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HORÁCIO, FALCÃO DE RESENDE, MILTON E PESSOA É minha intenção tratar neste artigo as versões da ode quinta do livro 1 de Horácio, feitas por dois poetas portugueses: um do século xvi, André Falcão de Resende (1527-1599) e outro do nosso tempo. Este é Fernando Pessoa (1888-1935) que verteu para inglês em Durban, aos dezasseis anos, a ode de Horácio. A sua versão é, em grande parte, uma adaptação de outra versão, a de Milton (1608-1674). Comecemos pelo texto da ode de Horácio: Quis multa gracilis te puer in rosa Perfusus liquídis urgct odoribus Grato, Pyrrha, sub antro? Cui llauam religas comam. Simplex munditiis? Heu quotiens íideni 5 Mutatosquc dcos flebit et áspera Nigris aequora uentis Emirabitur insolens. Qui nunc te fruitur credulus áurea. Qui semper uacuam, semper amabilem 10 Sperat, nescius aurae Fallacis. Miseri, quibus Intemptata nites. Me tabula sacer Votiua paries indicat uuida Suspendisse potenti 15 Vestimenta maris deo.

HORÁCIO, FALCÃO DE RESENDE, MILTON E PESSOA · 2011. 11. 8. · HORÁCIO, A. F. RESENDE. MILTON E PESSOA 269 Possibilidade de interpretações múltiplas existe para outras pala

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HORÁCIO, FALCÃO DE RESENDE, MILTON E PESSOA

É minha intenção tratar neste artigo as versões da ode quinta do livro 1 de Horácio, feitas por dois poetas portugueses: um do século xvi, André Falcão de Resende (1527-1599) e outro do nosso tempo. Este é Fernando Pessoa (1888-1935) que verteu para inglês em Durban, aos dezasseis anos, a ode de Horácio. A sua versão é, em grande parte, uma adaptação de outra versão, a de Milton (1608-1674).

Comecemos pelo texto da ode de Horácio:

Quis multa gracilis te puer in rosa Perfusus liquídis urgct odoribus

Grato, Pyrrha, sub antro? Cui llauam religas comam.

Simplex munditiis? Heu quotiens íideni 5

Mutatosquc dcos flebit et áspera Nigris aequora uentis

Emirabitur insolens.

Qui nunc te fruitur credulus áurea. Qui semper uacuam, semper amabilem 10

Sperat, nescius aurae Fallacis. Miseri, quibus

Intemptata nites. Me tabula sacer Votiua paries indicat uuida

Suspendisse potenti 15 Vestimenta maris deo.

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De que faço a seguinte tradução em prosa: «Quem é o rapaz franzino que, entre rosas, enxarcado de líquidos

perfumes, te persegue em teu acolhedor retiro, ó Pirra? Para quem atas os teus cabelos louros,

Com simplicidade elegante? Ó quantas vezes chorará a sua confiança e os deuses mudados e contemplará surpreso o mar encapelado por negros ventos,

esse que agora, confiante, goza a tua graça dourada, que espera ter-te sempre livre para si, sempre amável, e ignora a mudança da brisa. Pobres daqueles para quem,

na sua inexperiência tu brilhas! A mim, na parede dum templo urna tábua votiva recorda que suspendi a minha roupa húmida, em honra do poderoso deus do mar.»

Trata-se de uma ode em ritmo asclepiadeu, cm que os dois pri­meiros versos de cada estância são asclepiadeus menores (doze sílabas), o terceiro é fcrccrácio (sete sílabas) e o quarto é glicónico (oito sílabas). Curioso notar que o ritmo é o mesmo da famosa alegoria da «nau do Estado» (HOR., Odes I, xiv) em que o comportamento da nau serve de paradigma às oscilações da vida política.

A ode a Pirra é também concebida como uma alegoria marinha. O amor da loira Pirra é inconstante como o mar, ora calmo e bonançoso, ora agitado por negros ventos, sempre infiel.

O poeta regozija-se de ter escapado são e salvo ao naufrágio da sua ligação amorosa com a bela cortesã. Para memória, dependurou um ex-voto no templo de Neptuno e dedicou ao deus do mar as suas vestes ainda húmidas. Que a pintura do seu naufrágio sirva de aviso aos incautos amantes da volúvel Pirra!

Dada a habitual colocação das palavras em mosaico, com sugestões para além do primeiro significado, a ode horaciana não é de tradução fácil, mormente em verso.

Assim, por exemplo, o adjectivo áurea na frase te... áurea de Qui num te fruitur áurea (v. 9), que significa? «De ouro, dourada», com alusão à flaua coma (v. 4) de Pyrrha, cujo nome em grego (TVOQOÓ)

significa «a de cabelos vermelhos»? O mesmo significado, com alusão ao brilho alourado da sua pele? Uma simples ideia de brilho, a que alude nites (v. 13)? E esse brilho não será ainda o do corpo jovem e tentador de Pirra, aliado ao sorriso da mulher habituada a seduzir os homens?

