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AMeacuteUCODAGMARAMAU-IO
Enquanto me lavava na corrente das Musas disse Meu t
meu seraacute este ainda que os astros de Saturno ihe neguem riquezas natildeo trocarei este pobre por dez ricos
Aacutelbio a todos possui um cego amor proacuteprio e consola a
ambiccedilatildeo esta inspiraccedilatildeo poeacutetica Mas tu crecircs que sendo
Caliacuteope verdadeira os fios correm a meu favor
Por isso no meu dia de anos ainda que mais poderoso
natildeo desdenhes meus pobres recursos nem mesa pobre
Antes vem tu que natildeo eacutes ingrato com trecircs
companheiros na hora justa
Tenho um cabrito cuja cabeccedila jaacute engrossam as hastes e
uma porca dum ano que ainda natildeo foi matildee e da capoeira
vem um frango que laacute engorda
Tambeacutem Pomona natildeo estaraacute ausente com a sua
abundacircncia E natildeo faltaratildeo os dons do faacutecil Niseu que
hatildeo-de dissipar os cuidados ansiosos se esvaziarmos
negros picheis
Aleacutem disso adubarei de versos os pratos seguindo na
esteira dos ritmos haacutebeis de Flaco decerto inferior a ele
mas natildeo julgado poeta de lira destemperada
314
HUMMTASVOLLV I MMII
MARGARIDA MIRANDA
Universidade de Coimbra
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Dom Francisco de Santa Maria Miguel Venegas S I e o
Coleacutegio das Artes de Coimbra
(1559-1562)
Xv W l cenmrys Jesuit Theatre brought about the tising of a new musical genre in Portugal
which was a conscious attempt at restoring certain characteristics of the Music for Chorus in
ancient Greek drama An unpublished letter found in the Jesuit Roman archives written by the
same time in which the earliest plays by M Venegas SI were beingwritten in Coimbra says that
the Chorus performs oprime more traacutegico The cantus parts of Venegas Tragoediatilde AchabivreK
written by Dom Francisco de Santa Maria and the extant parts of that work have recently been
found in the Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (MM 70) Dating from 1562 these
parts are the earliest of Humanistic Theatre After a short analysis of diis music the A condudes
that in Portugal thanks to the interaction of playwright and music composer the sort of music
that was composed for performances at the Jesuit schools rather than being a simple theatrical
ornament was profoundly shaped after claacutessica Rhetoric principies
O s C o r o s d r a m aacute t i c o s d o t ea t ro j e su iacute t i co
Sine musica theatrurn non delectat
Quem quiser estudar o teatro neolatino em Portugal natildeo pode prescindir
do auxiacutelio de um texto programaacutetico concebido por um jesuiacuteta long
professor no Coleacutegio das Artes de Coimbra para acompanhar a ediccedilatildeo da
obra dramaacutetica em 1605 No Praefatio ad lectorem Luiacutes da Cruz expotildee
os anos
sua
os
1 Tragicae comicaeque actiones a reacutegio Artium Coliegio Societatis lesu datae Conhnbricae in
Publicum Theatrurn Autore Ludovico Crucio eiusdem Societatis olisiponensi Nunc primum in
lacem editae et sedulo diligenterque recognitae Cum priuilegio Lugduni apud Horatium Cordon
MDCV
Para um estudo global do teatro neolatino em Portugal vd Claude-Henri Freches Lt
Tbeacuteacirctre Neo-Latin au Portugal (1550-1745) Paris Lisbonne 1964
_MARGAIlaquo[)AiVkNDA
princiacutepios da nova poeacutetica em que assenta a sua concepccedilatildeo de teatro um teatro
inspirado nos textos sagrados e na moral cristatilde buscando simultaneamente os
cacircnones esteacuteticos de Horaacutecio e de Aristoacuteteles e reflectindo influecircncias de Plauto
de Terecircncio e de Seacuteneca bem como dos autores do drama neolatino europeu
Sobre a participaccedilatildeo da muacutesica neste geacutenero de teatro Luiacutes da Cruz eacute
infelizmente mais omisso Tudo quanto diz se encerra na brevidade de algumas
linhas finais E no entanto elas parecem referir-se a algo que teraacute sido criado
especificamente peio teatro jesuiacutetico portuguecircs e que se teraacute tornado seu
distintivo Segundo Luiacutes da Cruz os Coros dramaacuteticos do teatro neolatino em
Portugal eram um momento alto da representaccedilatildeo ceacutenica de que os portugueses
se podiam orgulhar
laquoHaacute coros em todas estas peccedilas pois sem muacutesica o teatro natildeo deleita E
aleacutem das flautas que nunca faltaram sempre na nossa obra eacute de esperar o canto
Na verdade por que motivo havia o coro de ser representado atraacutes do pano
para que se ouvisse mal De fora do prosceacutenio eacute conduzido em direcccedilatildeo agrave cena
o que tem um efeito admiraacutevel Portanto fizemos desfilar os que cantam com
vestes aparatosas e neste geacutenero podem porventura os Portugueses ter feito algo
de notaacutevel Mas considera tudo isto sem grande importacircncia Leitor
humaniacutessimo Daacute-lhe a importacircncia que entenderes em consciecircnciaraquo2
Segundo Luiacutes da Cruz no limiar do seacuteculo XVII em Portugal os Coros
do teatro eram sempre cantados Os dramaturgos jesuiacutetas consideravam
indispensaacutevel ao novo teatro a existecircncia de Coros musicais O mesmo texto
pressupotildee no entanto que foi precisamente em Portugal que nasceu pela
primeira vez aquele geacutenero de peccedila coral dramaacutetica tepresentada em cena e
interpretada por algueacutem que tambeacutem era personagem do drama laquoNa verdade
por que motivo havia o coro de ser representado atraacutes do pano para que se
ouvisse mal De fora do prosceacutenio eacute conduzido em direcccedilatildeo agrave cenaraquo
Pela primeira vez segundo Luiacutes da Cruz o Coro apresentava-se ao puacuteblico
2 Traduccedilatildeo de R M Rosado Fernandes Cf R M Rosado Fernandes e J Mendes de
Castro P Lias da Cruz SI O Proacutedigo Tragicomeacutedia Novilatina Lisboa Instituto Nacional de
Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1989 vol II pp 36-37
316
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
envergando as vestes proacuteprias da personagem que representava ou seja fazendo
parte integrante da composiccedilatildeo dramaacutetica e natildeo com mera funccedilatildeo ornamental
Esse aspecto dava agrave composiccedilatildeo coral um caraacutecter essencialmente distinto da
muacutesica que se associava agraves tradiccedilotildees europeias do intermezzo dramaacutetico
Foi na verdade durante a segunda metade do seacuteculo XVI que em
Portugal se definiu o amplo papel que a muacutesica viria a ter no teatro escolar
jesuiacutetico As suas origens poreacutem continuam ainda em grande parte
desconhecidas Como acontece com o teatro jesuiacutetico de Itaacutelia e da Alemanha
as obras mais representativas do periacuteodo das origens mdash tanto no que respeita agrave
criaccedilatildeo literaacuteria como agrave criaccedilatildeo musical mdash continuam ainda sujeitas a conclusotildees
apressadas facilmente condicionadas por preconceitos ideoloacutegicos
Quem ler o primeiro capiacutetulo de Pensar eacute morrer ou O Teatro de Satildeo
Carlos na mudanccedila de sistemas soacutecio comunicativos desde fins do seacutec XVIIaos nossos
dias de Maacuterio Vieira de Carvalho por exemplo eacute levado a pensar que o drama
neolatino mdash que o autor focaliza sempre por oposiccedilatildeo ao teatro de Gil Vicente
mdash sofreu simplesmente cie um atraso essencial que correspondeu ao
retardamento geral da evoluccedilatildeo musical verificado em Portugal no decurso do
seacuteculo XVII Que o canto e a muacutesica do teatro jesuiacutetico consistiriam apenas em
laquoformas preexistentes desenvolvidas independentemente do teatro escolar e
inseridas neste () Tratar-se-ia enfim de canccedilotildees intercaladas muacutesica
incidental episoacutedios musicais que se destinavam por vezes a criar cor localraquo
nada tendo a ver portanto com a lenta evoluccedilatildeo para o dramma per musica em
que o canto e a muacutesica satildeo elementos constitutivos do todo laquoNa verdade tudo
leva a crerraquo continua laquoque os jesuiacutetas portugueses se limitaram a utilizar formas
preexistentes da muacutesica religiosa popular e militar e a aumentar a sua quantidade
3 Segundo Owen Rees Polipbony in Portugalc 1530-c 1620 Sourcesfrom tbe Monastery of Santa Cruz Coimbra Graland Publishing New York and London 1995) dentro da tradiccedilatildeo musical do teatro secular neoclaacutessico italiano surgiram ocasionalmente tentativas de dar muacutesica agraves palavras do Coro ou de uma determinada personagem como aconteceu em 1566 na representaccedilatildeo agravetAiacuteidoro de Gabriele Bombace em que um soprano solista cantava acompanhado de muacutesica instrumental Vd p 121 n 8 Os Coros mais famosos da tradiccedilatildeo italiana satildeo poreacutem os que compocircs Andrea Gabrieli em 1585 para o Eacutedipo tiranno de Orsatto Giusriniani Tambeacutem esses satildeo como veremos posteriores aos Coros que inauguraram o teatro jesuiacutetico do Coleacutegio das Artes de Coimbra
317
JVIAIiacuteARIDAMIRANDA
nas tragicomeacutedias Isso natildeo basta para lhes atribuir precedecircncia no desbravar
do caminho para u m a dramaturgia de nova qualidaderaquo1
Pretendem estas paacuteginas afirmar precisamente o contraacuterio em Portugal
os jesuiacutetas foram realmente responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de u m novo geacutenero traacutegico
do qual a muacutesica vem a ser parte integrante como se vecirc pela teoria poeacutetica
exposta pelo P Luiacutes da Cruz no proacutelogo agraves suas peccedilas
Ora sabemos que o pensamento esteacutetico eacute sempre resultado da reflexatildeo
sobre u m corpus que o representa Se foi possiacutevel a Luiacutes da Cruz definir u m
coacutedigo esteacutetico preciso foi porque u m nuacutemero significativo de obras de arte
corporizou tendencialmente os preceitos por ele postulados Refiro-me natildeo
apenas aos dramas do proacuteprio Luiacutes da Cruz mas tambeacutem aos dramas dos autores
que o precederam no Coleacutegio das Artes nomeadamente agraves trageacutedias daquele
que foi seu maior mestre e que viria a ser tambeacutem o pai do teatro Jesuiacutetico em
Portugal Migue l Venegas5 cuja obra devia suceder em C o i m b r a agrave obra
dramaacutetica de Buchanan e Diogo de Teive dois dos humanistas que t inham
fundado o Coleacutegio Real de D Joatildeo III
Estaacute ainda por aprofundar a influecircncia que teraacute tido Venegas sobre a
obra do seu disciacutepulo Luiacutes da Cruz mas os Cataacutelogos do ano de 1559 enviados
do Coleacutegio das Artes para Roma e hoje pertencentes ao Archivum Romanum
Societatis Iesu colocam Luiacutes da Cruz estudante na primeira classe (Retoacuterica)6 e
4 Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1993 p 23 O itaacutelico eacute da minha autoria 5 Miguel Venegas era professor no Coleacutegio Trilingue da Universidade de Alcalaacute de
Henares quando entrou na Companhia de Jesus Foi professor de Retoacuterica e Humanidades no
Coleacutegio de Sanro Antatildeo em Lisboa entre 1556 e 1558 tendo depois vindo para Coimbra onde
permaneceu ateacute 1562 A sua brilhante carreira de Professor e o mal estar de jesuiacuteta levou-o
depois a Roma a Paris e de novo a Roma para finalmente deixar a Companhia em Iacute567 e
regressar a Espanha A Universidade de Salamanca acolheu-o como professor de Retoacuterica e ali
o dramaturgo competiu mais do que uma vez com Sanchez de las Brozas (o Brocense) em
concursos dramaacuteticos escolares tendo vindo a derrotaacute-lo em 1570 As uacuteltimas notiacutecias biograacuteficas
vecircm de Alcalaacute sua terra natal aonde teraacute regressado jaacute na deacutecada de 70 Foi no entanto em
Coimbra (1558-1562) que Miguel Venegas produziu as suas principais obras dramaacuteticas Para
uma biografia mais completa de Miguel Venegas vd Margarida Miranda Miguel Venegas e o
nascimento da Trageacutedia Jesuiacutetica A Tragoedia cui nomen inditum Achabus Tese de doutoramento
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2002 pp 2 1 - 6 1
Archivum Romanum Societatis Icsu (doravante ARSI) Lus 43 foi 82r
318
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Miguei Venegas mestre ora da primeira ora da segunda classe (Humanidades)
alternando com Pedro Perpinhatildeo7
Entre os disciacutepulos de Miguel Venegas em Coimbra em 1559 contava-
-se pois Luiacutes da Cruz jaacute jesuiacuteta e estudante de prima De 17 anos Recebido en
Dec de 1557 Oye en la Ia classe Sabe latin mediocremente y algun griego Tiene
buena habilidad Es bien dispuesto Assim reza o Cataacutelogo de 1559 a seu respeito
Aos 17 anos ainda natildeo era possiacutevel adivinhar o verdadeiro talento poeacutetico de
Luiacutes da Cruz mas podemos tomar como certa a sua participaccedilatildeo naquela que
foi a primeira trageacutedia a ser representada em Coimbra pelos jesuiacutetas a Satatilde Gelboeus
que Miguel Venegas compocircs para os seus disciacutepulos em 1559- O estudo da obra
literaacuteria destes dois dramaturgos mostraraacute pois os seus numerosos pontos de contacto
Daquele acontecimento em 1559 quarenta anos antes da ediccedilatildeo
definitiva da Ratio Studiorum dos jesuiacutetas existem alguns testemunhos
contemporacircneos imprescindiacuteveis para uma correcta valorizaccedilatildeo do lugar
destes espectaacuteculos na histoacuteria do teatro e na histoacuteria da muacutesica
A carta de Pecircro Dias
En meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus de Miguel Venegas deu-se
precisamente no iniacutecio de Julho daquele ano por ocasiatildeo das festas da Rainha
Santa Isabel a padroeira do Coleacutegio O testemunho mais conhecido eacute o da
carta quadrimestral de Outubro daquele ano escrita por Pecircro Dias8
laquoAl d o m i n g o seguiente se represento u n a tragedia que c o m p u s o ei P
maest ro Venegas () Auiacutea en cada acto un choro de letra m u y deuota y m u y
bien c o m p u e s t o en p u n c t o de canto de oacutergano y 8 oacute n u e u e muacutesicos que los
can tauan m u y bien y con ten taacute ronse t a n t o todos destes choros m aacute x i m e los
7 ARSI Lus 43 foi 107r 167v e 71-72
s M O N U M E N T A HISTOacuteRICA SOCIETATIS IESU Litterae quadrimestre ex univems
praeter Indiam et Brasiliam locis in quibus aliqui de Societate Iesu versabantur Romam missae 7 vols
Madrid-Roma 1894-1932 (Doravante Litt Quad)Vo 6 p 362-363
319
jVtoTOA MIRANDA
religiosos que no solo los que estauan presentes pecircro aun los de Sancta Cruz
(que no salen fuera) los pedieron con mucha instancia y daacutendoseles diziacutean que
no auiacutean uisto cosa semejante Fueacute grande el concurso de gente que uino a esta
tragedia asiacute de iacuteos de la ciudad como de los doctores de la vniuersidad y para
todos ordeno el P Miroacuten que vuiesse lugares destinctos () Fueacute muy general
el contentamiento de todos porque las figuras de ia tragedia eran muy proacuteprias
y muy ricamente uestidas y la letra muy deuota y sententiosa tanto que
algunos religiosos llorauan y deziacutea el rector9 que en todo los Padres rnezclauan
la deuocioacuten hasta en los choros de la tragedia () Vnos deziacutean que en meacutedio de
Greacutecia no sepudiem representar mejor () Vinieron despueacutes muchos visitar ai E
Venegas y en todo ueya la comuacuten satisfacioacuten que delio teniacuteanraquo
O acontecimento teve repercussotildees em toda a cidade a Universidade
com o reitor e o corpo docente os magistrados os religiosos de todos os
coleacutegios e simples populares encheram os dois andares do paacutetio do Coleacutegio
A Companhia precisava de dar uma boa imagem puacuteblica da acccedilatildeo pedagoacutegica
que desenvolvia e aquele acontecimento ia sem duacutevida prestar-se a conquistar
simpatias e a aumentar o prestiacutegio dos novos professores do Coleacutegio
A carta de Pecircro Dias refere ainda que os estudantes haviam comeccedilado
muito tempo antes a recitar as suas partes e que o seu desempenho foi
muito bom No meio do paacutetio do Coleacutegio improvisou-se um grande palco
sobre o qual se haviam disposto unos repartimientos a manem de casas de
onde saiacuteam as personagens
A peccedila compreendia cinco actos como postulava o teatro antigo
Espontaneamente o cronista deixa transparecer que o paradigma daquela
nova concepccedilatildeo de teatro residia precisamente no teatro antigo da Greacutecia e
de Roma en meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor Tal como no
teatro antigo a muacutesica era parte integrante e tinha por isso um papel
estruturante na obra assim tambeacutem para o humanista de Coimbra os Coros
da trageacutedia natildeo eram interluacutedios desligados da acccedilatildeo mas sim Coros
cantados representando alguma petsonagem colectiva O Coro interpretava
uma peccedila criada para o efeito com a funccedilatildeo de comentar a acccedilatildeo ou
Refere-se evidentemente ao reitor de Universidade
320
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
exprimir algum sentimento mais intenso (de luto de triunfo ou de
louvor)
Quanto agrave composiccedilatildeo musical a carta de Pecircro Dias permite-nos
concluir que natildeo se tratava de improvisaccedilotildees faacuteceis sobre melodias
preexistentes como supocircs Maacuterio de Catvalho mas sim de composiccedilotildees
proacuteprias em polifonia com ou sem acompanhamento instrumental
executadas por oito ou nove cantores chamados de fora De facto como
observa Owen Rees10 mdash autor de um valioso estudo sobre polifonia em
Portugal em que revelou a existecircncia de alguns exemplares de composiccedilotildees
musicais desta natureza mdash o facto de esta carta aludir aos inteacuterpretes dos
Coros como muacutesicos sugere que seriam cantores habituados ao canto em
vez de alunos do Coleacutegio em cujo curriculum ao contraacuterio do das outras
escolas congeacuteneres estava excluiacuteda a classe de canto
Deste modo o compositor a quem fora pedida a obra musical seria
provavelmente o encarregado de ensinar ensaiar e reger uma pequena Capela
de Canto de Oacutergatildeo a quem caberia a execuccedilatildeo musical dos Coros durante
a representaccedilatildeo da trageacutedia
O que falta provar eacute a afirmaccedilatildeo de Owen Rees segundo a qual diante
do sucesso obtido pelas peccedilas corais da Saul Gelboeus os Coacutenegos regrantes
de Santa Cruz foram forccedilados a admitir a derrota e pediram insistentemente
aos padres aquelas partituras declarando depois natildeo haverem visto nada de
semelhante12 Natildeo existe na catta qualquer alusatildeo a vencedores nem a
vencidos Nem conheccedilo qualquer indiacutecio de que Miguel Venegas ou o Coleacutegio
das Artes tenham posto a concurso o trabalho de composiccedilatildeo dos Cotos
Op cit p 105 1 Sobre a distinccedilatildeo entre Cantochatildeo e Canto de Oacutergatildeo vd Ernesto Gonccedilalves de Pinho
Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical nos seacuteculos XVI e XVII Lisboa Gulbenkian 1981 pp 65-70
12laquo the canons of Santa Cru were forced to concede defeat it does seems that mdash as in the case of the choruses for Sedccias mentioned abovemdash the music for Satatilde Gelboaeus had been chosed by means of a competition in wich the musicians of Santa Cruz (the foremost musical establishment in Coimbra) had naturally taken part One imagines that the Jesuits took such trouble over the commissionig of music for their plays inorder to ensure that the music was of a tipe wich concorded with the aesthetic and moral ideais of these dramasraquo Owen Rees Op cit p 105
321
MARGARIDAMKANDA
para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham
sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o
humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica
conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se
a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu
valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo
polifoacutenica13
Quem teraacute sido pois o seu autor
Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como
compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4
um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente
com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os
muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra
nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram
Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro
anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando
se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de
Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do
Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um
A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio
musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu
Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos
de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra
Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria
daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco
laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()
Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom
Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso
tinha especial graccedilaraquo
Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de
Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de
segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147
A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de
D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552
322
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo
Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco
Castelhano pois nascera no reino de Castela
Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista
Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico
seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica
Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco
Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo
frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557
foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas
recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a
cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os
anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares
oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se
compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois
oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior
solenidade[6
Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria
destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos
de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de
aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a
Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de
contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1
Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical
de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia
Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia
ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela
pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo
Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o
16 Litt Quad 6 pp 360-361
Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de
Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra 2001
323
JVIARiacuteARIDA MIRANDA
Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade
emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo
Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos
Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos
seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de
larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais
de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra
como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo
de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico
em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559
como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no
paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade
Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia
causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram
19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos
entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de
inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de
Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio
Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138
Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais
omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia
a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum
modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em
mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos
levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos
ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S
I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe
XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis
University 1970
Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees
principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I
Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp
213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na
Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra 1997
324
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que
Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um
momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo
de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges
de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista
nada de semelhante
A versatildeo latina da mesma carta
Optiacuteme more traacutegico canebantur
Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute
modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20
Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar
recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De
um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a
traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos
para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs
laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum
quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant
ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine
nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus
domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis
unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum
prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione
factum est ut oprime suas partes egerint
In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat
quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus
multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant
uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros
m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56
325
_MARGARIDAMBMNDA
rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil
se uidisse melius apertissime affirmabant
Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor
Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca
designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex
omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus
aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus
relictus est
Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro
incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum
etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et
uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim
erat illustrata ()
Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et
omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse
afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret
magnificentius celebrari posse tcstabantur
Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili
gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis
ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22
laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava
com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns
degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de
avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora
construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os
actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico
na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados
Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes
No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava
um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto
agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute
ARSI Lus 51 foi 56
326
M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que
lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham
visto coisa melhor
A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo
reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado
com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo
reservou outro lugar no paacutetio de baixo
A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos
numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer
pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e
de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras
elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()
Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens
eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais
elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a
Coimbra nada mais digno haveria para o receber
Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas
com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto
agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo
N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado
pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam
preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute
agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a
habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o
t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido
s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral
do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia
u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J
literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a
muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da
Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute
nos Coros da trageacutedia
327
_MARCMII)AMIIUNIH
Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham
por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria
acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam
as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo
Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico
esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico
em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia
para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio
Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do
texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como
podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos
ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial
ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos
greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico
novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos
satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-
Os Coros do Manuscrito Musical 70
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao
momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto
manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio
das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem
escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco
como seria de esperar
Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius
natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos
Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca
13 Owen Rees Op cit p 102-103
328
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia
como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos
exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste
todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam
apenas conjecturar
Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia
de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra
cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo
corresponde agrave sua ordem na peccedila
O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente
em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia
de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor
felix dolor o beate
O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem
qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em
todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que
acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os
fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes
que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo
O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava
encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o
24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de
Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM
ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por
publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados
com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha
dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve
anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A
Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o
excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por
Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e
a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-
-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o
texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental
329
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
_MARGAIlaquo[)AiVkNDA
princiacutepios da nova poeacutetica em que assenta a sua concepccedilatildeo de teatro um teatro
inspirado nos textos sagrados e na moral cristatilde buscando simultaneamente os
cacircnones esteacuteticos de Horaacutecio e de Aristoacuteteles e reflectindo influecircncias de Plauto
de Terecircncio e de Seacuteneca bem como dos autores do drama neolatino europeu
Sobre a participaccedilatildeo da muacutesica neste geacutenero de teatro Luiacutes da Cruz eacute
infelizmente mais omisso Tudo quanto diz se encerra na brevidade de algumas
linhas finais E no entanto elas parecem referir-se a algo que teraacute sido criado
especificamente peio teatro jesuiacutetico portuguecircs e que se teraacute tornado seu
distintivo Segundo Luiacutes da Cruz os Coros dramaacuteticos do teatro neolatino em
Portugal eram um momento alto da representaccedilatildeo ceacutenica de que os portugueses
se podiam orgulhar
laquoHaacute coros em todas estas peccedilas pois sem muacutesica o teatro natildeo deleita E
aleacutem das flautas que nunca faltaram sempre na nossa obra eacute de esperar o canto
Na verdade por que motivo havia o coro de ser representado atraacutes do pano
para que se ouvisse mal De fora do prosceacutenio eacute conduzido em direcccedilatildeo agrave cena
o que tem um efeito admiraacutevel Portanto fizemos desfilar os que cantam com
vestes aparatosas e neste geacutenero podem porventura os Portugueses ter feito algo
de notaacutevel Mas considera tudo isto sem grande importacircncia Leitor
humaniacutessimo Daacute-lhe a importacircncia que entenderes em consciecircnciaraquo2
Segundo Luiacutes da Cruz no limiar do seacuteculo XVII em Portugal os Coros
do teatro eram sempre cantados Os dramaturgos jesuiacutetas consideravam
indispensaacutevel ao novo teatro a existecircncia de Coros musicais O mesmo texto
pressupotildee no entanto que foi precisamente em Portugal que nasceu pela
primeira vez aquele geacutenero de peccedila coral dramaacutetica tepresentada em cena e
interpretada por algueacutem que tambeacutem era personagem do drama laquoNa verdade
por que motivo havia o coro de ser representado atraacutes do pano para que se
ouvisse mal De fora do prosceacutenio eacute conduzido em direcccedilatildeo agrave cenaraquo
Pela primeira vez segundo Luiacutes da Cruz o Coro apresentava-se ao puacuteblico
2 Traduccedilatildeo de R M Rosado Fernandes Cf R M Rosado Fernandes e J Mendes de
Castro P Lias da Cruz SI O Proacutedigo Tragicomeacutedia Novilatina Lisboa Instituto Nacional de
Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1989 vol II pp 36-37
316
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
envergando as vestes proacuteprias da personagem que representava ou seja fazendo
parte integrante da composiccedilatildeo dramaacutetica e natildeo com mera funccedilatildeo ornamental
Esse aspecto dava agrave composiccedilatildeo coral um caraacutecter essencialmente distinto da
muacutesica que se associava agraves tradiccedilotildees europeias do intermezzo dramaacutetico
Foi na verdade durante a segunda metade do seacuteculo XVI que em
Portugal se definiu o amplo papel que a muacutesica viria a ter no teatro escolar
jesuiacutetico As suas origens poreacutem continuam ainda em grande parte
desconhecidas Como acontece com o teatro jesuiacutetico de Itaacutelia e da Alemanha
as obras mais representativas do periacuteodo das origens mdash tanto no que respeita agrave
criaccedilatildeo literaacuteria como agrave criaccedilatildeo musical mdash continuam ainda sujeitas a conclusotildees
apressadas facilmente condicionadas por preconceitos ideoloacutegicos
Quem ler o primeiro capiacutetulo de Pensar eacute morrer ou O Teatro de Satildeo
Carlos na mudanccedila de sistemas soacutecio comunicativos desde fins do seacutec XVIIaos nossos
dias de Maacuterio Vieira de Carvalho por exemplo eacute levado a pensar que o drama
neolatino mdash que o autor focaliza sempre por oposiccedilatildeo ao teatro de Gil Vicente
mdash sofreu simplesmente cie um atraso essencial que correspondeu ao
retardamento geral da evoluccedilatildeo musical verificado em Portugal no decurso do
seacuteculo XVII Que o canto e a muacutesica do teatro jesuiacutetico consistiriam apenas em
laquoformas preexistentes desenvolvidas independentemente do teatro escolar e
inseridas neste () Tratar-se-ia enfim de canccedilotildees intercaladas muacutesica
incidental episoacutedios musicais que se destinavam por vezes a criar cor localraquo
nada tendo a ver portanto com a lenta evoluccedilatildeo para o dramma per musica em
que o canto e a muacutesica satildeo elementos constitutivos do todo laquoNa verdade tudo
leva a crerraquo continua laquoque os jesuiacutetas portugueses se limitaram a utilizar formas
preexistentes da muacutesica religiosa popular e militar e a aumentar a sua quantidade
3 Segundo Owen Rees Polipbony in Portugalc 1530-c 1620 Sourcesfrom tbe Monastery of Santa Cruz Coimbra Graland Publishing New York and London 1995) dentro da tradiccedilatildeo musical do teatro secular neoclaacutessico italiano surgiram ocasionalmente tentativas de dar muacutesica agraves palavras do Coro ou de uma determinada personagem como aconteceu em 1566 na representaccedilatildeo agravetAiacuteidoro de Gabriele Bombace em que um soprano solista cantava acompanhado de muacutesica instrumental Vd p 121 n 8 Os Coros mais famosos da tradiccedilatildeo italiana satildeo poreacutem os que compocircs Andrea Gabrieli em 1585 para o Eacutedipo tiranno de Orsatto Giusriniani Tambeacutem esses satildeo como veremos posteriores aos Coros que inauguraram o teatro jesuiacutetico do Coleacutegio das Artes de Coimbra
317
JVIAIiacuteARIDAMIRANDA
nas tragicomeacutedias Isso natildeo basta para lhes atribuir precedecircncia no desbravar
do caminho para u m a dramaturgia de nova qualidaderaquo1
Pretendem estas paacuteginas afirmar precisamente o contraacuterio em Portugal
os jesuiacutetas foram realmente responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de u m novo geacutenero traacutegico
do qual a muacutesica vem a ser parte integrante como se vecirc pela teoria poeacutetica
exposta pelo P Luiacutes da Cruz no proacutelogo agraves suas peccedilas
Ora sabemos que o pensamento esteacutetico eacute sempre resultado da reflexatildeo
sobre u m corpus que o representa Se foi possiacutevel a Luiacutes da Cruz definir u m
coacutedigo esteacutetico preciso foi porque u m nuacutemero significativo de obras de arte
corporizou tendencialmente os preceitos por ele postulados Refiro-me natildeo
apenas aos dramas do proacuteprio Luiacutes da Cruz mas tambeacutem aos dramas dos autores
que o precederam no Coleacutegio das Artes nomeadamente agraves trageacutedias daquele
que foi seu maior mestre e que viria a ser tambeacutem o pai do teatro Jesuiacutetico em
Portugal Migue l Venegas5 cuja obra devia suceder em C o i m b r a agrave obra
dramaacutetica de Buchanan e Diogo de Teive dois dos humanistas que t inham
fundado o Coleacutegio Real de D Joatildeo III
Estaacute ainda por aprofundar a influecircncia que teraacute tido Venegas sobre a
obra do seu disciacutepulo Luiacutes da Cruz mas os Cataacutelogos do ano de 1559 enviados
do Coleacutegio das Artes para Roma e hoje pertencentes ao Archivum Romanum
Societatis Iesu colocam Luiacutes da Cruz estudante na primeira classe (Retoacuterica)6 e
4 Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1993 p 23 O itaacutelico eacute da minha autoria 5 Miguel Venegas era professor no Coleacutegio Trilingue da Universidade de Alcalaacute de
Henares quando entrou na Companhia de Jesus Foi professor de Retoacuterica e Humanidades no
Coleacutegio de Sanro Antatildeo em Lisboa entre 1556 e 1558 tendo depois vindo para Coimbra onde
permaneceu ateacute 1562 A sua brilhante carreira de Professor e o mal estar de jesuiacuteta levou-o
depois a Roma a Paris e de novo a Roma para finalmente deixar a Companhia em Iacute567 e
regressar a Espanha A Universidade de Salamanca acolheu-o como professor de Retoacuterica e ali
o dramaturgo competiu mais do que uma vez com Sanchez de las Brozas (o Brocense) em
concursos dramaacuteticos escolares tendo vindo a derrotaacute-lo em 1570 As uacuteltimas notiacutecias biograacuteficas
vecircm de Alcalaacute sua terra natal aonde teraacute regressado jaacute na deacutecada de 70 Foi no entanto em
Coimbra (1558-1562) que Miguel Venegas produziu as suas principais obras dramaacuteticas Para
uma biografia mais completa de Miguel Venegas vd Margarida Miranda Miguel Venegas e o
nascimento da Trageacutedia Jesuiacutetica A Tragoedia cui nomen inditum Achabus Tese de doutoramento
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2002 pp 2 1 - 6 1
Archivum Romanum Societatis Icsu (doravante ARSI) Lus 43 foi 82r
318
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Miguei Venegas mestre ora da primeira ora da segunda classe (Humanidades)
alternando com Pedro Perpinhatildeo7
Entre os disciacutepulos de Miguel Venegas em Coimbra em 1559 contava-
-se pois Luiacutes da Cruz jaacute jesuiacuteta e estudante de prima De 17 anos Recebido en
Dec de 1557 Oye en la Ia classe Sabe latin mediocremente y algun griego Tiene
buena habilidad Es bien dispuesto Assim reza o Cataacutelogo de 1559 a seu respeito
Aos 17 anos ainda natildeo era possiacutevel adivinhar o verdadeiro talento poeacutetico de
Luiacutes da Cruz mas podemos tomar como certa a sua participaccedilatildeo naquela que
foi a primeira trageacutedia a ser representada em Coimbra pelos jesuiacutetas a Satatilde Gelboeus
que Miguel Venegas compocircs para os seus disciacutepulos em 1559- O estudo da obra
literaacuteria destes dois dramaturgos mostraraacute pois os seus numerosos pontos de contacto
Daquele acontecimento em 1559 quarenta anos antes da ediccedilatildeo
definitiva da Ratio Studiorum dos jesuiacutetas existem alguns testemunhos
contemporacircneos imprescindiacuteveis para uma correcta valorizaccedilatildeo do lugar
destes espectaacuteculos na histoacuteria do teatro e na histoacuteria da muacutesica
A carta de Pecircro Dias
En meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus de Miguel Venegas deu-se
precisamente no iniacutecio de Julho daquele ano por ocasiatildeo das festas da Rainha
Santa Isabel a padroeira do Coleacutegio O testemunho mais conhecido eacute o da
carta quadrimestral de Outubro daquele ano escrita por Pecircro Dias8
laquoAl d o m i n g o seguiente se represento u n a tragedia que c o m p u s o ei P
maest ro Venegas () Auiacutea en cada acto un choro de letra m u y deuota y m u y
bien c o m p u e s t o en p u n c t o de canto de oacutergano y 8 oacute n u e u e muacutesicos que los
can tauan m u y bien y con ten taacute ronse t a n t o todos destes choros m aacute x i m e los
