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I. INTRODUÇÃO 1 Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem Mª Dulce Miguens Gonçalves I. INTRODUÇÃO

I. INTRODUÇÃO · construtivista, parecem perder todo o seu significado. Quando professores e alunos pensam deste modo, parece difícil que compreendam a necessidade de correr alguns

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I. INTRODUÇÃO 1

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

I. INTRODUÇÃO

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Com o desenvolvimento dos modelos sobre a metacognição e auto-regulação, o

estudo das dificuldades de aprendizagem recebeu, nas últimas décadas, contributos

muito significativos, que alteraram radicalmente modelos, taxonomias e métodos de

investigação (Coplin & Morgan, 1988; Dockrell & McShane, 1992; Lyon, 1994a;

Poplin & Cousin, 1996; Reid, 1993; Reid, Hresko & Sawnson, 1996; Wong, 1985). As

perspectivas mais recentes centram-se cada vez mais no estudo de variáveis pessoais,

cognitivas, metacognitivas e motivacionais. A avaliação e o diagnóstico baseiam-se na

análise funcional de um conjunto cada vez mais vasto de variáveis. Os problemas são

analisados no seu contexto. Consideram-se, em cada caso, factores de risco (e de

protecção), aspectos desenvolvimentistas e critérios de adaptação pessoal do aluno face

a cada situação de aprendizagem. Na prevenção e no apoio, as dificuldades de

aprendizagem surgem agora como dificuldades de adaptação pessoal à situação de

aprendizagem. Procura-se a identificação de atitudes, crenças e estruturas cognitivas

responsáveis pela manutenção de padrões de comportamento inadequados, facilita-se o

desenvolvimento de capacidades de auto-regulação e de resolução dos problemas

(Ashman & Conway, 1997; Campione, 1987; Harris, Graham & Deshler, 1998; Kroese,

Dagnan & Loumidis, 1997; Loper & Murphy, 1985; Paris & Ayres, 1994).

Persiste, no entanto, o debate científico em torno de questões de taxonomia e de

diagnóstico diferencial: quais são os alunos que têm (ou não têm) dificuldades de

aprendizagem? De forma mais radical, alguns autores chegam a afirmar que as

dificuldades de aprendizagem não existem efectivamente enquanto categoria autónoma,

por insuficiente operacionalização, fundamentação e estudo (Finlan, 1994). Mesmo as

definições internacionalmente aceites parecem colocar as dificuldades de aprendizagem

específicas numa classe quase residual, definida mais pela exclusão sistemática de

outros tipos de problemas, do que por uma caracterização objectiva e esclarecedora

(Hammill, 1990).

Em Portugal, os estudos realizados sobre esta problemática parecem ainda

insuficientes. Surgiram nos últimos anos contributos significativos para a clarificação

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de conceitos ao nível da terminologia, da classificação e do diagnóstico (e.g. Rebelo,

1993; Rebelo, Fonseca, Simões & Ferreira, 1995; Rebelo, Simões, Fonseca & Ferreira,

1995; Silva & Gonçalves, 1997; Simões, Rebelo, Ferreira & Fonseca, 1995; Simões,

1996). No entanto, são ainda muito escassos os dados disponíveis sobre a incidência e

evolução dos problemas de aprendizagem na população portuguesa. A maioria dos

trabalhos publicados refere-se a alunos no 1º ou 2º Ciclos, sendo menos frequentes os

estudos sobre as dificuldades sentidas por alunos do ensino secundário ou superior. O

conceito emergente de necessidades educativas especiais, embora já legalmente

consagrado (Decreto-Lei 319/91 de 23 de Agosto, Despacho 173/ME/91 de 23 de

Outubro) tem ainda um reduzido impacto no meio escolar (Alaiz, Gonçalves &

Barbosa, 1997; Boavida & Barreira, 1992; Correia, 1997; Lobo, 1998; Sanches, 1995)

por falta de formação, meios materiais e humanos. A maioria dos técnicos no terreno

recebeu formação e costuma trabalhar apenas com crianças do 1º Ciclo.

Apesar disso, nos media, na escola e na comunidade, surgem com alguma

frequência referências a um generalizado e crescente insucesso escolar. Correspondem

a impressões intuitivas e provavelmente pouco fundamentadas, fruto de experiências e

impressões subjectivas de pais, professores e alunos, reflexo de concepções e crenças

pessoais culturalmente disseminadas pela população em geral. De facto, com o

alargamento da escolaridade obrigatória e o consequente aumento da população escolar

(Raposo, 1998), a incidência das dificuldades de aprendizagem tende a aumentar em

termos absolutos; por outro lado, as sucessivas reformas curriculares e as

correspondentes alterações nos princípios e nos métodos, nem sempre têm sido bem

entendidas, tanto na escola como na comunidade, nem quanto aos seus pressupostos

nem quanto aos seus objectivos. Muitos são os que avaliam como dificuldade ou

insucesso escolar o que apenas decorre de uma evolução saudável de estratégias

pedagógicas e de opções curriculares.

Na realidade, tanto na comunidade científica como na população em geral,

conhece-se muito pouco sobre o que efectivamente se passa no terreno. Qual é a

incidência das chamadas dificuldades de aprendizagem? Que estratégias de apoio e

complemento são efectivamente implementadas? Como evoluem essas dificuldades ao

longo do tempo? Qual é a perspectiva pessoal dos alunos? E dos professores? Qual é a

perspectiva que, em termos de senso comum, existe na escola e na comunidade?

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Neste domínio, muitos dos trabalhos publicados, em Portugal na última década,

são reflexo do interesse e preocupação pelas dificuldades escolares, mas não as

analisam directamente. São estudos que abordam, por exemplo, as percepções de valor

próprio e de competência em crianças de 2º Ciclo com problemas emocionais

(Filgueiras, 1996), a concepção de inteligência nos professores (Mettrau & Almeida,

1996), as atitudes dos alunos face à escola (Candeias, 1996; 1997), a representação da

escola pelos alunos, pais e professores (Santiago, 1996), ideias parentais sobre o

desenvolvimento e a aprendizagem (Castro, 1977), crenças parentais sobre a educação

e dificuldades de aprendizagem (Ventura & Monteiro, 1997). Na generalidade, quase

todos estes estudos, ou se inserem no quadro teórico da psicologia social ou têm por

base modelos sociocognitivos, centrando-se fundamentalmente na análise de formas

pessoais de pensar e conceber ou no estudo de representações sociais.

Todos parecem reflectir, no entanto, algumas das mais recentes orientações dos

estudos em Psicologia Cognitiva1. Reflectem um mesmo princípio construtivista: a

noção básica de que todos os intervenientes no processo de ensino-aprendizagem são

construtores de realidades, de significados (Glasersfeld, 1995). Portadores de conceitos,

preconceitos, expectativas e valores, vão para além de um mero processamento da

informação, em função da sua vivência e da cultura em que se inserem. Os seus

comportamentos e as suas opções podem ser influenciados por concepções e crenças

pessoais sobre o que é aprender, sobre os processos de conhecimento, sobre a

influência e papel das dificuldades de aprendizagem (Bruner, 1996; Schommer, 1994b;

Weinstein & Shell, 1997).

As dificuldades de aprendizagem começam a ser entendidas, não tanto como

problemas individuais e específicos, de classificação e etiologia complicada, antes

como entidades complexas, inseparáveis do contexto (intra-individual e social). Na

investigação e no apoio educacional, torna-se essencial um estudo mais cuidadoso

sobre as perspectivas pessoais dos próprios alunos, dos colegas, dos pais e dos

professores.

1 "uma revolução cognitiva renovada – uma abordagem mais interpretativa da cognição

centrada na “criação de significado” que tem estado a desenvolver-se, estes últimos anos, na

antropologia, na linguística, na filosofia, na teoria literária, na psicologia e, segundo parece, em toda a

parte para onde quer que se olhe" (Bruner, 1997, p.15).

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De um modo geral, de acordo com uma perspectiva construtivista, a

aprendizagem pode ser definida como uma "construção pessoal resultante de um

processo experiencial, interior à pessoa, e que se traduz por uma modificação de

comportamento relativamente estável" (Tavares & Alarcão, 1989). Nesta perspectiva,

alunos e professores chegam às situações escolares já com conhecimentos prévios,

conhecimentos por vezes pouco precisos, por vezes incorrectos, intuitivos ou

aprendidos no contexto social e cultural. Numa perspectiva de aprendizagem como

construção, esses esquemas e conceitos são o alicerce de novas aprendizagens. Mas o

processo é pessoal, interno ao próprio aluno, mediado por significados, estruturas,

motivos e emoções, orientado por objectivos, estratégias cognitivas e metacognitivas,

na interacção com o grupo, com a situação, num espaço socio-cultural.

Trata-se por isso de um processo complexo, naturalmente sujeito a dificuldades,

que cada aluno pode aprender a gerir e a superar com maior ou menor eficácia, apoiado

em conhecimentos e experiências metacognitivas, em função das suas próprias

capacidades de auto-observação e de auto-regulação (Flavell, 1979, 1981, 1987;

Simons, 1996; Schunk & Zimmerman, 1994; Weinstein & Stone, 1996). No entanto,

muitas dessas dificuldades subsistem e persistem, associadas a um vasto leque de

variáveis, pessoais e situacionais (Winne & Butler, 1996).

Neste sentido, uma perspectiva cognitivo-construtivista sobre a aprendizagem

sugere uma série de questões fundamentais sobre algumas das mais referidas causas de

insucesso escolar. Por exemplo:

• sofrem os alunos de um excessivo número de dificuldades de aprendizagem

que persistem porque são insuficientemente apoiadas?

• ou, pelo contrário, são insuficientes as oportunidades de conflito cognitivo e

de confronto pessoal com as dificuldades inerentes a qualquer percurso de

aprendizagem?

É certamente uma falsa oposição dado que as duas alternativas podem coexistir,

interagir e encontrar fundamento em princípios comuns. Mas se o aluno se vê a si

mesmo como um receptor passivo de informação, espera que o saber lhe seja

transmitido de uma forma que não crie dificuldades. Quando estas surgem, é mais

provável que se sinta impotente, na dependência de um apoio exterior que resolva o

problema. Por outro lado, se o professor conceptualiza o aluno como um receptor

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passivo, espera que ele receba a informação sem dificuldades nem problemas. Ao

mostrar, dizer ou ensinar alguma coisa a alguém parte-se normalmente do pressuposto

que o outro não sabe ou sabe mal, e que pode aprender se lhe for dito, ensinado. Em

ambos os casos, as dificuldades podem ser percepcionadas como erros, insuficiências

do sistema ou do aluno.

Quando a aprendizagem é concebida como um exercício de absorção e

acumulação de informação dada (ensinada) para uma apreensão passiva e imediata,

quando assim é, muitas práticas ou actividades pedagógicas de inspiração

construtivista, parecem perder todo o seu significado. Quando professores e alunos

pensam deste modo, parece difícil que compreendam a necessidade de correr alguns

riscos (problematizar, questionar, reflectir), ou a necessidade de sentir e resolver as

dificuldades e os problemas inerentes a qualquer processo de aprendizagem. Parece

difícil, por exemplo, que professores e alunos valorizem e se envolvam em actividades

para o desenvolvimento de competências de auto-regulação. E provavelmente não fará

qualquer sentido tentar ensinar (ou aprender) pela descoberta ou com base na resolução

de problemas.

Isto é, tal como a interacção com os outros, também a interacção com as tarefas

de aprendizagem é influenciada por teorias intuitivas sobre si próprio, sobre o

funcionamento mental, sobre o ensino e a sobre a aprendizagem (e.g. Wittrock, 1986).

Na perspectiva do professor "the general point is clear: assumptions about the mind of

the learner underlie attempts at teaching. (...) teacher's conception of a learner shapes

the instruction." (Bruner,1996, p.48).

O conceito de "folk pedagogy", enfatizado por Bruner (ob. citada), estende este

esforço de auto-reflexão e de descentração a novas áreas. Não basta que os professores

saibam o que as crianças fazem (ou devem fazer) para aprender. Precisam também de

reflectir sobre o que os alunos pensam que fazem, situar-se na perspectiva do aluno, e

tentar entender tanto quanto possível a origem, potencialidades e limites das suas

próprias concepções (Gardner, 1991). Os alunos podem assumir maior responsabilidade

pelo seu pensamento, pela sua aprendizagem, se forem ajudados a evoluir de um

realismo ingénuo para uma maior compreensão do papel das suas crenças e concepções

sobre si próprios e sobre o mundo (Bereiter & Scardamalia, 1993, citados por Bruner,

1996).

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Na sequência dos estudos sobre metacognição e auto-regulação, este

aprofundamento sobre a perspectiva intrapessoal dos sujeitos (pensar como se pensa,

como se pode pensar, reflectir sobre conceitos e significados pessoais) tem vindo a

concretizar-se em três grandes vias de investigação, com influência específica no

domínio da Psicologia Educacional: a) o desenvolvimento de teorias da mente na

infância (Astington, Harris & Olson, 1988; Bartsch & Wellman, 1995; Flavell, 1986);

b) o estudo da psicologia do senso comum (Forguson, 1988, 1989), "folk psychology"

(Bruner, 1996, 1997; Clark & Millican, 1996; Haselager, 1997), teorias implícitas

(Sternberg, 1986), "lay beliefs" (Furnham & Henley, 1988); "inert knowledge"

(Bereiter & Scardamalia, 1987); c) os estudos sobre aprendizagem de conceitos

científicos (Glynn, Yeany & Britton, 1991; Mintzes, Vandersee & Novak, 1998;

Vosniadou, 1994, 1996; Welford, Osborne & Scott, 1996).

No âmbito da investigação sobre a aprendizagem de conceitos científicos, têm

surgido nos últimos anos trabalhos sobre conceitos específicos no domínio da Física, da

Biologia, da Geografia e da História (Furnham, 1992; Halldén, 1993; Lichtfeldt, 1996;

Stahly, Krockover & Shepardson, 1999; Wood-Robinson, 1991). Procuram-se e

identificam-se ideias intuitivas ou de senso comum, ideias que os alunos possuem sobre

cada um desses conceitos antes de receberem instrução formal. Definem-se níveis de

desenvolvimento conceptual, estudam-se os processos de modificabilidade cognitiva,

testam-se procedimentos instrucionais mais facilitadores de mudanças estruturais, e de

uma aprendizagem mais profunda e generalizável. Compreender conteúdos científicos

requer a reelaboração do conhecimento anterior num nível conceptual superior (Novak,

1998), uma apreensão da estrutura do conhecimento (Bruner, 1999), a identificação de

conceitos nucleares (Carey, 1986). Compreender a natureza do conhecimento científico

requer também alguma compreensão dos pressupostos epistemológicos do

conhecimento científico, e um conhecimento aprofundado sobre métodos e limitações

da investigação científica (Leach, 1996).

Alguns estudos sugerem que, quando os alunos partem com concepções

erróneas quer sobre a natureza da ciência e do conhecimento científico, quer sobre

estratégias de aprendizagem de conceitos científicos, o que efectivamente acabam por

retirar do curso é muito diferente do esperado (Driver, Leach, Millar & Scott, 1996;

Redish, Steinberg & Saul, 1996). Os dados conhecidos sugerem igualmente que estes

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pressupostos e conceitos intuitivos são especialmente resistentes à mudança, e podem

persistir mesmo depois de um período de instrução formal.

Na investigação sobre a aprendizagem de conceitos científicos, só alguns

estudos têm incidido sobre a aprendizagem de conceitos nucleares no domínio da

Psicologia Educacional, sobre a aprendizagem de conceitos tais como: aprendizagem,

motivação, cognição ou sucesso. Se em Biologia, Física, Geografia ou História,

importa indagar (e compreender) algumas concepções e ideias prévias dos alunos sobre

os conceitos em estudo, supõe-se que algo de similar pode (deve) ocorrer noutros

domínios curriculares, nomeadamente, no ensino da Psicologia e da Psicologia

Educacional. Quer se trate do ensino (ao nível secundário ou universitário) ou da

formação (inicial ou contínua) de professores, parece fundamental perguntar: que

crenças, concepções e ideias prévias trazem consigo os alunos em formação? Que

pressupostos e que conceitos foram adquirindo intuitiva e culturalmente? Como

pensam sobre o que se pensa em Psicologia? Até que ponto acreditam na veracidade e

na aplicabilidade desses saberes de senso comum?

Neste domínio, alguns estudos têm analisado crenças e concepções de

aprendizagem de estudantes universitários, com amostras retiradas de cursos de

Psicologia, Psicologia Educacional ou Medicina, ou de outros cursos no âmbito da

formação de professores (Biggs & Moore, 1993; Dahlgren, 1997; Duarte, 2000;

Marton, 1988; Lonka, Joram & Brysson, 1996; Lonka & Lindblom-Ylänne, 1996;

Rego, 1999; Saljö, 1979, citado por Stevenson e Palmer, 1994). Noutros casos,

analisam-se as ideias de crianças sobre a aprendizagem e sobre o conhecimento (e.g.

Ayala & Martín, 1997; Pramling, 1988; Zelan, 1991); investigam-se as concepções de

aprendizagem de estudantes adolescentes, no contexto da sala de aula (Berry &

Sahlberg, 1996); descrevem-se ideias pessoais de alunos e professores sobre a

deficiência mental (Kassar, 1995; Lewis, 1995). De modo geral, os resultados destas

investigações sugerem que é possível descrever e discriminar diferentes modos de

conceptualizar a aprendizagem e o conhecimento, de um ponto de vista pessoal e

intuitivo. E, embora as definições pessoais sobre os processos de aprendizagem

pareçam, nalguns casos, desenvolver-se com o tempo e com a instrução, parece

importante repensar os processos pedagógicos de ensino e de formação, facilitando a

auto-reflexão e a modificabilidade conceptual (Lonka & Ahola, 1995). Sem esse

esforço, as concepções informais de leigos ("laypeople"), estudantes e professores,

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permanecem, por vexes, muito próximas das dos primórdios da psicologia. Por

exemplo, a generalidade das pessoas tem sobre a mente uma concepção de espaço

físico, onde memórias e objectos se arrumam como objectos num armazém (Carey,

1986).

Lonka, Joram & Brysson (1996), sugerem que as dificuldades de reforma de

qualquer sistema escolar podem ser relacionadas com estes dados. Quando se fala de

ensino e de aprendizagem, investigadores, professores, pais, podem estar a referir-se a

ideias muito diferentes, com base em diferentes concepções pessoais, em diferentes

princípios epistemológicos. Uma mesma reforma curricular pode ser entendida e

concretizada de formas muito diferentes. Do mesmo modo que, na sala de aula, alguns

professores esperam que os alunos aprendam tal como lhes é dado ensinar, também o

legislador e a opinião pública acreditam na prescrição e aplicação de reformas

curriculares, tal como lhes é dado reformar.

No contexto da sala de aula ou ao nível mais global do sistema educativo, se

técnicos, professores e alunos não explicitarem, não partilharem pressupostos

epistemológicos e conceitos nucleares, se se mantiverem ocultas diferentes concepções

pessoais sobre o que é aprender, o que é avaliar, o que é um bom aluno, ou sobre o que

significa, por exemplo, sentir dificuldades de aprendizagem, se assim for, como tantas

vezes parece ser, tudo pode mudar sem que nada realmente mude. Há em cada pessoa,

como em todos os sistemas complexos, uma espécie de sistema imunitário, que se

defende, absorve e faz inerte, tudo o que for reconhecido como diferente e exterior ao

sistema.

Por exemplo, Dweck e Leggett (1988) sugerem que, nas situações de

aprendizagem em que surgem dificuldades, os estudantes reagem cognitiva e

atitudinalmente de forma diferente em função de diferentes objectivos e padrões

motivacionais, mas também em função de diferentes teorias implícitas sobre a

inteligência. Muitos outros estudos sugerem que as crenças sobre o conhecimento e

sobre a aprendizagem podem constituir um bom preditor das reacções e do desempenho

dos estudantes em tarefas de compreensão da leitura (Perry, 1970; Ryan, 1984;

Schommer, 1990).

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I. INTRODUÇÃO 11

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Em síntese, pode considerar-se que a investigação psicológica sobre o

desenvolvimento epistemológico se desenvolveu desde os anos 50, em torno de três

grandes vias de investigação (Hofer & Pintrich, 1997):

a) estudos sobre o modo como cada pessoa interpreta as suas experiências

educacionais (Belenky, Clinchy, Goldberger & Tarule, 1986; Goldberger, Tarule,

Clinchy & Belenky, 1996; Perry, 1970);

b) estudos centrados no modo como os pressupostos epistemológicos influenciam os

processos de raciocínio (Kitchener, Lynch, Fischer & Wood, 1993);

c) estudos que relacionam as crenças epistemológicas com as tarefas de aprendizagem

no contexto da sala de aula (Ryan, 1984; Schommer, 1990, 1993, 1994a, 1994b;

Schommer, Crouse & Rhodes, 1992; Schommer & Dunnell, 1994; Schommer &

Walker, 1995; Schommer, Calvert, Gariclietti & Bajaj, 1997).

De entre estas, considerou-se especialmente relevante para este trabalho o

conjunto de investigações conduzidas por Schommer, ao longo da década de 90. Esta

autora desenvolveu toda uma sequência de estudos relacionando crenças

epistemológicas e processos de aprendizagem do aluno. Iniciou o seu próprio projecto

de pesquisa tendo como referência os dados e os questionários de Perry (1968, citado

por Schommer, 1990) e alguns resultados de estudos anteriores no domínio da

compreensão da leitura (Schommer & Surber, 1986). Desenvolveu um Questionário

Epistemológico que permite um estudo das crenças epistemológicas mais normativo e

quantitativo do que os anteriores (quase sempre com base em entrevistas para análise

qualitativa). Além disso, sugeriu que as crenças epistemológicas não fossem

concebidas de uma forma unidimensional, nem associadas a uma sequência fixa de

estádios de desenvolvimento. Ao contrário, propôs um sistema de crenças complexo,

constituído por cinco dimensões: estrutura, certeza, origem do conhecimento, controle e

velocidade de aquisição do conhecimento. Algumas destas dimensões podem ser de

grande importância na identificação de crenças epistemológicas com influência no

comportamento de professores e de alunos em situações de dificuldades de

aprendizagem.

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I. INTRODUÇÃO 12

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Neste trabalho, pretende-se essencialmente, estudar e descrever, crenças e

concepções pessoais, intuitivas ou de senso comum, sobre Dificuldades de

Aprendizagem. Como pensam alunos e professores sobre os obstáculos, no processo de

aprendizagem? Como os definem, concebem, explicam? Como relacionam dificuldades

e sucesso? Que crenças pessoais foram desenvolvendo sobre a frequência, persistência

e evolução das dificuldades de aprendizagem?

Com este objectivo em mente, parece necessário estudar outras variáveis que se

supõem relacionadas: crenças epistemológicas (Schommer, 1990, 1993, 1994a, 1994b)

e concepções pessoais sobre a aprendizagem e o ensino (Bruner, 1996; Lonka, Joram &

Brysson, 1996). Pressupõe-se que diferentes modos de pensar sobre a natureza e

estrutura do conhecimento, diferentes concepções pessoais sobre o que é aprender e

sobre o que constitui uma dificuldade de aprendizagem, se possam relacionar com

diferentes formas de reacção pessoal perante essas mesmas dificuldades. Algumas

formas de pensar sobre uma dificuldade pessoal ("não vou conseguir fazer isto! vou

falhar outra vez...") podem, por exemplo, inibir a utilização de estratégias de

aprendizagem mais eficazes e adaptadas a cada situação escolar (Meichenbaum, 1977,

citado por Brown, Bransford, Ferrara & Campione, 1983).Neste caso, parece necessário

estudar formas que facilitem a inserção de procedimentos de auto-monitorização, de

disputa e reestruturação cognitiva de auto-verbalizações desadaptativas, em programas

para a prevenção e remediação do insucesso escolar (Reid, 1996b).

Numa perspectiva mais ampla, considera-se fundamental, reflectir e investigar

sobre procedimentos e estratégias de intervenção educacional mais eficazes para o

desenvolvimento e modificação de crenças e concepções pessoais. Tais procedimentos

podem ter aplicação ao nível do ensino das ciências, ao nível da formação de

professores, em psicoterapia e no apoio psicopedagógico a alunos com dificuldades de

aprendizagem. Pretende-se igualmente um estudo transversal do modo como evoluem

as concepções pessoais sobre dificuldades de aprendizagem em diferentes momentos

do percurso escolar. Será estudada a interacção entre esse desenvolvimento e a

instrução formal sobre os conceitos nucleares em estudo (aprendizagem, dificuldades

de aprendizagem), em alunos em dois níveis de escolaridade (secundário e

universitário).

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Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

1. Concepções científicas sobre Dificuldades de

Aprendizagem.

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I. INTRODUÇÃO 14

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I. INTRODUÇÃO 15

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

1. Concepções científicas sobre Dificuldades de Aprendizagem.

Este capítulo procura sintetizar alguns dos aspectos fundamentais de uma

perspectiva científica sobre as Dificuldades de Aprendizagem. Sobretudo nas últimas

décadas do Século XX, a Psicologia Educacional, a Psicologia Cognitiva e a

Neuropsicologia registaram inúmeros contributos para a definição de um conceito que

se tem revelado particularmente difícil e pouco consensual.

O capítulo contem três secções distintas, que abordam respectivamente: o

desenvolvimento de diferentes concepções científicas, numa perspectiva longitudinal;

algumas relações com outros conceitos fundamentais, numa perspectiva transversal; e,

por fim, alguns procedimentos para a intervenção.

Numa perspectiva longitudinal, descreve-se o modo como tem vindo a evoluir

ao longo do tempo a perspectiva científica sobre o conceito de Dificuldades de

Aprendizagem, identificam-se pressupostos comuns e lacunas conceptuais. Apontam-se

também, algumas das questões que mais recentemente têm vindo a orientar a

investigação científica neste domínio.

Numa perspectiva transversal, analisam-se algumas relações fundamentais que

podem contribuir para uma melhor delimitação deste conceito, numa perspectiva

cognitivo-construtivista. Mais especificamente, esta secção propõe uma reflexão que

relaciona: metacognição, auto-regulação e sucesso no contexto escolar.

Numa perspectiva interventiva, enumeram-se princípios e pressupostos de

intervenção e alguns programas que podem contribuir para a prevenção e remediação

de Dificuldades de Aprendizagem.

O capítulo tem a seguinte estrutura:

1.1 Evolução do conceito de dificuldade de aprendizagem.

1.2 Metacognição, auto-regulação e sucesso escolar.

1.3 Intervenções psicopedagógicas para o desenvolvimento de competências de

auto-regulação: o papel das concepções e crenças pessoais.

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I. INTRODUÇÃO 16

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I. INTRODUÇÃO 17

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

1. 1. Evolução do conceito de dificuldade de aprendizagem.

O estudo científico do conceito de dificuldade de aprendizagem (“learning

disability”2) tem vindo a sofrer profundas mutações, tanto pela evolução dos

pressupostos teóricos subjacentes como por sucessivas alterações na sua definição,

operacionalização e delimitação, bem como pelo desenvolvimento de novos

procedimentos metodológicos. A diversidade de modelos, uma relativa (e

mundialmente reconhecida) imprecisão conceptual, a coexistência de múltiplos

sistemas de classificação, a multiplicação de estudos empíricos e de propostas de

intervenção educacional, tudo isto tem dificultado uma percepção global e unificada

deste domínio. Para o cientista ou para o leigo, tentar aprender no domínio das

dificuldades de aprendizagem é em si mesmo fonte de muitas dificuldades. Por outro

lado, a formação dos técnicos e professores de apoio parece continuar a ser pouco

especializada e específica. A partir de uma formação de base genérica e polivalente,

cada técnico tem, muitas vezes, que prosseguir como autodidacta. Com o aumento do

tempo de escolarização e o alargamento da população escolar, esta é uma tarefa cada

vez mais necessária, um desafio estimulante na vontade de encontrar respostas e de

ultrapassar inúmeros obstáculos.

Os estudos e modelos teóricos inicialmente desenvolvidos segundo uma

orientação essencialmente médica, evoluíram progressivamente para o campo da

psicologia e da educação (Poplin, 1988b). Década após década, pode reconhecer-se a

influência sucessiva de quatro grandes perspectivas sobre as dificuldades de

2 Neste capítulo descreve-se de forma breve a evolução deste conceito e o modo como foi

ganhando diferentes significados ao longo do tempo. Esses significados podem traduzir-se por diferentes

designações em língua portuguesa. A utilização do termo original inglês, sem tradução, pretende apenas

situar o leitor no campo, de forma geral, antes de uma análise mais detalhada de alternativas conceptuais e

de tradução. Posteriormente serão analisados alguns dos problemas na tradução deste conceito para língua

portuguesa.

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I. INTRODUÇÃO 18

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aprendizagem: modelo médico, modelo do processamento psicológico, modelo

comportamental e modelo das estratégias cognitivas.

I. Modelo médico

Nos anos 50 a generalidade dos estudos publicados no domínio das dificuldades

de aprendizagem enfatizava a avaliação e o tratamento de sintomas neurológicos.

