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PARECERES Instituto do Emprego e Formação Profissional — Processo especial de recuperação da empresa e de falência — Conceito de Estado — Extinção de privilégios creditórios — Parecer do Ministério Público, proc. n.º 943/99 ......................................................... Empresas de segurança privada — Conceito de estabelecimento ou serviço — Violação da Lei da Greve — Parecer do Ministério Público, proc. n.º 86/2000 ............................ JURISPRUDÊNCIA JURISPRUDÊNCIA FIXADA Instituto do Emprego e Formação Profissional — Processo especial de recuperação da empresa e de falência — Conceito de Estado — Extinção de privilégios creditórios — Assento do S. T. J., de 28-11-2000, revista n.º 943/99 .............................................. Empresas de segurança privada — Conceito de estabelecimento ou serviço — Violação da Lei da Greve — Assento do S. T. J., de 30-11-2000, proc. n.º 86/2000 ..................... DIREITO CONSTITUCIONAL Reclamação para o plenário — Pagamento da conta de custas — Litigância de má fé — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 465/2000, de 7-11-2000 ..................................... Código de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações — Prazo de impugnação contenciosa — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 482/2000, de 22-11-2000 ........... Demolição de obras ilegais — Licenciamento municipal de obras — Indeferimento tácito — Princípio da proporcionalidade — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 484/2000, de 22-11-2000 ................................................................................................................ Causas de nulidade da sentença — Esclarecimento ou reforma da sentença — Processamento subsequente — Arguição de nulidades — Acesso ao direito e aos tribunais — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 485/2000, de 22-11-2000 .............................................. Arguição de nulidade — Legitimidade — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 488/2000, de 22-11-2000 ............................................................................................................ Conversão da multa não paga em prisão subsidiária — Suspensão da prisão subsidiária — Prova — Garantias de defesa — Princípio in dubio pro reo Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 491/2000, de 22-11-2000 ............................................................. 5 15 25 34 40 47 53 58 63 64

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371 ÍndiceBMJ 501 (2000)

ÍNDICE

PARECERES

Instituto do Emprego e Formação Profissional — Processo especial de recuperação daempresa e de falência — Conceito de Estado — Extinção de privilégios creditórios —Parecer do Ministério Público, proc. n.º 943/99 .........................................................

Empresas de segurança privada — Conceito de estabelecimento ou serviço — Violação daLei da Greve — Parecer do Ministério Público, proc. n.º 86/2000 ............................

JURISPRUDÊNCIA

JURISPRUDÊNCIA FIXADA

Instituto do Emprego e Formação Profissional — Processo especial de recuperação daempresa e de falência — Conceito de Estado — Extinção de privilégios creditórios —Assento do S. T. J., de 28-11-2000, revista n.º 943/99 ..............................................

Empresas de segurança privada — Conceito de estabelecimento ou serviço — Violação daLei da Greve — Assento do S. T. J., de 30-11-2000, proc. n.º 86/2000 .....................

DIREITO CONSTITUCIONAL

Reclamação para o plenário — Pagamento da conta de custas — Litigância de má fé —Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 465/2000, de 7-11-2000 .....................................

Código de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações — Prazo de impugnaçãocontenciosa — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 482/2000, de 22-11-2000 ...........

Demolição de obras ilegais — Licenciamento municipal de obras — Indeferimento tácito —Princípio da proporcionalidade — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 484/2000, de22-11-2000 ................................................................................................................

Causas de nulidade da sentença — Esclarecimento ou reforma da sentença — Processamentosubsequente — Arguição de nulidades — Acesso ao direito e aos tribunais — Ac. doTribunal Constitucional, n.º 485/2000, de 22-11-2000 ..............................................

Arguição de nulidade — Legitimidade — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 488/2000,de 22-11-2000 ............................................................................................................

Conversão da multa não paga em prisão subsidiária — Suspensão da prisão subsidiária —Prova — Garantias de defesa — Princípio in dubio pro reo — Ac. do TribunalConstitucional, n.º 491/2000, de 22-11-2000 .............................................................

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372Índice BMJ 501 (2000)

Processo de execução fiscal — Execução por dívidas ao Instituto de Apoio às Pequenas eMédias Empresas e ao Investimento — Tribunais tributários — Inconstitucionalidadeorgânica — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 503/2000, de 28-11-2000 ...............

Tabela de Taxas da Câmara Municipal de Sintra — Taxa incidente sobre instalaçõesabastecedoras de combustíveis líquidos inteiramente situadas em terrenos privados —Imposto — Taxa — Ac. do Tribunal Constitucional, n.º 515/2000, de 29-11-2000 ....

DIREITO PENAL

Crime de maus tratos a pessoa deficiente — Crime de maus tratos a cônjuge — Suspensãoda execução da pena — Ac. do S. T. J., de 29-11-2000, proc. n.º 3215/2000 ............

Crime de tráfico de estupefacientes — Tráfico de menor gravidade — Relevância, para aqualificação, da perigosidade da droga traficada, da intenção lucrativa e da toxicode-pendência — Ac. do S. T. J., de 30-11-2000, proc. n.º 2849/2000 .............................

DIREITO ADMINISTRATIVO

Acto administrativo — Deliberação municipal de reversão — Recurso contencioso — Meioprocessual idóneo — Ac. do S. T. A., de 8-11-2000, rec. n.º 46 142 ..........................

Fundamentação do acto administrativo — Acções de formação profissional — Ac. doS. T. A., de 9-11-2000, rec. n.º 44 019 .......................................................................

Recurso hierárquico necessário — Prazo de interposição — Notificação defeituosa —Princípios da boa fé e do favor actione — Ac. do S. T. A., de 9-11-2000, rec. n.º 45 390

Reversão de bens expropriados — Efeitos da declaração de utilidade pública — Aquisiçãode bens por expropriação e por compra e venda — Transferência desses bens para oEstado — Legitimidade activa — Publicação do acto — Falta de fundamentação —Ac. do S. T. A., de 22-11-2000, rec. n.º 35 703 ..........................................................

Delegação de competência — Falta de lei habilitante — Ac. do S. T. A., de 22-11-2000,rec. n.º 45 244 ............................................................................................................

Direito de reversão de bem expropriado — Princípio tempus regit actum — Indeferimentotácito — Ac. do S. T. A., de 24-11-2000, rec. n.º 37 657 ............................................

DIREITO FISCAL

Amnistia — Lei n.º 51-A/96, de 9 de Dezembro — Interpretação — Exclusão do ilícitocontra-ordenacional — Ac. do S. T. A., de 15-11-2000, rec. n.º 25 446 ....................

Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares — Fraccionamento de rendimentos —Sociedade conjugal — Liquidação de sociedade irregular — Dupla tributação —Ac. do S. T. A., de 22-11-2000, rec. n.º 25 496 ..........................................................

Recurso jurisdicional — Âmbito do recurso — Nulidades de sentença ou acórdão — Omis-são de pronúncia — Falta de fundamentação — Competência do tribunal tributário —Questão incidental de natureza cível — Poderes de cognição do Supremo TribunalAdministrativo — Direito de audição no procedimento tributário — Princípio doinquisitório — Ac. do S. T. A., de 29-11-2000, rec. n.º 25 214 ..................................

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373 ÍndiceBMJ 501 (2000)

DIREITO PROCESSSUAL PENAL

Recurso extraordinário — Fixação de jurisprudência — Decisão da 1.ª instância proferidacontra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça — Trânsito em jul-gado — Recurso ordinário — Inadmissibilidade de recurso directo para o SupremoTribunal de Justiça — Ac. do S. T. J., de 8-11-2000, proc. n.º 2729/2000 .................

Meios de prova em processo penal — Depoimento indirecto — Leitura permitida de auto —Ac. do S. T. J., de 15-11-2000, proc. n.º 2551/2000 ..................................................

Responsabilidade civil conexa com a criminal — Absolvição criminal — Pedido cível —Ac. do S. T. J., de 22-11-2000, proc. n.º 1776/2000 ..................................................

Juiz — Impedimento— Poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça — Audiênciade julgamento — Prova testemunhal — Prova por reconhecimento — Tráfico deestupefaciente — Tráfico de menor gravidade — Ac. do S. T. J., de 23-11-2000, proc.n.º 2715/2000 .............................................................................................................

Despacho de não pronúncia — Decisões absolutórias — Inadmissibilidade de recurso —Ac. do S. T. J., de 29-11-2000, proc. n.º 2950/2000 ..................................................

Omissão de acta de julgamento — Co-arguido falecido — Extinção do procedimento crimi-nal — Leitura das declarações em instrução — Prova não proibida — Elemento nãodecisivo — Livre apreciação — Ac. do S. T. J., de 30-11-2000, proc. n.º 2828/2000

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Acção emergente de acidente de viação — Inexistência de seguro — Fundo de GarantiaAutomóvel — Ónus de impugnação do artigo 490.º do Código de Processo Civil,seu funcionamento no que toca à falta de seguro automóvel — Ac. do S. T. J., de7-11-2000, proc. n.º 2500/2000 .................................................................................

Expropriação por utilidade pública — Actualização da indemnização — Limites da conde-nação — Jurisprudência uniformizada — Recursos sempre admissíveis (artigo 678.º,n.º 6, do Código de Processo Civil) — Ac. do S. T. J., de 14-11-2000, proc. n.º 2494/2000 ...........................................................................................................................

Arresto — Dano — Jogador de futebol — Direito de cedência ou de transferência («passe») —Penhora — Sentença — Falta de fundamentação — Nulidade — Abuso de direito(venire contra factum proprium) — Litigante de má fé — Constitucionalidade —Ac. do S. T. J., de 21-11-2000, agravo n.º 2518/2000 ................................................

Contestação — Oportunidade de dedução da defesa — Articulado superveniente — Defesasuperveniente — Superveniência subjectiva — Ac. do S. T. J., de 23-11-2000, proc.n.º 2463/2000 .............................................................................................................

Reforma agrária — Arrendamento rural — Direito de reserva — Embargos — Títuloexecutivo — Ac. do S. T. J., de 30-11-2000, proc. n.º 2050/2000 ..............................

DIREITO CIVIL

Parte geral

Expropriação — Indemnização — Depósito — Prazo — Juros de mora — Renúncia —Ac. do S. T. J., de 9-11-2000, proc. n.º 2894/2000 ....................................................

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374Índice BMJ 501 (2000)

Direito das obrigações

Contrato de aluguer de longa duração (ALD) — Incumprimento — Resolução do con-trato — Indemnização — Ac. do S. T. J., de 7-11-2000, proc. n.º 2318/2000 ...........

Direito de retenção — Promessa de compra e venda — Processo de falência — Restituiçãoprovisória de posse — Ac. do S. T. J., de 9-11-2000, proc. n.º 1759/2000 ...............

Contrato de arrendamento — Consentimento tácito — Morte do locador — Usufrutuá-rio — Caducidade — Abuso de direito (venire contra factum proprium) — Ac. doS. T. J., de 14-11-2000, proc. n.º 3165/2000 ..............................................................

Contrato-promessa de compra e venda do direito e acção à herança — Requisitos for-mais — Ac. do S. T. J., de 21-11-2000, proc. n.º 3127/2000 .....................................

Acidente de viação — Conculpabilidade — Juros de mora: momento da constituição —Cumulação com a correcção do valor da indemnização — Ac. do S. T. J., de23-11-2000, proc. n.º 46/2000 ...................................................................................

Responsabilidade civil — Seguro de responsabilidade civil obrigatória — Direito deregresso — Alcoolemia — Ac. do S. T. J., de 23-11-2000, rev. n.º 3132/2000 ...........

Contrato de fornecimento — Energia eléctrica — Média tensão — Interpretação da lei —Caducidade — Ac. do S. T. J., de 28-11-2000, rev. n.º 3011/2000 .............................

Contrato-promessa de compra e venda — Fracção autónoma de imóvel — Forma docontrato — Nulidade por inobservância da forma — Abuso de direito — Venire contrafactum proprium — Ac. do S. T. J., de 28-11-2000, proc. n.º 3189/2000 ..................

DIREITO COMERCIAL

Acção especial de inquérito judicial — Legitimidade para interpor tal acção — Comu-nicabilidade dos direitos e deveres dos sócios ao património comum do casal —Diferença, neste ponto, entre o regime actual do Código das Sociedades Comerciais eo regime anterior — Natureza interpretativa das normas actuais — Ac. do S. T. J., de28-11-2000, rec. n.º 3162/2000 ..................................................................................

Cheque falsificado — Pagamento — Responsabilidade civil — Bancos — Ac. do S. T. J., de9-11-2000, proc. n.º 2638/2000 .................................................................................

Sumários dos acórdãos

Supremo Tribunal Administrativo

I — Tribunal pleno:

Direito de reversão de bem expropriado — Princípio tempus regit actum — Inde-ferimento tácito — Recurso para o pleno da 1.ª Secção — Ac. de 24-11-2000 .....

Recurso contencioso — Alegações — Obrigatoriedade da sua apresentação pelorecorrente — Inconstitucionalidade do artigo 24.º, alínea b), da Lei de Processonos Tribunais Administrativos (não) — Ac. de 24-11-2000 ...............................

II — 1.ª Secção:

Acto administrativo — Deliberação municipal de reversão — Recurso contencioso —Meio processual idóneo — Ac. de 8-11-2000 ...................................................

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375 ÍndiceBMJ 501 (2000)

Âmbito do recurso jurisdicional — Nulidade de sentença — Omissão de pronúncia —Contrato de direito privado — Acto destacável — Ac. de 9-11-2000 .................

Apreciação do ruído de estabelecimento industrial — Delimitação do âmbito do re-curso jurisdicional — Conclusões da alegação do recurso — Ac. de 23-11-2000

Cartas de condução de veículo automóvel — Amnistia — Prazo de caducidade —Ac. de 16-11-2000 ..............................................................................................

Cemitérios — Transferência de jazigo — Reposição com alterações — Motivaçãoposterior ao acto — Ac. de 15-11-2000 .............................................................

Competência do Supremo Tribunal Administrativo — Matéria relativa ao funciona-lismo público — Comandante das Forças de Segurança de Macau — Ac. de9-11-2000 ...........................................................................................................

Despejo administrativo (artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 23 465, de 18 de Janeiro de1934) — Ocupação não titulada de prédio do Estado — Usurpação de poder —Ac. de 8-11-2000 ................................................................................................

Empreitada de obras públicas — Recepção definitiva — Prazo de garantia — Auto derecepção provisória — Falsidade de documentos — Articulado superveniente —Compensação — Litigância de má fé — Ac. de 16-11-2000 ..............................

Execução de julgado — Reconstituição de carreira — Ac. de 8-11-2000 ..................Expropriação por utilidade pública — Competência — Urgência — Fundamenta-

ção — Audiência — Ac. de 28-11-2000 ............................................................Fundamentação do acto administrativo — Ac. de 28-11-2000 .................................Subsídio de desemprego — Interpretação do acto — Exercício de actividade profis-

sional — Acto revogatório da atribuição da prestação — Direito de audiência —Ac. de 22-11-2000 ..............................................................................................

Invocação de vícios — Errada qualificação — Questões que cumpre ao tribunalconhecer — Nulidade de sentença — Ac. de 15-11-2000 ..................................

Licenciamento de unidade industrial — Nulidade da sentença — Pedido de viabilidadede construção — Plano Director Municipal — Regulamento — Princípio tempusregit actum — Condição suspensiva legal — Fundamentação — Ac. de 28-11-2000

Magistrados judiciais — Vencimentos — Lei n.º 63/90, de 26 de Dezembro — Incons-titucionalidade — Ac. de 16-11-2000 .................................................................

Nulidade da sentença por falta de fundamentação — Responsabilidade civil extra-contratual — Critérios para fixação da indemnização — Ónus de alegação —Ac. de 14-11-2000 ..............................................................................................

Responsabilidade civil extracontratual da Administração — Direito de indemniza-ção — Interrupção da prescrição — Notificação para resposta no recurso con-tencioso — Princípio do contraditório — Ac. de 16-11-2000 ............................

III — 2.ª Secção:

Imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas — Liquidação — Métodos indiciá-rios — Fundamentação e sua notificação — «Actos massa» — Ac. de 22-11-2000

Imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas — Isenção — Pessoa colectiva deutilidade pública — Fins predominantemente científicos — Sindicabilidadecontenciosa dos actos administrativos — Exercício de poderes vinculados —Ac. de 29-11-2000 ..............................................................................................

Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares — Liquidação — Actos susceptí-veis de alterarem a situação tributária do contribuinte — N.º 1 dos artigos 64.º e65.º do Código de Processo Tributário — Notificação — Ac. de 15-11-2000 ....

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376Índice BMJ 501 (2000)

Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares — Deficiência — Benefício fiscal —Disfunção residual — Princípio da legalidade — Ac. de 8-11-2000 ..................

Recurso jurisdicional — Ampliação da matéria de facto — Artigos 729.º e 730.º doCódigo de Processo Civil — Direito local — Matéria de facto — Artigo 348.º doCódigo Civil — Ac. de 29-11-2000 ....................................................................

Tribunais de Segunda Instância

I — Relação de Lisboa:

Acusação — Notificação — Procedimentos — Prosseguimento do processo — Faltade notificação — Irregularidade — Ac. de 8-11-2000 .......................................

Alimentos — Ónus da prova — Ac. de 30-11-2000 ..................................................Amnistia — Lei n.º 29/99, de 12 de Maio — Ac. de 7-11-2000 ..................................Articulado superveniente — Prazo de dedução — Ac. de 23-11-2000 ......................Caixa Geral de Aposentações — Constituição de assistente — Taxa de justiça — Ac. de

9-11-2000 ...........................................................................................................Causa de pedir — Esbulho — Acção de restituição de posse — Prazo de caducidade —

Ac. de 23-11-2000..............................................................................................Condução em estado de embriaguez — Amnistia (Lei n.º 29/99) — Atenuação especial

da pena — Sanção acessória — Dispensa — Ac. de 15-11-2000 ......................Denúncia do contrato de arrendamento — Artigo 108.º do Regime do Arrendamento

Urbano — Ac. de 30-11-2000 ...........................................................................Extradição — Tribunal da Relação territorialmente competente — Ac. de 15-11-2000Faltas — Justificação — Comunicação — Prazo — Impossibilidade de comparên-

cia — Ac. de 15-11-2000 ...................................................................................Herança indivisa — Ilegitimidade de um dos herdeiros a título singular — Ac. de

23-11-2000 .........................................................................................................Herança jacente — Personalidade judiciária — Ac. de 9-11-2000 ...........................Homicídio privilegiado — Emoção violenta compreensível — Ac. de 2-11-2000 .....Nulidades insanáveis — Regime de arguição — Ac. de 21-11-2000 .........................Obras na casa arrendada — Local convencionado para pagamento da renda —

Ac. de 16-11-2000..............................................................................................Pena de prisão efectiva — Perdão — Suspensão da execução — Pena perdoada —

Regime mais favorável — Ac. de 29-11-2000 ....................................................Prisão preventiva — Prazo — Crime de tráfico de estupefacientes — Ac. de 28-11-2000Procedimento cautelar — Competência territorial — Ac. de 2-11-2000 ...................Recurso — Demandante cível — Ofendido não assistente — Legitimidade — Ac. de

30-11-2000 .........................................................................................................Regime especial para jovens — Legítima defesa — Ac. de 2-11-2000 ......................Remissão para os articulados — Nulidade de sentença — Ac. de 16-11-2000 ..........Seguro — Caução — Garantia autónoma — Ac. de 12-11-2000 ..............................Sentença — Nulidade — Excesso de pronúncia — Ac. de 15-11-2000 ......................Subida de recurso — Retenção irreparável — Ac. de 16-11-2000 ............................Tráfico de estupefacientes — Crimes exauridos ou crimes excutidos — Ac. de

2-11-2000 ...........................................................................................................Validade da queixa — Procuração — Mandatário não judicial — Ac. de 14-11-2000

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377 ÍndiceBMJ 501 (2000)

II — Relação do Porto:

Acção de preferência — Registo — Ac. de 27-11-2000 ............................................Acidente de trabalho — Remição de pensões — Cálculo do capital — Ac. de

13-11-2000 .........................................................................................................Acidente de viação — Danos não patrimoniais — Bens da herança — Ac. de 2-11-2000Arrendamento rural — Denúncia — Reocupação do prédio — Ac. de 27-11-2000Arrendamento — Resolução — Alteração da estrutura externa do prédio — Ac. de

27-11-2000 .........................................................................................................Auto-estradas — Obrigações do concessionário — Acidente provocado por areia —

Culpa presumida — Ac. de 27-11-2000 ............................................................Cheque post datado — Gerente de sociedade — Indemnização civil — Ac. de 21-11-2000Cheque visado — Âmbito — Ac. de 21-11-2000 ......................................................Competência material. Alteração da incriminação — Ac. de 15-11-2000 ................Condução sob o efeito de álcool — Pena acessória — Inibição da faculdade de con-

duzir — Ac. de 29-11-2000 ...............................................................................Contrato de trabalho — Privilégios creditórios — Ac. de 21-11-2000 ....................Crime de dano — Comproprietário — Ac. de 29-11-2000 ......................................Crime de fraude sobre mercadoria — Ac. de 8-11-2000 .........................................Direito de remição — Depósito do preço — Ac. de 27-11-2000 ..............................Direito de retenção — Registo de acção — Ac. de 14-11-2000 ................................Indemnização por acidente de viação — Direito de regresso da seguradora — Tribu-

nal competente — Ac. de 2-11-2000 ..................................................................Inibição da faculdade de conduzir — Pena acessória — Início do cumprimento —

Ac. de 8-11-2000 ...............................................................................................Letra de câmbio — Desconto — Devolução da letra ao sacador — Portador legí-

timo — Ac. de 2-11-2000 ..................................................................................Obrigação em moeda estrangeira — Pagamento em moeda nacional — Ac. de

6-11-2000 ...........................................................................................................Processo executivo — Fundo de Garantia Automóvel — Subrogação — Ac. de

6-11-2000 ...........................................................................................................Processo Penal — Prova — Depoimento de co-arguido — Ac. de 29-11-2000 .......Recurso penal — Subida do recurso — Ac. de 15-11-2000 .....................................Responsabilidade pelo risco — Juros moratórios — Ac. de 27-11-2000 .................Revogação da suspensão da execução da pena — Pressupostos — Ac. de 15-11-2000Título executivo — Garantia bancária autónoma — Ac. de 2-11-2000 ....................Tribunais Administrativos — Competência — Junta Autónoma de Estradas — Acção

de indemnização — Ac. de 6-11-2000 ...............................................................Tribunal comum — Competência — Câmara municipal — Junta de freguesia —

Ac. de 7-11-2000 ...............................................................................................Tribunal de comércio — Competência — Procedimentos cautelares — Ac. de

20-11-2000 .........................................................................................................

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378Índice BMJ 501 (2000)

III — Relação de Coimbra:

Acidente de trabalho — Trabalho a tempo parcial — Ac. de 15-11-2000 .................Acidente de trabalho — Condução sem carta — Ac. de 15-11-2000 .........................Cheque — Informação errónea da falta de provisão — Obrigação de indemnizar —

Danos não patrimoniais — Ac. de 7-11-2000 ...................................................Contestação extemporânea — Nulidade processual — Ac. de 7-11-2000 .................Contratos de provisão de cheques — Recusa de pagamento — Responsabilidade da

instituição bancária — Ac. de 28-11-2000 .........................................................Crime de desobediência — Entrega de licença de condução — Concessão de prazo

inferior ao legalmente estabelecido — Ac. de 22-11-2000 .................................Crime de desobediência previsto e punido no artigo 158.º, n.º 3, do Código da Estrada —

(In)aplicabilidade da sanção acessória do artigo 69.º do Código Penal — Ac. de29-11-2000 .........................................................................................................

Embargos de terceiro — Venda judicial do bem embargado —Indeferimento limi-nar — Ac. de 22-11-2000

Embargos de terceiro — Depositário judicial — Falta de legitimidade — Ac. de7-11-2000 ...........................................................................................................

Fauna cinegética — Pombos da espécie doméstica que perderam tal qualidade —Ac. de 29-11-2000..............................................................................................

Indemnização — Juros não pedidos — Ac. de 9-11-2000 .........................................Instrução indevida por inexistência de acusação — Ac. de 20-11-2000 ....................Livrança em branco — Irrevogabilidade do aval — Abuso do preenchimento —

Ac. de 14-11-2000..............................................................................................Notificação postal do mandatário — Assinatura apenas num dos talões — Ac. de

14-11-2000 .........................................................................................................Omissão de documentação das declarações oralmente prestadas em audiência —

Mera irregularidade — Ac. de 29-11-2000 .......................................................Pena de demissão — Fundamento (artigo 66.º, n.º 1, do Código Penal) — Ac. de

15-11-2000 .........................................................................................................Pena de prisão e pena acessória de proibição de conduzir — Suspensão — Ac. de

15-11-2000 .........................................................................................................Princípio do contraditório — Acção de divórcio — Regime provisório do artigo 1407.º,

n.º 7, do Código de Processo Civil — Ac. de 22-11-2000 ..................................Processo de falência — Acção de separação e restituição dos bens da massa falida —

Prazo de propositura — Ac. de 28-11-2000 ......................................................Propriedade horizontal — Omissão do título quanto à propriedade de uma zona do

prédio — Regime aplicável — Ac. de 7-11-2000 ...............................................Providência cautelar comum — Aplicação da regra do contraditório — Citação do

requerido, sendo a providência indeferida — Ac. de 14-11-2000 ......................Recurso — Concurso de infracções — Decisões transitadas — Ac. de 15-11-2000 ....Sanção acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal — Forma de cumpri-

mento — Ac. de 29-11-2000 ..............................................................................Tiro de arma de fogo ou emprego de arma de arremesso contra alguma pessoa —

Descriminalização — Ac. de 29-11-2000 ..........................................................

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379 ÍndiceBMJ 501 (2000)

IV — Relação de Évora:

Acidente de trabalho — Remição de pensões — Regime transitório — Ac. de 14-11-2000Acidente de trabalho — Remição de pensões — Regime transitório — Ac. de 14-11-2000Arrrendamento urbano — Resolução pelo senhorio — Residência permanente —

Comissão de serviço — Ac. de 2-11-2000 .........................................................Conflito negativo de competência — Acção de investigação de paternidade não contes-

tada — Ac. de 9-11-2000 ...................................................................................Crime de detenção de arma proibida — Arma branca com disfarce — Ac. de

7-11-2000 ...........................................................................................................Crime de homicídio por negligência — Negligência grosseira — Ac. de 7-11-2000Crime de ofensa à integridade física grave por negligência — Produto corrosivo —

Ac. de 7-11-2000 ................................................................................................Crime de poluição — Provocação de poluição sonora — Ac. de 7-11-2000 ............Defesa por excepção — Admissibilidade de réplica — Ac. de 2-11-2000 ..................Execução para entrega de coisa certa — Embargos de terceiro — Tempestividade —

Ac. de 9-11-2000 ................................................................................................Ilícito de mera ordenação social — Tribunal competente — Constitucionalidade —

Ac. de 21-11-2000 ..............................................................................................Processo comum laboral — Sanção por falta injustificada à audiência de partes —

Ac. de 7-11-2000 ................................................................................................Processo de suprimento — Suprimento de consentimento de pessoa cujo paradeiro se

desconhece — Ac. de 9-11-2000 ........................................................................Processo laboral — Arguição de nulidades de sentença — Declaração de rescisão do

contrato de trabalho emitida pelo trabalhador com a menção de que a entidadepatronal nada lhe deve — Coacção e dolo — Prova do cumprimento da obriga-ção retributiva — Ac. de 7-11-2000 ...................................................................

Recurso em processo penal — Competência — Ac. de 21-11-2000 ..........................

V — Tribunal Central Administrativo:

I — Secção do Contencioso Administrativo:

Adjunto de conservador — Substituição do conservador — Princípio da boa fé; repo-sição de remunerações — Direito de audiência — Princípio do aproveitamentodos actos administrativos — Ac. de 30-11-2000 ...............................................

Aquisição do grau de mestre por docente — Concessão da bonificação a que aludeo artigo 54.º do ECD — Princípios da justiça e da imparcialidade — Ac. de 2-11-2000 ..............................................................................................................

Concurso interno condicionado — Discricionariedade técnica do júri — Poder daentidade homologante — Ac. de 16-11-2000 .....................................................

Contrato administrativo — Rescisão convencional — Acto destacável — Sua nãoformação — Ac. de 9-11-2000 ...........................................................................

Contrato de empreitada de obra financiada por entidade pública — Âmbito de aplica-ção do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março — Tribunal competente para apre-ciação de pedido de medida cautelar no procedimento de formação de tal con-trato — Ac. de 16-11-2000 ................................................................................

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380Índice BMJ 501 (2000)

Despejo administrativo (artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 23 465, de 18 de Janeiro de1934) — Ocupação não titulada de prédio do Estado — Usurpação de poder —Ac. de 8-11-2000 ...............................................................................................

Pessoal dirigente — Cessação de comissão de serviço — Carreira de investigaçãocientífica — Artigo 18.º, n.os 1, alínea a), e 3, do Decreto-Lei n.º 323/89, naredacção resultante do Decreto-Lei n.º 34/93 — Ac. de 9-11-2000 ...................

Processo disciplinar — Guarda Nacional Republicana — Princípio ne bis in idem —«Desgraduação no posto» [artigos 241.º, 247.º, n.º 1, alínea c), e 243.º, n.º 1,alínea a), do Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho (Estatuto dos Militares daGuarda Nacional Republicana)] — Dispensa de serviço [artigo 75. º do Decreto--Lei n.º 265/93 e artigo 94.º, n.os 2 e 4, do Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho(Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana)] — Ac. de 23-11-2000 .........

Promoção de militares ao abrigo do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 236/99, de 25 deJunho (diploma que aprovou o Estatuto dos Militares das Forças Armadas) —Ac. de 16-11-2000..............................................................................................

Regulamentos autónomos — Admissibilidade — Estatuto Político-Administrativo daRegião Autónoma da Madeira — Ac. de 2-11-2000 ...........................................

Nulidade da sentença [artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil] —(In)constitucionalidade do n.º 2 do artigo 69.º da Lei de Processo nos TribunaisAdministrativos — Acção para reconhecimento de direito ou interesse legítimo —Idoneidade do meio processual usado; Decreto-Lei n.º 81-A/96, de 21 de Junho —Resolução do Conselho de Ministros n.º 23-A/97, de 14 de Fevereiro — Carácteroficioso e obrigatório dos procedimentos administrativos aí previstos — Ac. de9-11-2000 ...........................................................................................................

II — Secção do Contencioso Tributário:

Custos de exercício — IRC — Factura — Ac. de 21-11-2000 ...................................Embargos de terceiro — Posse — Direito de retenção — Ac. de 7-11-2000 ............IRC — Liquidação — Métodos indiciários — Fundamentação e sua notificação —

«Actos massa» — Ac. de 22-11-2000 ................................................................IRC — Rendimentos de capitais — Substituição tributária — Responsabilidade —

Ac. de 7-11-2000 ...............................................................................................Impugnação judicial — Contribuição autárquica — Sujeição — Caravana/Roullote —

Ac. de 21-11-2000..............................................................................................Métodos indiciários para apuramento da matéria tributável em sede de IVA —

Amostragem — Ac. de 14-11-2000 ....................................................................Oposição — Tribunal de revista — Artigo 13.º do Código de Processo Tributário —

Responsabilidade subsidiária — Gerência de direito — Gerência de facto —Presunções — Ac. de 8-11-2000 ........................................................................

Recurso de contra-ordenação — Falta de consciência da ilicitude na não declaraçãodas gorjetas auferidas pelos empregados dos casinos como rendimentos do tra-balho dependente — Ac. de 7-11-2000 ...............................................................

Trabalhador residente na Alemanha por mais de 183 dias no ano de 1996 — IRS doano de 1996 — Convenção celebrada entre Portugal e Alemanha destinada aevitar a dupla tributação (Lei n.º 12/82, de 3 de Junho) — Ac. de 14-11-2000

Transmissão de imóvel — Tributação em IRS — Acto isolado de natureza comercial —Ac. de 21-11-2000..............................................................................................

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381 ÍndiceBMJ 501 (2000)

BOLETIM DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

DirectorProcurador-Geral da República

ProprietárioMinistério da Justiça

RedacçãoProcuradoria-Geral da RepúblicaRua da Escola Politécnica, 140

1269-103 LISBOA

EditorGabinete de Documentação e Direito Comparado

da Procuradoria-Geral da RepúblicaRua do Vale de Pereiro, 2

1269-113 LISBOATelefone 382 03 00

Assinatura e distribuiçãoGabinete de Gestão Financeira

Rua do Vale de Pereiro, 21269-113 LISBOA

Condições de assinatura anualPortugal e PALOP 26 000$00Estrangeiro 37 500$00

Composição em processo informáticoGabinete de Documentação e Direito Comparado

RevisãoManuel Vasconcelos

ImpressãoRainho & Neves, L.da

Depósito legaln.º 3602/83

Tiragem5500 exemplares

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N.º 501 — DEZEMBRO — 2000

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PARECERES

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5 PareceresBMJ 501 (2000)

Instituto do Emprego e Formação Profissional — Processoespecial de recuperação da empresa e de falência — Conceitode Estado — Extinção de privilégios creditórios

O conceito de Estado constante do artigo 152.º do Código dos Processos Especiaisde Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23de Abril, com a alteração do Decreto-Lei n.º 132/98, de 23 de Abril, abrange apenas aadministração directa do Estado e não, também, a sua administração indirecta, nãoabrangendo, consequentemente, o Instituto do Emprego e Formação Profissional.

I — Introdução

1. Por apenso a processo de falência a corrertermos no Tribunal Judicial da Nazaré, o Insti-tuto do Emprego e Formação Profissional (IEFPdoravante), reclamou o seu crédito resultante deum apoio financeiro no âmbito do programa ILE(iniciativa local de emprego) no montante de17 515 099$00, sobre a massa falida de Porce-lanas Vítor e Silva, L.da, com sede na Rua dosVales, Valado de Frades.

2. Na sentença de reclamação de créditos pro-ferida na 1.ª instância, o crédito do IEFP foi gra-duado como crédito comum, ao abrigo do dispostono artigo 152.º do Código dos Processos Espe-ciais de Recuperação da Empresa e de Falência,a seguir aos créditos dos trabalhadores daquelafalida.

3. A Relação de Coimbra, por douto acórdãode 27 de Abril de 1999, negou provimento aorecurso de apelação interposto pelo IEFP.

4. É desse douto acórdão que o IEFP veiointerpor o presente recurso de revista para oSupremo Tribunal de Justiça, pugnando por di-versa interpretação daquele normativo do Có-digo dos Processos Especiais de Recuperação daEmpresa e de Falência.

5. Mais requereu o IEFP que o recurso fossejulgado como revista ampliada com intervençãodo plenário das secções cíveis, por tal se revelarnecessário e conveniente à uniformização da ju-risprudência, nos termos dos artigos 732.º-A e732.º-B do Código de Processo Civil.

6. O Ministério Público, junto do SupremoTribunal de Justiça, apercebendo-se que a ques-tão da interpretação do artigo 152.º do Códigodos Processos Especiais de Recuperação daEmpresa e de Falência e mais concretamente doconceito de Estado dele constante, se vinha co-locando com alguma frequência aos tribunais,dando azo a acentuada divergência jurispruden-cial, pronunciou-se no sentido do cabal preen-chimento dos requisitos exigidos pelos artigos732.º-A e 732.º-B para a realização do julga-mento alargado de revista.

7. No mesmo sentido pronunciou-se o Ex.mo

Sr. Conselheiro Relator, por douto despacho de2 de Dezembro de 1999.

8. Finalmente, por despacho de 6 de Dezem-bro de 1999, o Ex.mo Sr. Conselheiro Presidentedo Supremo Tribunal de Justiça determinou, aoabrigo do disposto no artigo 732.º-A do Códigode Processo Civil, que o recurso se processassecomo julgamento ampliado de revista para uni-formização de jurisprudência.

II — O dissídio jurisprudencial

1. Dispõe o artigo 152.º do Código dos Pro-cessos Especiais de Recuperação da Empresa ede Falência:

«Com a declaração de falência extinguem-seimediatamente os privilégios creditórios do Es-tado, das autarquias locais e das instituições de

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAParecer do Ministério PúblicoProcesso n.º 943/99

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6Pareceres BMJ 501 (2000)

Segurança Social, passando os respectivos crédi-tos a ser exigíveis como créditos comuns.»

2. A interpretação e aplicação deste norma-tivo, como se disse, vem originando acentuadadivergência jurisprudencial, defendendo uns umconceito lato ou amplo de Estado e outros umconceito restrito.

3. Se vingar a orientação do conceito amplo,então a expressão «Estado» abarcará a adminis-tração directa e indirecta e, designadamente, osseus serviços ou organismos personalizados,como é o caso do IEFP.

Nessa hipótese, os créditos privilegiados doIEFP serão exigíveis apenas como créditos co-muns.

4. Se vingar a orientação do conceito restrito,então a expressão «Estado» abarcará apenas aadministração directa ou central, na qual não seinclui o IEFP.

Nessa hipótese os créditos do IEFP manterãoos seus privilégios.

5. Do que nos foi possível apurar, o SupremoTribunal de Justiça decidiu que no normativo emapreço a expressão «Estado» estava usada emsentido amplo nos seguintes arestos:

— Acórdão de 13 de Novembro de 1997, Bo-letim do Ministério da Justiça, n.º 471, pág. 310;

— Acórdão de 19 de Novembro de 1998, pro-cesso n.º 553/98, 2.ª Secção, Sumários de Acór-dãos, n.º 25, pág. 56;

— Acórdão de 25 de Novembro de 1998, Co-lectânea de Jurisprudência, ano VI, 1998, tomo III,pág. 132;

— Acórdão de 29 de Abril de 1999, processon.º 219/99, 2.ª Secção, inédito.

6. No sentido do conceito restrito de Estado,localizamos os seguintes arestos:

— Acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 15 de Outubro 1998, Colectânea de Jurispru-dência, ano VI, 1998, tomo III, pág. 66;

— Acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 9 de Fevereiro de 1999, processo n.º 49/99,l.ª Secção, inédito;

— Acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 15 de Junho de 1999, processo n.º 337/99,l.ª Secção, Sumários de Acórdãos, n.º 32, pág. 21.

III — Síntese dos argumentos que esgrimemos defensores do conceito amplo de Estado

1. O mais abalizado argumento dos que de-fendem um conceito amplo de Estado consta dopreâmbulo do Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 deAbril, que aprovou o Código dos Processos Espe-ciais de Recuperação da Empresa e de Falência.

Com efeito, no ponto 6 desse preâmbulo podeler-se o seguinte:

«Mas a novidade de maior tomo de todo odiploma, pelo poderoso estímulo que pode tra-zer para o auxílio eficaz às empresas devedorasem situação difícil, mas realmente viáveis, é arelativa ao tratamento a que passam a ficar sujei-tos, com a declaração de falência, os titulares decréditos privilegiados (artigo 152.º).

A declaração de falência não tinha até agora amenor influência sobre a situação de preferênciaque a lei substantiva atribuía, na satisfação dopassivo do falido, aos credores munidos de pri-vilégio.

E da manutenção imperturbada dessa posiçãode supremacia, na própria fase mais crítica dederrocada da empresa devedora, resultavam doisefeitos perversos, para os quais a realidade dosfactos chamava continuamente a atenção dosobservadores.

Por um lado, como a decretação da falêncianenhum prejuízo causava afinal, quer à titula-ridade teórica, quer à própria consistência prá-tica dos seus direitos, os credores privilegiadosnão se sentiam grandemente motivados, nas deli-berações da assembleia de credores, em promo-ver a recuperação económica da empresa devedorae em impedir que ela caísse nas regras da acçãofalimentar.

Por outro lado, nas situações de falência imi-nente, também os credores comuns, sabendo deantemão que o património do falido não dava, asmais das vezes, para solver os créditos do Es-tado e da chamada Segurança Social, munidos deprivilégios, a breve trecho se desinteressavam dasorte das operações.

A situação não era a mais conveniente do pontode vista económico-social, e nem sequer se con-siderava a mais justa, depois de uma época emque tanto se abusou da concessão de privilégioscreditórios, sobretudo na área da Segurança So-

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7 PareceresBMJ 501 (2000)

cial, e num período em que, perante a dureza dacompetição externa, a recuperação de toda a em-presa nacional economicamente viável assumeforos de imperativo esclarecido.

Não faria realmente grande sentido que olegislador, a braços com a tutela necessária dasempresas em situação financeira difícil desde1977, até hoje, continuasse a apelar vivamentepara os deveres de solidariedade económica esocial que recaem sobre os credores e mantivesseinteiramente fora das exigências desse dever decooperação quer o Estado, quer as instituiçõesde Segurança Social, que deveriam ser as primei-ras a dar o exemplo da participação no sacrifíciocomum.

A esta luz se compreende a doutrina verda-deiramente revolucionária do artigo 152.º do pre-sente decreto-lei, por força do qual «com adeclaração de falência extinguem-se imediata-mente os privilégios creditórios do Estado, dasautarquias locais e das instituições de SegurançaSocial, passando os respectivos créditos a serexigíveis apenas como créditos comuns.

É uma solução que, antes mesmo da necessá-ria revisão da legislação vigente sobre os privilé-gios creditórios, só pode robustecer a autoridadedas pessoas colectivas públicas e facilitar o es-forço colectivo dos credores realmente interes-sados na cura económica da empresa financeira-mente enferma.»

2. Ainda segundo os seguidores desta orien-tação, um dos princípios de interpretação dasnormas jurídicas é o de que ubi lex non distinguitnon distinguere debemus. Ora, o artigo 152.º usao conceito de Estado sem lhe apor qualquer limi-tação ou restrição. E não se devem ver essas limi-tações ou restrições no facto de o mesmo preceitolegal individualizar ainda as «autarquias locais» eas «instituições de Segurança Social».

Acresce, entre outros argumentos, que se vemretirando do acórdão do Supremo Tribunal deJustiça de 13 de Novembro de 1997, Boletim doMinistério da Justiça, n.º 471, págs. 310 a 316,que das pelo menos cinco vezes que o conceitoEstado aparece no preâmbulo do decreto-lei emcausa, nem uma só vez ele surge limitado oucercado pela sua simples representação peloGoverno.

Breve crítica:

Salvo o devido respeito, o preâmbulo do di-ploma em questão de modo nenhum resolve oufacilita a questão da interpretação do conceito deEstado utilizado no artigo 152.º do Código dosProcessos Especiais de Recuperação da Empresae de Falência.

É certo que nele o vocábulo «Estado» aparececitado cinco vezes e nem uma vez aparece men-cionado o Estado enquanto Governo.

Mas, pelo contrário, não obstante o valor dobrocardo latino atrás citado, parece-nos que nopreâmbulo o legislador referiu concretamente,para além de Estado, e por três vezes, as institui-ções de Segurança Social que, como o IEFP, são,também, serviços personalizados do Estado, ca-bendo na sua administração indirecta.

Por conseguinte, a lei quis distinguir que alémdos créditos do Estado (que Estado?), também, econcretamente, os das instituições de SegurançaSocial perdem os seus privilégios.

IV — Síntese dos argumentos que esgrimemos defensores do conceito restrito de Estado

1. Os defensores do conceito restrito socor-rem-se da distinção entre administração directa eadministração indirecta do Estado, consagradano artigo 199.º, alínea d), da Constituição, ondevem preceituado que ao Governo compete noexercício de funções administrativas «dirigir osserviços e actividade da administração directa doEstado, civil e militar, superintender na adminis-tração indirecta e exercer tutela sobre esta e so-bre o administração autónoma».

2. A administração directa é a «administraçãocentral do Estado», hierarquicamente depen-dente do Governo. A administração indirecta tema característica de não depender hierarquica-mente do Governo.

3. A administração indirecta caracteriza-se, doponto de vista material, da seguinte forma:

a) É uma forma de actividade administra-tiva — uma modalidade de Administra-ção Pública em sentido objectivo;

b) Destina-se à realização dos fins do Es-tado;

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8Pareceres BMJ 501 (2000)

c) Não se trata de actividade exercida pelopróprio Estado: é exercida no interessedo Estado, mas pelas entidades a quemestá consagrada, em nome próprio, e nãoem nome do Estado.

4. A administração indirecta é desenvolvidapor institutos públicos e por empresas públicas,integrando-se nos primeiros os serviços perso-nalizados, as fundações públicas e os estabeleci-mentos públicos.

5. Os institutos públicos são pessoas colec-tivas públicas, dotados de personalidade jurí-dica, sendo sujeitos de direito distintos da pes-soa Estado.

6. O IEFP é dotado de personalidade jurídicade direito público, tem autonomia administra-tiva e financeira e património próprio, nos ter-mos do artigo 1.º do respectivo Estatuto, apro-vado pelo Decreto-Lei n.º 247/85, de 12 de Julho.

7. Assim sendo, só em sentido muito própriopoderá dizer-se que é ainda Estado, seja para queefeitos for. E naturalmente o legislador empre-gou a palavra no artigo 152.º em sentido rigorosoe técnico.

8. Acresce que se a palavra «Estado» esti-vesse empregada em sentido amplo, não fariasentido a referência, no artigo 152.º, aos privilé-gios creditórios das instituições de SegurançaSocial.

V — Posição que o Ministério Público assume

1. O presente recurso ampliado de revistatem por objecto a uniformização de jurisprudên-cia relativamente à interpretação do conceito deEstado constante do artigo 152.º do Código dosProcessos Especiais de Recuperação da Em-presa e de Falência.

2. Tal normativo, na sua primitiva redacção, ado Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, dispu-nha o seguinte:

«Com a declaração da falência extinguem-seimediatamente os privilégios creditórios do Es-tado, das autarquias locais e das instituições de

Segurança Social, passando os respectivos crédi-tos a ser exigíveis apenas como créditos comuns.»

3. Posteriormente, sem relevância para a ques-tão em apreço, foi acrescentado, na parte final,pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, oseguinte:

«[...] excepto os que se constituírem no de-curso do processo de recuperação da empresa oude falência.»

4. Questiona-se, então, se a palavra «Es-tado» deve ser interpretada em sentido amplo,abrangendo todo o complexo de autoridade e en-tidades públicas e, designadamente, no que orareleva, o IEFP, ou, em sentido restrito, abrangen-do apenas a chamada administração directa doEstado.

5. Como interpretar o artigo 152.º do Códigodos Processos Especiais de Recuperação da Em-presas e de Falência, no que concerne ao con-ceito de Estado, é o que ora importa apurar.

De harmonia com o artigo 9.º do Código Civil,para determinar o sentido prevalecente de qual-quer norma não basta a sua análise literal, aindaque dela resulte um sentido que pareça claríssimoao intérprete.

Necessário é, também, reconstituir o pensa-mento legislativo a partir dos textos.

E para apreender o verdadeiro sentido da lei,o intérprete socorre-se de vários elementos, as-sinalados pela doutrina como de ordem racional,sistemática e histórica.

O elemento racional ou teleológico consistena razão de ser, no fim visado pela lei (ratiolegis) e também nas circunstâncias históricasparticulares em que a lei foi elaborada (occasiolegis).

O elemento sistemático é constituído pelasdisposições reguladoras do sistema jurídico glo-bal em que se integra a norma a interpretar (con-texto da lei) e pelas disposições reguladoras deinstitutos ou problemas afins (lugares paralelos).

Finalmente, o elemento histórico compreende,de um modo geral, todos os materiais relaciona-dos com a história da norma e que lançam algumaluz sobre o seu sentido e alcance decisivos (his-tória do direito, fontes da lei e trabalhos prepara-tórios).

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9 PareceresBMJ 501 (2000)

São estes, em síntese e fundamentalmente, osensinamentos que nos advêm da lição de ilustrescivilistas que foram ou são Francesco Ferrara,Manuel de Andrade, Pires de Lima e AntunesVarela, em obras tão notáveis como são Interpre-tação e Aplicação das Leis, traduzida por Ma-nuel de Andrade, que a antecedeu de Ensaio sobrea Teoria de Interpretação das Leis, e NoçõesFundamentais de Direito Civil.

Acresce que na busca do pensamento legisla-tivo ou sentido da lei não podemos deixar de refe-rir que o intérprete, por regra, privilegia a juris-prudência dos interesses ou dos valores em jogoem desfavor da jurisprudência dos conceitos.

In casu, porém, como adiante melhor apro-fundaremos, o intérprete não deverá abdicar deuma simbiose quase perfeita de interesses e con-ceitos, aliás no seguimento do que alguns autoresdefendem, quando ensinam que «a ciência do di-reito é, na forma, uma jurisprudência de concei-tos e, no conteúdo, uma jurisprudência deinteresses (Schönke, citado por Pires de Lima eAntunes Varela, ob. cit., pág. 179, da 1.ª edição).

6. Comecemos pelo conceito de Estado.Como é sabido, o artigo 2.º da Constituição da

República Portuguesa diz-nos que:

«A República Portuguesa é um Estado de di-reito democrático, na soberania popular, nopluralismo de expressão e organização políticademocráticos e no respeito e na garantia deefectivação dos direitos e liberdades fundamen-tais, na separação e interdependência de pode-res, visando a realização da democracia económica,social e cultural e o aprofundamento da demo-cracia participativa.»

O conceito de Estado é certamente um dosmais polissémicos da Constituição. Nuns casos,tem um sentido misto amplo, abrangendo todo ocomplexo de entidades públicas, isto é, aquelasdotadas, entre outras coisas, de poder de autori-dade, e neste sentido se pode dizer por exemploque o Estado abrange não apenas o Estado cen-tral mas também as autarquias locais. Noutroscasos, tem um sentido menos amplo, excluindoprecisamente as outras entidades públicas terri-toriais, e neste sentido se pode distinguir entreos interesses do Estado e os das Regiões Autó-nomas.

Noutros casos, tem um sentido mais restrito,abrangendo apenas o Estado-pessoa colectivarepresentado pelo Governo e excluindo as ou-tras entidades públicas. Aqui, no artigo 2.º, «Es-tado» designa toda a organização política da so-ciedade e constitucionalmente institucionalizada(cfr. Constituição da República Portuguesa Ano-tada, de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,3.ª edição revista, Coimbra, 1993, págs. 61 e 62).

No seu sentido mais restrito, referiu-se o Go-verno, que é o órgão de soberania, ao qual cabe acondução da política geral do País, sendo o órgãosuperior da Administração Pública — cfr. artigos110.º e 182.º da Constituição da República Por-tuguesa.

De harmonia com o artigo 199.º, ainda da Cons-tituição da República Portuguesa, compete aoGoverno, no exercício de funções administrativas:

«………….........…………………………...d) Dirigir os serviços e a actividade da ad-

ministração direcção do Estado, civil emilitar, superintender na administraçãoindirecta e exercer a tutela sobre a admi-nistração autónoma.»

A administração directo é a «administraçãocentral do Estado», hierarquicamente dependentedo Governo. A administração indirecta e a admi-nistração autónoma têm de comum o facto denão dependerem hierarquicamente do Governo,mas, fora isso, têm uma natureza bem distinta.A primeira é ainda administração do Estado emsentido próprio, prosseguindo fins públicos es-taduais através de organizações diferenciadas daadministração estadual directa mas emanadas doEstado («institutos públicos», etc.); a segundanão integra a administração do Estado em sen-tido restrito, prosseguindo, através de órgãos re-presentativos, interesses próprios de determina-das colectividades de pessoas, sejam comunida-des territoriais — caso das autarquias locais, quevisam a prossecução de «interesses próprios daspopulações respectivas» —, sejam eventual-mente outros conjuntos de pessoas com interes-ses comuns, através de associações públicas.

Em relação à administração directa do Es-tado (incluindo a civil e a militar) o Governo temo poder de direcção, que é concretizado, entreoutras coisas, na emissão de ordens e expediçãode instruções; relativamente à administração in-

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10Pareceres BMJ 501 (2000)

directa do Estado, o Governo tem poderes desuperintendência expressos na faculdade deorientação, que se traduz em várias faculdadesde intervenção; no que respeita à administraçãoautónoma, os poderes do Governo limitam-se àtutela, ou seja, ao controlo da actividade dos res-pectivos órgãos, nomeadamente o controlo dalegalidade (cfr. J. J. Gomes Canotilho e VitalMoreira, ob. cit., pág. 782). Segundo os ensina-mentos de Freitas do Amaral, a administraçãoindirecta caracteriza-se, do ponto de vista mate-rial, da seguinte forma:

1.º — É uma forma de actividade adminis-trativa — uma modalidade de AdministraçãoPública em sentido objectivo;

2.º — Destina-se à realização dos fins do Es-tado;

3.º — Não se trata de actividade exercida pelopróprio Estado: é exercida no interesse do Es-tado, mas pelas entidades a quem está confiada,em nome próprio, e não em nome do Estado.