7 ARSI Lus 43 foi 107r 167v e 71-72
s M O N U M E N T A HISTOacuteRICA SOCIETATIS IESU Litterae quadrimestre ex univems
praeter Indiam et Brasiliam locis in quibus aliqui de Societate Iesu versabantur Romam missae 7 vols
Madrid-Roma 1894-1932 (Doravante Litt Quad)Vo 6 p 362-363
319
jVtoTOA MIRANDA
religiosos que no solo los que estauan presentes pecircro aun los de Sancta Cruz
(que no salen fuera) los pedieron con mucha instancia y daacutendoseles diziacutean que
no auiacutean uisto cosa semejante Fueacute grande el concurso de gente que uino a esta
tragedia asiacute de iacuteos de la ciudad como de los doctores de la vniuersidad y para
todos ordeno el P Miroacuten que vuiesse lugares destinctos () Fueacute muy general
el contentamiento de todos porque las figuras de ia tragedia eran muy proacuteprias
y muy ricamente uestidas y la letra muy deuota y sententiosa tanto que
algunos religiosos llorauan y deziacutea el rector9 que en todo los Padres rnezclauan
la deuocioacuten hasta en los choros de la tragedia () Vnos deziacutean que en meacutedio de
Greacutecia no sepudiem representar mejor () Vinieron despueacutes muchos visitar ai E
Venegas y en todo ueya la comuacuten satisfacioacuten que delio teniacuteanraquo
O acontecimento teve repercussotildees em toda a cidade a Universidade
com o reitor e o corpo docente os magistrados os religiosos de todos os
coleacutegios e simples populares encheram os dois andares do paacutetio do Coleacutegio
A Companhia precisava de dar uma boa imagem puacuteblica da acccedilatildeo pedagoacutegica
que desenvolvia e aquele acontecimento ia sem duacutevida prestar-se a conquistar
simpatias e a aumentar o prestiacutegio dos novos professores do Coleacutegio
A carta de Pecircro Dias refere ainda que os estudantes haviam comeccedilado
muito tempo antes a recitar as suas partes e que o seu desempenho foi
muito bom No meio do paacutetio do Coleacutegio improvisou-se um grande palco
sobre o qual se haviam disposto unos repartimientos a manem de casas de
onde saiacuteam as personagens
A peccedila compreendia cinco actos como postulava o teatro antigo
Espontaneamente o cronista deixa transparecer que o paradigma daquela
nova concepccedilatildeo de teatro residia precisamente no teatro antigo da Greacutecia e
de Roma en meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor Tal como no
teatro antigo a muacutesica era parte integrante e tinha por isso um papel
estruturante na obra assim tambeacutem para o humanista de Coimbra os Coros
da trageacutedia natildeo eram interluacutedios desligados da acccedilatildeo mas sim Coros
cantados representando alguma petsonagem colectiva O Coro interpretava
uma peccedila criada para o efeito com a funccedilatildeo de comentar a acccedilatildeo ou
Refere-se evidentemente ao reitor de Universidade
320
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
exprimir algum sentimento mais intenso (de luto de triunfo ou de
louvor)
Quanto agrave composiccedilatildeo musical a carta de Pecircro Dias permite-nos
concluir que natildeo se tratava de improvisaccedilotildees faacuteceis sobre melodias
preexistentes como supocircs Maacuterio de Catvalho mas sim de composiccedilotildees
proacuteprias em polifonia com ou sem acompanhamento instrumental
executadas por oito ou nove cantores chamados de fora De facto como
observa Owen Rees10 mdash autor de um valioso estudo sobre polifonia em
Portugal em que revelou a existecircncia de alguns exemplares de composiccedilotildees
musicais desta natureza mdash o facto de esta carta aludir aos inteacuterpretes dos
Coros como muacutesicos sugere que seriam cantores habituados ao canto em
vez de alunos do Coleacutegio em cujo curriculum ao contraacuterio do das outras
escolas congeacuteneres estava excluiacuteda a classe de canto
Deste modo o compositor a quem fora pedida a obra musical seria
provavelmente o encarregado de ensinar ensaiar e reger uma pequena Capela
de Canto de Oacutergatildeo a quem caberia a execuccedilatildeo musical dos Coros durante
a representaccedilatildeo da trageacutedia
O que falta provar eacute a afirmaccedilatildeo de Owen Rees segundo a qual diante
do sucesso obtido pelas peccedilas corais da Saul Gelboeus os Coacutenegos regrantes
de Santa Cruz foram forccedilados a admitir a derrota e pediram insistentemente
aos padres aquelas partituras declarando depois natildeo haverem visto nada de
semelhante12 Natildeo existe na catta qualquer alusatildeo a vencedores nem a
vencidos Nem conheccedilo qualquer indiacutecio de que Miguel Venegas ou o Coleacutegio
das Artes tenham posto a concurso o trabalho de composiccedilatildeo dos Cotos
Op cit p 105 1 Sobre a distinccedilatildeo entre Cantochatildeo e Canto de Oacutergatildeo vd Ernesto Gonccedilalves de Pinho
Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical nos seacuteculos XVI e XVII Lisboa Gulbenkian 1981 pp 65-70
12laquo the canons of Santa Cru were forced to concede defeat it does seems that mdash as in the case of the choruses for Sedccias mentioned abovemdash the music for Satatilde Gelboaeus had been chosed by means of a competition in wich the musicians of Santa Cruz (the foremost musical establishment in Coimbra) had naturally taken part One imagines that the Jesuits took such trouble over the commissionig of music for their plays inorder to ensure that the music was of a tipe wich concorded with the aesthetic and moral ideais of these dramasraquo Owen Rees Op cit p 105
321
MARGARIDAMKANDA
para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham
sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o
humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica
conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se
a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu
valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo
polifoacutenica13
Quem teraacute sido pois o seu autor
Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como
compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4
um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente
com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os
muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra
nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram
Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro
anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando
se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de
Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do
Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um
A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio
musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu
Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos
de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra
Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria
daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco
laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()
Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom
Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso
tinha especial graccedilaraquo
Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de
Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de
segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147
A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de
D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552
322
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo
Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco
Castelhano pois nascera no reino de Castela
Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista
Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico
seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica
Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco
Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo
frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557
foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas
recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a
cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os
anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares
oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se
compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois
oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior
solenidade[6
Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria
destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos
de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de
aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a
Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de
contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1
Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical
de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia
Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia
ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela
pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo
Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o
16 Litt Quad 6 pp 360-361
Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de
Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra 2001
323
JVIARiacuteARIDA MIRANDA
Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade
emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo
Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos
Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos
seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de
larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais
de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra
como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo
de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico
em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559
como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no
paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade
Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia
causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram
19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos
entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de
inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de
Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio
Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138
Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais
omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia
a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum
modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em
mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos
levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos
ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S
I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe
XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis
University 1970
Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees
principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I
Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp
213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na
Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra 1997
324
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que
Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um
momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo
de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges
de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista
nada de semelhante
A versatildeo latina da mesma carta
Optiacuteme more traacutegico canebantur
Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute
modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20
Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar
recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De
um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a
traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos
para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs
laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum
quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant
ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine
nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus
domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis
unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum
prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione
factum est ut oprime suas partes egerint
In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat
quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus
multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant
uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros
m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56
325
_MARGARIDAMBMNDA
rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil
se uidisse melius apertissime affirmabant
Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor
Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca
designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex
omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus
aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus
relictus est
Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro
incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum
etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et
uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim
erat illustrata ()
Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et
omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse
afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret
magnificentius celebrari posse tcstabantur
Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili
gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis
ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22
laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava
com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns
degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de
avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora
construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os
actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico
na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados
Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes
No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava
um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto
agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute
ARSI Lus 51 foi 56
326
M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que
lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham
visto coisa melhor
A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo
reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado
com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo
reservou outro lugar no paacutetio de baixo
A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos
numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer
pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e
de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras
elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()
Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens
eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais
elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a
Coimbra nada mais digno haveria para o receber
Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas
com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto
agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo
N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado
pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam
preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute
agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a
habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o
t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido
s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral
do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia
u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J
literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a
muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da
Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute
nos Coros da trageacutedia
327
_MARCMII)AMIIUNIH
Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham
por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria
acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam
as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo
Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico
esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico
em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia
para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio
Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do
texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como
podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos
ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial
ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos
greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico
novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos
satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-
Os Coros do Manuscrito Musical 70
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao
momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto
manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio
das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem
escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco
como seria de esperar
Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius
natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos
Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca
13 Owen Rees Op cit p 102-103
328
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia
como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos
exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste
todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam
apenas conjecturar
Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia
de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra
cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo
corresponde agrave sua ordem na peccedila
O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente
em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia
de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor
felix dolor o beate
O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem
qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em
todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que
acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os
fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes
que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo
O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava
encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o
24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de
Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM
ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por
publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados
com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha
dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve
anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A
Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o
excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por
Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e
a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-
-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o
texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental
329
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
JVIAIiacuteARIDAMIRANDA
nas tragicomeacutedias Isso natildeo basta para lhes atribuir precedecircncia no desbravar
do caminho para u m a dramaturgia de nova qualidaderaquo1
Pretendem estas paacuteginas afirmar precisamente o contraacuterio em Portugal
os jesuiacutetas foram realmente responsaacuteveis pela criaccedilatildeo de u m novo geacutenero traacutegico
do qual a muacutesica vem a ser parte integrante como se vecirc pela teoria poeacutetica
exposta pelo P Luiacutes da Cruz no proacutelogo agraves suas peccedilas
Ora sabemos que o pensamento esteacutetico eacute sempre resultado da reflexatildeo
sobre u m corpus que o representa Se foi possiacutevel a Luiacutes da Cruz definir u m
coacutedigo esteacutetico preciso foi porque u m nuacutemero significativo de obras de arte
corporizou tendencialmente os preceitos por ele postulados Refiro-me natildeo
apenas aos dramas do proacuteprio Luiacutes da Cruz mas tambeacutem aos dramas dos autores
que o precederam no Coleacutegio das Artes nomeadamente agraves trageacutedias daquele
que foi seu maior mestre e que viria a ser tambeacutem o pai do teatro Jesuiacutetico em
Portugal Migue l Venegas5 cuja obra devia suceder em C o i m b r a agrave obra
dramaacutetica de Buchanan e Diogo de Teive dois dos humanistas que t inham
fundado o Coleacutegio Real de D Joatildeo III
Estaacute ainda por aprofundar a influecircncia que teraacute tido Venegas sobre a
obra do seu disciacutepulo Luiacutes da Cruz mas os Cataacutelogos do ano de 1559 enviados
do Coleacutegio das Artes para Roma e hoje pertencentes ao Archivum Romanum
Societatis Iesu colocam Luiacutes da Cruz estudante na primeira classe (Retoacuterica)6 e
4 Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1993 p 23 O itaacutelico eacute da minha autoria 5 Miguel Venegas era professor no Coleacutegio Trilingue da Universidade de Alcalaacute de
Henares quando entrou na Companhia de Jesus Foi professor de Retoacuterica e Humanidades no
Coleacutegio de Sanro Antatildeo em Lisboa entre 1556 e 1558 tendo depois vindo para Coimbra onde
permaneceu ateacute 1562 A sua brilhante carreira de Professor e o mal estar de jesuiacuteta levou-o
depois a Roma a Paris e de novo a Roma para finalmente deixar a Companhia em Iacute567 e
regressar a Espanha A Universidade de Salamanca acolheu-o como professor de Retoacuterica e ali
o dramaturgo competiu mais do que uma vez com Sanchez de las Brozas (o Brocense) em
concursos dramaacuteticos escolares tendo vindo a derrotaacute-lo em 1570 As uacuteltimas notiacutecias biograacuteficas
vecircm de Alcalaacute sua terra natal aonde teraacute regressado jaacute na deacutecada de 70 Foi no entanto em