Distinguia-se entre lesão (por causas exógenas) e deficiência mental (por causas

endógenas). A avaliação incluía o EEG ou a interpretação neurológica de baterias de

avaliação psicológica (WISC, por exemplo). O tratamento podia incluir a prescrição de

fármacos e a instrução destes alunos decorria em ambientes muito estruturados e

assépticos (quase hospitalares). Alguns destes ambientes eram partilhados com alunos

com deficiência mental ou vítimas de lesões traumáticas3. A instrução incidia no treino

de aptidões motoras básicas, com o objectivo de permitir ao aluno um funcionamento

mais adequado em comunidade, normalmente em instituição ou noutro tipo de

ambiente protegido. Este tipo de treino, de carácter tão básico e específico, não

correspondia às necessidades específicas dos alunos com distúrbios de aprendizagem,

contribuindo muitas vezes para acentuar a sua dependência e insuficiente estimulação.

E, no entanto, ainda hoje este tipo de explicação “médica”, supondo a existência de um

qualquer tipo de patologia (fisiológica, neurológica ou mental), aparece com alguma

frequência, difundido pelos media4, referido ou solicitado por pais e educadores.

3 Em Portugal, é ainda possível encontrar instituições públicas e privadas onde a instrução

especializada ministrada a alunos com distúrbios de aprendizagem parece indistinta da ministrada a outras

crianças com outro tipo de problemas, englobando no chamado “ensino especial” situações muito

diversas: deficiência mental, deficiência sensorial, problemas psicomotores, doenças crónicas que

prejudicam o processo de aprendizagem, etc.. 4 “Um grupo de cientistas de vários países detectou, pela primeira vez, um gene responsável pela

dislexia, uma desordem de aprendizagem relativamente comum. Este não deverá ser o único gene

responsável por esse problema, mas é o primeiro a ser identificado, provando que alguns casos da doença

têm origem genética. (...) A dislexia é uma afecção relativamente vulgar que se manifesta através de

dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita. As pessoas atingidas costumam ter uma inteligência

média ou mesmo acima da média, mas têm dificuldades na manipulação das palavras. (...) A doença

atinge uma em cada 20 crianças, e causa importantes deficiências de aprendizagem em cinco a dez por

cento das crianças em idade escolar.” (In “Público” de 7 de Setembro; Sá, 1999)

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II. Modelo do processamento psicológico

Nos anos 60, tinha-se já tornado aparente a impossibilidade de utilizar provas e

testes neurológicos para distinguir entre alunos com e sem distúrbios de aprendizagem.

Esta dificuldade sugeriu o aparecimento de uma designação mais subtil, “disfunção

cerebral mínima”, tão mínima e imperceptível que se aceitava quase sempre como

impossível de detectar e diagnosticar de forma concludente. A designação “learning

disabled” surge também por esta altura (Kirk, 1962, citado por Poplin, 1988b). O

diagnóstico dos alunos com deficiências no processo de aprendizagem passava

gradualmente do consultório médico para o gabinete de psicologia. Centrava-se na

avaliação de processos psicológicos e de competências escolares básicas. Nos Estados

Unidos e em alguns países europeus começavam a proliferar os testes e materiais de

apoio, com professores cada vez mais especializados. O treino incidia no

desenvolvimento de competências de pré-requisito, que se supunham condição

necessária para cada aprendizagem escolar. A par de alguma medicação, a instrução

podia incluir métodos de integração sensorial, treinos de competências psicomotoras ou

psicolinguísticas, incluindo exercícios de discriminação visual e auditiva, o

desenvolvimento da lateralidade e da coordenação visuomotora, treinos de memória e

de competências de organização grafoperceptiva.

Nesta perspectiva, o diagnóstico e o treino reflectem exclusivamente as

necessidades dos alunos do 1ºciclo do Ensino Básico, e incidem sobretudo em

dificuldades de leitura, escrita e cálculo. O objectivo já não é o de desenvolver a

adaptação a uma comunidade terapêutica específica mas o de favorecer a integração na

escola, assegurando um nível mínimo de aquisições escolares, saber ler, escrever e

contar. Com materiais e profissionais cada vez mais especializados, procura-se o treino

sistemático de todos os elementos e pré-requisitos necessários às aprendizagens

escolares básicas, em meio escolar (Condemarin & Blomquist, 1989; Fonseca, 1984;

Pereira, 1995).

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III. Modelo comportamental

Na década de 70, a perspectiva comportamental exerce uma forte influência.

Nesta perspectiva, a avaliação e a instrução de alunos com dificuldades de

aprendizagem deve centrar-se, não em pré-requisitos formulados de uma forma

hipotética, mas sim em aspectos específicos do comportamento do aluno que

influenciem directamente o seu desempenho escolar. Deste modo, as dificuldades e

insuficiências observadas em cada aluno devem ser descritas de forma específica,

objectiva e observável. Os objectivos pedagógicos a alcançar devem ser descritos por

parâmetros de comportamento observáveis, os testes e provas de avaliação devem

respeitar e permitir a comparação com esses critérios. Isto é, quando se verifiquem

insucessos (deficiências no desempenho de um aluno) o seu comportamento pode ser

alvo de uma análise específica, centrada na determinação de comportamentos em

excesso (que pela sua presença prejudicam o desempenho escolar do aluno) e de

comportamentos em défice (que pela sua ausência dificultam ou inviabilizam um

desempenho escolar adequado). A eliminação ou o incentivo, respectivamente, de

qualquer destes comportamentos, depende de uma correcta análise funcional. Designa-

se deste modo o estudo objectivo das relações entre cada comportamento e a situação

envolvente, tanto ao nível dos estímulos que o antecedem como das consequências que

o mantêm. Uma análise funcional do comportamento permite determinar de forma

precisa e objectiva que elementos favorecem e reforçam a manutenção dos

comportamentos inadequados, e que elementos seria necessário introduzir no ambiente

do aluno para facilitar a emergência de outros mais adequados.

Esta análise funcional do comportamento do aluno na situação de aprendizagem

pode ainda ser complementada por uma análise objectiva das tarefas que lhe são

solicitadas (Kaplan, 1991). Esta análise visa em primeiro lugar, a determinação de

objectivos, isto é, uma definição operacional, objectiva do que se espera do

comportamento de cada aluno. A análise prossegue com uma comparação entre estes

comportamentos desejados e os comportamentos actualmente observados no aluno. E

analisando as diferenças, é possível definir um conjunto de condições necessárias à

melhoria do comportamento do aluno (pré-requisitos) que a intervenção deve

incrementar no contexto de uma sala de aula regular.

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IV. Modelo das estratégias cognitivas (e de aprendizagem).

Na perspectiva do modelo das estratégias cognitivas, a intervenção deve centrar-

-se no ensino e promoção dos processos estratégicos necessários à realização das

diversas tarefas escolares. Ensinaram-se, inicialmente, técnicas de estudo específicas

(“skills mouvement”).

Com o desenvolvimento da Psicologia Cognitiva (processamento da

informação, ciência cognitiva, metacognição), a perspectiva sobre as dificuldades e

distúrbios de aprendizagem foi sendo directamente influenciada pela investigação em

diferentes áreas: estilo de aprendizagem, estilo cognitivo, metamemória, compreensão

do texto, composição escrita, atribuição causal, motivação, etc.. Nesta perspectiva,

sugere-se que os comportamentos do aluno associados às dificuldades não decorrem

simplesmente das suas aptidões ou ambientes de aprendizagem, porque sofrem a

influência de todo um conjunto de mediadores e variáveis cognitivas (Ashman &

Conway, 1993; Almeida, 1998; Reid, Hresko & Swanson, 1996; Sousa, 1998;),

nomeadamente: bases de conhecimento; desenvolvimento e capacidades cognitivas;

motivação, afectos e percepções pessoais; auto-regulação, coordenação e gestão de

planos e métodos de estudo, em função de condições específicas de ensino e de

aprendizagem.

Nesta perspectiva, os insucessos e dificuldades no processo de aprendizagem

são descritos, analisados e explicados com base nos mesmo pressupostos e variáveis

que a própria aprendizagem. Qualquer aprendizagem, bem ou mal sucedida, pode ser

explicada pela conjunção e interacção de um diversificado conjunto de características

pessoais do próprio aluno, do professor, e o modo como abordam e interpretam o

contexto e o currículo (Ashman & Conway, 1997). A presença de algumas dessas

características e condições tendem a favorecer uma aprendizagem bem sucedida (por

ex.: flexibilidade e facilidade de adaptação a novas situações); pelo contrário, a

omissão ou ausência de algumas dessas características (ou a presença de características

antagónicas) tende a prejudicar a aprendizagem e a gerar situações de insucesso.

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Constata-se que os estudos no domínio das dificuldades de aprendizagem foram

evoluindo à medida que foram evoluindo os métodos de avaliação e os pressupostos

teóricos noutras áreas da Psicologia e da Educação. Reflectem ainda desenvolvimentos

noutros domínios da Psicologia, da Psicologia Cognitiva à Psicologia Clínica.

Reflectem também outras evoluções no domínio da educação, da avaliação e do

currículo.

Embora estes quatro modelos sobre o conceito de “learning disability” tenham

surgido em sucessão, década após década, de alguma forma todos continuam a

coexistir, tanto na comunidade científica como no meio escolar e social. No entanto,

alguns autores sugerem que, no essencial, quase nada distingue realmente estas quatro

perspectivas (Kavale & Forness, 1985; Poplin, 1988a). Foi sugerido que todas têm em

comum uma excessiva simplificação dos processos de aprendizagem (Poplin, 1988b) e

que todos estes modelos parecem prejudicados por uma insuficiente fundamentação

paradigmática (Kavale & Forness, 1985).

Pensando desta forma, não devem ser descritos como quatro modelos

diferenciados mas apenas como quatro momentos de um mesmo contínuo, por

influência da evolução observada noutras áreas de investigação. Podem até reflectir

diferentes modos de conceber a aprendizagem, evoluindo de uma perspectiva

psicofisiológica para outras perspectivas de determinismo ambiental ou recíproco. Mas

as semelhanças, por exemplo, quando ao modo de conceber as próprias dificuldades de

aprendizagem, são múltiplas e surgem em aspectos fundamentais. Podem até ser

consideradas como mais significativas do que as diferenças.

Isto é, uma análise mais profunda, sugere que os estudos das diferentes fases ou

modelos, podem distinguir-se entre si mais por diferenças metodológicas do que por

diferenças paradigmáticas. Mais por diferenças formais de designação ou formulação

do que por diferenças conceptuais. Podem ter evoluído os nomes e os processos de

avaliação mas não parece ter mudado de forma significativa o modo de conceber a

natureza, a origem e a persistência dos vários problemas associados à aprendizagem,

quer se trate de distúrbios específicos ou de qualquer outro tipo de dificuldade. As

diferenças são o reflexo de alterações ao nível dos procedimentos e isso não basta para

mudar o essencial nesta área de estudos. Apesar das diferenças metodológicas ou de

foco, todos estes modelos parecem partilham alguns pressupostos fundamentais.

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Indicam-se em seguida alguns dos aspectos que parecem comuns a todos os

modelos:

• o pressuposto básico de que alguns alunos sofrem de dificuldades de aprendizagem,

outros não. E a noção de que isso os caracteriza de forma intrínseca e relativamente

estável, manifestando-se desde muito cedo. Nesta perspectiva, deve proceder-se a

uma detecção precoce de todos os alunos com dificuldades ou distúrbios

específicos. Pretende-se determinar a que alunos é preciso proporcionar uma

instrução específica, especializada, diferenciada, mais adequada às suas

características do que o ensino dito “normal”, que a grande maioria dos alunos

consegue acompanhar sem problemas5.

• o pressuposto de que existe um conjunto de características específicas que permite

diferenciar entre alunos com e sem dificuldades, de forma precisa, válida e

funcional. Embora quase todos os estudos tenham revelado inúmeras dificuldades ao

nível deste diagnóstico diferencial, persistem e multiplicam-se os esforços para a

determinação de um conjunto de critérios diferenciadores, cada vez mais adequado e

preciso. Quase todos os estudos persistem na tentativa de definir tipos, etiologias e

um conjunto de características intrínsecas ao próprio aluno, que permitam distinguir

entre diferentes tipos de dificuldade. Procuram-se meios mais eficazes para

descrever, diagnosticar e classificar cada tipo (e sub-tipo) de dificuldade,

organizando-os em taxonomias exaustivas e hierarquicamente complexas (e.g. Cruz,

1999). E embora seja comum reconhecer que os alunos com dificuldades de

aprendizagem constituem um grupo de difícil definição e classificação, persiste todo

um esforço de classificação sistemática, no pressuposto de que “eles têm algumas

características genéricas que os caracterizam” (ob. cit., p.93). Actualmente esses

critérios continuam a variar de forma muito significativa, até mesmo em função do

país ou da região em que o aluno habita.6

5 Em Portugal, foi introduzido nos últimos anos o conceito de Necessidades Educativas Especiais

(NEE) que alguns alunos têm, devendo por isso ser encaminhados para apoios e complementos

educativos específicos, tal como previsto na legislação (Correia, 1997). 6 Nos Estados Unidos, por exemplo, um mesmo aluno pode, ao mudar de estado, deixar de ser

(ou passar a ser) classsificado como “learning disabled student”. Em Portugal, na ausência de critérios

específicos e explícitos, basta por vezes que o aluno mude de escola, ou mesmo de professor.

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• todos os modelos descritos sugeriram formas de intervenção pedagógica que de

algum modo falharam na demonstração dos seus resultados práticos, por

insuficiências inerentes a cada método ou limitações ao nível dos estudos

comparativos efectuados (Adelman & Taylor, 1988). De modo geral, fica por

demonstrar a possibilidade de generalização e manutenção dos aspectos específicos

treinados e desenvolvidos por cada tipo de intervenção. Isto é, mesmo nos casos em

que foi possível observar uma evolução positiva em função dos objectivos

específicos do treino, ficou por demonstrar a sua influência mais ampla ao nível dos

resultados escolares, a sua eficácia na prevenção de futuros insucessos ou de outras

dificuldades de aprendizagem.

Muitos autores e muitos estudos têm pesquisado e discutido à exaustão o que

distingue um aluno com e sem "learning disability", mas essa questão tem recebido

múltiplas e inconsistentes respostas e o consenso parece impossível. E mesmo assim,

para a maioria dos investigadores e intervenientes no processo educativo, “ter ou não

ter” dificuldades de aprendizagem, continua a ser ainda hoje, a questão de fundo. Para

muitos educadores (pais e professores) parece fundamental diagnosticar e definir se o

aluno “efectivamente” tem ou não tem dificuldades de aprendizagem. Um esforço de

esclarecimento e classificação dos problemas que, infelizmente, nem sempre encontra

paralelo no esforço de apoio e de intervenção junto dos alunos identificados.

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1.1.1. Dificuldades na definição do conceito.

De modo geral e desde a sua origem, o conceito de “learning disability” tem

sido alvo de múltiplas críticas e sugestões de definição e de delimitação. Mesmo as

mais recentes propostas de definição, resultando de múltiplos esforços de convergência,

de debate, de revisão e renovação, continuam a não ser consensuais nem inteiramente

satisfatórias (Kavale & Forness, 2000). Este é um terreno marcado por inúmeras

dificuldades e disputas (Cruz, 1999):

• quanto à definição - desde os anos 60 que se procura uma definição específica,

precisa e validada. Apesar de todos os esforços efectuados, mesmo as mais recentes

formulações correspondem a definições demasiado genéricas, imprecisas e

deficientemente fundamentadas7.

• quanto à etiologia – as questões da descrição e da intervenção têm sido valorizadas

em detrimento da etiologia. Continua a pressupor-se a existência de distúrbios

neurológicos que afectam funções cerebrais específicas, pressuposto que carece de

validação empírica consistente e consensual.

7 "Distúrbios de aprendizagem (Learning disabilities) é uma expressão genérica que se refere a

um grupo heterogéneo de desordens, que se manifestam por dificuldades significativas na aquisição e no

uso de aptidões de escuta, fala, leitura, escrita, raciocínio ou de matemática. Estas desordens são

intrínsecas ao indivíduo, presumindo-se que se devam a uma disfunção do sistema nervoso central, e

podem ocorrer ao longo da vida. Problemas nos comportamentos de auto-regulação, na percepção e na

intersecção social podem coexistir com os distúrbios de aprendizagem, mas não constituem, por si

próprios, um distúrbio de aprendizagem. Mesmo que os distúrbios de aprendizagem possam ocorrer

concomitantemente com outras condições de deficiência (por exemplo: deficiência sensorial, atraso

mental, social e distúrbio emocional grave) ou com influências extrínsecas (tais como diferenças

culturais, instrução insuficiente ou inapropriada) eles não resultam dessas condições ou influências

(definição mais recentemente proposta pela NJCLD, Hammill, 1990, p.77, citado e traduzido por Rebelo,

Fonseca, Simões e Ferreira, 1995).

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• quanto à possibilidade de diferenciação em relação a outras condições – urge

esclarecer até que ponto os problemas de aprendizagem das crianças com

dificuldades (ou distúrbios) de aprendizagem são realmente diferentes dos que

ocorrem a outros “tipos” de alunos em dificuldade.

• quanto às indicações de tratamento – a generalidade das propostas de apoio e de

intervenção integra (ou corresponde exactamente) a procedimentos instrucionais ou

clínicos que foram sendo desenvolvidos para muitos outros problemas escolares,

cognitivos, comportamentais ou interpessoais. Persiste a dúvida sobre se os alunos

ditos com dificuldade de aprendizagem devem ser ensinados e “tratados” de forma

diferente dos restantes alunos e como proceder.

• quanto ao prognóstico – não existe uma clarificação sobre o modo como evoluem as

situações ditas de dificuldade de aprendizagem. Embora os estudos longitudinais e

desenvolvimentistas sejam insuficientes, existem muitos exemplos de uma adequada

superação e integração social, em percursos de vida bem sucedidos ou mesmo

publicamente reconhecidos,

• quando à classificação de tipos e subtipos de dificuldades – com uma tão grande

indefinição conceptual, a heterogeneidade aumenta e multiplicam-se os sistemas e

as propostas de classificação, com base nos mais diferentes critérios.

Ao longo dos anos, nenhuma destas questões foi realmente respondida. Foram

ensaiadas sucessivas definições, sem que o conceito tenha alcançado consenso ou uma

verdadeira operacionalidade. As definições actuais são ainda demasiado latas,

abrangentes e imprecisas. Mesmo ao nível da DSM-IV (1996) a indefinição é

surpreendente. As perturbações da leitura, do cálculo ou da escrita são definidas em

função de critérios, tais como: “substancialmente abaixo do nível esperado”; “interfere

de maneira significativa no rendimento académico”; “dificuldades excessivas” por

comparação com as que seriam habitualmente esperadas noutras situações, por exemplo

no caso de défices sensoriais.

Em Portugal, este conceito tem sido traduzido e utilizado de diferentes modos e

em diferentes acepções, e tal como no estrangeiro, sem uniformidade nem consenso

(Correia, 1991; Fonseca, 1993, 1996; Rebelo, Simões, Fonseca e Ferreira, 1995;

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I. INTRODUÇÃO 27

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Simões, 1996; Simões, Rebelo, Ferreira e Fonseca, 1995). No dia a dia, as expressões

“dificuldade de aprendizagem” e “problema de aprendizagem” surgem de forma quase

indistinta, a par de outros termos mais específicos (por exemplo: dislexia, disortografia)

ou de outras designações muito mais genéricas e abrangentes (necessidades educativas

especiais, deficiência mental, ensino especial, insucesso escolar). O conceito específico

de “learning disability” tem sido traduzido e desdobrado em múltiplas designações,

utilizadas por vezes com um sentido similar ou designando situações muito diferentes.

Desta situação parece resultar uma enorme dispersão e imprecisão de conceitos e uma

relativa indefinição de competências e responsabilidades dos técnicos e instituições

envolvidas. Pode referir-se a título de exemplo, a dificuldade existente na definição de

planos educativos e na coordenação de meios, técnicos e apoios para alunos ditos com

“necessidades educativas especiais” ou ditos de “ensino especial”.

Por todas estas razões, o campo de estudos sobre dificuldade e distúrbios de

aprendizagem tem vindo a ser classificado como conceptualmente redutor, sem

fundamentação paradigmática sólida, em torno de um construto vago, controverso e

impreciso (Adelman & Taylor, 1988; Heshusius, 1996; Kavale e Forness, 2000; Poplin,

1988a; Stanovich, 1989), talvez apenas um mito ou uma doença imaginária sem

fundamentação empírica adequada (Finlan, 1994, Marinoff, 1999). Urge, portanto,

repensar, discutir e refazer alguns dos pressupostos básicos, comuns a todos os modelos

e geradores de tantos impasses. Nos últimos anos, gradualmente, parece emergir uma

nova perspectiva sobre este problema e sobre este campo de estudos.

Em 1994, Finlan publicou um pequeno livro em que afirmava pela primeira vez

algo de absolutamente radical e inovador: “there is no such thing as a learning

disability” (ob. cit., p.1). Não se conhece nenhum estudo que analise o impacto de uma

obra assim, nem sequer se sabe se algum impacto terá. Mas um texto como o de Finlan,

espelha muitas das preocupações sentidas no campo da investigação, da avaliação e da

intervenção. Não se trata, naturalmente, de negar a existência do problema em si

mesmo, nem de negar a experiência pessoal de dificuldades específicas ou abrangentes.

Trata-se sim de recusar a existência de uma patologia, de um síndrome ou de um

distúrbio específico, por falta de evidências empíricas, por imprecisão, instabilidade e

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menor validade dos critérios de diagnóstico ou mesmo porque ao longo do tempo e

após décadas de investigação contínua a não existir hoje em dia uma definição

consensual, consistente ou esclarecedora.

Sugerem-se, em seguida, alguns contributos possíveis para esta discussão.

1.1.2. A emergência de uma nova perspectiva

“If there is one immutable feature in the landscape of learning disabilities, it is

change.” (Poplin,1988b, p.389)

Poplin descreve e sintetiza desta forma simples, um dos aspectos que melhor

caracteriza o campo de estudo das dificuldades de aprendizagem: a sua mutabilidade, a

instabilidade, a diversidade e multiplicação de propostas que inovam e se renovam.

Refere, tal como tantos outros autores têm feito, a ausência de consenso ou de

uniformidade de critérios, de métodos ou de princípios. E no entanto, associar o

conceito de “Dificuldade de Aprendizagem” à ideia de mudança parece ser muito mais

do que uma boa descrição do estado da investigação científica neste domínio. Sob este

ponto de vista, associar a ideia de mudança a este conceito parece ser uma ideia

essencial, uma associação necessária e, sobretudo, um pressuposto funcional.

Uma ideia essencial, porque a mudança é uma característica intrínseca de toda e

qualquer aprendizagem. Aprender é sempre mudar. Não podemos falar ou descrever

aprendizagens sem referir aquisições e adições, não podemos afirmar que houve

aprendizagem sem observar mudanças, de quantidade ou de qualidade: saber mais,

saber melhor, pensar ou compreender de forma diferente. Toda a aprendizagem se

traduz sempre em mudança. Essa mudança ou mudanças podem ser mais ou menos

superficiais, mais ou menos abrangentes, mais ou menos persistentes. Só a observação

de diferenças atesta que houve aprendizagem.

Uma associação necessária, porque as dificuldades de aprendizagem podem ser

avaliadas e descritas como alterações no decurso desse processo de mudança,

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alterações de ritmo, fluência ou qualidade. Podem ser avaliadas e descritas em função

do modo como divergem de um padrão de aprendizagem (logo, de mudança) dito

“normal”, esperado ou desejado (Francis, Shaywitz, Stuebing, Shaywitz, & Fletcher,

1994).

Um pressuposto funcional, porque pode contribuir para uma associação do

conceito de dificuldade de aprendizagem a algo de transitório, de mutável ou mesmo de

positivo. Ou ainda, porque pode facilitar o processo de recuperação do aluno, pode

ajudar a superar dificuldades, pode facilitar o próprio processo de aprendizagem.

Associar o conceito de dificuldade de aprendizagem à ideia de mudança, defini-lo

como uma característica mutável, circunstancial ou processual, pode facilitar a

superação dessas dificuldades.

O modo como se descreve, classifica ou rotula um aluno tem repercussões e

consequências mais ou menos persistentes. Por um efeito de reactividade, tende a

influenciar o próprio aluno, o meio circundante, o próprio processo de aprendizagem

(Albinger, 1996; Denti & Katz, 1996; Finlan, 1994; Reid & Button, 1996). Sabe-se

como pode determinar expectativas, objectivos, motivos e incentivos. Como esta

classificação pode perdurar ao longo de muito tempo, contribuindo para prejudicar

mesmo as aprendizagens que pretendia promover. Na medida em que se acredite que

uma dificuldade de aprendizagem é uma situação mutável, mais fácil será mobilizar os

professores, os pais, os próprios alunos, para o esforço e investimento na mudança, para

uma mudança no sentido desejado.

Muda-se para melhor, muda-se para pior e muitos alunos parecem, pura e

simplesmente, temer e evitar mudanças, temer e evitar o risco de mudar (Boimare,

2001; Zelan, 1991). Mas quando um aluno é descrito, designado ou “rotulado” como

tendo dificuldades ou distúrbios de aprendizagem, isso tem implicações na forma como

irá evoluir como aluno e como pessoa ao longo do tempo (Francis et al., ob cit.). Hoje

em dia, a generalidade dos esforços de avaliação e classificação das dificuldades de

aprendizagem, centram-se na descrição de deficiências e lacunas específicas,

observadas e registadas num determinado momento, quase como se o aluno aí

permanecesse (assim permanecesse). São visões e formas de classificação de natureza

estática, obtidas por imobilização do aluno num determinado momento do seu percurso

de aprendizagem, num determinado momento do seu processo de desenvolvimento.

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I. INTRODUÇÃO 30

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Tais classificações, se não forem cuidadosamente usadas, podem cristalizar-se no

tempo, perdurar e sobrepor-se ao próprio processo de mudança do aluno. Mas se as

dificuldades de aprendizagem surgirem associadas à noção de mudança, isso pode

colocar-nos nos antípodas de uma noção redutora e limitativa.

Algumas formas e métodos de avaliação visam precisamente uma melhor

percepção de processos, da sua evolução e uma medida da mudança, potencial ou

registada (Keogh, 1994; Meltzer, 1994). Articulam-se e inserem-se no próprio processo

de aprendizagem (avaliação contínua, avaliação formativa), de desenvolvimento

(avaliação operatória) ou em ambos (avaliação dinâmica). Noutros casos, os

procedimentos de avaliação promovem a mudança e ajudam a mantê-la (por ex.: efeito

de reactividade de medidas de auto-registo e de autocontrole). E no entanto, estes

procedimentos parecem estar menos divulgados e ser menos frequentemente usados.

Ter uma dificuldade de aprendizagem pode ser concebido como algo de

transitório, uma etapa num processo de mudança. Abandona-se a noção como um

rótulo que caracteriza de forma estável um aluno para se sugerir a possibilidade de

evolução, de alteração e modificação da situação actual do aluno. Se aprender é mudar,

se as dificuldades de aprendizagem se definem como divergências a um “normal”

processo de mudança, elas próprias mutáveis e em evolução, talvez seja mais fácil

conseguir e produzir essa evolução desejada. Superar dificuldades de aprendizagem

supõe, pressupõe, que se acredite na possibilidade de mudar.

A emergência, nos últimos anos, de novas perspectivas sobre as dificuldades de

aprendizagem, parece inserir-se nesta linha de preocupações e objectivos. São

múltiplos os contributos que têm surgido, provenientes de diferentes perspectivas e de

diferentes autores (Adelman, 1989; Brown, Ash, Rutherford, Nakagawa, Gordon &

Campione, 1993; Hresko, Parmar & Bridges, 1996b; Reid, 1996a).

Referem-se em seguida, numa síntese breve e necessariamente precária, alguns

desses contributos críticos e a forma como, pela sua relevância ou significado, de

algum modo foram influenciando a estrutura deste trabalho.

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I. INTRODUÇÃO 31

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Em primeiro lugar, a noção de que as dificuldades de aprendizagem surgem

apenas em alguns alunos, deve ser alvo de uma cuidadosa reflexão crítica. Este

pressuposto básico tem levado a incontáveis esforços de definição e descrição de

critérios objectivos de diferenciação entre diferentes tipos de alunos. Mas todo esse

esforço não só se tem deparado com inúmeros obstáculos, até ao momento

insuperáveis, como, a ser algum dia bem sucedido, representará uma mera tentativa de

simplificar uma realidade bem mais complexa.

Desde o início do século XX que Dewey, Piaget e muitos outros teóricos da

aprendizagem e da instrução têm vindo a descrever o processo de aprendizagem como

intrinsecamente difícil, e tanto mais difícil quanto maior for a qualidade, profundidade

ou impacto futuro dos resultados dessa aprendizagem.

