Paulo em 1877

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12

Detalhe da planta com a edificação, 1881. Fonte: São Paulo Abandonada.

Referências

Documentação manuscrita/impressa Arquivo Público do Estado de São Paulo - Relatórios do Presidente da Província de São Paulo publicados nos anos de 1849, 1852,1859 (Hospício Provisório da São João); e de 1870, 1871, 1875, 1876, 1878, 1881, 1882, 1885,1887 e 1889 (Hospício de Alienados na Rua Frederico Alvarenga). - Discurso com que o illustrissimo e excellentissimo senhor doutor Vicente Pires da Motta, presidente da provincia de São Paulo, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no dia 15 de fevereiro de 1849. São Paulo, Typ. do Governo, 1849. - Discurso com que o illustrissimo e excellentissimo senhor dr. José Thomaz Nabuco d’Araujo, presidente da provincia de São Paulo, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no dia1.o de maio de 1852. São Paulo, na Typ. do Governo arrendada por Antonio Louzada Antunes, 1852. - Discurso com que o illustrissimo e excellentissimo senhor senador José Joaquim Fernandes Torres, presidente da provincia de S. Paulo, abrio a Assembléa Legislativa Provincial no anno de 1859. S. Paulo, Typ. Imparcial de Joaquim Roberto de Azevedo Marques, 1859. - Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo pelo presidente da provincia, o exm. sr. dr. Antonio Candido da Rocha, no dia 2 de fevereiro de 1870. S. Paulo,Typ. Americana, 1870.

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13

- Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo pelo presidente da provincia, o exm. sr. dr. Antonio da Costa Pinto Silva, no dia 5 de fevereiro de 1871. S.Paulo, Typ. Americana, 1871. - Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo pelo exm. sr. dr. João Theodoro Xavier, presidente da provincia, no dia 14 de fevereiro de 1875. S. Paulo, Typ. do “Diario”, 1875. - Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo pelo presidente da provincia, exm. sr. dr. Sebastião José Pereira, em 2 de fevereiro de 1876. S. Paulo, Typ. do “Diario”, 1876. - Annexos ao relatorio com que o exm. sr. dr. Sebastião José Pereira passou a administração da provincia ao 5o vice-presidente, monsenhor Joaquim Manoel Gonçalves de Andrade. S. Paulo, Typ. do “Diario”, 1878. - Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo pelo presidente da provincia, Laurindo Abelardo de Brito, no dia 13 de janeiro de 1881. Santos, Typ. a Vapor do Diario de Santos, 1881. - Relatorio... 7 jan. 1882. São Paulo (província) vice-presidente (Souza Aranha) [sic]. Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo na abertura da 2a sessão da 26ª legislatura em 10 de janeiro de 1885 pelo presidente, dr. José Luiz de Almeida Couto. São Paulo, Typ. da Gazeta Liberal, 1885. - Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de São Paulo pelo presidente da provincia, Barão do Parnahyba, no dia 17 de janeiro de 1887. São Paulo, Typ. A Vapor de Jorge Seckler & Comp., 1887. - Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de São Paulo pelo presidente da provincia, dr. Pedro Vicente de Azevedo, no dia 11 de janeiro de 1889. São Paulo, Typ. a Vapor de Jorge Seckler & Comp., 1889 Livros AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo (1895-1915). São Paulo: Saraiva, 1957. BRUNO, Ernani da Silva. História e Tradições da cidade de São Paulo: metrópole do café (1872-1918). Rio de Janeiro: José Olympio; Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. [volumes I-II-III]. BUENO, Beatriz Piccolotto. Produção do espaço urbano colonial pela iniciativa privada: Metodologia de estudo com base na Décima Urbana de SP em 1809. Revista Urbanismo de Origem Portuguesa, Lisboa, 2006. DICK, Maria Vicentina. A dinâmica dos nomes na cidade de São Paulo, 1554-1897. São Paulo: Annablume, 1996. LAGO, Pedro Corrêa do Lago (Org.). Iconografia paulistana do século XIX. São Paulo: Metalivros, 1998. LOURENÇO, Benedicto. Capelães e párocos: subsídios para a História Religiosa de Aparecida. Jornal O Lince, ano 1, n. 6, jun. 2007. Disponível em: <http://www.jornalolince.com.br/2007/jun/historia/capelaesparocos.php>. Acesso em: 7 dez. 2011.

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MARTINS, Antonio Egidio. São Paulo antigo (1554 a 1910). São Paulo: Conselho Estadual de Cultura; IMESP, 1973. (Coleção História, 18). ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. 3 vol. [Edição fac-símile do Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, 14. ed., Rio de Janeiro, Typ. do Instituto Philomathico, 1870]. TOLEDO, Benedito Lima de. Álbum Comparativo da cidade de São Paulo – 1862/1887: Militão Augusto de Azevedo. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo; Secretaria Municipal de Cultura, 1981. Artigos/teses CAMPOS, Eudes. Arquitetura paulistana sob o Império: aspectos da formação da cultura burguesa em São Paulo. 1997. 814 f. Tese (Doutorado em Arquitetura)– Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1997. 4 v. SALGADO, Ivone. Profissionais das obras públicas na província de São Paulo na primeira metade do século XIX: atuação no campo da Engenharia Civil. Histórica: Revista Eletrônica do APESP. São Paulo, ano 6, n. 41, abr. 2010. Disponível em: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao41/materia03/. Acesso em: 7 dez. 2011. Plantas Coleção IV Centenário da Cidade de São Paulo/PMSP SANSONI, Francisco. Mapa da Capital da Província de São Paulo. São Paulo [cópia sem data, de autoria de Francisco Sansoni, do original impresso de 1877 por Fernando de Albuquerque e Jules Martin].

