13
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS LITERATURA BRASILEIRA IV TRABALHO FINAL LITERATURA BRASILEIRA IV Ministrante docente-pesquisador Prof. Dr. João Adolfo Hansen Discente Artur Daniel Ramos Modolo #USP 5928866 São Paulo

Humor Machadiano

Embed Size (px)

DESCRIPTION

notas sobre o humor machadiano

Citation preview

Page 1: Humor Machadiano

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

LITERATURA BRASILEIRA IV

TRABALHO FINAL LITERATURA BRASILEIRA

IV 

  

Ministrante docente-pesquisador 

Prof. Dr. João Adolfo Hansen

Discente

Artur Daniel Ramos Modolo #USP 5928866

São Paulo

Page 2: Humor Machadiano

Novembro – 2010

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

LITERATURA BRASILEIRA IV

O HUMOR MACHADIANO

 

  

Artur Daniel Ramos Modolo

Page 3: Humor Machadiano

São Paulo

Novembro – 2010

O Humor Machadiano

“Escribir con la pluma de la risa y la tinta

de la melancolía”.

(Carlos Fuentes)

ARTUR DANIEL RAMOS MODOLO

As narrativas longas ou breves (romances e contos) de Machado

de Assis apresentam em diversos momentos elementos de humor. A

produção do risível em Machado, vale ressaltar, tem como grande

característica a ironia – o que por si só já a diferencia da maior parte

das produções, literárias ou não, que ambicionam o riso. Além do

aspecto sumariamente irônico de sua produção, Machado também se

distingue por conta de que o riso não é mais uma finalidade e sim

uma ferramenta para reflexão. A ironia, de uma forma geral, tem

essa característica: induz o leitor a pensar sobre os temas abordados

e também o obriga a raciocinar para o que está além do mero e

simples enunciado que tem como último fim a comunicação. A

postura irônica que é diversas vezes adotada por Machado, não tem

como intuito fazer rir, pelo contrário, o humor machadiano produz

um riso venenoso. Portanto, pode-se afirmar que não se trata de um

humor positivo (o riso não é uma saída) e sim negativo, pessimista e

destrutivo. “As narrativas maduras de Machado de Assis são, de fato,

cruéis, pois desvendam aos homens aquilo que, estando neles

próprios são, de fato, cruéis, pois desvendam aos homens aquilo que,

estando neles próprios, não lhes é agradável conhecer”1.

Desde Aristóteles o cômico está relacionado ao rebaixado, ao

mundano e aos personagens de baixo caráter. Na obra A Cultura

Popular na Idade Média e no Renascimento (O Contexto de

François Rabelais) de Mikhail Bakhtin, há uma busca do filósofo

russo em encontrar na história da literatura as obras que compõem a

1 (TEIXEIRA, 1987, p. 59 apud FREITAS p.65)

Page 4: Humor Machadiano

tradição cômica das artes literárias. Além de, por motivos óbvios,

destacar o papel de Rabelais dentro dessa tradição literária, o

pensador russo cita os autores Erasmo, Cervantes, Shakespeare, etc

como exemplos. Bakhtin opõe a literatura “séria” à literatura cômica.

Traça também uma ligação entre as tradições carnavalescas com esse

título de literatura, pois tanto o carnaval quanto esse gênero literário

têm como caráter rebaixar, trazer para baixo o que é elevado. A

paródia sacra é uma das demonstrações que mesmo a temática

religiosa que supostamente seria um tema sério, também acaba sendo

ridicularizado. “Possuímos uma quantidade considerável de

manuscritos nos quais toda a ideologia oficial da igreja, todos os

seus rito são descritos do ponto de vista cômico. O riso atinge as

camadas mais altas do pensamento e do culto religioso”2.

De fato, pode-se afirmar que a literatura de Machado de Assis

não é exatamente uma comédia do ponto de vista conceitual. No

entanto, os recursos de ironia, paródia e sátira estão persistentemente

presentes em sua obra. É necessário enfatizar, mais uma vez, que não

se trata de um riso regenerador, pelo contrário, ao rebaixar atitudes,

personagens e instituições, Machado as reduz a pó. Tomemos o caso

de Simão Bacamarte como exemplo, trata-se de um profissional

respeitável, “perfeito equilíbrio mental e moral”. Em diversos

momentos podemos observar o Dr. Simão Bacamarte envaidecido

por suas nobres características, “(...) pareceu-lhe que possuía a

sagacidade, a paciência, a perseverança , a tolerância, a veracidade ,

o vigor moral, a lealdade3”. Na medida em que Machado desconstrói

o personagem, fazendo com que ele próprio acabe se internando, por

extensão também ataca sua pretensão e as suas supostas virtudes.