Se a aprendizagem em sentido estrito pode ser simples e facilmente alcançada,

por modelagem e imitação, por reforço ou repetição, mesmo sem esforço nem

consciência de quem aprende, a aprendizagem em sentido lato, a que coincide com o

desenvolvimento cognitivo do aluno, a que produz mudanças qualitativas significativas,

generalizáveis a outros domínios, essa aprendizagem processa-se no confronto com

problemas, conflitos cognitivos, através de dificuldades e, por vezes, com muito

esforço e empenho pessoal (Morgado, 1997). O grito de “Eureka!”, o prazer de

encontrar uma solução, pode surgir com maior ou menor celeridade, com maior ou

menor intuição. Mesmo Bruner falava do conceito de “educated guess”, não tanto

como uma intuição bravia, imediata, antes como fruto de informação e reflexão. É

assim, por exemplo, no processo de investigação científica; será normal que assim seja

sempre que haja um esforço de verdadeira apreensão pessoal dos conhecimentos

científicos que vão sendo adquiridos. Os percursos de investigação são normalmente

descritos como complexos e morosos, atravessados por inúmeras dificuldades que, por

vezes, se traduzem em oportunidades. E, no entanto, a ideia de que aprender deve ser

simples, rápido e bom, agradável e fácil, parece ser uma noção bastante difundida,

ainda hoje em dia, em alguns grupos sociais. Esta ideia de um “fácil acesso” ao

conhecimento e à aprendizagem, surge talvez num tempo e num contexto de

reafirmação dos direitos individuais (Taylor, 2000), do direito ao prazer e à realização

pessoal, do direito à diferença e à liberdade. Mas não corresponde ao que realmente

sabemos sobre o processo de aprendizagem, dentro ou fora do contexto escolar.

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I. INTRODUÇÃO 32

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Numa cultura de hedonismo e facilidade, onde se vive sem tempo e demasiado

depressa; onde o esforço e o sacrifício tendem a ser considerados contra-natura8, uma

forma de violência arcaica quase impensável numa sociedade moderna e civilizada, que

significado pessoal e social pode ser atribuído a problemas e dificuldades?

Por exemplo, sempre que nos media se fala de avaliação (testes, exames e afins)

parece estar difundida na comunidade estudantil a noção de que a aprendizagem deve

estar isenta de dificuldades, que os alunos têm que se sentir bem na escola e que isso

não vai acontecer nunca se lhes complicarem desnecessariamente a vida, com

problemas, questões, alternativas múltiplas. Mas, por outro lado, sempre que se fala de

qualidade do ensino, outros clamam por maior exigência e rigor, na convicção de que

se as coisas forem demasiado simples não se aprende mesmo nada. Donde, mesmo que

a maioria não aprecie elevadas taxas de insucesso, podemos inferir que também é voz

comum a noção de que, se houver maior dificuldade (se mais dificuldades forem

colocadas ao nível do produto e do processo de aprendizagem), maior será a qualidade

do ensino.

Mas de que “dificuldades” ou de que “facilidades” se fala afinal, em cada um

destes casos? Ser fácil ou ser difícil, parece ser essa a questão, mas o que significa para

cada um dos intervenientes no processo educativo, cada um destes conceitos? Entre as

dificuldades impostas por um ensino dito tradicional e as aparentes facilidades de

outros modelos pedagógicos mais recentes, que significado tem para o senso comum,

“ter” ou sentir dificuldades na aprendizagem?

Muitas narrativas pessoais sugerem que um dos aspectos mais gratificantes de

um processo de aprendizagem decorre do esforço e da superação de dificuldades.

Aprender sabe tanto melhor quanto mais nos empenhamos e esforçamos no processo.

Neste sentido, a crença de que “aprender è fácil” pode, mais do que facilitar, gerar

algumas dificuldades de aprendizagem. Pode, pelo menos, criar falsas expectativas,

fomentar a noção de que “não pode ser normal” quando aprender parece difícil ou

reforçar a ideia de que as dificuldades só acontecem a alguns, porque menos aptos ou

menos ágeis.

8 Com base no princípio de que “o que é natural e espontâneo, sabe sempre bem!”.

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I. INTRODUÇÃO 33

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Em segundo lugar, dicotomizar, dividir os alunos em função de um critério

selectivo (“ter” ou “não ter” dificuldades) não parece coerente com o que sabemos a

partir das teorias psicológicas sobre a aprendizagem; é provavelmente fonte de

profecias auto-realizadas, por um efeito de expectativa social, de Pigmalião ou de

assumpção de um rótulo perene, persistente. Deixam os alunos rotulados de “LD” de o

ser algum dia? Deixam algum dia de se pensar como diferentes? Os meios e

complementos postos ao seu dispor compensam os prejuízos gerados por um sistema de

diferenciação tão precoce como o existente em alguns estabelecimentos de ensino

anglo-saxónicos? Ou, como se ouve tantas vezes em Portugal, evitam os alunos a todo

o custo uma inclusão em salas de apoio ou estudo de que efectivamente necessitavam,

só por não quererem ser vistos como “burros” ou “atrasados”?

Entre perdas e ganhos, parece necessário reflectir sobre a fundamentação

científica, necessidade e funcionalidade de distinguir entre dois (ou mais) grupos de

alunos (Denti & Katz, 1996; Heshusius, 1996).

Ao longo dos anos, as dificuldades de aprendizagem têm sido classificadas de

múltiplas formas e de acordo com múltiplos critérios: em função da operacionalização

do conceito, em função da etiologia a que as dificuldades são atribuídas, em função das

áreas curriculares específicas em que se observa um défice relativo no desempenho do

aluno (Cruz, 1999). Entre estes, pode referir-se, por exemplo, o critério da discrepância

(Berninger & Abbott, 1994). De acordo com este critério, que parece ser até ao

momento o mais frequentemente utilizado, pode dizer-se que existe uma dificuldade de

aprendizagem sempre que se observa um desfasamento considerado significativo entre

o desempenho do aluno numa dada tarefa ou situação e aquilo que seria esperado em

função das suas capacidades intelectuais. Decorre deste critério uma questão que tem

intrigado muitos investigadores, a saber, porque é que alguns alunos de QI médio ou

superior apresentam desempenhos discrepantes em áreas curriculares específicas,

leitura, escrita ou cálculo numérico?

Ora, critérios como este podem até ser usados para a classificação do

desempenho de cada aluno. Convencionado o critério, é possível dizer sobre cada aluno

se o seu desempenho é ou não suficientemente discrepante para se poder considerar a

existência de uma dificuldade de aprendizagem. Mas não só os critérios propostos não

são consensuais dentro da comunidade científica (Stanovich & Stanovich, 1996), como,

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I. INTRODUÇÃO 34

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

sobretudo esta classificação não serve nem à compreensão da natureza do problema,

nem ao planeamento de formas de apoio e intervenção mais eficazes.

Adelman & Taylor (citados por Adelman, 1992) sugeriram em 1986 uma

alternativa poderosa: a existência de três tipos principais de problemas de

aprendizagem, situados ao longo de um contínuo entre problemas causados por factores

exteriores ao aluno (Tipo I) e problemas causados por factores pessoais (Tipo III). No

meio termo, situam-se os problemas de Tipo II, determinados por uma interacção

destas duas ordens de factores, pessoais e situacionais. Podem conceber-se dificuldades

ao longo de todos os pontos do contínuo, correspondendo a diferentes proporções

relativas destas duas ordens de factores.

Esta proposta revelou-se ao tempo extremamente inovadora: a) por considerar

as dificuldades como determinadas por uma interacção muito variável de diferentes

ordens de factores, internos e externos ao próprio aluno; b) por ser a primeira que não

se oferecia para “arrumar” todas as dificuldades num conjunto restrito de categorias

estanques; c) por propor uma categorização centrada nos problemas de aprendizagem e

não na pessoa do aluno. Mesmo assim, nos anos seguintes, muitos dos que citaram e

referiram esta proposta, desvalorizaram estes aspectos essenciais e retiveram sobretudo

a tipologia (Rebelo, 1993). Tendem a esquecer a variabilidade proposta para considerar

cada tipo como uma categoria específica e o conjunto como mais um sistema de

discriminação de dificuldades em classes discretas.

Ora, mesmo em situações de dislexia, situações de distúrbio de aprendizagem

específico muito mais raras e severas do que as dificuldades de aprendizagem comuns,

mesmo em tais situações se podem observar histórias pessoais, percursos escolares e

profissionais de sucesso, ou mesmo de reconhecido valor público (Davis, 1994; Ferri,

Keefe & Gregg, 2001; Fink, 1996; Hearne & Stone, 1996; Lauren, 1997; Reis, Neu &

McGuire, 1997; Ryden, 1997; Thomas, 2000; West, 1996). Sendo assim, como e

porquê insistir tanto na divisão de alunos em função de critérios selectivos e quase

definitivos?

Por fim, a generalidade dos modelos partilha a noção de que as dificuldades de

aprendizagem são uma característica pessoal do aluno, que podem ser observadas,

avaliadas e descritas de forma consistente e persistente, independentemente do meio e

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I. INTRODUÇÃO 35

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

situação de aprendizagem. Excepção feita a algumas perspectivas mais recentes já

referidas (Adelman, 1989,1992; Poplin & Coussin,1996; Reid, 1996a) ou talvez à

perspectiva da cognição distribuída (Perkins, 1993), a generalidade dos modelos sobre

dificuldades de aprendizagem partilha desta noção de carácter individual, intrapessoal,

não sistémica.

“Ter uma dificuldade de aprendizagem” é, na própria expressão verbal, algo que

indica posse, interiorização, apropriação. Tal como se diz que se “tem uma dor de

cabeça”, uma úlcera ou uma epilepsia. Preso à noção de anormalidade, ao carácter

minoritário do que nunca se espera nem deseja que aconteça, o conceito de dificuldade

de aprendizagem ganha uma dimensão ainda mais fatal e intransponível: uma absurda

familiariedade com o conceito de doença ou patologia, de deficiência ou defeito

pessoal. Esta expressão, se usada para definir e caracterizar um aluno, acaba por

contribuir também para uma definição do que se pode esperar e exigir desse aluno. E

isso mais do que tudo parece ser um efeito pernicioso da rotulagem precoce, algo em

completo desfasamento com o que define um modelo psicológico (por oposição ao

modelo médico).

Numa perspectiva psicológica, a depressão, por exemplo, não deve ser

entendida como uma patologia que distingue e caracteriza algumas pessoas. Qualquer

pessoa pode experimentar estados ou momentos de depressão, mais ou menos intensos,

mais ou menos frequentes e persistentes (variando ao longo de um contínuo), em

função da situação, de crenças ou interpretações pessoais sobre a realidade vivida

(Beck, Rush, Shaw & Emery, 1997; Burns, 1992; Ellis, Moseley & Wolfe, 1968;

McMullin, 2000). Deste modo, a depressão não é uma característica anómala que

permite definir de forma estável um grupo de pessoas; pelo contrário, os estados de

depressão dependem da forma como interagimos com cada situação específica, como a

interpretamos e a ela reagimos. A depressão não caracteriza um indivíduo, mas antes

um momento ou uma fase da sua relação com um contexto e com uma situação pessoal.

Sendo assim, porque não dizemos algo de similar sobre as dificuldades de

aprendizagem?

Quando um aluno não permite que os erros ou insucessos influenciem a forma

como avalia a sua capacidade pessoal noutras situações, quando o aluno acredita que

para ter sucesso por vezes é preciso fazer trabalhos difíceis e aborrecidos, mesmo sem

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I. INTRODUÇÃO 36

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vontade e com esforço, quando sabe gerir o tempo e divide tarefas complexas em

etapas menores, quando tem objectivos e projectos de aprendizagem de longo, médio e

de curto prazo, realistas e mobilizadores, quando o aluno acredita e pensa desta forma,

é mais provável que venha a obter bons resultados (Bernard, 1997). O que distingue os

bons dos maus alunos é, nesta perspectiva, essencialmente a forma como pensam e as

consequências que isso tem ao nível dos seus comportamentos, afectos e atitudes. Por

exemplo, a forma como um aluno conceptualiza e interpreta as situações de

aprendizagem e a forma como tudo isso se traduz num discurso interno auto-regulador,

antecede e determina o seu comportamento.

Algumas dessas atitudes, concepções e interpretações tendem a facilitar o

sucesso. Outras, pelo contrário, tendem a prejudicar o desempenho do aluno. Aprender

a pensar e a conceber de forma mais racional e adaptativa pode ser, nesta perspectiva,

um alvo essencial.

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I. INTRODUÇÃO 37

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1.2 . Metacognição, auto-regulação e sucesso escolar.

Tal como se descreveu no capítulo anterior, o conceito de dificuldade de

aprendizagem, tem vindo a sofrer nas últimas décadas, uma evolução significativa.

Para este desenvolvimento, tem vindo a contribuir de forma muito significativa, todo o

trabalho desenvolvido no domínio da metacognição e auto-regulação (Bjorklund &

Miller, 1997; Brown, 1987; Campione, 1987; Cullen, 1985; Flavell, 1987; Harris,

Schmidt & Graham, 1988; Kuhl, 1987; Lopes da Silva & Gonçalves, 1996; Patrick,

1997; Schraw & Moshman, 1995). Pela importância e fecundidade de que se revestem,

analisam-se neste capítulo algumas das relações entre metacognição, auto-regulação e

sucesso escolar. O estudo dessas relações permite uma reflexão mais profunda sobre

alguns dos pressupostos deste trabalho:

• uma clara distinção entre dificuldade e inaptidão.

• continuidade entre sucesso e insucesso.

• distinção entre dificuldade e insucesso escolar.

De uma forma ou de outra, uma dificuldade de aprendizagem é normalmente

associada a uma menor aptidão, a um défice que impede ou prejudica aquilo que um

aluno é capaz de fazer ou de aprender. Como vimos anteriormente, as dificuldades são

muitas vezes concebidas como patologias, consequência de lesões ou de disfunções

neurológicas específicas, como insuficiências ou incapacidades. No entanto, não parece

necessário nem útil entender assim.

Vários estudos e vários autores têm tentado distinguir de forma clara entre

dificuldade e inaptidão. Algumas dificuldades de aprendizagem podem ocorrer em

alunos excepcionalmente aptos ou dotados (Reis, Neu & McGuire, 1977; Rodrigues,

1997). São repetidamente referidos alguns nomes célebres em diversos domínios

científicos e artísticos, de Leonardo da Vinci a Einstein, de Walt Disney a Tom Cruise,

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I. INTRODUÇÃO 38

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como exemplos e casos de dificuldade de aprendizagem em pessoas de aptidão

excepcional. São, por vezes, citados como modelos de sucesso para incentivo junto de

alunos com um diagnóstico de distúrbio ou dificuldade específica.

Além disso, neste trabalho pressupõe-se a inexistência de qualquer

descontinuidade específica entre sucesso e insucesso escolar. Isto é, pressupõe-se que o

sucesso ou o insucesso que se obtêm na escola podem ser explicados por factores da

mesma natureza, ou mesmo por factores comuns. Os mesmos contributos que, na área

da metacognição e da auto-regulação permitem determinar condições e factores de

sucesso, podem ser fundamentais para a compreensão de algumas das causas do

insucesso escolar.

Sucesso e insucesso são extremos de um mesmo contínuo. A posição relativa de

cada aluno ao longo desse contínuo, pode variar em função de um juízo de valor sobre

a qualidade do seu desempenho, que depende da conjugação de múltiplos factores, de

natureza pessoal ou situacional. Mas, também pode variar em função de critérios e

convenções, mesmo na ausência de alterações ou diferenças, reais e/ou significativas.

Esta dependência em relação a critérios e convenções permite salientar um outro

pressuposto fundamental neste trabalho: uma distinção muito clara entre a noção de

“insucesso” e o conceito de “dificuldade (ou dificuldades) de aprendizagem”. Esta

distinção parece, simultaneamente, necessária e útil, sempre que se deseje uma correcta

definição de medidas de apoio e tomada de decisão psicopedagógica ou a preparação de

protocolos e projectos de investigação. Talvez seja esta uma das causas da enorme

diversidade de resultados em muitos estudos de incidência sobre dificuldades de

aprendizagem.

A noção de insucesso escolar refere-se ao resultado obtido pelo aluno numa

prova ou situação de avaliação, a meio ou no final de um percurso de aprendizagem. É

um conceito que decorre de uma avaliação, normalmente de carácter sumativo,

ponderados múltiplos factores. Corresponde, em última análise, a uma decisão

pedagógica e administrativa sobre a possibilidade de o aluno transitar ou não ao nível

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I. INTRODUÇÃO 39

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

escolar seguinte. Essa decisão pode reflectir ou não a qualidade do trabalho realizado e

o nível de desempenho alcançado.

Um aluno pode ter insucesso escolar sem ter, de facto, dificuldades de

aprendizagem. Qualquer aluno pode assumir, ou até empenhar-se, na obtenção de maus

resultados escolares: os comportamentos de oposição e afirmação pessoal, perante a

sociedade e perante o grupo, as crises de desenvolvimento e os casos de motivação para

o evitamento do sucesso, são apenas alguns exemplos de situações em que pode ocorrer

insucesso sem dificuldade(s) de aprendizagem9.

Por outro lado, uma história de sucesso escolar pode ocultar algumas

dificuldades de aprendizagem, já compensadas ou que nunca chegam sequer a ser

identificadas.

No primeiro caso, dificuldades compensadas que não se traduzem em insucesso,

podem incluir-se todas as situações de dificuldade, ou mesmo de distúrbio de

aprendizagem, devidamente identificadas, apoiadas e acompanhadas. Mesmo em

situações de distúrbios de aprendizagem específicos, como no caso da hiperactividade

ou dislexia, um diagnóstico precoce e uma adequada estimulação, podem (e devem)

permitir uma adequada compensação (e superação) das dificuldades do aluno, antes da

observação de qualquer forma de insucesso. Em Portugal, o aluno com dificuldades

específicas pode ser integrado em percursos escolares ditos normais, mesmo que por

vezes seja necessário recorrer a medidas de excepção, de acordo com a legislação em

vigor (Almeida, 1996; Boavida & Barreira, 1992; Cadima, Gregório, Pires, Ortega &

Horta, 1997; Lobo, 1998; Sanches, 1995). Existem recursos que permitem o apoio e o

acompanhamento ao aluno, que oferecem oportunidade de compensação e superação

das dificuldades identificadas. Também do ponto de vista do legislador, dificuldade não

tem de ser sinónimo de insucesso.

No segundo caso, situam-se todas as situações de dificuldades nunca

reconhecidas ou identificadas, pelo próprio aluno ou por quem quer que seja. Por

9 Nos últimos anos, e por razões que se consideram lamentáveis, a comunidade escolar tem vindo

a assistir a um número crescente de alunos que são punidos pelos seus comportamentos disruptivos com

medidas de retenção, suspensão ou exclusão escolar. Estas medidas extremas podem ser aplicadas mesmo

no caso de alunos com aproveitamento efectivo (e não apenas reconhecida capacidade), tal como nalguns

casos é claramente dito aos pais e ao próprio aluno.

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exemplo, alguns alunos fazem todo o percurso escolar sem experimentar insucessos ou

resultados negativos, mantendo (e até reforçando) atitudes de um enorme

perfeccionismo e uma impreparação quase absoluta para o confronto com situações de

menor sucesso. Se o aluno está inserido num ambiente pedagógico sem provas de

avaliação sumativa (ou com uma avaliação excessivamente benévola) pode nunca

identificar nem aprender a lidar com as suas respostas de ansiedade perante a avaliação.

Alguns alunos desenvolvem hábitos e estilos de aprendizagem que respondem

bem à pressão (e à precipitação), deixando para o último momento quase todas as

tarefas escolares. Esta forma de trabalhar pode coexistir com situações de

procrastinação que vão sendo compensadas (e recompensadas) até ao dia em que o

aluno seja finalmente confrontado com situações que lhe exijam outra forma de

trabalhar. A realização de um portfolio, por exemplo, requer registos quase diários ou

pelo menos muito regulares. Uma prova de avaliação com utilização de materiais de

consulta requer a preparação de fichas de leitura, resumos, esquemas ou outros

elementos a consultar. Nestas situações concretas, alguns alunos são levados a

reconhecer pela primeira vez até que ponto se habituaram ao adiamento, ao descuido,

até que ponto carecem de estratégias de aprendizagem, métodos de trabalho e auto-

controle. Só então se tornam aparentes, hábitos até aí ocultos, característicos de

situações de procrastinação.

Naturalmente que estes casos ocorrem com maior frequência em situações de

menor rigor e de menor qualidade pedagógica na avaliação, com uma selecção

demasiado restrita de métodos e estratégias. Se existir uma excessiva e repetida

utilização dos mesmos procedimentos, o grau de sucesso (ou de insucesso) tenderá

sempre a ser analisado sob os mesmos critérios, convencionais e restritos (De

Landsheere, 1976). Se assim for, tanto maior será a probabilidade de que sejam sempre

os mesmos alunos a alcançarem o mesmo tipo de resultados (mais ou menos positivos)

em provas que fazem sempre apelo ao mesmo tipo de aptidões e conteúdos.

A existência de muitos casos em que a legislação em vigor é insuficiente ou

deficientemente aplicada (Alaiz, Gonçalves & Barbosa, 1997; Lobo, 1998) e o

reconhecimento público de que na generalidade das situações a avaliação continua a

incidir sobre as mesmas competências básicas de aprendizagem (que no caso do 1ºCiclo

se poderiam traduzir na expressão clássica: “aprender a ler, a escrever e a contar”),

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Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

também deve reforçar a necessidade de uma clara distinção entre insucesso e

dificuldades de aprendizagem.

Verifica-se, por exemplo, que a escrita, a leitura, o cálculo continuam a dominar

objectivos e critérios de avaliação (Reis, Neu & McGuire, 1997) mesmo nos casos em

que os alunos demonstram maior mestria noutras áreas (desporto, expressão plástica, ou

mesmo uma superioridade relativa da oralidade em relação à escrita e leitura). A

existência de tais indicadores de mestria pode até reforçar a pressão social a que o aluno

está sujeito, porque os insucessos em matérias específicas tendem a ser atribuídos a um

menor empenho. Por outro lado, quase toda a avaliação se centra na análise de produtos

de aprendizagem específicos e circunscritos a uma determinado aspecto curricular. O

processo apenas é considerado de forma indirecta e esporádica. A avaliação sumativa

predomina sobre todas as outras formas de avaliação.

Se, pelo contrário, insucesso e dificuldades surgirem como sinónimos,

potenciam-se situações de desânimo aprendido, de desistência, de abandono, de

exclusão escolar e social. A percentagem de alunos integrados na categoria de

“insucesso” corresponde normalmente, por definição conceptual e estatística, a um

subgrupo de carácter mais ou menos minoritário. Fazer corresponder este grupo ao

grupo de alunos com dificuldades de aprendizagem, tende a restringir excessivamente o

conceito, favorece a discriminação e a rotulação, com custos ao nível da evolução futura

do aluno.

Alguns professores e instituições entendem claramente a necessidade desta

distinção mas fazem-no de forma igualmente negativa e nociva. Reconhecem que nem

todos os alunos com insucesso têm dificuldades de aprendizagem. Mas esta convicção

conduz a uma discriminação ainda maior da minoria restante: aquele número muito

restrito de pobres e lamentáveis alunos que “realmente têm uma dificuldade de

aprendizagem”. No quadro de uma cultura de sucesso, num contexto escolar que tende a

reforçar a competitividade e a excelência relativa, esta forma de conceber as

dificuldades pode transformá-las num estigma, escolar, pessoal e social.

Por outro lado, se as rotinas e práticas de avaliação pedagógica não oferecerem

ao aluno a oportunidade de discriminar entre uma noção global de “sucesso” e a

determinação de algumas das suas dificuldades menos salientes, estas podem

permanecer de forma latente (ou oculta), como factor de risco para o futuro. Se um

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aluno for repetidamente avaliado em provas escritas de natureza reprodutiva, pode não

estar preparado para o confronto com provas de natureza completamente diferente. Um

desempenho escolar brilhante de um jovem candidato a um curso de Medicina,

Arquitectura ou Psicologia, pode não revelar nada sobre as suas aptidões de resolução

de problemas ou de relação interpessoal, aptidões essenciais talvez, na aprendizagem,

em tarefas de grupo ou na interacção clínica (Lindblom-Ylänne, Lonka & Leskinen,

1999).

Em síntese, todas as situações em que se supõe uma relação de equivalência ou

de implicação lógica entre estes dois conceitos (“se o aluno tem insucesso então é

porque há dificuldades de aprendizagem”) podem pecar por imprecisão ou erro lógico e,

sobretudo, podem dificultar a integração e recuperação do aluno.

Neste contexto, a introdução de actividades de ensino e estimulação das

capacidades metacognitivas e de auto-regulação dos alunos, pode promover:

a) uma maior consciência sobre diferenças individuais.

b) um maior auto-conhecimento, reflexão e avaliação de características pessoais.

c) a identificação de problemas e dificuldades comuns a todos os estudantes.

d) a aprendizagem de estratégias para a prevenção e remediação de problemas e

dificuldades.

1.2.1. Tomada de consciência de diferenças individuais.

A estimulação metacognitiva ao serviço da aprendizagem (por vezes também

designadas por meta-aprendizagem) e o desenvolvimento de competências de auto-

regulação, recorrem muitas vezes a exercícios que promovem uma tomada de

consciência de professores e alunos sobre os seus próprios processos e procedimentos

de estudo e aprendizagem (Gibbs, 1981; Loper & Murphy, 1985; Lopes da Silva & Sá,

1989, 1993). Estes exercícios incentivam alunos e professores ao reconhecimento da

existência de diferenças individuais importantes ao nível cognitivo, metacognitivo e

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I. INTRODUÇÃO 43

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

atitudinal. Em muitos casos os participantes são convidados a partilhar experiências

pessoais ou a analisar outros casos, reais ou fictícios. Trata-se de tomar consciência de

que nem todos os alunos aprendem (nem precisam de aprender a aprender) da mesma

forma ou ao mesmo ritmo. Que o resultado final depende não tanto da utilização de

determinados procedimentos (certos e universalmente eficazes) mas antes da forma

como se articulem entre si e se adequem a cada situação concreta e às características

pessoais de cada aluno. Nesta perspectiva, professores e alunos são confrontados com a

inexistência de “boas formas” de fazer ou de estudar, com a ausência de “receitas” ou de

outros procedimentos perfeitos a respeitar de forma impessoal.

Deste modo, produto e processo são analisados em separado, num contexto que

convida à diferença. Cada aluno é incentivado a respeitar as suas próprias características

e a seleccionar as estratégias que lhe pareçam mais convenientes. A norma, a

normalidade, a uniformidade tendem a ser substituídas pela funcionalidade e pela

necessidade de adaptação pessoal. Ultrapassa-se o dualismo do certo e do errado, do

“bom” e do “mau”. Para todos os alunos, com melhores ou piores resultados escolares,

com maior ou menor capacidade, este pode ser um processo de enorme valor formativo.

Aliás, a investigação tem vindo a sugerir que os bons alunos são sobretudo alunos

versáteis e capazes de uma boa adaptação às diferentes situações de aprendizagem

(Entwistle, 1990; Nisbet & Shucksmith, 1986; Reid, 1988). Um (re)conhecimento sobre

a diversidade pode oferecer meios, sugerir ideias, fomentar soluções alternativas. Uma

(re)valorização das diferenças não só respeita os princípios da integração socio-escolar

como está de acordo com os mais elementares princípios éticos de carácter universal. Se

mais nenhuma razão houvesse, estes seriam motivos bastantes para incentivar a inserção

curricular de actividades para a estimulação metacognitiva e para o desenvolvimento de

competências de auto-regulação.

Mas, efectivamente, outras razões podem ainda ser apontadas. Metacognição e

auto-regulação podem relacionar-se com o sucesso ou com o insucesso escolar de outras

formas.

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I. INTRODUÇÃO 44

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

1.2.2. Auto-avaliação e avaliação intra-individual

A identificação de um aluno com dificuldades de aprendizagem decorre muitas

vezes de um processo de avaliação prognóstica, sumativa ou aferida. Em qualquer dos

casos, o desempenho do aluno é comparado com um padrão pré-definido e, de acordo

com um conjunto de critérios de avaliação, considera-se que esse desempenho se situa

aquém do esperado ou do que é exigido em função dos objectivos de um determinado

currículo. Deste modo, a identificação de dificuldades decorre frequentemente da

avaliação de um produto (ou conjunto de produtos) de aprendizagem. Na escola, um

aluno pode ser identificado como um aluno com necessidades educativas especiais não

tanto em função de variáveis processuais intrínsecas mas antes por comparação com um

grupo ou padrão de referência. A observação de discrepâncias ou de desfasamentos

considerados significativos10 pode confundir-se com a observação de outro tipo de

diferenças individuais. Diferenças socioculturais, diferenças ao nível das atitudes, dos

valores, dos interesses, a própria criatividade, originalidade ou rebeldia e nalguns casos

até a sobredotação, podem dar origem a comportamentos diferentes ou a desfasamentos

ao nível do desempenho. De uma forma intuitiva, estas diferenças podem ser

classificadas como distúrbios ou dificuldades de aprendizagem. E por um erro lógico

comum, uma categoria descritiva pode ser facilmente confundida com uma explicação

causal. Por vezes pode passar-se rapidamente de um erro de descrição ou classificação

(por exemplo: “este aluno não tem nada a ver com o resto da turma, é um aluno com

muitas dificuldades”) para um erro de explicação causal (“não aprende porque tem

dificuldades de aprendizagem”). Isto é, uma discrepância ao nível do produto final pode

ser descrita como uma dificuldade de aprendizagem, tal como pode ser explicada por

uma dificuldade de aprendizagem.