Coimbra (1558-1562) que Miguel Venegas produziu as suas principais obras dramaacuteticas Para
uma biografia mais completa de Miguel Venegas vd Margarida Miranda Miguel Venegas e o
nascimento da Trageacutedia Jesuiacutetica A Tragoedia cui nomen inditum Achabus Tese de doutoramento
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2002 pp 2 1 - 6 1
Archivum Romanum Societatis Icsu (doravante ARSI) Lus 43 foi 82r
318
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Miguei Venegas mestre ora da primeira ora da segunda classe (Humanidades)
alternando com Pedro Perpinhatildeo7
Entre os disciacutepulos de Miguel Venegas em Coimbra em 1559 contava-
-se pois Luiacutes da Cruz jaacute jesuiacuteta e estudante de prima De 17 anos Recebido en
Dec de 1557 Oye en la Ia classe Sabe latin mediocremente y algun griego Tiene
buena habilidad Es bien dispuesto Assim reza o Cataacutelogo de 1559 a seu respeito
Aos 17 anos ainda natildeo era possiacutevel adivinhar o verdadeiro talento poeacutetico de
Luiacutes da Cruz mas podemos tomar como certa a sua participaccedilatildeo naquela que
foi a primeira trageacutedia a ser representada em Coimbra pelos jesuiacutetas a Satatilde Gelboeus
que Miguel Venegas compocircs para os seus disciacutepulos em 1559- O estudo da obra
literaacuteria destes dois dramaturgos mostraraacute pois os seus numerosos pontos de contacto
Daquele acontecimento em 1559 quarenta anos antes da ediccedilatildeo
definitiva da Ratio Studiorum dos jesuiacutetas existem alguns testemunhos
contemporacircneos imprescindiacuteveis para uma correcta valorizaccedilatildeo do lugar
destes espectaacuteculos na histoacuteria do teatro e na histoacuteria da muacutesica
A carta de Pecircro Dias
En meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus de Miguel Venegas deu-se
precisamente no iniacutecio de Julho daquele ano por ocasiatildeo das festas da Rainha
Santa Isabel a padroeira do Coleacutegio O testemunho mais conhecido eacute o da
carta quadrimestral de Outubro daquele ano escrita por Pecircro Dias8
laquoAl d o m i n g o seguiente se represento u n a tragedia que c o m p u s o ei P
maest ro Venegas () Auiacutea en cada acto un choro de letra m u y deuota y m u y
bien c o m p u e s t o en p u n c t o de canto de oacutergano y 8 oacute n u e u e muacutesicos que los
can tauan m u y bien y con ten taacute ronse t a n t o todos destes choros m aacute x i m e los
7 ARSI Lus 43 foi 107r 167v e 71-72
s M O N U M E N T A HISTOacuteRICA SOCIETATIS IESU Litterae quadrimestre ex univems
praeter Indiam et Brasiliam locis in quibus aliqui de Societate Iesu versabantur Romam missae 7 vols
Madrid-Roma 1894-1932 (Doravante Litt Quad)Vo 6 p 362-363
319
jVtoTOA MIRANDA
religiosos que no solo los que estauan presentes pecircro aun los de Sancta Cruz
(que no salen fuera) los pedieron con mucha instancia y daacutendoseles diziacutean que
no auiacutean uisto cosa semejante Fueacute grande el concurso de gente que uino a esta
tragedia asiacute de iacuteos de la ciudad como de los doctores de la vniuersidad y para
todos ordeno el P Miroacuten que vuiesse lugares destinctos () Fueacute muy general
el contentamiento de todos porque las figuras de ia tragedia eran muy proacuteprias
y muy ricamente uestidas y la letra muy deuota y sententiosa tanto que
algunos religiosos llorauan y deziacutea el rector9 que en todo los Padres rnezclauan
la deuocioacuten hasta en los choros de la tragedia () Vnos deziacutean que en meacutedio de
Greacutecia no sepudiem representar mejor () Vinieron despueacutes muchos visitar ai E
Venegas y en todo ueya la comuacuten satisfacioacuten que delio teniacuteanraquo
O acontecimento teve repercussotildees em toda a cidade a Universidade
com o reitor e o corpo docente os magistrados os religiosos de todos os
coleacutegios e simples populares encheram os dois andares do paacutetio do Coleacutegio
A Companhia precisava de dar uma boa imagem puacuteblica da acccedilatildeo pedagoacutegica
que desenvolvia e aquele acontecimento ia sem duacutevida prestar-se a conquistar
simpatias e a aumentar o prestiacutegio dos novos professores do Coleacutegio
A carta de Pecircro Dias refere ainda que os estudantes haviam comeccedilado
muito tempo antes a recitar as suas partes e que o seu desempenho foi
muito bom No meio do paacutetio do Coleacutegio improvisou-se um grande palco
sobre o qual se haviam disposto unos repartimientos a manem de casas de
onde saiacuteam as personagens
A peccedila compreendia cinco actos como postulava o teatro antigo
Espontaneamente o cronista deixa transparecer que o paradigma daquela
nova concepccedilatildeo de teatro residia precisamente no teatro antigo da Greacutecia e
de Roma en meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor Tal como no
teatro antigo a muacutesica era parte integrante e tinha por isso um papel
estruturante na obra assim tambeacutem para o humanista de Coimbra os Coros
da trageacutedia natildeo eram interluacutedios desligados da acccedilatildeo mas sim Coros
cantados representando alguma petsonagem colectiva O Coro interpretava
uma peccedila criada para o efeito com a funccedilatildeo de comentar a acccedilatildeo ou
Refere-se evidentemente ao reitor de Universidade
320
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
exprimir algum sentimento mais intenso (de luto de triunfo ou de
louvor)
Quanto agrave composiccedilatildeo musical a carta de Pecircro Dias permite-nos
concluir que natildeo se tratava de improvisaccedilotildees faacuteceis sobre melodias
preexistentes como supocircs Maacuterio de Catvalho mas sim de composiccedilotildees
proacuteprias em polifonia com ou sem acompanhamento instrumental
executadas por oito ou nove cantores chamados de fora De facto como
observa Owen Rees10 mdash autor de um valioso estudo sobre polifonia em
Portugal em que revelou a existecircncia de alguns exemplares de composiccedilotildees
musicais desta natureza mdash o facto de esta carta aludir aos inteacuterpretes dos
Coros como muacutesicos sugere que seriam cantores habituados ao canto em
vez de alunos do Coleacutegio em cujo curriculum ao contraacuterio do das outras
escolas congeacuteneres estava excluiacuteda a classe de canto
Deste modo o compositor a quem fora pedida a obra musical seria
provavelmente o encarregado de ensinar ensaiar e reger uma pequena Capela
de Canto de Oacutergatildeo a quem caberia a execuccedilatildeo musical dos Coros durante
a representaccedilatildeo da trageacutedia
O que falta provar eacute a afirmaccedilatildeo de Owen Rees segundo a qual diante
do sucesso obtido pelas peccedilas corais da Saul Gelboeus os Coacutenegos regrantes
de Santa Cruz foram forccedilados a admitir a derrota e pediram insistentemente
aos padres aquelas partituras declarando depois natildeo haverem visto nada de
semelhante12 Natildeo existe na catta qualquer alusatildeo a vencedores nem a
vencidos Nem conheccedilo qualquer indiacutecio de que Miguel Venegas ou o Coleacutegio
das Artes tenham posto a concurso o trabalho de composiccedilatildeo dos Cotos
Op cit p 105 1 Sobre a distinccedilatildeo entre Cantochatildeo e Canto de Oacutergatildeo vd Ernesto Gonccedilalves de Pinho
Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical nos seacuteculos XVI e XVII Lisboa Gulbenkian 1981 pp 65-70
12laquo the canons of Santa Cru were forced to concede defeat it does seems that mdash as in the case of the choruses for Sedccias mentioned abovemdash the music for Satatilde Gelboaeus had been chosed by means of a competition in wich the musicians of Santa Cruz (the foremost musical establishment in Coimbra) had naturally taken part One imagines that the Jesuits took such trouble over the commissionig of music for their plays inorder to ensure that the music was of a tipe wich concorded with the aesthetic and moral ideais of these dramasraquo Owen Rees Op cit p 105
321
MARGARIDAMKANDA
para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham
sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o
humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica
conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se
a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu
valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo
polifoacutenica13
Quem teraacute sido pois o seu autor
Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como
compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4
um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente
com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os
muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra
nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram
Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro
anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando
se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de
Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do
Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um
A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio
musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu
Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos
de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra
Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria
daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco
laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()
Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom
Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso
tinha especial graccedilaraquo
Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de
Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de
segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147
A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de
D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552
322
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo
Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco
Castelhano pois nascera no reino de Castela
Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista
Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico
seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica
Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco
Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo
frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557
foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas
recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a
cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os
anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares
oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se
compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois
oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior
solenidade[6
Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria
destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos
de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de
aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a
Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de
contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1
Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical
de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia
Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia
ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela
pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo
Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o
16 Litt Quad 6 pp 360-361
Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de
Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra 2001
323
JVIARiacuteARIDA MIRANDA
Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade
emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo
Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos
Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos
seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de
larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais
de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra
como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo
de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico
em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559
como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no
paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade
Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia
causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram
19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos
entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de
inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de
Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio
Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138
Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais
omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia
a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum
modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em
mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos
levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos
ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S
I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe
XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis
University 1970
Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees
principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I
Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp
213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na
Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra 1997
324
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que
Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um
momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo
de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges
de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista
nada de semelhante
A versatildeo latina da mesma carta
Optiacuteme more traacutegico canebantur
Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute
modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20
Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar
recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De
um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a
traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos
para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs
laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum
quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant
ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine
nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus
domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis
unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum
prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione
factum est ut oprime suas partes egerint
In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat
quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus
multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant
uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros
m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56
325
_MARGARIDAMBMNDA
rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil
se uidisse melius apertissime affirmabant
Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor
Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca
designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex
omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus
aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus
relictus est
Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro
incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum
etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et
uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim
erat illustrata ()
Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et
omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse
afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret
magnificentius celebrari posse tcstabantur
Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili
gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis
ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22
laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava
com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns
degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de
avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora
construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os
actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico
na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados
Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes
No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava
um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto
agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute
ARSI Lus 51 foi 56
326
M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que
lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham
visto coisa melhor
A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo
reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado
com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo
reservou outro lugar no paacutetio de baixo
A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos
numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer
pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e
de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras
elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()
Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens
eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais
elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a
Coimbra nada mais digno haveria para o receber
Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas
com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto
agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo
N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado
pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam
preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute
agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a
habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o
t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido
s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral
do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia
u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J
literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a
muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da
Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute
nos Coros da trageacutedia
327
_MARCMII)AMIIUNIH
Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham
por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria
acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam
as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo
Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico
esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico
em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia
para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio
Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do
texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como
podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos
ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial
ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos
greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico
novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos
satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-
Os Coros do Manuscrito Musical 70
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao
momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto
manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio
das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem
escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco
como seria de esperar
Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius
natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos
Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca
13 Owen Rees Op cit p 102-103
328
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia
como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos
exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste
todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam
apenas conjecturar
Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia
de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra
cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo
corresponde agrave sua ordem na peccedila
O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente
em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia
de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor
felix dolor o beate
O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem
qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em
todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que
acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os
fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes
que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo
O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava
encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o
24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de
Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM
ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por
publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados
com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha
dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve
anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A
Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o
excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por
Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e
a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-
-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o
texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental
329
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
jVtoTOA MIRANDA
religiosos que no solo los que estauan presentes pecircro aun los de Sancta Cruz
(que no salen fuera) los pedieron con mucha instancia y daacutendoseles diziacutean que