A administração indirecta é desenvolvida porinstitutos públicos e por empresas públicas.

Nos primeiros, integram-se os serviços per-sonalizados, as fundações públicas e os estabe-lecimentos públicos.

Os institutos públicos são pessoas colectivaspúblicas. Sendo-o, são sempre dotados de per-sonalidade jurídica. E «se recebem personalidadejurídica, passam a ser sujeitos de direito distin-tos da pessoa-Estado. Já não são Estado, já nãopertencem ao Estado, já não estão incorporadosou integrados no Estado: são organizações compersonalidade jurídica própria» — cfr. autor ci-tado, Curso de Direito Administrativo, vol. 1.º,2.ª ed., págs. 331 a 350, e acórdão do SupremoTribunal de Justiça de 15 de Junho de 1999, pro-cesso n.º 337/99, 1.ª Secção.

7. Prosseguindo: O IEFP

O IEFP, cujo Estatuto foi aprovado pelo ar-tigo 1.º do Decreto-Lei n.º 247/85, de 12 de Ju-lho, é uma pessoa colectiva de direito público,integrando a administração indirecta do Estado,qualificável como instituto público e, dentro destacategoria, como um serviço personalizado doEstado.

As principais atribuições do IEFP vêm defi-nidas no artigo 4.º, podendo sintetizar-se do se-guinte modo:

— Promover o conhecimento e divulgação dosproblemas do emprego, contribuindo para a adop-ção de uma política global de melhoria progres-siva da situação;

— Promover a organização do mercado deemprego, tendo em conta as preferências e quali-ficações de cada um;

— Promover a informação, orientação de for-mação e reabilitação profissional e colocação dostrabalhadores, com especial incidência nos jo-vens e grupos mais desfavorecidos;

— Promover a melhoria da produtividade nasempresas, nomeadamente através das acções deformação que se revelem adequadas;

— Apoiar a criação de novos postos de tra-balho;

— Participar na coordenação da cooperaçãotécnica com organizações nacionais e internacio-nais, nos domínios do emprego, formação e rea-bilitação e, em geral, na concepção, elaboração eavaliação da política global do emprego de que éexecutor.

É neste contexto que, in casu, surge o apoiofinanceiro concedido pelo IEFP à falida Porcela-nas Vítor e Silva, L.da, com sede na Rua dos Va-les, Valado de Frades, no âmbito do ProgramaILE (iniciativa local de emprego), ao obrigo doDespacho Normativo n.º 46/86, de 4 de Junho,destinado a regulamentar a concessão de apoiosà dinamização sócio-económica a nível local, fo-mentando projectos geradores de emprego.

Cumpre acrescentar que sendo o IEFP umserviço personalizado do Estado, a sua gestãoeconómica, financeira e patrimonial, incluindo aorganização e execução da sua contabilidade, re-gula-se pelas normas aplicáveis às empresas pú-blicas em tudo que não esteja especialmenteprevisto neste diploma (cfr. artigo 24.º do res-pectivo Estatuto), sendo que na distinção entre«serviço personalizado» e «empresa pública» oIEFP «encontra-se mesclado de ingredientes querepresentam o hibridismo de soluções normativasa que se aludiu há momentos» — cfr. o doutoparecer do Conselho Consultivo da Procurado-ria-Geral da República de 11 de Fevereiro de 1999,

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11 PareceresBMJ 501 (2000)

Diário da República, I Série, n.º 136, de 14 deJunho de 1999.

Por fim, não podemos deixar de assinalar queos interesses protegidos pelo IEFP e designa-damente, no que ora releva, os do Programo ILE,ao contrário doutros do Estado, como os crédi-tos por impostos, parecem-nos tão relevantescomo, por exemplo, os créditos dos trabalhado-res, que mantêm os seus privilégios no âmbitodo Código dos Processos Especiais de Recupe-ração da Empresa e de Falência.

E será assim, porque a lei quis desprotegero Estado recebedor (leia-se: de impostos, porexemplo) e não o Estado interventor (leia-se:por exemplo, como in casu, fomentador de em-prego).

8. O Código dos Processos Especiais de Re-cuperação da Empresa e de Falência e os privi-légios creditórios

É sabido que, nos termos do seu artigo 152.º,«com a declaração de falência extinguem-se ime-diatamente os privilégios creditórios do Estado,das autarquias locais e das instituições de Segu-rança Social, passando os respectivos créditos aser exigíveis apenas como créditos comuns».

A este respeito, dizem-nos Luís A. CarvalhoFernandes e João Labareda, Código dos Proces-sos Especiais de Recuperação da Empresa e deFalência, Anotado, 2.ª ed., 1995, pág. 381:

«Deixam, na verdade, de ser invocáveis noprocesso de falência os privilégios mais signifi-cativos do Estado, das autarquias locais e dasinstituições de Segurança Social, que passarão ater tratamento dos credores comuns e a corrercom estes, as contingências da liquidação da massafalida.»

Quanto ao Estado, que créditos são estes?São, sem dúvida, entre outros, os créditos por

impostos directos e indirectos e por despesas dejustiça, nos termos dos artigos 736.º a 743.º doCódigo Civil.

Mas prosseguindo a citação daqueles ilustresespecialistas em direito falimentar:

«Como se vê, o preceito não determina a ina-tendibilidade geral dos privilégios creditórios;mantém-se os dos demais credores beneficiáriosnão atingidos pelo preceito em análise. A expli-

cação para esta diferença de tratamento, estra-nha à primeira vista, por sacrificar entidades cujosinteresses pareceriam merecer a melhor tutela dolegislador, está dada no preâmbulo. Trata-se deestender ao Estado e a outras entidades os deve-res sociais de solidariedade económica e socialque se exigem da generalidade dos credores narecuperação das empresas em situação econó-mico-financeira difícil, chamando-as ‘a dar exem-plo de participação no sacrifício comum’».

Mas que Estado é este que vê os seus créditosprivilegiados extinguirem-se, passando a serexigíveis apenas como créditos comuns?

É o que procuraremos demonstrar em seguida.

9. O Código dos Processos Especiais de Re-cuperação da Empresa e de Falência e o con-ceito de Estado

Já o dissemos, no preâmbulo do Decreto-Lein.º 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o Códigodos Processos Especiais de Recuperação daEmpresa e de Falência, a palavra «Estado» vemmencionada cinco vezes.

E concretamente no Código dos ProcessosEspeciais de Recuperação da Empresa e de Fa-lência?

Da análise exaustiva dos seus inúmeros pre-ceitos — e são 249 — localizamos a palavraEstado em seis deles.

Passando-os a enumerar, são eles:

«Artigo 22.º

Intervenção de entidades públicas no processo

1 — Proferido o despacho de citação dos cre-dores e, quando for caso disso, do próprio deve-dor, e sem prejuízo das citações ordenadas, é oprocesso continuado com vista ao MinistérioPúblico, a fim de que este, havendo créditos doEstado, de institutos públicos sem a natureza deempresas públicas ou de instituições de segu-rança social, dê imediato conhecimento da pen-dência da acção ao Instituto de Apoio às Pequenase Médias Empresas e ao Investimento, bem comoaos membros do Governo com jurisdição paraparticiparem nas deliberações sobre as providên-cias de recuperação.

2 — ...............................................................3 — ...............................................................

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12Pareceres BMJ 501 (2000)

Artigo 41.º

Constituição e funcionamento da comissãode credores

1 a 5 — .........................................................6 — O Estado e as instituições de segurança

social só poderão ser nomeados para a presidên-cia da comissão de credores desde que à data dodespacho de prosseguimento da acção se encon-tre nos autos de despacho do membro do Gover-no com supervisão sobre os organismos titularesde créditos a autorizar o exercício da função e aindicar o representante.

[Nota. — Este n.º 6 foi acrescentado peloDecreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro.]

Artigo 52.º

Suspensão da assembleia por carência de poderes dos representantes de entidades

públicas

1 — Se o representante do Estado ou dasentidades públicas titulares de créditos privile-giados se abstiver de votar na assembleia de cre-dores, por falta da prévia autorização do membrodo Governo competente, e a abstenção impedir atomada de deliberação, é a votação adiada e mar-cada nova reunião da assembleia para data quenão exceda os 10 dias subsequentes, mas sempresem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 53.º

2 — A falta de comparência do representantedo Estado ou das entidades públicas na novareunião da assembleia, tal como a sua abstenção,equivale a concordância com a deliberação.

Artigo 62.º

Igualdade entre os credores

1 — ...............................................................2 — O Estado, os institutos públicos sem a

natureza de empresas públicas e as instituiçõesda segurança social, e de vários créditos privile-giados sobre a empresa, podem dar o seu acordoà adopção das previdências referidas no númeroanterior, desde que o membro do Governo com-petente o autorize.

3 — ...............................................................

Artigo 65.º

Novos créditos privilegiados1 — ...............................................................

2 — Os créditos a que se refere o númeroanterior não estão sujeitos à retenção de qual-quer parcela de garantia do cumprimento e obri-gações de que seja titular o Estado ou outraentidade pública.

3 — ...............................................................

Artigo 152.º

Extinção dos privilégios creditórios

Com a declaração de falência extinguem-seimediatamente, passando os respectivos crédi-tos a ser exigidos como créditos comuns, os pri-vilégios creditórios do Estado, das autarquiaslocais e das instituições de segurança social,excepto os que constituírem no decurso do pro-cesso de recuperação da empresa ou de falência.»

Resumindo e concluindo:

a) No n.º 1 do artigo 22.º vêm referidos os«créditos do Estado», de «institutos pú-blicos sem a natureza de empresas pú-blicas» e as «instituições da SegurançaSocial»;

b) No artigo 41.º, n.º 6, vêm referidos o«Estado» e as «instituições de SegurançaSocial»;

c) No artigo 52.º, n.º 1, vêm referidos o «Es-tado» e as «entidades públicas titularesde créditos privilegiados»;

d) No artigo 52.º, n.º 2, vêm referidos o «Es-tado» e as «entidades públicas»;

e) No artigo 62.º, n.º 2, vêm referidos o «Es-tado», os «institutos públicos sem a na-tureza de empresas públicas» e as «ins-tituições de Segurança Social»;

f) No artigo 65.º, n.º 2, vêm referidos o «Es-tado» e outras «entidades públicas»;

g) Finalmente, no artigo 152.º vêm referidoso «Estado», as «autarquias locais» e as«instituições de Segurança Social».

A conclusão a que se pode chegar é a de que olegislador e a lei quiseram utilizar e utilizaram apalavra «Estado» sempre no seu sentido restrito.Na verdade, sempre que o legislador e a lei qui-seram abranger a administração indirecta do Es-tado, acrescentaram as expressões «institutospúblicos sem a natureza de empresas públicas»(cfr. artigos 22.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2), ou «entida-

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13 PareceresBMJ 501 (2000)

des públicas» (cfr. artigo 52.º, n.os 1 e 2, e 65.º,n.º 2).

Quanto às «instituições de Segurança Social»,individualizadas nos artigos 22.º, n.º 1, 41.º, n.º 6,62.º, n.º 2, e 152.º e neste último também asautarquias locais, argumentam os seguidores dacorrente que interpreta Estado em sentido am-plo que se deve à «força da sua caracterizaçãoprópria tão intensa que se não individualizadaspoderiam surgir dúvidas sobre a sua não abran-gência por aquele dispositivo legal» (cfr. o acórdãodo Supremo Tribunal de Justiça de 13 de No-vembro de 1997, Boletim do Ministério da Jus-tiça, n.º 471, concretamente a pág. 314).

Ora, salvo o devido respeito, entendemos quetal argumento pode e deve ser utilizado exacta-mente em sentido contrário.

Na verdade, como se explicaria então a indi-vidualização de «institutos públicos sem a natu-reza de empresas públicas», logo acrescida daindividualização de «instituições da SegurançaSocial» nos artigos 22.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, e aexclusiva individualização de «instituições deSegurança Social» nos artigos 41.º, n.º 6, e 152.º?

E que o intérprete presumirá que o legisladorconsagrou as soluções mais acertadas e soubeexprimir o seu pensamento em termos adequa-dos, nos termos do artigo 9.º, n.º 3, do CódigoCivil. E seria uma redundância individualizar as«instituições de Segurança Social» quando as mes-mas já estariam incluídas no conceito de Estado.

O legislador, segundo nos parece, utilizousempre a palavra «Estado» no seu sentido res-trito e quanto aos «institutos públicos» delesquis individualizar, quando o entendeu necessá-rio, as «instituições de Segurança Social», exac-tamente devido «à força da sua caracterizaçãoprópria tão intensa».

Doutro modo, porquê individualizar tambémas autarquias locais, se caberiam naquele con-ceito amplo de Estado?

Resta concluir que num código tão especiali-zado como o Código dos Processos Especiais deRecuperação da Empresa e de Falência teríamosum mesmo conceito de «Estado» passível dediversas interpretações, o que não nos parecepoder coadunar-se com o pensamento legislativo.

10. Um outro argumento, extraído em partedas alegações do recorrente IEFP, no sentido da

interpretação do conceito restrito de Estadonaquele artigo 152.º, parece-nos merecedor damaior relevância.

É ele o de que se o IEFP perder os seus privi-légios creditórios com a declaração de falênciacontinuará, porém, obrigado a suportar os encar-gos com o exercício das funções de administra-dor judicial, ao passo que as instituições deprevidência ou de Segurança Social deixarão deos suportar, por força do artigo 23.º do Decreto--Lei n.º 411/91, de 17 de Outubro.

E acrescentamos nós, de acordo com este úl-timo normativo as instituições de previdência oude Segurança Social deixarão de poder ser de-signadas para a presidência da comissão de cre-dores no processo especial de recuperação deempresa e de protecção de credores.

Só que este normativo, o do artigo 23.º doDecreto-Lei n.º 411/91, vem ao encontro do ar-tigo 41.º, n.º 6, do Código dos Processos Espe-ciais de Recuperação da Empresa e de Falência,atrás citado, que diz, no que ora releva, que «oEstado e as instituições de Segurança Social nãopoderão ser nomeados para a presidência decomissão de credores [...]»

Complementam-se, por conseguinte, permi-tindo concluir que este último normativo abrangesempre o Estado stricto sensu, e de entre os ins-titutos públicos, apenas as instituições de Segu-rança Social.

Donde, a conclusão de que o IEFP não poderáver os seus créditos perderem privilégios, tor-nando-se comuns, já que, ao contrário das insti-tuições de Segurança Social, continua a suportaros encargos com o exercício da função de admi-nistração judicial.

Mas, argumentar-se-á: e quanto ao Estado,também poderá ser nomeado para a presidênciada comissão de credores, nos termos do artigo41.º, n.º 6, do Código dos Processos Especiais deRecuperação da Empresa e de Falência e deverásuportar encargos inerentes ao exercício das fun-ções de gestor judicial?

A resposta vem no artigo 5.º-A do Decreto- -Lei n.º 254/93, de 15 de Julho, que disciplinou o«recrutamento do gestor e do liquidatário judi-ciais» aditado pelo Decreto-Lei n.º 239/95, de 17de Novembro.

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14Pareceres BMJ 501 (2000)

Diz-nos este normativo o seguinte:

«A Fazenda Pública não pode ser designadapara a presidência da comissão de credores noprocesso especial de recuperação da empresa,nem suporta os encargos com o exercício dasfunções de gestor judicial.»

Esta menção à Fazenda Pública parece-nosser uma menção clara ao Estado, no seu conceitorestrito, já que, por regra, os créditos privilegia-dos do Estado correspondem a impostos direc-tos e indirectos não pagos.

Complementando-se, por conseguinte, todosestes normativos, é-nos permitido concluir queno conceito de Estado do artigo 152.º do Códigodos Processos Especiais de Recuperação da Em-presa e de Falência não cabem os institutos pú-blicos e entre eles o IEFP, com excepção dos queforam concretamente individualizados, como é ocaso das instituições de Segurança Social.

Doutro modo, o IEFP veria os seus créditosperderem privilégios, tornando-se comuns, mascontinuaria a poder ser designado para a presi-dência da comissão de credores e a ter de supor-tar os encargos com o exercício das funções degestor judicial.

Não faria sentido, segundo nos parece e salvoo devido respeito por adversa opinião.

11. Um derradeiro argumento cumpre arre-messar contra os que defendem o conceito am-plo de Estado no âmbito do normativo tão enfo-cado no presente parecer.

É ele o de sucessivos diplomas, provenientesdo mesmo legislador (leia-se, do mesmo Go-verno), onde a questão do conceito de Estadonos parece ter sido devidamente tratada.

Referimo-nos, em primeiro lugar, ao Decreto--Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, que aprovou oCódigo dos Processos Especiais de Recuperaçãoda Empresa e de Falência.

Neste diploma, no que ora releva, o artigo152.º refere-nos «os privilégios creditórios doEstado, das autarquias locais e das instituiçõesde Segurança Social».

Entretanto, com o Decreto-Lei n.º 222-A/96,de 26 de Novembro, foi aprovado o Código dasCustas Judiciais, agora em vigor.

Neste diploma ultrapassou-se velha quereladoutrinal e jurisprudencial sobre o conceito de

Estado, proveniente do anterior Código das Cus-tas Judiciais, no que concerne concretamente àsisenções de custas.

No anterior Código isentavam-se de custas,no seu artigo 3.º, n.º 1, alínea a), «o Estado, asRegiões Autónomas, o território de Macau, asautarquias locais e as associações e federações demunicípios».

No Código das Custas Judiciais agora emvigor, no seu artigo 2.º, n.º 1, alínea a), passou aisentar-se de custas «o Estado, incluindo os seusserviços ou organismos, ainda que personaliza-dos».

Ultrapassando a referida querela doutrinal ejurisprudencial, optou-se por mencionar concre-tamente a chamada administração indirecta doEstado.

É sabido que quando o Código dos ProcessosEspeciais de Recuperação da Empresa e de Fa-lência foi profundamente alterado pelo Decreto--Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, já se discutiaabundantemente na nossa jurisprudência o con-ceito de Estado do artigo 152.º e já o novo Có-digo das Custas Judiciais entrara em vigor.

Ora, não obstante o legislador ter sido o mes-mo que elaborou o ora vigente Código das Cus-tas Judiciais, esse mesmo legislador manteve, noque ora releva, a redacção do artigo 152.º do Có-digo dos Processos Especiais de Recuperação daEmpresa e de Falência, ou seja, manteve a men-ção aos «privilégios creditórios do Estado, dasautarquias locais e das instituições de SegurançaSocial».

Donde a conclusão de que com excepção dasinstituições de Segurança Social não quis o legis-lador abranger nessa norma os demais institutospúblicos.

E, segundo nos parece, o legislador optou pelasimples menção a Estado, Estado stricto sensu,por não fazer sentido acompanhar tal vocábulode uma fórmula negativa, como, por exemplo«Estado, nele não incluindo os institutos públi-cos, com excepção das instituições de SegurançaSocial», depois de, por diversas vezes, no mes-mo Código ter optado por formulações de carizpositivo.

V — Conclusão

Em face do exposto, é nosso parecer que oconceito de Estado constante do artigo 152.º

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15 PareceresBMJ 501 (2000)

deve ser interpretado no seu sentido restrito,abrangendo apenas a designada «administraçãodirecta» e não também a designada «administra-ção indirecta do Estado», na qual se inclui o Ins-tituto do Emprego e Formação Profissional.

Em consequência, propomos que, conceden-do-se provimento ao recurso, se uniformize aseguinte jurisprudência:

«O conceito de Estado constante do artigo152.º do Código dos Processos Especiais de

O assento onde foi emitido este parecer encontra-se publicado a pág. 25 deste número doBoletim.

(B. N.)

Recuperação da Empresa e de Falência, apro-vado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril,com a alteração do Decreto-Lei n.º 132/98, de23 de Abril, abrange apenas a administração di-recta do Estado e não, também, a sua administra-ção indirecta, não abrangendo, consequentemente,o Instituto do Emprego e Formação Profis-sional.»

O Procurador-Geral Adjunto,José António Barreto Nunes.

Empresas de segurança privada — Conceito de estabelecimentoou serviço — Violação da Lei da Greve

I — Para efeitos da proibição contida no artigo 6.º da Lei n.º 65/77, de 26 deAgosto, há que considerar, em relação às empresas cuja actividade é a prestação deserviços de segurança privada a terceiros, atenta a especificidade da sua organização,como «estabelecimento» ou «serviço» o local onde, de acordo com a distribuição deserviço organizada pela entidade patronal, estava previsto a apresentação do traba-lhador para trabalhar durante a greve.

II — Envolve, consequemente, violação do citado normativo a substituição dessetrabalhador que aderiu à greve por outro que à data do pré-aviso da greve e até ao termodesta não estava previsto trabalhar naquele local.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAParecer do Ministério PúblicoProcesso n.º 86/2000

I — Introdução

1. O Ministério Público junto do Tribunal daRelação de Lisboa interpôs para o Suprerno Tri-bunal de Justiça, nos termos e ao abrigo do dis-posto nos artigos 437.º e seguintes do Código deProcesso Penal, o presente recurso extraordiná-rio para fixação de jurisprudência do acórdão de7 de Dezembro de 1999 proferido por aquelaRelação.

2. Como fundamento, invocou a oposiçãodaquele acórdão com o acórdão de 3 de Novem-bro de 1999, proferido também pelo Tribunal daRelação de Lisboa no processo n.º 3895/99, cer-tificado a fls. 17.

II — Da oposição

1. Por acórdão deste Supremo Tribunal de 11de Maio de 2000, proferido nos autos em epí-

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16Pareceres BMJ 501 (2000)

grafe, julgou-se verificada a alegada oposição epreenchidos os requisitos para o prosseguimentodo recurso para fixação de jurisprudência.

2. A oposição entre os dois referidos acórdãostraduz-se na divergente solução que acolherampara a mesma questão fundamental de direito,decorrente da interpretação do artigo 6.º da Lein.º 65/77, de 26 de Agosto (Lei da Greve), nosegmento em que dispõe que «a entidade empre-gadora não pode, durante a greve, substituir osgrevistas por pessoas que à data do seu anúncionão trabalhavam no respectivo estabelecimentoou serviço [...]».

No acórdão recorrido entendeu-se que sendoa arguida Securitas — Serviços de Tecnologia eSegurança uma empresa cuja actividade consisteem prestar serviços de segurança privada a ou-tras entidades sediadas em Lisboa e que abran-gendo o local de prestação de trabalho dos seustrabalhadores todo o distrito de Lisboa, nadaobstava a que a arguida substituísse um dos seustrabalhadores que aderiu à greve por outro traba-lhador que a ela não aderiu dado que, por umlado, embora ambos os trabalhadores exerces-sem tarefas de vigilância em diferentes locais si-tuados em Lisboa, há que considerar que essestrabalhadores exerciam tais tarefas no mesmoserviço da arguida, independentemente do localda prestação do trabalho e, por outro lado, aproibição de substituição de grevistas previstano artigo 6.º da Lei da Greve tem por funda-mento a diferença entre as várias actividades (ser-viços) da empresa e não o local da prestação dotrabalho, devendo, na acepção daquele normativo,considerar-se «estabelecimento» a universali-dade de bens e serviços de uma empresa, o queabrangeria, no caso da arguida, todas as suas ins-talações, equipamentos e actividades e como «ser-viços» a prestação de uma actividade da empresa,que no caso concreto é a prestação de uma activi-dade no campo da segurança.

Diversamente, no acórdão fundamento per-filhou-se o entendimento de que, sob pena deesvaziamento do conteúdo do artigo 6.º da Lei daGreve, no que respeita à actividade da arguidaSecuritas — Serviços e Tecnologia de Segurança,tem de considerar-se, para os efeitos daquelenormativo, como «estabelecimento ou serviço»o local em que concretamente estava previsto o

trabalhador grevista apresentar-se ao trabalhodurante a greve.

Verifica-se, assim, que os dois acórdãos, játransitados em julgado, assentaram em soluçõesopostas relativamente à mesma questão de di-reito, a qual consiste em determinar, no âmbitoda proibição de substituição dos trabalhadoresgrevistas contida no artigo 6.º da Lei da Greve,os conceitos de «estabelecimento» e «serviço»quando se trate de empresa de prestação de ser-viços a pessoas individuais e colectivas diferen-tes numa mesma zona geográfica.

III — Jurisprudência

Sobre a divergência equacionada, a jurispru-dência é escassa e daí que no sentido do acórdãorecorrido não tivéssemos encontrado qualquerantecedente jurisprudencial, tendo sido detec-tado, no sentido do acórdão de 3 de Novembrode 1999 (acórdão fundamento), apenas o acórdãode 16 de Janeiro de 1990 do Tribunal da Relaçãode Coimbra, publicado na Colectânea de Juris-prudência, 1990, tomo I, pág. 121.

IV— Solução proposta

1. O direito à greve está consagrado no artigo57.º da Constituição como direito fundamentalincluído no capítulo dos direitos, liberdades egarantias dos trabalhadores.

A caracterização constitucional do direito àgreve como um «dos direitos, liberdades e garan-tias» confere-lhe a seguinte dimensão: trata-sede um direito subjectivo negativo, não podendoos trabalhadores ser proibidos ou impedidos defazer greve, nem tão-pouco ver-se compelidos apôr-lhe termo; com eficácia externa imediata, nãoconstituindo violação do contrato de trabalho,nem sendo susceptível de neutralização prática,e com eficácia imediata no sentido de directaaplicabilidade, independentemente de qualquerlei concretizada (cfr. Gomes Canotilho e VitalMoreira, Constituição da República PortuguesaAnotada, 3.ª ed. revista, 1993, pág. 309).

Em sede de legislação ordinária, o exercício dodireito à greve é regulado pela Lei n.º 65/77, de 20de Novembro (Lei da Greve).

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Nem a Constituição nem a citada lei oferecemuma definição do conceito de greve.

A precedente Lei da Greve — Decreto-Lein.º 392/74, de 27 de Agosto —, que a actual revo-gou, continha como «noção de greve» (ar-tigo2.º) a seguinte: «considera-se greve a recusa co-lectiva e concertada do trabalho tendente à defe-sa e promoção dos interesses colectivosprofissionais dos trabalhadores».

Desvinculado o exercício do direito à greve,na Constituição, da simples prossecução de in-teresses colectivos profissionais (cfr. parecer daProcuradoria-Geral da República n.º 123/76-B,de 3 de Março de 1977, Boletim do Ministério daJustiça, n.º 265, págs. 57 e segs.) e na falta deuma noção legal de greve há que recorrer ao con-ceito de greve fornecido na doutrina.

Segundo esse conceito, a greve «é a abstençãoconcertada da prestação de trabalho, realizadapor um grupo de trabalhadores, como instru-mento de pressão para realizar objectivos co-muns» (cfr. Bernardo Lobo Xavier, Direito daGreve, Lisboa, 1984, págs. 55 e 56; MonteiroFernandes, Noções Fundamentais de Direito doTrabalho, vol. II, 1983, pág. 258; MenezesCordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1991,pág. 369 e segs.; pareceres da Procuradoria-Ge-ral da República n.os 100/89 e 52/98, publicados,respectivamente, no Boletim do Ministério daJustiça, n.º 399, pág. 5, e no Diário da Repú-blica, II Série, n.º 229, de 3 de Outubro de 1998,pág. 14 066).

Como salientam Comes Canotilho e Vital Mo-reira (cfr. ob. cit., pág. 310), a Constituição ga-rante o direito à greve, não se limitando a reco-nhecê-lo.

E os citados autores acrescentam que «efecti-vamente, não basta dar aos trabalhadores a liber-dade de decidir uma greve e de a efectuarem, bemcomo o direito de não verem afectada a sua rela-ção de trabalho. Importa também que os traba-lhadores estejam a salvo de condutas da entidadepatronal ou de terceiros que aniquilem a greve ouos seus efeitos e uma dessas garantias é desdelogo a proibição do lock-out; outros compete àlei estabelecê-las [...]».

É no âmbito dessas garantias que se inscreve a«proibição de substituição de grevistas» cons-tante do artigo 6.º da Lei n.º 65/77, ao dispor que«a entidade empregadora não pode, durante a

greve, substituir os grevistas por pessoas que àdata do seu anúncio não trabalhavam no respec-tivo estabelecimento ou serviço, nem pode, desdeaquela data, admitir novos trabalhadores».

Monteiro Fernandes, comentando este nor-mativo (cfr. Direito de Greve — Notas e Comen-tários à Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, 1982,págs. 43 e segs.), considera que ele visa prevenira neutralização da greve que o empregador pode-ria levar a cabo mediante a «transferência de salá-rios» dos grevistas para outros trabalhadores, namedida em que a suspensão dos contratos detrabalho resultante da paralisação colectiva, quan-do lícita, proporcionaria à entidade patronal autilização de tal expediente com base no artigo7.º da lei do contrato de trabalho (Decreto-Lein.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969).

Em seguida passa a analisar as situaçõesabrangidas na proibição constante do citado ar-tigo 6.º, salientando que a proibição se refere, emprimeiro lugar, à substituição dos grevistas portrabalhadores ligados ao mesmo empregador —caso menos grave, em que apenas se trata de umamovimentação interna de pessoal.

Depois chama a atenção para as dificuldadespráticas que podem surgir na aplicação do citadonormativo àquela situação, ponderando a estepropósito o seguinte:

«Muitas empresas não se acham organizadasem termos que possibilitam a distinção entre ‘es-tabelecimentos’ ou ‘serviços’, por outro lado, oobjectivo do legislador não é, claramente, o deassegurar em pleno o preenchimento do trabalhodo grevista, pois esse resultado pode ser obtidoatravés de afectação temporária de um trabalha-dor do mesmo ‘estabelecimento’ ou ‘serviço’.Isto é: a lei admite que o trabalho (ou parte dotrabalho) dos grevistas seja assegurado por nãoaderentes da mesma unidade funcional, mas nãoaceita que o efectivo desta seja alterado (quermediante transferências, quer através de admis-sões) em consequência da paralisação, e com opropósito de atenuar ou neutralizar os efeitosdela.»

E o citado autor conclui que a aplicação daprimeira parte do artigo 6.º da Lei n.º 65/77 temque ser feita casuisticamente, face aos moldesconcretos da organização de cada empresa e que

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18Pareceres BMJ 501 (2000)

a priori apenas se poderá ter como certo queconstitui violação ao mencionado artigo, paraalém do caso óbvio de admissão de novo pes-soal, a transferência de local de trabalho — con-ceito que é, no entanto, também ele, eminente-mente relativo, implicando, além do mais, que setomem em conta os elementos pertinentes daregulamentação colectiva aplicável.

Para Bernardo Lobo Xavier (cfr. Direito daGreve, Lisboa 1984, págs. 191 e segs.), o ar-tigo 6.º da Lei n.º 65/77, ao proibir, durante agreve, às entidades patronais a contratação denovos trabalhadores e ao fixar limitações à ges-tão de mão-de-obra ao seu serviço, estabelecerestrições importantes aos princípios de liber-dade de trabalho e à autonomia de gestão empre-sariais. E este autor considera que a proibiçãoconstante do citado normativo não impede quedentro do mesmo serviço ou unidade orgânica(conceitos que devem ser entendidos de modomuito amplo) a entidade patronal possa promo-ver as necessárias substituições, nos limites doobjecto do contrato com a extensão que lhe per-mite o artigo 22.º, n.º 2, da lei do contrato detrabalho.

O citado autor, depois de se referir ao mo-mento a partir do qual a entidade patronal ficaproibida de agregar trabalhadores ao sector abran-gido pela greve, adianta que não devem serfavorecidas interpretações que tendam a restrin-gir as faculdades empresariais para além dos ob-jectivos do artigo 6.º da Lei da Greve e, portanto,só nos casos em que o processo grevista foi de-clarado em determinados serviços ou estabeleci-mentos é que o empresário, antes da paralisação,deixa de poder convocar para estes serviços tra-balhadores colocados em sectores não atingidospela greve, sendo lícito à entidade patronal, nocaso de uma greve que atinja toda a empresa,promover a prévia redistribuição de efectivostendo em conta a incidência previsível da greve.

Por seu turno, Jorge Leite (cfr. Direito daGreve, Serviços de Acção Social da Universi-dade de Coimbra, 1994, págs. 83 e 84) consideraque entre os efeitos que a greve pode desenca-dear encontra-se a proibição da substituição dostrabalhadores por pessoas que, à data do inícioda greve, não trabalhavam no respectivo estabe-lecimento ou serviço e proibição de admitir, a

partir daquela data, novos trabalhadores. E con-clui que «a proibição do artigo 6.º com que a leiquer acautelar a neutralização da greve contem-pla duas situações distintas: uma relativa à subs-tituição dos trabalhadores em greve por qualquerpessoa, da empresa ou externa à empresa, que àdata da notificação da greve não trabalhasse noestabelecimento ou serviço em que esta tem lu-gar; a outra respeitante à admissão de novos tra-balhadores. Naquele caso, a proibição desubstituição é relativa, já que dela ficam excluí-dos os trabalhadores do mesmo estabelecimentoou serviço e apenas esses; no segundo caso, aproibição é absoluta, já que impede a entidadepatronal de admitir novos trabalhadores desde adeclaração até ao termo da greve, destinem-se ounão a substituir os que se encontrem em greve».

2. Um outro elemento relevante para a deter-minação do sentido e alcance do artigo 6.º da Lein.º 65/77 prende-se com a noção de estabeleci-mento. Trata-se de um conceito que tem sidoobjecto de elaboração doutrinal em especial noâmbito do direito comercial.

Sobre a noção de estabelecimento, FernandoOlavo (cfr. Direito Comercial, vol. 1.º, 2.ª ed.,Lisboa, 1970, págs. 259 e 260) escreve:

«Na linguagem comum, o termo estabeleci-mento comercial significa armazém ou loja abertaao público pelo comerciante, e neste sentido oencontramos mais de uma vez na nossa lei (v. g.artigos 95.º, 114.º, n.º 2, e 263.º, § único, do Có-digo Comercial).

Não é essa, porém, a única acepção em que alei o emprega, pois utiliza-o também para desig-nar a totalidade ou parte das coisas corpóreasafectadas ao desempenho da actividade mercan-til do comerciante (artigo 425.º do Código Co-mercial) e, ainda, não apenas as coisas corpóreas,mas aquele conjunto de bens e serviços organiza-dos pelo comerciante com vista ao exercício dasua exploração comercial [Código Comercial, ar-tigo 24.º, Código Civil, artigos 1085.º e 1118.º,Código da Propriedade Industrial, artigo 118.º,§ 3.º, Código de Processo Civil, artigos 603.º,alínea i), e 1338.º, alínea d)].

É este último sentido próprio ou técnico dapalavra estabelecimento, o que corresponde aoconceito económico-jurídico de estabelecimentocomercial.»

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19 PareceresBMJ 501 (2000)

Ferrer Correia (cfr. Lições de Direito Comer-cial, Lex, págs. 117 e 120) depois de referir queas expressões «empresa» e «estabelecimento»,embora recebam, na doutrina, significados nemsempre coincidentes, podem ser tomadas comosinónimos, escreve que «empregadas as palavrasna sua acepção mais lata e em sentido objectivo,estabelecimento comercial vem a significar omesmo que o complexo da organização comer-cial do comerciante, o seu negócio em movi-mento ou apto para entrar em movimento».

E este autor, reconhecendo que para além daacepção ampla de estabelecimento comercial,outras mais são possíveis, salienta que por esta-belecimento se pode entender, designadamente,«a unidade técnica de venda, de produção de bens,ou de fornecimentos de serviços. Trata-se mani-festamente de uma noção mais restrita do que aanterior: com efeito, o estabelecimento — o es-tabelecimento na organização afectada ao exercí-cio de um comércio ou indústria — pode com-preender mais do que uma unidade técnica. Talserá o caso sempre que um comerciante, além doestabelecimento principal, tenha uma ou váriassucursais».

Por sua vez, Oliveira Ascensão (cfr. DireitoComercial, vol. 1.º, Parte Geral, Lisboa, 1994,págs. 492 e 493) chama a atenção para o facto deem vários diplomas emanados do Ministério doComércio e da Indústria, haver um entendimentode estabelecimento comercial como local onde seexerce a actividade, dando como exemplo desseentendimento o Decreto-Lei n.º 239/96, de 9 deAgosto, que aprova as normas de segurança con-tra riscos de incêndio a aplicar em estabeleci-mento comercial, nas quais o estabelecimento édefinido como «a instalação ou instalações afec-tadas ao exercício de actividade comercial a que opúblico tenha acesso» e o Decreto-Lei n.º 277/86, de 4 de Setembro, que institui o cadastrocomercial, cujo artigo 1.º, n.º 3, dispõe que: «Paraefeitos do disposto neste diploma, entende-sepor estabelecimento comercial o local onde se-jam exercidas as actividades económicas previs-tas no Decreto-Lei n.º 339/85.»

3. O conceito de «estabelecimento» tem tam-bém sido debatido na doutrina e na jurisprudên-cia, a propósito do artigo 37.º, n.º 1, da lei docontrato de trabalho.

É o caso do parecer de Vasco Lobo Xavier,publicado na Revista de Direito e Estudos So-ciais, Julho/Setembro de 1986, ano XXVIII, n.º 3,págs. 443 e segs., que afirma, a dado passo:

«Dir-se-á, no entanto, que o exacto conceitode estabelecimento que na doutrina comercia-lística se alcançou não tem que ser precisamenteo mesmo a que o legislador recorreu no artigo37.º Com efeito, no estabelecimento comercial— entendido de acordo com aquele conceito —podem frequentemente distinguir-se ‘conjuntossubalternos’, que de algum modo nos surgemainda como ‘organizações’. E os próprios co-mercialistas falam de ‘uma noção mais restrita’de estabelecimento, que corresponderia à pura esimples ‘unidade técnica de venda, de produçãode bens, ou de fornecimento de serviços’, adver-tindo que o estabelecimento, ‘como organizaçãoafectada ao exercício de um comércio ou indús-tria’, ‘pode compreender mais do que uma uni-dade técnica’.»

E o citado autor, depois de fazer uma brevereferência ao direito comparado, conclui:

«De toda a maneira, uma coisa é certa —mesmo para aqueles que entendem muito lata-mente a hipótese dos preceitos em referência, aaplicação destes supõe sempre que os «núcleos»ou ‘ramos’ do estabelecimento global que foramtransferidos ‘são dotados de uma autonomia téc-nico-organizativa própria’, constituem uma ‘uni-dade produtiva autónoma’, ‘com organizaçãoespecífica’.»

No mesmo sentido pode ver-se o acórdão doSupremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de1999, proferido no processo n.º 390/98, no qualse refere, a dado passo:

«Estamos perante um sector bem diferen-ciado do estabelecimento da ré, por ela conside-rado na sua funcionalidade como uma unidadeautónoma de produção, com organização técnicaprópria e específica avaliação dos respectivosresultados, ainda que integrado no todo empre-sarial da ré em Cacia.

Destaca-se, pois, do todo como uma unidadeprodutiva cuja actividade podia ser desenvolvi-da distintamente dos outros que a ré levava acabo, à margem delas, constituindo um estabele-cimento para os efeitos que consideramos.»

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20Pareceres BMJ 501 (2000)

Também o acórdão do Supremo Tribunal deJustiça de 2 de Outubro de 1996, Colectânea deJurisprudência — Acórdãos do Supremo Tribu-nal de Justiça, ano IV, tomo III, pág. 236, sepronuncia em sentido idêntico:

«Mas, naquele artigo, exige-se que a trans-missão respeite a um ‘estabelecimento’, devendotal conceito ser entendido em termos amplos,por forma que abranja a ‘organização afectada aoexercício de um comércio ou indústria’, os ‘con-juntos subalternos’, que correspondam a umaunidade técnica de venda, de produção de bens,ou de fornecimento de serviços, desde que a uni-dade destacada do estabelecimento global seja‘dotada de unia autonomia técnico-organizativaprópria’, constituindo uma unidade ‘produtivaautónoma’, com ‘organização específica’.»

Da doutrina e jurisprudência citados verifica--se, pois, que a noção de estabelecimento as-sume várias acepções, desde a mais restrita, pró-xima do conceito mais técnico-jurídico da doutrinacomercialística, até outra, mais ampla, que nãopode deixar de ligar-se ao contexto normativo noqual se insira.

4. Presentes os elementos recenseados, é agorao momento de ensaiar a aproximação à questãoque constitui o objecto da oposição, a qual, comojá se referiu, se centra na interpretação do artigo6.º da Lei n.º 65/77, na parte em que dispõe que«a entidade empregadora não pode, durante agreve, substituir os grevistas por pessoas que àdata do seu anúncio não trabalhavam no respec-tivo estabelecimento ou serviço [...]».

Não é tarefa fácil determinar os conceitos de«estabelecimento» ou «serviço», relativamente auma empresa cuja actividade é a prestação deserviço de segurança privada a terceiros e cujostrabalhadores que exercem funções de vigilânciasão contratados para uma determinada zona geo-gráfica do País, exercendo normalmente aquelastarefas nas empresas que são propriedade de ter-ceiros e não da sua entidade patronal.

Como se viu, a definição e concretização dosconceitos de «estabelecimento» ou «serviço»,para efeitos da proibição contida no artigo 6.º daLei n.º 65/77, não pode, pela diversa naturezadas realidades a ter em conta, ser objecto de umadelimitação precisa, com validade de referência

às diversas hipóteses que se colocam no âmbitoda organização de cada empresa.

Com efeito, só casuisticamente, atendendo,por um lado aos moldes concretos da organiza-ção de cada empresa e, por outro lado, à históriae à ratio legis da norma constante do artigo 6.º daLei n.º 65/77, é que se poderão preencher os refe-ridos conceitos.

5. A anterior Lei da Greve — Decreto-Lei n.º392/74, de 27 de Agosto —, no que concerne àproibição de a entidade patronal substituir ostrabalhadores grevistas por outros trabalhadores,consagrava uma solução diferente daquela queveio a ser adoptada no artigo 6.º da Lei n.º 65/77.

Efectivamente, o artigo 14.º do citado De-creto-Lei n.º 392/74 dispunha que «enquantodurar a greve não pode a entidade patronal subs-tituir os grevistas por pessoas que, à data daentrega das reivindicações, não estejam ligados àempresa por um contrato de trabalho».

Este normativo apenas impedia que, durantea greve, a entidade patronal substituísse os tra-balhadores aderentes à greve por pessoas quenão estivessem ligadas à empresa por um contra-to de trabalho, possibilitando, assim, que, du-rante a greve, a entidade patronal agregasse aosector atingido pela greve os trabalhadores jápertencentes à empresa, mas inseridos noutro«estabelecimento» ou «serviço».

Essa possibilidade foi afastada pelo artigo 6.ºda Lei n.º 65/77, na medida em que proíbe que aentidade patronal substitua os trabalhadores gre-vistas por outros trabalhadores que à data doanúncio da greve não trabalhassem no estabeleci-mento ou serviço afectado pela paralisação.

E a razão de ser da proibição contida no artigo6.º da Lei n.º 65/77 situa-se, como atrás se viu, nanecessidade de impedir a frustração ou o esva-ziamento do direito à greve constitucionalmenteconsagrado.

Apesar da aplicação dessa proibição ter deser feita casuisticamente, face aos modelos con-cretos da organização de cada empresa, podeter-se como certo que constitui violação do ci-tado artigo 6.º, para além do caso óbvio da ad-missão de novo pessoal, a transferência de localde trabalho (cfr. Monteiro Fernandes, Direito deGreve, 1982, pág. 44).

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21 PareceresBMJ 501 (2000)

Aqui chegados, há que reconhecer a espe-cificidade das empresas que prestam serviços desegurança privada a terceiros, especificidade essaque se traduz em as tarefas de vigilância dos seustrabalhadores serem normalmente executadas emlocais que são propriedade de terceiros, aos quaisa entidade patronal desses trabalhadores prestaserviços de segurança, locais esses que, emboranão sejam propriedade da entidade patronal, sãoos «locais de trabalho» dos seus trabalhadores.

Sendo assim, parece poder concluir-se que,relativamente àquelas empresas, o único critérioque respeita os objectivos daquela proibiçãolegal é o que atenda ao local de trabalho onde ostrabalhadores da empresa deveriam exercer as suastarefas de vigilância de acordo com a distribuiçãode serviço organizada pela empresa para vigorardurante o período que viria a ser abrangido peladeclaração de greve.

Na verdade, não pode aceitar-se o critério pro-posto no acórdão recorrido que faz derivar aviolação da proibição contida no artigo 6.º da Lein.º 65/77, na diferença entre várias actividadesexecutadas pelos trabalhadores e não no local daprestação de trabalho.

Com efeito, nesse acórdão conclui-se não ha-ver violação daquela proibição pelo facto de, queros trabalhadores que substituíram os trabalha-dores grevistas, quer estes, executarem a mesmaactividade (vigilância), sendo irrelevante a altera-ção do local da prestação do trabalho.

Esta posição não é admissível em nenhumadas suas proposições.

É que basta pensar na hipótese de a entidadepatronal determinar, nomeadamente com re-curso ao jus variandi, a substituição do traba-lhador grevista por outro, ambos laborando nomesmo estabelecimento, embora exercendo acti-vidades diferentes.

Nessa hipótese não há violação do artigo 6.ºda Lei n.º 65/77, contrariamente ao que condu-ziria o entendimento sufragado no acórdão re-corrido.

Por outro lado, não pode confundir-se «localde trabalho» com toda área geográfica dentro daqual o contrato de trabalho permite à entidadepatronal movimentar os trabalhadores que exer-cem tarefas de vigilância.

É que a proibição contida no mencionado ar-tigo 6.º respeita ao local de trabalho em que o

trabalhador efectivamente já trabalhava à data doanúncio da greve e não aos locais hipotéticospara onde a entidade patronal tinha o poder legalde o transferir.

Aliás, a solução oposta é susceptível de pro-porcionar às empresas com este tipo de organi-zação a fraude à lei, na medida em que podemdilatar sem limites, no momento de conformar asua organização, a área abrangida pela possibili-dade de livre colocação dos seus trabalhadores.

Aceitar para os efeitos em causa como «esta-belecimento» ou «serviço» toda a área geográficaprevista nos contratos de trabalho celebradospelas empresas com este tipo de organizaçãoseria propiciar o exaurir do exercício do direito àgreve, que a proibição do citado artigo 6.º visaimpedir.

V — Conclusão

Do que vem de expor-se, resulta que aderi-mos à solução adoptada no acórdão fundamento.

Na verdade, sob pena de ficarem postergadosos objectivos que a proibição contida no artigo6.º da Lei n.º 65/77 visa prosseguir, impõe-seconcluir que «estabelecimento» ou «serviço», naacepção daquele normativo, abrange, no caso dasempresas cuja actividade é a prestação de servi-ços de segurança privada a terceiros, o local onde,de acordo com a distribuição de serviço efec-tuada pela entidade patronal, estava previsto otrabalhador apresentar-se para trabalhar durantea greve.

Por isso, o conflito de jurisprudência exis-tente entre o acórdão do Tribunal da Relação deLisboa de 7 de Dezembro de 1999, proferido noprocesso n.º 2116-4/99, e o acórdão de 3 de No-vembro de 1999 do mesmo Tribunal da Relação,proferido no processo n.º 3895-4/99, deve resol-ver-se por decisão para a qual se propõe a se-guinte formulação:

«1 — Para efeitos da proibição contida noartigo 6.º da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, háque considerar, em relação às empresas cuja acti-vidade é a prestação de serviços de segurançaprivada a terceiros, atenta a especificidade dasua organização, como «estabelecimento» ou«serviço» o local onde, de acordo com a distri-buição de serviço organizada pela entidade pa-

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22Pareceres BMJ 501 (2000)

O assento onde foi emitido este parecer encontra-se publicado a pág. 34 deste número doBoletim.

(M. A. P.)

tronal, estava previsto a apresentação do traba-lhador para trabalhar durante a greve.

2 — Envolve, consequemente, violação docitado normativo a substituição desse trabalha-dor que aderiu à greve por outro que à data do

pré-aviso da greve e até ao termo desta, não es-tava previsto trabalhar naquele local.»

A Procuradora-Geral Adjunta.Maria Adozinda Pereira.

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JURISPRUDÊNCIA

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25 Jurisprudência fixadaBMJ 501 (2000)

Instituto do Emprego e Formação Profissional — Processoespecial de recuperação da empresa e de falência — Conceitode Estado — Extinção de privilégios creditórios

Não cabendo o Instituto do Emprego e Formação Profissional, por ser um institutopúblico, dentro do conceito de Estado usado no artigo 152.º do Código dos ProcessosEspeciais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lein.º 132/93, de 23 de Abril, a extinção de privilégios creditórios operada por esta dispo-sição não abrange aqueles que garantem, por força do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Abril, créditos daquele Instituto.

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

No Tribunal Judicial da Comarca da Nazaré,em autos de reclamação de créditos a correr porapenso ao processo de falência em que foi decla-rada falida a sociedade por quotas PorcelanasVítor e Silva, L.da, foi reclamado pelo Institutodo Emprego e Formação Profissional um créditode 13 742 500$00, correspondente à parte nãoreembolsada de um apoio financeiro reembol-sável por ele concedido em 1988 à falida no âm-bito do Programa ILE (iniciativa local de emprego)— ao abrigo do Despacho Normativo n.º 46/86,de 4 de Junho —, montante esse ao qual acres-ciam juros de mora no valor de 4 747 752$00.

Este crédito, tal como os restantes créditos,reclamados por outros credores, foi consideradoverificado no despacho saneador, aí se tendo pro-cedido à graduação de todos pela forma seguinte:

1.º — Os créditos dos trabalhadores, por, deacordo com o artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14de Junho, e o artigo 737.º, n.º 1, alínea d), doCódigo Civil, gozarem de privilégio imobiliáriogeral e mobiliário geral;

2.º — Todos os restantes créditos rateada-mente, por terem sido havidos como comuns,sendo dado o esclarecimento de que os créditosda Segurança Social e do Estado passaram a teressa natureza por força do artigo 152.º do Có-digo dos Processos Especiais de Recuperação daEmpresa e de Falência, aprovado pelo Decreto--Lei n.º 132/93, de 23 de Abril.

Houve apelação do Instituto do Emprego eFormação Profissional, que a Relação de Coimbrajulgou improcedente.

Deste acórdão trouxe o Instituto do Empregoe Formação Profissional a este Supremo Tribu-nal e Justiça o presente recurso de revista emque, alegando a pedir a graduação do seu créditoem primeiro lugar e antes dos créditos dos traba-lhadores, e dizendo terem sido violados o artigo152.º do Código dos Processos Especiais de Re-cuperação da Empresa e de Falência e, ainda, oartigo 7.º do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 deDezembro, formulou conclusões com o seguinteconteúdo:

1 — O regime previsto no artigo 152.º doCódigo dos Processos Especiais de Recuperaçãoda Empresa e de Falência não se aplica ao Insti-tuto do Emprego e Formação Profissional;

2 — O sentido daquela norma é o de extinguiros privilégios creditórios do Estado em sentidorestrito, enquanto representado pelo Governo,das autarquias locais e das instituições de Segu-rança Social, sendo que o Instituto do Emprego eFormação Profissional continua a gozar dos res-pectivos privilégios na reclamação de créditoscontra as empresas devedoras, após a declaraçãode falência;

3 — A não ser assim, não faria sentido apare-cerem autonomizadas no citado artigo, a par doEstado, as autarquias locais e, principalmente,as instituições de segurança social, que, à seme-lhança do Instituto do Emprego e Formação Pro-fissional, são também entidades que gozam de

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAssento de 28 de Novembro de 2000Revista n.º 943/99 — 1.ª Secção

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26Jurisprudência fixada BMJ 501 (2000)

personalidade jurídica de direito público, comautonomia administrativa e financeira e patrimó-nio próprio, ou seja, em tudo iguais ao Institutodo Emprego e Formação Profissional;

4 — Aliás, tanto assim é que o próprio legis-lador do Código dos Processos Especiais de Re-cuperação da Empresa e de Falência, noutrospreceitos do diploma, como os artigos 22.º, n.º 1,e 62.º, n.º 2, se refere distintamente a Estado, ainstitutos públicos e a instituições de segurançasocial enquanto entidades públicas titulares decréditos privilegiados, mas intencionalmente nãofez o mesmo no artigo 152.º;

5 — De resto, outra solução não seria de es-perar face à especificidade dos créditos do Insti-tuto do Emprego e Formação Profissional, istoé, resultando tais créditos da atribuição de apoiosfinanceiros concedidos para efeitos de criação emanutenção de postos de trabalho, bem comopara formação profissional, o tratamento a dar--lhes teria que ser, obviamente, diferente;

6 — E, além disso, sintomático da correcçãodo entendimento que perfilhamos, temos o factode o legislador do Decreto-Lei n.º 315/98, de 20de Outubro, vir agora dar nova redacção ao artigo152.º, mas manter inalterada a referência aos en-tes públicos que perdem os privilégios creditó-rios com a declaração de falência, não incluindoou não se referindo, como o faz noutros precei-tos, aos «institutos públicos»;

7 — Em suma, o Instituto do Emprego e For-mação Profissional continua a gozar, após a de-claração de falência e para efeito de graduação decréditos, dos privilégios creditórios previstos noartigo 7.º do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 deDezembro;

8 — Efectivamente, conforme dispõe o artigo7.º do Decreto-Lei n.º 437/78, os créditos resul-tantes dos apoios financeiros concedidos no âm-bito da promoção do emprego e da formaçãoprofissional — como é o caso dos autos — go-zam de garantias especiais, isto é, do privilégiomobiliário geral sobre os bens móveis do deve-dor, graduando-se logo após os créditos referi-dos na alínea a) do artigo 747.º do Código Civil egozam ainda do privilégio imobiliário sobre osbens imóveis do devedor, graduando-se logo apósos créditos referidos no artigo 748.º do CódigoCivil.