10 Em Portugal ainda não existem neste domínio das dificuldades de aprendizagem, normas

específicas que permitam a determinação objectiva de níveis ou critérios de significância. A determinação

da importância ou da gravidade de cada situação decorre essencialmente de critérios subjectivos, em

função de conceitos, atitudes, práticas e experiências pessoais de cada professor ou de normas mais ou

menos implícitas em vigor em cada instituição de ensino.

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I. INTRODUÇÃO 45

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Desta forma intuitiva, a noção de dificuldade de aprendizagem pode ser usada de

forma selectiva, para descrever, classificar ou analisar alunos considerados “difíceis” ou

menos aptos. Mas o papel da escola não é (ou não deve ser) seleccionar ou classificar

alunos, antes ajudá-los a atingir o máximo rendimento possível (Bloom, Hastings &

Madaus, 1971, citados por Lobo, 1998). A comparação com um padrão ou com um

grupo de referência permite a identificação de dificuldades e pode conduzir à introdução

de medidas educativas e estratégias pedagógicas mais eficazes e adequadas. Mas não

pode dispensar outras formas de avaliação mais eficazes na promoção da própria

aprendizagem.

Tal como previsto na legislação em vigor, existem outras modalidades de

avaliação, mais centradas no processo de aprendizagem (avaliação formativa) ou nas

necessidades educativas especiais (NEE) reveladas por cada aluno (avaliação

especializada). Estas modalidades podem assistir e facilitar a aprendizagem (Correia,

1997; Lobo, 1998). Acompanham e orientam os processos e os procedimentos de

acordo com o ritmo de desenvolvimento pessoal do aluno, de acordo com critérios intra-

individuais (o desempenho actual do aluno é comparado com o seu próprio

desempenho em momentos anteriores). Nos casos mais difíceis, uma avaliação

especializada permite determinar características e possibilidades individuais, permite a

formulação de uma programação individualizada que promova o sucesso educativo. Em

todos os outros casos, a avaliação formativa constitui um instrumento essencial, num

acompanhamento sistemático, positivo e contínuo do desempenho individual de cada

aluno. Numa concepção de aprendizagem assistida pela avaliação “a avaliação

formativa é a principal modalidade de avaliação” (Lobo, 1998). Baseando-se por vezes

em resultados provenientes de outras modalidades (diagnóstica, aferida ou sumativa),

exerce essencialmente uma função informativa e reguladora do percurso de

aprendizagem de cada aluno, enquanto este ainda está a decorrer. Situa-se por isso, fora

do binómio sucesso-insucesso. Não serve para classificar produtos, antes para descrever

e qualificar etapas. Neste sentido, pode permitir uma identificação precoce de algumas

dificuldades de aprendizagem ou facilitar uma monitorização sistemática e reguladora

dos procedimentos para a recuperação dos alunos em dificuldade.

A estimulação metacognitiva e os programas de treino para o desenvolvimento

de competências de auto-regulação também promovem a auto-avaliação, a avaliação

contínua, e a comparação intra-individual (comparação do desempenho actual do aluno

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I. INTRODUÇÃO 46

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com o seu próprio desempenho anterior). Os alunos são convidados a desenvolverem

desde logo uma concepção funcionalista e adaptativa das estratégias de aprendizagem.

Não havendo “boas” estratégias nem métodos correctos de aplicação universal, o aluno

tem que aprender a monitorizar o seu desempenho para ir seleccionando as estratégias

mais adequadas ao longo de um percurso de aprendizagem.

Esta forma de avaliação já foi designada por “avaliação formadora” (grupo de

professores e de investigadores da Academia d’ Aix-Marsaille citado por Lobo, 1998)

por comparação com a avaliação formativa. Se esta regula a aprendizagem através de

estratégias pedagógicas geridas pelo professor, na anterior a regulação é assegurada pelo

próprio aluno. O aluno pode aprender a utilizar alguns dos procedimentos e

instrumentos de avaliação habitualmente utilizados pelos professores, tais como:

autocorrecção e revisão de trabalhos escritos (Gonçalves, 1992); preenchimento de

listas de verificação e utilização de escalas de valores (Billingsley, 1988; Irwin &

Bushnell, 1980; Itié, 1987; Przesmycki, 1991, 1994); produção de planos de trabalho, de

sumários, diários e registos de aula (Almeida, 1996). A utilização de todos estes

instrumentos requer algum treino, mas requer sobretudo uma mudança de atitudes: (1)

por parte do aluno, que é incentivado a responsabilizar-se pela sua própria

aprendizagem e a assumir um papel mais activo e autónomo; (2) por parte do professor

que se obriga a dosear a sua participação e controle para dar ao aluno oportunidade de

agir e intervir, de identificar e de aprender a lidar com os seus próprios erros e

dificuldades.

Aprender a auto-avaliar, desenvolver hábitos de auto-monitorização, de auto-

correcção e auto-reforço envolve também todo um processo de reconceptualização

cognitiva e atitudinal de professores e alunos. Compreender até que ponto pode ser

necessário e útil saber como identificar os seus próprios erros, conseguir definir

dificuldades, sentir na prática como isso pode contribuir para aprender melhor e para

aprender a aprender, pode constituir um contributo didáctico adicional: pode promover

uma reconceptualização das noções de erro ou de sucesso, e paralelamente, pode

conduzir a uma reflexão e a uma redescoberta da noção de dificuldade de aprendizagem.

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I. INTRODUÇÃO 47

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1.2.3. Identificação de problemas.

Em linguagem corrente a noção de problema tem geralmente uma conotação

negativa. Em educação, a criação de situações problemáticas pode estimular o

desenvolvimento cognitivo dos alunos, a descoberta de conceitos, a generalização e

aplicação de conhecimentos a novas tarefas, a curiosidade e a vontade de saber. A este

nível a formulação de um problema corresponde a uma primeira etapa num processo de

aprendizagem, condição sine qua non para o prosseguimento com um esforço de auto-

regulação e desenvolvimento pessoal. A introdução de conflitos cognitivos, a

aprendizagem pela descoberta ou baseada na resolução de problemas, decorrem de

alguns dos pressupostos fundamentais numa perspectiva cognitivo-construtivista

(Gredler, 1997). Esta pode ser aplicada na aprendizagem de conceitos científicos, na

convicção de que para aprender ciência, o ensino deve assemelhar-se com os

procedimentos de investigação científica (Abrams, 1998; Bruner, 1998; Canavarro,

1999). Ou, pode ser aplicada a aprendizagens no domínio interpessoal e sociocognitivo

(Ashman & Conway, 1997; Lopes da Silva, 1985), ao desenvolvimento metacognitivo

e em programas de treino de competências de auto-regulação (Loper & Murphy, 1985;

Palincsar & Brown, 1989).

Quando se trata de aprender a aprender, a identificação de problemas é condição

necessária para a descoberta e implementação de estratégias de aprendizagem mais

eficazes. O problema identificado é um estímulo discriminativo. Sinaliza uma situação

que requer uma tomada de consciência e uma análise da natureza das tarefas e das

características do aluno.

No início dos programas de treino de estratégias de aprendizagem, muitos

alunos se interrogam sobre a possibilidade de uma constante auto-regulação, de um

constante esforço de auto-monitorização e autocontrole. De facto, um constante

envolvimento em actividades metacognitivas e auto-regulatórias pode inclusivamente

prejudicar o processo de aprendizagem, na sua fluência e na sua eficácia. Ler um texto,

expor um tema, escrever uma composição, são actividades que podem ser prejudicadas

por um permanente esforço de auto-observação e auto-avaliação. Os treinos permitem

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I. INTRODUÇÃO 48

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desenvolver aptidões, estratégias e atitudes que acompanham e influenciam todos os

processos de aprendizagem de forma intuitiva e espontânea, por hábito e rotina, sem

necessidade de um esforço realmente consciente. Aptidões, estratégias e atitudes a que

é necessário recorrer de forma consciente e auto-regulada em situações de dificuldade,

perante problemas e insucessos.

Nesta perspectiva, professores e alunos precisam de repensar o papel da

identificação de problemas na aprendizagem.

Quando se trata de avaliar, de tentar corrigir erros ou deficiências num

determinado trabalho, a identificação de problemas pode constituir uma oportunidade e

um desafio. Oportunidade, porque só os problemas não identificados nos impedem de

tentar melhorar a situação. Desafio, quando a motivação cresce no esforço de vencer ou

ultrapassar obstáculos. Neste sentido, a identificação de problemas, de dificuldades,

erros e insucessos, pode ser extremamente importante e útil no desenvolvimento de

qualquer percurso de aprendizagem (Antunes, 1998; Edge, 1996; Keefe, 1986;

Morgado, 1997; Swanson, 1990, 1996). É este pressuposto fundamental que orienta a

avaliação formativa e formadora, e que está subjacente à necessidade de estimular

competências metacognitivas e desenvolver a capacidade de auto-regulação. O papel

dos erros e insucessos, dos problemas e das dificuldades pode ser revisto,

reconceptualizado, redescoberto (Goodnow, 1996).

Mais do que um mal a evitar, ocultar e punir, erros e dificuldades podem ser

indicadores preciosos na interacção professor aluno. Tal como no método clínico dos

diálogos conduzidos por Piaget, pensar sobre um problema, analisar respostas e contra-

respostas, permite chegar a um conhecimento mais profundo sobre processos e

estruturas de pensamento. Numa perspectiva construtivista, ajudar um aluno a aprender

é também entender a forma como pensa e concebe, entender que ideias prévias

transporta consigo e o que é necessário para que desenvolva concepções mais

elaboradas e fundamentadas (Morgado, 1997).

Além disso, no pensamento intuitivo ou no método da descoberta, na revisão do

texto escrito ou nos procedimentos de auto-questionação, é preciso estar preparado,

aceitar e estar disponível para a possibilidade de errar. Para alguns alunos (e até para

alguns professores) a vontade de evitar o insucesso, a obrigação de evitar erros, pode

levantar inibições e promover reacções de evitamento. Inibem-se dúvidas porque

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I. INTRODUÇÃO 49

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podem revelar o que ainda não se sabe. Não se fazem perguntas e evita-se até o que se

desejava saber, porque pode ser ridículo e é melhor ficar calado. Inibem-se respostas,

não vá estar errado o que se ia dizer. Inibem-se intuições, porque nunca se tem a

certeza. Inibem-se rasuras, porque vai ficar feio. Inibem-se interesses, vontades,

projectos de fazer e de aprender, porque nunca se sabe, porque pode correr mal.

E no entanto, aprender envolve sempre tantos riscos. Alguns estudantes mais

maduros compreendem a necessidade de pôr em causa ideias prévias e correr o risco de

mudar. É assim mesmo que se referem à aprendizagem quando em estudos

fenomenológicos sobre concepções de aprendizagem dizem que “aprender é ver-se a si

próprio e ao mundo de forma qualitativamente diferente” (Saljö, 1979, citado por

Stevenson e Palmer, 1994). Aprender é mudar, correr o risco de mudar (Zelan, 1991).

Evitar riscos, evitar problemas e dificuldades, é até certo ponto, evitar aprender,

descobrir, inovar.

1.2.4. Aprendizagem de estratégias de resolução de problemas

Talvez uma das razões mais frequentemente apontadas para o evitamento de

problemas seja o receio ou até a certeza de nada poder fazer. Pensa-se muitas vezes que

as coisas são como são e que olhar para os problemas só serve para criar angústias e

desmoralizar. Quando se acredita que não há nada a fazer, quando não se acredita na

possibilidade ou na vantagem de mudar, de fazer ou ser diferente, o problema é um

fardo. Entre tentar mudar as coisas ou aceitá-las tal como são, a passividade convida a

optar pelo mal menor. Porque mal maior seria gastar tempo, energias e esforço a tentar

resolver problemas para que não se conhece remédio nem se vê solução.

Quem assim pensa, participa em actividades de treino metacognitivo de uma

forma muito passiva ou desmotivada. Pensar no que de melhor e de pior caracteriza

uma determinada situação de aprendizagem (Gibbs, 1981), por exemplo, pode parecer

mais um exercício académico do que uma necessidade real.

As intervenções e os programas de treino para o desenvolvimento da capacidade

de revisão do texto escrito, por exemplo, podem ajudar o aluno a descobrir a sua

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I. INTRODUÇÃO 50

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própria capacidade confronto e de resolução de problemas, na escrita como noutras

tarefas de aprendizagem (Gonçalves, 1994).

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I. INTRODUÇÃO 51

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1.3. Intervenções psicopedagógicas para o desenvolvimento de competências

de auto-regulação: o papel das concepções e crenças pessoais.

Numa perspectiva cognitiva e construtivista, a aprendizagem depende da

construção activa de quem aprende. A aquisição de conhecimentos requer a organização e

a interpretação das experiências de aprendizagem. Os alunos que se sentem mais

responsáveis pela sua própria aprendizagem, e que nela se envolvem mais activamente,

tendem a estar mais motivados e a obter maior sucesso (e.g. Adelman e Taylor, 1990;

Brown, 1988; Paris e Byrnes, 1989). O desenvolvimento de competências de auto-

regulação e controle executivo surge como pré-requisito de uma aprendizagem académica

mais eficaz, autónoma e motivadora (e.g. Swanson, 1990).

Muitos alunos vão desenvolvendo, de forma natural e espontânea, as suas

capacidades de auto-regulação e adquirindo estratégias de aprendizagem que lhes

permitem aprender de uma forma mais produtiva, autónoma e adaptada. Noutros casos,

no entanto, este desenvolvimento parece estar dificultado. Verificam-se défices que

dificultam a aprendizagem ou, pelo menos, não optimizam as possibilidades do aluno nem

facilitam a resolução de problemas específicos. A superação desses défices pode ser

facilitada pela intervenção do professor ou através de intervenções complementares

específicas.

Nesta secção, sintetizam-se alguns princípios orientadores de qualquer intervenção

psicopedagógica para o desenvolvimento de capacidades metacognitivas e de auto-

regulação, integradas ou não no contexto da sala de aula. Referem-se exemplos de

procedimentos instrucionais e alguns programas de treino, nomeadamente para o

desenvolvimento da capacidade de aprendizagem a partir de textos lidos (monitorização e

compreensão da leitura) ou produzidos pelo próprio aluno (composição escrita).

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I. INTRODUÇÃO 52

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1.3.1. Auto-regulação e aprendizagem em contexto escolar

Ao longo das últimas décadas, vários autores têm contribuído para o

desenvolvimento de modelos de aprendizagem que atribuem a quem aprende um papel

activo (e não meramente reactivo).

Numa perspectiva tradicional, cabe ao professor seleccionar e adaptar as situações

de aprendizagem em função das características de cada aluno. O papel do professor pode

ser concebido como o de alguém que deliberadamente demonstra e modela um conjunto

de habilidades e saberes (Olson & Bruner, 1996). Nesta perspectiva, pressupõe-se que o

professor sabe o que o aluno deve aprender, quando e como, e conhece as melhores

formas de o fazer chegar a essa aprendizagem. O professor conduz de acordo com um

plano pré-estabelecido, o aluno é conduzido. O professor transmite e ensina, demonstra e

expõe. O aluno imita, absorve, apreende, acumula saber e compreensão.

De modo diferente, as teorias de aprendizagem autoregulada consideram que cada

aluno pode aprender a aprender, isto é, pode aprender a seleccionar activamente as

estratégias metacognitivas e motivacionais que mais se adequem a cada tarefa, em função

de características e de objectivos pessoais. Considera-se que cada aluno pode participar

activamente na construção (estruturação) dos seus próprios ambientes de aprendizagem,

apesar (ou em função) das suas limitações cognitivas, socio-culturais, académicas ou

situacionais (Brown, 1988; Bruner, 1999; Meichenbaum, 1990; Whitman, 1990; Wong,

1986; Zimmerman e Shunck, 1989).

De facto, para a maior parte dos autores, os processos de auto-regulação não estão

isentos da influência de factores ambientais e situacionais (Rohrkemper, 1989; Schunk,

1989; Zimmerman, 1989a). Mas, o modo como cada estudante se percepciona a si

mesmo, o modo como concebe o seu papel e os próprios processos de aprendizagem,

aquilo que o motiva, o modo como usa e coordena diferentes estratégias, constituem

determinantes essenciais do seu desempenho académico, em qualquer dos seus domínios:

estudo a partir de textos, escrita ou raciocínio científico (e.g. Brown et al., 1983;

Zimmerman, 1989b).

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Uma aprendizagem bem sucedida evolui em equilíbrio homeostático; supõe uma

constante monitorização dos processos e dos (in)sucessos e a capacidade de lhes

responder de forma adequada (pela selecção e gestão de processos executivos que

permitam resolver os problemas detectados). Os ajustamentos e correcções que vão sendo

efectuados podem ocorrer a diferentes níveis, variando entre mudanças cognitivas (por

exemplo: auto-reforço, alteração de expectativas de auto-eficácia), modificações de

comportamento (substituição da estratégia de aprendizagem em uso, verbalizações,

pausas, etc.) e alterações no ambiente de aprendizagem (mudança de local de trabalho,

busca de materiais, etc.). A utilidade e eficácia destes ajustamentos é, por sua vez,

monitorizada (observada, avaliada...) para determinar se é necessário proceder a novas

alterações. De forma genérica, os procedimentos de automonitorização ajudam a prevenir,

permitem a detecção precoce de problemas de aprendizagem, podem facilitar e motivar

para a mudança (Schunk, 1989; Zimmerman, 1989a); em associação com outros

processos executivos (planeamento, análise e modificação), tornam possível um maior

controle sobre as situações, processos e estratégias necessários à aprendizagem (e.g.

Lawson, 1984).

No entanto, verifica-se que muitos alunos mantêm uma atitude passiva. Mesmo

quando confrontados com dificuldades específicas, parecem não saber como as

ultrapassar. Os alunos menos bem sucedidos revelam um domínio inferior de estratégias e

menor capacidade metacognitiva; apresentam dificuldades de auto-regulação e de controle

executivo (Campione, 1987; Swanson, 1990).

As dificuldades de auto-regulação têm sido associadas a aspectos característicos

do nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos: egocentrismo, dificuldades de

utilização da linguagem na regulação do comportamento (mediação cognitiva) e ausência

metacognitiva (Flavell, 1976; Paris e Byrnes, 1989; Scardamalia e Bereiter, 1985).

Quando os alunos atingem níveis de desenvolvimento que lhes permitem recorrer

a competências de aprendizagem autoregulada, as deficiências de desempenho têm que ser

atribuídas a outro tipo de factores (Zimmerman, 1989b):

• os alunos não consciencializaram a necessidade ou não acreditam na eficácia de

procedimentos de auto-regulação no contexto de aprendizagem em que estão inseridos

("não vale a pena");

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• os alunos não acreditam na sua própria capacidade de levar a bom termo tais

procedimentos de aprendizagem ("valia a pena mas eu não sou capaz");

• os alunos não estão suficientemente motivados para aprender ou para alcançar um

determinado objectivo ("talvez fosse bom, mas não merece o esforço").

Em resumo, a aquisição de competências de auto-regulação parece estar

dependente de factores de desenvolvimento e de interacção social, podendo ocorrer mais

ou menos espontaneamente, por observação ou descoberta de soluções para problemas

que as situações de aprendizagem vão colocando. Ou pode exigir treino e incentivos

específicos. Além disso, o domínio de competências de auto-regulação parece ser

condição necessária mas não suficiente para um desempenho bem sucedido (Lopes da

Silva & Sá, 1997). Vários factores cognitivos podem interferir ou inviabilizar um

investimento pessoal no exercício de procedimentos de aprendizagem autoregulados

(interesses e valores, crenças, concepções, atribuições, expectativas, objectivos e projectos

pessoais, etc.).

Os programas para o desenvolvimento de capacidades de auto-regulação, deverão

em primeiro lugar, adequar-se ao nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos; em

segundo lugar, desenvolver competências de pré-requisito, nomeadamente, a

descentração, o pensamento alternativo, processos de tomada de decisão e de resolução de

problemas e competências metacognitivas; por último, criar condições que facilitem um

desempenho académico mais adaptativo e eficaz. Neste aspecto, podem referir-se, por

exemplo, a necessidade de promover a mudança de atitudes, crenças e concepções em

relação à aprendizagem (modificação de concepções de aprendizagem (e.g. Gibbs, 1981) e

a introdução de treinos de reatribuição causal (e.g. Groteluschen, Borkowsky e Hale,

1990). Sugere-se, além disso, a importância de proporcionar aos alunos, experiências de

sucesso no controle pessoal da aprendizagem (desenvolvimento da auto-eficácia (e.g.

Graham e Harris, 1989a). Outros programas procuram sobretudo o desenvolvimento de

uma maior auto-estima e auto-aceitação (e.g. Pope, McHale e Craighead, 1988)) sem

esquecer a necessidade de motivar para a aprendizagem, substituindo gradualmente

factores de motivação extrínseca por outros de natureza intrínseca (e.g. Lepper e Hodell,

1989).

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1.3.2. Procedimentos de intervenção: princípios gerais

A investigação neste domínio tem enfatizado a necessidade de programas de

intervenção psicopedagógica que associem instrução e prática de estratégias de

aprendizagem e que desenvolvam competências de auto-regulação.

Um programa de treino não pode limitar-se ao ensino de estratégias específicas.

Não basta "saber o que fazer" (conhecimento declarativo), é necessário "saber como

fazer" (conhecimento processual), quando e com que objectivos aplicar uma determinada

estratégia (conhecimento condicional), o que também significa compreender o seu valor

funcional (Paris, Cross e Lipson, 1984). Revelaram-se vãs as tentativas iniciais de ensinar

habilidades e métodos de estudo de uma forma prescritiva e descontextualizada ("study

skills mouvement", e.g. Nisbet e Shucksmith, 1986). Mesmo que no final de um treino de

métodos de estudo os alunos demonstrem alguma mestria e um maior domínio sobre os

procedimentos ensinados, tendem a ocorrer dificuldades posteriores de manutenção e

generalização (e.g. Groteluschen et al., 1990). Na prática, em situações de aprendizagem

específicas, os alunos preservam procedimentos anteriores, rotinas a que se habituaram.

Todos os métodos ensinados (mesmo se comprovadamente aprendidos) podem

permanecer como mais um conjunto de saberes, estratégias que se conhecem mas que não

se dominam nem integram na prática diária. Mesmo quando se aprendeu a estudar, mesmo

que o aluno saiba exactamente como deve ou pode fazer, isso não significa que na

realidade algo mude nos seus métodos, hábitos e rotinas.

Além disso, os programas de intervenção não podem pretender uniformizar ou

ritualizar procedimentos. Não existem "receitas de bem aprender". Muito pelo contrário:

as estratégias que parecem mais eficazes numa dada situação, para um determinado aluno,

podem não o ser noutros casos, noutras situações. Uma aplicação adequada e eficaz das

estratégias aprendidas requer a sua constante adaptação em função das características

pessoais do aluno, das tarefas e dos objectivos em cada situação (e.g. Swanson, 1990).

Isto só é possível se for assegurado o domínio de competências de auto-regulação. Mas,

para que essas competências sejam mobilizadas pelo próprio aluno, é necessário todo um

esforço e envolvimento pessoal, que depende de factores motivacionais, atitudes, crenças

e concepções pessoais em relação a si próprio e em relação à própria aprendizagem.

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I. INTRODUÇÃO 56

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De forma genérica, Meichenbaum (1986, citando Borkowski & Cavanaugh, 1979)

sugere que os programas de intervenção para o desenvolvimento de competências de auto-

regulação incluam:

a) a identificação e a prática de várias estratégias aplicáveis a diferentes situações

de aprendizagem (sem esquecer aquelas que os alunos já possuem e utilizam).

b) a descoberta de semelhanças entre as situações de treino e os contextos em que

deverá ocorrer a generalização e manutenção das estratégias aprendidas; os alunos devem

poder reconhecer que as estratégias em treino são aplicáveis a diferentes situações de

aprendizagem, similares àquelas com que se confrontam habitualmente.

c) actividades de pesquisa que incentivem o aluno a gerir a sua própria situação de

aprendizagem. Refere-se, por exemplo, a necessidade de assegurar que o aluno consegue

realmente: analisar cada tarefa de aprendizagem específica; utilizar o seu próprio

repertório de estratégias; seleccionar a estratégia mais adequada de acordo com as

exigências da tarefa, objectivos e características pessoais; elaborar um plano;

experimentar, monitorizar e rever a sua aplicação.

Para uma maior eficácia, é ainda necessário que os programas de treino de

estratégias possam assegurar:

a) que os alunos compreendam o valor funcional das estratégias em treino (e.g.

Graham, Harris, MacArthur & Schwartz, 1991) isto é, que tenham oportunidade de

experimentar e de sentir até que ponto podem ser úteis, até que ponto podem ser a

diferença entre os resultados que habitualmente costuma obter e os que desejam. Muitos

alunos manifestam o seu desagrado quando confrontados com a possibilidade de

experimentarem novas estratégias. Por serem novas, por serem complexas e estruturadas,

porque substituem o que estão habituados a fazer mesmo sem pensar, porque não

acreditam que se possa fazer de modo diferente, porque tudo lhes parece muito

complicado e provavelmente inútil, e por muitas outras razões, os alunos podem

percepcionar as estratégias em treino mais como um fardo do que como uma ajuda.

Muitas vezes os métodos de estudo são entendidos não tanto como instrumentos úteis,

facilitadores das situações em que se quer ou precisa de aprender, antes como “mais uma

coisa” que é preciso aprender, com esforço e sem interesse.

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I. INTRODUÇÃO 57

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

b) que os alunos considerem as tarefas seleccionadas para o treino, como

interessantes, similares às situações com que habitualmente se confronta na sua própria

aprendizagem, relevantes e úteis face ao tipo de dificuldades que costuma encontrar. As

situações e exercícios utilizadas durante o treino deverão ser particularmente atraentes e

motivadoras (e.g. Paris, et al., 1984). Aprender a auto-regular a sua aprendizagem

(adquirir estratégias específicas e conseguir um controle executivo) requer grande esforço

e empenho inicial. Na maior parte dos casos, os resultados só começam a tornar-se

visíveis algum tempo depois, à medida que o aluno se vai familiarizando com os

procedimentos de auto-observação e avaliação, com a aplicação de estratégias de

aprendizagem alternativas. De início, tudo pode parecer demasiado novo, intrusivo e

complexo. Torna-se necessário planear formas de apoiar os alunos neste esforço inicial.

As soluções encontradas têm sido múltiplas, incluindo programas de reforço (e auto-

reforço), o recurso a tecnologias de apoio (computador, gravador, máquina de escrever,

etc.), a criação de situações lúdicas (jogo individual ou de equipa) e a preparação de

estímulos discriminativos e auxiliares de memória (cartões, desenhos, esquemas,

metáforas).

c) no caso de utilização de modelos, estes devem ser percebidos pelos alunos

como semelhantes a si mesmos. As estratégias usadas por modelos percebidos como

muito mais (ou muito menos) competentes, tendem a ser consideradas como menos

adequadas ao seu caso pessoal (porque demasiado difíceis ou demasiado fáceis). Os

modelos mais eficazes são "imperfeitos", hesitam, atrapalham-se, precisam de pensar

como vão fazer. Passam por inseguranças e dificuldades e nem sempre obtêm resultados

imediatos. Demonstram o esforço de confronto com novas situações, com a ansiedade,

erros e problemas (e.g. Bandura, 1986). A generalização e a adaptação às características

pessoais pode ser facilitada por modelagem múltipla, quando o modelo não utiliza

consistentemente as mesmas estratégias, as "melhores" estratégias. Pode ser especialmente

interessante ter oportunidade de observar diferentes maneiras de resolver ou de agir numa

determinada situação; ou verificar que situações e problemas diferentes permitem

soluções similares. Os treinos têm usado com frequência o trabalho em grupo de pares,

com e sem a presença de um professor ou monitor (e.g. Paris e Byrnes, 1989; Paris et al.,

1984). A interacção grupal oferece oportunidades de modelagem mútua (e múltipla) entre

sujeitos de características similares, empenhados na realização de tarefas que todos

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I. INTRODUÇÃO 58

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

consideram ao seu alcance, com resultados positivos ao nível da auto-eficácia (Schunk,

1989).

d) por modelagem e em interacção grupal, podem aprender-se estratégias mas

também valores, expectativas, crenças (Bandura, 1986; Olson, 1988). Os alunos não

observam apenas as estratégias que os modelos usam, mas também os resultados que

obtêm, as dificuldades que encontram, o esforço dispendido para as ultrapassar. Entre

outros aspectos, podem estar especialmente atentos às verbalizações e atitudes,

procurando extrair informação sobre "perdas e ganhos". Tudo isto deve ser especialmente

considerado na preparação de verbalizações e comportamentos específicos a modelar, por

exemplo pelo professor, durante um programa de treino. Além disso, o grupo pode

partilhar e discutir concepções e crenças de senso comum, sobre os processos de

aprendizagem de modo geral, e sobre os processos e procedimentos em estudo.