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1

A moral, a política e algumas questões científicas presentes no Hospital do Juquery:

Abordagens de Pacheco e Silva (1923–1950)

Gustavo Querodia Tarelow1

Resumo: O presente trabalho analisa algumas concepções sociais, morais, políticas e científicas de Antonio Carlos Pacheco e Silva, que, entre outros cargos, ocupou a direção do Hospital do Juquery entre 1923 e 1937. Entre seus textos e discursos é possível notar seu alinhamento aos ideais eugênicos correntes no período analisado e a sua busca por dar maior impulso à ciência psiquiátrica, expandindo seus preceitos e visando a normatização da sociedade. Para tanto, defendeu a seleção imigratória, o exame pré-nupcial, a esterilização compulsória dos “degenerados”, entre outras medidas mais ou menos drásticas. Palavras-chave: História da Psiquiatria. Eugenia. Juquery. Abstract: This article analyzes the social, moral, political and scientific concepts of Antonio Carlos Pacheco e Silva, who, among other positions, held the direction of Juquery Hospital between 1923 and 1937. Among his writings and speeches is possible to note its alignment with the eugenic ideal in the period analyzed and its attempt to give greater impetus to psychiatric science, the expansion of its precepts of social control. To do so, he defended the selection of immigration, premarital examination, compulsory sterilization of "degenerates" among other more or less drastic measures. Keywords: Psychiatry history. Eugenics. Juquery.

Introdução

Antonio Carlos Pacheco e Silva nasceu em São Paulo, capital, no dia 29 de maio de

1898, ano em que foi inaugurado o Hospício de Juquery sob a direção de Francisco Franco

da Rocha, idealizador daquele hospício e figura principal do alienismo paulista do final do

século XIX e das primeiras duas décadas do século XX. Ao optar pela formação médica,

que se deu na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1920, Pacheco e Silva teve a

sua trajetória entrelaçada à do Juquery, que naquele momento já era um manicômio de

proporções grandiosas e que pretendia ser um modelo de assistência e de eficácia

terapêutica em Psiquiatria. Segundo Maria Gabriela S. M. C. Marinho:

De origem familiar fortemente enraizada na plutocracia paulista, Pacheco e Silva era neto dos Barões de Itatiba, pelo ramo paterno, e dos Barões de Araras, pelo ramo materno. Filho de Pérsio Pacheco e Silva, fazendeiro e cafeicultor da região de Campinas e de Escolástica de Lacerda Pacheco e

1 Mestrando em História Social pela FFLCH-USP sob a orientação da Profª. Drª. Maria Amélia M. Dantes. É pesquisador no Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP e professor de História do Colégio Integrado Americano. E-mail: [email protected].

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2

Silva, seus vínculos familiares estavam solidamente vincados na política local e nacional. Sobrinho do também médico Gabriel de Toledo Piza, embaixador do Brasil na França, seu contato com a Europa ocorreu muito cedo, ainda criança, e se estendeu ao longo de sua formação. Pacheco e Silva pôde, assim, conviver com os “esplendores” de Paris do início do século XX, nos momentos finais da “belle-époque” francesa, conforme relatos deixados por ele.2

Ao assumir a direção do Juquery em 1923, sucedendo Franco da Rocha, Pacheco e

Silva passou a galgar cargos e títulos que lhe conferiram um papel de destaque nos âmbitos

médicos, sociais, políticos e acadêmicos até a sua morte, em 27 de maio de 1988. Tendo a

sua trajetória construída em um momento em que as instituições públicas, por diversas

vezes, se confundiam com a imagem de seus dirigentes, Pacheco se tornou uma figura

pública influente tanto do ponto de vista da formação de novos profissionais da saúde

quanto nos rumos seguidos pelas instituições em que atuou. Com uma posição ideológica

sempre conservadora, imprimiu em suas publicações e conferências pontos de vista

voltados à manutenção da ordem e da moral oriundas das camadas mais abastadas da

sociedade de seu período.

Pacheco e Silva teve uma longa carreira médica e uma ampla atuação em vários

órgãos que obtiveram repercussão em diversas camadas da sociedade brasileira e

internacional. Além da direção do Juquery, entre 1923 e 1937, ele fundou, em 1926, a “Liga

Paulista de Higiene Mental”, ligada à Liga Brasileira, da qual já era membro. Em 1930 se

tornou diretor do Departamento de Assistência aos Psicopatas de São Paulo e em 1934 foi

indicado pelo setor industrial à Assembleia Nacional Constituinte, onde defendeu diversos

preceitos eugênicos3; em 1932 iniciou sua carreira docente na Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, ministrando a disciplina de “Psiquiatria Forense”, e em 1935 foi

aprovado no concurso para a Cadeira de “Clínica Psiquiátrica” da Faculdade de Medicina

desta mesma Universidade, permanecendo no cargo até 1967, além de ser contratado e

ministrar a aula inaugural da Escola Paulista de Medicina também em 1935.

Ligado às teorias organicistas de explicação dos distúrbios mentais, Pacheco e Silva,

ao longo de sua carreira, se posicionou contrário ao uso da Psicanálise e introduziu no

Brasil algumas técnicas terapêuticas peculiares, como a Malarioterapia e a

Eletroconvulsoterapia no Juqueri e no Sanatório Pinel, instituição da qual foi um dos

fundadores. Sua atuação chegou a níveis internacionais, fazendo intercâmbios culturais com 2 MARINHO, M. G. S. M. C. Intelectuais e saber médico. História da Psiquiatria e das Práticas Médicas no “Fundo Pacheco e Silva”. In: Centenário Simão Mathias: Documentos, métodos e identidade da história da ciência. São Paulo: PUC, 2008. p. 216. 3 Pacheco e Silva compilou vários de seus discursos na Constituinte no livro Direito à Saúde, editado em 1934 e que será analisado neste trabalho.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 51, dez. 2011

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a França, Estados Unidos, Suécia e vários países da América Latina, além de colaborar na

direção da Organização Mundial de Saúde Mental.

Com sua influência, se aproximou da política em um momento em que a Psiquiatria

passou a intervir no seio da sociedade para “prevenir” os distúrbios mentais, desenvolvendo

programas de combate ao alcoolismo, de educação infantil. Sua atuação política foi vasta,

chegando a ser um dos diretores da Liga Anticomunista Internacional e um dos apoiadores

diretos do golpe militar de 1964. Apesar de ele ter trilhado uma longa trajetória acadêmica e

institucional, no presente trabalho analisarei somente algumas de suas concepções acerca

das doenças mentais tratadas no Hospital do Juquery no período em que ele dirigiu essa

instituição.