Houve resposta do Ministério Público juntoda Relação de Coimbra, que se manifestou nosentido da procedência do recurso — opiniãoque neste Supremo Tribunal de Justiça foi se-cundada pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Está assente, por virtude da verificação decréditos a que se procedeu no despacho sanea-dor e contra a qual não houve reacção, a existên-cia de um crédito do recorrente sobre a falidacom o montante e origem acima descritos, decréditos da Segurança Social provenientes de con-tribuições não liquidadas e respectivos juros, dequatro créditos do Estado por custas, de trêscréditos de que são titulares fornecedores demercadorias, de um crédito dos Serviços Muni-cipalizados da Nazaré por fornecimento de águae, finalmente, de diversos créditos dos trabalha-dores emergentes da cessação dos seus contratosde trabalho.

Estes últimos foram, nas instâncias, tidoscomo beneficiados, nos termos do artigo 12.º daLei n.º 17/86, de 14 de Junho, por privilégiomobiliário geral e por privilégio imobiliário geral,respectivamente, e graduados em primeiro lugarpor força do disposto nesse artigo e no artigo737.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil.

O reconhecimento de que os créditos dos tra-balhadores aqui em causa beneficiam de ambosestes privilégios não vem discutido, sendo, emtodo o caso, de dizer que esses privilégios resul-tam, em termos inequívocos, do disposto non.º 1 do mencionado artigo 12.º, o que conduz aoseu pagamento preferencial face a todos os cré-ditos não privilegiados ou com privilégio commenor força que, tendo a falida como devedora,foram também verificados.

No entanto, é de assinalar o seguinte.Ao referir-se, como se referiu, a existência de

créditos dos trabalhadores com privilégio mobi-liário geral e com privilégio imobiliário geral e aofazer-se a sua graduação em primeiro lugar porforça do disposto nesse artigo e no artigo 737.º,n.º 1, alínea d), do Código Civil, cometeu-se umaimprecisão, já que este último normativo apenasrespeitaria ao primeiro destes privilégios, sendoque a graduação do privilégio imobiliário haveriaque ser feita com referência aos créditos referi-

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27 Jurisprudência fixadaBMJ 501 (2000)

dos no artigo 748.º do Código Civil e antes des-tes — tudo por força das alíneas a) e b) do n.º 3do referido artigo 12.º

Fica-se sem se saber se tal se deveu ao conhe-cimento, que não temos, de só estarem em causabens móveis da falida — caso em que terá sidoinútil a referência ao privilégio imobiliário —, oua erro de aplicação de direito.

Sempre se poderá, se for caso disso, decidir afinal tendo em atenção esta distinção de regimeslegais.

A questão que vem submetida à nossa consi-deração reside em saber se o crédito do recorren-te goza de privilégios creditórios aqui subsistentese invocáveis e que impliquem a sua graduação àfrente dos créditos dos trabalhadores — opiniãodefendida pelo recorrente —, ou se, pelo contrá-rio, tal crédito reveste aqui a natureza de créditocomum — tese defendida no acórdão recorrido.

O recorrente é um organismo que foi criadopelo Decreto-Lei n.º 519-A2/79, de 27 de De-zembro.

Neste diploma, depois de no seu artigo 1.º seafirmar caber ao Ministério do Trabalho, entreoutras atribuições, a de «[...] participar activa-mente na concepção da política global de em-prego, executá-la no âmbito das suas competên-cias e apoiar a coordenação das acções que nestedomínio sejam desenvolvidas pelos demais de-partamentos públicos e outras entidades [...]»,aludiu-se aos serviços de que para a sua prosse-cução aquele Ministério dispunha: a alínea a) don.º 1 do seu artigo 2.º mencionou o Gabinete deGestão do Fundo de Desemprego, criado peloDecreto-Lei n.º 759/74, de 30 de Dezembro, e aalínea b) do mesmo n.º 1 falou no Instituto doEmprego e Formação Profissional, consagrandoa sua criação ex novo.

No artigo 3.º, n.º 1, do mesmo decreto-lei dis-se-se ser uma pessoa colectiva de direito públicodotada de autonomia administrativa e financeirae revestindo a forma de serviço personalizado doEstado; ainda agora o Estatuto que actualmenteo rege, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 247/85, de12 de Julho, o define como organismo dotado depersonalidade jurídica de direito público, comautonomia administrativa e financeira e patrimó-nio próprio.

Pelo artigo 4.º daquele Decreto-Lei n.º 519--A2/79 foi dito competir-lhe, em geral, a partici-pação na concepção da política de emprego eformação profissional e assegurar a sua execuçãono âmbito daquele Ministério, cometendo-se-lheas competências da Direcção-Geral do Empregoe da Direcção-Geral de Promoção do Emprego,ambas criadas pelo Decreto-Lei n.º 762/74, de30 de Dezembro, e do Fundo de Desenvolvi-mento da Mão-de-Obra, criado pelo Decreto--Lei n.º 44 506, de 10 de Agosto de 1962; estesserviços foram, por sua vez, extintos na sequên-cia do disposto no artigo 7.º do mesmo decreto--lei.

A definição actual das suas atribuições constado artigo 4.º do Estatuto que se referiu acima,interessando aqui, em especial, as das suas alí-neas c) — «Promover a [...] orientação de for-mação profissional e reabilitação profissional ecolocação dos trabalhadores [...]», d) — «Pro-mover a melhoria da produtividade na generali-dade das empresas mediante a realização [...] dasacções de formação profissional [...] que se reve-lem em cada momento mais adequadas [...]» ee) — «Apoiar iniciativas que conduzam à criaçãode novos postos de trabalho, em unidades pro-dutivas já existentes ou a criar, bem como à suamanutenção, nos domínios técnico e financeiro».

Ainda antes da criação do Instituto do Em-prego e Formação Profissional já cabia à Direc-ção-Geral do Emprego «promover o ajustamentoentre a procura e a oferta de emprego, nomea-damente facilitando a mobilidade profissional egeográfica dos trabalhadores» e «promover arealização de acções de formação e reabilitaçãoprofissional e prestar apoio técnico e financeiroàs que forem realizadas por empresas ou outrasentidades», nos termos dos artigos 3.º, alíneas c)e e), 5.º, alínea c), e 7.º, alíneas a), b), c) e e), doDecreto-Lei n.º 762/74, e cabia à Direcção-Geralde Promoção do Emprego desencadear as actua-ções necessárias para a realização de empreendi-mentos geradores de emprego e promover o seuapoio adequado, bem como intervir em situaçõesde risco iminente de desemprego e participar naaplicação das soluções encontradas — alíneas b)e c) do seu artigo 11.º

Para cobertura dos encargos decorrentes dasiniciativas previstas nas referidas alínea c) do

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28Jurisprudência fixada BMJ 501 (2000)

artigo 5.º, alíneas a), b), c) e e) do artigo 7.º ealíneas b) e c) do artigo 11.º seriam inscritas do-tações especiais no orçamento do Fundo de De-senvolvimento da Mão-de-Obra — artigo 20.ºdo mesmo decreto-lei.

Conforme se reconheceu no preâmbulo doDecreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro, apossibilidade de financiamento de acções de ma-nutenção e promoção do emprego através doGabinete de Gestão do Fundo de Desemprego— estas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 759/74, de30 de Dezembro — e do Fundo de Desenvolvi-mento de Mão-de-Obra — as que acima acabá-mos de referir — não tinham ainda a regula-mentação necessária para a sua concretização nempara o acautelamento da cobrança coerciva doscréditos delas eventualmente decorrentes para aAdministração; para este fim foi publicado aqueleDecreto-Lei n.º 437/78.

Assim, os seus artigos 1.º a 3.º trataram doprocessamento da concessão desses financiamen-tos, que poderiam traduzir-se em empréstimos,subsídios reembolsáveis ou não, garantias depagamento e outras formas de apoio financeiro.

Os seus artigos 4.º e 5.º regularam a criação dotítulo executivo destinado à cobrança coercivados créditos resultantes desse apoio financeiro.

O seu artigo 6.º previu, em caso de aplicaçãoindevida do apoio ou de incumprimento injus-tificado, a declaração de vencimento imediato dadívida por despacho das entidades que o hou-vessem concedido.

Finalmente, o seu artigo 7.º criou garantiasespeciais beneficiando os mesmos créditos, de-signadamente um privilégio mobiliário geral so-bre os bens móveis do devedor — o da sua alí-nea a) —, um privilégio imobiliário sobre os bensimóveis do devedor — o da sua alínea b) — euma hipoteca legal, também sobre os bens imó-veis do devedor — o da sua alínea c).

O percurso acabado de fazer foi necessáriopara que se percebesse por que motivo pode serdiscutida a respeito dos créditos de que é titularo Instituto do Emprego e Formação Profissionala existência de privilégios creditórios previstospor disposição legal que se dirigia ao extintoFundo de Desenvolvimento de Mão-de-Obra.

Afigura-se, nomeadamente, evidente a corres-pondência a estabelecer, em especial, entre a alí-

nea b) do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 762/74 ea alínea e) do artigo 4.º do Estatuto do Institutodo Emprego e Formação Profissional.

Assim, pode ter-se como demonstrado que,em princípio, serão beneficiados por esses privi-légios os créditos detidos pelo Instituto do Em-prego e Formação Profissional que houveremsido constituídos em casos e condições que osconcederiam a créditos daquele Fundo.

A verificação que deste crédito foi feita na1.ª instância, porque não impugnada, deixa as-sente que o crédito existe no montante e demaiscondições descritas na reclamação e com a ori-gem aí mencionada.

Mas não basta para que se dê como assenteque esse crédito nasceu como privilegiado, ha-vendo que apurar se havia norma que lho conce-desse.

A circunstância de este aspecto ter sido, atéagora, resolvido pacificamente nestes autos nãonos dispensa de o analisar visto tratar-se de ma-téria de direito, oficiosa e livremente cognoscívelpelo tribunal — cfr. artigo 664.º do Código deProcesso Civil.

O crédito em causa emergiu de um apoio fi-nanceiro reembolsável concedido em 1988 à fa-lida no âmbito do Programa ILE (iniciativa localde emprego), ao abrigo do Despacho Normativon.º 46/86, de 4 de Junho, que regulamentou aconcessão de apoios à dinamização sócio-econó-mica a nível local, fomentando projectos gerado-res de emprego.

Este despacho foi buscar a sua legitimação adiversas disposições do Decreto-Lei n.º 445/80,de 4 de Outubro, que visou proceder ao enqua-dramento da promoção do emprego com vista àcriação e ou manutenção de postos de trabalho,procurando contribuir para o incremento das ini-ciativas com incidência nessas criação e manu-tenção.

E fundou-se, também, na já atrás citada alí-nea e) do artigo 4.º do Estatuto do Instituto doEmprego e Formação Profissional, com o quesomos remetidos, através do iter que já ficoudescrito, para a aplicabilidade, ao caso, do artigo7.º do Decreto-Lei n.º 437/78 — designadamentepor ser de configurar a existência do privilégiomobiliário geral sobre os bens móveis do deve-dor — o da sua alínea a) — e do privilégio imo-

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29 Jurisprudência fixadaBMJ 501 (2000)

biliário sobre os bens imóveis do devedor — o dasua alínea b).

Privilégios estes que, tal como foram previs-tos, levariam à graduação pela forma seguinte:

— O privilégio mobiliário geral seria atendidologo após os créditos referidos na alínea a) doartigo 747.º do Código Civil — formulação legalmanifestamente defeituosa, já que aqui só podiaestar em causa a alínea a) do n.º 1 desse artigo;

— O privilégio imobiliário geral sê-lo-ia logoapós os créditos referidos no artigo 748.º doCódigo Civil.

De tudo resultaria que o crédito do recorrentehaveria, sendo aplicável este regime, de ter sidograduado a seguir aos créditos dos trabalhadoresemergentes da cessação dos contratos de traba-lho e antes dos créditos comuns, e não pelaforma que vem propugnada pelo recorrente.

Na verdade, o n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 17/86, dá aos créditos dos trabalhadores um privilé-gio que os avantaja no seu confronto com o quebeneficiará o Instituto do Emprego e FormaçãoProfissional, na medida em que o privilégio mo-biliário daqueles será atendido antes dos créditosreferidos no artigo 747.º, n.º 1, do Código Civil eo imobiliário o será antes dos créditos referidosno artigo 748.º, também do Código Civil — àfrente, pois, da graduação que resulta do artigo7.º do Decreto-Lei n.º 437/78.

Isto porque, como acima se disse, o créditodo recorrente emerge de um apoio financeiroreembolsável concedido em 1988 à falida, isto é,em data posterior àquela em que entrou em vigoro regime instituído pelo artigo 12.º da Lei n.º 17/86, pelo que não está abrangido pela salvaguardade privilégios anteriores constante da parte finaldo n.º 2 do mesmo artigo 12.º — salvaguarda queo avantajaria aos créditos dos trabalhadores sefosse, diversamente, aplicável no presente caso.

O obstáculo que as instâncias levantaram aoatendimento, em concreto, dos privilégios con-cedidos por este artigo 7.º resulta do disposto noartigo 152.º do Código dos Processos Especiaisde Recuperação da Empresa e de Falência.

Recorde-se que o crédito do Instituto do Em-prego e Formação Profissional foi reclamado emfase de verificação do passivo num processo defalência em que a devedora foi declarada falida —

fase em que se apuram os créditos que hão-de serpagos pelas disponibilidades a realizar a partirdo património da devedora e em função da gra-duação ordenada que deles for feita, consoantese tratar de créditos comuns ou privilegiados e,neste último caso, em função da força relativadesses privilégios.

O mencionado artigo 152.º dispunha o seguintena sua versão inicial, aqui aplicável:

«Com a declaração de falência extinguem-seimediatamente os privilégios creditórios do Es-tado, das autarquias locais e das instituições desegurança social, passando os respectivos crédi-tos a ser exigíveis apenas como créditos comuns.»

E na revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, passou a ser assim:

«Com a declaração de falência extinguem-seimediatamente, passando os respectivos crédi-tos a ser exigidos apenas como créditos comuns,os privilégios creditórios do Estado, das autar-quias locais e das instituições de segurança so-cial, excepto os que se constituírem no decursodo processo de recuperação ou de falência.»

Sendo evidente que as entidades com a natu-reza do recorrente — os institutos públicos —não estão aqui expressamente referidos, a ques-tão reside em saber se os abrangerá a referênciafeita nesta norma ao Estado.

Que sim, disseram as instâncias.Que não, defende o recorrente e o Ministério

Público.

A doutrina jurídica tem vindo a distinguir vá-rias acepções da palavra «Estado», que, na liçãode Diogo Freitas do Amaral, Curso de DireitoAdministrativo, vol. 1.º, págs. 197-198, pode serencarado enquanto «Estado soberano, titular dedireitos e obrigações na esfera internacional»— acepção internacional —, enquanto «comuni-dade de cidadãos que, nos termos do poder cons-tituinte que a si própria se atribui, assume umadeterminada forma política para prosseguir osseus fins nacionais» — acepção constitucional —e como «pessoa colectiva pública que, no seio dacomunidade nacional, desempenha, sob a direc-ção do Governo, a actividade administrativa» —acepção administrativa.

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30Jurisprudência fixada BMJ 501 (2000)

Lê-se na mesma obra a pág. 200:

«Não se confundem Estado e outras entida-des administrativas: o interesse prático maior dorecorte da figura do Estado-administração reside,justamente na possibilidade assim aberta de se-parar o Estado das outras pessoas colectivaspúblicas que integram a Administração. Destemodo, não se confunde o Estado com as RegiõesAutónomas, nem com as autarquias locais, nemsequer com os institutos públicos e associaçõespúblicas, apesar de mais intimamente conexoscom ele [...]»

A Constituição da República Portuguesa tempresente esta noção de Estado-administraçãoquando, a propósito da regulamentação do queao Governo compete no exercício de funçõesadministrativas, distingue na alínea d) do seu ac-tual artigo 199.º entre administração directa doEstado, administração indirecta e administraçãoautónoma e alude na alínea e) aos funcionários eagentes do Estado e de outras pessoas colectivaspúblicas.

A administração directa corresponde ao Esta-do nos seus vários escalões, estando englobadasob uma única personalidade jurídica e sendo osdiversos órgãos e serviços em que se decompõedirigidos pelo Governo — artigo 199.º, alínea d),da Constituição da República Portuguesa.

A administração indirecta do Estado e a admi-nistração autónoma são exercidas por entes per-sonalizados de diversos tipos, criados paraprosseguirem interesses públicos sob a superin-tendência e tutela do Estado no caso da primeira,ou apenas sob essa tutela no caso da segunda —mesma alínea d).

Sem preocupação de sermos exaustivos, aadministração indirecta e a administração autó-noma compreendem entes como os institutospúblicos — onde ainda é possível referir, comoespécies diferenciadas, os serviços personaliza-dos, as fundações públicas, os estabelecimentospúblicos e as empresas públicas —, as associa-ções públicas, as Regiões Autónomas e as autar-quias locais.

Na sua letra o citado artigo 152.º do Códigodos Processos Especiais de Recuperação daEmpresa e de Falência não os engloba a todos,pois, referindo-se apenas, expressamente, ao

Estado, às autarquias locais e às instituições desegurança social — que, sendo legalmente qua-lificadas como institutos públicos, como se vêdos artigos 7.º e 57.º da Lei n.º 28/84, de 14 deAgosto, e do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 260/93, de 23 de Julho, não são, no entanto, mais doque uma pequena parcela dos institutos públi-cos existentes —, aponta para a sua aplicabili-dade exclusiva à administração directa do Estado— ou ao Estado stricto sensu — e, no âmbito daadministração indirecta e da administração autó-noma, às entidades a que alude.

Na verdade, a ter aí a palavra «Estado» umsentido mais abrangente, designadamente englo-bando os institutos públicos, logo se patenteariaa incongruência que traduziria a posterior refe-rência às instituições de segurança social, atentaa sua natureza jurídica acima indicada.

E a interpretação que dá à expressão «Es-tado» esse alcance reduzido é, notoriamente, aque mais se coaduna com a técnica usada pelolegislador do Código dos Processos Especiais deRecuperação da Empresa e de Falência.

De facto, em diversas disposições deste di-ploma a regulamentação nelas introduzida evi-denciou a consciência da diversidade de tipos depessoas jurídicas públicas, tal como acima ficoudescrita, e da diferença que existe entre o Estadostricto sensu e as restantes.

Assim, no artigo 22.º estatui-se em relação aoEstado, a institutos públicos sem a natureza deempresas públicas e a instituições de segurançasocial, quando credores, um regime especial deintervenção no processo através de mandatáriosespeciais, em substituição do Ministério Público.

No artigo 62.º permitiu-se que as mesmas en-tidades, quando titulares de créditos privilegia-dos, dessem, em processo de recuperação, o seuacordo a providências de recuperação que envol-vessem a extinção ou a modificação dos seus cré-ditos.

Em linha semelhante, mas agora distinguindo--se entre o Estado e as restantes entidades públi-cas titulares de créditos privilegiados, estabele-ceu-se no artigo 52.º um regime especial a observarquando os seus representantes se abstivessemde votar, por falta de autorização do membro doGoverno competente, na assembleia de credorese tal impedisse a tomada de deliberação — re-gime que visou facilitar, num segundo momento

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31 Jurisprudência fixadaBMJ 501 (2000)

a determinar proximamente, a tomada dessa deli-beração.

No artigo 65.º criou-se, quanto a créditos cons-tituídos sobre a empresa em recuperação na faseprocessual aí definida, um regime da retenção deparcelas que fossem devidas para garantia decumprimento de obrigações também para com oEstado ou outra entidade pública.

E no n.º 6 do artigo 41.º — norma que não éoriginária, visto que foi introduzida pelo De-creto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, masque confirma a perseverança neste conceito res-trito — veio estabelecer-se um regime especialconducente a permitir, verificados determinadospressupostos, a nomeação do Estado ou de insti-tuições de segurança social para a presidência dacomissão de credores.

O que mostra que o Código dos ProcessosEspeciais de Recuperação da Empresa e de Fa-lência usou a palavra «Estado» sempre num sen-tido restrito, enquanto pessoa jurídica que é acorrespondente à administração directa e não en-globa as demais pessoas jurídicas públicas queintegram a administração indirecta, designada-mente os seus serviços personalizados.

E é significativo que o legislador, encarandoem fases diferentes — a do artigo 62.º e a doartigo 152.º — situações em que entidades públi-cas são titulares de créditos privilegiados, hou-vesse aí estatuído regimes com âmbito subjectivodiferente, o que revela estar subjacente às solu-ções adoptadas a consideração de circunstânciasque em uma e outra terão sido determinantes.Isto é: numa primeira fase, anterior à falência,considera de igual modo os privilégios do Estadoe os dos institutos públicos; e numa segundafase, já após a declaração da falência, procede àextinção dos privilégios do Estado mas não de-termina o mesmo quanto aos dos institutos pú-blicos.

Tem-se argumentado, porém, com passagensdo preâmbulo do Código dos Processos Espe-ciais de Recuperação da Empresa e de Falênciapara defender que no artigo 152.º foi usado umconceito mais amplo de «Estado».

No n.º 6 desse preâmbulo alude-se, na ver-dade, aos inconvenientes que a existência de pri-vilégios creditórios envolve no plano da recupe-ração económica de uma empresa em dificulda-

des, desde logo por virtude do peso dos créditosprivilegiados «[...] do Estado e da chamada Segu-rança Social».

E, com particular interesse para o caso, aí seescreveu:

«Não faria realmente grande sentido que olegislador, a braços com a tutela necessária dasempresas em situação financeira difícil desde 1977até hoje, continuasse a apelar vivamente para osdeveres de solidariedade económica e social querecaem sobre os credores e mantivesse inteira-mente fora das exigências desse dever de coope-ração quer o Estado, quer as instituições desegurança social, que deveriam ser as primeiras adar exemplo da participação no sacrifício co-mum.»

E, acto contínuo, anunciou-se, nos seus exac-tos termos literais, a solução legal que se intro-duziria no artigo 152.º

Afirmou, pois, o legislador a indispensa-bilidade de sacrificar em prol da solidariedadeeconómica e social os interesses do Estado e dasinstituições de segurança social, teve, necessa-riamente, perfeita consciência de que resultariamextintos os privilégios creditórios das entidadesnaquele artigo nomeadas, designadamente o Es-tado e aquelas instituições, e não de outras enti-dades cuja natureza jurídica se assemelhasse àdestas últimas.

Não é difícil encontrar um motivo para a dis-tinção, assim feita, entre o Estado e as institui-ções de segurança social, por um lado, e os demaisinstitutos públicos, sejam ou não empresas pú-blicas, pelo outro.

É que os créditos privilegiados do Estado edaquelas instituições advêm, na sua parte larga-mente dominante, de impostos e de prestaçõescontributivas, ou seja, num caso e noutro sãocréditos de natureza tributária ou paratributáriae que se não integram num sinalagma do qual afalida haja retirado vantagens.

Diversamente, porém, os créditos dos demaisinstitutos públicos serão, em geral, o corres-pectivo de uma prestação feita em benefício dafalida, no que se assemelharão aos créditos deentidades privadas, ressalvadas da extinção dosprivilégios e às quais parece razoável que, porigualdade de razões, fiquem equiparados.

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32Jurisprudência fixada BMJ 501 (2000)

A circunstância de no parágrafo seguinte sedizer que esta solução «[...] só pode robustecer aautoridade das pessoas colectivas públicas [...]»,em manifesta alteração de terminologia face àusada concordantemente nas duas passagensimediatamente anteriores, não basta para quepossa aqui sustentar-se que com isso se quisanunciar um regime com validade para todas aspessoas colectivas públicas, que seria manifes-tamente diferente, quer do que acabara de seranunciado em concreto, quer do efectivamenteconsagrado no texto legal.

Terá antes havido uma preocupação de sim-plicidade de expressão ou de elegância literária,mas sem que a nova fórmula verbal usada o possater sido em sentido próprio, sob pena de verifi-cação da incongruência acima assinalada.

Também não é de invocar a circunstância de opreâmbulo do Código dos Processos Especiaisde Recuperação da Empresa e de Falência usarpor diversas vezes a palavra «Estado» sem algu-ma vez a limitar a acepção que vê nele o sector daAdministração de que é cabeça do Governo —argumento que se acompanha da invocação dobrocardo latino ubi lex non distinguit ...

Havendo, como há, várias acepções de «Es-tado», a opção pelo entendimento mais restritonão envolve, como é óbvio, uma distinção feitapelo intérprete, que se limita a concluir que hou-ve uma distinção feita pelo próprio legislador, enão por si próprio.

Aliás, o facto de nesse preâmbulo se fazer adistinção entre «Estado» e «instituições de segu-rança social» aponta, por tudo o que ficou jádito, para que na sua redacção se tenha tido comopresente aquele conceito restrito de «Estado».

Tudo leva a crer, pois, que foi de caso pensa-do que o artigo 152.º abrangeu apenas o Estado,as autarquias locais e as instituições de seguran-ça social, tendo aquele primeiro termo o conteú-do que resulta da técnica legal e se definiu já.

Neste sentido, pois, se uniformizará a juris-prudência.

Sempre se dirá, porém, que, não podendo dei-xar de conhecer a controvérsia que a este propó-sito se estabelecera já nos tribunais, o legisladordo Decreto-Lei n.º 315/98 teve ao seu alcanceuma boa oportunidade, que enjeitou, de escla-recer as divergências que vinham sendo manifes-tadas.

E cabe ainda prestar um esclarecimento su-plementar.

Face às regras sobre aplicação da lei notempo, designadamente o artigo 12.º, n.º 1, doCódigo Civil, ao caso prático versado nestes au-tos aplica-se, como já ficou dito acima, a redac-ção originária que teve o artigo 152.º do Códigodos Processos Especiais de Recuperação da Em-presa e de Falência.

Por isso só a essa redacção poderá reportar--se a uniformização, muito embora se nos afigureque o problema se põe nos mesmos termosquanto à redacção emergente do Decreto-Lein.º 315/98.

Resulta ainda do que ficou dito que, emboraprocedendo o recurso quanto à interpretação doartigo 152.º do Código dos Processos Especiaisde Recuperação da Empresa e de Falência, a suaaplicação não conduz à graduação pedida pelorecorrente, mas à que acima já ficou mencionada.

Na verdade, embora este aspecto específicoda tese do recorrente não tenha sido contraditado,ele releva de simples aplicação de direito, da qualo tribunal conhece com liberdade — artigo 664.ºdo Código de Processo Civil.

Nestes termos, concedendo-se em parte a re-vista, altera-se o acórdão recorrido no tocante àgraduação feita, ficando os créditos tidos comoverificados ordenados de acordo com a seguintegraduação:

l.º — Os créditos dos trabalhadores verifica-dos no saneador sentença sob os n.os 5 a 17 doponto 1;

2.º — O crédito reclamado pelo recorrenteInstituto do Emprego e Formação Profissional;

3.º — Todos os restantes créditos verificados.

E uniformiza-se a jurisprudência pela seguinteforma:

«Não cabendo o Instituto do Emprego e For-mação Profissional, por ser um instituto público,dentro do conceito de Estado usado no artigo152.º do Código dos Processos Especiais de Re-cuperação da Empresa e de Falência, aprovadopelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, aextinção de privilégios creditórios operada poresta disposição não abrange aqueles que garan-tem, por força do artigo 7.º do Decreto-Lei

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33 Jurisprudência fixadaBMJ 501 (2000)

n.º 437/78, de 28 de Abril, créditos daquele Insti-tuto.

Sem custas.

Lisboa, 28 de Novembro de 2000.

Ribeiro Coelho (Relator) — Torres Paulo —Roger Lopes — António Sousa — MirandaGusmão (vencido, conforme declaração de votodo Ex.mo Conselheiro Araújo Barros) — Fer-nandes Magalhães — Moitinho de Almeida —Sousa Inês (vencido, nos termos da declaraçãode voto que vai em escrito próprio) — Afonsode Melo — Barata Figueira — Aragão Seia —Nascimento Costa — Tomé de Carvalho —Lopes Pinto — Silva Paixão (vencido, nos ter-mos da declaração de voto do Ex.mo ConselheiroSousa Inês) — Garcia Marques — Ferreira Ra-mos — Pinto Monteiro — Dionísio Alves Cor-reia — Noronha Nascimento (vencido, nos termosda declaração de voto do Ex.mo Conselheiro SousaInês) — Ferreira de Almeida — Neves Ribeiro —Lemos Triunfante — Silva Graça (vencido, nostermos da declaração de voto do Ex.mo Conse-lheiro Sousa Inês) — Santos Lourenço — MouraCruz (vencido, nos termos da declaração de votodo Ex.mo Conselheiro Sousa Inês) — Abílio Vas-concelos — Sousa Dinis (vencido, de acordo com adeclaração de voto que junto) — Simões Freire —Óscar Catrola — Duarte Soares — AzevedoRamos — Silva Salazar — Araújo de Barros(vencido, nos termos da declaração junta) — ReisFigueira — Oliveira Barros — Herculano Na-mora.

Declaração de voto:

Votei pela uniformização de jurisprudência nosentido de que «o conceito de Estado, para osefeitos do artigo 152.º do Código dos ProcessosEspeciais de Recuperação da Empresa e de Fa-lência (Decreto-Lei n.º 123/93, de 23 de Abril),reveste amplo significado, abrangendo, porisso, os créditos do Instituto do Emprego e For-mação Profissional resultantes de financiamen-tos concedidos ao abrigo do Despacho Normativon.º 46/86, de 4 de Julho».

Decorre esta posição do facto de, a meu ver,ser esta a razão de ser e a finalidade do citado

artigo como se depreende, além do mais, da re-dacção do n.º 6 do preâmbulo, no qual o legisla-dor, referindo embora em concreto o Estado, asautarquias locais e as instituições de segurançasocial, aponta claramente para uma ampla apli-cação daquela norma, designadamente quandorefere que «não faria realmente grande sentidoque o legislador, a braços com a tutela necessáriadas empresas em situação financeira difícil desde1977 até hoje, continuasse a apelar vivamentepara os deveres de solidariedade económica esocial que recaem sobre os credores e mantivesseinteiramente fora das exigências desse dever decooperação quer o Estado [...]»

Fernando Jorge Ferreira de Araújo Barros.

Declaração de voto:

Em face das explicações dadas pelo própriolegislador, no n.º 6 do preâmbulo do Decreto-Lein.º 123/93, de 23 de Abril, acerca da razão de sere finalidade do disposto no artigo 152.º do Có-digo dos Processos Especiais de Recuperação daEmpresa e de Falência, votei que se uniformi-zasse jurisprudência no sentido de o conceito deEstado daquele preceito ter sentido amplo, abran-gendo todo o complexo de autoridades e entida-des públicas, dotadas, entre o mais, de poderesde autoridade pública, de autonomia administra-tiva e jurídica e de personalidade jurídica, comoeste Tribunal decidiu pelos acórdãos de 13 deNovembro de 1997, Boletim, n.º 471, págs. 310e segs., e de 19 de Novembro de 1998, Boletim,n.º 481, págs. 396 e seguintes.

Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês.

Declaração de voto:

Subscrevo inteiramente a declaração de votodo Ex.mo Conselheiro Sousa Inês, que vai ao en-contro da posição por mim assumida no acórdãode 19 de Novembro de 1998 (Boletim do Minis-tério da Justiça, n.º 481, págs. 396 e segs.), nãoencontrando na que fez vencimento argumenta-ção que me leve a alterar a que assumi.

Permito-me acrescentar duas notas.

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34Jurisprudência fixada BMJ 501 (2000)

A tese que fez vencimento, salvo o devidorespeito, baseia-se numa visão administrativista(pública) de Estado que me parece não ter sidoquerida pelo legislador, como flui do n.º 6 dorelatório preambular do Decreto-Lei n.º 132/93,de 23 de Abril.

O parecer do Ministério Público proferido neste assento encontra-se publicado a pág. 5 destenúmero do Boletim.

(B. N.)

ACORDAM na Secção Social do SupremoTribunal de Justiça:

I — O Instituto de Desenvolvimento e Ins-pecção das Condições de Trabalho levantou umauto de notícia em consequência do qual se ins-taurou no Tribunal do Trabalho um processo detransgressão contra Securitas — Serviços deTecnologia de Segurança, S. A., identificada nosautos, a qual foi acusada de ter violado o dis-posto no artigo 6.º da Lei n.º 65/77, de 26 deAgosto, com as alterações da Lei n.º 30/92, de20 de Outubro, e assim cometido uma transgres-são prevista e punida pelas disposições combi-

nadas daquele artigo 6.º e do artigo 15.º, n.º l, domesmo diploma, tendo a transgressora sidocondenada na multa de 80 000$00.

Aquela firma recorreu para o Tribunal da Re-lação de Lisboa que, por acórdão de 7 de De-zembro de 1999, revogou a sentença recorrida eabsolveu a transgressora.

A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta naquelaRelação interpôs recurso extraordinário parafixação de jurisprudência, nos termos dos artigos437.º e seguintes do Código de Processo Penal,invocando oposição entre as soluções em queassentou a decisão proferida naquele acórdão eaquela em que assentou a decisão da mesma Re-lação de 3 de Novembro de 1999.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAssento de 30 de Novembro de 2000Processo n.º 86/2000

Empresas de segurança privada — Conceito de estabelecimentoou serviço — Violação da Lei da Greve

I — Em relação às empresas cuja actividade é a prestação de serviços de segurançaprivada a terceiros, atenta a especificidade da organização dessas empresas, deve-seentender, para efeitos da proibição constante do artigo 6.º da Lei n.º 65/77, de 26 deAgosto, como «estabelecimento» ou «serviço» o local onde, de acordo com a distribui-ção de serviço organizada pela entidade patronal, estava previsto a apresentação dotrabalhador para prestar a sua actividade durante a greve.

II — Assim, verifica-se a violação daquele artigo 6.º a substituição de um trabalha-dor que aderiu à greve por outro que à data do pré-aviso da greve e até ao termo destanão estava previsto trabalhar naquele local.

A norma do artigo 152.º do Código dos Pro-cesso Especiais de Recuperação da Empresa e deFalência, tal como é interpretada na tese que fezvencimento, é, a meu ver, inconstitucional.

Joaquim José de Sousa Dinis.

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35 Jurisprudência fixadaBMJ 501 (2000)

II — Remetidos os autos a este Supremo,foram os mesmos à conferência, que em acórdãointerlocutório julgou verificada a oposição de jul-gados.

Prosseguindo os autos, foram os sujeitos pro-cessuais notificados nos termos e para os efeitosdo artigo 442.º do Código de Processo Penal.

A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta neste Su-premo, nas suas doutas e bem elaboradas alega-ções, concluiu que se deve fixar jurisprudênciano sentido de que, para efeitos da proibição con-tida no artigo 6.º da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto(que se passará a designar por Lei da Greve), emrelação às empresas cuja actividade é a prestaçãode serviços de segurança privada a terceiros, atentaa especificidade da sua organização, se deve en-tender como «estabelecimento» ou «serviço» olocal onde, de acordo com a distribuição de ser-viço organizada pela entidade patronal, estavaprevisto a apresentação do trabalhador para tra-balhar durante a greve. Assim, envolve violaçãodo citado artigo 6.º a substituição do trabalhadorque aderiu à greve por outro que à data do pré--aviso da greve e até ao termo desta não estavaprevisto trabalhar naquele local.

A Securitas também alegou, concluindo:

1) Em dias de greve substituiu vigilantes ade-rentes à greve por vigilantes não aderentes vin-dos de outros clientes;

2) Substitutos e substituídos estavam afectosao mesmo serviço: vigilância;

3) Os clientes a quem a Securitas presta servi-ços de vigilância não são estabelecimentos seus;

4) Deve fixar-se jurisprudência no sentido deser considerado «estabelecimento» a universali-dade de bens e serviços de uma empresa e «servi-ços» a prestação de uma actividade da empresa.

III — A) Corridos os vistos legais, cumpredecidir.

A matéria de facto do acórdão de 7 de Dezem-bro de 1999, tal como dele consta, é a seguinte:

1) Após pré-aviso de greve, o Sindicato dosTrabalhadores de Serviços de Portaria, Limpeza,Profissões Similares e Actividades Diversas de-clarou uma greve para o sector das empresasprestadoras de serviços de vigilância e preven-ção para os dias 21 e 22 de Abril de 1997;

2) Em 22 de Abril de 1997, pelas 12 horas, noparque automóvel do Instituto Nacional de Es-tatística, sito em Lisboa, em inspecção feita aolocal pela Inspecção-Geral do Trabalho, verifi-cou esta que a arguida mantinha ao seu serviço ovigilante Eduardo Vitorino que tinha sido desta-cado pela respectiva chefia para prestar serviçonaquele local, somente nesse dia, uma vez quenormalmente prestava serviço nas instalações doCentro de Formação Profissional do Sector Ali-mentar da Pontinha;

3) Tal trabalhador encontrava-se de folga eestava a substituir o vigilante Paulo Marques,dirigente sindical, o qual prestava serviço no re-ferido local, mas não fora trabalhar por ter ade-rido à greve referida em 1);

4) A arguida agiu livre, consciente e delibe-radamente, bem sabendo que estava a substituirum trabalhador em greve por outro que à datanão se encontrava afecto àquele serviço, naquelelocal;

5) O Eduardo Vitorino tem como local de tra-balho convencionado o distrito de Lisboa;

6) A arguida teve em vista não violar o con-trato que mantinha com o Instituto Nacional deEstatística.

No acórdão de 3 de Novembro de 1999 a ma-téria de facto é sensivelmente a mesma, com aalteração do número de trabalhadores, do localem que se encontravam a prestar serviço na al-tura em que a Inspecção-Geral do Trabalho pro-cedeu à inspecção e do número de trabalhadoresque, habitualmente, prestavam serviço naquelelocal onde foi efectuada a inspecção.

III — B) O n.º l do artigo 57.º da Constituiçãoprevê, entre os direitos, liberdades e garantiasdos trabalhadores, o direito à greve.

E nem esse direito e o modo como foi exercidopelos trabalhadores vem posto em causa.

Este direito à greve veio a ser regulamentadopelo Decreto-Lei n.º 392/74, de 27 de Agosto,posteriormente revogado pela Lei n.º 65/77, de26 de Agosto (posteriormente alterada pela Lein.º 30/92, de 20 de Outubro, alterações estas quenão interessam ao caso).

A disposição da Lei da Greve que interessapara os autos é o seu artigo 6.º Dispõe este pre-ceito: «A entidade empregadora não pode, du-

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36Jurisprudência fixada BMJ 501 (2000)

rante a greve, substituir os grevistas por pessoasque à data do seu anúncio não trabalhavam norespectivo estabelecimento ou serviço, nem pode,desde aquela data, admitir novos trabalhadores.»

A proibição constante deste dispositivo re-fere-se, em primeiro lugar, à substituição dos tra-balhadores em greve por trabalhadores ligadosao mesmo empregador, tratando-se, neste caso,de uma movimentação interna de pessoal.

Mas a aplicação deste preceito reveste deter-minadas dificuldades, designadamente em empre-sas que se não encontrem organizadas em termosque possibilitem a distinção de «estabelecimen-tos» ou «serviços»; e por o objectivo do legisla-dor não ser, de forma clara, o de assegurar empleno o não preenchimento do posto de trabalhodo grevista, na medida em que este resultado podevir a ser conseguido pela afectação temporária deum trabalhador do mesmo «estabelecimento» ou«serviço». Assim, a lei admite que o trabalho dosgrevistas seja assegurado por trabalhadores quenão aderiram a essa forma de luta da mesma uni-dade funcional, mas já não aceita que o efectivoda unidade funcional seja alterado — quer atra-vés de transferências, quer por admissões — emconsequência da paralisação, e com a finalidadede atenuar ou neutralizar os efeitos da greve.

Assim, e no que se refere à 1.ª parte destepreceito — substituir os grevistas por pessoasque à data do anúncio da greve não trabalhavamno respectivo estabelecimento ou serviço — asua aplicação tem de ser feita caso a caso, tendoem conta os modos concretos da organização decada empresa. Em princípio apenas se poderáter como certo que constitui violação à Lei daGreve a transferência de local de trabalho, con-ceito que é, no entanto, relativo, implicando quese tomem em conta os dados pertinentes do IRCaplicável.

A 2.ª parte desse preceito refere-se ao factode fazer prestar por outros — não trabalhadoresda empresa — tarefas normalmente desempe-nhadas pelos grevistas, o que está vedado pelagreve (cfr. M. Fernandes, Direito de Greve,pág. 44).

Assim, a entidade patronal não pode fazerprestar, por trabalhadores pertencentes a outroserviço ou unidade orgânica, tarefas normal-mente desempenhadas pelos trabalhadores ade-rentes à greve, somente lhe restando a possibili-

dade de aplicar da forma mais conveniente o tra-balho dos que não aderiram à greve e que já per-tencessem ao serviço afectado no momento emque o pré-aviso se tornou eficaz, devendo o arti-go 6.º da Lei da Greve estender-se aos «casos emque a entidade patronal intente, antes de efecti-vada a greve, substituir o pessoal a que se referea paralisação declarada por pessoas exteriores aoprocesso de greve» (cfr. Lobo Xavier, Direito daGreve, pág. 159).

Mas estas considerações não resolvem só porsi a questão posta. Para tal haverá que ter emconsideração a actividade da Securitas.

E foi tendo em atenção a actividade da Securitasque os acórdãos acima referidos entraram emcontradição.

Assim, no de 3 de Novembro de1999 enten-deu-se que sendo a Securitas uma empresa cujaactividade consiste em prestar serviços de segu-rança privada a outras entidades sediadas em Lis-boa e que abrangendo o local de prestação detrabalho dos seus trabalhadores todo o distritode Lisboa, nada obstava a que a Securitas substi-tuísse um dos seus trabalhadores grevistas poroutro que à greve não aderiu, na medida em queos trabalhadores (substituto e substituído) exer-cessem tarefas de vigilância em diferentes locaisde Lisboa, haverá que considerar que eles exer-ciam tais tarefas no mesmo serviço da Securitas,independentemente do local da prestação de tra-balho e, por outro lado, a proibição de substitui-ção de grevistas prevista no artigo 6.º da Lei daGreve tem por fundamento a diferença entre asvárias actividades (serviços n) da empresa e nãoo local da prestação de trabalho, devendo, naacepção daquele artigo 6.º, considerar-se como«estabelecimento» «a universalidade de bens eserviços de uma empresa o que abrangeria, nocaso da Securitas, todas as instalações, equipa-mentos e actividades e como «serviços» a pres-tação de uma actividade da empresa, que, no casoconcreto, é a prestação de uma actividade nocampo da segurança.

No acórdão de 7 de Dezembro de 1999 enten-deu-se de forma diferente, decidindo-se que setem de considerar, para efeitos do artigo 6.º dacitada lei, como «estabelecimento ou serviço» olocal em que concretamente estava previsto otrabalhador grevista apresentar-se ao trabalho

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37 Jurisprudência fixadaBMJ 501 (2000)

durante a greve, sob pena de se esvaziar o con-teúdo do falado artigo 6.º

Assim, a questão essencial que está em causaprende-se com a noção de «estabelecimento» paraefeitos daquele artigo 6.º

Como estabelecimento pode entender-se: a)na linguagem corrente ou popular, a loja, o imó-vel, as instalações materiais em que as mercado-rias são colocadas para venda; b) em sentidotécnico-jurídico, designa a unidade ideal, com-plexa e abstracta, inserida em qualquer sectorindustrial ou comercial que abrange, além da sede,muitos outros elementos corpóreos e incorpó-reos, as mercadorias, os utensílios e equipamen-tos que, em cada momento, se encontram nasinstalações próprias ou arrendadas (cfr. Prof. A.Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudên-cia, ano 125.º, pág. 252, nota 1). O estabeleci-mento abrange o conjunto de bens e serviçosorganizados pelo comerciante com vista ao exercí-cio da sua exploração comercial (cfr. Prof. F. Olavo,Direito Comercial, vol. 1.º, 2.ª ed., págs. 269--270). E, segundo o Prof. F. Correia, estabeleci-mento comercial vem a significar o mesmo que ocomplexo da organização comercial do comer-ciante, o seu negócio em movimento ou apto paraentrar em movimento.

Mas o conceito de estabelecimento, tal comoé entendido em termos de direito comercial, nãotem que ser precisamente o mesmo a que o legis-lador recorreu em termos de direito laboral,designadamente no artigo 37.º da lei do contratode trabalho. Com efeito, no estabelecimento co-mercial — entendido de acordo com o con-ceitocomercialista — «podem frequentemente distin-guir-se ‘conjuntos subalternos’, que de algummodo nos surgem ainda como ‘organizações’. Eos próprios comercialistas falam de ‘uma noçãomais restrita’ de estabelecimento, quecorresponderia à pura e simples ‘unidade téc-nica de venda, de produção de bens, ou de forne-cimento de serviços’, advertindo que oestabelecimento, ‘como organização afectada aoexercício de um comércio ou indústria’, ‘podecompreender mais do que uma unidade técni-ca’». «De toda a maneira, uma coisa é certa :mesmo para aqueles que entendem muito lata-mente a hipótese dos preceitos em referência, aaplicação destes supõe sempre que os ‘núcleos’

ou ‘ramos’ do estabelecimento global que foramtransferidos ‘são dotados de uma autonomia téc-nico-organizativa própria’, que constituem uma‘unidade produtiva autónoma’, ‘com organiza-ção específica’» (cfr. Prof. Vasco da Gama Xavier,Revista de Direito e Estudos Sociais, Julho/Se-tembro de 1986, ano XXVIII, n.º 3, págs. 443 eseguintes).

E na jurisprudência, e neste último sentido, sepronunciou este Supremo nos acórdãos de 30 deJunho de 1999 — revista n.º 390/98—, e noacórdão de 2 de Junho de 1996, Colectânea deJurisprudência — Acórdãos do Supremo Tribu-nal de Justiça, ano IV, tomo III, pág. 236.

Do acima referido verifica-se que a noção deestabelecimento assume várias acepções, desdeaquele mais restrito do conceito mais técnico--jurídico da doutrina comercialista, até a uma maisampla, a qual não pode deixar de se ligar ao con-texto normativo no qual se insira.

Face ao que se deixa dito haverá que ter emconta no que se refere à oposição de acórdãos,ter em vista a interpretação do citado artigo 6.ºda Lei da Greve na parte em que o mesmo dis-põe: «[...] a entidade empregadora não pode, du-rante a greve, substituir os grevistas por pessoasque à data do seu anúncio não trabalhavam norespectivo estabelecimento ou serviço [...]»

Ora, a proibição estabelecida naquele pre-ceito não pode, pela diversa natureza das reali-dades a ter em conta, ser tida com uma delimita-ção precisa, com validade de referência às diversashipóteses que se colocam no âmbito da organiza-ção da empresa, tendo de se apurar casuistica-mente tomando em conta aos moldes concretosde cada empresa e à história e à ratio legis danorma do artigo 6.º referido.

Assim, o Decreto-Lei n.º 392/74, no que serefere à proibição da entidade patronal substituiros trabalhadores grevistas por outros traba-lhadores, consagrava uma solução diferente daactual Lei da Greve. Na verdade, o artigo 14.ºdaquele diploma dispunha que «enquanto durara greve não pode a entidade patronal substituiros grevistas por pessoas que, à data da entregadas reivindicações, não estejam ligados à em-presa por um contrato de trabalho».

Este dispositivo apenas impedia que, durantea greve, a entidade patronal substituísse os tra-

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38Jurisprudência fixada BMJ 501 (2000)

balhadores aderentes à greve por pessoas com asquais a empresa não tivesse contrato de traba-lho. Assim, possibilitava-se que a entidade pa-tronal agregasse ao sector atingido pela greve ostrabalhadores a ela ligados por contrato de traba-lho, mas inseridos noutro «estabelecimento» ou«serviço».

Esta possibilidade foi afastada pela actual Leida Greve, na medida em que proíbe a entidadepatronal de substituir os trabalhadores aderen-tes à greve por outros que à data do anúncio dagreve não trabalhassem no estabelecimento ouserviço afectado pela greve.

A razão de ser da proibição constante do ditoartigo 6.º situa-se, como acima se disse, na neces-sidade de impedir a frustração ou o esvazia-mento do direito à greve.

Apesar de a aplicação da proibição contida noartigo 6.º da Lei da Greve ter de ser feita casuistica-mente, como se referiu, pode ter-se como certoque constitui violação do citado artigo, para alémdo caso de admissão de novo pessoal, a trans-ferência de local de trabalho (cfr. M. Fernandes,ob. cit., pág. 44).

Quanto à aplicação dos princípios acima refe-ridos a empresas como a Securitas haverá que terem conta a especificidade dessas empresas deserviços de segurança privada a terceiros, espe-cificidade essa que se traduz em tarefas de vigi-lância dos seus trabalhadores serem normalmenteexecutadas em locais que são propriedade de ter-ceiros, aos quais a entidade patronal desses tra-balhadores presta serviços de segurança, locaisque, embora não sejam propriedade da entidadepatronal, constituem os locais de trabalho dosseus trabalhadores.

Assim, será de concluir que em relação àque-las empresas, o único critério no que respeita aosobjectivos da proibição contida no falado artigo6.º é o que atende ao local de trabalho onde osseus trabalhadores deveriam exercer as suas tare-fas de vigilância de acordo com a distribuição deserviço organizado pela empresa para vigorardurante o período que viria a ser abrangido pelagreve.

O fundamento do acórdão de 7 de Dezembrode 1999 ao concluir não haver violação da proibi-ção contida no artigo 6.º da Lei da Greve pelofacto de, quer os trabalhadores substituídos, quer

os substitutos, executarem as mesmas tarefas devigilância, sendo irrelevante a alteração do localda prestação do seu trabalho. E, ainda, se funda-menta em aquela violação deriva na diferença entreas várias actividades executadas pelos trabalha-dores e não no local da prestação do trabalho.

Assim, e contra essa fundamentação, temosque nada impede a entidade empregadora de, re-correndo ao jus variandi, substituir um trabalha-dor grevista por outro que execute a sua activi-dade no mesmo estabelecimento daquele, em-bora com actividade diferente. Com a fundamen-tação daquele acórdão tal violaria o dito artigo 6.º

E, contra a fundamentação daquele acórdão,importa ter em conta que se não deve confundir«local de trabalho» com toda a área geográficadentro da qual o contrato de trabalho permite àentidade patronal movimentar os trabalhadoresque exercem tarefas de vigilância. E isto porque aproibição daquele artigo 6.º respeita ao local detrabalho em que o trabalhador exercia efectiva-mente a sua actividade à data do anúncio da grevee não os locais hipotéticos para onde a entidadepatronal tinha o poder de o transferir.

A solução contrária — idêntica ao do acórdãode 7 de Dezembro de 1999 — poderia propor-cionar às empresas com uma organização igual àda Securitas defraudar a lei, pois poderiam dila-tar sem limites, no momento de conformar a suaorganização, a área abrangida pela possibilidadede livre colocação dos seus trabalhadores.

Conceder que para efeitos de «estabeleci-mento» ou «serviço» se deveria considerar todaa área geográfica prevista nos contratos de traba-lho celebrados pelas empresas como a Securitasseria dar-lhes a possibilidade de defraudar a in-tenção da lei e esvaziar o conteúdo do direito àgreve, contra o estabelecido no artigo 6.º da Leida Greve.