1.3.3. Procedimentos de intervenção: exemplos.

Os procedimentos e programas de intervenção para o desenvolvimento de

estratégias de aprendizagem têm sido alvo de diferentes classificações e sínteses (Lopes da

Silva e Sá, 1993; Paris e Byrnes, 1989; Weinstein e Mayer, 1986; Weinstein, 1988).

A aprendizagem de estratégias pode constituir um objectivo curricular e estar

presente de forma implícita nos materiais e tarefas escolares; pode ser alvo de instrução

pontual, em determinadas situações de aprendizagem; ou pode ocorrer em cursos ou

programas de instrução complementar (e.g. Weinstein, 1988). Os métodos utilizados

variam muito, podendo assumir a forma de instrução directa, trabalho com pares

("tutoring"), modelagem, métodos de facilitação da descoberta e outros (e.g. Paris e

Byrnes, 1989). No fundo, o método de ensino de estratégias de aprendizagem pode variar

tanto quanto o ensino de qualquer outro conteúdo. Entre a exposição e a descoberta, em

trabalho individual ou em grupo, por observação, experimentação ou em trabalho de

projecto, pontualmente ou em programas completamente estruturados, o ensino de

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I. INTRODUÇÃO 59

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

estratégias depende sobretudo das escolhas, concepções e crenças de quem ensina e de

quem aprende.

O conteúdo ou conteúdos ensinados podem também ser muito variados. Podem

incidir em competências mais gerais de autocontrole e auto-regulação em situações de

aprendizagem (“macro-estratégias”) ou focalizar métodos específicos circunscritos a

determinadas tarefas de aprendizagem (também designadas por "micro-estratégias"). O

desenvolvimento de capacidades de auto-regulação permite ao aluno controlar e gerir a

aplicação das estratégias mais específicas. No entanto, as intervenções com objectivos

mais gerais são relativamente menos frequentes. Talvez por o ensino de macro-estratégias

ser mais complexo, e porque, embora mais generalizável, apresenta resultados menos

imediatos e palpáveis. Por exemplo, se para o desenvolvimento da compreensão do texto,

vários programas têm enfatizado o treino de aptidões de auto-regulação (e.g. Brown e

Campione, 1986), no domínio da composição escrita, os treinos têm enfatizado o ensino

de estratégias específicas (Scardamalia e Bereiter, 1986). São relativamente menos

frequentes os programas de treino para o desenvolvimento de capacidades de gestão do

processo de escrita (e.g. Englert, 1989).

Como se referiu, os métodos utilizados envolvem geralmente situações de

interacção verbal e grupal, para estimular a participação activa de cada aluno, permitir

situações de modelagem (mútua e múltipla) e facilitar a descoberta e construção de

soluções pessoalizadas (Gibbs, 1981; Graves, 1983; Palincsar e Brown, 1989). O trabalho

com o grupo de pares parece ser particularmente útil para o desenvolvimento de

competências de revisão de textos pessoais, porque permite ao aluno consciencializar as

características e reacções da audiência (Daiute, 1986; Graham et al., 1991).

Além disso, o desenvolvimento de capacidades de auto-regulação pode ser

facilitado pelo treino de auto-instrução e pelo ensino de autoverbalizações, sob a forma de

perguntas ou de outras expressões orientadoras da acção, reflexão e para o confronto com

erros e insucessos (Lopes da Silva, 1996). A utilização de um discurso mediador, que

acompanha e orienta o trabalho do aluno, tem sido justificada de diferentes modos e com

diferentes objectivos, tais como: desenvolvimento de competências de mediação

cognitiva; manutenção da atenção e monitorização da tarefa; representação e

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I. INTRODUÇÃO 60

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memorização da informação; maior persistência e sistematização na tarefa (Meichenbaum,

1977; Schunk, 1989).

Por exemplo, tem sido sugerido que os escritores falam consigo mesmos durante

os vários sub-processos da escrita, do planeamento à revisão (Daiute, 1986). Esse

discurso, murmurado ou interior, serve à regulação do processo de escrita. Escritores

experientes interiorizaram essas verbalizações, podendo exteriorizá-lo pontualmente ou

quando solicitado (Flower e Hayes, 1980). Para os principiantes, a aquisição de

determinadas autoverbalizações pode ser um contributo importante para o

desenvolvimento de competências de auto-regulação (Daiute, 1986; Englert, 1989).

No domínio da escrita, a auto-questionação foi utilizada para o ensino de

estratégias de detecção e correcção de error ortográficos (Wong, 1986)

Alguns treinos associam o ensino de autoverbalizações com procedimentos de

modelagem e muitos destes procedimentos parecem directa ou indirectamente

influenciados pelo treino de auto-instrução (Meichenbaum, 1977). Controlando as

autoverbalizações produzidas pelo sujeito enquanto age, o treino visa uma modificação do

diálogo interno (mediação cognitiva) que possibilita a (auto)regulação dos

comportamentos.

Tem sido referida a existência de uma enorme proximidade entre os processos

metacognitivos e os processos envolvidos no treino de auto-instrução (Meichenbaum e

Asarnow, 1979). Inicialmente proposto para intervenções cognitivo-comportamentais em

contexto clínico, este treino foi alvo de adaptações múltiplas, para intervenção junto de

crianças e adultos, na prevenção e remediação de uma grande variedade de problemas,

aprendizagem de tarefas específicas e desenvolvimento de competências (e.g. Lopes da

Silva, 1996): impulsividade, hiperactividade, agressividade, delinquência, isolamento

social, ansiedade e dor; desenvolvimento do autocontrole, de aptidões interpessoais e

estratégias de resolução de problemas. Mas tem sido alvo de muitas outras aplicações,

nomeadamente em contexto educacional: dificuldades de compreensão da leitura,

resolução de problemas na realização de tarefas de aprendizagem e confronto com

situações de fracasso , problemas de memorização (Meichenbaum e Asarnow, 1979).

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I. INTRODUÇÃO 61

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

O treino de auto-instrução estimula a capacidade de resolução de problemas e

permite aos alunos a interiorização de determinados indicadores que lhes permitem dar

início a procedimentos de controle executivo, por exemplo, perante uma nova tarefa ou

perante uma situação mais difícil. Permite um domínio de competências de auto-

regulação em áreas e tarefas que anteriormente só poderia realizar sob orientação externa

de outrem, isto é, promove a autonomia do aluno e aumenta a sua capacidade de

adaptação a novas situações. A sua utilização no treino de processos executivos tem-se

mostrado eficaz junto de estudantes com dificuldades de aprendizagem, em diferentes

níveis de escolaridade. Parece ser um método com grandes potencialidades ao nível da

generalização e manutenção dos resultados (Groteluschen et al., 1990).

No domínio da composição escrita, por exemplo, este procedimento foi adaptado e

sucessivamente testado para o treino de estratégias de composição: para o planeamento de

textos narrativos (Harris e Graham, 1985; Graham e Harris, 1989b) e argumentativos

(Graham e Harris, 1989c) e para o desenvolvimento de competências de revisão de textos

pessoais (Gonçalves, 1994; Graham e MacArthur, 1988). Durante o treino os alunos

podem aprender estratégias específicas (de apoio, por exemplo, ao planeamento) e outras

de carácter mais global, para gestão autoregulada de todo o processo de composição

(Graham, MacArthur, Schwartz e Page-Voth, 1992). Os resultados revelam efeitos

positivos não só ao nível dos textos e da utilização das estratégias ensinadas, mas também

ao nível das atitudes em relação à escrita, concepção da tarefa e expectativas de auto-

eficácia.

As dificuldades de aprendizagem no domínio da leitura e da escrita são

insistentemente referidas por professores de todos os níveis e graus de ensino. Talvez por

isso ou talvez porque a escrita e a leitura se constituem como duas tarefas nucleares para a

maioria das situações de aprendizagem, são inúmeros os programas de intervenção que

têm procurado compensar as dificuldades observadas.

De uma forma mais ou menos intuitiva, parece disseminada entre os agentes

educativos a crença numa relação causal entre competências de compreensão e de

produção de textos. É vulgar ouvir-se dizer que os alunos "escrevem mal porque não

lêem", aliciados, como são, por outras formas de expressão (Santos, 1988). Não parece

haver dados de investigação que nos permitam chegar a conclusões seguras sobre este tipo

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I. INTRODUÇÃO 62

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

de asserção, que no mínimo parece pecar pelo seu carácter absoluto e linear. Mas podem

ser múltiplas as relações possíveis entre escrita, leitura e dificuldades de aprendizagem.

Por um efeito de exposição a modelagem múltipla, a leitura pode contribuir para a

aquisição de muitos conhecimentos necessários à produção de textos ou planos de escrita,

nomeadamente quanto a regras, critérios e estruturas, que podem ser utilizados como

referência. Mas a escrita encerra algo de paradoxal. Se, por um lado, permite total

liberdade, por outro, impõe constrangimentos, dificuldades e limitações sem fim. Pode

escrever-se sobre qualquer coisa sob as mais variadas formas e, no entanto, cada palavra,

cada linha redigida, coloca restrições às que se lhe seguem. Não se pode escrever sem ter

sobre o quê, mas quando se começa, não se sabe até onde a escrita nos pode levar.

Escrita e leitura podem ser fonte de aprendizagem ou estar na origem de muitas

dificuldades.

O estudo e a intervenção nos processos de revisão pode servir para ilustrar e

sintetizar muitos dos aspectos que actualmente são considerados como essenciais na

prevenção e remediação de dificuldades de aprendizagem (Gonçalves, 1992).

Os processos de revisão envolvem (e permitem observar) o confronto do aluno

com as suas próprias dificuldades, num exercício que, para ser eficaz, envolve

competências de automonitorização, auto-avaliação e controle executivo de micro e

macro-estratégias (e.g. Daiute, 1985). As actividades de revisão requerem ou podem

incentivar uma maior autonomia e envolvimento (activação) pessoal face a tarefas de

aprendizagem. Quem revê precisa de acreditar que o resultado final também pode

depender de si, do seu próprio esforço; quem experimenta rever, aprende a confrontar-se

com erros, insucessos e problemas que é necessário resolver. A revisão pode contribuir

para o desenvolvimento da capacidade de confronto com dificuldades e para a aquisição

de estratégias de resolução de problemas.

Mas o investimento pessoal na revisão de um texto pode também ser uma

experiência de grande frustração e fadiga. Podem reforçar-se facilmente crenças

irracionais de incapacidade, impotência e (im)perfeição, crenças que tendem a criar

dificuldades à aprendizagem (Bard e Fisher, 1983; Kaplan, 1991; Licht, 1983). A

ansiedade que a revisão gera pode ser evitada pelo recurso e dependência em relação a

revisores externos (por exemplo, evitar reler o que se escreveu ou deixar a revisão ao

cuidado de uma outra pessoa). Mesmo quando se tenta uma revisão pessoal, o cansaço e o

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I. INTRODUÇÃO 63

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esforço dispendidos, podem nunca chegar a traduzir-se em resultados. Em suma,

dificuldades na revisão podem também contribuir para uma menor motivação em relação

à própria escrita.

Escritores bem conhecidos como Hemingway e Charles Darwin desenvolveram

estratégias de regulação e de autocorrecção das suas tarefas de escrita (Stone, 1978 e

Wallace e Pear, 1977, citados por Graham et al. 1991). No entanto, a revisão parece ser

muito pouco solicitada ou estimulada em contexto escolar: raramente se pede um

rascunho de uma composição ou trabalho e, normalmente, a primeira versão entregue pelo

aluno, é aceite como a versão definitiva (e.g. Applebee, 1982; Bartlett, 1982).

Para quem ainda não domina as tarefas de escrita, os treinos para o

desenvolvimento de competências de monitorização, avaliação e controle da qualidade da

escrita podem ser particularmente úteis.

As intervenções referidas na literatura têm sido categorizadas de diferentes modos

(e.g. Fitzgerald, 1987; Scardamalia e Bereiter, 1986). Podem ser sintéticamente agrupadas

em três grupos: (1) ensino directo e indução de estratégias (e.g. Collins e Gentner, 1980;

Bartlett, 1982); (2) programas de treino complementar com recurso a diferentes

metodologias, tais como, auto-instrução (Graham e MacArthur, 1988), facilitação

processual (e.g. Scardamalia, Bereiter e Steinbach, 1984), auto-observação por auto-

questionação (e.g. Beach e Eaton, 1984), por vezes com recurso a processadores de texto

(e.g. Daiute, 1985; Graham e MacArthur, 1988); (3) e propostas instrucionais para

inserção curricular, como por exemplo, a criação de situações de interacção grupal, numa

adaptação do denominado ensino recíproco (Daiute, 1989; Gibbs, 1981; Palincsar e

Brown, 1989).

Programas de intervenção análogos poderiam ser indicados para outras áreas

nuclerares no processo de ensino aprendizagem. A referência específica aos programas

de treino de estratégias de revisão do texto escrito permite ilustrar a estimulação

metacognitiva e o desenvolvimento de competências de auto-regulação num domínio

em que o próprio aluno se expõe e confronta com erros e dificuldades, problemas e

insucessos. Desde há muito que investigadores e docentes constatam como estes treinos

e programas de intervenção podem ser afectados por concepções e crenças pessoais

sobre a aprendizagem, sobre a escrita, sobre as próprias dificuldades.

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I. INTRODUÇÃO 65

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2. Fundamentos para o estudo das concepções e crenças pessoais

sobre dificuldades de aprendizagem.

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2. Fundamentos para o estudo de concepções e crenças pessoais sobre

dificuldades de aprendizagem.

Este capítulo pretende sintetizar algumas das razões e pressupostos fundamentais

para o estudo das concepções e crenças pessoais em geral, e mais especificamente, sobre

dificuldades de aprendizagem. Pretende-se justificar deste modo o interesse e algumas

razões fundamentais que conduziram ao presente estudo, descrevem-se estudos

anteriores neste domínio, bem como alguns métodos e perspectivas de investigação mais

recentes.

O capítulo contem três secções distintas, que abordam respectivamente:

• o ressurgimento, numa perspectiva construtivista, do interesse pelo estudo de uma

psicologia do senso comum, também designada por vezes, como Psicologia Cultural

(“Folk Psychology”).

• estudos anteriores que analisaram especificamente a relação entre crenças pessoais

sobre o conhecimento e a aprendizagem em contexto escolar.

• alguns dos principais métodos actualmente utilizados para a investigação e análise de

concepções e crenças pessoais e de outros aspectos da psicologia do senso comum.

O capítulo tem a seguinte estrutura:

2.1. Relação entre concepções, crenças pessoais e sucesso escolar.

2.2. Crenças pessoais sobre o conhecimento e a aprendizagem.

2.3. Métodos de investigação de concepções e crenças pessoais.

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2.1. Relação entre concepções, crenças pessoais e sucesso escolar.

No início do século passado, Dewey publicou uma série de trabalhos

encorajando professores e outros especialistas na área da educação a perspectivar o

conhecimento e as experiências de aprendizagem do ponto de vista de quem aprende

(Olson & Torrance, 1996). Ao longo do tempo, muitos outros trabalhos no domínio da

Psicologia Educacional têm vindo a reconhecer a necessidade de uma educação que

compreenda e se articule com o desenvolvimento de cada ser humano, no que este

encerra de mais positivo (conceptualização, intuição, mestria, criatividade...) e de mais

constrangedor. A noção de que o desenvolvimento impõe constrangimentos e limites à

aprendizagem, deve ser concebida por um lado, como uma exigência, por outro, como

uma oportunidade11 (Gardner, 1991). Como Bruner referia, numa expressão tantas vezes

mal compreendida, “qualquer disciplina poderá ser honesta e eficazmente ensinada,

numa qualquer forma intelectual, a crianças em qualquer estádio de desenvolvimento”

(Bruner, 1998, p.51). Esta parece ser de facto “uma hipótese audaciosa e essencial”

(Bruner, obra citada).

Essencial porque a cada estádio de desenvolvimento corresponde uma forma

característica de ver o mundo e de o explicar a si próprio. Neste sentido, ensinar exige

a representação da estrutura de cada matéria “nos termos em que a criança vê as coisas”

(Bruner, obra citada).

E pela sua audácia, esta é também uma ideia fascinante. Por um lado, traduz

claramente a noção de que a aprendizagem depende essencialmente de uma correcta e

eficaz adequação a quem aprende (estruturas, esquemas e ideias prévias, concepções e

representações, motivos e valores). Por outro, sugere o carácter universal da

11 “Constraints can assume na even more positive connotation in later life. In my view, it is

constraints that make possible genuine achievements, including human innovation and creativity.”

(Gardner, obra citada, p.262).

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Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

possibilidade de aprender. Todos podem aprender porque tudo pode ser ensinado. A

responsabilidade e o desafio são enormes, mas a potencialidade existe.

Quando assim se sugere, quando assim se concebe e acredita, torna-se

necessário rever as concepções mais clássicas sobre dificuldades de aprendizagem.

Além disso, esta hipótese adiantada por Bruner nos anos 60, reitera a noção de que a

aprendizagem não é nem um processo quantitativo nem um processo cumulativo. Se o

essencial, se a estrutura de qualquer matéria puder ser traduzida na forma mais simples

possível, talvez isso nos ajude a compreender que saber, não é necessariamente saber

mais, e que talvez exista uma diferença essencial entre complexidade e complicação,

entre criar dificuldades (questionar, problematizar, equacionar, colocar em conflito

ideias ou pressupostos) e dificultar.

2.1.1. Perspectiva construtivista e socio-construtivista: implicações para o

domínio das dificuldades de aprendizagem.

Numa perspectiva construtivista, a interdependência é um conceito fundamental

(Canavarro, 1999). Abandonam-se as noções de causalidade linear e um determinismo

simples e unidirecional, quer de natureza exógena quer de natureza endógena12. Um

mesmo factor pode gerar efeitos muito diversos se mediado (observado, avaliado,

interpretado, valorizado ou integrado) de maneiras diferentes. Uma mesma situação

pode ser vivida de forma diferente por diferentes alunos ou até por um mesmo aluno

em momentos diferentes. As noções de ideossincrasia, de mediação cognitiva, de

motivação e volição, as metáforas e as narrativas pessoais são cada vez mais referidas

para enriquecer a compreensão dos processos de aprendizagem, de metacognição e

auto-regulação (Bandura, 1986; Bruner, 1997; Corno, 1994; Meichenbaum, 1990;

Pintrich & Schunk, 1996; Stevenson & Palmer, 1994; Santos & Gonçalves, 1988;

12 Se numa perspectiva radical, alguns criticam o construtivismo por um excesso de centração na

perspectiva e actividade construtiva do próprio aluno (Gergen, 1995; Shotter, 1995), tal não parece

eliminar, em caso algum, a influência determinante da interacção com o meio, físico, social, socio-

cultural (Bauersfeld, 1995; Confrey, 1995).

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I. INTRODUÇÃO 71

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Schunk & Zimmerman, 1994). O determinismo recíproco, a análise de sistemas, a

interacção de factores múltiplos, as perspectivas construtivistas e o pós-modernismo,

que no seu conjunto têm dado origem a tantos contributos para a compreensão da

aprendizagem e do sucesso do aluno, podem também ajudar na compreensão das suas

dificuldades e insucessos (Bruner, 1996; Reid, 1996a).

O trabalho de Piaget e de muitos outros psicólogos do desenvolvimento, de

Vigotsky (1978) a Bruner (1996, 1997, 1998) passando por tantos outros, deveria

encorajar-nos a analisar o conhecimento e as experiências de aprendizagem do ponto de

vista de quem aprende e na descoberta do potencial de aprendizagem de cada um. E no

entanto, os mesmos contributos científicos que poderiam contribuir para a estimulação,

para o desenvolvimento e para a facilitação da aprendizagem, têm sido muitas vezes

usados simplesmente para classificar os alunos em categorias. E, em muitos casos, estas

categorias acabam depois por ser apenas usadas para justificar e legitimar maus

desempenhos, mais do que para os melhorar e compensar (Olson & Torrance, 1996).

Por exemplo, do conjunto dos trabalhos de Piaget no domínio da Epistemologia

Genética, muitos educadores retêm sobretudo a possibilidade de identificar o estádio

de desenvolvimento em que cada aluno se encontra (Bliss, 1995), em detrimento de

muitos outros conceitos que permitiriam uma melhor compreensão e adequação aos

processos de construção de conhecimento e de progressão no desenvolvimento (Piaget,

1973, citado por Gredler, 1997).

Por outro lado, tal como anteriormente afirmámos, décadas de investigação no

domínio das dificuldades de aprendizagem não permitem ainda nem um consenso sobre

tipos e taxonomias nem sobre critérios de avaliação. No entanto, muitos educadores

continuam a desejar sobretudo um diagnóstico diferencial que informe sobre se

efectivamente um determinado aluno “tem ou não tem” uma determinada dificuldade

de aprendizagem.

Ora, como anteriormente se referiu, muito mais do que integrar o aluno numa

categoria específica, importa analisar o seu desempenho no decurso do seu próprio

desenvolvimento; mais do que reiterar o significado normativo de um conjunto de

sintomas, importa determinar o seu potencial de aprendizagem; mais do que precisar o

que o aluno é capaz de fazer hoje, importa identificar o que será capaz de fazer amanhã,

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se criadas as condições necessárias, nomeadamente na interacção com o grupo de pares

e com o educador (Minick, 1987; Stone & Reid, 1994).

Acredita-se muitas vezes que as dificuldades sociais e interpessoais de um aluno

podem ser explicadas por factores individuais, por características do seu modo de

funcionamento psicológico, que se pressupõe como menos ”saudável” ou adequado.

Para outros, a primazia é dada a factores de ordem cultural e ambiental. Numa

perspectiva de senso comum, acredita-se no mito de um ambiente físico (e social)

objectivo que é dado a cada sujeito para que dele se (in)forme (Stone & Reid, 1994).

No entanto, não parece ser esta a perspectiva estática e pré-determinada que

encontramos descrita em Vigotsky nem no construtivismo social.

Indivíduo e meio, físico ou social, interagem desenvolvendo códigos

linguísticos comuns e interiorizando conhecimento a partir de experiências de carácter

social. O funcionamento intrapsicológico deriva de aspectos interpsicológicos. Por isso

será sempre demasiado reducionista entender estes dois planos, o individual e o social,

como antagónicos ou diferenciados, separados por uma fronteira bem determinada e

estática (Wertsch & Penuel, 1996).

O pressuposto de um certo determinismo social assume a existência de uma

moldagem passiva do comportamento individual. O meio determina o indivíduo. Ora,

pelo contrário, toda a interacção com os objectos é socialmente mediada, passa pela

relação (actual ou evocada a partir de experiências anteriores) com o outro (ou outros

significativos). Desenvolve-se no seio de um complexo sistema de inferências e

comunicações, no qual o aluno tem necessariamente um papel activo. O trabalho em

grupo, a relação professor-aluno, o ambiente social da escola são determinantes

poderosos de todas as aprendizagens, mas é o aluno que constrói um sentido a partir de

toda a “estimulação sensível” que o envolve.

Os alunos com dificuldades de aprendizagem, podem sentir de modo particular,

insuficiências e necessidades de apoio e orientação adicional a este nível. Alguns dos

seus comportamentos menos adequados ou eficientes podem decorrer de crenças ou

concepções desadaptadas (ou geradoras de desadaptação). Estes pressupostos pessoais

podem estar associados a deficiências na interpretação de determinadas situações ou a

dificuldades de integração e apreensão do significado de determinadas tarefas ou

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I. INTRODUÇÃO 73

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

interacções. Tais dificuldades não decorrem do contexto em si mesmo nem de

características ou défices individuais estáticos. Antes surgem de forma dinâmica e

interdependente, num jogo muito complexo de interacções, suposições, inferências,

interpretações e atitudes, com base em crenças e concepções, pessoais e de senso

comum.

As concepções e crenças individuais são frequentemente partilhadas,

organizam-se em verdadeiras teorias de senso comum mais ou menos difundidas na

comunidade. Facilitam a adaptação e o funcionamento individual em muitas situações

interpessoais. Na escola também assim é. Existe um corpo de conhecimento implícito,

partilhado no seio do grupo. Mas, por uma razão ou por outra, alguns alunos parecem

não partilhar de aspectos essenciais desse conhecimento tácito, não interpretam ou não

agem em consonância nem de acordo com as expectativas.

No seio do grupo, a comunicação humana evolui frequentemente num ciclo de

tensões e resoluções, numa sobreposição de elementos explícitos e de mensagens

implícitas (Cleeremans, 1997; Stone & Reid, 1994). Nesse equilíbrio, por vezes tão

delicado, entre o que se sabe e o que se adivinha, entre o que nos confunde e o que se

descobre, as dificuldades que o aluno vai encontrando podem contribuir para uma

exclusão, do próprio grupo ou do currículo.

O impacto de tudo o que acontece na sala de aula é imenso e não se

circunscreve ao contexto escolar. O grau de sucesso pessoal na escola está associado

ao sucesso ou ao fracasso na vida como na sociedade (Cousin, Diaz, Flores &

Hernandez, 1996; Vigotsky, 1978). E no entanto, são ainda muito reduzidos os estudos

que investigam a perspectiva pessoal dos próprios alunos a quem foi diagnosticado um

distúrbio ou uma dificuldade de aprendizagem específica. Raramente se têm

investigado casos e histórias de vida (Crozier & Tracey, 2000; Reid & Button, 1996;

Ryden, 1997); relatos e perspectivas pessoais sobre o problema em si mesmo, sobre as

consequências que acarreta no dia-a-dia de quem o vive (consequências instrucionais,

emocionais, motivacionais, relacionais e sociais), sobre as suas expectativas ou sobre as

estratégias pedagógicas que mais os ajudam (Cousin et al.,1996). Até que ponto existe

uma identificação ou não, com o papel e com o estatuto de “aluno com dificuldades”?

Até que ponto cada aluno sente que isso influencia as suas relações com os outros, os

seus projectos ou o seu percurso de vida?

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I. INTRODUÇÃO 74

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Em síntese, numa perspectiva construtivista e socio-construtivista, mais do que

determinar o nível de desenvolvimento e as aptidões ou deficiências que caracterizam

cada aluno, importa determinar em que condições de interacção (consigo mesmo, com

os outros e com os materiais em estudo) é possível promover mudanças.

2.1.2. Psicologia e Pedagogia do senso comum.

Diferentes modos de abordar a aprendizagem, diferentes modos de proporcionar

instrução, reflectem afinal diferentes modos de conceber e de acreditar sobre quem

aprende e quem ensina, como se aprende e como se ensina (Bruner, 1996; Cousin et

al.,1996; Olson e Bruner, 1996). As práticas pedagógicas estão imbuídas de um

conjunto de crenças sobre a mente de quem aprende, sobre a aprendizagem, sobre como

se aprende. Alguns desses pressupostos podem ser contraproducentes, prejudicar a

própria aprendizagem.

Por isso, um conhecimento mais aprofundado de crenças e de concepções de

senso comum de alunos a professores é muito mais do que estabelecer as bases para

uma adequada articulação entre currículo e alunos. Não se trata apenas de compreender

e de empatizar com o ponto de vista ideossincrático de um determinado aluno, ou de

conhecer as ideias prévias de cada um sobre uma dada matéria ou conteúdo. Numa

perspectiva construtivista, deve existir sempre um esforço de articulação entre o que o

aluno já sabe sobre um determinado conceito e o que se espera que aprenda. Partir do

que o aluno já sabe permite seleccionar os meios mais adequados e facilita a integração,

generalização e manutenção das novas aprendizagens (Poplin, 1988a). Isso pode ser

particularmente importante na mudança conceptual e na aprendizagem de conceitos

científicos (ver capítulo 3.1) mas isso não é suficiente.

Neste momento, considera-se o papel das ideias prévias num âmbito mais vasto

e de influência mais difusa. Não se trata apenas de indagar o que se pensa,

intuitivamente ou porque assim se aprendeu a pensar, sobre um determinado conceito.

Trata-se antes de analisar todo um corpo de saber tácito (concepções, crenças e

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I. INTRODUÇÃO 75

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pressupostos de senso comum), partilhado no grupo e na comunidade e que influencia

comportamentos e atitudes de alunos e docentes, face à aprendizagem e, paralelamente,

face a insucessos e dificuldades de aprendizagem (Fontaine e Faria, 1989).