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Possibilidade de interpretações múltiplas existe para outras pala­vras significativas da ode.

O poemeto horaciano anda hoje afastado das antologias escolares. Mas no século xvi devia ser bem conhecido e não falta nas edições «ad usum Delphini» do século xvm. Aliás, é susceptível de ser uti­lizado com intenções parenéticas, como prova o subtítulo com que aparece no manuscrito de Falcão de Resende: m meretricis astutias.

Deste modo, a ode aconselha os jovens a precaverem-se da graça luminosa das Pirras fáceis e venais.

André Falcão de Resende (1) traduziu a ode «Ad Pyrrham» em quatro estâncias de seis versos cada, num total de vinte e quatro versos para os dezasseis de Horácio. Em cada estância têm dez sílabas o primeiro, terceiro e sexto versos: e seis sílabas, o segundo, quarto e quinto.

O esquema rimático é ABABCC: os quatro primeiros versos são de rima cruzada e os dois últimos, de rima emparelhada. Este esquema foi empregado pelo poeta, mais de uma vez, na sua tradução das odes de Horácio.

Uma das consequências do emprego da rima é a de que a versão não é literal, antes parafrástica.

Assim, por exemplo, a alegoria marinha que domina a estrutura ideológica do poema é alargada com uma imagem (vs. 2-3) que se não encontra em Horácio: «Tens... ora nas redes / De teus louros cabelos encrespados». Nem as redes nem as ondas dos cabelos aparecem no original latino. Todavia, as mudanças do mar com que o poeta latino alude ao carácter leviano de Pirra (vs. 6-7) estão omissas.

Por outro lado, numerosas são as palavras com que o poeta glosa o sentido dos versos de Horácio e se não encontram no latim inicial;

(I) Sobre este poeta, existe a síntese feita cm O Essencial sobre André Falcão de Resende. Lisboa, Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1988, pelo autor do presente artigo.

A versão de Horácio foi tirada da edição incompleta, feita no século passado, p. 200-201. Sobre esta edição, ver o livrinho atrás citado, p. 32-34.

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e frases inteiras pertencem a Resende e não ao seu modelo. Enfim, o poeta português, imitando Horácio, escreveu uma nova ode:

Que mancebo dos simpres perfumados Tens, Pirra, ora nas redes

De teus louros cabelos encrespados, Entre as alvas paredes De teu fundo aposento.

Cheio de falso e vão contentamento?

Ah! quantas vezes esse a tua figura E fé achará mudada.

Mentirosa tu sendo, e fé-perjura! Sua alegria trocada Em tristeza importuna,

E a que tem agora, em má fortuna!

Crerá cego e enganado a tua pousada Teres sempre amorosa

E só para ele, sempre despejada; Tua vista enganosa E falsa não sentindo,

E as maranhas que a mil andas urdindo.

Eu tenho já a Neptuno oferecido Em tábua alta pintada

O perdido e molhado meu vestido, Da tormenta passada E naufrágio, no templo.

Pêra aviso aos que amam, e pêra exemplo.

A última estância de André Falcão parafraseia o motivo do ex-voto e acentua a conclusão moral, para além da mera sugestão de Horácio.

Milton traduziu o poema latino em quadras de verso branco, com dois versos iniciais de dez sílabas (doze as do asclepiadeu menor de Horácio), seis sílabas no terceiro verso (ferecrácio, sete) e seis sílabas

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no quarto verso (gljcónico, oito). Foi o mais próximo que conseguiu chegar.

Em matéria de ritmo dum poema em inglês, não me permito julgar. Mas parece-me artificial qualquer correspondência com o verso asclepiadeu latino.

Na sua procura de uma tradução literal, correspondente à con­cisão do latim, Milton torna-se ocasionalmente obscuro. L. P. Wil­kinson, Horace and his lyric poetry (2), p. 157, onde transcreve o texto do poeta seiscentista, pergunta se no verso 9, «alguém que não saiba latim, não tomará all gok! como paralelo de credulous, e referente ao rapaz.»

A tradução de Milton, elogiada por uns, censurada por outros, tornou-se famosa :

What slender youth bedewed with liquid odours Courts thee on roses in some pleasant cave,

Pyrrha, for whom bind'st thou In wreaths thy golden hair,

Plain in thy neatness? O how oft shall he 5 On faith and changed gods complain, and seas

Rough with black winds and storms Unwonted shall admire.

Who now enjoys thee credulous, all gold: Who always vacant, always amiable, 10

Hopes thee, of flattering gales Unmindful. Hapless they

(2) Cambridge, at the University Press, 1946. Foi neste livro que primeiro encontrei a versão de Milton. Gilbert Híghet, The Classical Tradition, Oxford, at the Clarendon Press, 1951, referc-sc-lhe também mais do que uma vez.