IV — Assim, acorda-se na Secção Social desteSupremo Tribunal de Justiça em resolver o con-flito de jurisprudência existente entre aqueles doiscitados acórdãos fixando-se a seguintejurisprudencia:

1) Em relação às empresas cuja actividade é aprestação de serviços de segurança privada a ter-ceiros, atenta a especificidade da organizaçãodessas empresas, deve-se entender, para efeitos

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39 Jurisprudência fixadaBMJ 501 (2000)

da proibição constante do artigo 6.º da Lei n.º 65/77, de 26 de Agosto, como «estabelecimento» ou«serviço» o local onde, de acordo com a distri-buição de serviço organizada pela entidade pa-tronal, estava previsto a apresentação dotrabalhador para prestar a sua actividade durantea greve.

2) Assim, verifica-se a violação daquele artigo6.º a substituição de um trabalhador que aderiu àgreve por outro que à data do pré-aviso da grevee até ao termo desta não estava previsto traba-lhar naquele local.

Nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo445.º do Código de Processo Penal, reenviem-seos autos para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Lisboa, 30 de Novembro de 2000.

Vítor Almeida Deveza (Relator) — SousaLamas — Dinis Nunes — António Manuel Pe-reira — José António Mesquita — Azambuja daFonseca.

O parecer do Ministério Público proferido neste assento encontra-se publicado a pág. 15 destenúmero do Boletim.

(M. A. P.)

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40 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

Reclamação para o plenário — Pagamento da conta de custas —Litigância de má fé

I — Tendo o Tribunal já decidido — e reiterado — que, por força do que se dispõenos artigos 720.º do Código de Processo Penal e 84.º, n.º 8, da Lei do Tribunal Constitu-cional, só lhe é possível decidir os vários incidentes que o reclamante tem suscitado,depois de pagas as custas do processo, ele continua a insistir em suscitar novos inciden-tes e em reclamar que sobre eles se profira decisão.

II — Tal comportamento do reclamante consubstancia má fé processual, pois traduzuso (intencional) manifestamente reprovável do processo e dos meios processuais, com oobjectivo de entorpecer a acção da justiça.

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (Plenário)Acórdão n.º 465/2000, de 7 de Novembro de 2000Processo n.º 937-A/98

ACORDAM no plenário do Tribunal Cons-titucional:

I — Relatório

1. Orlando Augusto Afonso Lopes vem, nes-te traslado, reclamar para a conferência do des-pacho do relator de 20 de Junho de 2000, dizendoque «esse despacho não pode ser sustentado», epedindo que «se proceda ao suprimento de to-das as nulidades arguidas de harmonia com o dis-posto no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeiados Direitos do Homem».

No despacho reclamado, o relator limitou-sea determinar que se lhe abrisse conclusão nosautos, uma vez pagas as custas contadas no pro-cesso. E tal determinou, porque o Tribunal játinha decidido (por último, no acórdão n.º 256/2000) que não era possível conhecer das recla-mações sucessivamente apresentadas pelo orareclamante antes de aquele pagamento ser feito.

O relator, por entender que o comportamentoprocessual do reclamante é susceptível de inte-grar o conceito de má fé processual, lançou noprocesso parecer nesse sentido e mandou quesobre ele fosse ouvido o reclamante.

Este parecer é do teor seguinte:

«O plenário deste Tribunal, no seu acórdãon.º 449/99 (de 8 de Julho de 1999), decidiu man-dar extrair o presente traslado e, entre o mais,que a reclamação apresentada contra o acórdão

n.º 312/99 (de 25 de Maio de 1999), apenas seriadecidida depois de pagas as custas em que o re-clamante Orlando Augusto Afonso Lopes tinhasido condenado.

Tal decidiu, por força do que dispõe o n.º 8 doartigo 84.º da Lei do Tribunal Constitucional,depois de, em 20 de Janeiro de 1999, pelo acórdãon.º 52/99, ter indeferido a reclamação apresen-tada contra a decisão sumária (de 18 de Novem-bro de 1998) que negara provimento ao recursointerposto pelo dito reclamante; depois tambémde, em 24 de Março de 1999, pelo acórdão n.º 197/99, ter confirmado o despacho do relator (de 5 deFevereiro de 1999) que não lhe admitiu recursopara o plenário, e depois ainda de, em 25 deMaio de 1999, pelo acórdão n.º 312/99, ter desa-tendido a reclamação por ele apresentada contraaquele acórdão n.º 197/99, que acusou enfermarde nulidade.

O reclamante não pagou as custas entretantocontadas e apresentou novas reclamações, tendoo Tribunal, novamente em plenário, tirado oacórdão n.º 256/2000 (de 26 de Abril de 2000),para reafirmar — em aplicação, naturalmente,do citado artigo 84.º, n.º 8 — que as reclamaçõesapresentadas apenas seriam decididas depois depagas as custas.

O reclamante continuou a não pagar as custase a apresentar novas reclamações.

Em face disso, o relator proferiu o despachode 20 de Junho de 2000, determinando que se lheabrisse conclusão nos autos, uma vez pagas as

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41 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

custas, pois o Tribunal tinha decidido (por úl-timo, no citado acórdão n.º 256/2000) que nãoera possível conhecer das reclamações antes detal pagamento ser efectuado.

O reclamante veio, então, apresentar nova re-clamação (requerimento de fls. 323 a 334, rectifi-cado pelo de fls. 348 a 352), pedindo que recaiaacórdão sobre o citado despacho do relator (de20 de Junho de 2000), ‘no sentido de que essedespacho não pode ser sustentado e, em conse-quência, se proceda ao suprimento de todas asnulidades arguidas de harmonia com o dispostono artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dosDireitos do Homem’.

No entender do relator, o comportamentoprocessual do reclamante, que se deixa sumaria-mente descrito, é susceptível de integrar o con-ceito de má fé processual, pois, não obstante odecidido pelo Tribunal ao abrigo do que a leidispõe, ele insiste na pretensão de ver decididasas reclamações antes de pagas as custas.

Ora, dispõe o artigo 456.º, n.º 2, alínea d), doCódigo de Processo Civil: ‘diz-se litigante de máfé quem, com dolo ou negligência grave: d) tiverfeito do processo ou dos meios processuais umuso manifestamente reprovável, com o fim de[...] entorpecer a acção da justiça [...]’.

Entendendo o relator que o reclamante deveser condenado como litigante de má fé, ordena-seque, ao abrigo do disposto no artigo 84.º, n.º 7, daLei do Tribunal Constitucional, o mesmo sejanotificado para, querendo, responder a este pa-recer, em dois dias.»

O reclamante veio dizer, em conclusão:

1 — O douto parecer de 20 de Setembro de2000 não satisfaz as condições que permitam oexercício, em pleno conhecimento de causa, dosdireitos previstos no artigo 32.º, n.º 10, da Cons-tituição.

a) É da essência das garantias de defesa que aoperação de subsunção que conduz à determina-ção da moldura de ilícito correspondente a deter-minados factos, seja previamente conhecida e,como tal, controlável pelo arguido.

b) A descrição, declaradamente sumária, daconduta processual do recorrente, feita no doutoparecer, não menciona factos, alegados pelo re-corrente, que não correspondam à verdade, nemcontém elementos que permitam identificar a «ra-

zão» pela qual as providências requeridas atra-vés dos meios processuais utilizados condu-ziriam a diligências meramente dilatórias.

c) Por conseguinte, a descrição sumária con-tida no douto parecer de 20 de Setembro de 2000não contém elementos que permitam tomar po-sição, em pleno conhecimento de causa, sobre aacusação formulada contra o recorrente.

2 — Tendo em conta a factualidade que sepode surpreender através da leitura dos autos, orecorrente considera que a sua conduta proces-sual só poderá ser qualificada de litigância demá fé à custa de uma inflexão da objectividade dodireito.

a) O douto parecer de 20 de Setembro de 2000contém elementos que permitem pensar que nãoforam respeitadas as garantias de imparcialidade.

i) Do ponto 1 do douto parecer de 20 de Se-tembro de 2000 decorre que foram apresentadasreclamações nos termos dos artigos 668.º e 669.º,n.º 1, alínea b), e de outras disposições do Có-digo de Processo Civil, nomeadamente, contra osdoutos acórdãos n.os 312/99, 449/99 e 256/2000.

ii) Essas reclamações não foram ainda apre-ciadas.

iii) No entanto, o douto parecer de 20 de Se-tembro de 2000 adopta já a premissa de que oTribunal decidiu «ao abrigo do que a lei dispõe».

iv) A adopção desta premissa, antes de seremapreciadas as razões de facto e de direito expos-tas nas reclamações apresentadas com vista ademonstrar que os doutos acórdãos e despachoscontestados não foram tirados em conformidadecom a lei ou com critérios por ela definidos, nãose coaduna com as garantias de imparcialidade.

b) Nas circunstâncias do caso, no entender dorecorrente, o facto de ele insistir «na pretensãode ver decididas as reclamações apresentadasantes de pagas as custas» nada tem de ilegal oude reprovável.

i) Tendo em conta o disposto nos artigos 677.ºdo Código de Processo Civil e 50.º do Código dasCustas Judiciais, a conduta processual do inte-ressado só poderia enquadrar-se na moldura deilícito desenhada no artigo 456.º, n.º 2, alínea d),do Código de Processo Civil, se a aplicação doartigo 84.º, n.º 8, da Lei do Tribunal Constitucio-nal tivesse por efeito a privação, nos recursosinterpostos para o Tribunal Constitucional, dos

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42 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

direitos de reclamação previstos nos artigos 161.º,n.º 5, 700.º, n.º 3, 668.º e 669.º do Código deProcesso Civil.

ii) Mas tal equivaleria a deixar os particularessem quaisquer meios de reacção contra actos dostribunais superiores considerados ilegais, em des-proporcionada homenagem ao valor da econo-mia processual, invocado como fundamento dodespacho de admissão do presente recurso, va-lor esse que seria promovido à custa das garan-tias de defesa.

iii) Uma vez que a interpretação do artigo 84.º,n.º 8, da Lei do Tribunal Constitucional, que pre-sidiu ao douto acórdão n.º 256/2000 e ao doutoparecer de 20 de Setembro de 2000, redunda numalimitação inadmissível e injustificada das possi-bilidades de defesa, o interessado não conseguedescortinar como é que se pôde concluir que oseu pedido no sentido de que se proceda, de har-monia com o disposto no artigo 6.º, n.º 1, daConvenção Europeia dos Direitos do Homem,ao suprimento de todas as nulidades arguidastem por finalidade entorpecer a acção da justiça.

iv) No entender do recorrente, não se afiguralegítimo nem razoável sugerir a condenação dealguém como litigante de má fé por insistir «napretensão de ver decididas as reclamações antesde pagas as custas», quando não pode ignorar-seque:

— Segundo o disposto no artigo 84.º, n.º 1,da Lei do Tribunal Constitucional «os recursospara o Tribunal Constitucional são isentos decustas [...]»;

— Conforme decorre do próprio parecer de20 de Setembro de 2000, há reclamações queainda não foram apreciadas;

— A apreciação objectiva e imparcial das ra-zões de facto e de direito invocadas nessas recla-mações é susceptível de conduzir logicamente àalteração das decisões proferidas sobre as custascujo pagamento é previamente exigido.

Tendo em conta os elementos avançados, orecorrente considera que o douto parecer, segun-do o qual «o reclamante deve ser condenado comolitigante de má fé», é desprovido de qualquerfundamento, pelo que não deve ser seguido.

Esta resposta foi expedida, pelo correio, em29 de Setembro de 2000, como se vê do carimbonela aposta.

A secretaria, por entender que a mesma lhe foiapresentada dois dias depois do termo do prazo,avisou o reclamante para pagar a multa devida,nos termos do artigo 145.º, n.º 6, do Código deProcesso Civil, conjugado com o artigo 18.º, n.º2, do Código das Custas Judiciais.

O reclamante não pagou essa multa e veiodizer, em conclusão, o seguinte:

Tendo em conta os elementos indicados notexto do aviso de 4 de Outubro de 2000, a inter-pretação e aplicação da regra da continuidade dosprazos que presidem ao acto notificado por esseaviso, além de desconhecerem por completo odisposto no artigo 254.º, n.º 2, do Código de Pro-cesso Civil, colidem frontalmente com o direito aum processo equitativo consagrado nos artigos20.º, n.º 4, da Constituição e 6.º, n.º 1, da Con-venção Europeia dos Direitos do Homem.

1 — No entender do reclamante o acto notifi-cado pelo aviso da secretaria do Tribunal Cons-titucional de 4 de Outubro de 2000, pelo qual lheé aplicada uma multa, nos termos do artigo 145.º,n.º 6, do Código de Processo Civil, não contémuma fundamentação expressa e acessível, ha-vendo violação do artigo 268.º, n.º 3, da Consti-tuição.

a) A aplicação de uma multa é susceptível deafectar direitos e interesses legalmente prote-gidos.

b) Nem a nota de 22 de Setembro de 2000,nem o texto do referido aviso indica a data deinício do «prazo contínuo de dois dias».

c) No entender do reclamante, a indicação des-sa data era indispensável para garantir a transpa-rência do processo e da decisão.

2 — No entender do reclamante, tendo emconta os elementos indicados no texto do avisode 4 de Outubro de 2000, o acto de aplicação deuma multa ao interessado, no caso concreto, cons-titui violação clara do artigo 254.º, n.º 2, do Có-digo de Processo Civil.

a) Raciocinando a partir dos elementos quefiguram no texto do aviso de 4 de Outubro de2000, conclui-se que o «prazo contínuo de doisdias» se extinguiu no dia 25 de Setembro de 2000.

i) Com efeito, o registo da carta através daqual se enviou a fotocópia do douto parecer so-bre o qual o interessado foi convidado a tomar

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43 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

posição ocorreu em 22 de Setembro de 2000 (vercópia junta).

ii) No aviso de 4 de Outubro de 2000 consi-derou-se que o registo da carta de expedição daresposta ao douto parecer em questão tinha ocor-rido em «27 de Setembro de 2000».

iii) Da leitura do texto desse aviso resulta tam-bém que a multa foi aplicada pelo facto de o actoprocessual do reclamante ter sido praticado no«2.º dia útil após o termo do prazo».

b) Segue-se que a secretaria do Tribunal Cons-titucional considerou que o «prazo contínuo dedois dias», para reagir ao douto parecer de 20 deSetembro de 2000, terminou na data em que, se-gundo o disposto no artigo 254.º, n.º 2, do Có-digo de Processo Civil, se podia considerarnotificado o douto parecer a que o interessadofoi convidado a reagir.

3 — Tendo em conta os elementos indicadosno texto do aviso de 4 de Outubro de 2000 e adata do registo da carta de expedição da fotocó-pia do douto parecer de 20 de Setembro de 2000,a interpretação e aplicação da regra da continui-dade dos prazos que presidem ao acto notificadopelo aviso de 4 de Outubro de 2000 não se coa-dunam minimamente com o correcto funciona-mento do contraditório.

a) Com efeito, através desses elementos, con-clui-se que, para a secretaria do Tribunal Consti-tucional, o prazo para o interessado tomarposição sobre o douto parecer de 20 de Outubrode 2000 terminou no dia em que legalmente sepodia considerar feita a sua notificação.

b) Raciocinando a partir dos elementos indi-cados no aviso de 4 de Outubro de 2000, con-clui-se que, para a secretaria do Tribunal Cons-titucional, a resposta ao douto parecer de 20 deSetembro de 2000 seria necessariamente um actoprocessual praticado após o termo do prazo, jáque a alternativa deixada, de antemão, ao interes-sado era: ou renunciar ao seu direito de respostaou pagar uma multa.

c) Nestas condições, a interpretação e aplica-ção da regra da continuidade dos prazos que pre-sidem ao aviso de 4 de Outubro de 2000 tendema impedir ou a perturbar o correcto funciona-mento do contraditório.

4 — O reclamante considera que o acto pro-cessual pelo qual respondeu ao douto parecer de

20 de Setembro de 2000 só pode ser consideradoapresentado fora de prazo à custa de um graveatropelo do direito a dispor de tempo necessáriopara preparar a sua defesa, que se integra nasgarantias de um processo equitativo.

a) Pela nota de 22 de Setembro de 2000, oreclamante foi convidado a tomar posição sobreo douto parecer de 20 de Setembro de 2000, peloqual é acusado de litigância de má fé, o que lhepode valer uma condenação e a aplicação de umasanção.

b) Diz o artigo 32.º, n.º 10, da Constituiçãoque «[...] em quaisquer processos sancionatórios,são assegurados ao arguido os direitos de audiên-cia e defesa».

c) É do conhecimento directo da secretariado Tribunal Constitucional a circunstância de oreclamante se encontrar fora do País, a mais de2000 km do local onde está sediado o TribunalConstitucional.

d) Nos artigos 252.º-A, n.º 1, alínea b), doCódigo de Processo Civil e 56.º, n.º 4, da Lei doTribunal Constitucional, o legislador prevêdilações ao prazo de defesa do citando quando oréu tenha sido citado fora da área da comarcasede do tribunal onde pende a acção e quando osactos respeitem a entidade sediada fora do conti-nente da República.

e) O reclamante considera que a sua situação éanáloga às situações previstas pelo legisladornesses textos legais.

f) À luz do princípio da igualdade de tra-tamento, não se descortina razão para que nãoacresça uma dilação ao prazo de defesa de doisdias previsto no artigo 84.º, n.º 7, da Lei do Tri-bunal Constitucional, em casos em que um cida-dão se encontre a mais de 2000 km de distânciada sede do Tribunal Constitucional.

g) Além disso, é do conhecimento geral queaos sábados e domingos os serviços postais nãofuncionam em pleno e que não é irrelevante ex-pedir uma carta sexta-feira ou nos outros dias dasemana.

h) Assim, no caso concreto, a inexistência deuma dilação, pelo menos, equivalente ao sábadoe domingo imediatamente a seguir ao do registoda carta em que se enviou o acto a que o interes-sado foi convidado a reagir equivale a privar ointeressado do direito a dispor do tempo neces-

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44 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

sário para organizar a sua defesa, que se integranas garantias de um processo equitativo.

Nestes termos, e com o douto suprimento deV. Ex.ª, deve atender-se a presente reclamação e,por consequência, revogar-se o acto pelo qual foiaplicada ao reclamante multa nos termos do ar-tigo 145.º, n.º 6, do Código de Processo Civil,considerar-se a resposta ao douto parecer de 20de Setembro de 2000 como um acto de processoregularmente praticado, seguindo-se os restan-tes trâmites legais.

2. Cumpre decidir.

II — Fundamentos

3. Convém começar por historiar o que sepassou nos autos de recurso de que foi extraído otraslado e neste próprio. Foi o seguinte:

a) Em 18 de Novembro de 1998, o relatorproferiu decisão sumária a negar provi-mento ao recurso (interposto pelo orareclamante de um acórdão do SupremoTribunal Administrativo) e a condenar orecorrente nas custas;

b) Em 20 de Janeiro de 1999, a conferênciada 3.ª Secção, pelo acórdão n.º 52/99, in-deferiu a reclamação apresentada contraa referida decisão sumária e condenou oreclamante em custas;

c) Em 5 de Fevereiro de 1999, o relator pro-feriu despacho a não admitir o recursoque o recorrente interpôs para o plenáriodo Tribunal;

d) Apresentada reclamação desse despachopara a conferência do plenário, este, em24 de Março de 1999, pelo acórdãon.º 197/99, indeferiu a reclamação (e, as-sim, confirmou o despacho de não admis-são de recurso para o plenário) e condenouo reclamante nas custas;

e) Arguindo o recorrente a nulidade do acór-dão n.º 197/99, o plenário, em 25 de Maiode 1999, pelo acórdão n.º 312/99, desa-tendeu a reclamação apresentada e con-denou o reclamante nas custas;

f) O recorrente veio, novamente, reclamarpor nulidade, mas agora do acórdãon.º 312/99.

O plenário, porém, pelo acórdão n.º 449/99 (de 8 de Julho de 1999), mandou ex-trair traslado de várias peças do processo,a fim de a reclamação ser decidida depoisde pagas as custas em que o reclamantehavia sido condenado neste Tribunal,mandando, bem assim, contar tais custase que, extraído o traslado, os autos derecurso fossem imediatamente remetidosao Supremo Tribunal Administrativo;

g) Contado o processo (conta n.º 329/99, de16 de Julho de 1999) e extraído o trasla-do, foram os autos de recurso, em 19 deJulho de 1999, remetidos ao Supremo Tri-bunal Administrativo. Na mesma data foio recorrente notificado daquele acórdãon.º 449/99 e da conta de custas (cota defls. 195);

h) Em 4 de Agosto de 1999, apresentou orecorrente nova reclamação, a pedir a anu-lação do acórdão n.º 449/99 e a emissãode decisão sobre a reclamação apresen-tada contra o acórdão n.º 312/99;

i) O relator, em 20 de Setembro de 1999,proferiu despacho, dizendo que se pro-nunciaria sobre a reclamação referida naalínea h), «depois de cumprido, nos seusprecisos termos, o acórdão n.º 449/99»;

j) Em 11 de Outubro de 1999, o recorrenteapresentou nova reclamação, pedindo,desta vez, que se revogasse o despachode 20 de Setembro de 1999 e se decidissea reclamação por si apresentada em 4 deAgosto de 1999;

l) Em 19 de Outubro de 1999, o relator pro-feriu despacho a não admitir a reclamaçãoapresentada em 11 de Outubro de 1999,em virtude de ela visar um despacho (o de20 de Setembro de 1999), que é de meroexpediente;

m) Foram, entretanto, devolvidas as guiasdestinadas ao pagamento das custas, coma nota de «não pagas»;

n) Em 2 de Novembro de 1999, veio o recor-rente reclamar do despacho do relator de19 de Outubro de 1999, pedindo a suarevogação, bem como a do despacho de20 de Setembro de 1999;

o) O relator, em 3 de Novembro de 1999,proferiu despacho do teor seguinte: «abrir-

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45 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

-se-á conclusão nos autos só depois depagas as custas contadas neste Tribunal»;

p) Em 21 de Fevereiro de 2000, o recorrenteapresentou nova reclamação, dirigida aoPresidente do Tribunal, pedindo-lhe aadopção das «medidas que entender ade-quadas à reparação dos prejuízos [que lheforam] causados pelos actos da secreta-ria», que considera irregulares, a saber, re-messa dos autos de recurso à conta, se-guida da sua remessa ao tribunal recor-rido na mesma data em que se notificou aorecorrente a conta e o acórdão n.º 449/99;

q) Apresentados os autos de traslado aoEx.mo Presidente do Tribunal (cfr. despa-cho do relator de 24 de Fevereiro de 2000e termo de conclusão de fls. 244 v.º), foipor este proferido o despacho de 1 deMarço de 2000, no sentido de que lhe nãocabe decidir a reclamação apresentada em21 de Fevereiro de 2000;

r) O relator proferiu, então, despacho, em16 de Março de 2000, dizendo que, pornão terem sido pagas as custas contadasno processo, não podia — por forçado que tinha sido decidido no acórdãon.º 449/99 — apreciar a reclamação apre-sentada contra o acórdão n.º 312/99, nem,obviamente, as que o ora reclamante apre-sentou depois de tirado aquele acórdãon.º 449/99;

s) Desse despacho (de 16 de Março de 2000)reclamou ele, novamente, para a confe-rência, pedindo que se decidisse que «nãoé condição para se conhecer das reclama-ções apresentadas o prévio pagamento dascustas [...]»;

t) O Tribunal, em plenário, no acórdãon.º 256/2000, indeferiu a reclamação apre-sentada, reafirmando, desse modo, o en-tendimento de que, mandando-se extrairtraslado, a lei (artigo 720.º do Código deProcesso Civil e artigo 84.º, n.º 8, da Leido Tribunal Constitucional) apenas per-mite que se decida o incidente pendente(e, obviamente, todos os que, posterior-mente, se requererem), uma vez pagas ascustas do processo;

u) O reclamante veio, então, pelo requeri-mento de fls. 227, reclamar do acórdão

n.º 256/2000 e, pelo requerimento defls. 304, reclamar do acto da secretaria,«pelo qual lhe foi aplicada uma multa nostermos do artigo 145.º, n.º 6, do Códigode Processo Civil, pela apresentação da-quela reclamação fora de prazo»;

v) Sobre estes requerimentos recaiu o des-pacho do relator, de que ora se reclama.Nesse despacho, como se referiu logo deinício, o relator ordenou que se abrisseconclusão nos autos, uma vez pagas ascustas, pois só então era possível conhe-cer das reclamações.

4. Como decorre do que se disse, não obstanteo Tribunal já ter decidido — e reiterado — que,por força do que se dispõe nos artigos 720.º doCódigo de Processo Civil e 84.º, n.º 8, da Lei doTribunal Constitucional, só lhe é possível deci-dir os vários incidentes, que o reclamante temvindo a suscitar, depois de pagas as custas doprocesso, ele continua a insistir em suscitar no-vos incidentes e em reclamar que sobre eles seprofira decisão.

Como o Tribunal já decidiu que só pode pro-nunciar-se sobre os incidentes depois de o recla-mante pagar as custas, esgotou-se sobre essaquestão o seu poder de cognição. E, por isso, nãohá, sequer, que conhecer da reclamação ora apre-sentada, que, de resto, incide sobre um despachode mero expediente.

O comportamento do reclamante consubs-tancia má fé processual, pois traduz uso (inten-cional) manifestamente reprovável do processoe dos meios processuais, com o objectivo de en-torpecer a acção da justiça [cfr. artigo 456.º, n.º 2,alínea d), do Código de Processo Civil], comotudo bem resulta do que, sumariamente, se disseno parecer e, mais desenvolvidamente, se expôssupra, sob o n.º 3.

Impõe-se, por isso, a sua condenação, comolitigante de má fé, na multa correspondente, nostermos das disposições conjugadas dos artigos456.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, 84.º,n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional e 102.º,alínea a), do Código das Custas Judiciais. E,sendo o reclamante advogado em causa própria,há que, ao abrigo do disposto no artigo 459.º doCódigo de Processo Civil, comunicar o facto àOrdem dos Advogados, com cópia deste acórdão.

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46 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

É o que vai fazer-se.

5. Antes, porém, sublinha-se que a respostaao parecer do relator foi apresentada dois diasdepois de findo o respectivo prazo, razão porque a sua validade está dependente do paga-mento da multa que a secretaria deste Tribunalliquidou (artigo 145.º, n.os 5 e 6, do Código deProcesso Civil).

De facto, o parecer do relator (de 20 de Se-tembro de 2000) foi notificado ao reclamante,por carta registada de 22 desse mês de Setembro,considerando-se, por isso, a notificação feita nodia 25 de Setembro de 2000 (artigo 254.º, n.º 2,do Código de Processo Civil). Sendo o prazo dedois dias, o mesmo terminava no dia 27 de Se-tembro de 2000. Ora, a resposta foi enviada pelocorreio no dia 29 de Setembro de 2000, sendo detodo irrelevante a indicação de qualquer outradata que, acaso, conste do aviso para o paga-mento da multa.

Não obstante a validade da resposta ao pare-cer do relator estar dependente do pagamento damulta e de esta não ter sido paga, deu-se conta damesma, do mesmo modo que se deu nota da«reclamação» apresentada contra a liquidação damulta.

Tal se fez porque, na «reclamação» por úl-timo referida, o reclamante, entre o mais, ques-tiona a constitucionalidade da exigência do paga-mento de multa num caso como o dos autos, emque se está em presença de um prazo muitocurto, a justificar, em seu entender, o acréscimode uma dilação.

Ora, há que dizer que não existe qualquer ana-logia entre as situações do artigo 252.º-A do Có-

digo de Processo Civil, em que está em causa acitação para uma acção, e a dos presentes autos,em que se trata de ouvir o interessado sobre umparecer do relator lançado num processo em queaquele teve já múltiplas intervenções.

Acresce que nem a exigência do pagamento demulta pela prática do acto processual fora deprazo, nem a curteza do prazo para respondersão susceptíveis de pôr em causa o direito dedefesa do reclamante.

III — Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunaldecide:

a) Não conhecer da reclamação apresentada;b) Condenar o reclamante, como litigante de

má fé, na multa correspondente a 10 UCs;c) Condenar o reclamante nas custas, com

25 UCs de taxa de justiça;d) Mandar fazer a comunicação a que se re-

fere o artigo 459.º do Código de ProcessoCivil à Ordem dos Advogados, remeten-do-se-lhe cópia deste aresto.

Lisboa, 7 de Novembro de 2000.

Messias Bento (Relator) — Guilherme daFonseca — Alberto Tavares da Costa — MariaFernanda Palma — Maria dos Prazeres PizarroBeleza — Maria Helena Brito — José de Sousae Brito — Vítor Nunes de Almeida — PauloMota Pinto — Bravo Serra — Luís Nunes deAlmeida.

Acórdão ainda inédito.

(G. R.)

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47 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

Código de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações —Prazo de impugnação contenciosa

Não é inconstitucional a norma do artigo 97.º, § único, do Código do ImpostoMunicipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, na parte em que fixa paraimpugnação contenciosa um prazo de oito dias para o contribuinte, contados desde adata em que a avaliação tiver sido notificada.

TRIBUNAL CONSTITUCIONALAcórdão n.º 482/2000, de 22 de Novembro de 2000Processo n.º 328/99 — 2.ª Secção

ACORDAM na 2.ª Secção do Tribunal Cons-titucional:

I — Relatório

1. CÉRCEA — Sociedade de InvestimentosImobiliários, L.da, impugnou no Tribunal Tribu-tário de 1.ª Instância de Aveiro a avaliação efec-tuada de acordo com o disposto no artigo 109.ºdo Código de Sisa e do Imposto sobre as Suces-sões e Doações e a liquidação de sisa adicional,imposto extraordinário e imposto do selo quelhe fora efectuada, tendo em 6 de Novembro de1995 sido proferida sentença que julgou impro-cedente a impugnação deduzida.

2. Inconformada, interpôs a impugnante re-curso para o Supremo Tribunal Administrativo,sustentando no que para o presente recurso re-leva que:

«[...]4.ª — O artigo 20.º da Constituição da Repú-

blica Portuguesa determina que ‘a todos é asse-gurado o acesso ao direito e aos tribunais paradefesa dos seus direitos e interesses legítimos’,compreendendo esta garantia o direito a prazosrazoáveis e adequados de acção ou de recurso,proibindo-se ao legislador ordinário a consagra-ção de prazos de caducidade exíguos e despro-porcionados (cfr. artigo 268.º, n.º 4, da Consti-tuição da República Portuguesa).

5.ª — O artigo 97.º do Código da Sisa e doImposto sobre as Sucessões e Doações deter-mina que, depois de notificado do resultado daavaliação, o contribuinte teria um prazo de qua-

tro ou cinco dias úteis (v. artigo 279.º do CódigoCivil) para procurar e conseguir patrocínio judi-cial, organizar a sua defesa, reunir os meios deprova necessários e apresentar a sua pretensãoem juízo, o que é manifestamente insuficiente.

6.ª — A ora recorrente impugnou judicialmenteo acto de avaliação sub judice em 1 de Março de1991, dentro do prazo e nos termos previstosnos artigos 89.º e seguintes do Código de Pro-cesso das Contribuições e Impostos (cfr., ac-tualmente, artigos 118.º e seguintes e 155.º doCódigo de Processo Tributário), pelo que,consubstanciando o artigo 97.º uma norma clara-mente inconstitucional, por violação dos artigos20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da RepúblicaPortuguesa, nunca poderia determinar a intem-pestividade da presente impugnação (v. artigos207.º e 290.º da Constituição da República Por-tuguesa).

7.ª — A douta sentença recorrida enferma as-sim de manifestas nulidades e erros de julgamen-to, tendo violado frontalmente, além do mais, odisposto nos artigos 18.º, 20.º, 207.º, 268.º e 290.ºda Constituição da República Portuguesa, no ar-tigo 120.º do Código de Processo Tributário, noartigo 89.º do Código de Processo das Contribui-ções e Impostos, no artigo 4.º, n.º 3, do Estatutodos Tribunais das Administrativos e Fiscais enos artigos 660.º e 668.º, n.º 1, alínea d), do Códi-go de Processo Civil.»

Em resposta, a Fazenda Pública considerounão merecer a sentença recorrida qualquer cen-sura, devendo o recurso ser julgado improce-dente. Por sua vez, o Procurador-Geral Adjuntoem funções junto do Supremo Tribunal Admi-nistrativo considerou existir a invocada nulidade

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48 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

da decisão recorrida por omissão de pronúncia,não chegando a pronunciar-se sobre o seu fundo.

A Secção de Contencioso Tributário do Su-premo Tribunal Administrativo, por acórdão de17 de Março de 1999, conheceu da suscitadainconstitucionalidade, concluindo que «não seconfigura [...] como inconstitucional o artigo 97.ºdo Código do Imposto Municipal de Sisa e doImposto sobre as Sucessões e Doações, o prazode que dispunha o recorrente para deduzir a pre-sente impugnação era de oito dias contados apartir de 7 de Dezembro de 1990 (data da notifi-cação), os quais estavam transcorridos em 5 deMarço de 1991 (data da apresentação da peti-ção)», cindindo o objecto do recurso em víciosimputados ao acto avaliativo — que por ser umacto intermédio prejudicial e destacável, sujeitoa impugnação autónoma não intentada no prazoreferido, se consolidou — e vícios imputados àliquidação ou referentes aos seus pressupostos,e determinando, quanto a estes, a ampliação damatéria de facto «com oportuna prolação de novasentença».

3. Deste acórdão, «na parte em que nestese manteve a rejeição por intempestividade daimpugnação deduzida pela ora recorrente relati-vamente ao acto avaliativo», veio a referida im-pugnante interpor recurso para o Tribunal Cons-titucional, «com fundamento na inconstitucio-nalidade do artigo 97.º do Código do ImpostoMunicipal de Sisa e do Imposto sobre as Suces-sões e Doações, por violação das garantias cons-titucionais do acesso aos tribunais e do recursocontencioso, bem como dos artigos 20.º e 268.º,n.º 4, da Constituição da República Portuguesa».

Em alegações produzidas junto deste Tribu-nal, a recorrente concluiu do seguinte modo:

«1.ª — As garantias do acesso aos tribunais edo recurso contencioso consagradas nos artigos20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, impõem-se, como direi-tos de natureza análoga aos direitos, liberdades egarantias, a todas as entidades públicas e priva-das (v. artigos 17.º e 18.º, n.º 1, da Constituiçãoda República Portuguesa), bem como aos tribu-nais, que estão sujeitos à Constituição e à lei(v. artigos 205.º, 206.º e 207.º da Constituição daRepública Portuguesa);

2.ª — As garantias do acesso aos tribunais edo recurso contencioso incluem claramente o di-reito a prazos razoáveis e adequados de acção oude recurso, proibindo-se assim ao legislador or-dinário a consagração de prazos de caducidadeexíguos e desproporcionados (v. acórdão do Tri-bunal Constitucional n.º 148/87, Acórdãos doTribunal Constitucional, vol. 9.º, pág. 708);

3.ª — O artigo 97.º do Código do ImpostoMunicipal de Sisa e do Imposto sobre as Suces-sões e Doações determinava que, depois de noti-ficado do resultado da avaliação, o contribuintetinha um prazo de quatro a cinco dias úteis(v. artigo 279.º do Código Civil) para procurar econseguir patrocínio judicial, organizar a sua de-fesa, reunir os meios de prova necessários e apre-sentar a sua pretensão em juízo, o que é manifes-tamente insuficiente;

4.ª — A manifesta exiguidade e desproporçãodo prazo de oito dias em análise resulta, desdelogo, do facto de ao Ministério Público ser con-cedido um prazo de dois anos para o mesmoefeito (v. artigo 97.º do Código do Imposto Mu-nicipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessõese Doações, in fine), bem como de, actualmente, oCódigo de Processo Tributário fixar um prazode noventa dias para a dedução de impugnaçãocontra actos de fixação de valores patrimoniais(v. artigo 155.º do Código de Processo Tribu-tário);

5.ª — Contrariamente ao decidido no doutoacórdão recorrido, é assim manifesto que o artigo97.º do Código do Imposto Municipal de Sisa edo Imposto sobre as Sucessões e Doações violafrontalmente as garantias de acesso ao direito eaos tribunais e o direito ao recurso contencioso,consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, daConstituição da República Portuguesa;

6.ª — A ora recorrente impugnou judicialmenteo acto de avaliação sub judice, em 1 de Março de1991, dentro do prazo e nos termos previstosnos artigos 89.º e seguintes do Código de Pro-cesso das Contribuições e Impostos (cfr., ac-tualmente, artigos 118.º e seguintes e 155.º doCódigo de Processo Tributário), pelo que,consubstanciando o artigo 97.º do Código do Im-posto Municipal de Sisa e do Imposto sobre asSucessões e Doações uma norma claramenteinconstitucional, por violação dos artigos 20.º e268.º, n.º 4, da Constituição da República Portu-

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49 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

guesa, nunca poderia determinar a intempes-tividade da presente impugnação.»

Por parte da recorrida, não foi apresentadaqualquer alegação no prazo legal.

Sem vistos, cumpre apreciar e decidir.

II — Fundamentos

a) Objecto do recurso:

4. O presente recurso de constitucionalidadefoi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alí-nea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Ora,tratando-se de um recurso de constitucionalidadee tendo em conta que a decisão ora sob sindicância— a do Supremo Tribunal Administrativo de 17de Março de 1999 —, determinou a «oportunaprolação de nova sentença» sobre questões sus-citadas pela recorrente, o primeiro ponto a escla-recer é o da sua utilidade do presente recurso deconstitucionalidade.

Dir-se-á, porém, que tal utilidade é evidenteporquanto, mesmo que a nova sentença do Tri-bunal Tributário de 1.ª Instância de Aveiro venhaa dar satisfação às pretensões da recorrente noque toca ao acto de liquidação (determinação damatéria colectável, erro no cálculo da colecta e nataxa, falta de fundamentação da liquidação, faltade notificação da avaliação do prédio recebidoem permuta) e aos juros, virá a deixar in-tacta aavaliação do prédio dado em permuta.

E, aliás, independentemente da decisão quevenha a ser proferida sobre essas outras ques-tões — e que poderá, até, dar satisfação aos inte-resses da recorrente —, resta outra possibilidadede a posição da ora recorrente obter satisfação:através de um eventual julgamento de inconstitu-cionalidade da norma que foi invocada para con-siderar precludida a possibilidade de impugnar aprópria avaliação.

Está, pois, preenchido o requisito dito de uti-lidade para o processo, ligado à instrumentalidadedo recurso de constitucionalidade — nos termosdo qual o Tribunal Constitucional só deve co-nhecer das questões que se possam repercutir deforma útil nas decisões das questões de fundo(cfr., entre muitos outros, os acórdãos n.os 322/90, 159/93, 272/94 e 41/96, publicados no Diá-rio da República, II Série, de 15 de Março de

1991, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,vol. 24.º, 1993, págs. 371-380, no Diário da Re-pública, II Série, de 7 de Junho de 1994, e nosAcórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 33.º,1996, págs. 235-245, respectivamente).

Também não obsta ao conhecimento da ques-tão de constitucionalidade, suscitada a propó-sito do artigo 97.º do Código do Imposto Muni-cipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões eDoações, o facto de o artigo 155.º do Código deProcesso Tributário, aprovado pelo Decreto--Lei n.º 154/91, de 23 de Abril, ter fixado emnoventa dias o prazo para dedução de impugnaçãocontra actos de fixação de valores patrimoniais,uma vez que tal diploma não vigorava ainda àdata da impugnação, que foi intentada ao abrigodo artigo 89.º do Código de Processo das Con-tribuições e Impostos [cfr. artigos 97.º, n.º 1, alí-nea f), e 102.º do actualmente vigente — desde1 de Janeiro de 2000 — Código de Procedimentoe de Processo Tributário, aprovado pelo De-creto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro].

A norma invocada para, neste ponto, funda-mentar a decisão recorrida foi a do artigo 97.º doCódigo do Imposto Municipal de Sisa e do Im-posto sobre as Sucessões e Doações, e é essanorma, cuja redacção seguidamente se trans-creve, que constitui o único objecto do presenterecurso:

«O valor fixado em avaliação não é suscep-tível de impugnação contenciosa.

§ único. Com fundamento em preterição deformalidades legais, poderá o contribuinte ou oMinistério Público impugnar tanto a primeiracomo a segunda avaliação, nos termos do Códigode Processo das Contribuições e Impostos.

Os prazos para a impugnação serão de oitodias para o contribuinte e dois anos para o Mi-nistério Público e contam-se da data em que aavaliação tiver sido notificada.»

5. Logo no requerimento de impugnação, au-tuado em 5 de Março de 1993 na Repartição deFinanças de São João da Madeira, a recorrentesuscitou a inconstitucionalidade desta norma.Fê-lo, porém, sob pretexto de a limitação daimpugnabilidade contenciosa das avaliações àpreterição de formalidades legais, prevista noprimeiro período do § único, contradizer «fron-

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50 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

talmente o disposto no artigo 268.º, n.º 4, daConstituição da República Portuguesa, que ga-rante aos particulares o direito de impugnaçãocontenciosa de todos os actos ilegais da Admi-nistração, sem que seja possível limitar o uni-verso de vícios aí arguidos».

Quer a resposta do representante da FazendaPública, de 24 de Janeiro de 1994, quer o parecerdo Ministério Público, de 20 de Setembro de1994, consideraram, porém, que a discussão detal questão carecia de interesse face ao dispostono n.º 2 do artigo 155.º do Código de ProcessoTributário, que admite a invocação de qualquervício.

A decisão da 1.ª instância (de 6 de Novembrode 1995), por sua vez, delimitou o seu âmbito apartir da formulação de duas questões: saber se«o artigo 97.º do Código do Imposto Municipalde Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doa-ções é ou não materialmente inconstitucional, porviolação dos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Consti-tuição da República Portuguesa, e, em caso nega-tivo (se) ocorre ou não caso decidido sobre aavaliação que suportou a liquidação impugnada».

Porém, em vez de retomar o fundamento deinconstitucionalidade invocado pela recorrente,invocou «jurisprudência corrente do TribunalConstitucional» para concluir que «a garantiaconstitucional de recurso contencioso não im-pede que a lei ordinária fixe prazos diversifica-dos para a impugnação de diferentes actos».Em consequência veio a julgar que «o acto da1.ª avaliação, por não oportunamente impug-nado, pelo modo devido, ainda mesmo que feridode irregularidades (que no caso nem se demons-tram), constitui caso decidido ou resolvido, peloque adquiriu estabilidade e consolidou-se na or-dem jurídica, não podendo ser arredado nemagora controvertido».

Ao alegar no Supremo Tribunal Administrati-vo a recorrente manteve a invocação da incons-titucionalidade do artigo 97.º do Código doImposto Municipal de Sisa e do Imposto sobreas Sucessões e Doações, mas, em face da deci-são, agora com fundamento em que o artigo 20.ºda Constituição da República Portuguesa im-pede que o legislador ordinário fixe prazos decaducidade exíguos e desproporcionados, comoo que resultaria desse artigo, no segundo períododo seu § único.

Este Supremo Tribunal considerou, porém,que «os argumentos da recorrente para defendera excessiva exiguidade do prazo estabelecido noartigo 97.º do Código do Imposto Municipal deSisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doaçõesnão são decisivos».

É, pois, esta a dimensão da norma, resultantedo segundo período do § único do artigo 97.º,que cabe a este Tribunal avaliar. E apenas esta,não porque um juízo de inconstitucionalidadesobre uma norma impugnada não se pudesse fa-zer com fundamento diverso do que tivesse sidoalegado — cfr. o artigo 79.º-C da Lei do TribunalConstitucional (e tendo aliás no presente casotal fundamento já sido invocado pelo recorrentedurante o processo) —, mas porque, tendo orecurso por fundamento a alínea b) do n.º 1 doartigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,um dos seus requisitos específicos é o de quetenha havido uma efectiva aplicação da norma— ou segmento da norma — cuja inconstitu-cionalidade haja sido suscitada durante o pro-cesso: ou seja, no caso, a norma do artigo 97.º,§ único, 2.º período, ao estabelecer o prazo paraa impugnação de oito dias para o contribuinte.

Ora, muito embora tivesse havido, durante oprocesso, impugnação da constitucionalidade dalimitação dos fundamentos da impugnação con-tenciosa da avaliação, a verdade é que a decisãorecorrida, tal como a decisão da 1.ª instância, nãoaplicaram a norma impugnada com esse sentido, ea própria impugnação desse sentido perdeurelevo, deixando de ser invocada (aliás, poderádizer-se, mesmo, que a inconstitucionalidade oraimputada à norma se configura logicamente comoprévia em relação à questão de constitucionalidadeque começou por ser suscitada e que encontrariaprecedente no acórdão da 2.ª Secção do SupremoTribunal Administrativo de 12 de Janeiro de 1977,publicado nos Acórdãos Doutrinais do SupremoTribunal Administrativo, ano XVI, n.º 183, págs.69-78, que julgou o corpo do artigo 97.º do Có-digo do Imposto Municipal de Sisa e do Impostosobre as Sucessões e Doações inconstitucional àface do artigo 8.º, n.º 21, da Constituição de 1933).

b) Apreciação da questão de constituciona-lidade:

6. Para fundamentar a inconstitucionalidadeda norma do § único do artigo 97.º do Código do

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51 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobreas Sucessões e Doações, invoca a recorrente oacórdão n.º 148/87 (publicado no Diário da Repú-blica, II Série, de 5 de Agosto de 1987), onde setratou das razões que justificavam a existênciade um prazo para o exercício do direito de im-pugnação do despedimento, acrescentando-se oseguinte:

«Ponto essencial é que o prazo assim justifi-cado e desta forma definido não se apresentecomo exíguo, por forma que de uma dimensãotemporal desproporcionada possam resultarmanifestas e efectivas limitações do direito tute-lado.»

Tratava-se aí, porém, de um prazo de um ano.A propósito de prazos mais curtos, já este

Tribunal proferiu julgamentos de inconstitucio-nalidade no domínio do processo penal.

Assim, no acórdão n.º 34/96 (publicado noDiário da República, II Série, de 29 de Abril de1996) julgou-se inconstitucional o artigo 428.º,em conjugação com os artigos 431.º, n.º 1, e 434.ºdo Código de Justiça Militar; no acórdão n.º 41/96 já citado, julgou-se inconstitucional o artigo328.º do Código de Processo Penal de 1929; noacórdão n.º 611/96 (Diário da República, II Sé-rie, de 6 de Julho de 1996), julgou-se inconstitu-cional a conjugação dos artigos 428.º e 431.º doCódigo de Justiça Militar; no acórdão n.º 225/97(Diário da República, II Série, de 20 de Junho de1997) julgou-se inconstitucional o artigo 431.º,n.º 2, do Código de Justiça Militar, e no acórdãon.º 406/98, ainda inédito, julgou-se inconstitu-cional o artigo 287.º, n.º 1, do Código de Pro-cesso Penal de 1987 (na versão anterior ao De-creto-Lei n.º 317/95, de 27 de Novembro), em-bora com votos de vencido.

Em todos os casos referidos, o prazo emcausa era de cinco dias, e o parâmetro constitu-cional invocado era o do artigo 32.º (n.º 1) daConstituição («Garantias de processo criminal»).E também em todos esses casos — com excep-ção do último citado —, foi decisivo para a con-clusão um juízo comparativo: onde esteve emcausa o Código de Justiça Militar, a comparaçãocom os prazos previstos no Código de ProcessoPenal, onde esteve em causa uma norma desteCódigo (acórdão n.º 41/96), a comparação do

prazo previsto para o arguido (requerer diligên-cias de instrução contraditória) com o prazo pre-visto para o mesmo efeito para o MinistérioPúblico.

7. Destes traços, comuns à jurisprudênciacitada publicada, só um parece poder ser invo-cado em relação à norma ora em apreço: o da dis-paridade entre o prazo concedido ao contribuintepara impugnar a avaliação (oito dias) e o prazoconcedido ao Ministério Público para tal efeito(dois anos).

Parafraseando o que se escreveu no acórdãon.º 34/96, também no presente caso, porém, «pri-meiro momento da análise implica que se averiguese, em si, um prazo de (oito) dias para interpor emotivar (a impugnação) é limitativ(a) do direitode acesso aos tribunais [...]. Ora, a resposta po-sitiva só se imporia se o prazo fosse ostensiva-mente exíguo [...]. Fora deste âmbito, não há,obviamente, um direito a um certo prazo».

Ponderando que o prazo normal para as par-tes requererem qualquer acto ou diligência, argui-rem nulidades ou deduzirem incidentes emprocesso civil era, até à revisão de 1995-1996, decinco dias (cfr. artigo 153.º do Código de Pro-cesso Civil) e que, até à mesma altura, o prazopara apresentarem alegações era de oito dias(cfr. artigos 743.º, n.º 1, e 760.º, n.º 1, do Códigode Processo Civil) não pode deixar de concluir--se que o prazo então fixado para a impugnaçãodas avaliações fiscais — embora actualmentetambém já substituído por outro bem mais alar-gado — se encontrava em relação com um certoentendimento do tempo por parte do legislador,entendimento esse que levava à fixação de pra-zos mais reduzidos do que os que hoje são regra.

Acrescente-se, aliás, que já este Tribunal teveocasião de afirmar, em matéria de prazos em pro-cesso do trabalho, como no acórdão n.º 148/87invocado pela recorrente, que «a exigência de aalegação ter de constar do requerimento deinterposição do recurso ou, quando muito, de terde ser apresentada no prazo de interposição erecurso de oito dias, não diminui, por si mesma,as garantias processuais das partes, nem acarretaum cerceamento das possibilidades de defesa dosinteresses das partes que se tenha de considerardesproporcionado ou intolerável». (Primeiro itá-

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52 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

lico aditado — acórdão n.º 266/93, publicado noDiário da República, II Série, de 10 de Agosto de1993.)

E, mesmo em sede de processo penal, já noacórdão n.º 186/92, publicado no Diário da Re-pública, II Série, de 18 e Setembro de 1992, sejulgou que não era inconstitucional a reduçãopara metade de qualquer prazo previsto no Có-digo de Processo Penal (salvo os de 24 horas) emmatéria de crimes de imprensa, considerando-se,designadamente, que um prazo de quatro diaspara apresentação de alegações não dá origem aum «encurtamento inadmissível das possibilida-des de defesa.»

No acórdão n.º 646/99 (Diário da República,II Série, de 14 de Novembro de 2000), o TribunalConstitucional julgou não inconstitucional anorma contida no artigo 86.º, n.º 2, do Código doImposto sobre o Valor Acrescentado, que prevêum prazo de oito dias a contar da data da notifi-cação, para a impugnação do acto de liquidação.

Conclui-se assim que, ao menos na falta doparâmetro constitucional das garantias de defesaque justificou anteriores posições deste tribunalsobre a exiguidade dos prazos — e sobre o dife-rente sentido que a mesma norma pode assumirpara efeitos penais e civis vejam-se, por exem-plo, os acórdãos n.os 269/97 e, de certa forma,463/97, o primeiro publicado no Diário da Repú-blica, II Série, 23 de Maio de 1997, e o segundoainda inédito —, um prazo de oito dias para im-pugnar uma avaliação fiscal não a dificulta demaneira dificilmente ultrapassável, tanto mais que«como se sabe, [...] não são habitualmente com-plexas as questões que se levantam a propósitoda (i)legalidade dos actos avaliativos no âmbitodo citado diploma», não sendo necessário «arro-lar testemunhas, requerer prova pericial, juntardocumentos de demorada obtenção, etc.» (parao dizer como na decisão recorrida).

Acresce que, muito embora a recorrente con-sidere reiteradamente que o prazo em causa ésubstantivo (com a alegada consequência de que«o contribuinte teria, na prática, quatro ou cincodias úteis para preparar a impugnação da avalia-ção»), a posição do Supremo Tribunal Adminis-trativo é a de que tal prazo «reveste a naturezade um recurso» pelo que «o prazo referido no§ único do artigo 97.º do Código do Imposto

Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Suces-sões e Doações para a impugnação judicial daavaliação [é] de natureza adjectiva ou proces-sual, com a consequente aplicação do artigo 144.ºdo Código de Processo Civil». Que, à altura, re-corde-se, determinava a suspensão do prazo«durante as férias, sábados, domingos e dias fe-riados» (cfr. o acórdão da 2.ª Secção do Su-premo Tribunal Administrativo tirado em 26 deFevereiro de 1986 no processo n.º 3383 e pu-blicado em apêndice ao Diário da República, de22 de Dezembro de 1987, a págs. 280 e segs.),irrelevando para o caso a última reforma do pro-cesso civil uma vez que esta ocorreu já no do-mínio da aplicação do Código de ProcessoTributário.

8. Nesta medida, o que se poderia ter por, dealguma forma, desproporcionado é a diferençaem relação ao prazo de dois anos que se concediaao Ministério Público em situações em que ocontribuinte gozava de um prazo, digamos nor-mal, de oito dias.