No fundo, todos vemos o que estamos preparados ver, em função do que

acreditamos ou concebemos, do que aprendemos a acreditar e a conceber. A

experiência anterior (ou a falta dela) acompanha-nos em cada situação nova e, de forma

mais ou menos explícita, influencia a forma como agimos, interpretamos,

determinamos ou escolhemos.

2.1.3. Concepções e crenças associadas ao erro.

O papel do erro na aprendizagem é, provavelmente, um dos aspectos mais

distintivos de uma perspectiva construtivista (Poplin, 1988a).

Como vimos, uma perspectiva de senso comum, os erros são um mal a evitar,

devem ser contrariados e feitos desaparecer. De modo geral, acredita-se que a

aprendizagem perfeita decorre sem erros, que os bons alunos erram muito pouco, que

quanto menos se erra mais e melhor se aprende, que tem maior valor o aluno que

menos erra.

Numa perspectiva de determinismo ambiental, o comportamento operante pode

ser aprendido por tentativa e erro se todas as tentativas forem selectivamente

reforçadas, em função da sua semelhança com um comportamento alvo, com os

objectivos definidos. Isto é, devem ser criadas todas as condições necessárias para uma

diminuição da probabilidade de ocorrência de erros e de insucessos. Quando ocorrem,

os erros devem ser especificamente punidos para reduzir a probabilidade de ocorrência

no futuro. Os comportamentos adequados devem ser reforçados e todos os

comportamentos menos bem sucedidos vão sendo progressivamente eliminados por

aproximações sucessivas, extinção, punição ou reforço de comportamentos

incompatíveis.

Ao contrário, numa perspectiva construtivista, o erro é concebido como um

elemento essencial no processo de aprendizagem. As concepções mudam realmente e a

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I. INTRODUÇÃO 76

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

aprendizagem adquire maior qualidade quando os alunos se apercebem de que as

experiências actuais não são inteligíveis ou solúveis com base nos conhecimentos

anteriores de que dispõem. Quando as ideias prévias não respondem nem correspondem

ao que se observa ou às necessidades actuais, é necessário construir novo saber.

Quando se tenta resolver um problema, quando se antecipa uma solução e uma resposta

e se erra (e errando se volta a errar) a preplexidade instala-se e entra-se em conflito

(conflito cognitivo, por exemplo, entre o que se observa e o que se esperava observar).

Descobre-se nesse momento que as concepções e formulações anteriores são

insuficientes, imprecisas ou que estão pura e simplesmente erradas. E esse momento

(inquietante, por vezes quase doloroso) é também o momento da oportunidade e do

desafio: na procura de soluções novas, na procura de respostas para incongruências

aparentemente inexplicáveis o aluno pode reencontrar o equilíbrio num nível

qualitativamente superior (Limón, 2001). O confronto com o que se revela

incongruente ou errado, pode ser ocasião de desenvolvimento cognitivo e de

aprendizagem, no seu sentido mais profundo (construção de mudanças conceptuais e

estruturais).

Naturalmente que todo este processo só é possível se o conhecimento anterior

tiver sido adquirido de forma activa, de modo a que o próprio aluno atente, detecte o

problema, analise o erro, aceite a limitação do que até aí suponha estar correcto. Isto é,

o erro só exerce esta função positiva se o aluno naturalmente tiver sido levado a

conceber o conhecimento como um processo integrado e integrador (no binómio

assimilação e acomodação), se tiver desenvolvido uma atitude activa e (re)construtiva.

Além disso, do ponto de vista atitudinal e emocional, o aluno precisa de acreditar (e de

confiar) em si próprio ao ponto de correr o risco de perceber que errou, de enfrentar os

seus próprios erros, de ensaiar novas soluções, mesmo correndo o risco de voltar a errar

(Boimare, 2001; Zelan, 1991). Nesse caso, o aluno pode elaborar e reorganizar o que

julgava saber, e conseguirá provavelmente identificar aspectos essenciais, associar e

relacionar factos e informações. Poderá ir para além da informação dada (Bruner &

Anglin, 1973).

Naturalmente que todo este processo só é possível se o professor em presença

acreditar em tudo e isto e conceber assim. Um professor que conceba de acordo com

uma perspectiva construtivista não procura uma aprendizagem isenta de erros. Pelo

contrário, procura criar ambientes e situações em que os erros possam emergir, possam

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I. INTRODUÇÃO 77

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

ser identificados, partilhados e analisados13. Valorizam-se sobretudo aqueles erros que

podem informar sobre o próprio processo de aprendizagem, os que podem ajudar a

clarificar pressupostos conceptuais que impedem a progressão do aluno. Tal como se

observa nos diálogos clínicos conduzidos por Piaget, perguntar de forma que permita

observar erros, detectar incongruências, e depois analisar cuidadosamente os

pressupostos subjacentes, torna-se muito mais informativo sobre o nível conceptual do

aluno, do que aceitar simplesmente uma resposta formalmente certa. Enquanto numa

perspectiva reducionista os alunos são penalizados sobretudo por imprecisões e erros

formais (por exemplo, erros ortográficos, tabuada e erros de cálculo), numa perspectiva

construtivista valorizam-se sobretudo erros conceptuais, reveladores de processos

cognitivos de ordem superior (por exemplo, estrutura e selecção de conteúdos, noção

de número e utilização funcional das operações). Estas opções tornam-se salientes

quando se preparam provas de avaliação, quando se seleccionam questões e critérios.

Concepções e crenças determinam o tipo de erros que mais se valoriza e influenciam a

selecção de estratégias de aprendizagem que os identificam. E, deste modo, podem

influenciar de forma determinante que alunos serão provavelmente identificados como

tendo dificuldades de aprendizagem e o tipo de dificuldades a que cada professor

tenderá a estar atento.

Numa perspectiva construtivista, muitas das coisas que consideramos

vulgarmente como erros, como problemas e dificuldades de aprendizagem, são

efectivamente sinais de evolução processual, sinais de uma efectiva aprendizagem14

(Edge, 1996) e como tal podem e devem ser valorizadas.

13 Ao contrário, numa perspectiva tradicional, os erros são algo a ocultar, a disfarçar, a apagar, a

esquecer. Que ninguém veja nem repare. Quando notados os erros são riscados, salientados a traços

vermelhos, punidos e enfatizados de forma negativa. Por vezes são até motivo de escândalo e exposição

pública, como se fosse inconcebível alguém poder errar assim... 14 Por exemplo, a qualidade de escrita de um aluno pode parecer prejudicada quando este se

decide a mudar as suas estratégias de composição. Enquanto procura novas formas de planear, produzir

ou rever o texto, o produto escrito pode revelar insuficiências e dificuldades que não constituem

realmente uma dificuldade. Trata-se apenas de uma espécie de “efeito secundário” de um esforço de

aprendizagem e devem ser interpretadas como uma etapa característica de todas as situações de aquisição

de novas estratégias.

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I. INTRODUÇÃO 78

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

No ensino recíproco, no trabalho de grupo, no trabalho de projecto, no trabalho

em pares e em tantas outras metodologias em que se pretende fomentar a colaboração,

os alunos são encorajados a assumir um papel activo na avaliação do seu próprio

trabalho e do trabalho alheio. Nessas ocasiões, quando se mudam procedimentos mas

as crenças e concepções persistem, assiste-se por vezes a verdadeiros autos de fé em

que o grupo de “crentes” (chamados, por exemplo, a ajuizar sobre pecadilhos e outras

faltas disciplinares) se armam de convicções inabaláveis, enfatizam os erros, nada

perdoam e tudo condenam, sem dó nem piedade.

2.1.3. Hábitos mentais

“achieving children think in ways that are different from children who

underachieve.” (Bernard, 1997, p.xii)

Algumas tendências ou hábitos mentais podem favorecer o sucesso e a

adaptação pessoal a qualquer situações de aprendizagem (Bernard, 1997). Na

sociedade, na escola, em família, cada aluno vai aprendendo, por modelagem e

contingências de reforço, a reagir de determinadas formas. Bernard introduziu a

designação de “hábito mental” (Habit of the Mind, obra citada, p.128) para ajudar pais

e professores na identificação de práticas educacionais menos favoráveis e de maior

risco, sugerindo tendências cognitivas mais adaptativas e facilitadoras do sucesso

escolar.

Um “hábito mental” é uma tendência pessoal para pensar de uma determinada

forma. E pensar assim, dá origem a emoções e reacções comportamentais mais e menos

funcionais, de maior ou menor risco de insucesso. Perante uma tarefa ou perante uma

dificuldade, a forma como o aluno pensa (a forma como o aluno se habituou a pensar)

determinada a forma como se vai sentir e reagir, aumenta ou diminui a probabilidade de

superação e de êxito.

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I. INTRODUÇÃO 79

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

São onze os hábitos ou tendências identificados por Bernard (1997), que podem

definir-se de forma bipolar, entre um extremo mais favorável e um oposto de maior

risco:

1. Auto aceitação (versus auto depreciação) refere-se à capacidade de separar

acções e comportamentos de juízos de valor pessoal. Até que ponto o aluno

consegue aceitar-se a si próprio quando tem um mau desempenho, uma má

nota, quando é rejeitado ou criticado por outros.

2. Tomada de risco (versus perfeccionismo) refere-se ao grau em que o aluno

acredita que experimentar tarefas novas e difíceis e, naturalmente, cometer

erros, é necessário, é positivo, faz parte da aprendizagem. Ou, pelo contrário,

até que ponto o aluno sente a necessidade absoluta de ser sempre perfeito,

mesmo em tarefas menos importantes.

3. Independência (versus necessidade de aprovação), relaciona-se com auto

aceitação e refere-se ao grau em que o aluno consegue separar a sua própria

avaliação de valor pessoal de juízos negativos de outras pessoas. Até que

ponto reconhece e aceita que a aprovação dos outros (pais, professores, pares)

pode ser desejável, mas que não precisa de constante aprovação para ter valor,

para sobreviver, para ter sucesso.

4. Optimismo (versus pessimismo) refere-se ao grau em que o aluno tende a

prever sucessos, vê oportunidades, aceita desafios, e evita assumir uma

responsabilidade total pelos seus insucessos. Numa perspectiva pessimista, as

dificuldades actuais conduzem habitualmente a generalizações negativas a

muitas outras áreas da vida do aluno: competências pessoais, valorização

pessoal, perspectiva sobre o mundo.

5. Locus de controle interno (versus externo) refere-se ao grau em que o aluno

acredita que o sucesso se deve ao seu esforço, mais do que a factores externos

como a sorte ou a facilidade da tarefa. Até que ponto acredita que o esforço

conduz a níveis de aptidão e desempenho mais elevados e que o desempenho

não depende de aptidões naturais, fixas e inatas.

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I. INTRODUÇÃO 80

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6. Elevada (versus baixa) resistência à frustração refere-se ao grau em que o

aluno aceita que para alcançar os seus objectivos e ter sucesso, tem por vezes

que fazer coisas difíceis, frustrantes, aborrecidas. Até que ponto consegue

resistir a actividades mais agradáveis (lúdicas, sociais) até acabar o trabalho

que tem que fazer.

7. Estabelecimento de objectivos (versus ausência de objectivos) refere-se ao

grau em que o aluno valoriza a escola como forma de alcançar os seus

objectivos pessoais e se está ou não seriamente empenhado em fazer o que for

necessário para os alcançar. Até que ponto tem grandes objectivos de longo

prazo, objectivos realistas para médio prazo e objectivos específicos para

cada tarefa.

8. Boa (versus má) gestão do tempo refere-se ao grau em que o aluno consegue

gerir as suas tarefas e obrigações escolares, extracurriculares, familiares, de

acordo com prioridades relativas. Até que ponto é capaz de (e costuma)

dividir projectos e tarefas complexas e extensas em partes, em etapas menores

e mais simples.

9. Tolerância social (versus intolerância) refere-se ao grau em que o aluno

reconhece e aceita que toda gente é falível e comete erros. Até que ponto

reconhece e aceita que não é razoável avaliar globalmente o valor de uma

pessoa, com base nos seus erros ou acções específicas.

10. Resolução reflexiva de problemas (versus impulsiva) refere-se ao grau em

que, perante situações de conflito interpessoal, o aluno é capaz de gerar um

conjunto de soluções alternativas. Até que ponto é capaz de avaliar

consequências positivas e negativas de cada solução, de avaliar as

consequências das suas acções ao nível dos sentimentos dos outros.

11. Intolerância (versus tolerância) em relação a regras e limites refere-se ao grau

em que o aluno consegue viver com os limites e regras impostas, como uma

necessidade para conseguir viver em grupo, na escola, na família e sociedade,

mas também como uma forma de atingir os seus objectivos a longo prazo.

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I. INTRODUÇÃO 81

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Na perspectiva de Bernard (ob. citada, 1997), pais e professores podem

favorecer o desenvolvimento de tendências mais funcionais de diferentes modos:

• Exemplificar, explicar, demonstrar e ajudar a reconhecer a relação entre a forma

como se pensa e o modo como se reage, isto é, entre auto-verbalizações e

comportamento observável. Por exemplo, associar determinadas cognições

específicas a determinadas consequências: se depois de um erro o aluno pensa que

“não vale a pena”, que “não dá, não vou ser capaz” ou “isto só vem provar que eu

não valho nada”, é natural que, em consequência, experimente sentimentos de perda

de confiança, de depressão e que sinta vontade de desistir; se, pelo contrário, o aluno

pensar que “eu continuo a ser eu”, ou que “isto não dá cabo das minhas qualidades”,

mesmo desapontado e triste, tenderá a manter a confiança e o esforço porque se

“uma andorinha não faz a primavera, um erro não faz um falhado”.

• Disputar pensamentos disfuncionais, por exemplo ajudar a descobrir como é que

algumas das suas avaliações e percepções são prejudiciais e erróneas: “será que faz

sentido pensar assim? será que te ajuda pensar assim? o que faz pensar que vai ser

assim? como sabes que é assim?”

• Estimular o estabelecimento de objectivos pessoais mais razoáveis. Muitos alunos

com mau aproveitamento acham que já dão o máximo, que se esforçam imenso.

Outros estabelecem objectivos demasiado exigentes e perfeccionistas, que depois

desistem de alcançar ou que os impedem de progredir (por considerarem que não é

possível “queimar etapas”, deixar algo por fazer ou com menor qualidade.

• Dar ao aluno oportunidade de experimentar alternativas de confronto cognitivo com

alguns dos seus insucessos, isto é, oportunidade de experimentar verbalizações mais

e menos funcionais (ver Quadro A.). Por exemplo, aprender a pensar em voz alta: “o

que é que eu tenho que fazer para conseguir isto? Por onde posso começar? Posso

dividir isto em partes?”

• Criar, sempre que possível, ocasiões em que o aluno possa observar e experimentar

tendências mais funcionais: por exemplo, discutir crenças sobre o erro, explicar que

é natural cometer erros, que é natural que outras pessoas notem os nossos erros, mas

que toda a gente erra, toda a gente pode ser vista a errar.

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I. INTRODUÇÃO 82

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• Reforçar o próprio aluno ou outros (reforço vicariante) pela utilização de hábitos

mais funcionais.

Esta perspectiva insere-se numa corrente cognitivista que tem por base o estudo

das relação entre a cognição (auto-verbalizações ou pensamentos automáticos) e

comportamentos, em sentido amplo (reacções emocionais, respostas neuro-fisiológicas,

compostamentos observáveis). Mais do que pensar que o indivíduo reage passivamente

a um conjunto de estímulos ambientais em função de contingências de reforço, os

modelos cognitivos consideram que cada pessoa é um activo construtor da sua própria

“visão” do mundo (Bandura, 1986; Kaplan, 1991; Meichenbaum, 1977, 1986; Meyers,

Cohen & Schleser, 1989). Esta perspectiva encontra-se descrita com maior detalhe no

capítulo sobre psicoterapia e apoio psicopedagógico a alunos com dificuldades de

aprendizagem (capítulo 3.3.).

Quadro A.

Paralelismo entre verbalizações mais e menos funcionais e adaptativas

Verbalização não funcional Alternativa construtiva

“...as coisas vão correr bem de qualquer modo,

quer eu trabalhe ou não.”

“...se eu não me esforçar, as coisas não vão correr bem!”

“...a escola devia ser divertida, interessante,

confortável.”

“...o trabalho escolar vai ser difícil, chato, às vezes; não é o

fim do mundo, quando as coisas não correm ao meu gosto,

não temos de gostar de tudo. Eu aguento!”

“...os meus amigos não vão gostar se eu me

esforçar muito.”

“... se por trabalhar no duro eu perder um ou dois amigos,

então não deviam ser grandes amigos. Posso passar sem

esse tipo de amigos.”

“...eu tenho que ser capaz de ser 100% perfeito,

ou então isso quer dizer que nunca vou ser

ninguém. Para que é que serve passar?”

“...se não faço uma coisa bem, não significa que sou um

falhado, pois não? Quando descubro um erro é porque

aprendi alguma coisa. Se eu já soubesse tudo não precisava

de continuar a aprender.”

“Nada do que se aprende na escola me vai servir

no futuro, é tudo para esquecer!”

“...o que eu faço agora na escola, as notas que tenho vão

influenciar as minhas oportunidades no futuro. Trabalhar

no duro agora pode abrir portas no futuro.”

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I. INTRODUÇÃO 83

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2.2. Crenças pessoais sobre o conhecimento e a aprendizagem.

A investigação psicológica sobre o desenvolvimento epistemológico teve início

em meados do século XX. O termo “epistemologia” é sinónimo de “teoria do

conhecimento (Blackburn, 1997) e engloba diversas questões nucleares, entre outras: a

origem do conhecimento e a forma como experiência e razão intervêm na sua génese; a

relação entre o conhecimento e a certeza ou entre o conhecimento e a possibilidade de

erro. Relaciona-se com questões filosóficas mais amplas, tais como: a natureza da

verdade, da experiência e do significado. Na procura de respostas para estas questões,

confrontam-se essencialmente duas metáforas opostas (“rivais” na acepção de

Blackburn, ob.cit.).

O conhecimento pode ser concebido como um edifício em construção sobre

fundamentos, escolhidos ou aceites, convencionais ou alternativos. Os “dados” estão na

base de todo o conhecimento e ao epistemólogo cabe a tarefa de descrever

fundamentos sólidos e de identificar os métodos de construção mais seguros.

Ou, por outro lado, o conhecimento pode ser concebido mais como um barco ou

um aeroplano, onde o equilíbrio da estrutura não depende tanto dos fundamentos nem

da solidez de fixação às “raízes”, mas cuja força advém essencialmente da estabilidade

e coerência interna, dada pelas partes inter-relacionadas. Lauden (citado por

O’Donohue & Kitchner, 1996) sugere que os problemas conceptuais surgem quando

uma teoria parece internamente inconsistente, quando os seus conceitos são vagos ou

quando colide com outras teorias que também se consideram verdadeiras. Neste

sentido, pode considerar-se que há progresso científico, não tanto quando os factos

confirmam as teorias, antes quando é possível resolver um problema conceptual sem

que isso acrescente um sem número de novos problemas, empíricos e conceptuais.

O objectivo principal corresponde sempre a um esforço de maximizar o número

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I. INTRODUÇÃO 84

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de problemas com resposta, minimizando o número de problemas insolúveis15.

No âmbito da Psicologia da Educacão, a designação “crenças epistemológicas”

tem sido referido para designar crenças sobre a natureza do conhecimento e da

aprendizagem (Schommer, 1994b). Estas crenças, mesmo que implícitas, podem

influenciar muitos aspectos relacionados com a aprendizagem: atitudes, raciocínios,

tomadas de decisão, etc. Só nas últimas décadas se tornaram efectivamente objecto de

estudo da Psicologia da Educação. Da psicologia e não da filosofia.

Numa perspectiva filosófica, as crenças sobre o conhecimento são analisadas

numa perspectiva universal, absoluta e isenta em termos de conteúdo. Em investigação

cognitiva, o foco não é a crença em si, antes o indivíduo. Procura-se determinar, por

exemplo, até que ponto cada pessoa acredita realmente na verdade (certeza e rigor

absolutos) da informação e do tudo o que é dado conhecer, na escola e no dia-a-dia,

através dos media ou de outros elementos de divulgação científica. Numa perspectiva

psicológica, estuda-se o modo como cada indivíduo concebe a estrutura e a natureza do

conhecimento, como descreve os processos de aprendizagem, de aquisição e acesso a

esse mesmo conhecimento. Ou ainda, que valor, credibilidade e permanência atribui

cada pessoa às leis e asserções científicas, bem como a outras formas de saber.

Crenças, concepções, descrições (“visões”) da vida e do mundo, atribuições são

conceitos psicológicos relacionados entre si e de delimitação muito difícil

(Quackenbush, 1988; Rego, 1999). Na literatura são muitas vezes referidos de forma

quase indistinta, na prática é possível que se refiram a aspectos que se sobrepõem ou

interagem.

15 O conceito de “learning disability” tem-se revelado um conceito extremamente difícil, difícil

de operacionalizar e definir, de uma forma clara, específica e consensual, difícil de avaliar e diagnosticar.

Pode perguntar-se até que ponto para resolver um problema conceptual, não se acrescentaram afinal

muitos outros problemas (e.g. Stanovich, 1993).

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I. INTRODUÇÃO 85

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2.2.1. Crenças epistemológicas

Vários trabalhos podem ser referidos como marcos significativos no estudo de

uma epistemologia de senso comum (Greene, 1994; Greeno, Pearson & Schoenfeld,

1999; Hofer & Pintrich, 1997; Hofer, 2000; Montgomery, 1992).

Schommer (1994a, 1994b) iniciou o seu próprio projecto de pesquisa tendo

como referência os dados e os questionários de Perry (1968, citado por Schommer,

1990) e alguns resultados de estudos anteriores no domínio da compreensão da leitura

(Schommer & Surber, 1986). Desenvolveu um Questionário Epistemológico que

permite um estudo das crenças epistemológicas mais normativo e quantitativo do que

os anteriores (quase sempre com base em entrevistas para análise qualitativa). Além

disso, sugeriu que as crenças epistemológicas não fossem concebidas de uma forma

unidimensional, nem associadas a uma sequência fixa de estádios de desenvolvimento.

Ao contrário, propôs um sistema de crenças complexo, constituído por cinco dimensões

mais ou menos independentes: estrutura, certeza, origem do conhecimento, controle e

velocidade de aquisição do conhecimento.

O Questionário Epistemológico, constituído por 63 itens agrupados em 12

subconjuntos, permitiu a identificação de quatro factores, que formulados de uma

perspectiva ingénua, são: I) a capacidade de aprender é fixa e não pode ser melhorada;

II) a aprendizagem ocorre rapidamente ou já não ocorre; III) o conhecimento é simples,

constituído por elementos isolados; IV) o conhecimento é absoluto, fixo, o que é

verdade hoje será sempre verdade. A hipótese inicial de uma quinta dimensão (sobre

autoridade epistemológica e origem do conhecimento) não emergiu como factor. Esta

estrutura factorial tem sido estudada e revista em diferentes contextos (universitário,

secundário), relacionada com diferentes tarefas escolares de compreensão da leitura em

diferentes domínios (matemática, ciências sociais, ciências físicas), em estudos

transversais e longitudinais (Schommer, Calvert, Gariclietti & Bajaj, 1997).

Mais recentemente, Qian & Alverman (1985) relacionaram os resultados do

Questionário Epistemológico com medidas de desânimo aprendido e de modificação

conceptual, em estudantes do ensino secundário. Os estudantes com desânimo

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I. INTRODUÇÃO 86

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

aprendido percebem os obstáculos e as dificuldades como insuperáveis e indicadores de

baixa capacidade. Acreditam que é inútil esforçarem-se porque o fracasso é inevitável

e não depende do seu próprio controle. Os resultados sugerem a existência de uma

relação moderada entre crenças epistemológicas e desânimo aprendido, e indicam que

a existência de crenças epistemológicas mais imaturas (certeza e simplicidade do

conhecimento e rapidez na aprendizagem) é factor preditivo de um pior desempenho

em tarefas de aprendizagem de conceitos.

2.2.2. Concepções de aprendizagem.

As concepções pessoais sobre conceitos científicos têm sido estudadas em

muitos domínios com o intuito de desenvolver e assegurar um ensino de conteúdos

científicos de maior qualidade (Welford, Osborne e Scott, 1996). No domínio da

Psicologia Educacional têm-se multiplicado os estudos sobre concepções pessoais, em

diferentes contextos e sobre conteúdos muito diferentes.

Os estudos sobre a concepção de aprendizagem têm surgido sobretudo na

Europa, em equipas de investigação nórdicas e anglo-saxónicas, privilegiando

metodologias fenomenológicas, estudos de casos e outros, em investigações quase

sempre de natureza qualitativa. Neste capítulo, podem referir-se entre outros, os

estudos que abordam as concepções16 sobre a aprendizagem em diferentes níveis etários

e de escolaridade, desde os primeiros anos da infância (Klatter, Lodewijks & Arnoutse,

2001; Pramling, 1988, 1996) até ao ensino universitário (Bruce & Gerber, 1995;

Eklund-Myrskog, 1997; Lonka & Lindblom-Ylänne, 1996; Marton & Booth, 1996).

Os trabalhos sobre concepções de aprendizagem têm surgido no contexto de

acções e cursos de formação de futuros professores e na formação inicial de outros

técnicos em ciências da educação, psicologia, pedagogia, sociologia. Neste contexto,

reflectir (e ajudar a reflectir) sobre concepções pessoais quanto à aprendizagem, pode

associar-se a uma reflexão formativa sobre concepções e crenças sobre o ensino

(Duarte, 2000; Rego, 1999; Tynjälä, 1997).

16 a referência ao carácter pessoal destas concepções, embora possa parecer uma simples

redundância, pretende sobretudo reforçar o carácter subjectivo e tácito deste conceito.

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I. INTRODUÇÃO 87

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

2.3. Métodos de investigação de concepções e crenças pessoais.

Desde o início dos anos 80, final do século XX, um grande número de estudos

tem vindo a comparar concepções de pessoas comuns (“laypeople”, leigos na matéria,

isto é, pessoas sem formação específica na área em estudo) e concepções de

especialistas e investigadores. Estes estudos têm sido considerados particularmente

importantes porque estas teorias de senso comum resultam e dão origem a

comportamentos sociais. Compreender os fundamentos que lhes dão origem, prever

futuras concepções que deles resultam pode ser útil em diferentes domínios, da

psicologia social á psicologia educacional, da psicoterapia à intervenção socio-política.

As teorias implícitas de senso comum diferem das teorias explícitas e

cientificamente fundamentadas de muitos modos. As primeiras baseiam-se no

significado socio-cultural atribuído às palavras e aos conceitos. As segundas tentam

definir e medir, procuram resistir ao tempo e á cultura.

Mas numa perspectiva pós-moderna sabemos como a fronteira entre os dois

domínios não é tão firme e estável como pareceu em épocas passadas. Até ao século

XVII parecia haver uma fronteira intransponível entre opinião e conhecimento, entre

objectividade e subjectividade, entre exacto e impreciso (Hacking, 1975, citado por

Olson & Bruner, 1996). Hoje em dia duvidamos cada vez mais do carácter definitivo e

absoluto de uma tal fronteira e não parece necessário “lançar para a fogueira” tudo o

que não pode ser logica ou empiricamente demonstrado, como afirmava Bruner numa

conferência proferida em 1993, em Toronto (Bruner, 1995), referindo-se à forma como

o pensamento grego tolerava todas as formas “naturais” de elaboração de significado

(“sens”). Na perspectiva de Bruner, o pós-modernismo retoma essa tradição,

provavelmente de uma forma menos ingénua. Procurar saber, entender e explicar, como

as pessoas chegam á compreensão de determinados conceitos complexos (mas de uso e

referência comum) permite, além do mais, um reconhecimento de diferentes modos de

elaboração de significado. Na perspectiva de que a ciência cognitiva sintetiza todo o

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I. INTRODUÇÃO 88

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

nosso saber sobre as diferentes possibilidades de utilização do pensamento. Se a

intersubjectividade não basta como critério de validade e rigor, não nos pode bastar

também uma simples e reducionista restrição do saber às necessidades e questões

geradas no âmbito de uma ciência analítica, positivista e distante do senso comum. Se

hoje em dia parece cada vez mais importante difundir e vulgarizar o conhecimento

científico, divulgar pressupostos e resultados empíricos, não deve ser considerado

como menos importante o objectivo de estudar “a psicologia comum da gente vulgar”

(Bruner, 1997, p.39). No fundo, trata-se de compreender que estudar crenças e

concepções de senso comum, não é simplesmente analisar um conjunto de “ilusões

auto-suavizantes” (obra citada, idem), tão pouco o estudo de ideias ingénuas e muito

pobres, difundidas entre gente inculta ou pouco atenta. Ao contrário, trata-se antes de

uma evolução conceptual e metodológica com implicações e aplicações muito mais

profundas e inovadoras (Bereiter, 1994; Bereiter & Scardamalia, 1996; Costley, 2000;

Dockrell, Lewis & Lindsay, 2000; Egan, 1996; Marton & Booth, 1996; Mertens, 1998;

Pramling, 1996). O estudo de uma psicologia do senso comum, o estudo de crenças e

concepções pessoais é afinal o estudo de um importante conjunto de factores

mediadores, com um papel nuclear para o estudo e compreensão de muitos

comportamentos e fenómenos humanos.