Pacheco e Silva: Psiquiatria, Eugenia e a proposição de políticas públicas

Pacheco e Silva manteve ao longo de sua trajetória profissional uma postura

conservadora diante de temas como a imigração, o casamento, a “higiene mental”, o

homossexualismo, as religiões, entre outros. Para fazer valer as suas opiniões, galgou

cargos e fundou instituições que, de alguma maneira, pudessem dar eco às suas posições

diante dos temas citados acima. A ferramenta mais usada por ele para que os seus ideais

fossem difundidos foi a aproximação com os setores mais abastados da sociedade, bem

como a publicação de textos em revistas científicas e em jornais direcionados ao grande

público, sobretudo o jornal O Estado de São Paulo.

Alinhado às concepções eugênicas, Pacheco e Silva acreditava que a eugenia era

um complemento às teorias de seleção natural e evolução das espécies de Charles Darwin.

Para os eugenistas era possível, em relação aos seres humanos, racionalizar esta “seleção

natural” com a finalidade de promover uma sociedade mais desenvolvida, a partir de seres

humanos mais sadios e com uma formação genética “superior”. Para tanto, buscava-se

controlar a natalidade e eliminar os resquícios dos “degenerados”, entendendo que as

mazelas da sociedade eram oriundas da hereditariedade das “raças menos desenvolvidas”4.

Segundo Pacheco e Silva,

[...] a eugenia não só tem por fim a procriação em boas condições fisiológicas, como ainda estuda as causas disgenéticas ou as que podem

4 A discussão historiográfica sobre a Eugenia é ampla e há obras de extrema qualidade. Para um bom entendimento sobre o tema, ver MOTA, A. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

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influir direta ou indiretamente sobre o valor da espécie, dando a cada cidadão o sentimento de responsabilidade na formação da raça.5

Um marco na sua atuação e no alinhamento aos ideais eugênicos correntes no

período foi a fundação da Liga Paulista de Higiene Mental, uma filial da Liga Brasileira, em

1926, isto é, apenas três anos após a sua nomeação à direção do Juquery. Esta Liga

promovia campanhas na tentativa de educar a população sobre os supostos riscos da

mistura racial, do uso de bebidas alcoólicas, do sexo fora do casamento, da entrada de

imigrantes “degenerados” no Brasil, da suposta anormalidade das práticas homossexuais,

das crenças nas religiões espíritas, entre outros temas. O principal instrumento de

divulgação das concepções dos psiquiatras filiados à Liga eram os “Arquivos Paulistas de

Higiene Mental”. A partir de tais publicações, é possível notar que Pacheco e Silva

acreditava que a educação eugênica da população poderia reduzir o número de doentes

mentais entre a população paulista.

Desta maneira, a “melhoria da raça”, no caso brasileiro, não teria que passar

somente pelo controle de natalidade ou pela fiscalização das “transmissões genéticas”, mas

deveria estar calcada na educação da população e na ampliação da atenção sanitária a

todas as camadas da sociedade. Justamente por esta razão é que os psiquiatras adotaram

o nome de “Higiene Mental” para tal movimento, já que entendiam que a preservação do

bem estar da mente era tão fundamental quanto a luta contra a malária ou a febre amarela,

por exemplo6.

Além das publicações de textos nos “Arquivos Paulistas de Higiene Mental”, os

psiquiatras, encabeçados por Pacheco e Silva, realizavam campanhas em rádios, afixavam

cartazes em locais públicos, panfletavam nas portas das fábricas, entre outras estratégias.

Desta maneira, São Paulo passou a ter grande destaque entre os eugenistas brasileiros, por

aglutinar duas características peculiares: possuir uma organização sanitária mais bem

desenvolvida que o restante do país e ter em sua raiz cultural a autoimagem de uma “raça

superior”, fundada pelo “espírito desbravador bandeirante”, como bem aponta André Mota:

Afirmava-se que quem chegasse em solo paulista, logo constataria as particularidades da história do Estado, corporificadas em seus habitantes, em suas cidades e sobretudo em suas instituições médicas. Os estrangeiros que aportassem em ‘terras bandeirantes’ deveriam ter as melhores impressões da organização médico-sanitária realizada pelos serviços de

5 PACHECO E SILVA, A. C. Direito à saúde (documentos de atividade parlamentar). São Paulo: [s.n.], 1934. p. 76. 6 Para uma análise mais completa deste processo e da constituição da Psiquiatria Social, ver MACHADO, R. et al. Danação da norma: a medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

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higiene e suas instalações. Segundo os dirigentes, não poderia ser de outro modo, pois o estágio de desenvolvimento de um país se julgava pela expansão de sua instrução pública, que era preparo do futuro da nação, e pelo rigor de seus cuidados higiênicos, pois a saúde de seus habitantes garantiria o presente e preservaria o futuro.7

Vários médicos de renome faziam parte da liga paulista, entre os quais podemos

citar Enjolras Vampré, Geraldo de Paula Sousa, Cantídio de Moura Campos, João Carvalhal

Ribas, Paulo de Camargo, entre outros. Estes colaboraram com propostas e atuaram

significativamente em prol da legitimidade deste movimento entre a sociedade e na busca

pela incorporação de seus ideais entre os dirigentes políticos para que a “Higiene Mental” se

tornasse uma verdadeira política pública8. Todavia, Pacheco e Silva foi quem deu ao

movimento paulista suas principais características, se tornando um porta-voz da liga entre

os vários círculos em que participava.

Ainda a respeito das concepções eugênicas defendidas por Pacheco e Silva, é

importante ressaltar que ele as defendeu de maneira fervorosa quando representou São

Paulo na Assembleia Constituinte Nacional de 1934, sendo indicado ao cargo de deputado

pelo setor industrial paulista. A maioria destes discursos foi compilada no Livro “Direito à

Saúde”, publicado ainda em 1934. Em um de seus discursos registrados no livro citado, faz

uma defesa aberta da esterilização de doentes mentais, assim como se praticava nos

Estados Unidos, desde 1907:

Os que se dedicam ao estudo das questões sociais verificam que há um perigo crescente a ameaçar a sociedade moderna, o número de anormais que aumenta anualmente, os quais provocam reações anti-sociais, dificultando a vida dos seus semelhantes. A sociedade não pode assistir impassível a esse espetáculo e deve defender-se adotando medidas que impeçam a multiplicação dos grandes anormais físicos e mentais. Se existe dificuldade em se estabelecer limites entre os casos em que a esterilização pode ou não ser aplicada, nem por isso êsses problemas devem ser descuidados, porque tocam de perto a formação racial e visam um alto objetivo, que é o de diminuir o número de infelizes inocentes que vieram ao mundo trazendo um vício de origem, única herança que, na maioria das vezes, recebem dos pais. Impedir a perpetuação das estirpes taradas, evitar a procriação de indivíduos malsãos, cuja prole tudo leva a crer ser inferior, é incontestavelmente um grande passo na solução de problemas sociais.