Acima de tudo expõe ao riso o cientificismo positivista que

ironicamente acaba sendo insano. “O motivo da loucura, por

exemplo, é característico de qualquer grotesco, uma vez que permite

observar o mundo com um olhar diferente, não perturbado pelo

ponto de vista “normal”, ou seja, pelas ideias e juízos comuns. Mas,

no grotesco popular, a loucura é uma alegre paródia do espírito

oficial, da gravidade unilateral, da verdade oficial. É uma loucura

2 (BAKHTIN, 2010, p.12).

3 (ASSIS, 1998, p. 48)

Page 5: Humor Machadiano

festiva. No grotesco romântico, porém, a loucura adquire os tons

sombrios e trágicos do isolamento do indivíduo” 4.

Na medida em que Machado explicita o lado louco do tecnicismo

científicista, pode-se fazer uma ligação entre sua literatura e as

paródias que zombavam até mesmo do sacro. Deve-se registrar, no

entanto, como adverte Bakhtin, que era relativamente bem aceito o

profano nos períodos carnavalescos (algo que foi alterado com o

tempo), a “unidade da miséria” em Machado tem objetivo um tanto

diverso da literatura paródica da Idade Média, pois não se trata de

um riso zombeteiro, positivo e carnavelesco, pelo contrário, trata-se

de um riso negativo e melancólico.

A obra Machado de la Mancha de Carlos Fuentes aponta para

essa tradição literária do humor e da ficção que aceita ser ficção,

“borrando as fronteiras entre o real e o ficcional”, essa é a tradição

de La Mancha que se opõe aos anseios realistas. A outra “escola”

está fincada na experiência de personagens que são “reais”

provenientes da tradição de Waterloo. Sabe-se, no entanto, que a

literatura realista jamais conseguirá traduzir em palavras e em

enunciados a realidade tal qual ela é, ainda que busquem

exaustivamente ao menos atingir um efeito de realidade através de

sequências descritivas em que buscam criar um narrador imparcial.

Um dos questionamentos que se pode fazer após analisarmos estas

duas tradições literárias é: para exprimir uma dada realidade, mais

vale tentar enxergá-la através de uma lente supostamente capaz de

traduzir toda realidade tal qual ela é, ou, por saber que é impossível

retratá-la de uma forma total e imparcial, romper com a ficção de

realidade na literatura?

Machado certamente opta pela tradição de La Mancha. Ainda

assim, deve-se ressaltar que o autor pode ser considerado como o

que melhor retratou o espírito da época. Para retratar uma realidade

absurda artisticamente frequentemente se usa o grotesco de natureza

esperpêntica. Dom Casmurro, por exemplo, percebe-se que não se

trata de um narrador confiável, seu ponto de vista está borrado e

corrompido pelas manchas do ciúme e da inveja, no entanto, o modo

de narrar de Bentinho é extremamente condizente com o caráter de

4 (BAKHTIN, 2010, p.35)

Page 6: Humor Machadiano

um homem que sempre esteve sob as asas da mãe e sofre com a

angústia de uma suposta traição e com o remorso de possivelmente

estar enganado. Caso houvesse uma literatura que buscasse ser

imparcial, objetiva, “real” Dom Casmurro certamente não seria a

obra que é. “O romancista parece sorrir atrás das lentes de míope,

mas sorri filosoficamente, deixando reticências no ar, como a

sugerir-nos que tocamos ali o mistério maior, sem encontrar as

palavras adequadas para exprimi-lo senão recorrendo ao humor” 5

Machado é habilidoso na construção de ironias. Dr. Simão

Bacamarte, por exemplo, possui um idealismo quixotesco e trágico.

Em seu casamento busca alguém que reúna condições propícias e

adequadas para um bom par – de acordo com os preceitos científicos

– já que está fisiologicamente apta para ser uma “boa esposa” por ter

boa vista, digestão, pulsação e sono. Trata-se de uma paródia dos

discursos científicos da época. Os próprios comentários são risíveis:

“a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco

de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo”6. Verificamos

no excerto supracitado a contradição dos preceitos supostamente

científicos em voga. Mesmo os adjetivos “ilustre” e “bela” deixam

transparecer uma fina ironia que está nas entrelinhas de boa parte da

obra machadiana, pois a bela carne de porco é incapaz de curar a

esterilidade da ilustre D. Evarista. Dessa forma o ridículo não está na

somente na ciência positivista, há o ridículo social dos que

depositam tamanho credo no fenótipo saudável da esposa de Simão.

Em Brás Cubas a temática das mulheres e do casamento também

está curiosamente presente. A beleza de Virgília é descrita de uma

forma que ressalta que esses atributos são favoráveis a procriação:

“Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço,

precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os

fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara,

faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita

preguiça e alguma devoção – devoção, ou talvez medo; creio que

medo” 7. As características físicas dialogam ironicamente tanto com

5 (MOISÉS, p.52).