É certo que, como se escreveu no acórdãon.º 611/96 (e se transcreveu no acórdão n.º 225/97):

«A vinculação jurídico-material do legisladorao princípio da igualdade não elimina a liberdadede conformação legislativa, pertencendo-lhe, den-tro dos limites constitucionais, definir ou quali-ficar as situações de facto ou as relações da vidaque hão-de funcionar como elementos de refe-rência a tratar igual ou desigualmente.»

Ora, pode certamente distinguir-se a interven-ção do contribuinte ao impugnar a avaliação e aintervenção do Ministério Público para o mes-mo efeito, desde logo, na medida que a primeirase fará sempre em benefício do impugnante, aopasso que a segunda tanto pode ocorrer em be-nefício do contribuinte como em benefício daFazenda Pública.

Acresce ainda, porém — eventualmente deforma decisiva —, que, enquanto o prazo pre-visto para a impugnação pelo contribuinte é umprazo de prescrição, o prazo previsto para aintervenção do Ministério Público é um prazode caducidade cujo dies a quo — a notificação

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53 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

ao contribuinte — lhe não é levado ao conheci-mento.

Assim, há um conhecimento directo, pessoale interessado do resultado da avaliação pelo con-tribuinte (nos termos do artigo 95.º do Código doImposto Municipal de Sisa e do Imposto sobreas Sucessões e Doações, o resultado da avaliaçãoé notificado ao contribuinte, após ser reduzido atermo no processo e o termo assinado por todosos que nela intervieram).

Já o conhecimento pelo Ministério Públicoda mesma situação é indirecto, fortuito, come-çando, designadamente, o prazo para ele a correra partir de um dies a quo que lhe não é levado aoconhecimento — o que justifica que o prazo quecomeça a correr a partir de então seja muito maisdilatado.

Aliás, se alguma desconformidade constitu-cional existisse aqui, ela residiria apenas na dife-rença de prazos — ou seja, resultaria do diversoprazo fixado para o Ministério Público e não daexiguidade do prazo da recorrente.

III — Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, oTribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional a norma doartigo 97.º, § único, do Código do Im-posto Municipal de Sisa e do Impostosobre as Sucessões e Doações, na parteem que fixa para impugnação contenciosaum prazo de oito dias para o contri-buinte, contados desde a data em que aavaliação tiver sido notificada;

b) Por conseguinte, negar provimento ao re-curso e manter o juízo de constituciona-lidade da decisão recorrida;

c) Condenar a recorrente em custas, fixan-do-se a taxa de justiça em 15 UCs.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

Paulo Mota Pinto (Relator) — Bravo Serra —Guilherme da Fonseca — Maria FernandaPalma — Luís Nunes de Almeida.

Foi publicado no Diário da República, II Série, n.º 3, de 4 de Janeiro de 2001, pág. 133.

(G. R.)

Demolição de obras ilegais — Licenciamento municipal deobras — Indeferimento tácito — Princípio da proporcionalidade

A invocação do princípio da proporcionalidade com sede no n.º 2 do artigo 18.º daConstituição não é de molde a fundar um juízo de inconstitucionalidade da soluçãonormativa adoptada pelo legislador em sede de licenciamento de obras particulares jáexecutadas, mesmo se desconforme com a que foi adoptada em sede de licenciamento deobras particulares não executadas.

TRIBUNAL CONSTITUCIONALAcórdão n.º 484/2000, de 22 de Novembro de 2000Processo n.º 631/99 — 2.ª Secção

ACORDAM na 2.ª Secção do Tribunal Cons-titucional:

I — Relatório

1. Em 26 de Março de 1999, Albino MárioBaptista de Lima apresentou, no Tribunal Ad-

ministrativo do Círculo do Porto, pedido de sus-pensão de eficácia do despacho do vereador daCâmara Municipal da Póvoa de Varzim de 16 deMarço de 1999, que determinou, ao abrigo dodisposto no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 92/95, aposse administrativa de um prédio naquela loca-lidade por forma a proceder à demolição das obras

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54 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

nele realizadas e tidas por ilegais por aquela Câ-mara Municipal.

Por decisão de 6 de Maio de 1999 o juiz da-quele tribunal considerou preenchidas as alí-neas a) e b) do n.º 1 do artigo 76.º da Lei deProcesso nos Tribunais Administrativos, mas nãoa sua alínea c) — por ter entendido que o actocuja eficácia se pretendia ver suspensa era umacto confirmativo de uma anterior decisão de idên-tico conteúdo com data de 10 de Julho de 1998,e, portanto, insusceptível de lesar os direitos ouos interesses legalmente protegidos do requeren-te e, como tal, irrecorrível —, razão pela qualindeferiu o requerimento de suspensão de eficá-cia.

Recorreu o requerente para o Tribunal Cen-tral Administrativo que, por acórdão de 22 deJulho de 1999, negou provimento ao recurso,confirmando o indeferimento do pedido de sus-pensão de eficácia — embora por razões diver-sas das do Tribunal Administrativo do Círculodo Porto —, entendendo que o acto lesivo dosdireitos e interesses do recorrente não era nem«o acto recorrido, nem o acto confirmado de 10de Julho de 1998, mas sim o acto que ordenou ademolição da obra do recorrente» (e que datavade 10 de Fevereiro de 1998). Nesse recurso, orecorrente suscitou a inconstitucionalidade danorma do artigo 167.º do Regulamento Geral dasEdificações Urbanas, em conjugação com o dis-posto no artigo 109.º do Código do Procedi-mento Administrativo.

2. Após arguição de nulidade das duas subse-quentes notificações, veio Albino Mário Baptistade Lima interpor recurso para o Tribunal Cons-titucional, ao abrigo do disposto na alínea b) don.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 deNovembro, concluindo desta forma as alegaçõesproduzidas neste Tribunal:

«A — O exercício do ius aedificandi, perten-cendo aos particulares, é condicionado pelos en-tes públicos, por forma a conformar tal exercíciocom as normas de ordenamento do território, asquais, contribuindo para um interesse fundamentaldo Estado, impõem aos entes locais a responsa-bilidade de velar pelo seu respeito;

B — O processo de licenciamento de obrasparticulares tem por finalidade assegurar a con-formidade do exercício do direito com as normasvigentes. Da mesma forma, o pedido de legaliza-ção de obra executada sem licença tem igual-mente por finalidade verificar que o exercício dodireito se processou em respeito com as normasde ordenamento do território em vigor;

C — No âmbito do reforço de competências ede reforço das garantias dos particulares, confi-gurou-se o princípio do deferimento tácito paraa falta de resposta dentro do prazo nos pedidosde licenciamento de obras particulares;

D — Não obstante o princípio do deferi-mento tácito, a protecção das normas de ordena-mento do território encontra-se salvaguardadapela imposição do regime de nulidade do deferi-mento contra legem;

E — A tramitação do processo de licen-ciamento de obras particulares e de legalizaçãode obra executada sem licença obedece às mes-mas exigências, nomeadamente, através da inter-venção de técnico, a cujas declarações de con-formidade se reconhece a idoneidade suficientepara dispensar de verificação e vistoria a cons-trução;

F — A imposição da regra do indeferimentotácito do pedido de legalização de obra construídasem licença, é um meio excessivo para se alcan-çar o respeito pelas normas legais e regulamenta-res em vigor, criando uma dicotomia intolerávelno sistema, atribuindo um poder discricionárioaos entes locais que se lhes não reconhece noprocesso de licenciamento prévio;

G — A prefiguração de um juízo sancionatório,não é justificativo da dicotomia, dado que esta sealcança já por força da tributação com taxa agra-vada, aquando do licenciamento, o que constituiregime sancionatório suficiente;

H — A norma do artigo 167.º do Regula-mento Geral das Edificações Urbanas, em conju-gação com a norma do artigo 109.º do Código doProcedimento Administrativo, ofende de formamanifesta o princípio da proporcionalidade, de-vendo por tal facto declarar-se a sua inconstitu-cionalidade.»

O recorrido não apresentou alegações.

Cumpre apreciar e decidir.

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55 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

II — Fundamentos

3. É a seguinte a redacção da norma impug-nada do Regulamento Geral das Edificações Ur-banas:

«Artigo 167.º

A demolição das obras referidas no artigo 165.ºsó poderá ser evitada desde que a câmara munici-pal ou o seu presidente, conforme os casos, re-conheça que são susceptíveis de vir a satisfazeros requisitos legais e regulamentares de urbani-zação, de estética, de segurança e de salubridade.

§ 1.º — O uso da faculdade prevista nesteartigo poderá tornar-se dependente de o proprie-tário assumir, em escritura, a obrigação de fazerexecutar os trabalhos que se reputem necessá-rios, nos termos e condições que forem fixados, ede demolir ulteriormente a edificação, sem direitoa ser indemnizado — promovendo a inscriçãopredial deste ónus —, sempre que as obras con-trariem as disposições do plano ou anteplano deurbanização que vier a ser aprovado.

§ 2.º — A legalização das obras ficará depen-dente de autorização do Ministro das Obras Pú-blicas, solicitada através da Direcção-Geral dosServiços de Urbanização, quando possa colidircom plano ou anteplano de urbanização já apro-vado ou, na área do plano director da região deLisboa, nos casos em que a licença estivesse con-dicionada àquela autorização.»

É a seguinte a redacção do artigo 109.º doCódigo do Procedimento Administrativo:

«Artigo 109.º

Indeferimento tácito

1 — Sem prejuízo do disposto no artigo ante-rior, a falta, no prazo fixado para a sua emissão,de decisão final sobre pretensão dirigida a órgãoadministrativo competente confere ao interes-sado, salvo disposição em contrário, a faculdadede presumir indeferida essa pretensão, para po-der exercer o respectivo meio legal de impugnação.

2 — O prazo a que se refere o número ante-rior é, salvo o disposto em lei especial, de 90 dias.

3 — Os prazos referidos no número anteriorcontam-se, na falta de disposição especial:

a) Da data da entrada do requerimento oupetição no serviço competente, quando a

lei não imponha formalidades especiaispara a fase preparatória da decisão;

b) Do termo do prazo fixado na lei para aconclusão daquelas formalidades ou, nafalta de fixação, do termo dos três mesesseguintes à apresentação da pretensão;

c) Da data do conhecimento da conclusãodas mesmas formalidades, se essa foranterior ao termo do prazo aplicável deacordo com a alínea anterior.»

Tendo em conta que este artigo do Código doProcedimento Administrativo confere uma pos-sibilidade que não foi actuada no presente caso— presumir o indeferimento tácito para efeitode impugnação —, estabelecendo prazos para aexercer, conclui-se que não está em causa o seuconteúdo directamente «preceptivo» para efeitode impugnação, mas antes o facto de se presumiro indeferimento — nas palavras do recorrente,«a imposição da regra do indeferimento tácito dopedido de legalização de obra construída semlicença», que seria «um meio excessivo para sealcançar o respeito pelas normas legais e regula-mentares em vigor».

E o artigo 167.º do Regulamento Geral dasEdificações Urbanas tipificaria uma situação emque, justamente, existiria indeferimento tácito,não obstante o disposto na alínea a) do n.º 3 doartigo 108.º do Código do Procedimento Admi-nistrativo, que considera sujeito a deferimentotácito o licenciamento de obras particulares, sen-do essa disparidade que é tida por inconstitu-cional:

«Traduzindo o licenciamento a comprovaçãode que as regras de ordenamento do territórioforam respeitadas [...] não [se] aceita [...] que talcomprovação possa ser considerada de formatácita quando a obra não se encontra levantada, enão possa ser tacitamente deferida se a obra seencontra executada.»

É, portanto, apenas isto que constitui o ob-jecto do recurso, podendo desconsiderar-se nopresente recurso as normas dos dois parágrafosdo artigo 167.º do Regulamento Geral das Edi-ficações Urbanas e dos n.os 2 e 3 do artigo 109.ºdo Código do Procedimento Administrativo —e, até, o remanescente de cada um dos artigos emsi mesmo considerados.

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56 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

4. Delimitado o objecto do recurso, poderiapôr-se em dúvida que tal objecto fosse pertinen-te para o meio processual que originou o presen-te recurso de constitucionalidade, uma vez quetal meio processual era um pedido de suspensãode eficácia, indeferido na decisão recorrida porexistirem fortes indícios de ilegalidade dainterposição do recurso [alínea c) do n.º 1 doartigo 76.º da Lei de Processo nos Tribunais Ad-ministrativos — Decreto-Lei n.º 267/85, de 16de Julho]. Ora, na medida em que tal questão deconstitucionalidade se não repercutisse em taljuízo, de nada valeria resolvê-la, dada a funçãoinstrumental do recurso de constitucionalidade(cfr. v. g. acórdãos n.os 169/92, 257/92 e 272/94,publicados, respectivamente, no Diário da Re-pública, II Série, de 18 de Setembro de 1992, de18 de Junho de 1993 e de 7 de Junho de 1994).

Acontece, porém, que a própria decisão re-corrida se interrogou sobre a interferência do pe-dido de legalização da obra na situação definidaao recorrente pela ordem de demolição — tidocomo o acto que verdadeiramente lesou os seusdireitos e interesses — e sobre o sentido do si-lêncio face a tal pedido, concluindo que «pareceque só pode ser de indeferimento [...]». Admitiu,portanto, que a atribuição de um outro sentido atal silêncio tivesse repercussão no pedido de sus-pensão de eficácia.

Uma vez que o que constitui objecto desterecurso de constitucionalidade é saber se esseoutro sentido é constitucionalmente imposto,conclui-se que a decisão que o Tribunal Consti-tucional vier a proferir pode vir a projectar-seutilmente sobre a decisão tomada pelo tribunala quo, pelo menos a julgar pelo seu discursoargumentativo.

Assim, e porque estão preenchidos os requi-sitos do recurso de constitucionalidade interpos-to, nada obsta ao seu conhecimento.

5. O que está em causa é, portanto, saber se«a norma do artigo 167.º do Regulamento Geraldas Edificações Urbanas, em conjugação com anorma do artigo 109.º do Código Penal, ofendede forma manifesta o princípio da proporcio-nalidade, devendo por tal facto declarar-se a suainconstitucionalidade», como conclui o recor-rente, porquanto, como o escreveu nas alegaçõesde recurso para o Tribunal Central Administra-

tivo, «manifesto é pois que a autorização conti-da no licenciamento de obra que se encontra jáexecutada deve enquadrar-se no elenco dos actosem que o silêncio da Administração vale comodeferimento e não no elenco de actos em que osilêncio deve ser entendido como indeferimento».

Ora, «o princípio do excesso [ou princípio daproporcionalidade] aplica-se a todas as espéciesde actos dos poderes públicos. Vincula o legisla-dor, a administração e a jurisdição. Observar--se-á apenas que o controlo judicial baseado noprincípio da proporcionalidade não tem exten-são e intensidade semelhantes consoante se tratede actos legislativos, de actos da administraçãoou de actos de jurisdição. Ao legislador (e, even-tualmente, a certas entidades com competênciaregulamentar) é reconhecido um considerável es-paço de conformação (liberdade de conforma-ção) na ponderação dos bens quando edita umanova regulação. Esta liberdade de conformaçãotem especial relevância ao discutir-se os requi-sitos da adequação dos meios e da proporcio-nalidade em sentido restrito. Isto justifica queperante o espaço de conformação do legislador,os tribunais se limitem a examinar se a regulaçãolegislativa é manifestamente inadequada» (assim,Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teo-ria da Constituição, Coimbra, 1998, pág. 264).

Ora, estando em causa a constitucionalidadede uma norma, é apenas a intervenção do legis-lador que tem de ser aferida — com os limitesassinalados.

6. Delimitado o objecto do recurso e o alcancedo controlo que incumbe a este Tribunal efec-tuar, logo se conclui que a invocação do princí-pio da proporcionalidade — com sede no n.º 2do artigo 18.º da Constituição e não, como invo-cado pelo recorrente, nos artigos 13.º, n.º 2, e226.º (onde se estabelecem os princípios fun-damentais de actuação da Administração Pú-blica)— não é de molde a fundar um juízo deinconstitucionalidade da solução normativa adop-tada pelo legislador em sede de licenciamento deobras particulares já executadas, mesmo se des-conforme com a que foi adoptada em sede delicenciamento de obras particulares não exe-cutadas.

Por um lado porque, como foi referido na de-cisão recorrida — o acórdão de 22 de Julho de

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57 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

1999 do Tribunal Central Administrativo — nãose pode reputar tal diferença de regimes comomanifestamente inadequada:

«Trata-se de duas realidades distintas. E, porisso, o legislador distinguiu-as, inclusive deu di-ferente relevo ao silêncio da administração num enoutro caso. O requerente do licenciamento pre-tende construir, mas precisa de licença, por isso,impõe-se que a Administração actue de formarápida e eficiente. E daí que ao silêncio da Admi-nistração durante determinado lapso de tempo,o legislador fez presumir o deferimento tácito dapretensão (artigo 61.º do Decreto-Lei n.º 445/91e artigo 108.º do Código do Processo Adminis-trativo). Pelo contrário, no caso de pedido delegalização de obra, o requerente já desrespeitoua lei, de forma ilegal e abusiva construiu semobter o consentimento da Administração. Dadoeste comportamento, o legislador não entendeupremiar o infractor. Pelo que, no silêncio da Ad-ministração, presume-se o indeferimento da pre-tensão (artigo 109.º do Código de ProcessoAdministrativo).»

[...]A demolição das obras construídas ilegal-

mente e, portanto, ilegais, ‘só poderá ser evitadadesde’ que se reconheça que poderão vir a satis-fazer os requisitos legais. Isto é, a demolição é ofim previsto na lei para as obras ilegais, a qual sóexcepcionalmente poderá ser evitada. E daí que opedido de legalização dessas obras se presuma in-deferido no caso de silêncio da Administração.»

Por outro lado, como se escreveu no acórdãon.º 634/93 (publicado no Diário da República,II Série, de 31 de Março de 1994), invocando adoutrina:

«O princípio da proporcionalidade desdobra--se em três subprincípios: princípio da adequa-ção (as medidas restritivas de direitos, liberda-des e garantias devem revelar-se como um meiopara a prossecução dos fins visados, com salva-guarda de outros direitos ou bens constitucional-mente protegidos); princípio da exigibilidade(essas medidas restritivas têm de ser exigidas paraalcançar os fins em vista, por o legislador nãodispor de outros meios menos restritivos paraalcançar o mesmo desiderato); princípio da justamedida, ou proporcionalidade em sentido estrito

(não poderão adoptar-se medidas excessivas, des-proporcionadas para alcançar os fins pretendi-dos).»

Ora, a medida restritiva atinge verdadeiramenteo ius aedificandi, sendo discutido se este se inte-gra no direito de propriedade ou radica antes noacto administrativo autorizativo (cfr. os acórdãosn.os 329/99, 517/99 e 602/99, os dois primeirospublicados no Diário da República, II Série, de20 de Julho de 1999 e 11 de Novembro de 1999,e o último ainda inédito, e Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portu-guesa Anotada, Coimbra, 1993, pág. 333, ano-tação VII ao artigo 62.º; em sentidos opostospodem ver-se Alves Correia, O Plano Urbanísti-co e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989,págs. 372-382, e Freitas do Amaral, «Aprecia-ção da dissertação de doutoramento do licen-ciado Fernando Alves Correia», Revista da Fa-culdade de Direito da Universidade de Lisboa,vol. XXXII, 1991, págs. 99-101; um inventário eapreciação das diferentes posições da doutrinaportuguesa encontra-se em Mário Esteves de Oli-veira, «O direito de propriedade e o ius aedificandino direito português», Revista Jurídica do Urba-nismo e do Ambiente, n.º 3, 1995, págs. 187-198).

Pode, assim, desde logo duvidar-se de queesteja em causa uma «restrição» de direitos,liberdades e garantias e, consequentemente, oâmbito de aplicação do princípio consagrado non.º 2 do artigo 18.º da Constituição. No primeirodaqueles referidos acórdãos escreveu-se:

«Mesmo quando se entenda que o direito aconstruir [...] é uma dimensão do direito de pro-priedade, as proibições decorrentes dos planosurbanísticos [...] resultam da necessidade de re-solver as situações de conflito entre o direito depropriedade e as exigências de ordenamento doterritório. E os conflitos de direitos ou bens jurí-dicos resolvem-se harmonizando esses direitosou bens jurídicos em toda em que tal seja possí-vel ou, quando o não for, fazendo que uns preva-leçam sobre outros, que, desse modo, são emparte sacrificados.

Significa isto que a especial situação da pro-priedade [...] importa uma vinculação tambémespecial (uma vinculação situacional), que maisnão é do que uma manifestação da hipotecasocial que onera a propriedade privada do solo.

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58 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

E, por isso, essa proibição, sendo, como é, im-posta pela própria natureza intrínseca ou pelasituação da propriedade, não pode ser havidacomo inconstitucional.»

Ora, tendo isto em conta, não pode conside-rar-se que a demolição de obras tidas como ile-gais — por não terem sido autorizadas — ofendaqualquer dos três subprincípios do princípio daproporcionalidade mesmo, como se disse, «quan-do se entenda que o direito a construir [...] é umadimensão do direito de propriedade».

7. Finalmente, a aferição da disparidade deconsequências do silêncio das entidades compe-tentes em caso de obras particulares a realizar ejá realizadas à luz do princípio da igualdade, nãoaltera as conclusões já obtidas, uma vez que talprincípio, distinguindo-se embora do da propor-cionalidade, se resolve em dimensões (proibiçãodo arbítrio, proibição de discriminação e obriga-ção de diferenciação) que também não são pos-tas em causa, pelas razões já constantes da de-cisão recorrida, por tal diferenciação de regime(cfr. pareceres n.os 1/76 e 26/82 da ComissãoConstitucional, Pareceres da Comissão Consti-

tucional, vols. 1.º e 20.º, e acórdãos n.os 44/84,142/85 e 336/86, publicados no Diário da Repú-blica, II Série, de 11 de Julho de 1984 e 7 deSetembro, e I Série, de 24 de Dezembro de 1986,respectivamente).

Não havendo razões, também, para formularum juízo de inconstitucionalidade com outrosfundamentos (cfr. artigo 79.º-C da Lei n.º 28/82,de 15 de Novembro, na redacção da Lei n.º 85/89,de 7 de Setembro), há que concluir pela improce-dência do presente recurso.

III — Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostosnega-se provimento ao recurso, confirmando adecisão recorrida no que à questão de cons-titucionalidade diz respeito e condenando-se orecorrente em custas, fixando-se a taxa de justiçaem 15 UCs.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

Paulo Mota Pinto (Relator) — Bravo Serra —Guilherme da Fonseca — Maria FernandaPalma — Luís Nunes de Almeida.

Foi publicado no Diário da República, II Série, n.º 3, de 4 de Janeiro de 2001, pág. 136.

(G. R.)

Causas de nulidade da sentença — Esclarecimento ou reformada sentença — Processamento subsequente — Arguição denulidades — Acesso ao direito e aos tribunais

É inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a interpreta-ção dos artigos 668.º, n.º 1, alínea d), 669.º, n.º 1, alínea a), e 670.º, n.º 3, do Código deProcesso Civil, segundo a qual, apresentado o requerimento de aclaração do acórdão,não pode a mesma parte arguir a respectiva nulidade, em virtude de a apresentaçãodaquele requerimento permitir concluir que a parte concorda com a decisão.

TRIBUNAL CONSTITUCIONALAcórdão n.º 485/2000, de 22 de Novembro de 2000Processo n.º 18/2000 — 2.ª Secção

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59 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

ACORDAM na 2.ª Secção do Tribunal Cons-titucional:

I — Relatório

1.  Barclays Bank PLC instaurou, junto do10.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, acçãoexecutiva contra José Miguel Granadeiro e Fal-cão de Carvalho Cerqueira, para pagamento de32 794 121$00, com base numa livrança avalizadapelos executados.

O executado deduziu embargos, que foramjulgados improcedentes, por despacho saneador.

Dessa decisão recorreu o embargante, invo-cando vício de forma da livrança, por dela cons-tar a expressão «letra, aliás, livrança» e «pagará»em vez de «pagarei». O recurso foi julgado im-procedente por acórdão do Tribunal da Relaçãode Lisboa de 7 de Janeiro de 1997.

Já após o trânsito em julgado do acórdão de7 de Janeiro de 1997, José Miguel Granadeiro eFalcão de Carvalho Cerqueira requereu a rejeiçãoda execução. Tal requerimento foi indeferido pordespacho de 18 de Setembro de 1997, com fun-damento em caso julgado formado pelo acórdãode 7 de Janeiro de 1997.

Dessa decisão foi interposto recurso para oTribunal da Relação de Lisboa, invocando o re-corrente que o caso julgado apenas terá abran-gido a questão relativa à utilização da expressão«letra, aliás, livrança», continuando em aberto aquestão relativa ao uso da expressão «pagará».

Por acórdão de 25 de Junho de 1998, o Tribu-nal da Relação de Lisboa negou provimento aorecurso, em virtude da excepção de caso julgado.O recorrente foi ainda condenado por litigânciade má fé.

Do acórdão de 25 de Junho de 1998 foi inter-posto recurso para o Supremo Tribunal de Jus-tiça, que, por acórdão de 20 de Janeiro de 1999,negou provimento ao recurso.

2.  José Miguel Granadeiro e Falcão de Car-valho Cerqueira requereu a aclaração do acórdãode 20 de Janeiro de 1999, pedindo que fosseexplicitado o critério legal que permitiu concluirque os acórdãos do Tribunal da Relação haviamponderado e decidido, ainda que implicitamente,

a questão relativa às consequências jurídicas deno título exequendo ter sido mantida a expressão«pagará» em vez da expressão «pagarei». O re-querente pediu ainda que se explicitasse o crité-rio legal que fundamentou a condenação porlitigância de má fé.

O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdãode 16 de Março de 1999, considerando não haverqualquer obscuridade ou ambiguidade a aclarar,indeferiu a aclaração.

3.  José Miguel Granadeiro e Falcão de Car-valho Cerqueira arguiu a nulidade do acórdão de20 de Janeiro de 1999. Para tanto, sustentou queo Supremo Tribunal de Justiça conheceu de ques-tões que não podia conhecer, ao considerar que oacórdão da Relação de Lisboa de 7 de Janeiro de1997, não declarando a livrança ineficaz, apre-ciou também, ainda que implicitamente, o funda-mento relativo à utilização da expressão «pagará»em vez de «pagarei». Em consequência, concluiuo reclamante pela nulidade do acórdão de 20 deJaneiro de 1999, por excesso de pronúncia e ain-da por contradição entre os fundamentos e a de-cisão [alíneas d) e c) do n.º 1 do artigo 668.º doCódigo de Processo Civil].

O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdãode 18 de Maio de 1999, considerou que «quempede uma aclaração de um acórdão, na óptica dosartigos 667.º e 669.º, ambos do Código de Pro-cesso Civil — aplicáveis na lógica dos invoca-dos artigos 716.º, n.º 2, e 749.º — mostra queconcorda com a essência da decisão». Em con-sequência, concluiu pela impossibilidade da ar-guição de nulidade, indeferindo a pretensão dedu-zida.

4.  José Miguel Granadeiro e Falcão de Car-valho Cerqueira interpôs recurso de constitucio-nalidade do acórdão de 18 de Maio de 1999, aoabrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei doTribunal Constitucional.

Não tendo o recurso de constitucionalidadesido admitido, o recorrente reclamou da decisãode não admissão, ao abrigo dos artigos 76.º, n.º 4,e 77.º da Lei do Tribunal Constitucional, recla-mação que foi julgada procedente, pelo acórdãodo Tribunal Constitucional n.º 642/99, de 24 deNovembro.

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60 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

5.  Junto do Tribunal Constitucional, o recor-rente apresentou alegações que concluiu do se-guinte modo:

1.ª  — No caso em apreço o acórdão recor-rido, que recaiu sobre uma reclamação por nuli-dades, predeterminou-se por um critério erigidoa norma, nos termos do qual um prévio requeri-mento de aclaração de acórdão prejudica umaposterior reclamação por nulidades.

2.ª  — É esta norma que constitui o objectodo presente recurso de fiscalização concreta deconstitucionalidade.

3.ª  — Ao fim e ao cabo foi criada uma normaque varreu do ordenamento jurídico portuguêso preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 669.ºe no n.º 3 do artigo 670.º do Código de ProcessoCivil. Além disso,

4.ª  — Criou-se uma nova norma de preclusãoprocessual que, como óbvio se torna, contendecom o direito fundamental de acesso ao direito etutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da Cons-tituição da República Portuguesa).

5.ª  — A elaboração da questionada normaviolou, ainda, o princípio da legalidade, por-quanto os tribunais estão sujeitos à lei (artigo203.º da Constituição da República Portuguesa).

6.ª — Violou também a feitura da mesmanorma o princípio da separação dos poderes, in-vadindo a esfera das competências legislativasda Assembleia da República e do Governo [alí-nea e) do artigo 164.º, alínea q) do artigo 168.º,alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 201.º e n.º 5 doartigo 115.º, todos da Constituição da RepúblicaPortuguesa, na redacção anterior à ora vigente].

A recorrida não apresentou contra-alegações.

6. Corridos os vistos, cumpre decidir.

II — Fundamentação

7.  O objecto do presente recurso de constitu-cionalidade é constituído pelas normas dos arti-gos 668.º, n.º 1, alínea d), 669.º, n.º 1, alínea a), e670.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicá-veis, in casu, por força do disposto nos artigos716.º, n.º 1, 732.º e 749.º do mesmo Código.

É a seguinte a redacção daqueles preceitos:

«Artigo 668.º

Causas de nulidade da sentença

1 —  É nula a sentença:....................................................................d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se so-

bre questões que devesse apreciar ou co-nheça de questões de que não podia tomarconhecimento;

....................................................................

Artigo 669.º

Esclarecimento ou reforma da sentença

1 —  Pode qualquer das partes requerer notribunal que proferiu a sentença:

a) O esclarecimento de alguma obscuridadeou ambiguidade que ela contenha;

....................................................................

Artigo 670.º

Processamento subsequente

.......................................................................3 —  Se alguma das partes tiver requerido a

rectificação ou aclaração da sentença, o prazopara arguir nulidades ou pedir a reforma só co-meça a correr depois de notificada a decisão pro-ferida sobre esse requerimento.

.....................................................................»

O Supremo Tribunal de Justiça interpretoutais preceitos no sentido de a apresentação dorequerimento de aclaração do acórdão permitirconcluir que o requerente concorda com a deci-são, pelo que não pode este depois arguir a nuli-dade do mesmo acórdão.

O recorrente sustenta que tal dimensão nor-mativa dos preceitos indicados viola o dispostono artigo 20.º da Constituição, o princípio dalegalidade (artigo 203.º da Constituição) e o prin-cípio da separação de poderes, dado o juiz, aoelaborar a norma que subjaz à decisão recorrida,ter invadido a esfera da competência legislativada Assembleia da República Portuguesa e doGoverno [alínea e) do artigo 164.º, alínea q) doartigo 168.º, alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 201.ºe n.º 5 do artigo 115.º, todos da Constituição].

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61 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

Apreciar-se-á, primeiramente, a alegada vio-lação do artigo 20.º da Constituição.

8.  A aclaração da sentença visa, fundamen-talmente, o esclarecimento de alguma obscuri-dade ou ambiguidade da decisão [cfr. artigo 669.º,n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil].Trata-se, pois, e nesta dimensão, de um meioprocessual que possibilita a superação de dúvi-das relativas a eventuais imperfeições que se re-portam ao texto da sentença, mas que não aafectam enquanto acto jurídico.

A nulidade da sentença, por outro lado, jáconsubstancia um vício (substancial ou formal)da decisão, constituindo a sua arguição um meiode reagir contra a própria sentença defeituosa(cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil,2.ª ed., 1985, págs. 693 e segs., Fernando LusoSoares, Processo Civil de Declaração, 1985,págs. 845 e seguintes).

Verifica-se, assim, que a aclaração da sentençae a arguição de nulidades têm finalidades diver-sas e efeitos distintos.

Nos presentes autos está em causa a articula-ção dos dois mecanismos.

Em face do artigo 670.º, n.º 3, do Código deProcesso Civil, pode afirmar-se que, tendosido requerida a aclaração, a arguição de nulidadeterá lugar após a decisão daquele requerimento(cfr. Antunes Varela, ob. cit., pág. 694).

Porém, o Supremo Tribunal de Justiça, inter-pretando os preceitos impugnados de modo di-ferente, considerou que a apresentação do reque-rimento de aclaração significa que a parte con-corda com a decisão, não podendo, nessa me-dida, arguir a nulidade da sentença depois de de-cidida a sua aclaração. Fez, portanto, e implicita-mente, uma interpretação restritiva do artigo 670.º,n.º 3, do Código de Processo Civil, pois, se assimnão o tivesse feito, teria encontrado no teor detal preceito um obstáculo intransponível à solu-ção a que chegou.

Será tal dimensão normativa conforme à Cons-tituição?

9.  No presente recurso de fiscalização con-creta de constitucionalidade não cumpre, natu-ralmente, apreciar a correcção dos critérios deinterpretação da lei que o julgador utilizou nafixação do sentido dos preceitos infracons-

titucionais, nomeadamente na interpretação doartigo 670.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Também não cabe, por outro lado, avaliar arazoabilidade dos fundamentos invocados na acla-ração e na arguição de nulidades apresentadas,nem se tais mecanismos foram utilizados de modoadequado.

Tais questões, situando-se no plano infracons-titucional, estão evidentemente fora da fiscaliza-ção concreta da inconstitucionalidade normativaque compete ao Tribunal Constitucional, nostermos da Constituição.

Apenas compete, pois, ao Tribunal Consti-tucional apreciar a conformidade à Constituiçãoda dimensão normativa que subjaz à decisão re-corrida, segundo a qual a arguição de nulidadesda sentença não pode ter lugar depois de ter sidorequerida e decidida a sua aclaração.

O artigo 20.º da Constituição consagra, non.º 1, a garantia de acesso ao direito e aos tribu-nais para tutela dos interesses legalmente prote-gidos.

A concretização dessa garantia, nomeadamenteem matéria cível, é conferida ao legislador infra-constitucional, que dispõe de uma ampla mar-gem de decisão no que respeita ao âmbito dasespecíficas soluções a consagrar (cfr., neste sen-tido, e no que respeita ao direito ao recurso, en-tre outros, os acórdãos n.os 239/97 e 479/98 —Diário da República, II Série, de 15 de Maio de1997 e de 24 de Novembro de 1999, respectiva-mente).

Contudo, e no que se refere à questão deconstitucionalidade em apreciação, o legisladorterá sempre de respeitar a dimensão da garantiade acesso ao direito e aos tribunais que se traduzem assegurar às partes uma completa percepçãodo conteúdo das sentenças judiciais e em assegu-rar a possibilidade de reacção contra determina-dos vícios da decisão. O legislador terá, pois, deconsagrar na legislação processual mecanismosque viabilizem, de modo eficaz, a prossecuçãode tais finalidades.

No que respeita aos vícios e reforma da sen-tença, o legislador instituiu o quadro legal cons-tante dos artigos 666.º e seguintes do Código deProcesso Civil. Nesse regime, consagrou a pos-sibilidade de requerer a aclaração da sentença,assim como de arguir a sua nulidade. A arguiçãode nulidades constitui, verdadeiramente, o único

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62 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

meio processual de reacção contra determinadosvícios da decisão, consubstanciando, nessa me-dida, a aludida dimensão da garantia constitucio-nal de acesso ao direito e aos tribunais. Por outrolado, e em função do recorte legal dos respecti-vos mecanismos processuais, o legislador esta-tuiu que, tendo sido requerida a aclaração da sen-tença, o prazo da arguição de nulidades só come-ça a correr depois da notificação da decisão daaclaração (artigo 670.º, n.º 3, do Código de Pro-cesso Civil).

Ora, exprimindo o regime em vigor, nos seustraços essenciais, um modo de concretização dagarantia constitucional, não pode, nessa medida,ser por via interpretativa restringido ou trun-cado naqueles aspectos que materializam o exer-cício (no caso) do direito constitucionalmentegarantido. A limitação da utilização dos meiosprocessuais em causa (máxime, da arguição denulidades), quando a parte observa o condiciona-lismo legal (nomeadamente no que respeita a pra-zos), atentará, pois, contra o direito de acessoaos tribunais constitucionalmente consagrado, setal limitação não se fundar num outro valor ouprincípio com dignidade constitucional.

Nos presentes autos, o Supremo Tribunal deJustiça, no acórdão recorrido, considerou que aarguição de nulidades não podia ter lugar, umavez que tinha sido requerida a aclaração doacórdão. Entendeu, para esse efeito, e apenas,que a apresentação do requerimento de aclaraçãopermite concluir, inevitavelmente, que o recla-mante concorda com a sentença e que preclude apossibilidade de arguir a respectiva nulidade.

Tal conclusão impede a autonomização daaclaração face à arguição de nulidades enquantomeios processuais com finalidades distintas. Comefeito, e numa outra interpretação possível dasnormas que prevêem tais mecanismos, a aclara-ção do acórdão pode até constituir um momentopreparatório da arguição de nulidades (como acon-tece in casu), havendo a possibilidade de a parte

apenas poder formar fundadamente a sua deci-são de arguir nulidades após a decisão do reque-rimento de aclaração.

Verifica-se, assim, que a interpretação feitapelo Supremo Tribunal de Justiça das normasem causa limita, não justificadamente, o direitode acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º,n.º 1, da Constituição. Trata-se, na verdade, dainviabilização do recurso a um mecanismo pro-cessual com uma finalidade singular, e, por essavia, da denegação da única possibilidade legal dereacção contra determinados vícios da decisãojurisdicional.

10.  Alcançada esta conclusão, afigura-seinútil apreciar os demais argumentos de incons-titucionalidade invocados pelo recorrente.

III — Decisão

11.  Em face do exposto, decide-se julgarinconstitucional, por violação do artigo 20.º,n.º 1, da Constituição, a interpretação dos arti-gos 668.º, n.º 1, alínea d), 669.º, n.º 1, alínea a),e 670.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, se-gundo a qual, apresentado o requerimento de acla-ração do acórdão, não pode a mesma parte arguira respectiva nulidade, em virtude de a apresenta-ção daquele requerimento permitir concluir que aparte concorda com a decisão. Em consequência,concede-se provimento ao recurso de constitucio-nalidade, revogando-se a decisão recorrida, quedeverá ser reformulada de acordo com o presentejuízo de inconstitucionalidade.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

Maria Fernanda Palma (Relatora) — PauloMota Pinto — Bravo Serra — Guilherme daFonseca — Luís Nunes de Almeida.

Foi publicado no Diário da República, II Série, n.º 3, de 4 de Janeiro de 2001, pág. 138.

(G. R.)

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63 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

Arguição de nulidade — Legitimidade

Não pode conhecer-se do objecto do requerimento de arguição de nulidade, por arequerente (que não é nem recorrente nem recorrida) não ter legitimidade para a suaapresentação. Na realidade, uma vez que optou por não recorrer (podendo, embora,fazê-lo) para este Tribunal da decisão proferida, não pode agora pretender vir exercerdireitos processuais (no caso, arguir a nulidade da decisão proferida no âmbito dorecurso) cuja existência pressupõe a qualidade (que não tem) de parte no recurso.

TRIBUNAL CONSTITUCIONALAcórdão n.º 488/2000, de 22 de Novembro de 2000Processo n.º 72/2000 — 3.ª Secção

ACORDAM na 3.ª Secção do Tribunal Cons-titucional:

1. Nos presentes autos, em que é recorrente oMinistério Público e recorrido Cardoso & Borges,L.da, vem Maria Anabela Gordalina Vieira arguira nulidade do acórdão deste Tribunal de 17 deMaio de 2000 (fls. 552 a 558), em que tinha sidodecidido não conhecer do objecto do recurso in-terposto.

2. É, porém, manifesto que não pode conhe-cer-se do objecto do requerimento apresentado,porquanto a requerente (que não é nem recor-rente nem recorrida nos presentes autos de re-curso) não tem legitimidade para a sua apresen-tação. Na realidade, uma vez que optou por nãorecorrer (podendo, embora, fazê-lo) para este Tri-bunal da decisão proferida pelo Tribunal da Re-lação de Évora, não pode agora pretender virexercer direitos processuais (no caso, arguir a

nulidade da decisão proferida no âmbito do re-curso) cuja existência pressupõe a qualidade (quenão tem) de parte no recurso.

3. Em sentido semelhante decidiu recente-mente este Tribunal (e esta Secção) no seu acórdãon.º 239/99, que não tinha legitimidade para im-pugnar perante a conferência uma decisão sumá-ria quem, podendo ter recorrido para o TribunalConstitucional, optou por não o fazer.

4. Pelo exposto, decide-se não conhecer doobjecto do requerimento apresentado.

Custas pela requerente, fixando-se a taxa dejustiça em 10 UCs.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

José de Sousa e Brito (Relator) — MessiasBento — Alberto Tavares da Costa — Mariados Prazeres Pizarro Beleza — Luís Nunes deAlmeida.

Foi publicado no Diário da República, II Série, n.º 3, de 4 de Janeiro de 2001, pág. 139.

(G. R.)

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64 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

Conversão da multa não paga em prisão subsidiária — Sus-pensão da prisão subsidiária — Prova — Garantias de defesa —Princípio in dubio pro reo

A regra prevista no n.º 3 do artigo 49.º do Código Penal, enquanto faz depender asuspensão da execução da prisão subsidiária da demonstração pelo condenado de queo não pagamento da multa lhe não é imputável não contraria o n.º 1 do artigo 32.º daConstituição, onde se consagra a plenitude das garantias de defesa, nem o princípioin dubio pro reo.

TRIBUNAL CONSTITUCIONALAcórdão n.º 491/2000, de 22 de Novembro de 2000Processo n.º 159/2000 — 3.ª Secção

ACORDAM na 3.ª Secção do Tribunal Cons-titucional:

1. Por acórdão do Tribunal de Círculo dePombal de 30 de Outubro de 1997 (de fls. 318 eseguintes), Armindo Ferreira Gonçalves foi con-denado, como autor material de um crime de re-ceptação, punido pelo artigo 231.º do CódigoPenal com a pena de prisão até 5 anos ou commulta até 600 dias, na pena concreta de 150 diasde multa, à taxa diária de 5000$00.

O acórdão condenatório foi integralmente con-firmado pelo Supremo Tribunal de Justiça (poracórdão de fls. 367 e seguintes), na sequência derecurso interposto pelo arguido.

Perante a falta de pagamento da multa, o Tri-bunal de Círculo de Pombal notificou o ora re-corrente para se pronunciar sobre a conversãoem prisão da multa em que tinha sido condenado(cfr. o despacho de fls. 480 e 480 v.º).

Armindo Ferreira Gonçalves veio, em res-posta à notificação, afirmar a insusceptibilidadede conversão, nos seguintes termos:

«1.º — Os factos que levaram à condenaçãodo arguido ocorreram no âmbito da aplicação doanterior Código Penal, ou seja, antes da entradaem vigor do actual Código Penal revisto, que ocor-reu em 1 de Outubro de 1995.

2.º — Conforme se vê da douta sentença pro-ferida, o arguido Armindo Ferreira Gonçalves foicondenado na pena de 150 dias de multa à taxadiária de 5000$00,

3.º — Não sendo fixado na sentença qualquertempo de prisão em alternativa, conforme previao n.º 3 do artigo 46.º na anterior redacção.

4.º — O actual artigo 49.º do Código Penal épois inaplicável ao arguido já que a lei penal nãotem aplicação retroactiva salvo se lhe for maisfavorável.

5.º — Acresce que o não pagamento da multanão é imputável ao arguido porquanto este nãodispõe actualmente de meios ou recursos finan-ceiros próprios que lhe permitam efectuar o pa-gamento do valor elevado da multa.

6.º — Acresce que o n.º 3 do artigo 49.º doCódigo Penal, na sua actual redacção, ao exigirtambém para que o arguido não seja privado daliberdade a prova de um facto negativo, é in-constitucional por duas ordens de razões:

7.º — Em primeiro lugar, por violar o princí-pio constitucional da igualdade dos cidadãos pe-rante a lei (artigo 13.º da Constituição da Repú-blica Portuguesa).

8.º — Em segundo lugar, por violar o dispostono artigo 32.º do mesmo diploma por, ao exigir aprova de um facto negativo, não assegurar aoarguido todas as garantias de defesa já que a pro-va irrefutável de um facto negativo é de todo emtodo impossível, ficando pura e simplesmentena disponibilidade incontrolada do julgador quenão da sua livre convicção que terá de ser semprefundamentada.

É ainda inconstitucional por violar o dispostono artigo 29.º do mesmo diploma.»

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65 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

O juiz do Tribunal de Círculo de Pombal con-siderou, por um lado, que «o disposto nesse ar-tigo 49.º em nada agrava a situação dos arguidose é de aplicação imediata». Por outro lado, afas-tou a alegação de inconstitucionalidade, por vio-lação do princípio da igualdade, ou dos artigos29.º e 32.º da Lei Fundamental.

2. Do despacho do juiz do Tribunal de Cír-culo de Pombal que procedeu à conversão emprisão da pena de multa não paga recorreu o con-denado para o Tribunal da Relação de Coimbra(por requerimento de fls. 501 e seguintes), tendoconcluído, no que agora interessa, do seguintemodo:

«1 — Sendo o arguido condenado como autormaterial de um crime de receptação por factosque contra ele foram dados como provados e queteriam ocorrido na vigência do Código Penal de1982 na pena de 150 dias de multa e bem aindano pagamento solidário das indemnizações arbi-tradas, é-lhe inaplicável o artigo 49.º do actualCódigo Penal se a sentença não fixou desde logo,ao abrigo do n.º 3 do artigo 46.º do Código Penalna sua redacção anterior, qualquer pena de pri-são em alternativa por não ser de aplicação re-troactiva.

2 — O n.º 3 do artigo 49.º do actual CódigoPenal, ao exigir ao arguido, sob pena de privaçãoda liberdade, a prova de um facto negativo, ouseja, de que a razão do não pagamento lhe não éimputável equivale à consagração da prisão pordívidas ou à sua possibilidade violando designa-damente princípios fundamentais de direito pro-cessual penal que têm no nosso direito constitu-cional consagração inequívoca designadamente osprincípios do acusatório, do princípio in dubiopro reo e o princípio de que o processual penaldeverá assegurar todas as garantias de defesa.(Cfr. artigos 29.º e 32.º da Constituição da Repú-blica Portuguesa.)

3 — A interpretação e aplicação do artigo 49.ºdo Código Penal com o sentido adoptado na de-cisão recorrida é pois manifestamente inconsti-tucional, já que viola designadamente os artigos13.º, 29.º e 32.º da Constituição da RepúblicaPortuguesa. Padecendo,

[...]5 — Inconstitucionalidades que se suscitam.

6 — A douta decisão recorrida violou, como jávimos, de entre outras, as seguintes normas: arti-go 46.º, n.º 3, do Código Penal na sua redacçãoanterior, actual redacção do artigo 49.º do mesmodiploma e artigos 13.º, 29.º e 32.º da Constituiçãoda República Portuguesa.»

O Tribunal da Relação de Coimbra negou pro-vimento ao recurso (por acórdão de fls. 530 eseguintes), afirmando designadamente o seguinte:

«Efectivamente, o recorrente foi condenadoem 1997 por factos ocorridos em 1994, portantoantes da entrada em vigor do Código Penal re-visto, circunstância que obrigou o Tribunal a pon-derar na sentença entre a aplicação ao caso doCódigo Penal na redacção inicial ou na redacçãointroduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 deMarço, aliás em obediência ao estabelecido non.º 4 do artigo 2.º do Código Penal, em qualquerdas redacções, referindo a propósito que, apli-cando-se o Código Penal na redacção de 1982, oarguido seria condenado em 18 meses de prisão eem 45 dias de multa à taxa diária de 5000$00 eque, aplicando-se o Código Penal revisto, o ar-guido seria condenado na pena de 150 dias demulta à mesma taxa diária, pelo que optou, natu-ralmente, por ser o regime concretamente maisfavorável, por aplicar o Código Penal na redac-ção de 1995 (cfr. fls. 7 v.º).

Ora, tendo-se optado, como se impunha, poreste regime, não se deveria ter fixado na mesmasentença, como não se fixou, a pena subsidiária,como era necessário na vigência do n.º 3 do ar-tigo 46.º da versão originária do Código Penal,quanto à prisão alternativa, antes, e bem, a or-dem de cumprimento da prisão subsidiária foidada através do despacho ora impugnado, apósverificados os pressupostos enunciados no n.º 1do artigo 49.º do Código Penal revisto e depoisde ter sido dada oportunidade ao Ministério Pú-blico e ao recorrente para se pronunciarem sobretal questão, ou seja, depois de ter sido respei-tado o princípio do contraditório.

E dissemos que bem se procedeu dado que,embora a prisão subsidiária corresponda, apósmodificações levadas a cabo no Código Penal peloDecreto-Lei n.º 48/95, à então denominada pri-são em alternativa, verificou-se alteração não sódo respectivo nome, mas também das assinala-das ocasião e forma da sua fixação devido a uma

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melhor técnica legislativa, porquanto a prisão re-sultante da conversão da multa criminal não estápara com tal multa numa relação de alterna-tividade, mas de subsidiariedade, já que só deveser aplicada e, consequentemente, cumprida de-pois de esgotados todos os meios de cumpri-mento da multa (neste sentido, cfr., v. g., MaiaGonçalves, Código Penal Anotado, 12.ª ed., 1988,pág. 200).

Por outro lado, o regime pelo qual se opte temde ser aplicado em bloco, não sendo lícito aojulgador respigar de cada uma das versões doCódigo Penal aplicáveis disposições isoladas, deforma osmótica ou simbiótica (neste sentidocfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de Jus-tiça de 18 de Outubro de 1989, Boletim do Mi-nistério da Justiça, n.º 390, pág. 142).

Aliás, misturando ou combinando as disposi-ções legais mais favoráveis de cada uma das leisconcorrentes, o juiz estaria arvorado em legisla-dor, criando uma terceira lei dissonante, no seuhibridismo, de qualquer das leis em jogo (nestesentido cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Có-digo Penal, vol. 1.º, pág. 100, edição de 1995).

Carece, pois, claramente de razão o recor-rente quando defende que lhe é inaplicável o ar-tigo 49.º do actual Código Penal, se a sentençanão fixou desde logo, ao abrigo do n.º 3 do artigo46.º do Código Penal na sua redacção anterior,qualquer pena de prisão em alternativa.

Assim como carece de razão no que concerneàs inconstitucionalidades que suscita.

Com efeito, a lei criminal não foi aplicadaretroactivamente, uma vez que, como vimos, aprisão subsidiária corresponde à prisão em alter-nativa, prevista na lei à data do crime que o re-corrente praticou, pelo que não se verifica a vio-lação do artigo 29.º da Constituição da Repú-blica Portuguesa.

E o n.º 3 do artigo 49.º do actual Código Penalnão viola o princípio da igualdade consagrado noartigo 13.º da Constituição da República Portu-guesa, dado que a execução da prisão subsidiáriapode ser declarada extinta se o condenado pro-var que a razão do não pagamento da multa lhenão é imputável.

Exigência que de modo algum põe em causa asgarantias de processo criminal a que se reporta oartigo 32.º da Constituição da República Portu-guesa, porquanto o aforismo negativa non sunt

probanda não quer dizer que os factos negativosnão têm de ser provados, mas apenas que a sim-ples negação pelo demandado da alegação do au-tor não precisa de ser provada.

Por isso esta regra, quando entendida no sen-tido de que não carecem de prova os factos nega-tivos, não é de aceitar, pois, se o direito, que sefaz valer, tem como requisito um facto negativo,deve esse facto ser provado por quem exerce odireito, precisamente como os factos positivosque sejam requisitos dos direitos exercidos. Nãohá nenhum motivo para soluções diferentes nosdois casos, dado que os factos negativos não têmque se presumir pela mera circunstância de oserem (cfr. Vaz Serra, Provas, pág. 64).

In casu, ninguém melhor que o recorrentepoderia fazer a prova de que não tinha condiçõeseconómicas para efectuar o pagamento da multa,prova que nunca se propôs fazer, não obstanteter sido notificado para se pronunciar sobre aeventualidade de vir a cumprir prisão subsidiáriae depois de efectuadas as averiguações possíveissobre aquelas condições. E só se o recorrentetivesse tido essa preocupação de se propor pro-var que não tinha condições económicas para efec-tuar o pagamento da multa, a existirem dúvidasno espírito do julgador sobre tais condições, se-ria ocasião de se fazer apelo ao princípio indubio pro reo, princípio só invocável, como éóbvio, quando são colocadas dúvidas.»