7 MOTA, A. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 52. 8 URQUIZA, L.M.P.F et al. (Orgs.). Psiquiatria, loucura e arte: fragmentos da história brasileira. São Paulo: Edusp, 2002. p. 92.

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Só assim poderá a sociedade, livre de parte das despesas feitas com a manutenção de tantos asilos e prisões, fazer reverter maiores somas para o progresso e para o bem da sociedade.9

Outra proposta que Pacheco e Silva defendia era a obrigatoriedade do “Exame pré-

nupcial”. Esta proposta se baseava na ideia de que todos os noivos que pretendiam se

casar deveriam se submeter a um rigoroso exame médico para terem certificado pelo

médico que os filhos, que eventualmente poderiam ter, nasceriam com uma boa saúde

mental. Esta teoria se baseava na concepção de “degeneração”, que previa que indivíduos

de “raças inferiores”, isto é, negros, doentes mentais, pessoas com alguma deficiência

física, entre outros, não se casassem com indivíduos “sãos”, o que supostamente poderia

prejudicar o futuro da espécie humana.

Na abertura do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, Pacheco e Silva

afirmou:

Com o correr dos tempos, o número crescente de doentes mentais recolhidos aos hospitais, as dificuldades cada vez maiores em que se encontrarem os poderes públicos e a iniciativa particular para assistir e tratar a essa legião de incapazes, acabarão por convencer a todos que sem medidas obrigatórias, com objetivos eugênicos, entre as quais sobressai a adoção do certificado pré-nupcial, poderão contribuir para tornar a raça mais sadia, diminuir os sofrimentos da humanidade e facilitar o progresso e o bem estar das futuras gerações.10

Outra forma de “defesa e fortalecimento da raça” presente em seus discursos era a

seleção racial dos imigrantes que chegavam em grande número no Brasil. Pacheco e Silva

era partidário de uma corrente eugênica que acreditava que determinadas raças eram

“inferiores” à ariana e que a miscigenação acarretaria no prejuízo da civilização. Desta

maneira, incentivava a entrada de europeus em detrimento dos africanos, muçulmanos e

japoneses, por ver nestes povos uma ameaça a “homogeneidade da população” devido às

suas características culturais e religiosas, que poderiam ser perniciosas para a “raça em

formação”. As justificativas para a proibição da entrada de determinados povos também se

pautava por questões morais, como no caso da imigração japonesa, que segundo Pacheco

e Silva era uma estratégia do governo daquele país para tomar o poder em diversas partes

do mundo, entendendo que os imigrantes não passavam de “espiões do imperador”. Além

9 PACHECO E SILVA, A. C. Direito à saúde (documentos de atividade parlamentar). São Paulo: [s.n.], 1934. p. 97. 10 PACHECO E SILVA, A. C. Discurso proferido na abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. São Paulo: Acervo do Museu Histórico da FMUSP, 1929. p. 1.

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disso, acreditava que este povo era violento e imoral, dado o grande número de suicídios e

de violência familiar naquele país11.

Pacheco criticava também o governo brasileiro, que aceitava, sem qualquer tipo de

restrição, a entrada de “deficientes físicos e mentais”, de “inválidos” e de pessoas com

sequelas da Primeira Guerra, o que fazia do país um “depósito de degenerados”, que para

ele significava a possibilidade de superlotação dos manicômios e de instituições asilares,

como vemos a seguir:

Vê-se, assim, em um país imigratório, como é o nosso, cumpre um exame atento, não só na escolha dos grupos raciais, como também na rigorosa seleção individual dos imigrantes visando beneficiar a raça em formação. Basta lembrar que nossas estatísticas acusam uma porcentagem de alienados criminosos estrangeiros duas vezes maior que a de nacionais.12

e ainda:

A nossa experiência mostra que a assimilação das raças brancas do sul da Europa se faz com grande rapidez e muitas vantagens. O Dr. Paulo Azevedo Antunes um dos estudiosos desses assuntos entre nós, demonstrou, em exaustivo trabalho, a superioridade da raça ariana, concluindo: ‘[...] depreende-se, e o bom senso faz supor, que o cruzamento da raça branca com qualquer das outras duas será um prejuízo para a primeira sob o ponto de vista intelectual. Baseados nisto, quando tivermos de escolher o imigrante para o nosso país devemos procurá-lo na raça branca e evitar a todo o transe que se introduzam imigrantes pretos e amarelos’.13

Outro aspecto a ser salientado no projeto de desenvolvimento nacional de Pacheco e

Silva, e de toda a LPHM, é a atenção à infância como fator fundamental para a formação de

uma civilização avançada e bem estruturada. Esta responsabilidade na formação era

atribuída à família e à escola, que deveriam estar atentas aos preceitos higiênicos que

fossem capazes de afastar as novas gerações do álcool e dos vícios em geral para formar

trabalhadores sadios e adaptados. Podemos verificar estas concepções no Boletim de

Higiene Mental, número 57, de maio de 1949, onde Pacheco e Silva afirma que:

Compreendeu-se que cabe aos adultos a responsabilidade do futuro da geração que surge; que uma educação racional, em um ambiente sadio,

11 PACHECO E SILVA, A. C. Direito à saúde (documentos de atividade parlamentar). São Paulo: [s.n.], 1934. p. 40. 12 PACHECO E SILVA, A. C. Direito à saúde (documentos de atividade parlamentar). São Paulo: [s.n.], 1934. p. 34. 13 PACHECO E SILVA, A. C. Direito à saúde (documentos de atividade parlamentar). São Paulo: [s.n.], 1934. p. 38.

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poderia reduzir a criminalidade e o desajustamento social a proporções insignificantes. Nasceu assim a higiene mental infantil.