Durante a discussão de uma comunicação que apresentei ao congresso «Um século de Pessoa», na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, a 7 de Dezembro de 1988, a Professora Maria Helena da Rocha Pereira chamou a minha atenção para o facto de já ter mencionado o modelo de Milton, em ocasião anterior.

De facto, em «Leituras de Ricardo Reis», Circum-navegundo Pessoa, Coimbra, 1986, p. 53, menciona a existência da tradução de Milton, e faz um rápido paralelo entre ambos, nos seguintes termos: «Comparando as duas versões, nota-se que uma ou outra expressão se repete, mas Milton c mais literal e usa o verso branco.»

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To whom thou untried scem'st fair. Me, in my vowed Picture, the sacred wall declares t'have hung

My dank and dropping weeds 15 To the stern god of sea.

Quanto à versão de Fernando Pessoa, apresenta-se claramente como uma adaptação da tradução de Milton, com a desvantagem de que a rima introduz uma dificuldade adicional que é causa provável de uma das deficiências mais salientes: a tradução de liquidis... odoribus (v. 2), vertido por Milton literalmente (v. I), com a expressão odours grave, em que o adjectivo parece inaceitável e motivo de ambiguidade.

No resto, vocabulário, sintagmas, frases, construções sintácticas, número de sílabas e disposição dos versos, tudo denuncia o interme­diário miltoniano. Ora vejamos:

What slender youth, bedewed with odours grave. On couch of roses in thy pleasant cave,

Pyrrha, doth court thee bold? For whom thy locks of gold

Plain in thy grace dost braid? how oft shall he 5 Thy faith and changed gods bewail, and sea.

Rough with the tempest's ire. Shall ignorant admire!

Who now enjoys thee, of thy faith too sure. And always smiling and to him secure 10

Hopes thee, of flattery Unmindful. Hapless he

Whom untried pleasest. Me on sacred walls My picture sworn that my dank garb recalls

(3) O texto de Milton foi tirado de Milton: Poetical Works edited by Douglas Bush, London, Oxford University Press, 1969, p. 25.

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I hung at length, when free 15

To the strong god of sea. (4)

Frases inteiras são iguais:

— verso 1 : What slender youth, bedewed with odours

— verso 5: how oft shall he

— verso 6 : faith and changed gods

— versos 6/7 : and sea j Rough with

— verso 9 : who now enjoys thee Outras frases são quase iguais:

— versos 2/3: roses in some pleasant cave, j Pyrrha (Milton) roses in thy pleasant cave, f Pyrrha (Pessoa)

Note-se igualmente que roses está na cesura em ambos os poetas.

— verso 5: Plain in thy neatness (Milton) Plain in thy grace (Pessoa)

— verso 8: Unwonted shall admire (Milton) Shall ignorant admire (Pessoa)

— verso II : Hopes thee, of flattering gales (Milton) Hopes thee of flattery (Pessoa)

— verso 12: Unmindful. Hapless they (Milton) Unmindful. Hapless he (Pessoa)

— versos 14/16: fhave hung /.../ To the stern god of sea (Milton) 15/16: / hung...} To the strong god of sea (Pessoa)

O começo dos versos é idêntico nos dois poetas, nos versos 1, 3, 5, 7, 9, 11, 12, 15; quase idêntico, nos versos 6, 10, 13, 14.

Nas pausas, as palavras colocadas antes ou depois da pausa são frequentemente as mesmas ou muito semelhantes, como acontece nos

(4) O texto de Fernando Pessoa foi lido, com a ajuda da versão de Milton, cm Fernando Pessoa, coração de ninguém, Lisboa, 1985, catálogo elaborado por Teresa Rita Lopes et alii. Vem na p. 83.

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versos 1, 2, 4, 5, 6, 9, 11, 12, 13. O caso do verso 13 parece-me particularmente interessante, porque foi graças à observação da pausa que pude certiiicar-me de que a palavra seguinte, de difícil leitura na p. 83 de Fernando Pessoa, coração de ninguém, era Me:

To whom thou untried see/tr st fair. Me, in my vowed (Milton) Whom untried pleasest. Me on sacred walls (Pessoa)

A análise das semelhanças podia ser levada mais longe, nomeada­mente, mostrando como a opção feita por Milton determinou a escolha feita por Pessoa. Darei um só exemplo: a tradução de urget, no verso 2 de Horácio, por courts em Milton arrasta doth court em Pessoa, quando outras versões eram possíveis.

A concluir, parece-me justo afirmar que a versão da ode «Ad Pyrrham», da autoria de Fernando Pessoa, revela já no poeta adoles­cente um verdadeiro génio da intertextualidade.

AMéRICO DA COSTA RAMALHO