no auiacutean uisto cosa semejante Fueacute grande el concurso de gente que uino a esta
tragedia asiacute de iacuteos de la ciudad como de los doctores de la vniuersidad y para
todos ordeno el P Miroacuten que vuiesse lugares destinctos () Fueacute muy general
el contentamiento de todos porque las figuras de ia tragedia eran muy proacuteprias
y muy ricamente uestidas y la letra muy deuota y sententiosa tanto que
algunos religiosos llorauan y deziacutea el rector9 que en todo los Padres rnezclauan
la deuocioacuten hasta en los choros de la tragedia () Vnos deziacutean que en meacutedio de
Greacutecia no sepudiem representar mejor () Vinieron despueacutes muchos visitar ai E
Venegas y en todo ueya la comuacuten satisfacioacuten que delio teniacuteanraquo
O acontecimento teve repercussotildees em toda a cidade a Universidade
com o reitor e o corpo docente os magistrados os religiosos de todos os
coleacutegios e simples populares encheram os dois andares do paacutetio do Coleacutegio
A Companhia precisava de dar uma boa imagem puacuteblica da acccedilatildeo pedagoacutegica
que desenvolvia e aquele acontecimento ia sem duacutevida prestar-se a conquistar
simpatias e a aumentar o prestiacutegio dos novos professores do Coleacutegio
A carta de Pecircro Dias refere ainda que os estudantes haviam comeccedilado
muito tempo antes a recitar as suas partes e que o seu desempenho foi
muito bom No meio do paacutetio do Coleacutegio improvisou-se um grande palco
sobre o qual se haviam disposto unos repartimientos a manem de casas de
onde saiacuteam as personagens
A peccedila compreendia cinco actos como postulava o teatro antigo
Espontaneamente o cronista deixa transparecer que o paradigma daquela
nova concepccedilatildeo de teatro residia precisamente no teatro antigo da Greacutecia e
de Roma en meacutedio de Greacutecia no se pudiera representar mejor Tal como no
teatro antigo a muacutesica era parte integrante e tinha por isso um papel
estruturante na obra assim tambeacutem para o humanista de Coimbra os Coros
da trageacutedia natildeo eram interluacutedios desligados da acccedilatildeo mas sim Coros
cantados representando alguma petsonagem colectiva O Coro interpretava
uma peccedila criada para o efeito com a funccedilatildeo de comentar a acccedilatildeo ou
Refere-se evidentemente ao reitor de Universidade
320
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
exprimir algum sentimento mais intenso (de luto de triunfo ou de
louvor)
Quanto agrave composiccedilatildeo musical a carta de Pecircro Dias permite-nos
concluir que natildeo se tratava de improvisaccedilotildees faacuteceis sobre melodias
preexistentes como supocircs Maacuterio de Catvalho mas sim de composiccedilotildees
proacuteprias em polifonia com ou sem acompanhamento instrumental
executadas por oito ou nove cantores chamados de fora De facto como
observa Owen Rees10 mdash autor de um valioso estudo sobre polifonia em
Portugal em que revelou a existecircncia de alguns exemplares de composiccedilotildees
musicais desta natureza mdash o facto de esta carta aludir aos inteacuterpretes dos
Coros como muacutesicos sugere que seriam cantores habituados ao canto em
vez de alunos do Coleacutegio em cujo curriculum ao contraacuterio do das outras
escolas congeacuteneres estava excluiacuteda a classe de canto
Deste modo o compositor a quem fora pedida a obra musical seria
provavelmente o encarregado de ensinar ensaiar e reger uma pequena Capela
de Canto de Oacutergatildeo a quem caberia a execuccedilatildeo musical dos Coros durante
a representaccedilatildeo da trageacutedia
O que falta provar eacute a afirmaccedilatildeo de Owen Rees segundo a qual diante
do sucesso obtido pelas peccedilas corais da Saul Gelboeus os Coacutenegos regrantes
de Santa Cruz foram forccedilados a admitir a derrota e pediram insistentemente
aos padres aquelas partituras declarando depois natildeo haverem visto nada de
semelhante12 Natildeo existe na catta qualquer alusatildeo a vencedores nem a
vencidos Nem conheccedilo qualquer indiacutecio de que Miguel Venegas ou o Coleacutegio
das Artes tenham posto a concurso o trabalho de composiccedilatildeo dos Cotos
Op cit p 105 1 Sobre a distinccedilatildeo entre Cantochatildeo e Canto de Oacutergatildeo vd Ernesto Gonccedilalves de Pinho
Santa Cruz de Coimbra Centro de Actividade Musical nos seacuteculos XVI e XVII Lisboa Gulbenkian 1981 pp 65-70
12laquo the canons of Santa Cru were forced to concede defeat it does seems that mdash as in the case of the choruses for Sedccias mentioned abovemdash the music for Satatilde Gelboaeus had been chosed by means of a competition in wich the musicians of Santa Cruz (the foremost musical establishment in Coimbra) had naturally taken part One imagines that the Jesuits took such trouble over the commissionig of music for their plays inorder to ensure that the music was of a tipe wich concorded with the aesthetic and moral ideais of these dramasraquo Owen Rees Op cit p 105
321
MARGARIDAMKANDA
para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham
sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o
humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica
conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se
a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu
valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo
polifoacutenica13
Quem teraacute sido pois o seu autor
Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como
compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4
um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente
com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os
muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra
nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram
Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro
anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando
se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de
Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do
Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um
A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio
musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu
Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos
de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra
Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria
daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco
laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()
Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom
Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso
tinha especial graccedilaraquo
Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de
Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de
segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147
A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de
D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552
322
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo
Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco
Castelhano pois nascera no reino de Castela
Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista
Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico
seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica
Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco
Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo
frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557
foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas
recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a
cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os
anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares
oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se
compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois
oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior
solenidade[6
Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria
destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos
de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de
aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a
Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de
contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1
Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical
de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia
Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia
ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela
pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo
Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o
16 Litt Quad 6 pp 360-361
Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de
Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra 2001
323
JVIARiacuteARIDA MIRANDA
Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade
emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo
Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos
Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos
seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de
larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais
de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra
como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo
de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico
em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559
como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no
paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade
Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia
causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram
19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos
entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de
inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de
Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio
Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138
Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais
omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia
a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum
modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em
mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos
levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos
ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S
I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe
XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis
University 1970
Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees
principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I
Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp
213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na
Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra 1997
324
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que
Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um
momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo
de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges
de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista
nada de semelhante
A versatildeo latina da mesma carta
Optiacuteme more traacutegico canebantur
Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute
modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20
Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar
recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De
um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a
traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos
para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs
laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum
quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant
ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine
nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus
domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis
unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum
prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione
factum est ut oprime suas partes egerint
In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat
quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus
multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant
uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros
m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56
325
_MARGARIDAMBMNDA
rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil
se uidisse melius apertissime affirmabant
Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor
Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca
designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex
omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus
aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus
relictus est
Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro
incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum
etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et
uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim
erat illustrata ()
Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et
omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse
afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret
magnificentius celebrari posse tcstabantur
Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili
gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis
ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22
laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava
com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns
degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de
avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora
construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os
actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico
na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados
Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes
No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava
um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto
agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute
ARSI Lus 51 foi 56
326
M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que
lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham
visto coisa melhor
A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo
reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado
com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo
reservou outro lugar no paacutetio de baixo
A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos
numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer
pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e
de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras
elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()
Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens
eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais
elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a
Coimbra nada mais digno haveria para o receber
Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas
com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto
agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo
N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado
pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam
preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute
agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a
habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o
t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido
s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral
do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia
u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J
literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a
muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da
Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute
nos Coros da trageacutedia
327
_MARCMII)AMIIUNIH
Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham
por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria
acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam
as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo
Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico
esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico
em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia
para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio
Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do
texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como
podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos
ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial
ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos
greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico
novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos
satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-
Os Coros do Manuscrito Musical 70
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao
momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto
manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio
das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem
escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco
como seria de esperar
Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius
natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos
Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca
13 Owen Rees Op cit p 102-103
328
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia
como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos
exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste
todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam
apenas conjecturar
Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia
de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra
cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo
corresponde agrave sua ordem na peccedila
O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente
em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia
de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor
felix dolor o beate
O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem
qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em
todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que
acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os
fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes
que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo
O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava
encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o
24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de
Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM
ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por
publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados
com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha
dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve
anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A
Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o
excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por
Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e
a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-
-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o
texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental
329
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
MARGARIDAMKANDA
para a sua trageacutedia nem sequer de que os Monges de Santa Cruz tenham
sido preteridos na escolha do melhor compositor para colaborar com o
humanista Se os monges de Santa Cruz pediram as muacutesicas a uacutenica
conclusatildeo segura a inferir eacute a de que natildeo era de laacute o autor de tais Coros E se
a maior instituiccedilatildeo musical de Coimbra se interessou por eles e lhes deu
valor eacute porque algo de novo eles traziam agraves teacutecnicas de composiccedilatildeo
polifoacutenica13
Quem teraacute sido pois o seu autor
Da segunda metade do seacuteculo XVI o uacutenico muacutesico conhecido como
compositor de choros pecircra trageacutedias foi D Francisco de Santa M ana4
um dos maiores Mestres de Capela do Mosteiro de Santa Cruz juntamente
com D Heliodoro de Paiva e D Pedro de Cristo11 Mas aparentemente os
muacutesicos de Santa Cruz o maior centro de actividade musical de Coimbra
nada tiveram a ver com aquele acontecimento ao qual nem sequer assistiram
Na verdade D Francisco soacute seria de Santa Maria quando quatro
anos depois professasse entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz Quando
se fez religioso em 1562 jaacute era sacerdote e Mestre de Capela do Bispo de
Coimbra D Joatildeo Soares diz o assento da sua morte no obituaacuterio do
Mosteiro 17 de Marccedilo de 1562 eacute a data da sua tomada de haacutebito e um
A importacircncia da Escola Musical do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no patrimoacutenio
musicai portuguecircs foi sobejamente demonstrada peio trabalho de Joseacute Maria Pedrosa dAbreu
Cardoso O Canto Lituacutergico da Paixatildeo em Portugal nos seacuteculosXVIpound XVII Os Passionacircrios Polifocircnicos
de Guimaratildees e Coimbra (2 vois) Dissertaccedilatildeo de doutoramento em Ciecircncias Musicais Coimbra
Faculdade de Letras 1998 14 O Obituaacuterio do Mosteiro de Santa Cruz elaborado por Dom Gabriel de Santa Maria
daacute-nos informaccedilotildees preciosas para a identificaccedilatildeo de algumas das obras de Dom Francisco
laquoEra consumado em sciencia de musica e contra ponto e chegou ao cume desta sciencia ()
Compocircs muitos choros pecircra trageacutedias especialmente pecircra uma grande que el Rei Dom
Sebastiatildeo ueo uer a esta cidade e os seus foram escolhidos entre muitos porque pecircra isso
tinha especial graccedilaraquo
Vd Obituaacuterio de Santa Cruz publicado por Pedro de Azevedo Roiacutedos Coacutenegos Regrantes de
Santo Agostinho por Dom Gabriel de Santa Maria Academia das Ciecircncias de Lisboa Boletim de
segunda classe voiacute 11 Coimbra imprensa da Universidade 1916-18 pp 146-147
A trageacutedia referida eacute a Sedecias do P Luiacutes da Cruz representada em Coimbra em 1570 15 D Pedro de Cristo tomou haacutebito em 1571 e faleceu em 1618 Ateacute 1597 data da morte de
D Francisco os dois muacutesicos foram portanto contemporacircneos D Heliodoro de Paiva faleceu em 1552
322
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
ano depois faria a profissatildeo religiosa tomando aquele nome de religiatildeo