Além de olhar para o futuro, a Higiene Mental também tinha como foco a saúde dos

trabalhadores, sobretudo os das grandes cidades, que apresentavam inúmeros “problemas

de adaptação” tanto às maquinas que operavam quanto à realidade social em que estavam

inseridos. Para Pacheco e Silva, esta inadaptação era responsável pela baixa produtividade,

pelos vícios em geral e pelos inúmeros casos de distúrbios mentais, que superlotavam os

manicômios. Assim, a atenção ao proletariado não era somente um fator importante para a

regeneração moral do país, mas um verdadeiro projeto de desenvolvimento econômico,

pautado por uma relação mais “sadia” entre o trabalhador e o mercado.

Havia, desta forma, uma tentativa de normatização das relações de trabalho,

buscando uma boa relação entre os trabalhadores e entre estes e os patrões, reduzindo e

explicando as lutas de classes pelo discurso psiquiátrico da “inadaptação”. As greves e

movimentos de contestação eram atribuídos à “influência das massas por personalidades

psicopáticas”.

Outra forma de normatização dos trabalhadores se originava no combate aos, já

citados, “venenos sociais”. As intervenções nas fábricas e no seio da sociedade precisavam

de legitimidade e, para isso, o campo discursivo foi composto em duas frentes: aos

operários a campanha era baseada nos prejuízos à saúde e à família que o álcool e os

demais vícios geravam; aos patrões a fala era direcionada no sentido de apontar os efeitos

diretos que estes “venenos” tinham sobre a produtividade de seus funcionários. Justamente

por isso, as portas das fábricas foram abertas e a Higiene Mental acolhida pela elite paulista.

Como porta-voz deste movimento, Pacheco e Silva foi reconhecido pela classe patronal,

sendo indicado por ela para representar São Paulo na Assembleia Nacional Constituinte de

1934. Além disso, foi vice-presidente do Instituto de Organização Racional do Trabalho

(IDORT) e um dos diretores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).

Tendo em vista a suposta ignorância da população em relação a estes “venenos” é

que os higienistas passam a divulgar seus pressupostos. Assim, entre os trabalhadores

procurava-se criar a consciência de que a embriaguez era responsável por inúmeros

acidentes de trabalho e que era o germe da destruição da família. Um bom exemplo a ser

citado é a recomendação que foi feita aos “chauffers” no Boletim de Higiene Mental número

35, de julho de 1947:

Cada um de nós, no momento de ingerir um trago, deverá recordar que vamos pôr em risco a nossa saúde, a nossa vida, o nosso carro e os nossos passageiros, para não falar nos transeuntes. Se por acaso acontece um

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desastre e a nossa carta é cassada, a nossa profissão fica prejudicada, segue-se a falta de trabalho, freqüentemente a prisão e grandes prejuízos pecuniários, pois seremos forçados a despender todas as nossas economias, contrairemos dívidas e perderemos nosso crédito; as nossas esposas e filhos ficarão na miséria. Vale o álcool tantos sacrifícios? Por certo que não.

Além da luta contra os entorpecentes, os psiquiatras buscavam criar uma educação

sexual, elegendo como alvo a ser combatido a sífilis, que apresentava números elevados de

contágio entre todas as camadas sociais. Do ponto de vista clínico, esta era uma

preocupação antiga da Psiquiatria, visto que, se não tratada adequadamente, podia gerar

graves distúrbios nervosos como a “Paralisia Geral Progressiva”. Neste sentido, a família

era entendida como a base da organização social e por isso deveria ser preservada para

garantir a manutenção da ordem de toda a hierarquia política. A mulher se constituía como

elemento de fundamental importância já que, no cuidado do lar, deveria zelar pela

manutenção do casamento e pela educação dos filhos, dentro dos preceitos higiênicos, para

formar a geração “forte e sadia” de amanhã14.

Finalmente, para concluir a linha de raciocínio de Pacheco e Silva sobre a formação

de um país desenvolvido, vale citar a crítica religiosa que desenvolveu, direcionando seus

discursos contra os credos afro-brasileiros. São vários os textos publicados por este

psiquiatra condenando as práticas espíritas, como a Umbanda e o Candomblé,

considerando-as fomentadoras de “paranoias coletivas”, comprovadas na prática

psiquiátrica:

[...] proliferam em todos os cantos, numerosos centros espíritas, atraindo um número imenso de pobres criaturas, incultas e crédulas, que se deixam facilmente arrastar pelas mais absurdas idéias, persuadidas de que no espiritismo podem encontrar soluções felizes [...] O que mais surpreende é o fato de pessoas de certa categoria social, de instrução secundária e até superior, participarem dessas atividades perniciosas e condenáveis.15

Conclusão

Inserido em um amplo movimento, chamado de Higiene Mental, Antonio Carlos

Pacheco e Silva deixou registradas as concepções de um psiquiatra plenamente consciente

de que vivia em um momento de grandes transformações, tanto no âmbito político quanto

14 COUTO, R. C. C de M. Nos corredores do Pinel: Eugenia e Psiquiatria. 1999. Tese (Doutorado)– FFLCH- USP, São Paulo, 1999. 15 COUTO, R. C. C de M. Nos corredores do Pinel: Eugenia e Psiquiatria. 1999. Tese (Doutorado)– FFLCH- USP, São Paulo, 1999. p. 5.

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científico e social. Por isso buscou contribuir para a solução dos problemas latentes da

sociedade em que estava inserido, apregoando um modelo de sociedade extremamente

conservador.

Pacheco e Silva militou politicamente até os últimos anos de sua vida, na década de

1980, acompanhando as transformações de sua especialidade médica e das relações

sociais que se seguiram em âmbito mundial, mantendo-se convicto de certos pontos de vista

defendidos no início de sua carreira. Após presenciar o extremismo de alguns preceitos

eugênicos na Alemanha e Estados Unidos, a ideia de inferioridade racial perdeu sua força

na psiquiatria brasileira a partir de meados da década de 1950.

Assim, fruto de seu tempo, Antonio Carlos Pacheco e Silva explicitou em sua obra o

anseio de consolidar uma identidade nacional ligada à legitimação do Estado brasileiro, para

que desta maneira o país pudesse se inserir no rol das nações mais desenvolvidas do

mundo. Do ponto de vista científico, aliou pesquisa, moral e desenvolvimento nacional para

contribuir para a consolidação da Psiquiatria como uma verdadeira especialidade médica e,

mais que isso, uma ciência fundamental para o progresso da civilização.

