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7 I. A paisagem entre natureza, campo e cidade

I. A paisagem entre natureza, campo e cidadefilarqpais.fl.ul.pt/index_ficheiros/Cap_I.pdf · 77 J. M.ª SÁNCHEZ DE MUNIAÍN Ao trazer à presente Antologia a Estética da Paisagem

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I.  A paisagem entrenatureza, campo e cidade

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GEOrG SIMMEL

“Filosofia da Paisagem”, de Georg Simmel (1858-1918), é o primeiro texto filosófico inteiramente dedicado à paisagem como categoria do pensamento humano, permanecendo graças a este estatuto inaugural a referência obriga-tória para toda a reflexão posterior. Ao trazer a paisagem à filosofia, Simmel autonomiza a compreensão da paisagem de outras abordagens já historica-mente consolidadas: seja do eixo natureza/arte tematizado a propósito da pintura de paisagem e da arte dos jardins, seja da classificação objectiva da geografia, ao definir tipologias dos espaços naturais concretos.Três questões atravessam esta descrição genética, que incide sobre a essên-

cia do fenómeno da paisagem e procura a sua raiz na dinâmica da subjecti-vidade humana. Em primeiro  lugar, a complexa articulação entre natureza e paisagem. Se, por um lado, uma “porção de natureza” contradiz a Natu-reza como totalidade espacial indivisa e fluxo temporal contínuo, mantém ao mesmo tempo com ela uma indissolúvel relação de pertença: uma paisagem não é a natureza, mas é, pela naturalidade do seu conteúdo e pela vitalidade que a anima, ainda e sempre natural.

Segue-se a pergunta, conduzida num plano regressivo, pelo nascimento desta categoria mental. As épocas antiga e medieval, porque pensavam e cele-bravam a totalidade natural, desconheciam a noção de paisagem; o homem moderno, pelo contrário, vê já a natureza seccionada em partes e nesse mesmo acto de separação subtrai-se a si mesmo dela como um ser dotado de auto-nomia. Esta dupla cisão – que representa, para Simmel, a tragédia da cultura moderna, ou seja, a tendência para tomar como parte independente aquilo que é de facto elemento integrante de um todo – subjaz à emergência histórica da paisagem na Modernidade e envolve, em última instância, uma compensa-ção anímica pela qual se procura restabelecer num mundo dividido o vínculo à natureza perdida. Seria esta a “lei” da formação da paisagem: um processo que na base de elementos previamente  separados  recompõe momentanea-mente o carácter unitário e homogéneo de um todo.O passo final  e não menos decisivo do ensaio mostra  como são  coinci-

dentes o acto de ver “uma paisagem” e o acto que  institui o campo visual como  “esta  paisagem”. Coincidência  essa  que  só  pode  acontecer  na  expe-

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FrÉDÉrIC PAULHAn

Frédéric Paulhan (18�6-19�1) estudou no Liceu de nîmes, mas apesar de aluno brilhante optou por não  seguir um curso  superior. Não obstante,  o interesse pela filosofia que  acompanhará  a  sua  carreira profissional  como bibliotecário está patente na vasta bibliografia que dedica a temas de teoria da arte e de estética. A Estética da Paisagem, de 191�, é um pequeno livro ilus-trativo da integração da estética na filosofia da arte. Desenvolve uma reflexão sobre a pintura de paisagem, elogiando um género à época já menosprezado em face dos caminhos experimentais e inovadores ensaiados pelas vanguar-das artísticas.

A concepção e apreciação pictóricas da paisagem remontam ao século XVIII, aos ideais do paradigma pitoresco, e traduzem o aparecimento de uma modalidade privilegiada de relacionamento com a natureza. A paisa-gem enquanto categoria da sensibilidade tornar-se-ia socialmente presente através da mediação artística e como factor de uma cultura do gosto, ficando durante longo tempo marcada por esta filiação quase exclusiva ao domínio da representação.Será  este  o  contexto  geral  do  livro.  A  compreensão  da  paisagem  no 

âmbito da filosofia da arte determina como questões fundamentais o estudo dos procedimentos artísticos, a análise crítica de escolas e autores e a inter-pretação de obras. Entre paisagem natural e paisagem pintada medeia a acti-vidade do génio, capaz de transformar a realidade dada pela natureza numa nova realidade cultural que transforma cada paisagem (pintada) numa “con-cepção do mundo”. A alma do artista – sempre o grande artista que recusa a imitação e a reprodução – assume o natural como matéria da sua elaboração, capta em si a alma da natureza e reelabora-a. A arte paisagista mantém assim uma relação original com a natureza, matriz de cada paisagem que dela capta um retrato ou uma fisionomia. Apesar do carácter subjectivista da concepção de Paulhan, é de reconhecer que a alma da paisagem não depende apenas da intervenção do espírito; cada paisagem possui uma essência particular, uma reunião única de qualidades,  funções e  fenómenos que constituem a sua vitalidade e destinação.