3. Inconformado, o condenado recorreu parao Tribunal Constitucional (cfr. requerimento defls. 534), pretendendo a «apreciação em sedeconstitucional nos termos da alínea b) do n.º 1 doartigo 70.º da Lei n.º 28/82, da norma do n.º 3 doartigo 49.º do actual Código Penal, n.º 3 do artigo46.º do Código Penal na sua anterior redacção namedida em que, ao exigir ao recorrente sob penade privação da sua liberdade a prova de um factonegativo, ou seja, de que a razão de não paga-mento lhe não é imputável equivale à consagra-ção da prisão por dívidas ou à sua possibilidade,violando designadamente princípios fundamen-tais do direito processual penal, designadamenteos princípios do acusatório, in dubio pro reo e oprincípio de que o processo penal, deverá asse-gurar todas as garantias de defesa, violando emsuma, designadamente, os artigos 29.º e 32.º daConstituição da República Portuguesa».

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67 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

Chamado a alegar neste Tribunal, veio orecorrente afirmar o seguinte, nas conclusões dasalegações (de fls. 99 e seguintes):

«1 — Tendo todos os cidadãos a mesma dig-nidade social e sendo iguais perante a lei, a subs-tituição das penas de multa por prisão viola odisposto no n.º 2 do artigo 13.º da Constituiçãoda República Portuguesa. Já que

2 — Privilegia e beneficia quem tem podereconómico e financeiro para efectuar o paga-mento da multa e

3 — Prejudica quem não dispõe desses recur-sos que por falta de ‘dinheiro’ corre o risco dever substituída a multa em dias de prisão efec-tiva. Ou seja,

4 — Por falta de dinheiro não tem o recor-rente possibilidade de comprar a liberdade! ...

Acresce que,5 — Fazendo o n.º 3 do artigo 49.º do Código

Penal depender a suspensão da execução da pri-são subsidiária da prova a cargo do arguido, quelhe exige que prove que o não pagamento damulta lhe não é imputável é por demais óbvio,

6 — Que a prova de tal factualidade negativaé muito difícil se não impossível pelo que, im-pondo-se tal ónus ao arguido, põe-se em causaem processo penal princípios fundamentais aosquais foi conferida dignidade constitucional comosejam os princípios do acusatório, o do in dubiopro reo consagrados nos artigos 29.º e 32.º daConstituição da República Portuguesa que tam-bém se mostram violados.

7 — A douta decisão recorrida violou, assim,salvo o devido respeito pelos fundamentos in-vocados e por outros que VV. Ex.as se dignarãosuprir como pessoas que, além de guardiões daConstituição, não deixam de ser os últimosguardiões da liberdade, o disposto designada-mente nos artigos 13.º, 29.º e 32.º da Constitui-ção da República Portuguesa. Pelo que

8 — Deve declarar-se a inconstitucionalidadeda norma do n.º 3 do artigo 49.º do actual CódigoPenal, n.º 3 do artigo 46.º do Código Penal na suaredacção anterior, na medida em que permita asubstituição da multa por prisão quando aquelanão é paga voluntária ou coercivamente.»

4. O Ministério Público, nas suas contra-ale-gações (de fls. 104 e seguintes), veio começar por

afirmar que o objecto do recurso deveria consi-derar-se «reportado à redacção actual do n.º 3 doartigo 49.º do Código Penal (disposição efectiva-mente aplicada ao arguido), carecendo de sentidoa ‘invocação’ do n.º 3 do artigo 46.º do mesmoCódigo, na sua anterior redacção».

Relativamente ao mérito do recurso, o magis-trado do Ministério Público defendeu a respec-tiva improcedência. Antes de mais, por não estarem causa uma — «obviamente inconstitucio-nal» — «prisão por dívidas». E acrescentou: «Osprincípios constitucionais invocados pelo recor-rente não obstam, deste modo, a que uma penade multa, não paga pelo arguido condenado, pos-sa implicar a ‘conversão’ ou o ‘ressurgimento’ dapena de prisão que — no caso sub juditio —podia ser cominada como consequência da prá-tica de certo tipo legal de crime) o previsto noartigo 231.º, n.º 1, do Código Penal) ressalvandointeiramente a norma questionada no presenterecurso a relevância de um incumprimento nãodevido a causa imputável ao próprio arguido.»

Em segundo lugar, entende que «o sistemainstituído pelo legislador penal garante, aliás, deforma suficiente, os interesses legítimos do ar-guido que se defronte com uma efectiva dificul-dade económica no pagamento da multa, só comoúltima ratio admitindo a sua ‘conversão’ em pri-são efectiva», citando, para ilustrar tal afirma-ção, a relevância da situação económica do arguidona determinação do montante da multa (n.º 2 doartigo 47.º), a possibilidade de proceder ao paga-mento desta a prestações ou de diferir no tempoo momento do cumprimento (n.º 3 do artigo 47.º),a faculdade de requerer a substituição da multapor dias de trabalho (artigo 48.º do Código Pe-nal) e a possibilidade de suspensão do cumpri-mento da prisão sob a condição do cumprimentode deveres ou regras de conduta (n.º 3 do ar-tigo 49.º).

Por último, o Ministério Público defendeu que«não é desproporcionado e lesivo das garantiasde defesa a imposição ao arguido do ónus deconvencer o tribunal de que ocorre uma situaçãode real e efectiva impossibilidade de cumpri-mento da pena de multa, fundado na alegação deque tal traduziria a imposição do ónus de provarum ‘facto puramente negativo’: é que a prova detal ‘facto’ radicará, naturalmente, na demonstra-ção convincente pelo arguido de que ocorre uma

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situação de real carência económica que o im-possibilita de solver a multa que lhe foi cominada(mesmo com a concessão dos ‘benefícios’ con-sentidos pelo n.º 3 do artigo 47.º do Código Pe-nal)», e lembrou que o arguido, no caso dos autos,«não diligenciou minimamente proceder a tal de-monstração, limitando-se a invocar genericamenteque ‘não dispõe actualmente de meios ou recur-sos financeiros próprios que lhe permitam efec-tuar o pagamento do valor elevado da multa’,sem concretizar factos, nem oferecer quaisquerprovas — e impugnando a decisão proferida combase em razões que nada têm que ver com umpossível ‘excesso’ ou desproporção na interpre-tação do nível de exigência com que deve ser ava-liado o cumprimento satisfatório de tal ónusprobatório».

5. Cabe começar por delimitar o objecto dorecurso. Segundo consta do respectivo requeri-mento de interposição, o recorrente pretende aapreciação da constitucionalidade «da norma don.º 3 do artigo 49.º do actual Código Penal, n.º 3do artigo 46.º do Código Penal na sua anteriorredacção, na medida em que, ao exigir ao recor-rente sob pena de privação da liberdade a provade um facto negativo, ou seja, de que a razão denão pagamento lhe não é imputável equivale àconsagração da prisão por dívidas ou à sua pos-sibilidade [...]».

O n.º 3 do artigo 49.º do Código Penal, na redac-ção em vigor (resultante da reforma operada peloDecreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, e não alte-rada pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro), dispõe:

«Artigo 49.º

Conversão da multa paga em prisãosubsidiária

........................................................................3 — Se o condenado provar que a razão do

não pagamento da multa lhe não é imputável,pode a execução da prisão subsidiária ser sus-pensa, por um período de 1 a 3 anos, desde quea suspensão seja subordinada ao cumprimentode deveres ou regras de conduta de conteúdo nãoeconómico ou financeiro. Se os deveres ou regrasde conduta não forem cumpridos, executa-se aprisão subsidiária; se o forem, a pena é declaradaextinta.

.....................................................................»

Por seu turno, o n.º 3 do artigo 46.º, na redac-ção anterior ao Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 deMarço, tinha o seguinte teor:

«Artigo 46.º

Pena de multa.......................................................................3 — Quando o tribunal aplicar a pena de

multa será sempre fixada na sentença prisão emalternativa pelo tempo correspondente reduzidoa dois terços.

.....................................................................»

Do citado requerimento de interposição derecurso, bem como das alegações apresentadasneste Tribunal, resulta com clareza que a normaque o recorrente considera inconstitucional é aque impõe ao condenado, para evitar a execuçãoda prisão subsidiária, o ónus de «provar que arazão do não cumprimento da multa lhe não éimputável». O cumprimento de tal ónus impli-caria a difícil, se não impossível, prova de um«facto negativo», equivalendo o regime fixado auma verdadeira prisão por dívidas.

Nas alegações, porém, o recorrente, além demanter a invocação de inconstitucionalidade aque acaba de se fazer referência, sustentou aindaque «a substituição das penas de multa por pri-são viola o disposto no n.º 2 do artigo 13.º daConstituição da República Portuguesa», porque«privilegia e beneficia quem tem poder econó-mico e financeiro para efectuar o pagamento damulta». Todavia, e ainda que se possa entenderter sido colocada uma questão de constitucio-nalidade normativa, não pode o objecto do re-curso ser alargado nas alegações relativamente àdelimitação efectuada no requerimento de inter-posição do recurso. Assim, neste processo nãoestá propriamente em causa o regime de conver-são da multa não paga em prisão subsidiária, re-gulado designadamente nos n.os 1 e 2 do artigo49.º do Código Penal, normas cuja inconstitu-cionalidade o recorrente não invocou em devidotempo.

Por outro lado, não questionando o recor-rente verdadeiramente a constitucionalidade doregime previsto na anterior redacção do n.º 3 doartigo 46.º do Código Penal (apesar de lhe fazerreferência na parte em que delimita o objecto dorecurso), apenas pode o Tribunal Constitucional

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69 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

apreciar a constitucionalidade do n.º 3 do artigo49.º do Código Penal em vigor, na parte em quefaz depender a suspensão da execução da prisãosubsidiária da prova, pelo condenado, de que «arazão do não pagamento da multa lhe não é im-putável».

6. Na perspectiva do recorrente, o regimeprevisto no n.º 3 do artigo 49.º do Código Penalporia em causa os princípios do acusatório, indubio pro reo, e da plenitude das garantias dedefesa, violando designadamente os artigos 13.º,29.º e 32.º da Constituição.

Importa antes de mais afirmar que não se vis-lumbra em que é que a norma impugnada contra-ria a «estrutura acusatória do processo penal»constitucionalmente garantida (n.º 5 do artigo32.º), não tendo de resto o recorrente procedidoa qualquer explicitação que permitisse compreen-der o sentido desta imputação de inconstitucio-nalidade.

O mesmo pode dizer-se relativamente à alegadaviolação do artigo 29.º da Constituição, cujo sen-tido o recorrente também não indica em nenhumadas peças processuais produzidas.

Afirma também o recorrente, nas suas alega-ções, ter sido violado o princípio da igualdade(artigo 13.º). Todavia, na medida em que a lesãodo referido princípio é referida à «substituiçãodas penas de multa por prisão» (conclusão n.º 1das alegações apresentadas neste Tribunal), pre-vista em norma que não integra o objecto do pre-sente recurso, não tem também sentido a análisedessa alegada lesão.

Resulta do exposto que a norma do n.º 3 doartigo 49.º deverá ser confrontada com o princí-pio de que o processo penal assegura todas asgarantias de defesa (n.º 1 do artigo 32.º) e, emespecial, com o princípio in dubio pro reo.

7. Um dos aspectos da argumentação do re-corrente consiste na afirmação de que é «muitodifícil, se não impossível», a prova de que o nãopagamento da multa não é imputável ao conde-nado, dado tratar-se da demonstração de uma«factualidade negativa». Dessa excessiva dificul-dade ou mesmo impossibilidade resultaria a con-trariedade à plenitude das garantias de defesa,consagrada no n.º 1 do artigo 32.º

Salta à vista a falta de procedência desta im-putação. Na verdade, a demonstração de que onão pagamento da multa não é imputável ao con-denado pode naturalmente fazer-se por via daprova de factos positivos, de onde resulte essanão imputabilidade. Basta pensar, por exemplo,na apresentação de determinados documentos(declaração de rendimentos, recibo do subsídiode desemprego, atestado da Junta de Freguesia,declaração relativa a eventual internamento hos-pitalar, entre outros), dos quais se deduza nãoser imputável ao condenado o não pagamento damulta em que foi condenado.

Conclui-se, pois, que não é à prova de umfacto ou (factualidade) negativo que o n.º 3 doartigo 49.º do Código Penal faz apelo, mas antesà demonstração dos factos, que regra geral serãopositivos (insuficiência económica, doença, etc.),de onde se extrai a conclusão de que o não paga-mento se deveu a causa não imputável ao conde-nado.

Não se pode, pois, considerar, em função darazão apontada pelo recorrente, que a norma im-pugnada contrarie o n.º 1 do artigo 32.º, onde seconsagra a plenitude das garantias de defesa.

8. Importa ainda verificar se o regime emcausa no presente recurso de constitucionalidaderesiste incólume à invocação do princípio in dubiopro reo.

Este princípio, que se aceita decorrer da Cons-tituição em estreita ligação com o princípio dapresunção de inocência [cfr., quanto à relaçãoentre a presunção de inocência e o in dubio proreo, Helena Magalhães Bolina, «Razão de ser,significado e consequências do princípio da pre-sunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da Cons-tituição da República Portuguesa)», Boletim daFaculdade de Direito da Universidade de Coim-bra, vol. LXX, 1994, págs. 440-446], assenta naideia de que a impunidade do culpado é maistolerável do que a condenação de um inocente(Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Pe-nal, II, reimpressão da Universidade Católica,Lisboa, 1981, pág. 310). Noutros termos, podeafirmar-se que é «resultante de dois postuladosprocessuais — o postulado processual geral daexigência dirigida ao juiz de decidir sempre [...] eo postulado processual criminal que tem por in-condicionalmente inadmissível uma condenação

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penal em que se não tenha ‘convencido’ o réu dasua efectiva responsabilidade e culpabilidade»(Castanheira Neves, Sumários de Processo Cri-minal, policopiado, Coimbra, 1968, págs. 55-56).

Assim, decorre do in dubio pro reo que «to-dos os factos relevantes para a decisão (quer res-peitem ao facto criminoso, quer à pena) que,apesar de toda a prova recolhida, não possam sersubtraídos à ‘dúvida razoável’ do tribunal, tam-bém não possam considerar-se como ‘provados’»(Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I,reimpressão, Coimbra, 1984, pág. 213).

9. Como já se disse, não se integra no objectodeste processo a constitucionalidade da conver-são da multa não paga em prisão subsidiária, emsi mesma considerada, nem dos diferentes as-pectos da sua regulamentação actual.

Importa tão-só apurar se viola a Constituiçãoa regra prevista no n.º 3 do artigo 49.º, enquantofaz depender a suspensão da execução da prisãosubsidiária da demonstração pelo condenado deque o não pagamento da multa lhe não é impu-tável.

Cabe desde já dizer que não se verifica ainvocada inconstitucionalidade por lesão do prin-cípio in dubio pro reo. E isto pelas seguintesrazões.

Antes de mais, importa ter presente que, comorefere o magistrado do Ministério Público nascontra-alegações apresentadas neste Tribunal, oCódigo Penal prevê diversos mecanismos dirigi-dos a tornar a prisão subsidiária um instrumentode «última ratio», e nos quais a situação concretado arguido é objecto de ponderação relevante.Particular importância têm, aqui, a tomada emconsideração da condição económico-financeirae dos encargos pessoais do arguido na determi-nação do montante correspondente a cada dia demulta (n.º 2 do artigo 47.º), a possibilidade deautorização judicial para o cumprimento damulta em prestações, ou num prazo que não ex-ceda um ano, bem como a faculdade de o conde-nado requerer a substituição da multa por trabalhoa favor da comunidade.

Deve concluir-se, a partir do regime vigente,que a imposição de pena de multa tem comocondição necessária a possibilidade de o arguidoproceder ao seu cumprimento. Conclusão con-trária a esta, de resto, poderia revelar-se violadora

do princípio da igualdade, por levar a que apenasaqueles que não tivessem condições de pagar amulta viessem a ter de cumprir a prisão subsi-diária. Note-se, de resto, que o Tribunal Consti-tucional, através do seu acórdão n.º 149/88(Diário da República, II Série, 17 de Setembrode 1998, pág. 8570), embora reportando-se aoregime (diferente) decorrente da versão inicial doCódigo Penal de 1982, afirmou: «[...] se o juiz,no momento de ditar a pena, já apurou que o réunão tem, efectivamente, possibilidades de pagara multa, não faria sentido que tivesse sempre decondená-lo numa pena efectiva de multa [...]»(cfr. ainda Figueiredo Dias, Direito Penal Portu-guês — As Consequências Jurídicas do Crime,Lisboa, 1993, págs. 131-132 e 146).

Do exposto resulta que o âmbito de aplicaçãodo n.º 3 do artigo 49.º é, no fundo, circunscritoaos casos em que a falta de pagamento da multapelo condenado se deve a alguma alteraçãosuperveniente da situação que fora anterior-mente dada como provada pelo tribunal [nestesentido, relativamente ao regime da versão inicialdo Código Penal, ver Figueiredo Dias, ob. cit.,pág. 145, que se refere à «[...] deterioração for-tuita das condições económico-financeiras docondenado após a condenação, ligada a paraleladeterioração das condições pessoais para cum-prir os dias de trabalho sucedâneos, com os quaiso condenado tenha concordado»].

Tendo em conta que o objecto do recurso deconstitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1da Lei do Tribunal Constitucional é constituídopor normas jurídicas aplicadas na decisão recor-rida, e que tais normas são tomadas no sentidocom que foram aceites e aplicadas nessa decisão— isto é, normas interpretativamente mediadaspelo tribunal recorrido —, há que apurar oexacto alcance que foi dado ao n.º 3 do artigo 49.ºpelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.Ora, cabe destacar do acórdão o seguinte trecho,especialmente significativo para o problema emapreciação:

«In casu, ninguém melhor que o recorrentepoderia fazer a prova de que não tinha condiçõeseconómicas para efectuar o pagamento da multa,prova que nunca se propôs fazer, não obstanteter sido notificado para se pronunciar sobre aeventualidade de vir a cumprir prisão subsidiária

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71 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

e depois de efectuadas as averiguações possíveissobre aquelas condições. E só se o recorrentetivesse tido essa preocupação de se propor pro-var que não tinha condições económicas para efec-tuar o pagamento da multa, a existirem dúvidasno espírito do julgador sobre tais condições, se-ria ocasião de se fazer apelo ao princípio in dubiopro reo, princípio só invocável, como é óbvio,quando são colocadas dúvidas.»

Daqui resulta claramente que o tribunal a quo,salientando que não viola a Constituição a normaque prevê a necessidade de provar factos negati-vos, não interpretou a disposição em causa nosentido de impor um estrito ónus a cargo do con-denado de demonstrar que a causa do não paga-mento da multa lhe não é imputável. Pelo con-trário, o tribunal considerou existir antes um de-ver de cooperação do condenado, cujo cumpri-mento é pressuposto da própria intervenção doprincípio in dubio pro reo.

Que o acórdão recorrido não entendeu o n.º 3do artigo 49.º no sentido de prescrever um verda-deiro ónus a cargo do condenado resulta da afir-mação de que as dúvidas que viessem a existir noespírito do julgador haveriam de ser resolvidasnão contra o arguido (como aconteceria se talónus tivesse efectivo lugar) mas a seu favor. Poroutro lado, não deixou o tribunal de considerarque seria necessário que o condenado «tivesse apreocupação de se propor provar que não tinhacondições económicas para efectuar o paga-mento da multa». Foi por o condenado não se tersequer proposto fazer essa prova (e não por ter

omitido a respectiva demonstração cabal) da nãoimputabilidade do não pagamento da multa, quelhe foi negada a suspensão da execução da prisãosubsidiária.

Em sentido substancialmente não muito dife-rente, afirma o Ministério Público, nas suas ale-gações, que «no caso dos autos — o arguido nãodiligenciou minimamente proceder a tal demons-tração, limitando-se a invocar genericamente que‘não dispõe de meios ou recursos financeirospróprios que lhe permitam efectuar o paga-mento do valor elevado da multa’, sem concreti-zar factos, nem oferecer quaisquer provas — eimpugnando a decisão proferida por razões quenada têm que ver com um possível ‘excesso’ oudesproporção na interpretação do nível de exi-gência com que deve ser avaliado o cumprimentosatisfatório de tal ónus probatório».

Entendida nos termos apontados a norma queconstitui objecto deste processo, revela-se semconsistência a imputação de violação do princí-pio in dubio pro reo.

Assim, decide-se negar provimento ao re-curso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa dejustiça em 15 UCs.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Rela-tora) — José de Sousa e Brito — MessiasBento — Alberto Tavares da Costa — LuísNunes de Almeida.

Acórdão ainda inédito.(G. R.)

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72 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

Processo de execução fiscal — Execução por dívidas ao Institutode Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento —Tribunais tributários — Inconstitucionalidade orgânica

É inconstitucional a norma do artigo 30.º do Decreto-Lei n.º 387/88, de 25 deOutubro, na interpretação segundo a qual cabe aos tribunais tributários o processamentodos processos de execução fiscal nela previstos.

TRIBUNAL CONSTITUCIONALAcórdão n.º 503/2000, de 28 de Novembro de 2000Processo n.º 658/99 — 2.ª Secção

ACORDAM na 2.ª Secção do Tribunal Cons-titucional:

I — Relatório

1. Em 2 de Outubro de 1995, o IAPMEI —Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Em-presas e ao Investimento propôs, na Repartiçãode Finanças do 4.º Bairro Fiscal do Porto, acçãoexecutiva, segundo o processo das execuções fis-cais, contra o Banco Comercial de Macau, comfundamento em garantia bancária por este pres-tada à empresa Litomarco, beneficiária de umincentivo financeiro no âmbito do SIBR — Sis-tema de Incentivos de Base Regional, estabele-cido no Decreto-Lei n.º 483-B/88, de 28 deDezembro, e que, em virtude de não cumpri-mento do contrato de concessão de incentivos,se encontrava obrigada a repor os valores trans-feridos, acrescidos de juros.

Em 11 de Abril de 1996, o Banco Comercialde Macau deduziu oposição, ao abrigo do dis-posto no artigo 286.º do Código de Processo Tri-butário, a tal acção de execução, desde logo invo-cando a inconstitucionalidade do artigo 30.º doDecreto-Lei n.º 387/88, de 25 de Outubro (quecriou o Instituto de Apoio às Pequenas e MédiasEmpresas e ao Investimento).

O Tribunal Tributário de 1.ª Instância doPorto, por sentença de 14 de Junho de 1999,invocando o acórdão n.º 268/97, do TribunalConstitucional (publicado no Diário da Repú-blica, II Série, de 22 de Maio de 1997), conside-rou que tal norma, aprovada no exercício decompetências próprias do Governo, violava os

termos do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Cons-tituição, porquanto a partir da sua entrada emvigor «os processos para cobrança coerciva dasdívidas ao IAPMEI passaram a ser da compe-tência material dos tribunais tributários» e «é daexclusiva competência da Assembleia da Repú-blica, salvo autorização ao Governo, legislar so-bre a organização e a competência dos tribunais»,considerando-se, consequentemente, incompe-tente em razão da matéria e absolvendo o opo-nente da instância.

2. Desta decisão trouxe o Ministério Públicorecurso para este Tribunal, em cumprimento dodisposto no n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82,de 15 de Novembro, tendo concluído assim asalegações aqui produzidas:

«1.º — São matérias perfeitamente diferen-ciadas as que se reportam à determinação do âm-bito do processo de execução fiscal e à delimitaçãoda competência material dos tribunais tributá-rios, só esta última estando incluída na reservade competência legislativa da Assembleia da Re-pública — e sendo, pois, lícito que, mesmo emdiploma não credenciado por autorização parla-mentar, se possa determinar a aplicação do re-gime procedimental da execução fiscal à cobrançade certos créditos de que sejam titulares entida-des públicas, mantendo-se o processo no âmbitoda competência dos tribunais comuns.

2.º — São organicamente inconstitucionais asnormas que — constando de diplomas editadospelo Governo sem autorização parlamentar —afectem, em termos inovatórios e de forma di-

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73 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

recta e autónoma, o núcleo de competência ma-terial dos tribunais tributários (face aos tribunaiscomuns) tal como está definido no quadrolegislativo na altura em vigor.

3.º — O preenchimento e concretização da«cláusula geral» constante do artigo 37.º, alínea c),do Código de Processo Tributário, segundo a qualcompete aos serviços de justiça fiscal a tramitaçãodas execuções que respeitem a créditos equipa-rados aos do Estado — e que é possível cobraratravés do processo de execução fiscal, cujo âm-bito é definido pelo artigo 144.º do mesmo Có-digo — pressupõe, para além da existência depreceito legal expresso, prescrevendo tal equi-paração, que esta se possa considerar material-mente fundada, atenta a natureza do crédito emcausa.

4.º — Não podem equiparar-se aos créditosdo Estado, referidos no artigo 114.º do Código deProcesso Tributário, quaisquer relações creditó-rias, integralmente regidas pelo direito privado,de que sejam titulares institutos públicos perso-nalizados.

5.º — O preenchimento pelo legislador da«norma em branco» que consta do artigo 62.º,n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Admi-nistrativos e Fiscais [e que actualmente integra aalínea o) do n.º 1 do mesmo preceito], incluindona competência dos tribunais tributários a co-brança coerciva de dívidas a pessoas colectivaspúblicas, diversas do Estado, pressupõe que olegislador que prescreve tal regime, ampliando onúcleo da competência em razão da matéria dostribunais tributários, disponha da indispensávelcredencial parlamentar, sob pena de inconstitucio-nalidade orgânica.

6.º — É organicamente inconstitucional a in-terpretação normativa do artigo 30.º, n.º 1, doDecreto-Lei n.º 387/88, de 25 de Outubro, que setraduza em inferir da ampliação do regime pro-cedimental da execução fiscal à cobrança de cré-ditos do IAPMEI a necessária competência dostribunais tributários, independentemente da na-tureza de tais créditos e da sua integral submis-são a um regime de direito privado, por força dodisposto no artigo 2.º, n.º 2, do mesmo diplomalegal.

7.º — Termos em que deverá confirmar-se ojuízo de inconstitucionalidade orgânica constan-te da decisão recorrida.»

Não tendo sido apresentadas alegações porparte do recorrido, cumpre agora apreciar e de-cidir.

II — Fundamentos

3. É a seguinte a redacção da norma do ar-tigo 30.º (com a epígrafe «Execução fiscal dasdívidas») do Decreto-Lei n.º 387/88, de 25 deOutubro:

«1 — Os créditos devidos ao Instituto deApoio às Pequenas e Médias Empresas e ao In-vestimento ficam sujeitos ao regime de execuçãofiscal.

2 — Para a cobrança coerciva dos créditosreferidos no número anterior, constitui título exe-cutivo a certidão de dívida emitida pelo IAPMEI,acompanhada de cópia dos contratos ou outrosdocumentos a ele referentes.»

Ora, como notou o Ex.mo Procurador-GeralAdjunto em funções neste Tribunal, «o objectodo presente recurso não será propriamente anorma desaplicada na decisão recorrida — que selimita a determinar, na sua literalidade, que a co-brança coerciva dos créditos devidos ao IAPMEIfica sujeita ao regime processual da execução fis-cal, sem se pronunciar minimamente sobre qual éo tribunal competente para tal execução — mas ainterpretação normativa de tal preceito que setraduz em inferir da forma de processo aplicávelqual o tribunal para ele competente — ligando,deste modo, a aplicação do regime da execuçãofiscal à competência dos tribunais tributários».

Actualmente, vigorando o Código de Procedi-mento e de Processo Tributário que prevê que aexecução fiscal possa, em certas circunstâncias,decorrer perante os «tribunais comuns» — ca-bendo então a estes tribunais o integral conheci-mento dos incidentes, embargos, oposição,graduação e verificação de créditos e reclamaçõesdos actos materialmente administrativos prati-cados pelos órgãos da execução fiscal (artigos149.º e 151.º, n.º 2) —, poderia não se ter talinterpretação normativa como necessária.

À data dos factos vigorava, porém, o Códigode Processo Tributário, aprovado pelo Decreto--Lei n.º 154/91, de 23 de Abril, que previa quefossem cobradas mediante processo de execuçãofiscal dívidas ao Estado ou a quaisquer outros

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74 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

serviços ou institutos públicos «equiparadas porlei aos créditos do Estado» [alínea b) do n.º 2 doartigo 233.º] e que estabelecia a competência dotribunal tributário de 1.ª instância da área ondecorresse a execução para decidir os «incidentes»ou «fases processuais» da execução, designa-damente a oposição do executado (n.º 2 do ar-tigo 237.º).

Acresce que, de toda a forma, foi esta inter-pretação, que infere da forma de processo deexecução fiscal a competência dos tribunais tri-butários para a cobrança coerciva dos créditosdevidos ao IAPMEI, aquela cuja aplicação foirecusada, com fundamento em inconstituciona-lidade, na decisão recorrida. E foi-o, note-se, peloTribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto,para onde o processo foi remetido em aplicaçãodaquela norma.

Assim, muito embora se pudesse sustentarque a interpretação normativa tida por inconstitu-cional não coincide com a literalidade da norma— não interessando curar da questão de saber sepadeceria de inconstitucionalidade enquanto, naspalavras do Ministério Público, «estabelece umverdadeiro processo executivo especial para acobrança (nos tribunais comuns) de dívidas acertas pessoas colectivas públicas, delineando asua tramitação segundo o modelo da execuçãofiscal, prosseguindo os objectivos de celeridadee simplicidade normalmente associados àquelaforma de processo» —, não há dúvida de queà norma impugnada foi recusada aplicação noexacto sentido que é tido por inconstitucional,preenchendo-se o requisito para a sua aprecia-ção sub specie constitutionis por este Tribunal,ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º daLei n.º 28/82, de 15 de Novembro.

4. A questão está, portanto, em confirmar ouinfirmar o juízo de inconstitucionalidade que le-vou à recusa de aplicação de tal norma.

Como se escreveu no citado acórdão n.º 268/97 (publicado no Diário da República, II Série,de 22 de Maio de 1997), a propósito de taxascobradas pelos tribunais judiciais que passa-ram a sê-lo pelos tribunais administrativos:

«[...] a norma sub iudicio [...] transferiu paraos tribunais fiscais uma competência que, então,era dos tribunais judiciais.

[...]Tribunais fiscais e tribunais judiciais perten-

cem [...] a duas diferentes ordens judiciais: osprimeiros, à ordem dos tribunais administrati-vos e fiscais [...]; os segundos, à ordem dos tri-bunais judiciais [...].

[...]O Governo tem [...] de estar munido de auto-

rização legislativa para editar normas que alte-rem a distribuição de competências entre tri-bunais pertencentes a ordens judiciais diferen-tes, uma vez que só desse modo ele pode legislarsobre matérias da competência legislativa parla-mentar delegável.

É que, seja qual for o alcance a atribuir à reser-va legislativa, no ponto em que ela tem por ob-jecto a definição da ‘competência dos tribunais’,há-de incluir-se aí, sem dúvida, a definição dequais as matérias que são da competência dostribunais judiciais e quais as que o são da dostribunais fiscais [cfr., sobre esta questão, entreoutros, os acórdãos n.os 36/87, 356/89, 72/90 e271/92 (publicados nos Acórdãos do TribunalConstitucional, vols. 9.º, 13.º, tomo I, 15.º e 22.º,respectivamente págs. 243 e segs., 443 e segs.,67 e segs. e 813 e segs.) e o acórdão n.º 172/96,ainda por publicar].»

Neste acórdão n.º 172/96 (entretanto já publi-cado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional,vol. 33.º, págs. 361-371), julgou-se «inconstitu-cional a norma constante da alínea b) do n.º 2 doartigo 233.º Código de Processo Tributário, apro-vado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril[...] com o sentido de que ela alterou a competên-cia dos tribunais tributários definida no artigo61.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 48 953,de 5 de Abril de 1969, na redacção do Decreto--Lei n.º 693/70, de 31 de Dezembro, e no artigo62.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos TribunaisAdministrativos e Fiscais, aprovado pelo De-creto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, por violaçãodo artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição».

No presente caso, a interpretação tida comoconstitucionalmente desconforme na decisão re-corrida, e que se entendeu decorrer da normaimpugnada [por ser ela que equiparava o trata-mento concedido às dívidas ao IAPMEI ao queera concedido às dívidas ao Estado, preenchendoa hipótese normativa da alínea b) do n.º 2 doartigo 233.º do Código de Processo Tributário,

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75 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

que só indirectamente foi convocada — e nemsequer referida na decisão recorrida —, e nãointegra o objecto do recurso], conduz a modifi-car a competência em razão da matéria para con-duzir as acções de execução em que o exequentefosse o IAPMEI, subtraindo-as aos tribunaiscomuns e atribuindo-as aos tribunais fiscais.

Ora, tratando-se de atribuir aos tribunais tri-butários competências para decidir acções exe-cutivas em que o exequente, sendo embora uminstituto de direito público (artigo 1.º, n.º 1, doDecreto-Lei n.º 387/88), se rege pelo direito pri-vado (artigo 2.º, n.º 2, do referido Decreto-Lein.º 387/88) — mais a mais onde o que está emcausa é a execução de uma garantia bancária e,portanto, relações de direito privado entre oIAPMEI (como beneficiário) e uma entidade pri-vada que, no âmbito da sua liberdade e autono-mia contratual, se constituiu garante de certoscompromissos assumidos pelo garantido peran-te o beneficiário, e à margem destes —, poderiaadmitir-se que o Governo não teria invadido aárea de competência reservada da Assembleia daRepública em matéria de organização e compe-tência dos tribunais tributários se não alterassea prévia distribuição de competências entre umae outra ordem de tribunais (como se decidiu,designadamente, nos acórdãos deste Tribunaln.os 114/2000, ainda inédito, 468/98, publicadono Boletim do Ministério da Justiça, n.º 482,págs. 55 e segs., 500/97, publicado no Diário daRepública, II Série, de 12 de Janeiro de 1998, e271/92, publicado no Diário da República, II Sé-rie, de 23 de Novembro de 1992), ou se tal alte-ração de competências se revelasse um efeitoreflexo necessário da adopção de uma certaforma procedimental (como se decidiu no acórdãon.º 404/87, publicado no Diário da República,II Série, de 21 de Dezembro de 1987 — cfr. tam-bém o já citado acórdão n.º 172/96 e o acórdãon.º 329/89, publicado no Diário da República,II Série, de 22 de Junho de 1989).

Porém, no caso sub iudicio não existe nenhu-ma norma anterior que possa retirar cariz ino-vador à norma ora sob apreciação: no Decreto-Lein.º 51/75, de 7 de Fevereiro, que criou o Institutode Apoio às Pequenas e Médias Empresas In-dustriais, que deu lugar ao Instituto de Apoio àsPequenas e Médias Empresas e ao Investimento(para o qual foram transferidos todos os direitos

e obrigações do primeiro), não havia normaalguma que estabelecesse a competência para oefeito de uma específica ordem de tribunais. Apli-cavam-se, pois, as regras gerais de competência.Ora, segundo estas — e, desde logo, nos termosdo n.º 3 do artigo 212.º e do n.º 1 do artigo 211.ºda Constituição —, «compete aos tribunaisadministrativos e fiscais o julgamento das acçõese recursos contenciosos que tenham por objectodirimir os litígios emergentes das relações jurí-dicas administrativas e fiscais», cabendo aos tri-bunais judiciais exercer a «jurisdição em todas asáreas não atribuídas a outras ordens judiciais»,pelo que uma norma que atribuísse — comoatribui a norma do artigo 30.º do Decreto-Lein.º 387/88, na interpretação questionada pelooponente e cuja aplicação foi recusada pelo tri-bunal a quo — aos tribunais tributários com-petência para proceder à «execução fiscal» dedívidas, com natureza diversa, sujeitas à aplica-ção do direito privado, teria necessariamentecaracterísticas inovadoras.

Além disso, não podia ter-se como alterada aorganização e competência dos tribunais comunspelo simples facto de lhes caberem processosexecutivos que seguissem os trâmites da execuçãofiscal, pelo menos até à entrada em vigor dodisposto no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lein.º 241/93, de 8 de Julho, que veio estabelecerque «o processo de execução fiscal passa a apli-car-se exclusivamente à cobrança coerciva dasdívidas ao Estado e a outras pessoas de direitopúblico».

Do preâmbulo do diploma infere-se que oobjectivo do legislador era não só restringir oacesso à jurisdição fiscal, mas também, aparen-temente, o acesso ao processo de execução fiscalque ficaria liberto «para a função para que foiconcebido, que é a cobrança coerciva das receitasdo Estado e outras pessoas de direito público noâmbito das relações administrativas e fiscais»,excluindo-se «do processo de execução fiscal aexecução de dívidas a entidades que não integrema Administração Pública e actuem no âmbito dodireito privado» (itálicos aditados). Qualquer quefosse o entendimento posterior a este diploma,facto é que, anteriormente a ele, «por vezes, acobrança coerciva de certas dívidas, emborafosse da competência dos tribunais comuns, ti-nha de observar o processo de execução fiscal»

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(Alfredo José de Sousa/José da Silva Paixão,Código de Processo Tributário Comentado eAnotado, 3.ª ed., Coimbra, 1997, pág. 479, ano-tação 9 ao artigo 233.º). E, portanto, podia admi-tir-se que o legislador do Decreto-Lei n.º 387/88tivesse, dentro das suas competências próprias,escolhido uma forma de processo específica paraa cobrança coerciva dos créditos do IAPMEI seminterferir na distribuição de competências dostribunais. Não é essa, porém, a interpretação queestá em causa nos presentes autos: de tal normafez-se decorrer a competência dos tribunais tri-butários e, perante a oposição do executado quesuscitou a inconstitucionalidade de tal enten-dimento, o Tribunal Tributário de 1.ª Instânciajulgou-se incompetente.

O que demonstra que a interpretação danorma podia ser outra, constitucionalmente com-patível, e que, et pour cause, a fixação da formaprocessual não implicava, ao contrário do queocorria na jurisprudência supracitada (acórdãosn.os 404/87, 329/82 e 172/96), uma alteração nacompetência dos tribunais que se possa dizerdecorrer necessária e reflexamente da fixação daforma processual.

Assim, como diz o Ministério Público nassuas alegações:

«Não é [...] possível — sob pena de clarainconstitucionalidade orgânica — que um di-ploma editado pelo Governo, no exercício da suacompetência legislativa própria, ‘desloque’ pro-cessos, até então cometidos aos tribunais judi-ciais, para o âmbito da competência dos tribunaisadministrativos e fiscais, ou vice-versa.

[...]A inconstitucionalidade orgânica, verificada

pela decisão recorrida, não radica, deste modo[...] em se mandar seguir o regime da execuçãofiscal para realizar a cobrança coerciva de dívidasao IAPMEI, mas em se pretender inferir neces-sariamente de tal forma procedimental qual o tri-bunal materialmente competente para o pro-cessamento de tais execuções.»

5. A esta conclusão não obsta a existência deuma «norma em branco», como o era a da alí-nea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Estatuto dosTribunais Administrativos e Fiscais [alínea o) do

mesmo número na redacção do Decreto-Lei n.º229/96, de 29 de Novembro], que atribui compe-tência aos tribunais tributários de 1.ª instânciapara conhecer da «cobrança coerciva de dívidas apessoas colectivas públicas quando a lei o pre-veja [...]», norma essa emanada ao abrigo de au-torização legislativa e não revogada pela entradaem vigor da alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º doCódigo de Processo Tributário (ver o acórdãon.º 172/96, já citado).

E não obsta porque a norma do artigo 30.º doDecreto-Lei n.º 387/88, na interpretação emcausa, previa uma autónoma alteração da com-petência dos tribunais (comuns e tributários)— quer resultasse implicitamente formulada,como no caso, quer fosse explicitamente consa-grada — no caso específico das dívidas aoIAPMEI, que só a intervenção da Assembleia daRepública (directamente, através de lei, ou indi-rectamente, mediante autorização legislativa) tor-naria legítima (ver, neste sentido, o citado acórdãon.º 268/97, quanto a este ponto não contraditadopelos acórdãos n.os 331/92, 371/94 — publica-dos no Diário da República, II Série, respectiva-mente de 14 de Novembro de 1992 e 3 de Se-tembro de 1994 —, 500/97, já citado, e 157/98,inédito).

Acompanhando novamente o Ministério Pú-blico nas suas alegações:

«O preenchimento — em termos inovató-rios — da verdadeira ‘norma em branco’ cons-tante do citado artigo 62.º, n.º 1, alínea c), doEstatuto dos Tribunais Administrativos e Fis-cais pressupõe que o legislador disponha da in-dispensável credencial parlamentar.

[...] não estamos aqui perante um simples con-ceito indeterminado ou cláusula geral, a densificarou concretizar por outras normas de desenvolvi-mento, mas perante uma verdadeira ‘autoriza-ção em branco’, que não pode ser exercida pelolegislador, de forma discricionária, sem que dis-ponha de autorização legislativa para tal.

Não se trata, deste modo, de admitir que daregulação (legítima) de certas medidas possamprovir efeitos indirectos ou reflexos no tema dacompetência dos tribunais — mas de realizar opreenchimento de uma ‘autorização em branco’para incluir a cobrança de quaisquer débitos aentidades públicas (directamente) no âmbito dacompetência dos tribunais tributários.»

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77 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

6. Aliás, logo se notou também a semelhançaessencial entre esta questão e a que, a propósitoda competência do Ministério Público, fora de-cidida pelo acórdão n.º 678/95 (publicado noDiário da República, I Série-A, de 5 de Janeirode 1996). Tal aresto remetia para o acórdãon.º 329/89 (publicado no Diário da República,II Série, de 22 de Junho de 1989), também sobrea mesma questão, mas onde se escrevia, a propó-sito do já citado acórdão n.º 404/87: «tal reservaestava em causa, então, na parte respeitante à‘competência dos tribunais’, mas as situaçõessão perfeitamente paralelas». E ainda, citando--se este último aresto a propósito do critério emsede de delimitação da reserva da Assembleia daRepública quanto à competência (dos tribunais edo Ministério Público):

«Ora, qualquer que seja o nível ou grau dedefinição da competência dos tribunais reserva-do à Assembleia da República, seguramente quenele não entram as modificações da competênciajudiciária a que deva atribuir-se simples carácterprocessual.»

Tendo-se já estabelecido que não se trata, nopresente caso, de uma mera definição da formaprocessual, e tendo-se igualmente concluído quea alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Estatuto dosTribunais Administrativos e Fiscais não consti-

tui credencial (parlamentarmente autorizada,muito embora) para a alteração da competênciados tribunais, em consonância com a anteriorjurisprudência deste Tribunal, resulta clara ainconstitucionalidade da interpretação normativaa que o tribunal a quo recusou aplicação.

III — Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos ex-postos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Julgar inconstitucional a norma do artigo30.º do Decreto-Lei n.º 387/88, de 25 deOutubro, na interpretação segundo a qualcabe aos tribunais tributários o proces-samento dos processos de execução fis-cal nela previstos;

b) Em consequência, negar provimento aorecurso, confirmando a decisão recorridano que diz respeito à questão de constitu-cionalidade.

Lisboa, 28 de Novembro de 2000.

Paulo Mota Pinto (Relator) — Bravo Serra —Guilherme da Fonseca — Maria FernandaPalma — Luís Nunes de Almeida.

Foi publicado no Diário da República, II Série, n.º 4, de 5 de Janeiro de 2001, pág. 190.

(G. R.)

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78 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

Tabela de Taxas da Câmara Municipal de Sintra — Taxa incidentesobre instalações abastecedoras de combustíveis líquidosinteiramente situadas em terrenos privados — Imposto — Taxa

É inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 42.º do Edital camarário n.º 230/89,de 6 de Novembro, que aprovou a Tabela de Taxas da Câmara Municipal de Sintra, porviolação do artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa(versão da Lei n.º 1/89, de 8 de Julho).

TRIBUNAL CONSTITUCIONALAcórdão n.º 515/2000, de 29 de Novembro de 2000Processo n.º 46/2000 — 1.ª Secção

ACORDAM no Tribunal Constitucional:

I — Relatório

1. José Manuel Patrão dos Santos veio im-pugnar judicialmente a liquidação da taxa relativaà instalação abastecedora de combustíveis líqui-dos, ar e água que a Câmara Municipal de Sintra,invocando o Regulamento de Taxas em vigor parao ano de 1994 e ao abrigo do seu artigo 42.º, n.º 5,entende ser devida a título de taxa de ocupaçãoda via pública, pela existência de uma instalaçãoabastecedora de carburantes que, no entender doimpugnante, está «inteiramente em propriedadeparticular, com abastecimento no interior da pro-priedade».

A Câmara de Sintra contestou a impugnaçãodeduzida, tendo suscitado a questão da incom-petência do tribunal para apreciar a questão.

O Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lis-boa, por decisão de 16 de Junho de 1997, depoisde considerar improcedente a excepção deduzida,julgou a impugnação procedente e anulou a liqui-dação efectuada.

2. A Câmara Municipal de Sintra, não se con-formando com tal decisão, interpôs recurso parao Supremo Tribunal Administrativo, defenden-do que a taxa em questão tem plena cobertura ouna alínea c), ou na alínea o), do artigo 11.º da Lein.º 1/87, de 6 de Janeiro — Lei de FinançasLocais — e que o facto gerador da referida taxa éa renovação da licença de funcionamento do pos-

to de abastecimento em causa, considerando ve-rificados todos os condicionalismos que permi-tem qualificar a quantia exigida como uma taxaverdadeira e própria, pelo que devia ser revogadaa decisão da 1.ª instância.

O recorrido José Manuel Patrão dos Santosnas suas alegações defendeu o entendimento deque, no caso em apreço, não se trata de uma taxamas antes de um verdadeiro imposto, uma vezque se não verificam os necessários requisitospara qualificar o pagamento exigido como taxa,pelo que além de ilegal «a exigência da quantia emcausa ofende ainda o disposto no artigo 168.º,n.º 1, alínea i), da Constituição da República Por-tuguesa».

O Supremo Tribunal Administrativo, poracórdão de 24 de Novembro de 1999, decidiunegar provimento ao recurso, confirmando a de-cisão recorrida.

Para assim concluir, o Supremo Tribunal Ad-ministrativo, com fundamento na jurisprudênciado Tribunal Constitucional, entendeu que «so-frendo o artigo 42.º, n.º 5, da Tabela de Taxasaprovada pela Assembleia Municipal de Sintraem 20 de Outubro de 1989, em que se fundou aliquidação impugnada, de inconstitucionalidadeorgânica, é ilegal a liquidação efectuada à suasombra».

Face a esta decisão, o representante de Mi-nistério Público junto do Supremo Tribunal Ad-ministrativo veio interpor recurso obrigatório deconstitucionalidade, pretendendo que o Tribu-nal Constitucional aprecie se a norma do artigo42.º , n.º 5, da Tabela de Taxas da Câmara Muni-cipal de Sintra, publicada no Edital n.º 230/89,

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79 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

afronta a Constituição por violação do artigo 168.º,n.º 1, alínea i) (versão de 1989).

3. Foram produzidas as pertinentes alega-ções, tendo o Ministério Público concluído asque apresentou pela forma seguinte:

«1.º — Padece de inconstitucionalidade orgâ-nica e formal, por violação dos princípios consa-grados na Constituição fiscal, a norma regu-lamentar que autoriza a Câmara Municipal deSintra a liquidar taxa directamente incidente so-bre instalações abastecedoras de combustíveislíquidos, inteiramente situadas e abastecidas emterrenos privados, já que o montante pecuniáriodevido não corresponde a qualquer utilidade oucontraprestação facultada pela autarquia.

2.º — Na verdade, não é facultado ao parti-cular que explora na sua propriedade o referidoposto de combustíveis a utilização de qualquerbem colectivo ou semipúblico e não sendo a refe-rida taxa configurável como uma contraprestaçãode quaisquer despesas da Câmara inerentes àsdiligências que devam preceder a renovação dalicença de exploração.

3.º — Termos em que deverá confirmar-se ojuízo de inconstitucionalidade constante da deci-são recorrida.»

Pelo seu lado, José Manuel Patrão dos San-tos, ora recorrido, também alegou, formulandouma única conclusão, pela qual «adere sem reser-vas à posição manifestada pelo digno procura-dor-geral adjunto, e conclui nos mesmos termos».

Corridos que foram os vistos legais, cumpreapreciar e decidir.

II — Fundamentos

4. Nos presentes autos foi recusada a aplica-ção da norma do artigo 42.º , n.º 5, da Tabela deTaxas aprovada pela Assembleia Municipal deSintra em 20 de Outubro de 1989 por violaçãodo artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição(versão de 1989).

Vejamos antes de mais o teor da norma emcausa.

O Edital n.º 230/89 aprovou a Tabela de Ta-xas da Câmara Municipal de Sintra, que entrouem vigor, como consta do próprio edital, em 2 deDezembro de 1989.

O artigo 42.º da Tabela, que se insere no capí-tulo IX sobre «As instalações abastecedoras decarburante líquidos, ar e água», estabelece o se-guinte:

«Artigo 42.º — Bombas de Carburantes lí-quidos — cada uma e por ano:

.......................................................................5) Instaladas inteiramente em propriedade

particular com abastecimento no interior da pro-priedade 235 520$00.»

De acordo com a decisão recorrida, o postode abastecimento de carburante de que é pro-prietário José Manuel Patrão dos Santos estáintegralmente instalado em terreno privado, exi-gindo a Câmara Municipal de Sintra a quantia de2 364 620$00 a título de taxa de instalaçõesabastecedoras de carburantes líquidos, ar e águarelativa ao ano de 1995.

A decisão recorrida recusou a aplicação anorma em causa com fundamento na sua incons-titucionalidade orgânica.

Será assim?

5. As autarquias locais gozam de autonomiafinanceira de acordo com o que se preceitua noartigo 240.º da Constituição (versão de 1989 —hoje, artigo 238.º). As receitas das autarquias «in-cluem obrigatoriamente as provenientes da ges-tão do seu património e as cobradas pelautilização dos seus serviços (n.º 3 do artigo 241.º).

De facto, o artigo 4.º da Lei das FinançasLocais então em vigor (Lei n.º 1/87, de 6 deJaneiro — hoje substituída pela Lei n.º 42/98,de 29 de Março), prevê como receitas do municí-pio, entre outras, o produto da cobrança de taxaspor licenças concedidas pelo município, o pro-duto da cobrança de taxas ou tarifas resultantesda prestação de serviços e as provenientes dagestão do seu património.

A competência legal para o estabelecimentode taxas municipais (e do respectivo montante)encontra-se prevista no Decreto-Lei n.º 100/84,de 29 de Março, no seu artigo 39.º , n.º 2, alínea l),na redacção da Lei n.º 18/91, de 12 de Junho,

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80 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

sendo atribuída à Assembleia Municipal, sob pro-posta da Câmara Municipal.

Uma vez encontrada a entidade com compe-tência para fixar taxas municipais, constata-seque o âmbito dessa competência está nitida-mente demarcado pela lei (artigo 11.º da Lei dasFinanças Locais) que define quais os benefíciosou utilidades proporcionadas aos munícipescomo contrapartida do pagamento de uma taxa.

De entre os fundamentos susceptíveis de, le-galmente, poderem levar ao estabelecimento deuma taxa municipal importa salientar a conces-são do domínio público e aproveitamento dosbens de utilização pública e prestação de servi-ços ao público por parte das repartições ou dosfuncionários municipais. As restantes utilidadesou benefícios elencados no preceito não têm apli-cação ao caso em apreço.

Podendo os municípios criar taxas e fixar, sem-pre através das assembleias municipais, os res-pectivos montantes, não podem porém criarimpostos ou tributos que devam ser tratadoscomo impostos, uma vez que a criação e defini-ção dos elementos essenciais destes tributos estásujeita a reserva de lei parlamentar [artigo 106.º ,n.º 2, e artigo 168.º , n.º 1, alínea i), da Constitui-ção — revisão de 1989]

No caso dos autos, concluiu-se que «a normaimpositora do encargo em apreciação, porquecriada por diploma não emanado pela Assembleiada República (ou pelo Governo devidamentecredenciado por aquela)» deve «ser consideradacomo enfermando do vício de inconstituciona-lidade orgânica». Constata-se, assim, que a deci-são recorrida considerou o encargo em questãoou como um imposto ou como uma contribuiçãoespecial que, não sendo imposto, deve ser tra-tada como se, de facto, o fosse, isto é, sujeita àreserva de lei do Parlamento.

Vejamos.

6. A averiguação sobre a conformidade cons-titucional do regime jurídico de uma dada receitapública impõe a determinação prévia da sua na-tureza. A determinação da natureza de taxa ouimposto de um certo tributo tem consequênciasdiversas face ao regime constante da Constitui-ção em vigor no momento da criação do encargo(revisão de 1989).