Finalmente, suas concepções moralistas, organicistas e “higiênicas” não se

prenderam ao campo das ideias, transformando-se em políticas públicas, artigo

constitucional (artigo 138 da Constituição de 1934) e alcançando prestígio entre os

industriais, intervindo de maneira direta na vida do operariado. Suas ideias foram

reformuladas ao longo do tempo, porém o legado de seus ideais “higiênicos” se mostram

atuais, como vemos nos testes psicológicos, na seleção profissional, entre outras medidas,

o que torna a análise dos discursos de Pacheco e Silva, e de todo o movimento de higiene

mental, atual e de suma importância para a compreensão dos alcances da psiquiatria e da

própria organização social a qual estamos submetidos.

Referências bibliográficas

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URQUIZA, L.M.P.F et al. (Orgs.). Psiquiatria, loucura e arte: fragmentos da história brasileira. São Paulo: Edusp, 2002. p. 92.

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EU VI, EU DISSE, O DOUTOR FOI QUEM DISSE:

A presença médica nas sentenças dos processos crime (1890–1940)

Maíra Rosin1

Resumo: Este artigo tem como objetivo apontar a influência dos laudos médicos (exames de corpo de delito) das vítimas nas sentenças dos processos penais na cidade de São Paulo entre os anos de 1890 e 1940. Nesse período, São Paulo apresentava um grande crescimento populacional devido ao processo de imigração e êxodo rural, o que contribuiu também para o aumento da criminalidade na cidade, em especial nas áreas mais pobres, como os cortiços e zonas de habitações coletivas. Em paralelo, crescia também a participação dos médicos, discípulos de Nina Rodrigues e impregnados das teorias de Cesare Lombroso, nos processos penais. Para apontar esse paralelo foram trabalhados dois processos de defloramento de datas distintas cujas sentenças dependeram ou não da participação médica. Palavras-chave: Medicina Legal. Direito Penal. Defloramento.

Este excerto faz parte de uma pesquisa que está sendo desenvolvida desde 2007

através do grupo de estudos coordenado pelas professoras doutoras Maria Odila Leite da

Silva Dias e Lucília Santos Siqueira, o qual ao longo destes quatro anos coletou cerca de

600 processos-crime no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Desenvolvi, portanto, meu projeto de mestrado a partir desse material coletado,

tendo como fontes principais os processos-crime e o Código Penal de 1890. O objetivo do

projeto é apontar as diferenças nas sentenças e abordagens policiais nos casos que exigiam

laudos médico-legais a partir do crescimento da importância da Escola de Medicina Legal e

da aplicação das teorias da Escola Positiva, que visava comprovar sinais atávicos da

delinquência através de exames médicos, além de oficializar, por meio de exames corporais

(exame de corpo de delito), quaisquer tipos de marcas nos corpos das vítimas de crimes na

cidade de São Paulo.

Com o imenso crescimento populacional na São Paulo do começo do século

cresceram também os índices de criminalidade na cidade, que resultaram na produção de

centenas de processos-crime, em parte arquivados atualmente no Arquivo do Estado de

São Paulo e outra grande parte no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

onde os processos aqui citados foram consultados. É importante constar que esses

processos não têm catalogação padronizada, portanto optei pelo uso do número da etiqueta

afixada neles e, na falta dela, pelo nome do réu, autor do processo e ano da abertura deste.

1 Graduada em História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2010 e aluna do programa de mestrado em História Social na Universidade de São Paulo sob orientação da Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias.

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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 51, dez. 2011

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Evolução das populações de São Paulo, do Rio de janeiro e do Brasil – 1872-1920

Anos São Paulo Rio de Janeiro Brasil B/A D/C

Estado A Cidade B Estado C Cidade D % %

1972 837.354 23.243 1.057.696 274.972 9.930.47 2,7 25,9

1890 1.384.753 64.934 1.399.535 522.651 14.333.915 4,6 37,3

1900 2.282.279 239.934 1.617.600 691.565 17.318.556 10,5 42,7

1920 4.592.188 579.033 2.717.244 1.157.873 30.635.605 12,6 42,6

1934 6.433.327 1.003.202 16

Fonte: SZMRECSANYI, Tamas; SILVA, Sérgio S. (Orgs.). História Econômica da Primeira República. São Paulo: Hucitec, 2002. p. 354.

Para este artigo escolhi trabalhar as diferenças entre dois processos similares, de

datas distintas, e a partir deles apontar algumas diferenças e semelhanças, articulando-os

também com alguns autores que trabalharam os tipos de crimes abordados, neste caso os

crimes de conjunção carnal e contra a honra (Capítulo I do Código Penal de 1890 – Da

Violência Carnal – “Crime contra a segurança da honra e honestidade das famílias”). Este

tipo de crime foi escolhido uma vez que obrigatoriamente requeria perícia médica que o

comprovasse, já que nesses casos apenas a palavra da vítima não era suficiente para

atestar sua condição de deflorada, mesmo que outras testemunhas viessem a confirmar seu

depoimento.

Este artigo do Código Penal defende fundamentalmente as instituições da família e

do casamento – uma herança das Ordenações Filipinas, em que o crime de conjunção

carnal aparece pela primeira vez, e do Código Penal do Império, tendo sido substituído pelo

crime de sedução no Código Penal de 1940. Boris Fausto aponta que houve uma mudança

até mesmo nas relações afetivas nesse período, e que essas mudanças podem ser vistas

em algumas das diferenças colocadas para este tipo de crime no Código Penal de 1940,

que coloca os crimes sexuais na categoria de “crime contra os costumes”2.

Luis Ferla descreve como o laudo médico-legal se caracterizou diante da sociedade

para que ganhasse tal importância no universo jurídico: “O exame médico legal se constituiu

em instrumento de exercício de poder. Enquanto documento escrito, legitimado pela ciência

e manipulado por juízes, policiais e burocratas, ajudou a reescrever muitos destinos

humanos”3.