6 (ASSIS 1998, p.9)

7 (ASSIS, 2008, p.101)

Page 7: Humor Machadiano

as características da mulher que está apta para “os fins secretos da

criação” como com a imagem da heroírna romântica clássica já que

“era clara, muito clara”. Por fim ainda há uma zombaria em relação à

suposta devoção de Virgília, que, na verdade, trata-se de mais medo

que devoção.

Logo em seguida, após estar com Eugênia, Brás Cubas começa a

se indagar com questões que só poderiam ser feitas por alguém com

uma mentalidade como a sua: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão

lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse

contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por

que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu

vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a

solução do enigma” 8. O narrador ainda atribui a Eugênia um epíteto

curioso em seguida “Vênus Manca”. Além de ser claro o humor irônico

nessas passagens, verificamos que ele é empregado para transparecer o

papel da mulher nessa sociedade. A mulher deve seguir os padrões e

normas fisiológicos e estéticos. No caso de D. Evarista, ela sequer segue os

padrões mentais estabelecidos pelo Dr. Simão, fato que a leva ser levado

até a Casa Verde. A obsessão do alienista em relação à ciência psíquica

está expressa desde o momento que não consegue ter filhos: “Mas a

ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso

médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina.

Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a

atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral” 9.

Da mesma forma que Dr. Simão falha com D. Evarista, Brás

Cubas fracassa com Marcela – que o amou por quinze meses e onze

contos de réis – com Virgília que opta por se casar com Lobo Neves,

Eugênia e até com Nhá-Loló que acaba falecendo da mesma forma

que seu filho acaba falecendo. Carlos Fuentes aponta que esse é

justamente o final. Por fim, torna-se um velho “solteirão”, sem filhos

em um fim risível e, acima de tudo, melancólico. É interessante

ressaltar que da mesma forma que Dr. Simão e Brás Cubas, Bentinho

também não tem sucesso em sua relação com Capitu, inclusive

colocando em duvida se realmente é pai ou não. Esses três

personagens, dessa forma, podem compartilhar desse triplo fracasso:

8 (ASSIS, 2008, p.109)

9 (ASSIS,1988, p.10)

Page 8: Humor Machadiano

uma vida melancólica, sem filhos e sem êxito no amor. A tinta da

melancolia machadiana, de uma forma ou de outra, sempre tinge o

riso de amarelo em suas obras. “O texto machadiano, na atualidade,

está valorizado na medida em que ele está fundado no pessimismo e

no humor. Machado percebia, com clareza, o lado trágico das

relações humanas” 10.

A ambivalência do riso melancólico, irônico e iconoclasta está

presente em muitos outros momentos das obras de Machado: nos

superlativos de José Dias, na teoria do emplasto de Brás Cubas, nos

castigos que Prudêncio desfere ao seu escravo, na filosofia

humanitista de Quincas Borba, etc. É risível, mas também é trágico.

Buscar todos os momentos em que essa característica está expressa

nas obras de Machado seria um trabalho realmente exaustivo, há

diversas passagens de suas obras em que a palavra está direcionada

de uma forma que revela uma dupla face dos personagens, das

instituições, do mundo e, por fim, do mesquinho espírito humano. Os

habitantes de Itaguaí, por exemplo, representam muitas vezes tipos

sociais que são satirizados, personagens que representam um lugar

na sociedade e que são considerados loucos de forma absurda muitas

vezes. O caso de Prudêncio é um desses absurdos que é denunciado

dentro da estrutura de poder e domínio da sociedade. Em outros

momentos, como no caso do alienista, de Eugênia, entre outros, o

que está sendo tratado é a própria padronização que um modelo

estético ou científico propõe, o que Machado faz é mostrar o lado

absurdo do que é postulado. Como estamos tentando demonstrar,

quase nada pode escapar ao humor ácido e destrutivo da pena

machadiana, uma literatura que até hoje é extremamente viva, pois

muitos dos males então expostos ao riso por Machado, ainda ecoam

forte e sem cura na presente sociedade .

Referências Bibliográficas

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O Alienista. São Paulo: Ática,

1998.

10 (FREITAS, 2001, p.54)

Page 9: Humor Machadiano

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Nobel, 2009.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São

Paulo: Globo, 2008

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Ediouro, 1998.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no

Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:

Huicitec, 2010.

BARTHES, Roland. Literatura e Semiologia. Petrópolis: Vozes,

1972.

FREITAS, L. A. P. Freud e Machado de Assis. Rio de Janeiro:

Mauad, 2001.

FUENTES, Carlos. Machado de La Mancha. México: Fondo de

Cultura Económica, 2001.

SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos. São Paulo:

Perspectiva, 1978.