História e Sentido da Criação das Agências Reguladoras no ... · PDF fileA proliferação das agências reguladoras independentes deu-se, assim, ... Não obstante, o professor

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  • Histria e Sentido da Criao das Agncias

    Reguladoras no Brasil.

    Daniel Ganem Misse

    Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Direito (PPGSD)

    Universidade Federal Fluminense

    Endereo: Rua Alberto de Campos, 51, 301. Ipanema. Rio de Janeiro RJ.

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  • Introduo.

    As Agncias Reguladoras (independent regulatory agencies or comissions)

    surgiram nos Estados Unidos no fim do sculo XIX e ganharam corpo, qualitativa e

    quantitativamente, na dcada de 19301, durante a grande depresso, como instrumento

    do new deal de Franklin D. Roosevelt para defesa da sociedade contra o modelo liberal

    clssico, ento em crise.

    Essas Agncias independentes surgem como instituies da sociedade civil

    que visam defender os cidados da exacerbao de certos direitos (como o direito

    propriedade e liberdade contratual). Buscava-se, assim, compensar as falhas do

    mercado no contexto norte-americano, que geraram a grande depresso2. Ou seja, elas

    aparecem como negao ao pacta sund servanda3.

    A proliferao das agncias reguladoras independentes deu-se, assim, durante os anos 1930, no apenas como fruto da crena na capacitao tcnica e no melhor posicionamento da Administrao Pblica para reagir de forma rpida e flexvel no sentido de estabilizar a economia e proteger os menos favorecidos contra as oscilaes dos mercados regulados, mas tambm da necessidade de driblar os entraves da regulao opostos por um Judicirio predominantemente conservador. Alm disso, os reformadores acreditavam que o sistema de tripartio dos poderes e freios e contrapesos gerava disputas polticas entre faces que impediam os servidores pblicos de servir ao interesse pblico de mdio e longo prazo. [...] As agncias reguladoras se firma, portanto, no cenrio poltico norte-americano, como entidades propulsoras da publicizao de determinados setores da atividade econmica, mitigando garantias liberais clssicas da propriedade pirvada e da autonomia da vontade. (BINENBOJM, 2008, p.98).

    1 Para V. Cass R. Sunstein apud Gustavo Binenbojm (in: Agncias Reguladoras Independentes, Separao de Poderes e Processo Democrtico; Temas de Direito Administrativo e Constitucional artigos e pareceres. p. 96), o surgimento e a proliferao das modernas agncias reguladoras coincidem com os movimentos polticos, econmicos e sociais de questionamento e superao do arcabouo jurdico-institucional do capitalismo liberal dito puro. 2 Informao obtida na palestra Agncias Reguladoras e Estado Democrtico de Direito, ministrada pelo Prof. Dr. Gustavo Binenbojm, na faculdade de direito da UFRJ em outubro de 2003. 3 Os pactos devem ser cumpridos, ou seja, os contratos esto acima de qualquer regra, devendo, portanto, ser cumpridos. Princpio rgido da imutabilidade dos contratos. Essa a principal acepo do princpio da liberdade contratual norte-americana.

  • O direito norte-americano serviu de modelo para o fenmeno que j vem

    sendo chamado de agencificao, que corresponde proliferao de agncias em

    vrios pases. No um fenmeno que ocorre somente no direito brasileiro, ele vem se

    difundindo pelo mundo como mais uma decorrncia da globalizao. No entanto, nos

    Estados Unidos, o vocbulo agncia tem sentido amplo, ou seja, excludos os trs

    Poderes do Estado, todas as demais autoridades pblicas assumem a forma institucional

    de agncia.

    Nesse sentido, de acordo com o pargrafo 551 do Federal Administrative

    Procedure Act (APA), de 1946, existe um critrio geral que determina que agncia

    significa toda autoridade do Governo dos Estados Unidos, podendo integrar ou no e

    sujeitar-se ou no reviso por outra agncia [..].

    Desta forma, conforme afirma Maria Silvia Di Pietro:

    Enquanto na Europa, a Administrao Pblica tem uma organizao complexa, que compreende uma srie de rgos que integram a Administrao direta e entidades que compem a Administrao indireta, nos Estados Unidos toda a organizao administrativa se resume em agncias (sinnimo de entes administrativos em nosso direito). (DI PIETRO, 2000, p. 133).

    A tipologia americana das agncias conhece diversas distines, sendo que,

    segundo Trcio Sampaio Ferraz Junior (2006), do ponto de vista da delegao de

    poderes normativos pelo Congresso, fala-se em regulatory agencies e non regulatory

    agencies.