É fato que mesmo nos casos analisados para esta comunicação os dizeres médicos

mudam completamente a relação entre a ofendida e o agressor. Se no laudo o médico 2 FAUSTO, Boris. Crime Sexual. Crime e Cotidiano. São Paulo: Edusp, 2001. p. 197. 3 FERLA, Luis. O exame médico legal enquanto discurso competente. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo. São Paulo: Alameda, 2009. p. 206.

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dissesse que a vítima possuía os seios flácidos ou que aparentemente seu defloramento

não se deu ao tempo que ela declarava, ou ainda outras evidências médicas, como, por

exemplo, de que a vítima não era mulher honesta, o laudo podia ser prejudicial a ela.

Para as mulheres, a virgindade era seu bem mais precioso, pois era o que garantia

um bom casamento e a possibilidade de constituição familiar. Uma mulher desonrada jamais

atingiria esse objetivo. Há relatos de mulheres que mantinham diversos tipos de contato

sexual com seus namorados, sem jamais deixarem-se deflorar para não romper o hímen, o

que lhes garantia a manutenção da honra. É o que trabalha Sueann Caulfield em seu livro

Em Defesa da Honra, no qual afirma que ao serem defloradas, as meninas perdiam sua

honra e, como consequência, a possibilidade de casamento com outro que não seu próprio

deflorador4. Muitas acusavam namorados ou outros homens com quem mantinham relação

marital por seus defloramentos. Muitas mulheres grávidas denunciavam seus defloradores já

perto de dar à luz, buscando assim uma forma de seus companheiros legalizarem seu

casamento, única maneira de se retomar a honra que se havia perdido com o defloramento.

O estupro, como salienta José Leopoldo Ferreira Antunes, se enquadra como um

outro tipo de crime, no qual a vítima não teve meio de defesa contra seu ofensor5. Antunes,

assim como Sueann Caulfield e Martha Abreu6, também coloca como equivocado o

pensamento de que é a presença do hímen que garante a honestidade e a virgindade. Hoje

sabemos que este pensamento é errôneo, pois nem sempre o hímen é rompido durante o

defloramento. Porém, a ideia vigorava na época e era a primeira questão a ser tratada em

todo laudo de defloramento: “1. Se há ruptura da membrana himenal”.

O primeiro caso aqui abordado, datado de 1893, trata do defloramento da menor

Margarida Striza, 13 anos, brasileira, de constituição fraca e estatura regular, por seu pai,

Cristovam Striza7, 50 anos, casado, roceiro, brasileiro, natural de Itapecerica. Segundo os

autos do processo, Margarida fora deflorada por seu pai sob emprego de força ao levá-la

para lenhar na roça onde moravam. Neste caso, apesar de constar até o fim dos autos como

defloramento, sabemos que a idade da vítima e o emprego da violência caracterizam um

crime de estupro, portanto foi classificado pela justiça no artigo 267 do Código Penal

(defloramento) e nos artigos 273 e 274, que caracterizam o uso da força e ausência de meio

de defesa da vítima, respectivamente.

4 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. 5 ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Sexo. In: ______. Medicina, leis e moral: Pensamento Médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1999. p. 161-232. 6 CAULFIELD, Sueann; ABREU, Martha. 50 anos de virgindade no Rio de Janeiro (as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular – 1890 a 1940). Caderno espaço feminino, Uberlândia - MG, v. 1/2, 1995. 7 A Justiça contra Cristovam Striza - 1893. Processo A81 506G0472 – 0016 – 0 do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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O exame de corpo de delito de Margarida está incorporado às primeiras informações

do processo. Suas conclusões são informadas pelo escrivão, que aponta os relatos dos

médicos, sem citar seus nomes e sem que assinem o laudo validando as informações ali

presentes, ou seja, funciona apenas como um informativo, como um validador da palavra da

vítima por um profissional qualificado. O parecer médico atesta que Margarida está

deflorada, que o defloramento não é recente e que a menor apresenta doença pós-

traumática, sem especificar qual. As perguntas características no exame de defloramento

também não estão apresentadas no processo de Margarida.

Todas as testemunhas, roceiros moradores do bairro da Colônia, em Santo Amaro,

relatam terem tomado conhecimento dos fatos pela mãe de Margarida, que procurou um

vizinho, Antonio Rodrigues da Silva, para que este pudesse ajudar a estancar a hemorragia

da menina, que, segundo os relatos de todas as testemunhas, estava ensanguentada após

a violência sofrida, e que o vizinho chamou o padrinho de Margarida, Miguel Rogenbach,

para que tomasse ciência da história da menina. No interrogatório, o réu, Cristovam Striza,

nega que tenha deflorado a filha. Diz que o culparam pelo ato, mas não sabe dizer quem o

culpou nem quando foi culpado.

Novos depoimentos são solicitados, porém na presença do juiz. Novamente as

testemunhas confirmam seus depoimentos anteriores, garantindo que a menor Margarida

fora deflorada pelo pai através do emprego de grande violência, dadas as escoriações e

traumas por ela apresentados quando foi procurar sua mãe para contar o ocorrido.

Há mais uma convocação das testemunhas para depoimento, e novamente todos

afirmam o mesmo que anteriormente sobre o caso de Margarida.

O réu é julgado e preso. O laudo médico não é citado em nenhum momento como

prova que atestasse o crime, ficando claro que os vários depoimentos das testemunhas

tiveram grande influência na decisão final do juiz.

O segundo caso, já do ano de 1930, trata do defloramento da também menor Antonia

Raposo, de 14 anos, brasileira, branca, solteira, virgem e miserável, filha de Manoel

Raposo, que alega ter sido deflorada por José Gonçalves Zingra8. Não há maiores

informações sobre o réu.

O processo traz logo no início a informação de que existe um laudo médico. Em

seguida, vemos o pedido judicial para a realização de perícia médica na vítima, e são

determinados pelo juiz os médicos legistas responsáveis por sua realização. São eles os

Doutores J. B. de Souza Aranha e A. de Paiva Lima. O exame de corpo delito, produzido e

assinado por estes médicos nos informa que a vítima, Antonia Raposo, está sim deflorada

8 A Justiça contra José Gonçalvez Zingra - 1930. Processo sem catalogação do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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de época que possivelmente coincide com a relatada por ela, ou seja, há cerca de um mês

da realização do exame (fevereiro de 1929).