Antes de entrar para o Mosteiro era mais conhecido como Dom Francisco
Castelhano pois nascera no reino de Castela
Ecirc natural que numa pequena cidade como Coimbra o humanista
Miguei Venegas tambeacutem ele castelhano de origem recorresse a um muacutesico
seu semelhante nas origens para colaborar consigo naquela criaccedilatildeo artiacutestica
Tanto mais que D Joatildeo Soares o bispo para quem trabalhava D Francisco
Castelhano era um dos mais generosos benfeitores do Coleacutegio e assiacuteduo
frequentador dos seus Actos Puacuteblicos Sabemos por exemplo que em 1557
foi D Joatildeo Soares quem subsidiou os preacutemios com que os mestres jesuiacutetas
recompensaram os alunos mais distintos Tendo assistido agravequele Acto a
cerimoacutenia foi tatildeo do agrado do Bispo que ele prometeu fazecirc-lo todos os
anos Em 1559 no mesmo ano da representaccedilatildeo de Satatilde D Joatildeo Soares
oferecera como era haacutebito vinte ducados para os preacutemios e com eles se
compraram muy buenos libros y muy bien guarnecidos os quais foram depois
oferecidos aos alunos vencedores em Acto Puacuteblico no meio da maior
solenidade[6
Owen Rees o primeiro a inclinar-se para a atribuiccedilatildeo da autoria
destes Coros a D Francisco lembra ainda que estando de fora os muacutesicos
de Santa Cruz eacute provaacutevel que os cantores da Seacute fossem os uacutenicos capazes de
aceder ao pedido dos jesuiacutetas pois a outra instituiccedilatildeo musical existente a
Capela da Universidade era entatildeo de tal modo pobre que precisava de
contratar muacutesicos de fora para os serviccedilos mais importantes1
Hoje poreacutem dispomos de outros conhecimentos sobre o meio musical
de Coimbra no seacuteculo XVI Aleacutem da Capela da Universidade e da Capeia
Musical do Mosteiro de Santa Cruz a verdade eacute que em Coimbra existia
ainda uma outra instituiccedilatildeo musical de natildeo menor qualidade a Capela
pessoal do Bispo ou seja uma Capela Musical ao serviccedilo pessoal de D Joatildeo
Soares independente da Capela da Seacute18 O mais provaacutevel portanto eacute que o
16 Litt Quad 6 pp 360-361
Op ciacutet p123 n 22 18 Sustentou esta tese o Mestre Pedro Miranda no estudo intitulado D Francisco de
Santa Maria Cantor Mor de Santa Cruz de Coimbra Tese de Mestrado apresentada agrave Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra 2001
323
JVIARiacuteARIDA MIRANDA
Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade
emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo
Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos
Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos
seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de
larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais
de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra
como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo
de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico
em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559
como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no
paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade
Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia
causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram
19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos
entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de
inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de
Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio
Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138
Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais
omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia
a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum
modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em
mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos
levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos
ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S
I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe
XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis
University 1970
Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees
principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I
Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp
213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na
Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra 1997
324
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que
Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um
momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo
de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges
de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista
nada de semelhante
A versatildeo latina da mesma carta
Optiacuteme more traacutegico canebantur
Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute
modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20
Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar
recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De
um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a
traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos
para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs
laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum
quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant
ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine
nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus
domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis
unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum
prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione
factum est ut oprime suas partes egerint
In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat
quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus
multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant
uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros
m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56
325
_MARGARIDAMBMNDA
rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil
se uidisse melius apertissime affirmabant
Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor
Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca
designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex
omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus
aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus
relictus est
Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro
incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum
etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et
uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim
erat illustrata ()
Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et
omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse
afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret
magnificentius celebrari posse tcstabantur
Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili
gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis
ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22
laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava
com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns
degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de
avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora
construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os
actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico
na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados
Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes
No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava
um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto
agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute
ARSI Lus 51 foi 56
326
M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que
lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham
visto coisa melhor
A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo
reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado
com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo
reservou outro lugar no paacutetio de baixo
A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos
numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer
pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e
de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras
elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()
Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens
eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais
elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a
Coimbra nada mais digno haveria para o receber
Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas
com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto
agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo
N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado
pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam
preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute
agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a
habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o
t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido
s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral
do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia
u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J
literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a
muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da
Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute
nos Coros da trageacutedia
327
_MARCMII)AMIIUNIH
Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham
por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria
acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam
as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo
Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico
esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico
em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia
para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio
Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do
texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como
podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos
ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial
ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos
greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico
novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos
satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-
Os Coros do Manuscrito Musical 70
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao
momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto
manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio
das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem
escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco
como seria de esperar
Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius
natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos
Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca
13 Owen Rees Op cit p 102-103
328
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia
como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos
exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste
todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam
apenas conjecturar
Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia
de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra
cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo
corresponde agrave sua ordem na peccedila
O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente
em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia
de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor
felix dolor o beate
O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem
qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em
todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que
acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os
fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes
que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo
O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava
encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o
24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de
Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM
ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por
publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados
com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha
dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve
anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A
Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o
excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por
Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e
a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-
-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o
texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental
329
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
JVIARiacuteARIDA MIRANDA
Bispo de Coimbra participasse com mais um gesto de magnanimidade
emprestando gratuitamente os seus proacuteprios cantores mais o respectivo
Mestre de Capela para que se realizasse um dos mais importantes Actos
Puacuteblicos que ateacute aiacute houvera no Coleacutegio mdash ateacute porque natildeo consta que nos
seus primeiros anos de Companhia o Coleacutegio Real de Coimbra gozasse de
larguezas econoacutemicas que lhe permitissem remunerar os serviccedilos musicais
de um compositor de uma inteira Capela ou mesmo de uma orquestra
como viria a acontecer em outros coleacutegios na Europa19
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares bispo
de Coimbra natildeo soacute teraacute colaborado com o primeiro autor de teatro jesuiacutetico
em Portugal na sua primeira trageacutedia representada em Coimbra em 1559
como teraacute dirigido e cantado em cena os Coros daquela representaccedilatildeo no
paacutetio do Coleacutegio diante tio reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade
Tanto no aspecto literaacuterio como no aspecto musical a trageacutedia
causou sensaccedilatildeo de tal modo que muitos dos que a eia assistiram foram
19 No seacuteculo XVII em pleno barroco os professores do Coleacutegio Romano escolhidos
entre os melhores humanistas e poetas da Companhia de Jesus compunham dramas claacutessicos de
inspiraccedilatildeo cristatilde cujos Coros e intermezzi eram compostos pelos melhores compositores de
Roma Vd Ricardo G Villoslada Algunos Documentos sobre la Muacutesica en el Antiguo Seminaacuterio
Romano Archivum Romanum Societatis Iesu 31 (1962) pp 106-138
Este eacute poreacutem ura facto em que os historiadores da Companhia de Jesus tecircm sido mais
omissos Graccedilas talvez ao princiacutepio que levou Inaacutecio de Loyola nas Constituiccedilotildees da Companhia
a proibir a posse de instrumentos de muacutesica bem como a criar toda unia legislaccedilatildeo de algum
modo restritiva em relaccedilatildeo agrave muacutesica e ao canto os Jesuiacutetas nunca tiveram grande reputaccedilatildeo em
mateacuteria de causas artiacutesticas e musicais quando na realidade os jesuiacutetas dos primeiros tempos
levaram a cabo principalmente nos Coleacutegios uma notaacutevel actividade musicai que os musicoacuteiacuteogos
ainda natildeo investigaram A obra mais importante nesta mateacuteria eacute ainda a deThomas D Culley S
I Jesuits and Mttsic a study oftbe musicians connected with the German College in Rome during tbe
XVJIhcentury and of their aetivities in Northern Europe Jesuit Histoacuterica Institute St Louis
University 1970
Satildeo mais conhecidos poreacutem os comeccedilos da actividade musical dos Jesuiacutetas nas missotildees
principalmente da iacutendia e do Brasil Vd Thomas D Culley SI Clement J McNaspy S I
Music and the early Jesuits (1540-1565) Archivum Romanum Societatis Iesu 40 (1971) pp
213-245 maxirne 233-245 bem como Ana Luiacutesa Balmori Padesca Os Jesuiacutetas e a muacutesica na
Expansatildeo Portuguesa Quinhentista (dissertaccedilatildeo de Mestrado) Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra 1997
324
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
depois felicitar o seu autor Tal facto permite realmente pensar que
Miguel Venegas acabava de introduzir na vida escolar e urbana um
momento alto de espectaacuteculo a que a cidade natildeo estava habituada Algo
de novo acontecera Do ponto de vista musical pelo menos os monges
de Santa Cruz mdash natildeo o esqueccedilamos mdash confessavam natildeo haverem vista
nada de semelhante
A versatildeo latina da mesma carta
Optiacuteme more traacutegico canebantur
Aqueles satildeo os dados que se podem colher da carta quadrimestral jaacute
modernamente publicada pelos MONUMENTA HISToacuteRICA SOCIETATIS IESU20
Em visita aos Arquivos da Companhia em Roma pude poreacutem encontrar
recentemente os manuscritos de duas versotildees latinas da mesma carta21 De
um modo geral elas correspondem ipsis verbis agrave versatildeo castelhana mas a
traduccedilatildeo de Pecircro Dias deixou escapar alguns aspectos interessantiacutessimos
para quem busca as origens da muacutesica no teatro jesuiacutetico portuguecircs
laquoAediacuteficatum est in interiori peristylo theatrum quoddam aptissimum
quod ex altera parte gymnasia quaedam attingebat ubi sese actores receperant
ut inde per gradus quosdam in theatrum ascenderem ita tamen ut a nernine
nisi post postcpam in meacutedium prodibant uideri possent Hanc partem uersus
domus quaedam a fratribus structa est cum tribus ianuis pulcherrime deptctis
unde actores in publkum procedebant () multo enim anteaquam in publicum
prodirent sibi commissa recitabant ne impara ti rem aggredirentur Qua ratione
factum est ut oprime suas partes egerint
In finis cuiusque actus a choro qui octo atildeut nouem muacutesicos continebat
quaedam ad ipsam retnpertinentia optime more traacutegico canebantur Ipse concentus
multis praesertim religiosis tantopere placuiacutet ut nonmodo ii qui aderant
uerumetiam Sanctae Crucis monachi quibus foras egredi non licet nuacutemeros
m Vd nota 8 i ARSI Lus 51 ff 53-54 e 55-56
325
_MARGARIDAMBMNDA
rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil
se uidisse melius apertissime affirmabant
Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor
Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca
designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex
omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus
aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus
relictus est
Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro
incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum
etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et
uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim
erat illustrata ()
Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et
omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse
afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret
magnificentius celebrari posse tcstabantur
Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili
gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis
ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22
laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava
com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns
degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de
avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora
construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os
actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico
na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados
Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes
No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava
um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto
agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute
ARSI Lus 51 foi 56
326
M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que
lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham
visto coisa melhor
A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo
reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado
com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo
reservou outro lugar no paacutetio de baixo
A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos
numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer
pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e
de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras
elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()
Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens
eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais
elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a
Coimbra nada mais digno haveria para o receber
Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas
com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto
agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo
N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado
pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam
preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute
agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a
habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o
t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido
s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral
do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia
u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J
literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a
muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da
Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute
nos Coros da trageacutedia
327
_MARCMII)AMIIUNIH
Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham
por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria
acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam
as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo
Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico
esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico
em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia
para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio
Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do
texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como
podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos
ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial
ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos
greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico
novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos
satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-
Os Coros do Manuscrito Musical 70
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao
momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto
manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio
das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem
escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco
como seria de esperar
Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius
natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos
Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca
13 Owen Rees Op cit p 102-103
328
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia
como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos
exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste
todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam
apenas conjecturar
Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia
de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra
cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo
corresponde agrave sua ordem na peccedila
O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente
em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia
de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor
felix dolor o beate
O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem
qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em
todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que
acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os
fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes
que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo
O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava
encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o
24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de
Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM
ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por
publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados
com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha
dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve
anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A
Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o
excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por
Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e
a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-
-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o
texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental
329
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
_MARGARIDAMBMNDA
rythmosque sumiriacontentione postularint Quibus cum essent concessi nihil
se uidisse melius apertissime affirmabant
Spectatorum inumerabilis fere fuacuteit multitudo quibus Pater doctor
Mirou in superiore peristylo quod totum sub selis erat occupatum certa loca
designauit rectori scilicet ac Academiae alium alium uiris religiosis qui ex
omnibus fere coenobiis conuenerunt urbisrectoribus uirisque nobilibus uersus
aliam partem locum constimit in inferiori aut atrio reliquae multitudini locus
relictus est
Piacuitque omnibus magnopere res ipsa idque frequentiacutessimo theatro
incredibili plausu comprobatum est Erant enim actores tum industriis tum
etiam aurea ueste omni apparatu ornatusque uidendi Tragedia uero ipsa et
uerbis amplissimis et grauissimis sententiis quasi quibusdam luminibus passim
erat illustrata ()
Quidam in media Graecia cum et litteratissimoram uirorum copia et
omnis doctrinarum genere maxime elegantius aut ornatius nihil agi potuisse
afferebant Alii nulla re Summi Pontificis aduentum si Conimbricam ueniret
magnificentius celebrari posse tcstabantur
Multi post rem peractam patrem Michaelem Vanegam cum incredibili
gratulatione inuisebat (sic) Omnes denique quantum uoluptatis ac delectationis
ex ea reperceperant clarissimis argumentis indicabantraquo22
laquoConstruiu-se no paacutetio interior um palco que de um lado confinava
com a parede do coleacutegio onde os actores se recolhiam para dali subirem por uns
degraus ateacute ao palco de forma que natildeo fossem vistos por ningueacutem antes de
avanccedilarem para o meio Voltada para este mesmo lado estava uma casa que fora
construiacuteda pelos irmatildeos magnificamente pintada com trecircs portas de onde os
actores avanccedilavam para o puacuteblico () Muito antes de aparecerem em puacuteblico
na verdade recitavam para si as suas partes a fim de natildeo actuarem mal preparados
Por esta razatildeo todos representaram muito bem as suas partes
No fim da cada acto um Coro composto por oito ou nove muacutesicos cantava
um comentaacuterio ao texto em beliacutessimo modo traacutegico Aquela execuccedilatildeo causou tanto
agrado principalmente aos religiosos que natildeo apenas os que assistiram mas ateacute
ARSI Lus 51 foi 56
326
M uacute S I C A PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
os monges de Santa Cruz que natildeo podem sair pediram com insistecircncia que
lhes dessem as muacutesicas E como lhes fossem dadas diziam que nunca tinham
visto coisa melhor
A multidatildeo de espectadores foi numerosa Entre eles o E Doutor Miratildeo
reservou alguns lugares distintos no paacutetio de cima que ficou todo ocupado
com cadeiras para os reitores da cidade para a gente nobre e restante multidatildeo
reservou outro lugar no paacutetio de baixo
A peccedila a todos agradou como se comprovou pelo teatro cheio e pelos
numerosos aplausos Os actores eram na verdade dignos de serem vistos quer
pela sua habilidade quer pela riqueza das vestes e toda a sorte de ornamento e
de aparato de que usavam A trageacutedia era aqui e ali ilustrada por palavras
elevadiacutessimas sentenccedilas profundas e numerosas figuras de estilo ()
Alguns diziam que no meio da Greacutecia onde floresciam tantos homens
eruditos e todo o geacutenero de doutrinas natildeo se podia representar de forma mais
elegante e elaborada Outros afirmavam que se o Sumo Pontiacutefice viesse a
Coimbra nada mais digno haveria para o receber
Muitos depois da representaccedilatildeo vinham felicitar o P Miguel Venegas
com grande satisfaccedilatildeo E todos enfim afirmavam com bons argumentos quanto
agrado e contentamento haviam recebido daquela trageacutediaraquo
N a descriccedilatildeo assinada por Gaspar Aacutelvares eacute evidente o gosto causado
pelo aparato ceacutenico e pelo b o m desempenho dos estudantes que se haviam
preparado mui to t empo antes Poreacutem a visatildeo que temos da representaccedilatildeo eacute
agora mais completa C h a m o u a atenccedilatildeo o estilo elevado do discurso e a
habi l idade retoacuterica dos actores N atilde o podemos esquecer na verdade que o
t ea t ro escolar era u m dos veiacuteculos da pedagogia h u m a n iacute s t i c a d i r ig ido
s imul taneamente agrave competecircncia retoacuterica dos seus actores e agrave elevaccedilatildeo moral
do puacuteblico Mas natildeo haacute duacutevida de que o texto musical adquir iu na trageacutedia
u m a impor tacircnc ia mu i to singular sem deixar para segundo p lano o texto J
literaacuterio Pelo contraacuter io ambos se fundem n u m m e s m o tecido em que a
muacutesica tem por funccedilatildeo realccedilar a palavra more traacutegico Por isso o Reitor da
Universidade podia dizer que em tudo os padres misturavam a devoccedilatildeo Ateacute
nos Coros da trageacutedia
327
_MARCMII)AMIIUNIH
Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham
por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria
acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam
as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo
Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico
esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico
em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia
para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio
Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do
texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como
podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos
ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial
ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos
greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico
novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos
satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-
Os Coros do Manuscrito Musical 70
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao
momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto
manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio
das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem
escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco
como seria de esperar
Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius
natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos
Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca
13 Owen Rees Op cit p 102-103
328
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia
como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos
exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste
todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam
apenas conjecturar
Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia
de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra
cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo
corresponde agrave sua ordem na peccedila
O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente
em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia
de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor
felix dolor o beate
O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem
qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em
todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que
acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os
fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes
que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo
O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava
encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o
24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de
Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM
ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por
publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados
com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha
dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve
anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A
Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o
excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por
Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e
a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-
-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o
texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental
329
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
_MARCMII)AMIIUNIH
Tal como acontecia no teatro antigo os Coros da trageacutedia tinham
por funccedilatildeo cantar quaedam ad rem pertinentia ou seja comentar a proacutepria
acccedilatildeo more traacutegico no final de cada acto E faziam-no em cena onde actuavam
as restantes personagens como referiu o P Luiacutes da Cruz no seu proacutelogo
Independentemente do exacto significado da expressatildeo more traacutegico
esta descriccedilatildeo pressupotildee uma nova concepccedilatildeo de espectaacuteculo dramaacutetico
em que a muacutesica incondicional aliada da palavra parece vir da periferia
para o centro da composiccedilatildeo constituindo um geacutenero proacuteprio
Natildeo estamos pois simplesmente perante a natural secundarizaccedilatildeo do
texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato ceacutenico proacuteprio da eacutepoca como
podiacuteamos pensar pelas recorrentes alusotildees agrave riqueza das vestes e dos
ornamentos Pelo contraacuterio o texto literaacuterio goza de um primado essencial
ao qual a proacutepria muacutesica se submeteu graccedilas agrave vigecircncia dos modelos esteacuteticos
greco-latinos O dramaturgo e o muacutesico criaram portanto um geacutenero artiacutestico
novo a que Pecircro Dias chamara simplesmente Choros mas cujos modelos
satildeo uma vez mais os modelos teatrais humaniacutesticos da Antiguidade greco-
Os Coros do Manuscrito Musical 70
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
Estas consideraccedilotildees poderiam parecer demasiado optimistas ateacute ao
momento em que Owen Rees em 1995 deu notiacutecia da descoberta na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra de um livro de Canto
manuscrito que conteacutem vaacuterios Coros para trageacutedias representadas no Coleacutegio
das Artes de Coimbra entre 1562 e 157023 Sobre o primeiro Coro algueacutem
escreveu as iniciais Df que atribuem portanto os Coros a Dom Francisco
como seria de esperar
Infelizmente todas estas coacutepias transcrevem apenas a parte do Superius
natildeo se conhecendo por enquanto a existecircncia dos restantes trecircs cadernos
Embora em estado fragmentaacuterio as composiccedilotildees do MM ndeg 70 da Biblioteca
13 Owen Rees Op cit p 102-103
328
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Geral da Universidade de Coimbra revestem-se poreacutem da maior importacircncia
como observou aquele musicoacutelogo por constituiacuterem os mais antigos
exemplares de peccedilas daquele geacutenero dramaacutetico O seu maior valor consiste
todavia em vir confirmar aquilo que testemunhos mais antigos permitiam
apenas conjecturar
Nos f 86r a 89v e 91 r encontram-se os Coros III IV e V da Trageacutedia
de Acab de Miguel Venegas representada pela primeira vez em Coimbra
cm 15622J |No entanto a ordem que dispotildees estes Coros no M M natildeo
corresponde agrave sua ordem na peccedila
O Coro III encontra-se entre os pound 87v e 89v dividido internamente
em 4 partes25 Nele se exalta o valor da conversatildeo e a grandeza da misericoacuterdia
de Deus sobre o rei Acab arrependido do seu pecado de idolatria O dolor
felix dolor o beate
O Coro IV encontra-se nos f 86r a 87r tambeacutem completo e sem
qualquer divisatildeo interna nele se cantam os louvores da Verdade firme em
todo o tempo e inabalaacutevel como a rocha Seratildeo castigados aqueles que
acreditaram em falsas profecias pois as estrelas cairatildeo do ceacuteu e abalaratildeo os
fundamentos da proacutepria terra e esvaziar-se-aacute a imensidatildeo dos mares antes
que deixe de se cumprir um decreto imutaacutevel do Rei do Olimpo
O Coro dos Samaritanos ou Coro V ao contraacuterio do que se pensava
encontra-se poreacutem muito incompleto E esse deveria ser o mais longo e o
24 A uacutenica ediccedilatildeo disponiacutevel embora padeccedila de certas limitaccedilotildees continua a ser a de
Nigel Griffin Two jesuit Acirchab Dramas Miguel Venegas TRAGOEDIA CVI NOMEN INDITVM
ACHABVSandAnonymuus TRAGEDIApoundZ4MpoundZS University of Exeter 1976 Estaacute ainda por
publicar a ediccedilatildeo criacutetica que realizei com o auxiacutelio de novos manuscritos todos eles relacionados
com a representaccedilatildeo de Coimbra A ediccedilatildeo e traduccedilatildeo do texto constituiacuteram parte da minha
dissertaccedilatildeo de doutoramento Miguel Venegas e o nascimento da Trageacutedia jesuiacutetica Uma breve
anaacutelise da peccedila pode ler-se tambeacutem em Margarida Miranda Teatro biacuteblico novilatino A
Trageacutedia de Acab de Miguel Venegas Humanitas XLVI (1994) pp 351-371 Ali transcrevo o
excerto da Carta quadrimestral do Coleacutegio das Artes de 1 de Setembro de 1562 escrita por
Francisco Alvarez onde se alude agrave representaccedilatildeo de uma trageacutedia sobre a perseguiccedilatildeo de Elias e
a morte do rei Acab laquocom muchos y diversos instrumentos de musicaraquo O documento conserva-
-se em manuscrito no ARSI Lus 51 f 227v 25 A pauta passa de uma 3a Pars (sic) para uma quinta Pars mas a verdade eacute que o
texto literaacuterio estaacute realmente completo Quer isto dizer que haveria uma quarta Pare instrumental
329
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
_MARCM)AM)[laquoNT)A
mais interessante e variado pois de acordo com os restantes Manuscr i tos da
trageacutedia consiste n u m diaacutelogo de 69 versos entre o C o r o e u m Solista
Trata-se de u m longo h ino fuacutenebre sobre a morte de Aeab e sobre as traacutegicas
consequecircncias que acarreta a mor te de u m rei Nos restantes Manuscr i tos
da trageacutedia os versos do Coro mdash que repete como refratildeo O uulnus graue
publicum I Heu quot pectora uulneras mdash estatildeo dis t r ibuiacutedos entre Vnus ex
Choro e Totus [Chorus] Infelizmente o que o M M 70 con teacutem satildeo apenas os
primeiros 11 versos que pertenceriam precisamente ao solista Aquele trecho
tem todavia a part icularidade de ser o uacutenico fragmento a que natildeo faltam as
restantes vozes e cuja muacutesica conhecemos por tan to na iacutentegra26
N o meio destes Coros no f 90r-v encontra-se u m a composiccedilatildeo ainda
por identificar a que O w e n Rees natildeo se referiu mas de iguais caracteriacutesticas
teacutecnicas Gloria summo lausqueparenti) em que u m solista alterna com
u m coro de trecircs vozes cantando gloacuteria e louvor ao Senhor dos altos Ceacuteus
cujo Filho despedaccedilou as cadeias eternas
Finalmente nos f 91v a 95v encontram-se os cinco Coros da Trageacutedia
de Sedecias que o P Luiacutes da Cruz fez representar em 1570 duran te a visita de
D Sebastiatildeo agrave c idade de C o i m b r a Da Sedecias poreacutem soacute se e n c o n t r a m
realmente completos o Coro II mdash o Coro fuacutenebre pela mor te de Ananias mdash
e o C o r o V t a m b eacute m fuacutenebre em al ternacircncia com Jeremias cujas deixas
t ambeacutem foram transcritas no M M 2 7 Ao Coro I faltam cerca de 29 versos
ao III cerca de 20 e ao IV 37 versos28
N a sua jaacute citada obra O w e n Rees transcreveu e comen tou brevemente
Tambeacutem no teatro latino principalmente em Planto os cantica ou partes cantadas
podiam ser solos ou monoacutedias mas os duetos e os trios natildeo eram raros e podia haver mesmo
quartetos e quintetos 27 O mais antigo Coro fuacutenebre e provavelmente arqueacutetipo de todos os outros Coros
fuacutenebres do teatro jesuiacutetico eacute o Coro final da Satatilde Geiacuteboeus em que os judeus choram a morte
do rei diante do seu cadaacutever Mas a estrutura dialoacutegica do Coro fuacutenebre da Sedecias assemelha-se
mais ao Coro final da Acbabus que tambeacutem se reparte entre o Coro e um solista Eis um dos
muacuteltiplos aspectos que unem a obra dramaacutetica de Luiacutes da Cruz agrave do seu mestre Venegas 2i Uma dissertaccedilatildeo de doutoramento apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa realizou uma moderna ediccedilatildeo criacutetica e traduccedilatildeo do texto da Sedecias do P Luiacutes da
Cruz Manuel Joseacute de Sousa Barbosa Biacuteblia e Tradiccedilatildeo Claacutessica a Trageacutedia Sedecias do P Luiacutes da
Cruz SI Lisboa 1988 2 vols
330
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
uma destas composiccedilotildees o Coro IV da Acbabus (f86r a 87r)2-1 e eacute de opiniatildeo
que o que nelas se encontra eacute produto de uma estreita colaboraccedilatildeo entre o
dramaturgo humanista Miguel Venegas e Dom Francisco entatildeo Mestre
de Capela do Bispo
Na verdade sendo aquelas peccedilas corais uma ocasiatildeo de demonstraccedilatildeo
puacuteblica do virtuosismo retoacuterico dos alunos do Coleacutegio o mestre de Retoacuterica
deveria impor ao muacutesico determinados criteacuterios esteacuteticos ligados agrave sua
proacutepria concepccedilatildeo humaniacutestica de muacutesica Muacutesica tendencialmente
humaniacutestica seria aquela que obedeceria simplesmente ao texto e ao seu
poder expressivo Com efeito acrescenta Owen Rees laquoDom Francisco criou
para o teatro Jesuiacutetico um estilo em tudo de acordo com os princiacutepios
humaniacutesticos sendo ao mesmo tempo uma tentativa consciente de restaurar
certas caracteriacutesticas da muacutesica dos Coros no drama antigo Nem nos deve
surpreender que tal experiecircncia tenha tido lugar em Coimbraraquo continua
o autor laquopois a cidade era mdash depois de Salamanca mdash o maior centro de
educaccedilatildeo claacutessica e humaniacutestica da Peniacutensula Ibeacutericaraquo30
O principal distintivo destes Coros para trageacutedias evidencia-se desde
o primeiro olhar sobre o seu Manuscrito Os Coros encontram-se no meio
de numerosos motetos mdash destinados uns ao Natal outros ao Corpus Christi
outros agrave Semana Santa ou a Santa Maria Madalena S Vicente Santa
Apoloacutenia Santo Agostinho S Teotoacutenio e Santo Antoacutenio os padroeiros de
Coimbra ou simplesmente agrave Virgem Satildeo composiccedilotildees caracteriacutesticas da
eacutepoca em que a mancha de texto musical eacute bastante mais extensa do que a
do texto latino Nos Coros ao modo traacutegico de Dom Francisco pelo contraacuterio
foram eliminados os longos meiismas e as repeticcedilotildees de texto e por isso a
notaccedilatildeo musical desenvolve-se em serena correspondecircncia com o texto verbal
em perfeito paralelismo (ie um valor musical para cada siacutelaba do texto)
sem mais repeticcedilotildees do que as palavras finais agraves quais se quis dar maior
realce
Foram portanto os princiacutepios humaniacutesticos da Retoacuterica que se
impuseram agrave criaccedilatildeo musical fazendo surgir na obra de Dom Francisco um
gt Op at p 107-108 ia Opcitbdquo 106
331
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
- -
--
--
bdquobdquo
V gtJ
-
-
-
-
Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
332
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
333
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
_MAK(iacuteRIDAMIRANDA
estilo de composiccedilatildeo essencialmente diferente do estilo presente na sua
restante produccedilatildeo vocal conhecida ou seja do chamado stile antico em
que predominavam os melismas e as repeticcedilotildees verbais
Por outro lado o uso de pares de colcheias precedidos de uma