    As primeiras [regulatory agencies] so atribudas normativas capazes de afetar direitos, liberdades ou atividades econmicas dos administrados; s segundas [non regulatory agencies], as atribuies limitam-se prestao de servios sociais, que, aparentemente no envolveriam atividades de regulamentao. Esta distino acabou sendo superada na jurisprudncia, que percebeu, na atividade no-regulatria aspectos de verdadeira regulamentao, o que fez submeter todas as agncias ao due process of law. Outra distino importante entre as executive agencies, cujos quadros dirigentes so de livre disposio do Presidente da Repblica, e as independent regulatory agencies or comissions, cujos dirigentes tm mandato e estabilidade. [...] a independncia de grande parte destas tornou-se corolrio do alto grau de discricionariedade tcnica de seus atos regulamentares que, destarte, se supunham politicamente neutros, se comparados com a

  • atividade legislativa do Congresso. (FERRAZ JUNIOR, 2006, pp. 272-273).

    J Maral Justen Filho4 classifica as agncias norte-americanas, segundo

    quatro critrios distintos: mbito de atuao (agncias de servios administrativos;

    agncias de desenvolvimento; agncias de bem-estar social; agncias de relao

    econmica; e agncias de regulao social), natureza das atividades (executivas ou

    reguladoras), autonomia (independentes e no independentes) e nvel federativo

    (federais, estaduais e municipais).

    Nos Estados Unidos, extremamente complexo o relacionamento entre os

    reguladores setoriais, em mbito federal e estadual, e os principais rgos de defesa da

    concorrncia a saber, o Ministrio de Justia, por meio de sua Diviso Antitruste, e a

    Comisso Federal de Comrcio.

    Ao longo do tempo, as cortes americanas desenvolveram a doutrina do

    pervasive power, segundo a qual a competncia das autoridades concorrenciais estaria

    afastada sempre que a lei conferisse ao rgo regulador setorial poderes to extensos em

    relao s atividades regulamentadas que levariam ao reconhecimento de que as

    normas, em matria de defesa da concorrncia, deveriam ser aplicadas pela agncia

    reguladora.

    Para evitar o abuso de poder e a interferncia indiscriminada no mercado

    econmico por parte das agencias, o governo americano edita, em 1946, a Lei de

    Procedimento Administrativo, como um mecanismo de formalizao procedimental e

    homogeneizao do funcionamento dos rgos administrativos, que possibilitou o

    controle judicial das decises finais das agncias pelo judicirio. (SHECARIA, 2003, p.

    461).

    Dessa forma, ao limiar da dcada de 1980, com base na common law, as

    agncias americanas possuam poderes para expedir regulamentos com fora de lei.

    Esses poderes decorriam da funo normativa delegada s agncias pelo Poder

    Legislativo americano, ratificado pela Suprema Corte.

    No entanto, a idia de uma agncia com alto grau de discricionariedade tcnica

    de seus atos regulamentares que deveria se ater decises de casos concretos

    4 JUSTEN FILHO, Maral. O direito das agncias reguladoras independentes. SP: Dialtica, 2002. pp. 64-69.

  • (adjudications) comeou a ser estendida para a imposio de verdadeiras normas gerais

    (rulemaking), com patentes juzos de valor. Desta forma:

    [...] o aparecimento de incontveis regras tcnicas, para todo o tipo de atividade, levantou o problema do engessamento e a conseqente proposta de desregulamentao, adotada pelo governo Reagan, conduzindo o Poder Judicirio a julgar a necessidade dos regulamentos sob o prisma da razoabilidade. Com isso, o regime inicial das agncias, sobretudo a sua independncia, acabou por ser largamente contestado, reduzindo-se consideravelmente a sua funo reguladora, no que tange s suas relaes com os trs poderes. (FERRAZ JUNIOR, 2006, p. 273).

    No obstante, o professor Gustavo Binenbojm enxerga que, diante do

    crescente grau de intrusividade das agncias nas atividades privadas, da sua

    questionvel eficcia na gesto dos mercados regulados e da sua no sujeio aos

    mecanismos tradicionais de accountability eleitoral, as agncias independentes foram

    submetidas a intensas crticas e presses dos agentes polticos e econmicos

    (BINENBOJM, 2008, p.99).

    Nos EUA, h muito a descentralizao autnoma5 deixou de ser condio

    para o exerccio tcnico e politicamente neutro das agncias, surgindo como grande

    tema de discusso o seu controle poltico, responsividade social e legimitimidade

    democrtica.

    Destarte, com o governo Reagan, o sentido dessas agncias modificado6 nos

    Estados Unidos. Mantm-se os dispositivos de defesa da concorrncia, porm afastam-

    se as agncias da sociedade civil e as aproximam da Administrao Direta e do

    Mercado no sentido de utiliz-las tambm para garantir a ampliao dos

    5 A expresso descentralizao autnoma equivalente, para Alexandre Santos de Arago (In Agncias Reguladoras e a Evoluo do Direito Administrativo Econmico. RJ: Forense, 2003, p.9), a independncia (no soberania), ou seja, trata-se de uma autonomia reforada em comparao com a autonomia das demais entidades da Administrao Indireta, no caso brasileiro. 6 Assinala Alexandre Santos de Arago (2003, pp.234-235)