Em seguida, temos no processo a ata do júri, em que o acusado nega as acusações

feitas contra ele. Não há nenhum depoimento, uma vez que as testemunhas de acusação

não compareceram ao julgamento. Há a seguinte informação sobre o julgamento:

O Promotor Público, leu este o libello, os artigos do Código o grão da pena em que pelas circunstancias entendia o réo incurso e desenvolveu a accusação, analisando a prova testemunhal e pericial constantes nos autos e solicitou do Jury a condenação do réo.9

Em 26 de maio de 1936 o réu é sentenciado a quatro anos e um mês de reclusão

apelando imediatamente contra a sentença.

Aqui, apesar de não estar relacionado ao crime, vemos o réu utilizar do sistema

médico para benefício próprio. Os Doutores Oswaldo Puissegur e Rafael da Nova, através

de atestados, declaram como necessária a saída do preso da Cadeia Pública do Estado de

São Paulo para tratamento de sinusite na Casa de Saúde Pedro II. O juiz determina que

José seja examinado por um perito, mas ele se recusa a submeter-se ao exame. Apesar de

declaração do diretor de que o preso não necessitava de tratamento algum, José G. Zingra

é transferido para o hospital.

Durante o período de sua internação, seu advogado apela mais uma vez contra a

sentença, anexando diversas cartas de empresas que atestam a boa índole do réu, o que é

refutado com a declaração do promotor de que José Zingra já havia sido acusado

anteriormente de corrupção de menores. A apelação é negada e a sentença mantida.

José Zingra é internado e em seguida transferido para a Beneficência Portuguesa,

por não poder arcar com os custos da Casa de Saúde Pedro II. De lá ele foge e assim se

encerra o processo.

Fica clara a diferença da presença médica nos dois casos aqui apresentados,

embora em ambos exista o laudo médico, a importância deste no segundo caso é muito

mais evidente e fundamental para a sentença dada ao réu, chegando até a ser citada como

peça chave da acusação pelo promotor, e mesmo a pertinência do discurso médico

posterior a sentença e em separado do crime em questão.

Enquanto no caso do defloramento de Margarida a série de depoimentos de vizinhos

e conhecidos atesta a honra perdida da vítima, o segundo processo tem como bem

apresentado desde o início o laudo médico.

Isso ocorre devido a uma mudança de mentalidade ocorrida entre o período em que

se encontram os dois processos, sendo o primeiro quase imediato à publicação do Código

9 Folha 24 do processo contra José Gonçalves Zingra. Grifos meus.

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Penal de 1890 e o segundo do final da década de 1930, às vésperas da publicação de um

novo Código Penal totalmente reformulado que continha algumas das reivindicações dos

médicos acerca das questões periciais. O historiador Luis Ferla aponta que a medicina legal

tomou notoriedade e glória nos tribunais no final do século XIX na Europa10, mas foi através

da escola Nina Rodrigues, e no caso dos médicos Afrânio Peixoto, Flamínio Fávero e Oscar

Freire, de São Paulo, que a ideia passou a circular e a ganhar forças no Brasil. Os

processos das décadas de 1920 e 1930 são os que mais recorrem ao parecer médico para

atestar um crime.

Essa parceria se tornaria tão comum e necessária que o Código Penal de 1940 já

menciona a participação médica em seu texto. Ela viria a ser obrigatória em diversos tipos

de crimes a partir da entrada em vigor do novo Código, em 1942.

Apesar de ser bastante rara a presença de crimes de estupro entre os processos

crime, é bastante interessante notar que em nenhum dos dois casos apresentados o

defloramento ocorreu mediante sedução e consentimento da vítima. Em ambos os casos o

crime foi cometido com emprego de violência, o que fica bastante evidente no caso de

Margarida, em que a mãe declara por diversas vezes ter encontrado a menina bastante

ferida e ensanguentada nas partes íntimas, e, de certa forma, no caso de Antonia,

especialmente na declaração da polícia de que a menina era “virgem e miserável”.

Ambas são menores de 14 anos, o que caracteriza estupro pressuposto pela

incapacidade de defesa da vítima e pela caracterização no Código Penal de 1890, onde o

crime de defloramento deve ter como vítima meninas maiores de 14 anos e menores de 21.

Também é bastante raro que famílias denunciem estupros cometidos pelos pais,

uma vez que a honra familiar é de extrema importância e a declaração de um caso como

esses pode deixar a família manchada na sociedade.

A análise das diferenças entre a influência do laudo médico legal na sentença é

essencial para a compreensão da mudança da mentalidade e de costumes da sociedade

brasileira, que entendeu como necessária a presença de um parecer técnico, científico, para

certificar a ocorrência de um crime.

Este tipo de laudo também está presente nos homicídios, nas agressões, entre

tantos outros, além da existência daqueles que entenderam não o corpo da vítima, mas o do

criminoso. Laudos que indicam porque determinado sujeito pode cometer aqueles crimes,

uma herança clara do emprego das teorias lombrosianas para a realização de exames.

Considero, portanto, a pesquisa sobre a importância do crescimento da participação

médica na justiça criminal fundamental para a compreensão da mudança de mentalidades e

10 FERLA, Luis. II. O universo de produção, reprodução e circulação da criminologia positivista. In: ______. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo. São Paulo: Alameda, 2009. p. 68.

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da transformação do Código Penal, além de outras condutas da sociedade paulista do início

do século XX.

Referências

Fontes - Processos Crime do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Código Penal de 1890 - Código Penal de 1940 Bibliografia ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: Pensamento Médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1999. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. ______; ABREU, Martha. 50 anos de virgindade no Rio de Janeiro (as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular – 1890 a 1940). Caderno espaço feminino, Uberlândia - MG, v. 1/2, 1995. FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano. São Paulo: Edusp, 2001. FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo. São Paulo: Alameda, 2009. SCREMIN, João Valerio. A influência da medicina legal em processos crimes de defloramento na cidade de Piracicaba e região (1900-1930). Histórica – Revista do Arquivo Publico do Estado de São Paulo, São Paulo, ed. 8, mar. 2006. SZMRECSANYI, Tamas; SILVA, Sérgio S. (Orgs.). História Econômica da Primeira República. São Paulo: Hucitec, 2002.