Alguns dos conceitos estudados situam-se na área da saúde e do bem-estar

físico e psicológico: concepções sobre causas e tratamentos em situações de doença,

mental ou física (Furnham, 1984; Furnham & Henley, 1988) e concepções sobre

psicoterapia, prognóstico e indicações terapêuticas (Furnham & Wardley, 1991;

Furnham, Lillie & Wardley, 1992). Ora, na medida em que as dificuldades de

aprendizagem podem ser popularmente consideradas como problemas de saúde,

factores de risco pessoal a nível físico ou psicológico, na medida em que são situações

que requerem apoio psicopedagógico especializado ou adaptações curriculares esta

linha de investigação parece ter um particular interesse e funcionalidade.

Por exemplo, para o controle de problemas psicológicos tais como: agorafobia,

anorexia nervosa, jogo compulsivo e esquizofrenia, Furnham & Henley (1988)

identificaram com base num questionário, cinco factores que os leigos consideravam

como importantes: controle interno, compreensão sobre o problema, evitamento, base

fisiológica do problema, ou destino (“fate”). Estes cinco factores, num contínuo entre

total ausência de controle pelo sujeito e a possibilidade de um controle interno, foram

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I. INTRODUÇÃO 89

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replicados em estudos posteriores (Furnham, 1988, citado por Furnham, Lillie &

Wardley, 1992). Comparados com os leigos, os psicoterapeutas revelam maior

cepticismo e pessimismo relativamente aos resultados da terapia enquanto os leigos

revelam uma maior ingenuidade conceptual e um maior optimismo quanto ao

prognóstico de cada caso.

No entanto, estes estudos apresentam alguns problemas metodológicos

específicos, nomeadamente:

• A generalidade dos estudos que colocam em confronto a perspectiva de leigos com a

de especialistas, não permite controlar o factor educação ou escolarização. Além de

especialistas na matéria em análise, os não leigos apresentam em média um nível de

escolaridade e de formação superiores. As diferenças observadas podem decorrer

dessa formação adicional, mais do que de uma formação específica na área em

estudo.

• Muitas vezes estes estudos não permitem controlar diferenças individuais a nível

conceptual, diferenças que se podem observar no seio de cada grupo. Tal como a

investigação tem mostrado, por vezes podem observar-se tendências e concepções

bem diferenciadas entre os próprios especialistas. Ao comparar, por exemplo, a

perspectiva de leigos com a de psicoterapeutas, não é possível ignorar a diversidade

de tendências e de perspectivas sobre o processo terapêutico que este grupo

profissional encerra (Vasco, 2001). É provável que uma variação similar ocorra em

qualquer grupo, mesmo quando existe uma formação ou experiência profissional

comum.

Apesar destas limitações, os resultados e a reflexão que estes estudos têm

gerado reforçam a importância de prosseguir nesta via de investigação. A título de

exemplo, a visão epistémica do mundo e as “teorias implícitas do terapeuta” (Najavits,

1997, citado por Vasco, Silva & Chambel, 2001) e do cliente, têm sido apontadas como

variáveis influentes na forma como se conjugam entre si na relação terapêutica. As

“visões do mundo” influenciam aquilo que cada pessoa considera como conhecimento

válido e formas de o obter. Uma maior similitude entre a “visão” do terapeuta e as

concepções dos clientes pode contribuir, nalguns casos, para aumentar o envolvimento

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Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

na terapia e facilitar a aliança terapêutica (Vasco, Silva & Chambel, 2001) embora estes

resultados variem em função da orientação terapêutica em causa.

Algo de similar pode talvez ser sugerido para a aliança pedagógica (ver também

capítulo sobre formação de professores) e pode ser estudado através de várias

metodologias de análise de natureza qualitativa e quantitativa.

A metodologia de questionário tem sido utilizada com frequência, nestes como

em outros estudos: no estudo de crenças, concepções e teorias implícitas sobre a

aprendizagem (Chan & Sachs, 2001; Lamon, Chan, Scardamalia, Burtis & Brett, 1993),

sobre o conhecimento (Hofer, 2000; Schommer, 1990), e sobre a inteligência (Faria,

1996; Faria & Fontaine, 1989, 1997; Lynott & Woolfolk, 1994; Mettrau & Almeida,

1996; Sternberg, 1985). No entanto, alguns autores consideram a importância de

associar outros procedimentos de natureza mais qualitativa, nomeadamente a resposta

livre e por escrito a perguntas abertas (Lonka, Joram & Bryson, 1996; Stanovich,

1989), a entrevista e o estudo de caso para análise e reflexão pessoal sobre situações de

ensino e aprendizagem (Duarte, 2000; Entwistle, 1991, 1997; Kassar, 1995;

Lewis,1995; Marton & Säljo, 1997; Rego, 1999), para análise de histórias de vida de

alunos ditos com dificuldades (Crozier & Tracey, 2000; Dickinson, 1998; Fink, 1996;

Lauren, 1997) ou para o estudo de concepções precoces em relação a tarefas escolares

específicas, escrita e leitura, por exemplo (Bintz, 1997; Mann, 2000; Martins,1994;

Richardson, Anders, Tidwell & Lloyd, 1991; Shook, Marrion & Ollila, 1989).

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3. Desenvolvimento e modificação de concepções e

crenças pessoais.

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I. INTRODUÇÃO 93

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3. Desenvolvimento e modificação de concepções e crenças pessoais.

Neste capítulo analisam-se algumas estratégias de ensino e de intervenção

clínica para a modificação de concepções e crenças pessoais.

Contem três secções distintas, que abordam o papel da mudança conceptual,

respectivamente: em psicoterapia e no apoio individualizado a alunos com

Dificuldades de Aprendizagem; no ensino e na aprendizagem de conceitos científicos;

na selecção e na preparação de estratégias de formação de professores.

Em psicoterapia e no apoio individualizado, descreve-se o modo como de

acordo com os pressupostos de uma intervenção comportamental-cognitiva se promove

uma mudança conceptual que possa facilitar a mudança de atitudes e de

comportamentos.

No domínio do ensino e da aprendizagem de conceitos científicos analisam-se

estratégias, modelos e métodos de intervenção pedagógica no ensino de disciplinas de

cariz científico.

Na selecção e na preparação de estratégias de formação de professores

enumeram-se estudos anteriores sobre a natureza e o papel de crenças, concepções e

pressupostos de professores. Além disso, reflecte-se sobre modelos e estratégias de

formação, inicial e contínua. Referem-se alguns testemunhos e experiências anteriores

neste domínio.

O capítulo tem a seguinte estrutura:

3.1. Ensino e aprendizagem de conceitos científicos.

3.2. Formação de Professores: o papel das concepções e crenças pessoais.

3.3. Psicoterapia e apoio psicopedagógico a alunos com dificuldades de

aprendizagem.

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I. INTRODUÇÃO 95

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3.1. Ensino e aprendizagem de conceitos científicos.

Ao ensino das ciências têm sido apontadas muitas críticas e deficiências, em

Portugal, como em muitos outros países.

Neste capítulo, sintetizam-se e relacionam-se alguns estudos que podem

contribuir para uma reflexão sobre o ensino e sobre a aprendizagem de conceitos

científicos. Reflecte-se essencialmente sobre algumas dificuldades que podem colocar-

se à reconceptualização de ideias prévias (pressupostos, crenças e concepções pessoais

anteriores), à mudança de atitudes e ao desenvolvimento de novas perspectivas mais

consonantes com o que em investigação realmente se faz e produz.

Parte-se do pressuposto que o ensino e aprendizagem de conceitos científicos

deve ser essencialmente um processo de educação e formação científica. Deste modo,

deve estar fortemente associado: 1) ao desenvolvimento de uma atitude científica mais

fidedigna e actual; 2) à compreensão de princípios epistemológicos básicos e a um

maior conhecimento sobre procedimentos de investigação; 3) à ligação entre todo um

corpus de conhecimento científico e a vida prática de todos os dias; 4) ao

desenvolvimento de uma atitude pessoal mais crítica, questionadora e interventiva, a

todos os níveis (pessoal, familiar, social e político) e não só no domínio científico

(Simon, 2000). Perceber afinal que “de cientista e louco” todos temos um pouco e que

a ciência pode mudar a vida de todos os dias, não tanto pela tecnologia e pelo saber que

difunde, muito mais pelo método, pelos pressupostos e pelos valores de que está

imbuída e que podem igualmente ser difundidos e partilhados com a comunidade.

Ensinar e aprender ciência tem dado origem a duas grandes linhas de

investigação: uma melhor compreensão das ideias intuitivas dos alunos sobre a ciência

e o desenvolvimento de currículos mais adequados às suas potencialidades.

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I. INTRODUÇÃO 96

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3.1.1. Ideias prévias e representação social da actividade científica.

Alguns estudos recentes têm vindo a analisar a imagem pública e a

representação social da ciência e dos cientistas.

Nos media, da literatura ao cinema, o cientista é muitas vezes representado

como alguém alheado e distante, distraído e sonhador, absorvido por teorias e

problemas de investigação, metido num laboratório a tempo inteiro, muito diferente de

uma pessoa “normal”, às vezes muito próximo da loucura (Furnham, 1992; Mead &

Metraux, citados por Newton e Newton, 1992).

Na publicidade, o cientista também é representado normalmente como uma

pessoa diferente. Diferente, neste caso, pela forma como se veste, se comporta e

sobretudo pela segurança e autoridade no falar. O cientista é geralmente representado

de bata branca, sério e rigoroso, detentor de certezas e muito saber.

Na escola, no ensino de conceitos científicos, está muitas vezes implícita a

imagem de um cientista que trabalha isolado, na busca do “progresso científico” e de

um saber objectivo, na melhor tradição analítica e positivista (Cawthron & Rowell,

1978). O conhecimento científico é apresentado quase sempre na dualidade entre um

ideal de racionalidade e a mais completa aridez de um saber hermético e

despersonalizado. Por um lado, os cientistas são descritos como seres humanos de

capacidade superior, empenhados na procura de verdades que poderão depois ser

oferecidas em benefício de toda a humanidade, como solução e panaceia para a maioria

dos problemas. Por outro, o conhecimento científico é apresentado de uma forma

desumanizada e despersonalizada, como um corpo de conhecimentos árido, objectivo e

frio, repartido por múltiplos e infindáveis domínios, de apreensão extremamente difícil,

quase inacessível.

Quando se pede às crianças que desenhem um cientista, estas representam-no

maioritariamente como um homem (em 83% dos casos, num estudo inglês de 1992,

Newton & Newton, numa amostra de 1143 crianças entre os 4 e os11 anos), quase

sempre de bata branca e com óculos, algumas vezes com barba (em cerca de um terço

dos casos) e careca (em 37% dos rapazes e 62% das raparigas). À sua volta há tubos

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I. INTRODUÇÃO 97

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de ensaio e materiais de laboratório para experiências com líquidos (o cientista é

geralmente associado à imagem da experimentação em Química) ou microscópios e

outros instrumentos na área da Medicina. Seres vivos surgem apenas em 15% dos

casos, sendo muito mais frequentes os animais do que as plantas. O cientista é quase

sempre representado num espaço interior (95% dos casos), por vezes em pose, mas

normalmente envolvido em procedimentos de manipulação de objectos. Apenas em 5

imagens (0.44%) o cientista foi representado a escrever, no meio do aparato

laboratorial, e em outros dois casos, a escrever sentado numa secretária.

O ambiente que as crianças desenham à volta do cientista, pode fornecer alguns

indícios sobre a percepção que essas crianças têm sobre o que é a ciência. Na

generalidade dos casos pode inferir-se uma concepção de ciência como um processo de

experimentação e manipulação de objectos inanimados para a resolução de problemas

concrectos (Newton & Newton, 1992). Parece haver uma tendência para associar o

processo científico à invenção de coisas novas, mais do que à descrição e compreensão

de fenómenos naturais.

Estes dados sugerem que as crianças desenvolvem uma imagem estereotipada

do cientista desde muito cedo. Aos seis anos, no início da escolaridade, essa imagem já

existe e persiste nos anos seguintes de uma forma quase consensual. E é provável que

estas ideias persistam anos mais tarde quando os alunos são introduzidos a uma

formação e informação científica mais aprofundada. Alguns estudos sugerem que as

percepções pessoais sobre a ciência não se baseiam na experiência escolar, embora

possam ser influenciadas pelas actividades desenvolvidas na escola. Mas as concepções

científicas, as concepções sobre a própria ciência, desenvolvem-se precocemente, no

seio da comunidade e de uma cultura.

Nesta perspectiva, a formação e educação científica ministrada na escola não

deve ignorar as ideias prévias que os alunos trazem consigo e que, provavelmente,

partilham com a comunidade em que estão inseridos. O ensino das ciências, como no

fundo acontece com o ensino de qualquer outra matéria, é essencialmente um exercício

de identificação e de reformulação de ideias prévias e de esquemas anteriores. A

informação nova que é proporcionada aos alunos, pode ser adicionada de forma passiva

e inerte, ou activamente analisada, reflectida e integrada. Numa perspectiva

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construtivista, o ensino e a aprendizagem nos domínios científicos, deve ser sobretudo,

um exercício de reconceptualização cognitiva e de desenvolvimento conceptual.

Como se referiu, numa perspectiva de senso comum, o cientista é concebido

como um ser relativamente estranho e diferente, mais ou menos alheado do mundo real

e da maioria dos cidadãos.

A ciência, tal como é ensinada nas nossas escolas, também parece muitas vezes,

distante e “divorciada” da realidade (Piburn & Baker,1993, citados por Canavarro,

2000). Desta forma, tanto nos alunos como na comunidade em geral, desenvolve-se

um olhar sobre a ciência simultaneamente distante e reverente. O que a ciência sabe,

sabe. Não se discute nem se questiona. Mesmo que não tenha muito a ver com o dia a

dia do cidadão comum, que vive muito bem sem teorias. No fundo, acredita-se que

provavelmente os cientistas têm razão, que será certo o que dizem, mas que em termos

práticos muito do que eles sabem não tem aplicação prática nem útil. A invenção

tecnológica e as descobertas laboratoriais, são talvez a face mais visível e inteligível do

trabalho desenvolvido por uma comunidade de génios semi-loucos, tolerados,

incompreendidos e mal amados.

E pensando assim, com tais ideias prévias, qual será afinal a reacção dos alunos

ao ensino das ciências?

Esta é uma perspectiva em que naturalmente serão sobretudo valorizados alguns

produtos mais concrectos do esforço científico, tanto em termos inventivos e

tecnológicos como em termos de leis e factos que a ciência determina como

verdadeiros, certos.

Com o desenvolvimento do conhecimento sobre o modo como os alunos

organizam e percepcionam o mundo em volta, tornou-se cada vez mais claro que o

ensino das ciências não poderia continuar a ser concebido como um simples processo

de iniciação dos alunos a conteúdos considerados como completamente novos.

Neste contexto, é especialmente importante encontrar formas mais eficazes para

a modificação conceptual, sobretudo perante a evidência de que muitas das ideias

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I. INTRODUÇÃO 99

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prévias oferecem uma enorme resistência ao tempo, à formação, até mesmo à

experiência pessoal e profissional17.

Para melhor compreender e promover a mudança das concepções prévias é

necessário identificar algumas das razões que lhes estão subjacentes e compreender a

forma como um novo conhecimento interage (ou pode interagir) com ideias prévias

incompatíveis. O estudo da literacia científica, o estudo dos conceitos e conhecimentos

básicos sobre ciência difundidos na comunidade a que o aluno pertence, pode constituir

um meio auxiliar neste processo.

3.1.2. Literacia científica.

Numa área que tem sido genéricamente designada por compreensão da ciência

pelo público (Ávila, 2000; Bergeron, 2000) surgem os estudos que visam medir o nível

de literacia científica na comunidade. O objectivo destes estudos é o de avaliar

conceitos e conhecimentos básicos sobre ciência existentes na população em geral.

A generalidade destes estudos visa uma avaliação da cultura científica dos

cidadãos e a determinação do grau de profundidade dos seus conhecimentos. Alguns

destes estudos incluem também medidas de atitudes e crenças sobre a ciência (Castro &

Lima, 2000).

O grau de conhecimentos científicos correlaciona-se positivamente com a

crença num impacto positivo da ciência na vida quotidiana (Ávila, Gravito & Vala,

2000). Quanto maior o conhecimento científico, maior o apoio à ciência. No entanto, o

grau de conhecimentos não basta para assegurar a existência de atitudes positivas

perante a ciência. Qualquer pessoa pode ser simultaneamente muito empenhada e

muito crítica perante a ciência. As atitudes são complexas e podem conter aspectos em

conflito18.

17A generalidade destas ideias prévias é diariamente reforçada na comunidade. 18 “Um mesmo indivíduo pode reconhecer os efeitos positivos das descobertas científicas e o

impacto positivo desses efeitos na vida quotidiana, e, simultaneamente, reconhecer efeitos negativos no

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Alguns estudos referem que os estudantes com desempenho escolar médio ou

abaixo da média na área de ciências demonstram atitudes mais positivas relativamente

à ciência do que os bons estudantes (Baker, 1985, citado por Canavarro, 2000).

Isto é, um nível superior de conhecimento científico não parece assegurar uma

atitude passiva de anuência e concordância. Pelo contrário, se a ciência for concebida

como um empreendimento humano necessariamente imperfeito, nunca isento de

controvérsia e sem verdades absolutas nem universais, se a ciência for entendida nos

seus pressupostos, procedimentos e intenções mais do que pelos seus resultados e

conclusões, então, este conhecimento mais rigoroso e profundo do que é ciência e de

como se faz, conduzirá provavelmente a atitudes mais críticas e, por vezes,

ambivalentes (isto é, de valência simultaneamente positiva e negativa).

Germann (1988, citado por Canavarro, 2000) também considera que a atitude

em relação à ciência é uma variável complexa, influenciada por um grande número de

outras variáveis (inerentes aos próprios sujeitos, referentes aos professores, aos

programas, á escola, à família). Não pode ser definida com facilidade nem entendida

de forma linear. Mas é uma das muitas variáveis que pode influenciar o desempenho

escolar dos alunos na área das ciências.

Em Portugal, um estudo conduzido pelo Observatório da Ciências e das

Tecnologias nos anos de 1996/97 confirmou uma tendência já claramente observada

nos inquéritos anteriores de 1990 e 1992: uma situação de acentuado défice de cultura

científica por comparação com os outros países da Europa (Rodrigues, Duarte e

Gravito, 2000). O inquérito efectuado permitia a determinação de índices de

conhecimento científico, e neste aspecto, Portugal apresenta o valor mais baixo de entre

todos os países da Europa.

Observou-se que a variável que mais explica a variação de conhecimentos

científicos é a escolaridade, seguindo-se, embora a larga distância, a mobilização

cognitiva e a exposição aos media informativos. Neste quadro, parece necessário (e

avanço da ciência e da tecnologia ou temer riscos possíveis associados a esses avanços. Esta percepção

de vantagens e inconvenientes gera sentimentos de aversão e simpatia.” (Ávila, Gravito & Vala, 2000,

p.25)

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I. INTRODUÇÃO 101

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

urgente) questionar as condições actuais do ensino das ciências em Portugal. O défice

de cultura científica observado não pode deixar de estar relacionado com as deficientes

condições de trabalho nas escolas, reduzidos recursos e prática deficiente. O ensino

experimental das ciências é quase inexistente. O contacto e a colaboração entre a

escola e outras instituições produtoras de conhecimento científico é insuficiente. Fora

da escola, as oportunidades de formação científica e tecnológica são escassas. O

essencial do desenvolvimento neste domínio parece depender, apesar de tudo, das

condições e incentivos criados na própria escola.

3.1.3. Concepções dos estudantes sobre a natureza da ciência.

Nos últimos anos muitos estudos se têm debruçado sobre a temática das

concepções pessoais de jovens estudantes sobre a natureza da ciência. Estes estudos

investigam o modo como os estudantes em formação no ensino secundário ou superior,

pensam sobre a ciência, que imagem possuem dos seus métodos de investigação, das

questões que se investigam, dos resultados que se obtem. Analisam até que ponto estes

jovens desenvolveram atitudes e pressupostos epistemológicos mais ou menos

consonantes com o desenvolvimento científico das últimas décadas, com a evolução

dos modelos sobre filosofia da ciência (Driver, Leach, Scott & Wood-Robinson, 1994;

Driver & Oldham,1978; Leach & Scott,1995; Leach, Millar, Ryder & Séré, 2000;.

Novak, 1988; Ryder, Leach & Driver,1999; Songer & Linn, 1991). Todos estes

estudos salientam a necessidade e a importância de uma intervenção pedagógica

pensada no sentido da mudança conceptual e da estimulação do desenvolvimento

epistemológico dos alunos.

3.1.4. Aprendizagem de conceitos científicos e mudança conceptual.

A noção de mudança conceptual define-se por uma modificação de conceitos

por via da aprendizagem em interacção social (Chi, Slotta & Leeuw, 1994).

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I. INTRODUÇÃO 102

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Uma área fundamental da Psicologia da Ciência tem comparado a mudança

conceptual nas crianças e a evolução conceptual no cientista adulto. A criança pode ser

concebida como um aprendiz de cientista, que adopta uma perspectiva racional para

lidar com os problemas do mundo físico e social mas a quem faltam os recursos

metodológicos, a experiência e os conhecimentos acumulados ao longo do tempo pela

instituição científica. Este primado de uma racionalidade egocêntrica pode ser

considerado como similar ao que sucede em ciência no quadro de um paradigma

científico. Na ausência de métodos, dados e conhecimentos científicos, a criança

teoriza com base em pressupostos anteriores, no âmbito das suas ideias prévias. É

provável que a mudança só ocorra quando no momento em que se descobrem

problemas e identificam inconsistências, no momento em que se encontram

dificuldades, quando se percebe que é impossível responder como se respondia, quando

os pressupostos e teorias anteriores não chegam para encontrar uma resposta. Caso

contrário, continua a pensar-se como sempre se pensou. A mudança é uma resposta a

necessidades, a dificuldades. Não é provável que aconteça suavemente, na rotina de um

dia-a-dia “normal”, tanto em ciência (Kuhn, 1962), como na escola e na vida (Peck,

1978).

Piaget, todo o seu trabalho no domínio da epistemologia genética, foi um dos

primeiros a sensibilizar a comunidade escolar para a necessidade de articular as

exigências cognitivas de um determinado currículo ao nível de desenvolvimento dos

alunos e tem continuado a ser um contributo essencial no domínio da psicologia da

ciência e do ensino das ciências (Bliss, 1995; Kitchener, 1996). A epistemologia

genética, o seu contributo para a compreensão do conhecimento, representa em si

mesmo, um esforço de convergência entre a psicologia cognitiva e a filosofia da ciência

(de Mey, 1982, citado por Kitchener, 1996).

As tentativas de adequação dos conteúdos curriculares ao nível conceptual dos

alunos procuram respostas pelo menos a dois níveis essenciais:

• qual o nível conceptual mínimo que o aluno deve ter desenvolvido para

poder interessar-se e envolver-se activamente na aprendizagem de um

determinado conteúdo científico?

• que nível conceptual é necessário para que seja possível uma compreensão e

aprendizagem efectiva sobre os conceitos em causa?

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I. INTRODUÇÃO 103

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Nesta perspectiva, procura-se o momento mais adequado para a introdução de

cada conceito ou conteúdo. Um desfasamento entre o nível de desenvolvimento dos

alunos e o tipo de exigências cognitivas colocadas pelo currículo que frequentam, pode

dar origem a dificuldades de aprendizagem e aumentar a probabilidade de insucesso

escolar. Um planeamento adequado, uma selecção criteriosa de conteúdo e estratégias

pedagógicas, pode prevenir ou ajudar a superar com maior eficácia as dificuldades que

naturalmente surgem em todas as situações de aprendizagem e de mudança conceptual.

Mas mais do que esperar pelo momento “certo” para introduzir determinados

conteúdos, é possível começar por estimular competências, assegurar o

desenvolvimento atempado das melhores condições para a aquisição ou mudança

conceptual19. E sobretudo, mais ainda do que adequar-se ao desenvolvimento ou de se

empenhar num esforço de o estimular, a escola pode cuidar de oferecer ao aluno

oportunidades de reconceptualização cognitiva e de mudança conceptual. O que, na

perspectiva da epistemologia genética, é realmente a melhor forma de promover e

assegurar o desenvolvimento cognitivo do aluno (Adey, 2000).

Numa perspectiva construtivista, é essencial que o professor tenha um

conhecimento relativamente aprofundado sobre o sistema conceptual em que o aluno

tem que integrar o que lhe é dito, no binómio entre assimilação e acomodação. No

ensino de conceitos científicos, talvez seja mais determinante compreender a dinâmica

dos invariantes funcionais do que a possibilidade de identificar o estádio específico em

que cada aluno se encontra. Qualquer que seja o seu nível de desenvolvimento, propor

ao aluno informação “nova” não dá origem a uma assimilação imediata. Neste sentido,

o estudo da epsitemologia genética facilita uma compreensão do processo de

construção de conhecimento. No entanto, especialmente o conhecimento sobre como os

alunos mais velhos, ao nível do secundário, pensam e vão construindo conhecimento, é

relativamente limitado.

Muitos estudos têm procurado identificar as concepções intuitivas (ou prévias,

no caso dos alunos que já tenham sido alvo de estimulação específica neste campo) em

inúmeras áreas do ensino das ciências: alternância dos dias e das noites (Vosniadou &

19 “A ideia de “prontidão” (readiness”) é uma meia-verdade perniciosa. É uma meia-verdade em

grande parte porque, afinal a prontidão ensina-se, ou proporcionam-se oportunidades para o seu treino,

não se fica simplesmente à espera.” (Bruner, 1999, p.49)

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I. INTRODUÇÃO 104

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Brewer, 1994); forma da terra (Vosniadou & Brewer, 1992); o conceito de força

(Ioannides, 1991, citado por Vosniadou, 1994); o conceito de velocidade, distância e

tempo (Ramsden, Masters, Stephanou, Walsh, Martin, Laurillard & Marton, 1993)

Identificar, descrever e compreender a natureza, a estrutura e a evolução destas

concepções pessoais, de natureza intuitiva ou transitória, pode contribuir para uma

melhor adequação e eficácia das estratégias pedagógicas utilizadas para o ensino das

ciências. Partindo do que o aluno já sabe, vão-se construindo novos saberes. Neste

sentido, a tarefa do professor pode ser relativamente facilitada se possuir quadros de

referência que lhe permitam “ver” como os alunos “vêem”, saber o que e onde

procurar, antecipar a sequência de desenvolvimento mais provável, mesmo em contexto

educacional. Uma criança pode, por exemplo, aprender a dizer que “a Terra é redonda”

e assim dizendo, continuar a conceber esse atributo “redondo” como um círculo, plano

e limitado. Ou, um aluno pode até aprender a dizer com maior rigor que “a Terra é uma

esfera” e mesmo assim conceber-se a viver num plano, dentro desse globo envolvente,

com um hemisfério inferior, por baixo do “chão”, e um hemisfério superior como

“céu”. Sob a aparência de uma resposta correcta, pode conservar-se uma concepção

imprecisa ou mesmo totalmente incorrecta. Estudos como os desenvolvidos por

Vosniadou & Brewer (1992), podem esclarecer sobre uma sequência previsível de

modos de conceber e assim ajudar o professor a situar cada aluno num percurso ou

sucessão de etapas. Mas, além disso, estudos como este podem sugerir novas formas

de inquirir, de questionar os alunos, de ajudar a reflectir, em suma, novas formas de

promover a mudança conceptual e o desenvolvimento. Permitem determinar a etapa ou

estádio em que o aluno se encontra (diagnóstico de estado ou produto actual) e a partir

daí, promover a mudança (estimulação e facilitação do processo de desenvolvimento).

Aprender ciência requer muitas vezes o desenvolvimento de novas formas de

pensar o que já se conhecia (ou julgava conhecer), sobre fenómenos já familiares,

muitas vezes usando palavras comuns, e conceitos que se usam no dia a dia. Deste

ponto de vista, aprender ciência pode ser um processo descrito como de “enculturação”

e de “descoberta de sentido” (Leach & Scott, 1995), de reorganização e

reconceptualização de significados anteriores. Trata-se por isso de um processo pessoal

(mas não solitário) de apropriação e de interiorização de códigos, linguagens, regras e

pressupostos de uma cultura diferente a que chamamos “ciência” (Jones, 2000).