De facto, a criação de impostos e a definiçãodos seus elementos essenciais está sujeita areserva de lei formal (ou a decreto do Governodependente de autorização) enquanto que astaxas podem ser estabelecidas por regulamento.

Importa, assim, apurar se o encargo que recaisobre as instalações abastecedoras de carburan-tes líquidos, ar e água, quando instaladas inteira-mente em propriedade particular, com abaste-cimento no interior da propriedade, a que se re-portam os autos, tem a natureza de uma taxa oude um imposto, ou ainda de um tributo que devaser tratado como um imposto.

A lei geral tributária, aprovada pelo Decreto--Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, no seuartigo 4.º , n.º 2, dá-nos um conceito legal de taxa,quando estabelece que «as taxas assentam naprestação concreta de um serviço público, nautilização de um bem de domínio público ou naremoção de um obstáculo jurídico ao comporta-mento dos particulares».

Este Tribunal para distinguir o imposto dataxa tem utilizado como critério geral o de saberse a prestação exigida tem carácter unilateral— correspondente ao imposto — ou bilateral ousinalagmático — correspondente à noção de taxa(cfr. acórdãos n.os 76/88 e 348/86, Acórdãos dosTribunal Constitucional, vol. 11.º, pág. 331, evol. 8.º, pág. 93, e mais recentemente o acórdãon.º 410/2000, tirado em plenário, de 3 de Outu-bro de 2000, publicado no Diário da República,I Série-A, de 22 de Novembro de 2000). Assim,estar-se-ia perante um imposto sempre que aobrigação do seu pagamento não esteja ligada aqualquer contraprestação específica por parte doEstado.

Segundo Teixeira Ribeiro (Lições de FinançasPúblicas, Coimbra, 1977, pág. 262), o «impostoé uma prestação pecuniária, coactiva e unilateral,sem carácter de sanção, exigida pelo Estado comvista à realização de fins públicos». A taxa, se-gundo o mesmo autor («noção jurídica de taxa»,Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano117.º, págs. 289 e segs.), «é a quantia coac-tivamente paga pelo utilização individualizadade bens semipúblicos» (isto é, de bens que «sa-tisfazem, além de necessidades colectivas, ne-cessidades individuais, necessidades de satisfaçãoactiva, cuja satisfação exige a procura das coisas

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81 Direito ConstitucionalBMJ 501 (2000)

pelo consumidor») «ou como preço autoritaria-mente fixado de tal utilização».

Refere ainda o mesmo autor, «precisamenteporque os bens semipúblicos satisfazem neces-sidades individuais, o Estado já pode conhecerquem é que particularmente pretende utilizá-los,e pode, por conseguinte, tornar essa utilizaçãodependente de, ou relacioná-la com, o pagamentode certa quantia. Se o fizer, tal quantia, ou é pagavoluntariamente, e temos uma receita patri-monial, ou o é coactivamente, e temos uma taxa».

Assim, enquanto que os «impostos são pres-tações pecuniárias, coactivas, unilaterais e defi-nitivas, sem carácter de sanção, exigidas adetentores de capacidade contributiva por entesque exercem funções públicas, com vista à reali-zação destas», nas taxas, «à prestação do parti-cular corresponde uma contraprestação espe-cífica, uma actividade do Estado ou de outrosentes públicos especialmente dirigida ao respec-tivo obrigado, actividade esta que se há-de con-cretizar na prestação de um serviço público, noacesso à utilização de bens do domínio públicoou na remoção de um limite jurídico à actividadedos particulares» (veja-se José Casalta Nabais,Contratos Fiscais, Coimbra, 1994, pág. 236).

Quando a actividade do Estado ou de outroente público pela qual se exige ao particular opagamento de uma certa quantia se traduz naremoção de um limite jurídico à actividade dosparticulares, só se está perante uma taxa se essaremoção possibilitar a utilização individualizadae efectiva de um bem semipúblico. Se tal nãoacontecer, a quantia a pagar terá a natureza deum imposto (cfr. Teixeira Ribeiro, Revista deLegislação e de Jurisprudência, citada, pág. 292).

A menos que se entenda que se está perante afigura das contribuições especiais que, como sereferiu, devem ser tratadas como impostos quersejam contribuições de melhoria (imposiçõesinstituídas com o fundamento económico-finan-ceiro de tributar os aumentos de valor dos bensdos contribuintes imputáveis a obras financia-das pelos entes públicos e para o qual os deve-dores em nada contribuíram), quer contribuiçõespara maiores despesas (encargos destinados aobrigar os respectivos devedores a contribuir paraas maiores despesas públicas imputáveis às suasactividades económicas). Estas contribuiçõesespeciais determinadas por maiores despesas

públicas ou por aumentos de valor resultantesde investimentos públicos são, no entender deNuno Sá Gomes («Alguns aspectos jurídicos eeconómicos controversos da sobretributaçãoimobiliária no sistema fiscal português», Ciênciae Técnica Fiscal, Abril-Junho 1997, n.º 387, pág.67) «impostos preponderantemente locais».

Tem, portanto, de se concluir que, para preen-cher o conceito de taxa, tem de existir uma con-traprestação, que nem sempre pode significar parao particular o gozo de uma vantagem ou benefí-cio nem tem que constituir o exacto correspectivoeconómico de um serviço ou de uma actividadeda Administração. Assim, «a sinalagmaticidadeque subjaz ao conceito de taxa não se alcançacom qualquer prestação por parte do Estado: seesta não tem que representar sempre um benefí-cio ou vantagem, e se não tem que existir umaexacta equivalência económica entre o paga-mento do particular e a acção individualizada doEstado, a contraprestação há-de, pelo menos,apresentar uma natureza material [...] deveráser possível identificar na esfera do cidadão ouso de um bem semipúblico» (P. Pitta e Cunha/J.Xavier de Bastos/A. Lobo Xavier, «Conceitosde taxa e imposto», Revista Fisco, n.os 51-52,pág. 6).

7. No caso em apreço, a Câmara Municipalde Sintra liquidou ao recorrido, proprietário deum posto de abastecimento de carburante, a taxade instalações abastecedoras de carburantes lí-quidos, ar e água, de acordo com o n.º 5 do artigo42.º da Tabela de Taxas da Câmara Municipal,nos termos do qual são taxadas as bombas decarburantes líquidos «instaladas inteiramente empropriedade particular com abastecimento nointerior da propriedade».

Ora, através de uma taxa como a que vemidentificada nos autos, o obrigado ao pagamentonão beneficia da utilização dos serviços de repar-tição ou funcionários municipais nem da remo-ção de qualquer obstáculo jurídico ao exercícioda actividade em causa. Assim, a imposição dataxa em apreciação apenas poderia fundar-se naocupação do domínio público e aproveitamentode bens de utilização pública.

Porém, é manifesto que este tipo de contra-partida não pode concretizar-se na situação dosautos: de facto, estando o posto de abasteci-

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82 BMJ 501 (2000)Direito Constitucional

mento instalado inteiramente em terreno privadoe decorrendo também na propriedade privadatodos os actos relativos ao abastecimento e acti-vidades complementares (como vem provado nosautos — ponto 3), a actividade de abasteci-mento das viaturas não implica qualquer utiliza-ção de bens semipúblicos, inexistindo qualquerconexão da taxa exigida com a ocupação de benspúblicos, não sendo sequer possível ligá-la a umaeventual renovação de licença ou a quaisquer di-ligências que o município deva realizar para aconceder, como bem refere o Ministério Públiconas suas alegações.

Não tem assim a referida taxa de instalaçõesabastecedoras de combustíveis nem natureza nemestrutura sinalagmática, pois o respectivo mon-tante não é contraprestação ou contrapartida denada.

Não existindo qualquer contrapartida para aexigência do encargo em causa, que represente autilidade recebida pelo particular, o pagamentoda quantia imposta no caso não constitui umataxa, mas antes um imposto. E tendo sido criadoatravés de simples edital camarário, foi violado oartigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição daRepública Portuguesa (versão de 1989).

De acordo com tudo quanto fica exposto, opresente recurso tem de improceder.

III — Decisão

Nestes termos, o Tribunal Constitucionaldecide:

a) Julgar inconstitucional a norma do n.º 5do artigo 42.º do Edital camarário n.º 230/89, de 6 de Novembro de 1989, que apro-vou a Tabela de Taxas da Câmara Munici-pal de Sintra, por violação do artigo 168.º,n.º 1, alínea i), da Constituição da Repú-blica Portuguesa (versão da Lei n.º 1/89,de 8 de Julho); e,

b) Em consequência, negar provimento aopresente recurso, confirmando o acórdãorecorrido na parte impugnada.

Lisboa, 29 de Novembro de 2000.

Vítor Nunes de Almeida (Relator) — ArturMaurício — Maria Helena Brito — Luís Nunesde Almeida.

Foi publicado no Diário da República, II Série, n.º 19, de 23 de Janeiro de 2001, pág. 1462

(G. R.)

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83 Direito PenalBMJ 501 (2000)

Crime de maus tratos a pessoa deficiente — Crime de maustratos a cônjuge — Suspensão da execução da pena

I — Os crimes de maus tratos a que se referem a alínea a) do n.º 1 e o n.º 2 do ar-tigo 152.º do Código Penal não exigem para a sua realização que os factos revelem umaespecial falta de sensibilidade do agente, nem qualquer outra expressão de carácter ouelemento da personalidade particularmente censurável.

II — Igualmente, quanto ao tratamento cruel, a lei não exige a sua verificaçãocumulativa com os maus tratos físicos ou psíquicos. Estando estes, ambos, inquestionavel-mente provados, não é circunstância de não estarem provados factos que se subsumamàquele primeiro conceito que impede a plena integração dos tipos penais em análise.

III — Não obsta à suspensão da execução da pena condicionada ao pagamento deindemnizações às ofendidas, a circunstância de não ter sido formulado pedido de indem-nização cível nem o tribunal as não ter arbitrado nos termos do artigo 82.º-A, n.os 1 e 2,do Código de Processo Penal.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 29 de Novembro de 2000Processo n.º 3215/2000 — 3.ª Secção

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

No processo comum (colectivo) n.º 77/97.4GBSSB-A — Vara Mista, da Comarca deSetúbal, o Ministério Público acusou AntónioManuel Colaço Lascas, casado, motorista, nas-cido em 20 de Fevereiro de 1936, em Brinches,Serpa, filho de Manuel Camilo Lascas e de AnaClara Colaço, residente na Rua das Descobertas,lote 3049, Quinta do Conde, 3, imputando-lhea autoria material de um crime de maus tratos apessoa indefesa em razão então de deficiênciafísica, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2,e 152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e umcrime de maus tratos a cônjuge, previsto e pu-nido pelos artigos 30.º, n.º 2, e 152.º, n.º 2, domesmo Código.

Realizado o julgamento, foi proferido acórdão,do qual, na parte que interessa, se transcreve orespectivo dispositivo:

«[...]Pelo exposto deliberam os juízes que com-

põem o colectivo da Vara Mista de Setúbal emjulgar procedente a acusação e em consequência.

A) Condenar o arguido António Manuel Co-laço Lascas, como autor de um crime de maustratos a deficiente, previsto e punido pelo artigo

152.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na penade 18 meses de prisão;

B) Condenar o mesmo arguido António Las-cas, como autor de um crime de maus tratos acônjugue, previsto e punido pelo artigo 152.º,n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 anos deprisão;

C) Em cúmulo jurídico, condenar o mesmoarguido António Lascas na pena única de 2 anose 6 meses de prisão;

D) Suspender a execução da pena, pelo perío-do de 2 anos sujeito ao cumprimento do seguintedever: pagamento, no prazo máximo de 6 meses,às ofendidas Noémia Augusta Estevens Lascase Maria Elisabete Estevens Lascas, respectiva-mente, das quantias de 300 000$00 e 200 000$00.

[...]»

Inconformado, o arguido interpôs o presenterecurso, concluindo a motivação, como segue(transcrição):

«[...]I — Foram violados a alínea a) do n.os 1 e 2 do

artigo 152.º do Código Penal ao integrar factos— referentes à ex-cônjuge do arguido e à sua filhaincapaz — que não se incluíam na sua precisão.

II — O tribunal a quo interpretou os factoscomo integradores do tipo criminal acima refe-

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84 BMJ 501 (2000)Direito Penal

rido, o que não se ajusta à letra e ao espírito a lei,pois não se deu como provado que o arguidotenha agido com crueldade, insensibilidade ou vin-gança.

III — Melhor teria sido considerar os factosprovados como integradores do tipo dispostono artigo 143.º do Código Penal.

IV — A não se entender assim, mantendo aqualificação jurídica que integra tais factos noartigo 152.º do Código Penal, entende-se que acondenação foi excessivamente severa, não aten-dendo às circunstâncias familiares em que ocor-reu, tendo sido violadas as alíneas a) e c) doartigo 71.º do Código Penal.

V — A haver condenação por este crime, apena deveria ter sido a mínima.

VI — Foi violado a alínea a) do artigo 51.º doCódigo Penal, não podendo a suspensão da penano caso em apreço ser subordinada ao cumpri-mento de deveres de indemnização, pois essaalínea apenas possibilita essa atribuição aos le-sados que constem como tal do processo, nãopodendo tais indemnizações ser atribuídas às tes-temunhas dos autos, ainda que estas hajam sidoofendidas.

VII — Essa indemnização só poderia ter lugarcaso tivesse sido exercido o direito ao pedido deindemnização cível, nos termos do disposto non.º 1 do artigo 74.º do Código de Processo Penal,ou, quando esse pedido não tivesse sido efec-tuado, houvesse particulares exigências de pro-tecção da vítima e o tribunal tivesse arbitradouma quantia a título de reparação, respeitando ocontraditório específico de tal situação nos ter-mos dos n.os 1 e 2 do artigo 82.º-A, também doCódigo de Processo Penal.

VIII — Não se tendo verificado nenhuma des-sas situações a atribuição de uma indemnizaçãoàs testemunhas, ainda que ofendidas, não tem nalei a correspondência verbal mínima impostapelos cânones interpretativos dispostos no n.º 2do artigo 9.º do Código Civil.

Nestes termos e louvando-nos, quanto aomais, nos factos constantes dos autos, somos deparecer que o presente recurso merece provi-mento e, consequentemente, deverá o aliás doutoacórdão que ora se impugna ser revogado poroutro que em conformidade com as razões expen-didas nas conclusões fará justiça.

[...]»

Na resposta, o Dig.mo Magistrado do Minis-tério Público conclui (transcrição):

«[...]1.ª— No douto acórdão recorrido ficou pro-

vado um conjunto de factos que permitem, semqualquer dúvida, integrá-los nos crimes de maustratos do artigo 152.º, n.os 1, alínea a), e 2, doCódigo Penal (maus tratos a descendente comincapacidade e a cônjuge);

2.ª — Na verdade, para além dos factos con-cretamente localizados no tempo (agressões físi-cas provadas nos n.os 11 e 13), existe um conjuntode factos provados ocorridos de forma sequencialque integram o conceito jurídico-penal de maustratos físicos e psíquicos (factos provadosn.os 3, 5, 6 e 7);

3.ª — Para existir o crime de maus tratos emquestão torna-se necessário resultar do compor-tamento do agente uma personalidade que de-nota insensibilidade, crueldade e violadora doelementar dever de respeito subjacente às rela-ções familiares;

4.ª — No crime de maus tratos a cônjuge ocomportamento do arguido tem de revestir forosde seriedade de molde a comprometer a possibi-lidade da vida em comum;

5.ª — Face à forma como o arguido praticouos factos, seu encadeamento e forma como colo-cou em crise as relações familiares com a esposae filha deficiente visual, bem andou o doutoacórdão em enquadrar os factos no âmbito doscrimes de maus tratos referidos;

6.ª — O artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do CódigoPenal ao permitir a suspensão da execução dapena com a condição de ser paga indemnizaçãoao lesado, não obriga à existência de pedido deindemnização cível por parte deste;

7.ª — Na verdade, tal como resulta do espíritoda norma e do seu elemento literal, não estamosperante uma verdadeira indemnização cível, masna presença de quantia compensatória que visa,ao menos parcialmente, reparar o mal do crime;

8.ª — Esta conclusão retira-se da forma comoa norma está redigida (pagamento total ou par-cial e em certo prazo), por se tratar de normaexemplificativa, e considerando o princípio darazoabilidade do artigo 51.º, n.º 2, do Código Pe-nal, o qual não poderia existir nos casos de pedi-dos de indemnização cível deduzidos ao abrigono artigo 71.º do Código de Processo Penal;

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85 Direito PenalBMJ 501 (2000)

9.ª — Assim sendo, face ao espírito do artigo51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, bem andouo douto acórdão ao suspender a execução da penaaplicada com a condição de o arguido pagar quan-tias compensatórias às ofendidas na sequênciados crimes que praticou;

10.ª — O douto acórdão recorrido não violouqualquer norma legal, devendo ser mantido e con-firmado.

Termos em que deverá negar-se provimentoao recurso e manter-se a douto acórdão conde-natório proferido nos autos.

[...]»

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procura-dora-Geral Adjunta, na vista dos autos, não sepronunciou sobre o mérito do recurso nem sus-citou qualquer questão.

Corridos os vistos e realizada a audiência pú-blica, cumpre decidir.

Transcrição parcial do acórdão recorrido:

«[...]Factos provados

1 — O arguido contraiu casamento com Noé-mia Estevens Lascas em Março de 1961, exis-tindo desta relação 5 filhos, dois dos quais aindamenores à data dos factos a seguir referidos.

2 — Há cerca de 20 anos passaram a vivernuma moradia, sita na Rua Quarenta, lote 628,Boa Água, Quinta do Conde, Sesimbra, com osseus filhos.

3 — Decorrido alguns anos o arguido passoua viver, por vezes, de violência física para com aesposa e a chamar a mesma de «puta» e «vaca»pelo menos, sempre que se verificavam diver-gências entre ambos e esta não acatava as ordense opinião daquele.

4 — Os filhos que sempre viveram e cresce-ram presenciando o quadro acima descrito a de-terminada altura colocaram-se ao lado da mãe epor via disso gerou-se uma relação de conflitua-lidade entre o arguido e os três filhos mais ve-lhos, designadarnente a filha Maria ElisabeteLascas, deficiente visual, passando esta a residirno sótão da moradia.

5 — No ano de 1997, mais ou menos a partirde Março de 1997, a relação do arguido com aesposa e os filhos voltou a deteriorar-se, pas-

sando aquele a dormir em quarto separado da-quela e o fazer vida autónoma.

6 — O arguido passou a ofender a esposa efilha Elisabete com regularidade, por vezes agre-dindo-as a murro ou pontapé ou puxando-lhespelos cabelos e chamando-as de «putas e vacas»,tendo um dia mesmo apontado uma caçadeira àesposa.

7 — O arguido com os factos referidos em6 deixava-as, mulher e filha, magoadas física epsicologicamente.

8 — Em data não concretamente apurada dal.ª quinzena de Março na parte da manhã o ar-guido dirigiu-se ao quarto onde a Noémia estavadeitada e agarrando-a pelo pescoço apertou-lhocom força.

9 — A Elisabete ao aperceber-se do compor-tamento do arguido tentou socorrê-la pelo que oarguido dirigindo-se à mesma chamou-a de «puta»de «vaca» que só queria «estar debaixo dos ho-mens» e desferiu-lhe murros que a atingiram nazona do pescoço.

10 — Em consequência directa e necessáriadessas agressões as queixosas Noémia e Elisa-bete sofreram dores, não tendo recebido trata-mento hospitalar.

11 — Em dia não concretamente apurado deAbril de 1997, pelas 16 horas, no interior daresidência, o arguido dirigiu-se à sua esposaNoémia e chamou-a de «puta» de «vaca», «putada tua mãe» e desferiu-lhe murros que a atingi-ram em diversas partes do corpo, designadamentena zona da cabeça.

12 — Em consequência directa e necessáriadessas agressões sofreu a Noémia lesões que fo-ram determinantes de doença por 8 dias, semincapacidade para o trabalho, conforme autos deexame de fls. 103 e 104, que se dão por reprodu-zidos.

13 — No dia 21 de Abril de 1997, pelas 12horas, no interior da residência o arguido voltoua agredir a Elisabete empurrando-a contra aporta da cozinha e de seguida agarrou-a pelopes-coço e apertou-lho com força arranhando-aainda na face.

14 — Em consequência directa e necessáriadessas agressões sofreu a Elisabete vergões aonível do pescoço, edemas no pescoço, na face ena mão direita, laceração da face direita da mucosaendobucal e da face anterior do pescoço, lesões

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86 BMJ 501 (2000)Direito Penal

que foram determinantes da doença por 30 diascom igua1 período de incapacidade para o traba-lho, conforme auto de exame de fls. 102, que aquise dá por reproduzido.

15 — Ao actuar como descrito o arguido quiscausar sofrimento na sua esposa e quis sub-metê-la pelo medo e pela força em todos os ca-sos de divergência entre ambos.

16 — Pretendia o arguido infligir maus tratosfísicos e psicológicos a sua esposa, o que conse-guiu.

17 — Ao actuar como descrito, o arguido pre-tendia causar dores e lesões a sua filha Elisabete,deficiente visual, que consigo residia na sua resi-dência, e infligir-lhe maus tratos físicos e psico-lógicos, o que conseguiu.

18 — O arguido agiu livre e conscientemente,sabendo que a sua conduta proibida por lei.

19 — O clima familiar de conflito entre o ar-guido e restante família agudizou-se em Marçode 1997, depois de o arguido ter tido alta clínicaapós intervenção cirúrgica.

20 — Durante cerca de uma semana a que oarguido esteve hospitalizado nem a mulher nemos filhos o foram visitar, o que deixou o arguidomuito chocado e decepcionado.

21 — Em Novembro de 1997 o arguido ini-ciou processo de divórcio contra a mulher, queterminou por divórcio por mútuo consenti-mento.

22 — O arguido é um homem trabalhador.23 — Actualmente vive sozinho numa gara-

gem, sendo motorista profissional, auferindo cercade 190 000$00 mensais.

Factos não provados

Não se provou da acusação o 4.º a 6.º parágra-fos; 2.ª parte do parágrafo 7.º, 10.º parágrafo;que as ofensas psicológicas e físicas fossem diá-rias (1l.º parágrafo); que arguido ameaçasse a es-posa e filha Elisabete que as matava com umacaçadeira (parágrafo 12.º); que elas ficassem re-ceosas pelas suas próprias vidas (parágrafo 13.º);que os factos descritos no parágrafo 14.º tives-sem ocorrido no dia 14, tão-pouco se tendo pro-vado que o arguido tentou asfixiar a mulher;parágrafo 17.º; que a não recepção de tratamentohospitalar se devesse a medo de represálias doarguido (parágrafo 18.º); parágrafo 19.º; que os

factos descritos no parágrafo 20.º tivessemocorrido no dia 20; parágrafo 21.º; que o arguidotivesse introduzido os dedos pelas narinas daElisabete ou que fosse com toda a força que podeempregar (parágrafo 23.º); que o sofrimento cau-sado à mulher fosse particular (parágrafo 25.º);que o arguido maltratasse a mulher quase diaria-mente (parágrafo 26.º);

Não se provou da contestação: os artigos 6.º e7.º, 15.º e que o arguido seja homem de bem epacífico (parágrafo 17.º).

Fundamentação

Para dar como provados os factos acima indi-cados, o Tribunal baseou-se no depoimento dasqueixosas Noémia Lascas e Maria Elisabete Las-cas, bem como no das testemunhas Ana NoémiaLascas, Maria Leonor Lascas e Gabriel Lascas,filhos do arguido, que confirmaram nos seus de-poimentos os factos referidos, designadamenteos pontos 3 a 11 e 13 a 19, depoimentos queforam credíveis e acolhidos pelo colectivo porserem profundos, emotivos e sinceros mas aomesmo tempo seguros, não hesitantes, sem con-tradições e até equilibrados sem alardes de dramaou espectáculo, provindos de quem vinham osúnicos conhecedores do agregado familiar do ar-guido, depoimentos que também, pela diversi-dade de quem os produziu, uma mulher desgas-tada e vencida pela vida dada pelo arguido, aNoémia, um depoimento de uma filha AnaNoémia, calmo, pausado, às vezes amorfo porvirtude de a Ana Noémia parecer ter algum retar-damento mental, mas por isso mesmo, sério, ab-solutamente sério de quem estava a falar, umdepoimento sensível e emotivo de uma filhaMaria Leonor, estudante universitária, menor àdata dos factos e que vivia com o pai e a mãe naparte de baixo da casa, não no sótão, um depoi-mento de um filho menor à data dos factos e quevivia com o arguido e sua mãe e sua irmã MariaLeonor na parte de baixo da casa, não no sótão, eque era estudante do ensino secundário, depôscom equilíbrio, com segurança, que revelou que oarguido era um homem dentro de casa que nãoadmitia opiniões divergentes incapaz de com-preender o «outro» ser humano e depoimento daqueixosa e ofendida Elisabete, invisual, que em

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87 Direito PenalBMJ 501 (2000)

nenhum momento do depoimento hesitou, de-pondo com segurança sobre pormenores comprecisão sobre os factos, depoimento absoluta-mente normal, distante do que o documento defls. 264 poderia indiciar, tudo conjugado com asfichas clínicas de fls. 59 e 61, exames de fls. 102a 104, relatório social de fls. 115 a 124.

Baseou-se ainda nas declarações do arguidosobre a sua intervenção cirúrgica, corroboradapelo documento de fls. 178 e confirmado pelamulher e filhos, declarações do arguido ao ponto20, confirmado pela mulher e filhos, declaraçõesarguido ao ponto 21, confirmado pela mulher edocumento de fls. 179 a 183, documento defls. 185 a 188, declarações do arguido quanto aoponto 23, confirmado pela testemunha LígiaClaro e declarações das testemunhas AugustoDuarte e Lígia Claro quanto ao ponto 22.

Os factos não provados derivaram quanto àacusação de mulher do arguido e os filhos nãoterem referido factos sobre tal matéria em con-creto (sendo que alguma matéria de acusação éconclusiva), designadamente os parágrafos 19.ºe 21.º Quanto à contestação, os factos não pro-vados derivaram de só o arguido os ter referido.

[...]»

O recurso interposto, directamente, do acór-dão final do tribunal colectivo para o SupremoTribunal de Justiça visa, exclusivamente, o ree-xame da matéria de direito, cfr. artigo 432.º, alí-nea d), do Código de Processo Penal. É constantee pacífica a jurisprudência deste Supremo Tribu-nal de Justiça no sentido de que, sem prejuízodas questões do conhecimento oficioso, o âmbitodo recurso se define pelas conclusões extraídas,pelos recorrentes, das respectivas motivações.

Em síntese, o recorrente sustenta que:

a) Uma vez que se não se deu como pro-vado que «tenha agido com crueldade,vingança ou insensibilidade», «nem se ve-rifica a existência de quaisquer factos queindiciem sequer tais sentimentos», não épossível considerar integrados os crimesde maus tratos por que foi condenadomas, sim, apenas o tipo legal descrito noartigo 143.º do Código Penal;

b) De qualquer modo, mesmo a julgar-se cor-recta a qualificação jurídica operada pelo

tribunal a quo, as penas aplicadas foramexcessivamente severas, uma vez que,atentas as circunstâncias de facto concre-tas, deveriam ser fixadas sobre os limitesmínimos das respectivas molduras le-gais; e

c) Finalmente, a suspensão da execução dapena não poderia ter sido, como foi, con-dicionada ao pagamento de indemnizaçõesàs ofendidas, em virtude de, contra si, nãoter sido deduzido qualquer pedido cívelnem o tribunal ter arbitrado qualquer in-demnização ao abrigo do disposto nosn.os 1 e 2 do artigo 82.º-A do Código deProcesso Penal.

Vejamos, então.

I — Da qualificação jurídica

Código Penal de 1995

Artigo 152.º (redacção originária):

«1 — Quem, tendo ao seu cuidado, à suaguarda, sob a responsabilidade da sua direcçãoou educação, ou como subordinado por relaçãode trabalho, pessoa menor, incapaz ou diminuídopor razão de idade, doença, deficiência física oupsíquica, e:

a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíqui-cos ou a tratar cruelmente;

b) A empregar em actividades perigosas, de-sumanas ou proibidas; ou

c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;

é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se ofacto não for punível pelo artigo 144.º

2 — A mesma pena é aplicável a quem infligirao cônjuge ou a quem com ele conviver em con-dições análogas às dos cônjuges maus tratosfísicos ou psíquicos. O procedimento criminaldepende de queixa.

3 — Se dos factos previstos nos númerosanteriores resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agenteé punido com pena de prisão de 2 a 8anos;

b) A morte, o agente é punido com pena deprisão de 3 a 10 anos.»

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88 BMJ 501 (2000)Direito Penal

Artigo 152.º (redacção da Lei n.º 65/98, de 2de Setembro):

«1 — Quem, tendo ao seu cuidado, à suaguarda, sob a responsabilidade da sua direcçãoou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pes-soa menor ou particularmente indefesa, em ra-zão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:

a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíqui-cos ou a tratar cruelmente;

b) A empregar em actividades perigosas, de-sumanas ou proibidas;

c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;

é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se ofacto não for punível pelo artigo 144.º

2 — A mesma pena é aplicável a quem infligirao cônjuge, ou a quem com ele conviver em con-dições análogas às dos cônjuges, maus tratos fí-sicos ou psíquicos. O procedimento criminaldepende de queixa, mas o Ministério Público podedar início ao procedimento se o interesse da ví-tima o impuser e não houver oposição do ofen-dido antes de ser deduzida a acusação.

3 — A mesma pena é aplicável a quem, nãoobservando disposições legais ou regulamenta-res, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou aperigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde.

4 — Se dos factos previstos nos númerosanteriores resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agenteé punido com pena de prisão de 2 a 8anos;

b) A morte, o agente é punido com pena deprisão de 3 a 10 anos.»

Como é evidente, o fim ou móbil do agentenão é elemento dos tipos legais em questão. Logo,é irrelevante que o arguido, ora recorrente, tenhaagido ou não para se vingar das ofendidas.

Quanto à «insensibilidade», a lei não exige queos factos revelem uma especial falta de sensibili-dade do agente nem qualquer outra expressão decarácter ou elemento da personalidade parti-cularmente censurável (a exigência de que, paraalém de dolosamente, o agente actuasse por «mal-vadez» e «egoísmo», enquanto requisito essen-cial do crime, constante do artigo 153.º, n.º 1, doCódigo Penal de 1982, foi absolutamente elimi-

nada na revisão de 1995 e não foi reintroduzidapela Lei n.º 65/98).

Seja como for, a conclusão de que os factostraduzem insensibilidade é isso mesmo, uma con-clusão (pelo que não fará sentido afirmar que oarguido não cometeu os crimes por que foi con-denado em virtude de não se ter dado como pro-vado o facto da sua insensibilidade) que, no casopresente, contra o que vem sustentado, se impõeextrair da factualidade provada, pois é patenteque, praticando os factos especificados em 5 a18, o arguido, de forma reiterada, lesou a digni-dade humana da filha e da, então, sua esposa, oque é o mesmo dizer que não respeitou ou nãofoi sensível às exigências indeclináveis de tal dig-nidade.

Finalmente, quanto ao tratamento cruel, a leinão exige a sua verificação cumulativa com osmaus tratos físicos ou psíquicos, pelo que estan-do estes, ambos, inquestionavelmente provados,não é a circunstância de não estarem provadosfactos que se subsumam àquele primeiro con-ceito que obsta à plena integração dos tipos le-gais em análise.

Não procede, pois, nenhuma das objecçõeslevantadas, pelo recorrente, à qualificação jurí-dica operada pelo colectivo, relativamente à qual,aliás, não se descortina qualquer razão de censura.

II — Da determinação das penas

A aplicação de penas visa a protecção de bensjurídicos e a reintegração social do agente; emcaso algum a pena pode ultrapassar a medida daculpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do Código Penal).

A prevenção geral positiva ou de integração(reafirmação contrafáctica da validade da normaviolada e intimidação conforme à consciênciacolectiva de um Estado de direito democrático) éa finalidade primeira, que se prossegue, no qua-dro da moldura penal abstracta, entre o mínimo,em concreto, imprescindível à estabilização dasexpectativas comunitárias na validade da normaviolada e o máximo que a culpa do agente con-sente; entre esses limites, satisfazem-se, quantopossível, as necessidades da prevenção especialpositiva ou de socialização.

A medida das penas determina-se em funçãoda culpa do arguido e das exigências da preven-

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89 Direito PenalBMJ 501 (2000)

ção, no caso concreto (artigo 71.º, n.º 1, do Có-digo Penal), atendendo-se a todas as circunstân-cias que, não fazendo parte do tipo de crime,deponham a favor ou contra ele (n.º 2 do mesmodispositivo).

In casu, a moldura legal dos dois crimes é de1 a 5 anos de prisão [cfr. artigo 152.º, n.os 1,alínea a), e 2, do Código Penal 1995].

Ora, considerando:

— A significativa ilicitude do facto (dada aregularidade das ofensas à integridade física emoral das ofendidas (factos 6, 8, 11 e 12), à suagravidade (factos 6 a 14) e à das suas conse-quências (factos 7, 10, 12 e 14);

— O dolo intenso e persistente do arguido eo fim que perseguia (molestar, efectivamente,física e psicologicamente, ambas as ofendidas,apenas para lhes causar sofrimento e, só quantoà, hoje, ex-mulher, ainda, para conseguir que, pelomedo, ela se lhe submetesse em todos os casosde divergência entre ambos);

— Que o arguido esteve internado num hos-pital, durante cerca de uma semana, sendo sub-metido a uma intervenção cirúrgica, e ficou muitochocado e decepcionado por não ter sido visi-tado pela, então, mulher nem pelos filhos, sendoque foi após a alta, em Março de 1997, que seagudizaram os conflitos familiares;

— Que, em Novembro de 1977, o arguidoiniciou processo de divórcio que velo a ser decre-tado, por mútuo consentimento;

— Que o arguido tem 64 anos de idade, vivesozinho numa garagem, é homem trabalhadore, como motorista profissional, aufere cerca de190 000$00 mensais;

julga-se que as molduras da prevenção se defi-nem entre os 18 e os 22 meses de prisão, parao crime de que foi vítima a Elisabete, e entre os22 e os 26 meses de prisão, para aquele de quefoi vítima a Noémia Augusta. Assim, porque,fixando as penas em 18 meses de prisão e 2 anosde prisão, respectivamente, o tribunal a quo res-peitou os parâmetros que se têm por adequadose porque tais penas não podem ser havidas, demodo nenhum, como desproporcionadas ou ofen-sivas das regras de experiência, inexiste funda-mento para o tribunal de revista se pronunciarsobre o seu quantum exacto.

No que respeita à pena conjunta, esta deter-mina-se, ainda, em função da culpa do arguidoe das necessidades de prevenção, avaliando-se,em conjunto, os factos e a sua personalidade(cfr. artigos 71.º, n.º 1, e 77.º, n.º 1 — 2.ª parte —,do Código Penal).

A moldura abstracta do concurso é de 2 anosa 3 anos e 6 meses de prisão (cfr. artigo 77.º, n.º 2,do Código Penal).

A ilicitude global dos factos é elevada. O ar-guido, já com 64 anos de idade, dedica-se ao tra-balho e não tem problemas de inserção social. Osconflitos familiares estão ultrapassados em fun-ção do divórcio. Apesar de os ter cometido, pra-ticamente, em simultâneo, não há motivo paraconcluir que os crimes são fruto de uma inclina-ção ou tendência que radique na personalidade.Assim, tudo globalmente ponderado, entende-mos que a moldura de prevenção se define entreos 2 anos e 6 meses e os 2 anos e 8 meses deprisão. Uma vez mais se constata que, fixando apena única em 2 anos e 6 meses de prisão, otribunal respeitou os limites que se têm por cor-rectos, pelo que, não sendo aquela despropor-cionada nem ofensiva das regras de experiência,também não há fundamento para este SupremoTribunal exercer censura sobre a sua medidaexacta.

Sobre a questão de saber se, sim ou não, sepode condicionar a suspensão da execução dapena ao pagamento de indemnizações às ofendi-das, sem que tenha sido formulado pedido cível esem que o tribunal as tenha arbitrado nos termosdo disposto no artigo 82.º-A, n.os 1 e 2, do Có-digo de Processo Penal, a resposta, de acordo,aliás, com a jurisprudência dominante deste Su-premo Tribunal, é positiva.

Com efeito, como se diz no acórdão do Su-premo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 1999,no recurso n.º 387/99, 3.ª Secção: «O tribunalnão profere, no uso do poder de impor esse de-ver, condenação no pagamento em indemniza-ção, tal como o deveria fazer em relação ao pedidocível, se o houvesse e procedesse. Com a impo-sição do dever de reparar o dano não fica o lesadocom o direito de exigir o seu cumprimento, recor-rendo, inclusive, aos mecanismos da realiza-ção coactiva da prestação regulados na lei civil.O que se pretende, reforçando o sancionamento

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penal, é que o arguido cumpra por sua iniciativao dever de reparar o dano, na medida adequada àscircunstâncias, como condição da suspensão daexecução da pena, assumindo essa conduta pos-terior a função que à reparação do dano conferemoutros preceitos penais [cfr. por exemplo artigos72.º, n.º 2, alínea c), 74.º, n.º 1, alínea b), 306.º,n.º 1, do Código Penal (...)]. Assim, pela sua fun-ção e estrutura, a imposição de reparar o danopatrimonial ou não patrimonial não pode ficardependente da existência do pedido de indemni-zação civil deduzido no tribunal penal ou no tri-bunal civil, perdendo-se, se assim fosse, a própriapossibilidade da suspensão da execução da penase, no caso, a simples ameaça da pena não rea-lizasse integralmente as finalidades da punição.O ofendido, com esse comportamento omissivo,que pode ter várias causas, poderia ditar a sortedo sancionamento penal. Composta a suspen-são da execução da pena de prisão com o devereconómico de reparar o mal do crime através daindemnização, tal dever ou obrigação em sentidolato vale apenas no seio do instituto da suspen-são da execução da pena, sendo o sancionamento,pelo não cumprimento, o que deriva do regimedo próprio instituto. Pela sua função integrativadas finalidades da punição se explica que ao ar-guido possa ser imposto apenas um dever depagamento parcial [n.º 1, alínea a), do artigo 5l.º]e que os deveres impostos não possam em casoalgum representar para o condenado obrigaçõescujo cumprimento não seja razoavelmente de lheexigir (n.º 2 do artigo 5l.º) e que os deveres im-postos possam ser modificados até ao termo doperíodo do da suspensão sempre que ocorreremcircunstâncias relevantes supervenientes ou deque o tribunal só posteriormente tiver tido co-nhecimento (n.º 3 do artigo 51.º).»

O recurso improcede, pois, inteiramente.

Termos em que, negando provimento ao re-curso, acordam em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa dejustiça em 10 UCs.

Lisboa, 29 de Novembro de 2000.

Leonardo Dias (Relator) (vencido, em parte,nos termos da declaração que junto) —VirgílioOliveira — Mariano Pereira — Flores Ribeiro.

Declaração de voto:

No domínio do direito anterior ao Código Pe-nal de 1982, a reparação por perdas e danos ar-bitrada em processo penal tinha natureza espe-cificamente penal. Com efeito, na medida em quese postergava o princípio da necessidade do pe-dido e se considerava a indemnização como umefeito necessário da condenação penal (artigos34.º e 450.º, n.º 5, do Código de Processo Penalde 1929), se definiam critérios próprios da suaava-liação, distintos dos estabelecidos pela leicivil (§ 2.º do mesmo artigo 34.º) e se não previaa possibilidade de transacção ou de renúncia aodireito e desistência do pedido, aquela reparaçãoconstituía, em rigor, um «efeito penal da conde-nação — como aliás claramente o inculca o ar-tigo 75.º, n.º 3, do Código Penal — hoc sensu‘uma parte da pena pública’, que não se identi-fica, nos seus fins e nos seus fundamentos, com aindemnização civil, nem com ela tem de coinci-dir no seu montante» (Figueiredo Dias, DireitoProcessual Penal, vol. 1.º, 1974, pág. 549).

Contra essa descaracterização, quer da acçãocivil enxertada no processo penal quer da pró-pria natureza e finalidades da indemnização aíarbitrada, que não contra o sistema da adesão emsi mesmo, veio a grande reforma do direito penalde 1982.

Assim, passando a ser determinada de acordocom os pressupostos e critérios, substantivos,da lei civil, por força da norma do artigo 128.º doCódigo Penal de 1982 (que revogou tacitamenteo § 2.º do artigo 34.º do Código de Processo Penalde 1929), reproduzida no artigo 129.º do CódigoPenal de 1995, a reparação assume-se, agora,como pura indemnização civil que, sem embargode se lhe reconhecer uma certa função adjuvante,não se confunde com a pena. (O artigo 128.º doCódigo Penal de 1982 corresponde, com ligeirasalterações formais, ao artigo 106.º do projecto daparte geral do Código Penal de 1963, que o seuautor justificou pela «ideia de que, pelo menosno ponto de vista substantivo, a indemnizaçãocivil do dano produzido pelo crime é coisa dife-rente, de todo o ponto, da responsabilidadepenal [...]» — acta da 32.ª sessão, in Actas dasSessões da Comissão Revisora do Código Pe-nal, parte geral, vol. II, Ministério da Justiça,1966, págs. 211-212).

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91 Direito PenalBMJ 501 (2000)

E no plano do direito adjectivo, o Código deProcesso Penal, mantendo o sistema da adesão(embora alargando, no artigo 72.º, o número decasos em que, concedendo ao princípio daalternatividade ou opção, é permitido intentar aacção cível em separado, e levando essa maiormaleabilidade ao ponto de autorizar o tribunalnão só a condenar no que se liquidar em exe-cução da sentença, sempre que não disponha deelementos bastantes para fixar a indemnização— artigo 82.º, n.º 1 —, mas também a remeter aspartes para os tribunais civis, nos casos previs-tos no n.º 2 do último dispositivo citado), veioconferir àquela acção de indemnização pela prá-tica de um crime, formalmente enxertada no pro-cesso penal, a estrutura material de uma autênticaacção civil, acolhendo, inequivocamente, os prin-cípios da disponibilidade, cfr. artigo 81.º, e danecessidade do pedido (nemo iudex sine actore,ne procedat iudex ex officio, ne eat iudex ultra velextra petita partium) — cfr., v. g., os artigos 71.º,74.º a 77.º e 377.º —, e prescrevendo que a deci-são penal, ainda que absolutória, que conheça dopedido cível, constitui caso julgado nos termosem que a lei atribui eficácia de caso julgado àssentenças civis, cfr. artigo 84.º

A Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, além domais, aditou, relativamente ao texto originário doCódigo de Processo Penal de 1987, o artigo 82.º-A(«1 — Não tendo sido deduzido pedido de in-demnização civil no processo penal ou em sepa-rado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal,em caso de condenação, pode arbitrar uma quan-tia a título de reparação pelos prejuízos sofridosquando particulares exigências de protecção davítima o imponham. 2 — No caso previsto nonúmero anterior, é assegurado o respeito pelocontraditório. 3 — A quantia arbitrada a título dereparação é tida em conta em acção que venha aconhecer de pedido civil de indemnização.»),consagrando, para uma situação de excepção(«quando particulares exigências da protecção davítima o imponham») uma solução de excepção(em caso de condenação, assegurado o respeitopelo contraditório, atribuição, ex officio, de in-demnização à vítima) que pressupõe, obviamen-te, a regra ou princípio de que, em processo penal,

o juiz só pode arbitrar indemnização, ao lesado,quando este tiver deduzido o respectivo pedido,nos termos do citado artigo 77.º do Código deProcesso Penal.

Portanto e em suma: no processo penal, senão tiver sido deduzido pedido cível e se não severificar o condicionalismo previsto no citadoartigo 82.º-A do Código de Processo Penal, otribunal, ainda que proceda a acusação, não podecondenar o arguido em indemnização a favor dolesado.

Sendo assim, «a indemnização devida ao le-sado» a que se refere o artigo 51.º, n.º 1, alínea a),do Código Penal, não pode ser outra que não sejaa indemnização em que o arguido tenha sido con-denado — ou por ter procedido, total ou parcial-mente, o respectivo pedido contra ele formuladopelo lesado, nos termos do artigo 77.º do Códigode Processo Penal, ou por se terem verificado ospressupostos do artigo 82.º-A, n.º 1, do Códigode Processo Penal —, o que significa que, se nãofoi deduzido pedido cível e não houve condena-ção ao abrigo do disposto no último preceitolegal citado, a suspensão da execução da pena deprisão não pode ser condicionada ao pagamentode uma indemnização ao lesado, pelos prejuízosque sofreu em consequência do crime. [Aliás, seum dos deveres que o artigo 51.º, n.º 1, alínea a),do Código Penal prevê, expressamente, comoaplicável, em alternativa ao do pagamento daindemnização, é o de garantir esse pagamento(«pagar [...] a indemnização devida ao lesadoou garantir o seu pagamento por meio de cau-ção idónea»), é evidente que o que está em causasó pode ser a indemnização em que o arguido foicondenado e só essa.) No caso dos autos, nemfoi formulado qualquer pedido cível nem tevelugar a condenação do arguido em indemnizaçãoimposta por particulares exigências de protec-ção das vítimas dos crimes.

Logo, entendemos que, legalmente, não é pos-sível subordinar a suspensão da execução da penade prisão imposta ao arguido à obrigação de pa-gar qualquer indemnização às ofendidas, inde-pendentemente do seu montante.

Leonardo Dias.

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92 BMJ 501 (2000)Direito Penal

DECISÃO IMPUGNADA:

Acórdão da Vara Mista do Tribunal da Comarca de Setúbal, processo n.º 77/97.

I e II — Para uma perspectiva e análise da razão de ser e da história do crime de maus tratos,previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as alterações introduzidas à redacção original, bemcomo um exame aos elementos típico do crime, veja-se Américo Taipa de Carvalho, anotação aopreceito em causa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, tomo I (artigos 131.ºa 201.º), Coimbra Editora, 1999, págs. 329 a 339. Na jurisprudência, ver, quanto a maus tratos acônjuge, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 1994, processo n.º 45 756,publicado neste Boletim, n.º 434, pág. 317, e de 13 de Novembro de 1997, processo n.º 1225/97.

III — Sobre a terceira proposição, que constitui jurisprudência dominante, como se refere notexto do acórdão em anotação, veja-se o acórdão de 2 de Junho de 1999 nele mencionado, tirado norecurso n.º 387/99, do mesmo Tribunal, também com um voto de vencido.

(J. M. S. M.)

Crime de tráfico de estupefacientes — Tráfico de menorgravidade — Relevância, para a qualificação, da perigosidadeda droga traficada, da intenção lucrativa e da toxicodepen-dência

I — O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, gradua as penas do tráfico deestupefacientes conforme a sua gravidade, pressupondo uma certa tipologia de trafi-cantes: os grandes traficantes (artigos 21.º e 22.º), os médios e pequenos traficantes(artigo 25.º) e os traficantes consumidores (artigo 26.º).

II — À natureza da punição também não é alheia a perigosidade da droga tra-ficada.

III — Por outro lado, embora a lei não inclua a intenção lucrativa na definição dotipo legal, o certo é que ela não pode ser indiferente. Com efeito, o tráfico tem implícita,como regra, a intenção, o móbil do lucro. E essa intenção lucrativa, e a sua intensidadee desenvolvimento, podem ser decisivos para auxiliar no enquadramento legal do ar-guido como grande, médio ou pequeno traficante, ou traficante-consumidor.

IV — A toxicodependência do agente, não afastando a ilicitude, deve ser valoradanessa sede, face aos efeitos danosos na sua capacidade de querer e entender.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 30 de Novembro de 2000Processo n.º 2849/2000

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93 Direito PenalBMJ 501 (2000)

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No Círculo Judicial do Barreiro foram jul-gados os arguidos:

1) Carlos Manuel Assis Castanho;2) Fernando Manuel Aleixo Oliveira;3) Dália Sécio da Silva Dias;

encontrando-se acusados outros 9 arguidos cujoprocedimento criminal foi declarado extinto poramnistia, todos devidamente identificados nosautos, tendo sido, a final, por acórdão de 26 deAbril de 2000, deliberado:

1 — Julgar a acusação parcialmente proce-dente, por apenas parcialmente provada econsequentemente:

a) Condenar o arguido Carlos Castanho,como autor material de um crime de trá-fico de menor gravidade, previsto e pu-nido no artigo 25.º, alínea a), na pena dedois anos de prisão;

b) Absolver os arguidos Fernando Oliveirae Dália Dias do crime de incitamento aouso de estupefacientes, previsto e pu-nido no artigo 29.º, n.º 1, de que vêmacusados.

2 — Condenar o arguido Carlos Castanho em2 UCs de taxa de justiça e nas custas do pro-cesso, fixando-se a procuradoria no mínimo e oshonorários devidos à Ex.ma Defensora Oficiosados arguidos e ao Ex.mo Defensor Oficioso daarguida — sendo da responsabilidade do arguidoCarlos Castanho os fixados à sua Ex.ma De-fensora Oficiosa, mas a serem pagos indepen-dentemente da cobrança de custas pelo CofreGeral dos Tribunais e da responsabilidade desteCofre os fixados ao Ex.mo Defensor Oficioso, em45 000$00 e 40 000$00, respectivamente, bemcomo em 1% da referida taxa de justiça, estemontante a favor daquele Cofre — artigos 513.ºe 514.º do Código de Processo Penal, 85.º, n.º 1,alínea a), e 89.º do Código das Custas Judiciais,47.º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de De-zembro, 110.º do Decreto-Lei n.º 391/88, de 26de Outubro, e 2.º a 4.º do Decreto-Lei n.º 231/99,de 24 de Junho, conjugado com o n.º 5, alí-nea a-2), da tabela anexa a este último diploma

legal e artigo 13.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de Outubro;

3 —Declarar perdidas a favor do Estado assubstâncias estupefacientes apreendidas, deter-minando que se proceda à sua destruição — ar-tigos 35.º, n.º 2, e 62.º, n.º 6, do Decreto-Lein.º 15/93;

4 — Julgar extintas, após trânsito desta deci-são, as medidas de coacção impostas ao arguidoCarlos Castanho e, de imediato, as medidas decoacção impostas aos arguidos Fernando Oli-veira e Dália Dias — artigo 214.º, n.º 1, alíneas d)e e), do Código de Processo Penal.

Inconformado, recorreu do decidido o magis-trado do Ministério Público junto do tribunal aquo, culminado a respectiva motivação com aformulação deste rol conclusivo:

1.ª — Tendo sido submetido a julgamento emprocesso comum e com intervenção do tribunalcolectivo, acusado da prática de um crime de trá-fico de produtos estupefacientes, previsto e pu-nido pelo artigo 21.º, n.º l, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com a agravante especialda reincidência, o recorrido foi condenado pelocrime previsto e punido pelo respectivo artigo25.º, alínea a), sem a referida agravante, na penade dois anos de prisão.

2.ª — A convolação para o crime menos graveficou a dever-se ao facto de o colectivo ter consi-derado que a ilicitude do facto se mostra consi-deravelmente diminuída, em função da quantidadede droga apreendida e vendida, o espaço de tem-po durante o qual se desenvolveu a actividade dorecorrido e os meios utilizados.

3.ª — Interpretaram-se o citado artigo 25.º e oartigo 26.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, combi-nados com o n.º 9 e mapa anexo da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, no sentido de a droga detidae a vendida ou cedida pelo recorrido (3,089 g deheroína e 0,236 g de cocaína, mais 38 doses in-dividuais de heroína) serem quantidades dimi-nutas.

4.ª — Porém, atendendo a que a jurisprudên-cia vai no sentido de que quantidade diminutapara efeitos de privilegiamento do crime de trá-fico é aquela que não excede a necessária parao consumo médio individual durante um dia,nunca podendo exceder 1,5 g de heroína, verifi-ca-se que o acórdão recorrido errou na interpre-

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94 BMJ 501 (2000)Direito Penal

tação que fez das normas referidas na conclu-são 3.ª

5.ª — Se tivesse feito um uso correcto dasregras da hermenêutica jurídica, como devia, oacórdão recorrido teria interpretado as referidasnormas no sentido de que a quantidade de drogadetida pelo recorrido e aquela que vendeu ou ce-deu não são diminutas e as restantes circunstân-cias do facto não diminuem a ilicitude por formaque a sua conduta possa ser subsumida na previ-são do artigo 25.º, alínea a).

6.ª — Tanto mais que o recorrido já havia sidocondenado por tráfico de produtos estupefa-cientes, não se trata de um facto episódico da suavida (a sua conduta ilícita desenvolveu-se aolongo de vários meses) e a espécie de droga deque se trata é a mais perigosa das drogas clássi-cas, pelos efeitos degradantes e devastadores deseres humanos que a mesma provoca.