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J. M.ª SÁNCHEZ DE MUNIAÍN

Ao trazer à presente Antologia a Estética da Paisagem Natural de José María Sánchez de Muniaín y Gil (1909-1981), damos conta de excertos de uma obra produzida por um destacado representante do pensamento esté-tico de origem espanhola.

Estética del Paisaje Natural é a versão editada da tese de doutoramento defendida junto da Universidade de Madrid em 1942, com o título Teoría de la belleza del paisaje. Será nessa mesma Universidade que Sánchez de Muniaín ocupará a recém-criada cátedra de Estética (princípios e história das ideias esté‑ticas), desenvolvendo uma consistente reflexão em torno da filosofia do belo e da arte, a par da sua actividade de propagandista católico, convivência esta da qual a sua bibliografia principal nos dá facilmente testemunho: Principios de estética general (1978); Varón, mujer y Dios: reflexión seglar sobre la “Humanae vitae”; La vida estética: contribución al conocimiento del hombre (1981); El lenguaje como arte bello; Introducción al estudio de la forma estética; Estudio de la belleza objetiva; El goce estético de realidades naturales no bellas; Estudio de los valores estéticos de la pintura de Sert; Concepto y teoría de la propaganda.

De Muniaín desenvolve uma teoria da beleza da paisagem alicerçada na possibilidade de uma vivência de ordem espiritual associada à expe- riência totalizante, através da qual a complexa multiplicidade de sensações provenientes da paisagem, entendida no sentido mais amplo como campo, resulta harmonizada e eleva o entendimento humano à descoberta da paisa-gem como instrumento da bondade divina. Num artigo publicado em 1955, intitulado “Libertad, felicidad, humanismo: investigación acerca de las notas esenciales  del  vivir  estético”,  sistematiza  as  três  características-chave  que organizam a possibilidade de reconhecimento e experiência do belo (Revista de Ideas Estéticas, Madrid, n.os 50 e 51, t. XIII).

A esta experiência vemos então associado o reconhecimento do seu “valor humanístico”, justamente enquanto condição daquele momento de elevação espiritual associado a uma percepção única na qual a paisagem se oferece como unificada e harmoniosa, superando a multiplicidade fragmentária dos elementos que a compõem, tal como uma abordagem analítica nos daria a ver. É justamente esta experiência do campo como elemento activo que age 

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JOACHIM rIttEr

no estudo que dedica ao complexo nascimento da categoria de paisa-gem, Joachim Ritter (1903-1974) defende a íntima articulação entre paisagem e  filosofia,  entendida  esta  no  seu  sentido  originário  como  visão  intuitiva (theoria) da unidade do universo. A subida de Petrarca à montanha insere-se nessa mesma busca da harmonia do visível que move o pensamento humano desde os seus primórdios, mas assinala, em sentido contrário, uma ruptura entre mundo exterior e interioridade subjectiva ilustrada pelo desânimo confessado do poeta: a contemplação do mundo exterior é incapaz de condu-zir o espírito ao aspirado encontro com a transcendência.É precisamente  este  acontecimento, pelo  seu  significado epocal  e o  seu 

carácter ímpar de drama humano, que Ritter elege como momento inaugural do surgimento da paisagem. A Natureza deixou de ser o Todo, fundamento e meio envolvente da existência humana, para se tornar numa realidade que se encontra fora do homem. À apreensão da totalidade englobante, doravante impossível, substitui-se a contemplação sensível da paisagem como uma realidade já distante, mas que volta a tornar-se presente, agora esteticamente, quando se dá à sensibilidade de um observador. Ritter articula, de um ponto de vista histórico-social, o contraste marcante 

nas sociedades modernas entre a contemplação estética e a natureza objecti-vada, primeiro pela ciência, depois pelo trabalho. A formação da sensibilidade estética permitiu compensar a dimensão vital e significante da natureza que a razão da ciência desistiu de compreender e da qual estará, para sempre, afas-tada. O contemplador, o caminhante e, mais tarde, o turista são os modernos sujeitos da paisagem, e a fruição que experimentam no plano do sentimento a resposta à necessidade de recuperarem o que a sociedade, no processo de reificação  (Verdinglichung) do mundo, teve necessariamente de colocar fora dela: os condicionalismos naturais foram substituídos por restrições sociais; aos ritmos das estações e das colheitas sucederam-se os do labor, da profissão e do negócio. Por sua vez, a reivindicação da liberdade humana, que exigiu ao homem a superação da sua condição natural, encontra o seu espaço de realização na cidade, e não mais na natureza. A evolução da paisagem nos seus diferentes significados e modos de apreciação é, por isso, indissociável