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I. INTRODUÇÃO 105

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

Imbuídos dessa cultura, alheios a diferenças de perspectiva, manuais escolares e

professores nem sempre antecipam o grau de dificuldade emocional e cognitiva das

tarefas de aprendizagem que propõem ou exigem. Um exercício pode ser

percepcionado pelo professor como simples, sem qualquer tipo de dificuldade e vir

depois a levantar inúmeros problemas aos alunos, simplesmente porque existem

inúmeras diferenças entre uma perspectiva de senso comum e uma perspectiva

científica. Um bom professor de disciplinas científicas precisa de um conhecimento

aprofundado sobre o ponto de vista dos seus alunos e sobre a perspectiva científica,

deve ser sensível e saber reconhecer essas diferenças. Muitos fazem-no de forma

intuitiva. Outros precisarão de formação e de aquisição de novas competências, como

por exemplo, ser capaz de suscitar, manter e analisar um diálogo construtivo sobre um

conceito em estudo ou sobre os pressupostos e metodologias de trabalho numa

determinada área disciplinar.

Em síntese, o ensino da ciência deve integrar, sempre que possível, três

elementos complementares:

• compreensão de partes do corpus científico da disciplina em estudo.

• compreensão de alguns dos métodos e dos procedimentos utilizados no

estabelecimento (e constante desenvolvimento) desse corpus.

• compreensão da ciência como um empreendimento de origem social e com

implicações sociais, nomeadamente na relação com a sociedade, ao nível das

aplicações tecnológicas, ao nível das regras, pressupostos e estruturas no âmbito

científico.

3.1.5. Ensino das ciências e estratégias de aprendizagem.

Por fim, sintetizam-se alguns dos aspectos que permitem relacionar o ensino das

ciências com a aquisição e domínio de novas estratégias de aprendizagem (Edmondson

& Novak, 1993):

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I. INTRODUÇÃO 106

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• algumas estratégias de aprendizagem promovem uma aprendizagem científica

mais profunda e significativa, e o desenvolvimento de novas formas de pensar,

de novas perspectivas epistemológicas (e.g. Café, 2002).

• por outro lado, quando se desenvolvem novas perspectivas epistemológicas, de

carácter menos estático, absoluto, determinista e universal, isso pode facilitar o

desenvolvimento de atitudes mais favoráveis à utilização regular de estratégias

de aprendizagem diferentes e inovadoras, de carácter menos estático, absoluto,

determinista e universal (Duschl & Gitomer, 1991).

No ensino e na aprendizagem de conceitos científicos, no desenvolvimento de

concepções mais maduras sobre ciência, não é possível esquecer que o conhecimento

científico é essencialmente um produto social (Leach & Scott, 1995). As teorias

científicas que são ensinadas na escola foram prolongadamente debatidas e reiteradas

por uma comunidade de cientistas. Não são, como tantas vezes se pensa numa

perspectiva de senso comum, nem verdades absolutas nem leis naturais, nem foram

directamente extraídas dos factos tal como eles são, como se desde sempre tivessem

estado inscritas no “livro da natureza” para serem lidas pelo labor científico. Um

cientista não é um leitor, nem mesmo um intérprete: é um construtor, de edifícios

conceptuais e de metáforas (Meichenbaum,1993). Todos os cientistas enfrentam o

desafio de se colocarem perante os seus pares e de os convencerem da validade e da

consistência das suas propostas.

A aprendizagem de conceitos científicos requer a elaboração de novas formas

de pensar, introduzidas na interacção social com o professor e com o grupo (Zeidler &

Lederman, 1989).

Aprender ciência, aprender a fazer e como se faz ciência, pode generalizar-se a

outras situações de aprendizagem pelo desenvolvimento de atitudes e de estratégias

pessoais mais activas, participativas, críticas e questionadoras. Na diferença entre a

passividade de quem aprende o que lhe é ensinado, o que a ciência dita e os sábios

explicam, e uma atitude reconstrutiva e responsável de quem participa e partilha um

esforço comunitário de compreensão da realidade e de construção do saber.

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I. INTRODUÇÃO 107

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3.2. Formação de Professores: o papel das concepções e crenças pessoais.

Numa perspectiva actual, por vezes também designada de pós-moderna, a

formação de professores apresenta novos desafios, exige uma diversificação de

métodos e uma maior articulação com as características de cada professor, enquanto

pessoa autónoma e enquanto autor (Ferreira-Alves & Gonçalves, 2001). A noção de

“autoria” revê e prolonga a de autonomia. A autonomia supõe, até certo ponto, a noção

de independência, supõe a capacidade de adaptar e de percorrer um determinado

percurso, de acordo com os objectivos definidos. Supõe a capacidade de rever e

modificar estratégias em função dos resultados. A modernidade espera dos professores

que sejam autónomos e flexíveis, que se adaptem e adaptem os seus procedimentos em

função das circunstâncias e das vicissitudes de percurso. Mas a noção pós-moderna de

autoria, vai para além disso. O professor enquanto autor (muito mais do que enquanto

“actor”, prisioneiro de um enredo e de um papel pré-definido) é, simultaneamente,

personagem e produtor, de significados e sentidos, da sua própria narrativa e história de

vida, pessoal e profissional. É alguém comprometido, participante, envolvido nas

circunstâncias, alguém que determinada mas que também reconhece até que ponto é

determinado. Tudo isto requer um desenvolvimento emocional, narrativo e conceptual

da pessoa do professor, que impõe alterações significativas das práticas e dos modelos

de formação de professores.

3.2.1. Formação em Psicologia Educacional e concepções pessoais sobre

dificuldades de aprendizagem.

Em 1966 (1999, na tradução para língua portuguesa), Bruner referia a vontade

de aprender como um motivo humano intrínseco e universal. A curiosidade, a vontade

de saber e de se apropriar do conhecimento, são nesta perspectiva, comuns a todos os

alunos, de todas as idades e de todos os níveis de ensino, apesar do currículo e mesmo

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I. INTRODUÇÃO 108

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em condições adversas. Podem não se manifestar em algumas situações: em contextos

educativos inadequados, rígidos, desfasados dos alunos e das suas necessidades de

aprendizagem. Em muitos casos, deduz-se que efectivamente não existe vontade de

aprender onde apenas não existe uma adequada estimulação e activação do aluno, tal

como, por exemplo, pode ser suscitada na aprendizagem por descoberta (Bruner, 1998).

Na descoberta, o pensamento intuitivo alia-se a um esforço de raciocínio indutivo.

Bruner acredita que o professor deve criar e propor situações problemáticas que

estimulem a questionação, a exploração, a experimentação (Raposo, 1983). A

aprendizagem vai sendo progressivamente construída na busca de soluções para

problemas específicos, no intuir de respostas, na definição de novas questões,

reformuladas, reestruturadas, para uma verdadeira compreensão da estrutura essencial.

Essa compreensão mais profunda não decorre nem da adição de novas respostas nem de

uma mera acumulação de factos e dados. Nesta perspectiva, o processo de

aprendizagem de um determinado conteúdo pode decorrer de forma isomorfa ao

processo de investigação e estudo nesse mesmo domínio ou disciplina científica.

Na escola como na ciência, dificuldades e imprecisões, dúvidas e perplexidades

podem constituir-se como elemento motivador essencial. Por vezes são as dificuldades

que nos movem, que nos motivam e incentivam, por curiosidade, vontade ou

necessidade de saber. Obstáculos ou insucessos, desafios e enigmas, podem prejudicar.

Ou, em alternativa, podem estar na origem de novas aprendizagens, de descobertas

inovadoras. Podem, como sucede em resposta a situações de conflito cognitivo,

enriquecer estruturas e conduzir a estádios superiores de desenvolvimento. Porque

enquanto as respostas e os conhecimentos adquiridos nos oferecem a segurança do que

julgamos saber, os insucessos, dificuldades e obstáculos apontam para além disso.

Tal como a epistemologia genética sugere, o processo de desenvolvimento

cognitivo pode ser descrito com base em invariantes funcionais, comuns em todos os

períodos de desenvolvimento e em todos os indivíduos. No binómio assimilação e

acomodação, conhecimento e estruturas integram e vão sendo integrados, permitem

formular (princípios e asserções, factos isolados ou leis universais) e impõem

reformulações. No paradoxo de só se poder saber e conhecer o que de algum modo já

se sabe e conhece. Ou o que sendo moderadamente discrepante, possa ser factor de

desenvolvimento. E neste sentido, pode dizer-se que aprendizagem e desenvolvimento

convergem ou coincidem. Na escola como na vida.

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I. INTRODUÇÃO 109

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Na ausência de deficiência ou patologia específica, dadas as condições físicas e

sociais necessárias ao desenvolvimento normal de uma criança ou adolescente, a

psicologia cognitiva, a psicologia do desenvolvimento, permitem-nos esperar que todos

os alunos disponham de uma normal e adequada capacidade de aprendizagem, de um

normal potencial de desenvolvimento. E as dificuldades, os problemas, os

desfasamentos entre o que se sabe e o que se precisa de saber, são, de algum modo, o

fermento natural para o desenvolvimento. Num movimento universal, contínuo e

adaptativo de apropriação e integração, por assimilação e acomodação, num esforço de

equilibração. Nesta perspectiva, não há realmente aprendizagem por imitação,

memorização ou reforço. Só o conflito cognitivo, só o confronto com situações

problemáticas, só o processo de procurar soluções e de reformular premissas, conduz a

uma aprendizagem em sentido lato. Neste sentido, não só todos os alunos trazem

consigo o essencial para a produção de qualquer processo de aprendizagem, como esse

processo só é possível no confronto com dificuldades.

Na escola como na ciência, o corpo de conhecimentos que vai sendo

sucessivamente adquirido, serve normalmente de ponto de partida para a introdução de

novos conceitos, ponto de partida para reformulações e novas reorganizações de

informações e conceitos anteriores. Parte-se muitas vezes do que se sabe, do que se

acredita saber, de tudo o que se foi aprendendo ao longo do tempo, no contexto escolar,

por intuição, aculturação ou senso comum. Até certo ponto, essa é sempre a matéria-

prima para a construção de novas aprendizagens. No paradoxo de só se poder saber e

conhecer algo de novo, algo de diferente, no enquadramento do que já é familiar. E a

partir daí, reformular, refazer, construir, um renovado ou mais complexo conhecimento.

Na escola como na ciência, as perguntas podem conduzir ao saber, permitem

construir saber e as dificuldades podem incentivar-nos no caminho do sucesso. Nesse

percurso, tantas vezes difícil, mesmo os insucessos podem representar novos desafios,

abrir novas oportunidades. Na escola como em ciência as dificuldades são parte

integrante do processo.

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I. INTRODUÇÃO 110

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3.2.1. Concepções e crenças dos professores sobre a aprendizagem e sobre o

ensino.

Muitos estudos têm vindo a sugerir que é possível encontrar em jovens

professores em formação ou em início de funções, concepções sobre a natureza do

processo científico que podem ser classificadas como ingénuas, inconsistentes e

resistentes à mudança, tal como se pode observar ao nível dos seus próprios alunos

(Cachapuz, 1977; Edmondson & Novak, 1993; Monk & Dillon, 2000; Newton &

Newton, 1997; Solomon, Duveen & Scott, 1994; Trindade, 1996). Além disso, a falta

de formação e de informação no domínio da história e da filosofia da ciência podem

limitar imenso o trabalho do professor, privando-o de ideias sobre como ensinar acerca

da natureza dos processos científicos. E as lacunas observadas actualmente na

formação básica dos futuros professores (que como todos os outros alunos têm uma

formação quase nula no domínio da epistemologia) tende a fazer perpetuar esta

situação.

As crenças epistemológicas dos professores podem ser determinantes das suas

escolhas e práticas pedagógicas (Pajares, 1992). Provavelmente, os melhores

professores, sempre souberam e utilizaram todo um conhecimento intuitivo sobre quase

tudo o que acima se descreveu, mesmo indo contra princípios e normas vigentes

(Glasersfeld, 1995). Mas nem todos são espontaneamente detentores de crenças e

concepções construtivas e adaptativas.

Se um professor concebe a aprendizagem como um mero processo de

acumulação de conhecimento, como pode aceitar o desafio de criar situações de

conflito cognitivo e de construção activa por parte do aluno? Ou como será que vai

entender a possibilidade (e o desafio de) ensinar qualquer coisa a qualquer aluno em

qualquer idade? Talvez como uma impossibilidade, uma bizantinice própria de teóricos

e teorizadores, sem aplicação nem aplicabilidade. E, no entanto, nada como uma boa

teoria para mudar a prática. De um ponto de vista construtivista, o conhecimento é

considerado como uma actividade adaptativa, no sentido em que é composto por uma

espécie de compêndio de conceitos e acções que nos permitem atingir objectivos. Se

um professor parte da noção de que aprender é acumular conhecimento, adquirir e

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I. INTRODUÇÃO 111

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acumular, isso, essa forma de conceber e no fundo de teorizar sobre a aprendizagem,

muda a sua prática. O papel do professor passa a ser o de veículo, transmissor e

produtor das melhores condições para que essa acumulação (leia-se aprendizagem)

ocorra.

Neste sentido, a formação de professores deve e pode ser uma ocasião

privilegiada de mudança conceptual (mudança dos conceitos e ideias prévias), de

desenvolvimento pessoal e epistemológico (disputa de crenças sobre o ensino, a

aprendizagem e o conhecimento em geral), de consciencialização sobre si mesmo e

sobre as suas próprias crenças, concepções, metáforas, narrativas e estratégias de

aprendizagem e ensino (Alexander & Dochy, 1994; Duarte, 2000; Gonçalves &

Ferreira-Alves, 1995; Hand & Treagust, 1994; Pultorak, 1993; Rego, 1999; Santos &

Gonçalves, 1988).

A formação de professores integra normalmente o estudo de múltiplos modelos

de aprendizagem (Gredler, 1997). Deste modo, os professores em formação são

colocados numa situação, por vezes completamente nova20, de aprendizagem de

conceitos científicos. Neste sentido, é necessário não esquecer tudo o que em capítulos

anteriores ficou dito sobre o ensino e a aprendizagem de conceitos científicos. É que

apesar de se tratar neste caso de formação a alunos universitários, adultos e em vias de

integração numa actividade profisssional, por vezes já com alguma experiência na

docência, estes alunos trazem para a formação ideias prévias, concepções e crenças que

podem persistir apesar da formação e alterar de forma significativa a eficácia desses

mesmos programas. Como podem afectar de forma significativa, quer o discurso quer

as práticas pedagógicas desses futuros professores. E, numa história sem fim, esses

discurso e essas práticas pedagógicas podem determinar as concepções e crenças

pessoais dos seus futuros alunos, alterando de forma significativa a eficácia dos

programas e currículos oficiais. Algumas dessas crenças e concepções, e

20 No caso específico da formação de professores ministrada pela Faculdade de Letras em

colaboração com a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, a

generalidade dos alunos em formação inicial provem de uma formação de carácter mais humanista

(ensino e aprendizagem das Línguas, Filosofia, História e Geografia) onde, por uma razão ou por outra,

(talvez como acontece à generalidade dos alunos do ensino Básico e Secundário) lhes foi proporcionada

uma reduzida experiência de aprendizagem activa de conceitos científicos e uma reduzida compreensão

da natureza e da metodologia de investigação científica.

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I. INTRODUÇÃO 112

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consequentemente algumas dessas práticas e discursos pedagógicos, podem contribuir

de forma significativa para o desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem.

No âmbito da investigação sobre o pensamento do professor (Clark & Peterson,

1986; Harrington, 1994; Greene 1986), alguns estudos concentram-se especificamente

na determinação de crenças e concepções pessoais dos professores sobre dificuldades e

distúrbios de aprendizagem, sobre práticas de ensino e de apoio aos alunos (Kassar,

1995; Kavale & Reese, 1991; Phelan & McLaughlin, 1995). Entender como os

professores entendem, identificar crenças e concepções pessoais, parece ser uma tarefa

essencial para o desenvolvimento de estratégias de formação mais adequadas, mais

adaptadas e adaptativas, na prevenção ou no apoio a alunos com dificuldades de

aprendizagem.

Tal como “a flexibilidade no estilo terapêutico depende da flexibilidade nos

estilos epistémicos” (Vasco, Silva & Chambel, 2001, p. 300) talvez no caso dos

professores seja possível supor que uma maior maleabilidade e qualidade na integração

de diferentes estilos e estratégias pedagógicas (num esforço de adaptação a cada turma

ou de individualização para alunos em dificuldades) dependa também da sua

maturidade e flexibilidade em termos epistemológicos e conceptuais. A formação numa

era pós moderna deve actuar no sentido de tornar cada professor mais consciente da

complexidade dos processos de conhecimento e de aprendizagem, mais flexível e mais

disponível para compreender e partilhar múltiplas perspectivas (Ferreira-Alves &

Gonçalves, 2001). Se o professor for desenvolvendo ao longo da formação crenças e

pressupostos mais próximos de um relativismo conceptual, uma visão mais dinâmica e

contextualizada sobre o conhecimento, talvez seja mais fácil que venha a desenvolver

na sua prática pedagógica atitudes e práticas mais “ecléticas”, integradas e integradoras,

mais adaptadas a cada caso e a cada necessidade.

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I. INTRODUÇÃO 113

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3.3. Psicoterapia e apoio psicopedagógico a alunos com dificuldades de

aprendizagem.

Como se referiu anteriormente, ao invés de pensar que cada aluno reage

passivamente a um conjunto de estímulos ambientais em função de contingências de

reforço, os modelos cognitivos consideram que cada pessoa é um activo construtor da

sua própria “visão” do mundo (Bandura, 1986; Kaplan, 1991; Meichenbaum, 1977,

1986; Meyers, Cohen & Schleser, 1989). Isto cria uma interacção dinâmica entre o

comportamento individual, os processos de mediação cognitiva (incluindo crenças,

concepções, avaliações e juízos de valor, regras e expectativas pessoais) e o ambiente.

Para ajudar qualquer pessoa a superar as suas dificuldades pessoais é necessário

considerar, analisar, compreender o funcionamento e dinâmica de todos estes factores,

isto é, torna-se necessário considerar simultaneamente três ordens de variáveis:

comportamentais, intrapessoais e situacionais.

Isto significa que qualquer dificuldade de aprendizagem deve ser descrita em

contexto (Cousin, Diaz, Flores & Hernandez, 1996; Grave & Walsh, 1998; Keogh,

1994; Lyon, 1994; Thomas, 1993), nomeadamente:

• em primeiro lugar, no contexto de uma teoria ou de um modelo conceptual –

diferentes modelos sugerem diferentes formas de avaliar e descrever uma

dificuldade de aprendizagem. No caso presente, a avaliação proposta decorre

essencialmente de uma perspectiva cognitivo-comportamental.

• num contexto intrapessoal – incluindo os aspectos cognitivos, metacognitivos,

emocionais, motivacionais, atendendo nomeadamente ao significado atribuído à

dificuldade, crenças, expectativas e atribuições.

• num contexto temporal ou desenvolvimentista – incluindo aspectos referentes ao

próprio aluno (anamnese, história de aprendizagem, projecto de vida, projecto de

aprendizagem, etc.) e à dificuldade de aprendizagem em estudo (evolução da

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dificuldade actual, historial de esforços de avaliação e de intervenção anteriores,

etc.).

• num contexto situacional – incluindo a análise funcional do comportamento

(associação entre estímulos antecedentes, comportamentos e consequências), análise

curricular, métodos instrucionais e estratégias de avaliação, limitações físicas dos

locais em que decorre a aprendizagem.

• num contexto social e interpessoal – incluindo uma determinação de expectativas

sociais, crenças e concepções vigentes, imagem e inserção do aluno no grupo de

pares, etc.

Quadro A.

Dimensões para avaliação de Dificuldades de Aprendizagem.

COGNITIVA

EMOCIONAL COMPORTAMENTAL

TEMPORAL

SOCIAL

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I. INTRODUÇÃO 115

Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves

A adopção de uma perspectiva comportamental-cognitiva parece especialmente

adequada para a avaliação e intervenção em dificuldades de aprendizagem por se

centrar no processo de mudança. O conceito de mudança é fundamental para a

definição e caracterização de qualquer situação de dificuldade de aprendizagem

(Francis et al.,1994; Shaywitz & Shaywitz, 1994), talvez precisamente por ser

“dificuldade” e por ser “aprendizagem”. Numa perspectiva quase intuitiva:

• aprendizagem significa “mudança”. Quer se trate da aquisição de conhecimento

novo ou de um aumento de mestria e competência, quando se fala de aprendizagem,

pressupõe-se que algo mudou ou está a mudar. Algo de novo, algo mais, maior ou

melhor.

• dificuldade significa “bloqueio”, “paragem”, “obstáculo”. Ou, por outro lado,

“oportunidade”, “desafio”, necessidade de solucionar ou de descobrir algo novo ou

diferente. O que é certo é que quem está em dificuldade precisa de mudar, a

diferentes níveis: produto, processos, hábitos, pressupostos, objectivos. A

dificuldade corresponde a uma insuficiente ou deficiente mudança, ou a mudanças

consideradas negativas para o indivíduo e para o contexto. Mudanças que é preciso

recuperar ou incentivar, estimular e reforçar.

No contexto de uma psicoterapia de natureza comportamental e cognitiva,

passa-se (pressupõe-se) algo de similar. Quer se trate de dificuldades comportamentais,

cognitivas, emocionais, motivacionais, ou relacionais, em todos os casos o problema é

concebido em função de objectivos de mudança terapêutica (Adelman & Taylor, 1988;

Leahy, 1995). Para mudar, o cliente é convidado a aprender21: sobre si próprio, sobre as

suas queixas, sobre o seu problema, sobre a perspectiva dos outros.

As técnicas de avaliação cognitivo-comportamental podem solicitar ao aluno:

predições sobre o seu desempenho antes da realização de uma determinada tarefa; que

21 Paralelamente, os resultados das investigações sobre concepções pessoais sobre a

aprendizagem, sugerem que a concepção de maior complexidade e abrangência corresponde precisamente

à possibilidade de o aluno ”mudar enquanto pessoa”. Por exemplo, “aprender o significado pessoal de

uma experiência; uma nova filosofia de vida; envolver-se na aprendizagem.” (Saljö, 1979, citado por

Stevenson & Palmer, 1994).

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I. INTRODUÇÃO 116

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verbalize durante a realização (técnicas de think aloud e amostragem cognitiva); ou

que, depois de concluir a tarefa, recorde alguns dos seus pensamentos e estratégias

utilizadas (evocação estimulada, entrevista clínica, preenchimento de protocolos de

auto-registo, de listagens, escalas, inventários e questionários). Todos estes

instrumentos e procedimentos podem ser associados ou complementados por métodos

de avaliação provenientes de outros domínios, podendo referir-se a título de exemplo:

no domínio pedagógico, a avaliação análoga (Gettinger, 1988) e avaliação com base no

currículo (Hammill & Bartel, 1986); no domínio da avaliação formal, provas e

instrumentos de avaliação diferencial e psicométrica (Smith, 1994); no domínio da

avaliação informal, procedimentos e instrumentos de observação do comportamento

(Estrela, 1984; Irwin & Bushnell, 1980); do domínio da avaliação operatória do

desenvolvimento cognitivo, protocolos de avaliação inspirados nas entrevistas clínicas

descritas por Jean Piaget ao longo da sua obra (Pauli, Nathan, Droz & Grize, 1981;

Dolle & Bellano, 1993).

Uma perspectiva cognitivo-comportamental concebe a intervenção mais numa

perspectiva educacional e desenvolvimentista, do que como um acto clínico ou de

reeducação. Todos os alunos, com e sem problemas de aprendizagem, podem

beneficiar da estimulação e da preparação oferecida por programas de prevenção

(Adelman, 1989). Aprender a identificar e a lidar com crenças irracionais é um dos

objectivos da Educação Racional-Emotiva, numa perspectiva preventiva e educacional

(Knaus, 1974; Vernon, 1994). Mas uma intervenção cognitiva pode contribuir para uma

modificação de atitudes, concepções, estratégias e comportamentos em muitos outros

problemas escolares nomeadamente em situações de procrastinação, baixa resistência à

frustração, ansiedade a testes, depressão, fobia escolar, agressividade, isolamento social

e outros problemas interpessoais (Burns, 1992; Cohn, 1998; Rothschild, 1994; Wilde,

1992). Entre todas as possíveis aplicações deste tipo de intervenção, é de realçar a

importância da terapia cognitiva de carácter individual para reestruturação e disputa de

erros cognitivos (erros lógicos de percepção e de avaliação) e de crenças irracionais

(Bard & Fisher, 1983; Rothschild, 1994).

Outro aspecto fundamental no apoio a alunos com dificuldades de

aprendizagem prende-se com a avaliação e estimulação de competências socio-

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I. INTRODUÇÃO 117

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cognitivas e de relação interpessoal. A inserção de alunos percepcionados pelo

professor e pelo grupo como tendo dificuldades de aprendizagem pode afectar o seu

estatuto sociométrico e a interacção com o grupo de pares (Frederickson & Furnham,

1998; Juvonen & Bear, 1992). Estes alunos podem beneficiar de uma intervenção que

modifique algumas deficiências na dinâmica da turma e de treinos para o

desenvolvimento da auto-estima, de competências de afirmação pessoal (assertividade)

e de estratégias de resolução de problemas no contexto social (Catterall & Gazda, 1978;

Kaplan, 1991; Pope, McHale & Craighead, 1988; Putnam, Markovchick, Jonhson &

Jonhson, 1996).

O papel dos pais, a influência que os pais exercem sobre os filhos em risco de

insucesso ou com dificuldades persistentes, também pode ser alvo de intervenção e

apoio. Pode ser controlada por programas de treino parental, para a modificação de

atitudes e práticas parentais, mas sobretudo para a modificação de crenças e

expectativas (Bernard, 1977; Joyce, 1994; Wilde, 1992). Verifica-se, por exemplo, que

os pais podem ter influência na modelagem de atitudes mais ou menos positivas e

confiantes (Brewin, Andrews & Furnham, 1996).

Nas últimas décadas, multiplicaram-se os estudos sobre o stress dos professores

(Pinto, 2000). Este é um aspecto muito pouco referido ao nível da formação, mas

efectivamente os professores também podem beneficiar com a participação em

programas de grupo para a aprendizagem de atitudes pessoais e interpessoais mais

adaptativas e de crenças mais racionais, mesmo se apenas com um carácter preventivo.

Estes programas podem constituir um complemento da formação inicial (Payne &

Manning, 1990). Além disso, em situações de crise pessoal ou de stress acrescido é

possível aprender a lidar com os problemas, e adquirir estratégias de controle e de auto-

regulação em situações difíceis e de maior pressão e risco (Forman, 1994; Wilde,

1992).

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4. Objectivos e Hipóteses em Estudo.

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I. INTRODUÇÃO 121

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4.1. Objectivos

1. Descrever e caracterizar concepções pessoais de estudantes e professores

sobre dificuldades de aprendizagem, em diferentes momentos da sua formação.

2. Desenvolver um questionário e outros instrumentos de avaliação qualitativa

para a caracterização de concepções pessoais sobre dificuldades de aprendizagem.

3. Comparar concepções pessoais e concepções científicas sobre dificuldades de

aprendizagem.

4. Analisar a evolução e reflectir sobre os efeitos da formação, escolar ou

profissional, na modificação de concepções pessoais sobre dificuldades de

aprendizagem.

5. Sugerir estratégias de ensino e formação que favoreçam a reflexão e

estimulem o desenvolvimento conceptual no domínio das dificuldades de

aprendizagem.

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4.2. Hipóteses em estudo.

1. Espera-se que a tradução para língua portuguesa do Questionário

Epistemológico apresente, na sua versão para estudantes universitários, uma estrutura

factorial similar às observada em estudos anteriores para a população americana.

Tratando-se de um questionário sobre crenças sobre a natureza, estrutura,

acessibilidade e processos de aquisição do conhecimento, não se esperam diferenças

significativas entre estas duas populações. Dado que as crenças pessoais, intuitivas ou

de senso comum, estão (e são) difundidas numa comunidade sociocultural, sujeita ao

fenómeno de globalização e de aculturação (uniformização) pelos media, esperam-se

resultados equivalentes (Estudo 1.).

2. Espera-se poder estabelecer um paralelismo entre as concepções científicas

sobre as Dificuldades de Aprendizagem (desenvolvidas ao longo das últimas décadas) e

concepções pessoais difundidas numa população de estudantes universitários em

formação, destinados à área da docência, da Psicologia e das Ciências da Educação

(Estudo 2.).

3. Espera-se poder observar uma crescente maturidade conceptual e

epistemológica ao longo do percurso de formação. Esta diferença será observável por

comparação entre os resultados obtidos por estudantes em dois níveis da sua formação:

universitários e provenientes do ensino secundário (Estudo 3.).

4. Espera-se que as crenças pessoais sobre dificuldades de aprendizagem possam

constituir uma nova escala complementar ao Questionário Epistemológico. Esperam-se

relações significativas entre esta nova escala e as escalas identificadas no estudo

psicométrico do questionário sobre crenças epistemológicas em geral. Isto é, espera-se

que as crenças pessoais sobre dificuldades de aprendizagem se correlacionem de forma

significativa com as crenças epistemológicas. Espera-se que quanto maior for a

maturidade epistemológica, mais os alunos acreditem no carácter funcional das

Dificuldades de Aprendizagem (Estudo 4.).

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