semiacutenima formando uma figura dactiacutelica ( - bull ) em composiccedilotildees cuja
unidade de movimento riacutetmico era a miacutenima era extremamente invulgar
neste periacuteodo e conferia agrave linha meloacutedica uma notaacutevel flexibilidade
Da tentativa de restaurar aquilo que os mestres de Retoacuterica do
Humanismo julgavam ser a muacutesica antiga nascia portanto o novo mos tragicus
em que as notas deviam corresponder agraves palavras e potencializar o seu sentido
Do ponto de vista riacutetmico haacute poreacutem um aspecto que importa ainda
salientar A composiccedilatildeo poeacutetica humaniacutestica mdash e tambeacutem a dramaacutetica mdash
obedecia a rigorosos preceitos de meacutetrica A Trageacutedia de Acab estaacute na verdade
composta em diversos metros que os respectivos Manuscritos natildeo deixam de
assinalar exibindo o virtuosismo poeacutetico do seu autor triacutemetros iacircmbicos
para as partes recitadas anapestos saacutefiacutecos asclepiadeus e glicoacutenios para as
partes cantadas ou cantica pois eram naturalmente ritmos mais favoraacuteveis agrave
variedade da expressatildeo musical
O Coro IV da Achabus foi escrito em asclepiadeus Os quatro primeiros
versos satildeo suficientes para ilustrar a composiccedilatildeo meacutetrica do texto e a
compararmos com a elaboraccedilatildeo musical de Dom Francisco
v 2230
Diuinis habeas non habeas fidem
Vaiacuteurn consiliis difficiles Dei
Aures autfaciles uocibus applices
Omni fixa manet tempore ueriiacuteas
r -
r r
bdquobdquo
j w
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bdquobdquo
V gtJ
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Na verdade os segmentos musicais da composiccedilatildeo Coral nada tecircm
que ver com aquela estrutura interna nem sequer com a divisatildeo formal dos
versos A teacutecnica de composiccedilatildeo riacutetmica obedeceu exclusivamente agrave
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MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
acentuaccedilatildeo do texto e ao seu significado e natildeo agrave estrutura meacutetrica A muacutesica
foi realmente composta sem as restriccedilotildees de uma pulsaccedilatildeo regular e quando
o moderno copista lhe impotildee os compassos verifica quanto tem de artificial
aquela divisatildeo
A primeira frase musical por exemplo soacute termina em consiliis ou
seja a seguir ao primeiro coriambo do segundo verso O segundo verso fica
por sua vez repartido entre duas frases musicais pois a segunda parte do
verso constitui uma unidade com o terceiro E assim sucessivamente
Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo humaniacutestica germacircnica onde a disposiccedilatildeo
dos valores riacutetmicos procurou respeitar o proacuteprio acento quantitativo32 em
Portugal e em Itaacutelia as tentativas conhecidas de restaurar o que se pensava
ser a muacutesica do drama antigo parecem resultar antes numa espeacutecie de
declamaccedilatildeo polifoacutenica de acordo com o acento silaacutebico e em funccedilatildeo do
sentido do texto E a explicaccedilatildeo de tal facto deve estar precisamente na
natureza essencialmente retoacuterica deste drama e na intenccedilatildeo de natildeo obscurecer
o texto realccedilando antes toda a sua potencialidade expressiva Tambeacutem por
essa razatildeo pode Owen Rees observar que o cliacutemax da linha meloacutedica do
Coro transcrito coincide justamente com o momento alto do discurso
poeacutetico-retoacuterico ou seja com a enumeraccedilatildeo dos adjectivos que coroam a
exalraccedilatildeo da Verdade Constans pura grauis (v 2235) A linha meloacutedica
reflecte pois o proacuteprio movimento retoacuterico do texto verbal aumentando a
simbiose entre aquelas duas linguagens dramaacuteticas e reforccedilando-as
mutuamente
Atrevo-me por isso a pensar que entre os humanistas sabia-se realmente versejar
respeitando estruturas meacutetricas e quantidades vocaacutelicas ao gosto claacutessico mas isso natildeo quer
dizer que cias fossem sempre sentidas internamente Pelo menos os humanistas natildeo deixavam
que na respectiva execuccedilatildeo musical elas se impusessem agrave compreensatildeo moderna do texto J2 Havia com efeito em Franccedila e sobretudo nos paiacuteses germacircnicos formas de composiccedilatildeo
humaniacutestica tendencialmente sujeitas agrave esttutura quantitativa do verso mais do que ao seu
acento silaacutebico Vd Edward Lowinsky Humanism in the Music of the Renaissance in Bonnie
Blackburn (Ed) Music in the Culture ofthe Renaissance and Other Essays 2 vols Chicago - London
19891 pp 154-218
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MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
MARGARIDA MIRANDA
bullm bull
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
A Trageacutedia de Saul de Simatildeo Vieira em Eacutevora
Los suelen cantar con flautas y vocecircs en las flestas mas principales
eri la iglesia maior
A representaccedilatildeo da Saul Gelboeus em Coimbra em Julho de 1559 foi
imediatamente seguida em Eacutevora da representaccedilatildeo de uma peccedila homoacutenima
da autoria de Simatildeo Vieira a assinalar a inauguraccedilatildeo da Universidade O
texto natildeo se conservou Ecirc de novo uma carta que nos daacute um excelente resumo
da acccedilatildeo e uma longa descriccedilatildeo da representaccedilatildeo do aparato e ostentaccedilatildeo
dos paccedilos reais e das proacuteprias vestes e joacuteias com que se caracterizaram as
personagens33
Algo na carta nos faz no entanto evocar de novo as palavras do P Luiacutes
da Cruz no proacutelogo supra citado laquoNa verdade por que havia o coro de ser
representado atraacutes do pano para que se ouvisse mal () Fizemos desfilar os
que cantam com vestes apatatosasraquo
Com efeito ao narrar a representaccedilatildeo da trageacutedia e os preparativos
das personagens Baltasar Barreira o professor de segunda classe em Eacutevora
diz que tambeacutem os Coros foram vestidos Por isso o autor da carta vai ateacute ao
pormenor de informar que os quatro primeiros Coros saiacuteram ricamente
caracterizados laquotodos con uestidos de colores diuersos con sus trunfas en
la cabeccedila aigunas de seda y otras de brocado con tocas ai deredor puestas
a la moriscaraquo O quinto acto agrave imitaccedilatildeo dos actos finais das trageacutedias de
Venegas terminou com um Coro fuacutenebre Por isso saiacuteram todos vestidos de
luto
laquocon sus ropones de terciopello negro con vnos uellos prietos puestos
sobre las trumfas con quatro soldados que Ueuauan vna tumba y todos con
sus panisuelos llorando () Y a la postre tocaron las flautas y los otros
instrumentos con los quales se despedioacute la genteraquo34
33 Litt Quad 6 pp 390-401 Carta de Baltasar Barreira de Eacutevora 27 de Novembro
de 1559 1 Ibidem p 399
334
Sem mais conhecimento do que foi em concreto a muacutesica dos Coros
de Simatildeo Vieira as associaccedilotildees que estabelecermos entre aquelas composiccedilotildees
e as de Dom Francisco mdash entre os Coros de Julho em Coimbra e os de
Novembro em Eacutevora mdash seratildeo sempre incertas e precipitadas Natildeo faltariam
poreacutem em Eacutevora muacutesicos e cantores agrave altura das aspiraccedilotildees do humanista
Simatildeo Vieira pois como se sabe ao abrigo da Seacute crescia uma das maiores
escolas musicais do paiacutes mantida pelo Cardeal Infante D Henrique35 o
mesmo que elevava o coleacutegio de Eacutevora agrave categoria de Universidade Por
outro lado ao longo do resumo da peccedila oferecido pela carta parece manter-
-se o mesmo princiacutepio de obediecircncia aos modelos esteacuteticos do teatro antigo
com o Coro intervindo na acccedilatildeo e comentando-a
Todavia o dado mais curioso acerca destes Coros natildeo nos eacute dado
nesta carta mas na carta de 31 de Dezembro do mesmo ano mdash carta que os
JviacuteONUMENTA HlSTORICA transcrevem parcialmente omitindo precisamente
as informaccedilotildees sobre a representaccedilatildeo afinal jaacute longamente descrita na carta
anterior36 O texto original que se encontra mais uma vez no ARSJ
acrescenta afinal uma interessante informaccedilatildeo segundo a qual muitos
religiosos e pessoas nobres pediram coacutepias da trageacutedia e volvidos dois meses
ainda era costume cantar na igreja maior aqueles coros acompanhados de
instrumentos durante as festas principais
laquoComenccedilose pues a representar la tragedia y venian los que la
representavan mui ricamente vestidos conforme cada uno a lo que
representava Tenia cinco actos ai fin de cada qual salian ocho vocecircs mui
buenas con sus trunfas en la cabeccedila y ricos vestidos que cantavan los choros
delia Movieron tanto a devocion especialmente en el fin de quinto acto
en que trayan el cuerpo de Saul que en algunos Uego hasta las lagrimas ()
Y aun hoy dia no habiacutean sino en la tragedia y los choros delia Por lo
i3 Vd Joseacute Augusto Alegria O Coleacutegio dos Moccedilos do Coro da Seacute de Eacutevora Lisboa
Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1997 ou ainda Histoacuteria da Escola de Muacutesica da Seacute de Eacutevora
Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1973 56 Litt Quad 6 pp 423-428 Carta de Braz Gomes de Eacutevora 31 de Dezembro de
1559
335
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
JVLARGAMDAMIKANDA
mucho contentamiento los suelen cantar con flautas y vocecircs en las fiestas
mas principales en la iglesia maiorraquo37
Por essa razatildeo muitos vinham ao Coleacutegio pedir coacutepias da obra e os
alunos da Universidade foram imediatamente avisados de que na Paacutescoa
seguinte se esperava uma nova representaccedilatildeo como veio a acontecer
Quaisquer que tenham sido as composiccedilotildees corais para a trageacutedia do
mestre de Eacutevora ou para as do mestre Venegas em Coimbra foi tamanha a
aceitaccedilatildeo e a novidade causada em quem as acolheu que muitos se interessavam
em possuir coacutepias da obra e o certo eacute que os Coros ganharam a autonomia
de um geacutenero novo passando a ser executados na igreja durante as principais
festas religiosas jaacute que moviam facilmente agrave devoccedilatildeo
O mesmo teraacute acontecido com os Coros da Trageacutedia de Acab de
Miguel Venegas e por essa razatildeo eacute que os encontramos no MM 70 da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra juntamente com os Coros de
uma peccedila representada apenas oito anos depois (a Sedecias do P Luiacutes da
Cruz) bem como uma grande variedade de motetos para as vaacuterias festas
lituacutergicas
Devo ainda acrescentar que foram precisamente as peccedilas de Miguel
Venegas as primeiras trageacutedias conhecida representadas pelos jesuiacutetas em
Roma em 1565 e 1566 no Coleacutegio Germacircnico natildeo se conhecendo o
autor do drama anterior que acompanhara a primeira distribuiccedilatildeo de preacutemios
literaacuterios no Coleacutegio Romano em 15643S Ora aquela trageacutedia seria depois
um arqueacutetipo de todo um geacutenero de trageacutedias compostas tambeacutem pelos
jesuiacutetas italianos entre os quais Stefano Tuccio e Bernardino Stefonio
Demonstrada a intensidade com que os primeiros jesuiacutetas trocavam
entre si correspondecircncia a ponto de estabelecerem entre os coleacutegios uma
estreita rede de de comunicaccedilatildeo e tendo em conta a quantidade de
manuscritos dos dramas de Venegas copiados em toda a Europa e tambeacutem
em Itaacutelia eacute bastanta provaacutevel que tambeacutem a muacutesica dos Coros de Dom
37 Lus 51 f 84 38 A Trageacutedia de Acab foi representada em 1565 e a Saulem 1566 no Coleacutegio Germacircnico
como tive a oportunidade de demonstrar em Margarida Miranda Miguel Venegas e o nascimento
da Trageacutedia Jesuiacutetica
336
MuacuteSICA PARA O TEATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
Francisco se tenha feito ouvir nos Coleacutegios que a Companhia queria por
modelos e que natildeo sejam tatildeo fortuitas as semelhanccedilas entre os Coros de
Coimbra e outras composiccedilotildees evocadas por Owen Rees
A verdade eacute que como o mesmo musicoacutelogo acrescenta se grande
parte das composiccedilotildees sacras de Dom Pedro de Cristo sucessor de Dom
Francisco de Santa Maria entre os Coacutenegos Regrantes de Santa Cruz se
viria a afastar tambeacutem do stile antico e se as suas linhas riacutetmicas e meloacutedicas
viriam a optar tambeacutem por um notaacutevel respeito pelo acento silaacutebico do
texto e pelo respectivo sentido eacute de pressupor que D Pedro de Cristo tenha
vindo beber aos ideais esteacuteticos postulados por Dom Francisco a quem se
pode com alguma certeza chamar seu mestre9
De qualquer modo eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem que as proacuteprias
instruccedilotildees tridentinas para a muacutesica do culto fariam da transmissatildeo do texto
sagrado um factor determinante para toda a escrita musical ou seja a
abordagem da muacutesica lituacutergica poacutes-tridentina viria a assimilar tambeacutem esta
nova forma de compor tendo em conta a clareza textual e ateacute o reforccedilo do
conteuacutedo semacircntico do texto
Em 1559 jaacute existia em Portugal um geacutenero musical novo resultado
de uma visatildeo humaniacutestica do teatro e fruto da colaboraccedilatildeo entre muacutesicos e
dramaturgos E mesmo possiacutevel fazer recuar esta data para o iniacutecio da deacutecada
(1550) se recordarmos a notiacutecia dos Coros cantados nos Claustros de Santa
Cruz durante a representaccedilatildeo da Trageacutedia de David de Diogo de Teive
entatildeo professor do Coleacutegio das Artes Dizem as croacutenicas que laquoa tragedia ()
se acabou com hua musica mui suaue cantando a coros aquella letra do
triunfo de Dauid que teue do gigante Saul percussit mille amp Dauid decem
milita etcraquow
bull Op eh p 118
D Nicolau de Santa Maria Chronica da Ordem dos Coacutenegos Regrantes Lisboa 1668
parte II p 318 Outro testemunho [Lembranccedila das cousas que socederam despois da reformaccedilatildeo do
mostr hoje Ms 175 da Biblioteca Municipal do Porto foi 395v) diz que os coros das moccedilas
337
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
_MARCiacuteRIDAMIIlaquoNI)A
Infelizmente natildeo se conhece nem a muacutesica nem o texto daquela obra
embora saibamos que ela foi muito provavelmente do conhecimento do
dramaturgo Miguel Venegas como aconteceu com a loannes Princeps do
mesmo Diogo de Teive41 Se assim for os Coros traacutegicos de Miguel Venegas
e de Dom Francisco de Santa Maria estreados em Coimbra em 1559 e em
1562 tecircm aiacute um importante precedente
D Francisco Castelhano Mestre de Capela de D Joatildeo Soares o bispo
de Coimbra benfeitor do Coleacutegio natildeo soacute colaborou com os maiores
dramaturgos jesuiacutetas de Portugal (Miguel Venegas e Luiacutes da Cruz) na
composiccedilatildeo inovadora dos seus Coros para trageacutedias como teraacute dirigido e
ateacute cantado em cena os Coros da primeira trageacutedia jesuiacutetica do Coleacutegio das
Artes em 1559 diante do reitor e professores da Universidade magistrados
religiosos e populares da cidade O mesmo natildeo se poderaacute dizer da Trageacutedia
de Acab representada em 1562 Se Dom Francisco compocircs os Coros
transcritos no M M 70 da BGUC jaacute natildeo podemos afirmar que tenha
assistido agrave sua representaccedilatildeo pois em Marccedilo desse ano aceitara submeter-se
agrave clausura dos Coacutenegos Regrantes os quais como diziam as cartas de 1559
natildeo podiam sair Mesmo assim natildeo era impossiacutevel admitir a sua participaccedilatildeo
naquele acontecimento social para o qual afinal jaacute contribuiacutera
Agravequele geacutenero de composiccedilatildeo dramatico-musical que surpreendeu
os proacuteprios muacutesicos de Santa Cruz podemos chamar simplesmente mos
tragicus pois inspirava-se naquilo que se pensava ser o papel da muacutesica na
trageacutedia greco-latina Contudo em vez de atender ao acento quantitativo
do texto poeacutetico o mos tragicus atendia principalmente aos preceitos da
Retoacuterica ou seja a uma prioritaacuteria clareza da declamaccedilatildeo do texto a um
realccedilar das suas virtualidades estiliacutesticas e portanto ao acento de intensidade
Incondicionalmente aliada da palavra a muacutesica devia agora reflectir
o proacuteprio movimento retoacuterico do texto o qual tinha por sua vez a funccedilatildeo de
comentar a acccedilatildeo traacutegica constituindo o momento alto da representaccedilatildeo
que diziam Saul percussit milie Rex autem Dauid decem milita laquoforam muito espantosamente
cantadosraquo 41 A loannes Princeps foi modernamente editada e traduzida por Nair Castro Soares
Diogo de Teive Trageacutedia do Priacutencipe Joatildeo Coimbra 1977 reeditada em 1999
338
MuacuteSICA PARA OTFATRO HUMANiacuteSTICO EM PORTUGAL
As principais caracteriacutesticas desta retoacuterica musical seriam pois uma
estruturaccedilatildeo riacutetmica e meloacutedica em funccedilatildeo quer do acento silaacutebico quer do
sentido do texto e das proacuteprias figuras de estilo o uso frequente das figuras
dactiacutelicas (semiacutenima-colcheia-colcheia) para preservar a flexibilidade do texto
poeacutetico e a reserva das repeticcedilotildees textuais para os momentos de maior
expressividade poeacutetica de modo particular para o final
A especificidade destas composiccedilotildees corais encontrou grande aceitaccedilatildeo
por parte do puacuteblico Como se inspiravam numa temaacutetica biacuteblica e
devocional alguns Coros alcanccedilaram mesmo autonomia suficiente para serem
cantados isoladamente nas igrejas durante as principais festas lituacutergicas
como um geacutenero proacuteprio em que se fundia o elemento verbal e o elemento
musical Assim aconteceu peio menos com os Coros da Saul At Simatildeo Vieira
em Eacutevora e com os Coros da Achabus de Miguel Venegas em Coimbra
Satildeo portanto muitos os motivos que unem a histoacuteria do teatro jesuiacutetico
agrave histoacuteria do melodrama No teatro jesuiacutetico a teatralizaccedilatildeo da palavra
realizou-se ao niacutevel da pronuntiatio bem como da actio Esse fenoacutemeno fez
com que o teatro jesuiacutetico viesse a dar um cada vez mais amplo lugar ao
canto e agrave proacutepria danccedila agrave danccedila como suprema expressatildeo da actio e ao canto
como o mais alto grau de elaboraccedilatildeo da pronuntiatio Por isso encontraremos
tambeacutem Coros bailados mdash de acordo com os modelos da Antiguidade mdash
como o Coro da trageacutedia Crispus do jesuiacuteta italiano Bernardino Stefonio42
Podemos portanto aceitar a tese de Emilio Sala segundo o qual se o
actor do seacuteculo XVII pode ser considerado um orador hiperboacutelico tambeacutem
o cantor por sua vez pode ser considerado um hiperboacutelico actor3
A muacutesica teatral jesuiacutetica natildeo nasceu da mera necessidade ornamental
nem da secundarizaccedilatildeo do texto literaacuterio imposta pelo gosto do aparato
ceacutenico proacuteprio da eacutepoca A evoluccedilatildeo literaacuteria e esteacutetica eacute que fez realmente
inverter a simetria de linguagens inicialmente pretendida pelo teatro
t2 Existe ediccedilatildeo moderna desta trageacutedia realizada por Luacutecia Strappini com introduccedilatildeo
de Luigi Trenti Bernardino Stefonio Crispus Tragoedia Roma Bulzoni Editore 1998
bull La Musica nei drammi Gesuitici il caso deli Apotheosis siue Consecratio Sanctonim
Ignatii et FrancisciXaiiacuteerii (1622) in E Doglio (ed) Gesuiti e i Primordi dei Teatro Barocco in
Europa Roma Torre dOrfeo Edicrice 1994 p 391
339
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m
JViacuteWGTOA MIRANDA
humaniacutestico portuguecircs A teatralizaccedilatildeo da palavra tendia naturalmente para
a sobreposiccedilatildeo do canto agrave mera declamaccedilatildeo musical No iniacutecio poreacutem
vimos o muacutesico colaborar obedientemente com o dramaturgo abandonando
os traccedilos mais especiacuteficos do stile antico e e submetendo-se criativamente
aos postulados da Retoacuterica claacutessica
Era essa a muacutesica cuja presenccedila o P Luiacutes da Cruz disciacutepulo de Miguel
Venegas dizia ser obrigatoacuteria em teatro como o seu sine musica theatrum
non delectat Eram esses os Coros que segundo o mesmo autor os
dramaturgos jesuiacutetas portugueses consideravam indispensaacuteveis
HUMAWASVOLLV I MMIII
GEORGE KANARAKIS
Charles Sturt University (Austraacutelia)
HOMERO PRESENCE IN AUSTRALIAN LlTERATURE
Austraacutelia (Terra Australis) situated in the southern oceans is the
only country on the planet wich is also a continent However being an aacuterea
of about 77 million square kilometres (about 58 times larger than Greece)
is a comparatiacutevely very thinly populated land with the majority of its
population concentrated mainly in coastal urban centres of this continent
Austraacutelia historically is a self-governing young nation having
achieved federation of its States (previously British colonies) as recently as
1901 yet its 198 million residents comprise the most multicultural and
multilingual society in the world after Israel being of over 200 different
ancestries and speaking more than 214 languages including at least 55 4
Australian indigenous languages
However despite its relative youth its geographic location and its
small population it has developed a dynamic and internationally respected
1 Ian McAllister ex a Australian PoliticaiFacts Melboume Longman Cheshire 1990 p 1 2 According to the Australian Bureau of Statistics (Population Clock Canfaerra [http
wwwabsgovau1) the estimated resident population of Austraacutelia on 4 March 2003 was 19813513 3 Australian Bureau of Statistics 201502001 Census Reveals Australians Cultural Diversity
Canberra 1762002 [httpwwwabsgovau]
Australian Bureau of Statistics 1996 Census Dictionary Section One 1996 Census Classi-
fications (Language Spoken at Homemdash LANP) Canberra 371996 (updated 932001) [http
wwwabsgovaul and Australian Bureau of Statistics Year Book Austraacutelia 2003 Population Lanshy
guages [Canberra] 2412003 [httpwwwabsgovaul
340 ^m