7.ª — Com a quantidade de substância estu-pefaciente de que se trata e com as restantescircunstâncias que envolvem o facto, não olvi-dando aquelas que se referem à pessoa do recor-rido, factualidade provada preenche o tipo decrime desenhado no artigo 21.º, n.º 1, pelo qualdeve ser condenado.

8.ª — Trata-se de um crime muito grave, aten-tos os bens jurídicos protegidos pela respectivanorma incriminadora (a saúde física e psíquica, aliberdade e a própria vida dos virtuais consumi-dores) , sendo de perigo abstracto, na medida emque o mesmo se consuma sem que seja a necessá-rio verificar-se um perigo concreto para os refe-ridos bens e muito menos a lesão dos mesmos,pelo que deve ser punido com uma certa seve-ridade.

9.ª — Na determinação da medida concreta dapena consideram-se as circunstâncias referidasno artigo 71.º do Código Penal, nomeadamente ograu de ilicitude do facto e a culpa do agente, bemcomo os seus antecedentes criminais.

10.ª — A medida judicial da pena, quando nãoexistam circunstâncias atenuantes de relevo, comoé o caso, não deve ficar próxima do limite míni-mo da moldura abstracta considerada, mas deveser superior ao limite máximo da respectiva mol-dura abstracta, única forma de a mesma se mos-trar suficiente, proporcional e adequada.

11.ª — Com efeito, é elevado o grau de ilicitudedo facto e é intensa a culpa com que o recorrido

agiu, sendo que a sua conduta anterior e poste-rior ao crime em nada o favorece.

12.ª — Uma pena não superior a metade dolimite máximo da respectiva moldura abstracta,por demasiado benévola, mostra-se manifes-tamente insuficiente para que o direito penalpossa continuar a ser um regulador eficaz da vidaem sociedade e para que funcione como instru-mento dissuasor de comportamentos desviantese ameaçadores ou lesantes dos bens jurídico--criminais.

13.ª — O limite mínimo da pena que deve seraplicada, em cada caso concreto, é medido peloquantum indispensável para que não fique irre-mediavelmente comprometida a crença da comu-nidade na validade das normas incriminadoras epara que não cresçam os sentimentos de insegu-rança e de desconfiança dos cidadãos nas insti-tuições jurídico-penais.

14.ª — Uma vez que as penas cominadas nasnormas incriminadoras correspondem a umavaloração actualizada da lei, revela a boa herme-nêutica que as mesmas só consentem a fixação dapena próximo do seu limite mínimo, como erafrequente no domínio da vigência do CódigoPenal de 1886, quando militem a favor do con-denado circunstâncias gerais de elevado valoratenuativo.

15.ª — Pelo que fica exposto nas conclusõesprecedentes, sobretudo porque quase só há cir-cunstâncias agravantes a ter em conta, a penaconcreta que se mostra proporcional à gravidadedo crime, ao resultado decorrente da prática domesmo, bem como à intensidade da culpa e àsnecessidades de prevenção geral e especial, é aquelaque seja fixada em 6 anos e 6 meses de prisão.

16.ª — Na eventualidade de se julgar ser demanter a convolação para o artigo 25.º, alínea a),e tendo de igual modo em conta os fundamentosconstantes das anteriores conclusões, deve a penaque o acórdão impugnado aplicou ao recorridoser elevada para 3 anos e 6 meses de prisão.

17.ª — Nestes termos, dando-se provimentoao recurso, deve alterar-se o acórdão recorrido,julgando-se os factos provados como integran-tes do crime do artigo 21.º, n.º 1, e não no artigo25.º, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, efixar-se a pena concreta em 6 anos e 6 meses deprisão, determinando-se a penalidade em medidanão inferior a 3 anos e 6 meses de prisão, se

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95 Direito PenalBMJ 501 (2000)

eventualmente se considerar ser de manter aconvolação, com o que se fará a devida justiça.

Neste Supremo Tribunal após o visto doEx.mo Procurador-Geral Adjunto, e do despachopreliminar, onde foi julgado não existirem obstá-culos ao conhecimento do recurso, colheram-seos vistos legais, após o que foi realizada a au-diência.

2. São estes os factos provados no tribunalrecorrido:

A) Factos provados

1 — Até poucos dias antes de 23 de Janeirode 1998 o arguido Carlos Castanho residia comsua mãe na Rua de Luís Afonso, lote 2, rés-do--chão, direito, no Bairro da Caixa, na cidade doMontijo;

2 — Com referência à data em que este argui-do foi detido à ordem destes autos, 23 de Janeirode 1998, o mesmo era consumidor habitual deheroína, e, por vezes, de cocaína, que injectava,consumindo em média e diariamente entre cincoa sete doses diárias;

3 — O arguido ia abastecer-se ao Casal Ven-toso, duas vezes por mês, onde comprava o pro-duto a indivíduos que não foi possível identificar,para depois o consumir e, nos últimos seis me-ses antes da sua detenção em 23 de Janeiro de1998, também dividia parte do produto adqui-rido da segunda deslocação mensal a Lisboa em«palhinhas» que vendia, esporadicamente, emnúmero não superior a cinco ou seis, a consumi-dores que para o efeito o procurassem, ao preçode 1000$00 cada uma;

4 — Dentro do período de seis meses atrásreferido, em rua não apurada desta cidade doMontijo, o arguido José Campos comprou uma«palhinha» ao arguido Carlos Castanho, ao preçode 1000$00, destinando-a ao seu próprio con-sumo;

5 — Em Janeiro de 1998 a arguida Dália Diase o arguido Orlandino Rodrigues viviam namesma casa, como se fossem casados um com ooutro;

6 — Alguns dias antes de 23 de Janeiro de1998, o arguido Carlos Castanho saiu da residên-cia da mãe, passando a viver na rua, após o quefoi viver para a residência do arguido Fernando

de Oliveira, nos quatro dias anteriores a 23 deJaneiro de 1998, o qual lhe deu acolhimento;

7 — O arguido Fernando de Oliveira sabiaque o arguido Carlos Castanho era toxicodepen-dente;

8 — Como forma de compensar o arguidoFernando Oliveira pelo facto de este lhe permitirresidir na sua casa, o arguido Carlos Castanhocedeu a este, naqueles quatro dias e gratuita-mente, duas doses de heroína para consumo pró-prio;

9 — Em 23 de Janeiro 1998 a autoridadepolicial do Montijo recebeu um telefonema anó-nimo, através do qual lhe foi prestada a informa-ção de que o arguido Carlos Castanho tinha idoao Casal Ventoso, nesse mesmo dia, a comprarprodutos estupefacientes no valor de 30 000$00;

10 — Mediante esta informação, três agentesda PSP, munidos de uma autorização concedidapor ambos os arguidos, efectuaram uma busca ao3.º andar do prédio n.º 20 da Avenida de Luís deCamões, desta cidade, onde os mesmos resi-diam, tendo ali apreendido quatro «palhinhas» eduas quantidades de produtos que se supôs se-rem heroína e cocaína, pertencentes ao arguidoCarlos Castanho, ao mesmo tempo que ambosos arguidos foram detidos;

11 — Tendo os referidos produtos sido ob-jecto de exame laboratorial, o respectivo resul-tado revelou tratar-se de heroína e cocaína, como peso bruto de 3,720 g e 0,385 g e líquido de3,089 g e 0,236 g, respectivamente;

12 — O arguido Carlos Castanho tinha adqui-rido estes produtos nesse dia, no Casal Ventoso,num total de 10 «quarteiras» de heroína e 1 «quar-teira» de cocaína, pelo preço de 27 500$00;

13 — Destinava a maior parte de tal produto,embora em quantidade não concretamente apu-rada, ao seu consumo pessoal e, na parte res-tante, pretendia dividi-lo em doses individuais(«palhinhas»), destinadas a serem vendidas nostermos descritos em 3 supra e a ceder ao ar-guido Fernando Oliveira, nos termos descritosem 8 supra;

14 — Os arguidos Carlos Castanho e Fer-nando Oliveira sabiam que os produtos referidossupra eram heroína e, nalguns casos, cocaína, poisconheciam perfeitamente a natureza e as caracte-rísticas destas espécies de droga, de igual modotendo conhecimento de que as mesmas são mui-

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96 BMJ 501 (2000)Direito Penal

to prejudiciais à saúde física e psíquica dos indi-víduos que as consomem;

15 — O arguido Carlos Castanho sabia serproibido por lei deter droga para vender e consu-mir e os arguidos Fernando de Oliveira e DáliaMercês sabiam ser vedado prestar auxílio àque-les que os vendem ou consomem;

16 — O arguido Carlos Castanho agiu delibe-rada, livre e conscientemente na execução dosfactos que lhes são imputados;

17 — O arguido Carlos Castanho iniciou oconsumo de estupefacientes, primeiro na formafumada, cerca de três anos antes dos factos;

18 — Actualmente encontra-se em fase deabstinência daquele consumo, desde que se en-contra preso, há cerca de dois anos;

19 — O arguido tem como habilitações literá-rias a 4.ª classe, é pai de dois filhos, com asidades de 6 e 4 anos, os quais se encontram aviver um com a família da mãe e o outro com afamília do arguido;

20 — O arguido confessou os factos, mos-trando-se arrependido;

21 — Foi julgado e condenado:

a) Em 18 de Dezembro de 1995, no pro-cesso n.º 1061/94.5 PAMTJ, da SecçãoAuxiliar do Tribunal de Círculo do Bar-reiro, por um crime previsto e punidono artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lein.º 15/93, de 22 de Janeiro, por factosocorridos a 31 de Outubro de 1991, napena de 2 anos e 6 meses de prisão,suspensa na sua execução pelo períodode 4 anos, suspensão esta posterior-mente revogada, encontrando-se o arguidoactualmente a cumprir esta pena, desde6 de Julho de 1998, data em que foi desli-gado destes autos (ver fls. 235);

b) Em 14 de Julho de 1997, no processon.º 350/96.9PAMTJ, da Secção C do Tri-bunal de Círculo do Barreiro, por umcrime previsto e punido no artigo 40.º,n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, por factosocorridos em 14 de Agosto de 1996, napena de 2 meses de prisão, que foi consi-derada expiada pela prisão preventivasofrida;

c) Em 30 de Novembro de 1999, no pro-cesso n.º 18/98, do 3.º Juízo do Tribunal

Judicial do Montijo, por um crime pre-visto e punido no artigo 256.º, n.os 1, alí-nea a), e 3, do Código Penal, por factosocorridos em Janeiro de 1998, na pena de8 meses de prisão, a qual foi declaradaintegralmente perdoada, ao abrigo da Lein.º 29/99, de 12 de Maio, decisão esta quenão transitou em julgado pois da mesmafoi interposto recurso pelo MinistérioPúblico.

B) Factos não provados

Não se provaram os restantes factos articula-dos na acusação que sejam incompatíveis com osatrás descritos, nomeadamente que:

1 — Pelo menos desde 1991 o arguido CarlosCastanho dedica-se à comercialização de um pro-duto estupefaciente que conhece como sendoheroína, e de outro produto que conhece comosendo cocaína, outras vezes;

2 — Até poucos dias antes de 23 de Janeirode 1998 o arguido, nas imediações da residênciada sua mãe, na Rua de Luís Afonso, lote 2, rés--do-chão, direito, no Bairro da Caixa, desta ci-dade, e após combinação prévia com os consu-midores, entregava a estes o produto e recebiadeles a contrapartida monetária;

3 — O arguido ia abastecer-se ao Casal Ven-toso, duas ou três vezes por semana, para de-pois dividir todo o produto em «palhinhas» quevendia a todo e qualquer consumidor que para talefeito o procurasse, ao preço de 1000$00 cadauma;

4 — Desde 1991 e até 23 de Janeiro de 1998,data em que foi detido, e excluindo o tempo queesteve preso à ordem do processo n.º 350/96.9PAMTJ, o arguido vendeu com regularidade«palhinhas», no local referido em 2 supra e aopreço de 1000$00, a vários indivíduos consumi-dores de estupefacientes;

5 — Todos os restantes arguidos, com excep-ção do Orlando Rodrigues, nos referidos períodoe local, compraram «palhinhas» ao arguido CarlosCastanho, ao preço de 1000$00 cada uma, desti-nando-as ao seu próprio consumo;

6 — A arguida Dália Dias, há alguns anos atrás,soube que o arguido Carlos Castanho vendia he-roína porque o ouviu dizer, em Pinhal Novo, a

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97 Direito PenalBMJ 501 (2000)

vários indivíduos ligados ao consumo de produ-tos estupefacientes;

7 — A arguida Dália Dias eram quem compra-va a heroína para si e para o arguido OrlandoRodrigues, mas a porção que se destinava ao con-sumo deste era adquirida com dinheiro que estepreviamente lhe entregava;

8 — O arguido Orlandino Rodrigues pro-curava este auxílio na aquisição da heroína por-que receava ser surpreendido e detido pela auto-ridade policial, se fosse ele a comprá-la;

9 — Alguns dias antes de 23 de Janeiro de1998, a mãe do arguido Carlos Castanho disse aeste que não o queria mais em sua casa, por sededicar à venda de droga;

10 — O arguido Fernando de Oliveira sabiaque aquele ia comprar heroína ao Casal Ventoso,para dividir em «palhinhas» e vender no Montijo,tendo-lhe permitido que a guardasse em sua casa,para evitar que a autoridade policial o surpreen-desse com o produto na sua posse, auxiliando-odesta forma;

11 — O arguido Carlos Castanho ia dividirtodo o produto apreendido em doses individuais(«palhinhas»), destinadas a serem vendidas aosrestantes arguidos e a outros consumidores;

12 — Todos os arguidos sabiam que os pro-dutos referidos supra eram heroína e, nalgunscasos, cocaína, pois conheciam perfeitamente anatureza e as características destas espécies dedroga, de igual modo tendo conhecimento de queas mesmas são muito prejudiciais à saúde física epsíquica dos indivíduos que as consomem;

13 — No período «desde 1991 e até 23 deJaneiro de 1998», cada um dos arguidos (o ar-guido Orlandino Rodrigues através da arguidaDália Dias), comprou ao arguido Carlos Casta-nho um número indeterminado de doses indivi-duais de heroína, que consumiu em muito maisde três dias;

14 — Os arguidos Fernando Oliveira e DáliaDias agiram deliberada, livre e conscientementena execução dos factos que lhes são imputados;

15 — O arguido Carlos Castanho, apesar deter sido condenado em prisão e de ter cumpridoa pena, continuou a dedicar-se à comercializaçãode produtos estupefacientes com a mesma regu-laridade com que o fazia antes da condenação;

16 — Com a conduta que fica descrita, o ar-guido Carlos Castanho demonstrou que a pena

que lhe foi aplicada foi insuficiente para o afastarda criminalidade, pelo que, para se alcançar estedesiderato, há necessidade de lhe aplicar penasmais pesadas.

Pela leitura da decisão não resulta que a maté-ria factual apurada e descrita supra sofra de qual-quer vício dos que cumpra conhecer oficiosa-mente, mormente dos referidos no artigo 410.º,n.º 2, do Código de Processo Penal.

Cumpre assim conhecer do mérito do recursojá que a tal nada obsta.

Como se vê da transcrição das conclusões dorecurso, são essencialmente duas as questões adecidir:

I — Indagação da correcta subsunção jurí-dica dos factos (artigo 21.º ou artigo 25.º do De-creto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro);

II — Determinação da medida concreta dapena.

Por outro lado, o recurso é limitado à conde-nação do arguido Carlos Castanho, excluindopois a decisão de absolvição dos demais argui-dos, uma vez que, além do mais, se verifica ocondicionalismo do artigo 403.º, n.º 2, alínea d),do Código de Processo Penal, não sendo o casodos referidos no artigo 402.º, n.º 2, alíneas a) e c),do mesmo diploma.

Abordemos agora as questões sumariadas:

a) Subsunção jurídica dos factos

Entendeu-se no tribunal recorrido integrar ela,pelo preenchimento dos elementos objectivo esubjectivo, a prática, por banda do arguido CarlosCastanho, não do crime de tráfico do artigo 2l.º,n.º 1, de que foi acusado, antes, o crime de tráficode menor gravidade previsto e punido no artigo25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.

Justifica depois o assim decidido da seguinteforma:

«Cumpre agora proceder ao enquadramentojurídico-penal da factualidade descrita.

1.1 — Integra ela, pelo preenchimento doselementos objectivo e subjectivo, a prática, porbanda do arguido Carlos Castanho, não do crimede que vem acusado, mas antes o crime previstoe punido no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.

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98 BMJ 501 (2000)Direito Penal

Com efeito, o arguido, ao ter procedido daforma descrita, ou seja, ter procedido à venda,esporadicamente, de produto estupefaciente, aheroína, substância esta integrada na tabela I-Aanexa ao referido Decreto-Lei n.º 15/93, sabendoser a sua conduta proibida e punida por lei,preenche em princípio os elementos típicos docrime de tráfico do artigo 21.º citado.

Porém, a actividade provada do arguido ficoulimitada a um período temporal curto, de cercade seis meses e não, como vinha acusado, desdepelo menos 1991 a 23 de Janeiro de 1998. Acres-ce que quer a quantidade de heroína detida peloarguido, um peso líquido total de 3,089 g (sendode realçar que parte desta, em quantidade maissignificativa, seria para consumo próprio domesmo), quer as quantidades de heroína que terávendido (seis doses vezes seis meses, mais duasdoses cedidas ao arguido Fernando Oli-veira),não podem deixar de se considerar como peque-nas quantidades. Estamos, como é fácil de cons-tatar, perante o pequeno traficante, o úl-timo eloantes do consumidor.

Assim, em face da quantidade das substân-cias ilícitas, bem como dos meios utilizados, tí-picos do pequeno traficante, é de concluir que ailicitude do facto se mostra consideravelmentediminuída, pelo que se mostram apenas preen-chidos os elementos típicos do crime do artigo25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.

Por outro lado, não se verificam os pressu-postos da reincidência, ao contrário do que pugnao Ministério Público na acusação, não podendopois o arguido Carlos Castanho ser condenadopor esta agravante geral. Com efeito, são pressu-postos da punição como reincidente, nos termosdo n.º 1 do artigo 75.º do Código Penal, além dacondenação em pena efectiva de prisão superiora 6 meses que o agente tenha anteriormente sido«condenado por sentença transitada em julgadoem pena de prisão efectiva superior a 6 mesespor outro crime doloso» e que o agente seja decensurar por, de acordo com as circunstâncias docaso, a condenação ou condenações anterioresnão lhe terem servido de suficiente advertência,contra o crime. Por seu lado, o n.º 2 deste últimopreceito estabelece que não releva para a reinci-dência o crime anterior cometido pelo agente sedecorreram «mais de 5 anos» em relação ao crimeora cometido.

Analisado o caso concreto entre mãos é fácilconstatar que, desde logo, os pressupostosacima salientados entre aspas não se verificam.

Com efeito, o crime que motiva a condenaçãodo arguido no processo n.º 1061/94 foi cometidoem 31 de Outubro de 1991, pelo que em relaçãoao mesmo decorreram mais de cinco anos até aocrime cometido nestes autos, não relevando as-sim aquele crime para efeitos de reincidência, atéporque não se verificam as excepções previs-tas na parte final do n.º 2 do artigo 75.º citado.Quanto ao segundo crime cometido pelo argui-do, no processo n.º 350/96, supra melhor iden-tificado, o arguido apenas foi aí condenado em2 meses de prisão, ou seja, em limite inferior aos6 meses de prisão efectiva exigidos pelo n.º 1 doartigo 75.º citado.

Vejamos se assim é.

Conforme o decidido em acórdão com matériade facto em tudo semelhante ao ora em elabora-ção — recurso n.º 2727/2000, oriundo do mesmotribunal e em que foi recorrente António JoséAssis Castanho — teve-se como base esta or-dem de considerações:

O bem jurídico primordialmente protegidopelas previsões do tráfico é o da saúde e integri-dade física dos cidadãos vivendo em sociedade,numa palavra, a saúde pública. Fala-se mesmona protecção da própria Humanidade, se enca-rada a sua destruição a longo prazo ou ainda naprotecção da liberdade do cidadão em alusão im-plícita à dependência que a droga gera (1).

Na luta contra esse verdadeiro flagelo que as-sola a Humanidade nos nossos dias, de há muitoconstitui ideia assente, quer a nível do direitoconvencional internacional, quer do direito in-terno, a necessidade da aplicação de penas seve-ras aos narcotraficantes, a quem, com proprie-dade já foi aplicado o qualificativo de «trafican-tes da morte» atento o desvalor social objectivoda sua actividade perniciosa.

Porém, a lei não poderia deixar de considerar aexistência de gradações quanto a tal punição, e,assim, de algum modo, distinguir a gravidade re-lativa dessa actuação.

(1) Cfr. A. G. Lourenço Martins, Droga e Direito, págs.122.

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99 Direito PenalBMJ 501 (2000)

Nomeadamente no regime emergente do De-creto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, e novigente Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro,pressupõe-se uma certa tipologia de traficantes:os grandes traficantes (artigos 21.º e 22.º do úl-timo diploma citado), os médios e pequenos tra-ficantes (artigo 25.º do mesmo diploma) e ostraficantes consumidores (artigo 26.º).

À natureza da punição também não é alheia aperigosidade da droga traficada. Conforme o au-tor citado, que vimos seguindo de perto, emborao legislador não tivesse aderido à conhecida dis-tinção entre drogas duras e leves, verifica-se al-guma graduação, consoante a sua posição nastabelas I a III ou na tabela IV anexas ao citadodecreto-lei.

Por outro lado, embora a lei não inclua a inten-ção lucrativa na definição do tipo legal, o certo éque ela não pode ser indiferente para o fim quenos propomos. Com efeito, o tráfico tem implí-cita, como regra, a intenção, o móbil do lucro.E essa intenção lucrativa, e a sua intensidade edesenvolvimento podem ser decisivos para auxi-liar no enquadramento legal do arguido, comogrande, médio ou pequeno traficante, ou trafi-cante consumidor.

Por outro lado, ainda, «mostrar-se-á muitorelevante para o próprio enquadramento legal, oconhecimento da personalidade do arguido, doseu habitat — se era um dealer de apartamentoou de rua, se era um simples intermediário — e,em particular, se não era consumidor de droga,se era consumidor ocasional ou era já um con-sumidor habitual ou mesmo um toxicodepen-dente». (2) Pois, como já decidiu este SupremoTribunal (acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 27 de Junho de 1991, Colectânea de Juris-prudência, ano XVI, tomo III, págs. 40), emboraassentando em que a dependência não aconselha,sem mais, o uso da faculdade de atenuação espe-cial da pena, «a sensação de carência a que chegao toxicodependente torna-o obcecado para tudotentar no sentido de obviar a esse estado, o quelhe diminui e amolece significativamente a culpae a capacidade de determinação; o dependentenão deixa de merecer uma pena, mas deve sertratado numa simbiose a que não fiquem estra-

nhos o apreço do facto e o apelo específico dapersonalidade».

Aqui chegados, é altura de perguntar, a final,se os factos provados devem ser enquadrados noartigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 deJaneiro, como defende o Ex.mo Recorrente, ou se,pelo contrário, estaremos perante um caso de«tráfico de menor gravidade», abarcado pelo ar-tigo 25.º do mesmo diploma lega1 (3), como sefez no acórdão recorrido e é também defendidopelo arguido.

Ora, nesta tarefa, temos como acertada aconstatação (4) de que o legislador português,abandonou o rigorismo da quantidade diminutaoriundo do Decreto-Lei n.º 430/83, entendidaaquela como dose individual necessária ao con-sumo de um dia, alargando esse parâmetro paraalguns dias.

Por outro lado, se é certo que o aspecto quan-titativo não deixa de ser de grande importânciana tarefa que nos ocupa, a contemplação de umahipótese atenuada de tráfico implica uma valori-zação global do facto, devendo o juiz valorarcomplexivamente todas as concretas circunstân-cias do caso — a enumeração do artigo 25.º não étaxativa —, com vista à obtenção de um resul-tado final, qual seja o de saber se, objectiva-mente, a ilicitude da acção é de relevo menor quea tipificada para os artigos anteriores.

Aqui chegados, vejamos então o caso con-creto:

O arguido Carlos Castanho, com referência àdata em que foi detido (23 de Janeiro de 1998)era consumidor habitual de heroína e, por vezes,de cocaína, que injectava, consumindo em médiaentre cinco a sete doses diárias — facto 1.

Ia abastecer-se ao Casal Ventoso duas vezespor mês, onde comprava o produto a indivíduosque não foi possível identificar, para, depois, oconsumir e, nos últimos seis meses, antes da suadetenção, em 23 de Janeiro de 1998, tambémdividia parte do produto adquirido da segundadeslocação mensal a Lisboa, em «palhinhas» que

(2) Cfr. autor e ob. cits., págs. 125.

(3) Uma vez que é dado adquirido que o caso não cabe noartigo 26.º, desde logo porque está longe dos factos provadosa finalidade exclusiva de obtenção das substâncias para usopessoal.

(4) Cfr. ob. cit., págs. 153.

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100 BMJ 501 (2000)Direito Penal

vendia, esporadicamente, em número não supe-rior a cinco ou seis, a consumidores que para oefeito o procurassem, ao preço de 1000$00 cadauma — facto 3.

Destinava a maior parte do produto que lhefoi encontrado para uso pessoal, destinando aparte sobrante à venda, nos termos descritos em3 dos factos provados e à cedência ao FernandoOliveira, nos termos descritos no item 8 dos mes-mos factos — facto 13.

Era, pois, claramente um toxicodependente,encontrando-se actualmente em fase de abstinên-cia daquele consumo desde que se encontra pre-so, há cerca de dois anos — facto 18.

É cantoneiro de limpeza, tem como habilita-ções literárias a 4.ª classe do ensino básico, e épai de dois filhos, com 6 e 4 anos de idade, res-pectivamente, os quais se encontram a viver umcom a família da mãe e o outro com a família doarguido — facto 19.

Em 23 de Janeiro de 1998, mediante denúnciaanónima, a PSP do Montijo efectuou uma buscaao local de residência do arguido tendo encon-trado ali 3,089 g de heroína e 0,236 g de cocaína,adquiridas nesse dia no Casal Ventoso, num totalde 10 «quarteiras» de heroína e 1 «quarteira» decocaína, tudo pelo preço de 27 500$00 — fac-tos 10 a 13.

Para além da condenação — 2 anos e 6 mesesde prisão — que cumpre por tráfico de droga —artigo 25.º do decreto-lei citado — por factosocorridos em 31 de Outubro de 1991, foi conde-nado em 14 de Julho de 1997, por factos de 14 deAgosto de 1996 na pena de 2 meses de prisãopela prática do crime do artigo 40.º, n.º 1, domesmo diploma e respondeu em 30 de Novem-bro de 1999 pela prática, em Janeiro de 1998, deum crime do artigo 256.º, n.os 1, alínea a), e 3, doCódigo Penal, tendo sido condenado em 8 mesesde prisão, mas a sentença ainda não transitou emjulgado — facto 21.

Confessou os factos e mostrou-se arrepen-dido — facto 20.

Sendo esta, em suma, a realidade factual apu-rada e tendo em conta o esboço dos princípiossupra-alinhados, somos a concluir, tal como ofez o tribunal recorrido, que com alguma dificul-dade se poderia rotular o arguido de «grande tra-ficante».

A quantidade que lhe foi apreendida, emboraresidualmente destinada à venda, pouco ultra-passava as suas necessidades de consumo diáriopor alguns dias, se tivermos em conta o númerode vezes que se injectava — entre cinco e setedoses diárias (facto 2).

Não se sabendo quais as quantidades precisasentretanto traficadas (facto 13), obviamente que,ao contrário do que parece defender o recorrente,daí não poderão extrair-se conclusões desfavorá-veis, dado o princípio in dubio pro reo, emer-gente do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição daRepública Portuguesa, que, segundo o melhorsentido do preceito, contém, além do mais, umaimposição dirigida ao juiz no sentido de este sepronunciar de forma favorável ao réu, quandonão tiver a certeza sobre os factos decisivos paraa solução da causa (5).

Por outro lado, a acentuada toxicodependênciado arguido, apesar de não afastar a ilicitude, terá,nesta sede, uma valoração não desprezível, anteos óbvios efeitos danosos na sua capacidade dequerer e entender.

Finalmente, o meio social humilde que o ro-deia, as suas rudimentares habilitações literárias,os parcos meios utilizados, fazem crer não estar-mos perante alguém a viver mais ou menos abas-tadamente à sombra do lucro do tráfico, antesfazendo crer que este se destina mais a financiara dependência que à obtenção do lucro puro esimples.

Enfim, em menor medida, a confissão, aliás,pouco relevante, bem como a patenteada von-tade de se submeter a regime de cura, a daremideia de algum inconformismo do arguido ante asua actual situação desviante.

Donde a conclusão de, tudo valorado, termoscomo preenchido o conceito em branco de ilicitudeconsideravelmente diminuída inserido no artigo25.º do citado Decreto-Lei n.º 15/93.

Daí que a moldura penal abstracta seja aquelapor que enveredou o tribunal recorrido, nesseponto não havendo censura a fazer ao decidido.

II — Outra questão — e aqui se entra notratamento da segunda vertente do recurso —

(5) Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constitui-ção da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista,págs. 203.

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101 Direito PenalBMJ 501 (2000)

consiste em saber se a pena concreta aplicada seconforma com os ditames legais.

A moldura abstracta é a de prisão de 1 a 5anos.

Ora, é preciso não esquecer que o arguido,como se intui do seu passado criminal, não temfeito grande esforço para se afastar da sinistrateia em que parece ter inexoravelmente caído.

É disso sintoma o presente julgamento, ocor-rido depois de uma já severa condenação porcrime de idêntica natureza que ora se encontra acumprir.

E esta atitude de alheamento na luta contra ovício, e apesar dele, é-lhe censurável ética e so-cialmente. Isto é, a culpa é elevada, tanto maisque persiste já há cerca de uma década na cami-nhada criminosa por que decidiu enveredar.

Quanto à ilicitude, já ficou referido atrás terde considerar-se hoc sensu consideravelmentediminuída.

Além disso, são despiciendas quaisquer con-siderações em sede de necessidade de prevençãogeral e especial, do mesmo modo que não vale demuito procurar aspectos atenuativos no compor-tamento anterior do arguido.

Tudo para dizer que, neste ponto, se tem comomais adequada a pena proposta pelo digno re-

corrente, por ser a que mais se adequa às finali-dades da punição e aos critérios de dosimetria,concreta do artigo 71.º do Código Penal.

3. Termos em que, no parcial provimento dorecurso, revogam em parte a decisão recorrida econdenam o arguido Carlos Manuel Assis Casta-nho, com os demais sinais dos autos, como autorde um crime de tráfico de menor gravi-dade,previsto e punido no citado artigo 25.º, alínea a),do Decreto-Lei n.º 15/93, na pena de três anos emeio de prisão.

No mais confirmam o decidido na instânciarecorrida.

O arguido porque decaiu em parte na oposi-ção que deduziu vai condenado em 4 UCs de taxade justiça.

Oportunamente serão remetidos novos bole-tins ao registo.

Honorários à ilustre defensora neste Su-premo: 20 000$00.

Lisboa, 30 de Novembro de 2000.

Pereira Madeira (Relator) — Simas Santos —Costa Pereira — Abranches Martins.

DECISÃO IMPUGNADA:

Acórdão de 26 de Abril de 2000 do 3.º Juízo do Tribunal do Montijo, processo n.º 7/98.6 PAMTJ.

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo ultimamente a aplicar com maior frequência o ar-tigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, em detrimento naturalmente do artigo 21.º domesmo diploma, tendência de que já se deu conta na anotação ao acórdão de 24 de Novembro de 1999(Boletim do Ministério da Justiça, n.º 491, pág. 88).

Apontam-se, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos (para além do citado no texto e domesmo relator), todos eles inéditos até ao momento em que se elabora a presente anotação (Maiode 2001):

— Acórdão de 14 de Fevereiro de 2001, processo n.º 4210/2000, 3.ª Secção, con-selheiro Lourenço Martins;

— Acórdão de 14 de Março de 2001, processo n.º 149/2001, 3.ª Secção, conselheiroArmando Leandro;

— Acórdão de 2 de Maio de 2001, processo n.º 1078/2001, 3.ª Secção, conselheiroDias Bravo;

— Acórdão de 10 de Maio de 2001, processo n.º 47220/01, 5.ª Secção, conselheiroCarmona da Mota.

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102 BMJ 501 (2000)Direito Penal

No presente acórdão são de salientar:

— A identificação de uma tipologia (tendencial) de traficantes correspondente àescala punitiva estabelecida nas incriminações dos artigos 21.º, 25.º e 26.º do Decreto--Lei n.º 15/93;

— O reconhecimento de que a diferente preciosidade das substâncias e a existênciaou não de intenção lucrativa, não sendo elementos típicos, são elementos indiciáriosimportantes para a subsunção da conduta a algum daqueles normativos;

— A consideração da toxicodependência não apenas em termos de fixação da medi-da concreta da pena (perdendo aliás a conotação negativa de indício de «culpa da forma-ção da personalidade», como alguma jurisprudência do Supremo vinha fazendo), mastambém como elemento relevante para a própria qualificação jurídica da conduta.

(E. M. C.)

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103 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

Acto administrativo — Deliberação municipal de reversão —Recurso contencioso — Meio processual idóneo

I — Constitui acto administrativo a deliberação camarária que unilateral e auto-ritariamente determinou a reversão para o património municipal de lote anteriormentealienado ao recorrente.

II — Assim sendo, o meio processual idóneo para a sua impugnação pelo particularlesado é o recurso contencioso.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 142(Secção do Contencioso Administrativo)

ACORDAM na 1.ª Secção, 3.ª Subsecção, doContencioso Administrativo do SupremoTribunal Administrativo:

I — Relatório

Reol — Indústrias de Vassouras, L.da, recorrejurisdicionalmente da decisão do TribunalAdministrativo do Círculo de Coimbra, datadade 10 de Janeiro de 2000, que rejeitou o recursocontencioso, por si interposto, da deliberação daCâmara Municipal da Murtosa datada de 12 deJaneiro de 1999, que determinou a reversão parao município de lote anteriormente alienado à re-corrente, e da deliberação de 29 de Agosto de1995, alterada pela deliberação de 21 de Novem-bro de 1995, na qual foi decidido alienar aquelemesmo lote à recorrente.

Para tanto, a recorrente alegou a fls. 111 a 117dos autos, formulando as seguintes conclusões:

«1.ª — Num processo em tudo igual ao pre-sente (igual acto administrativo, igual pedido emesmíssima causa de pedir) a decisão de distinto(e douto) magistrado do mesmo Tribunal Ad-ministrativo foi no sentido de declarar a nulidadedo acto por usurpação de funções, sendo que taldecisão jurisdicional transitou em julgado.

2.ª — A autoridade recorrida não decidiu, pelomenos apenas, a rescisão de qualquer contrato,mas decidiu, isso sim e no que interessa nestasede, autoritária e definitivamente, o que nãopodia, não só a reversão com a restituição deposse dos terrenos ao município, mas também a

perda das quantias entregues pagas pela recor-rente pelo bem.

3.ª — Assim sendo, uma vez que aquela pe-diu, principalmente e no que diz respeito ao actoem causa datado de 12 de Janeiro de 1999, aoTribunal a apreciação do vício de usurpação depoderes, o meio processual é precisamente opróprio.

4.ª — A recorrente não está a discutir nemnunca discutiu se cumpriu ou não qualquer con-trato ou uma sua cláusula e se por causa disso oacto é válido ou inválido, rectius lícito ou ilícito.

5.ª — Aliás, cremos mesmo que não tem sen-tido a economia da argumentação do acto desta-cável, pois que, materialmente, a questão não secoloca no plano contratual da rescisão (no planoda interpretação, validade e execução de um con-trato) mas sim no plano (evidente) da determina-ção da reversão e do retorno da posse dos terrenosao município.

6.ª — No preciso sentido que se vem defen-der decidiu o Supremo Tribunal Administrativo,abordando concretamente uma decisão adminis-trativa de reversão terrenos deslocada pelo juizde 1.ª instância para o domínio dos contratos,julgando expressamente, como consta do pri-meiro dos acórdãos infracitados, que o meio pró-prio é o recurso contencioso — cfr. acórdão doSupremo Tribunal Administrativo de 13 de Ja-neiro de 1983 proferido no âmbito do processon.º 17 641, da 1.ª Secção, em que foi relator o juizconselheiro Santos Patrão e acórdão do SupremoTribunal Administrativo de 21 de Maio de 1996da 2.ª Subsecção do Contencioso Administra-

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104 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

tivo, proferido no âmbito do processo n.º 35739, em que foi relator o juiz conselheiro AlcindoCosta.

7.ª — Foram pois, pelo que se vem de con-cluir, violados, por erro, os artigos 51.º, n.º 1,alínea g), e 9.º do Estatuto dos Tribunais Admi-nistrativos e Fiscais e os artigos 6.º e 51.º, n.º 1,alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administra-tivos e Fiscais, 24.º da Lei de Processo nos Tri-bunais Administrativos, artigo 120.º do Códigodo Procedimento Administrativo, bem como oartigo 268.º, n.º 4, da Constituição da RepúblicaPortuguesa.

8.ª — Finalmente, importa concluir que a re-corrente atacou a decisão de contratar, sendo quenenhuma decisão jurisdicional foi proferida rela-tivamente à legalidade ou ilegalidade dessa deci-são administrativa.

9.ª — Logo, verifica-se omissão de pronúncianos precisos termos do estatuído no artigo 668.º,n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil,aplicável ex vi do artigo 1.º da Lei de Processonos Tribunais Administrativos, sendo pois e as-sim a sentença nula.

Termos em que deve ser dado provimento aopresente recurso, anulando-se ou declarando-senula a sentença, só assim se fazendo justiça.»

A Câmara Municipal da Murtosa não alegou.O M.mo Juiz manteve a sentença agravada,

que sustentou nos termos que seguem:

«Entendemos dever manter-se a sentença pro-ferida.

Com efeito, não ocorre a arguida nulidade dasentença (conclusões 8 e 9 das alegações de 117)por não ter sido apreciada a legalidade da ‘deci-são administrativa de contratar’.

Na verdade a deliberação que está realmenteem causa nestes autos, que afecta o interesse darecorrente e lhe confere legitimidade, é aquelaque determinou a reversão para o município daMurtosa dos lotes adquiridos pela mesma recor-rente e, em relação a ela, o recurso foi rejeitado.

Quanto à deliberação de contratar apenas vemalegada a sua ilegalidade na medida em que, naalegação da recorrente, se repercute naquela, demodo que se a rescisão não tivesse tido lugar nãohavia lugar à sua impugnação.

Assim sendo, atenta a decisão de rejeição, nãoocorre a arguida nulidade.»

O Ex.mo Magistrado do Ministério Públicojunto deste Tribunal emitiu, a fls. 152 a 153, oparecer que se transcreve:

«A meu ver procede a nulidade por omissãode pronúncia, suscitada pela recorrente. Na ver-dade, tendo a recorrente impugnado expressa-mente a deliberação de 29 de Agosto de 1995,alterada pela de 21 de Novembro de 1995, a de-cisão recorrida tinha necessariamente de se pro-nunciar sobre ela. Quanto a esse ponto concor-da-se inteiramente com a argumentação aduzidapelo Sr. Juiz no seu despacho de fls. 147, enten-dendo-se, contudo, que o recurso de tal acto de-verá ser rejeitado, nos termos do § único do artigo57.º do Regulamento do Supremo Tribunal Ad-ministrativo.

Quanto ao mais, entende-se que o recursomerece provimento, sendo de revogar a decisãorecorrida.

Reconhecendo que a situação poderá mereceralguma dúvida, designadamente no que concerneà implicação da deliberação de 12 de Janeiro de1999 no contrato de compra e venda realizado a4 de Abril de 1996, a verdade é que a própriaautoridade recorrida jamais a tratou como decla-ração negocial unilateral emitida com vista à res-cisão do aludido contrato.

Bem pelo contrário. A deliberação recorridafoi tratada, desde início, como acto administra-tivo, proferida na sequência de um procedi-mento iniciado com a constatação de que a recor-rente não cumprira uma das condições impostaspelo regulamento que definiu os termos em queas vendas dos lotes se iriam processar, e foi atéprecedida de uma outra, de 11 de Agosto de 1996,a fls. 30, elaborada expressamente para lhe per-mitir pronunciar-se nos termos dos artigos 100.ºe seguintes do Código do Procedimento Admi-nistrativo’.

Nesse entendimento, a Câmara Municipal daMurtosa ‘deliberou, por unanimidade, convertero projecto de decisão em decisão definitiva’(fls. 16).

Se outras razões de cariz substantivo não sub-sistissem, a confiança e boa fé que a recorrentecolocou no procedimento sempre teriam de sersalvaguardadas, permitindo-se-lhe a impugnaçãocontenciosa de tal acto.»

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105 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

Colhidos os vistos dos Ex.mos Juízes Adjun-tos, cumpre apreciar e decidir.

II — Matéria de facto

A sentença recorrida deu por assentes os se-guintes factos:

1 — A recorrente adquiriu em 4 de Abril de1996, ao município da Murtosa, um lote de ter-reno destinado à construção de uma unidade in-dustrial para fabricação de vassouras, sito na ZonaIndustrial da Murtosa.

2 — Pela deliberação impugnada de 12 deJaneiro de 1999, a Câmara Municipal recorridadeliberou a reversão da propriedade alienada,dado que a recorrente não apresentou qualquerprocesso de construção definitivo da referida uni-dade fabril.

III — O direito

A) Fundamentação:

São duas as questões a decidir no presenterecurso jurisdicional.

A primeira prende-se com a alegada verifica-ção, na sentença recorrida, da nulidade, por omis-são de pronúncia, prevista na alínea d) do n.º 1do artigo 668.º do Código de Processo Civil, por-quanto o recorrente teria impugnado a delibera-ção camarária datada de 29 de Agosto de 1995,sem que o tribunal se tivesse pronunciado sobrea questão.

A segunda questão consiste em determinar sea sentença recorrida padece de erro de julgamen-to no que concerne à rejeição do recurso inter-posto da deliberação da Câmara Municipal daMurtosa de 12 de Janeiro de 1999, que determi-nara a reversão para a posse do município dapropriedade alienada em 4 de Abril de 1996 àrecorrente, por considerar inidóneo meio pro-cessual utilizado, visto não se estar perante umacto administrativo destacável relativo à exe-cução contratual, previsto no artigo 9.º, n.º 3,do Estatuto dos Tribunais Administrativos eFiscais.

Conhecendo em primeiro lugar da alegadanulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Dispõe a alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º doCódigo de Processo Civil que é nula a sentençaquando o juiz deixe de pronunciar-se sobre ques-tão que devesse apreciar.

Esta nulidade está directamente relacionadacom o comando contido no n.º 2 do artigo 660.ºtambém do Código de Processo Civil, segundo oqual «o juiz deve resolver todas as questões queas partes tenham submetido à sua apreciação [...]».

Sobre esta matéria pode ler-se no acórdão de5 de Fevereiro de 1998, recurso n.º 42 291:

«O juiz deve resolver na sentença todas asquestões (não resolvidas antes) que as partestenham suscitado, com excepção daquelas queestejam prejudicadas (tornadas inúteis) pela so-lução já adoptada quanto a outras (artigo 660.º,n.º ..., do Código de Processo Civil). De todasessas e só dessas deve conhecer, salvas aquelasoutras cuja apreciação oficiosa lhe seja consentidaou imposta por lei. A sentença deve manter-senos e esgotar os limites da acção assim definidos.Se os infringe por defeito comete a nulidade poromissão de pronúncia sancionada no artigo 668.º,n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do Código de ProcessoCivil (infra petição, na terminologia de Carnelutti;cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares deProcesso Civil, pág. 276).

São questões tudo o que diga respeito à con-cludência ou inconcludência da causa de pedir edas excepções e à controvérsia que as partes so-bre ela suscitem. Quer-se que o contraditório pro-piciado às partes sobre os aspectos jurídicos dacausa encontre expressão e resposta na decisão.»

Sendo regidos pelo direito administrativo osactos unilaterais através dos quais a Administra-ção forma a vontade de contratar, ainda queprivadamente, quando a lei imponha um proce-dimento, ou a Administração voluntariamente odesenvolva para efeitos de formação dessa von-tade, o acto final em que se cristaliza essa vonta-de é passível de recurso contencioso (cfr. nestesentido os acórdãos de 4 de Novembro de 1998,recurso n.º 42 074, e de 3 de Julho de 1997, re-curso n.º 38 484).

Ora, resultando inequivocamente dos autosque a recorrente impugnou expressamente o actopré-contratual, em que se traduz a deliberaçãocamarária de 29 de Agosto de 1995, alterada pela

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106 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

de 21 de Novembro de 1995, que antecedeu edeterminou a realização da escritura pública, cum-pria ao tribunal a quo apreciar a questão concre-tamente suscitada, como bem salienta o dignomagistrado do Ministério Público no seu pareceracima transcrito.

Não tendo aquele Tribunal tratado a invocadaquestão, verifica-se uma omissão de pronúncia,geradora da nulidade prevista na 1.ª parte da alí-nea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Pro-cesso Civil.

É certo que M.mo Juiz a quo refere, no despa-cho de sustentação: «[...] a deliberação que estárealmente em causa nestes autos que afecta ointeresse da recorrente e lhe confere legitimidadeé aquela que determinou a reversão para o mu-nicípio da Murtosa dos lotes adquiridos pelamesma recorrente [...]

Quanto à deliberação de contratar, apenas vemalegada a sua ilegalidade na medida em que, naalegação do recorrente, se repercute naquela (nadeliberação que determinou a reversão), de modoque se a rescisão não tivesse tido lugar não havialugar à sua impugnação.»

A ser assim, colocar-se-ia a questão prévia dailegitimidade da recorrente sobre a qual este de-veria ser ouvido, nos termos do artigo 54.º da Leide Processo nos Tribunais Administrativos.

A segunda questão a resolver consiste, comovimos, em determinar se padece de erro de julga-mento a sentença do Tribunal Administrativo doCírculo de Coimbra que, rejeitando o recurso in-terposto da deliberação da Câmara Municipal daMurtosa datada de 12 de Janeiro de 1999, quedeterminara a reversão para a posse do municí-pio da propriedade alienada em 4 de Abril de1996 à recorrente, considerou inidóneo o meioprocessual utilizado pelo recorrente, por enten-der não se estar perante um acto administrativodestacável relativo à execução contratual, pre-visto no artigo 9.º, n.º 3, do Estatuto dos Tribu-nais Administrativos e Fiscais.

Sustenta a recorrente nas suas conclusões, emsíntese, que a autoridade recorrida decidiu, e noque interessa nesta sede unilateral e autoritaria-mente, a reversão e a restituição da posse dosterrenos ao município, o que configuraria um actoinquinado pelo vício de usurpação de poderes,pelo que sempre seria o recurso contencioso o

meio processual idóneo para o exercício da tutelajudicial dos direitos e interesses que pretendever realizados.

Resulta claramente dos autos que a recor-rente, ao impugnar a referida deliberação, o fezassacando-lhe, explicitamente, o vício, geradorde nulidade, de usurpação de poderes, uma vezque, segundo vem alegado, aquela traduziria aprática, pela Administração, de um acto mate-rialmente jurisdicional, porquanto imporia umadeterminada solução que caberia ao Tribunaladoptar.

Ou seja, a recorrente coloca a questão a deci-dir no domínio dos actos administrativos, e nãono domínio dos contratos, como o fez a sentençarecorrida.

Assim sendo, terá que se proceder à caracteri-zação da deliberação impugnada, pelo que seimpõe a sua interpretação.

Só depois desta análise interpretativa se po-derá concluir se estamos perante um acto admi-nistrativo, ou perante uma declaração negocialunilateral visando a rescisão do contrato, para aqual, diga-se desde logo, o meio processual pró-prio sempre seria a acção sobre contratos, pre-vista no artigo 51.º, n.º 1, alínea g), do Estatutodos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Constitui entendimento pacífico da jurispru-dência deste Supremo Tribunal, que na interpre-tação do acto administrativo deve atender-se aostermos da manifestação da vontade do seu autor(elemento textual), às circunstâncias que rodea-ram a sua prática, nomeadamente aos seus ante-cedentes procedimentais, aos motivos que leva-ram o órgão a actuar e ao fim ou interesse queprocurou realizar.

No caso ora em análise, a interpretação doacto reconduz-se à indagação dos termos e dosfins, ou interesses, que a Câmara Municipal daMurtosa visou, ao deliberar, como deliberou, areversão dos terrenos que alienara à recorrente.

Se é verdade que a questão relativa aos efeitosproduzidos pela deliberação ora em análise, nocontrato de compra e venda realizado a 4 de Abrilde 1996, não é isenta de dúvidas, como bem sa-lienta o Ex.mo Magistrado do Ministério Públicono seu parecer, o certo é que Câmara Municipalao deliberar em 12 de Janeiro de 1999 a reversãodos lotes que alienara à recorrente, atento o ele-

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107 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

mento literal, jamais a tratou como uma declara-ção negocial unilateral emitida com vista à resci-são do contrato.

Se dúvidas houvesse sobre esse facto, estasdissipar-se-iam face aos elementos adquiridos nosautos.

É que, como se refere naquele parecer, a deli-beração recorrida foi tratada desde o início comoum acto administrativo, proferido na sequênciade um procedimento, e que até foi precedida deuma outra, de 11 de Agosto de1998, a fls. 30,expressamente elaborada com o fim de permitir àrecorrente pronunciar-se «nos termos dos arti-gos 100.º e seguintes do Código do Procedi-mento Administrativo».

No seguimento dessa deliberação a Câmara daMurtosa «deliberou, por unanimidade, conver-ter o projecto de decisão em decisão definitiva»,(fls. 16) (sublinhados nossos).

Como resulta claramente do exposto, é o pró-prio município que enquadra e trata a situaçãosub judice como um procedimento administra-tivo tendente à formação de uma decisão admi-nistrativa, e não como uma declaração negocialunilateral.

Acresce que, não sendo exigível a organizaçãode um procedimento administrativo com vista àprática do acto rescisório de um contrato, umavez que a rescisão unilateral apenas está con-dicionada pela existência de imperativos de in-teresse público devidamente fundamentados(cfr. acórdão de 24 de Março de 1999, recurson.º 42 594), questão cuja verificação extravasa oâmbito decisório do presente recurso, forçosa é aconclusão de que as circunstâncias e os procedi-

mentos de que a Câmara da Murtosa fez rodear eem que assentou a sua decisão devem ser inter-pretados em sentido diverso.

Mais não parece necessário para poder con-cluir-se, com suficiente certeza, que a Câmarapretendeu, e efectivamente enformou a sua ac-tuação das formalidades tendentes à formação eprolação de um verdadeiro acto administrativo,pelo qual visou dispor autoritariamente sobre adefinição de uma determinada relação juridico--administrativa, revestida da prerrogativa do po-der público.

Nestes termos, delimitado o objecto do re-curso como acto administrativo pretensamenteviciado, tem de concluir-se pela idoneidade domeio processual utilizado pela recorrente, peloque o recurso contencioso interposto da delibe-ração do município da Murtosa datada de 12 deJaneiro de 1999 não podia ser, como foi, rejei-tado.

B) Decisão:

Pelo exposto, acordam em conceder provi-mento ao presente recurso jurisdicional anulandoa sentença recorrida, nos termos sobreditos, re-vogando-a na parte restante, baixando os autosao Tribunal Administrativo de Círculo para apre-ciação dos recursos contencioso se outra ques-tão o não obstar.

Lisboa, 3 de Novembro de 2000.

Abel Atanásio (Relator) — Simões Correia —Anselmo Rodrigues.

O acto recorrido determinou a reversão para um município de um lote anteriormente alienado àrecorrente, no âmbito de um procedimento sujeito a regulamentação específica por ele elaborada.

Entendia a autoridade recorrida que aquele acto mais não era do que uma declaração negocialunilateral emitida na sequência do contrato de compra e venda celebrado anteriormente e que transmi-tira a propriedade da aludida parcela.

O aresto anotando concluiu que a referida deliberação foi tratada desde o início como actoadministrativo, proferido na sequência de um procedimento iniciado com a constatação de que arecorrente não cumprira uma das condições impostas pelo regulamento que definiu os termos em quea venda dos lotes se iria processar. Para corroborar a bondade do decidido, sublinhou que tal delibe-ração havia sido antecedida de uma outra elaborada expressamente para permitir à recorrentepronunciar-se nos temos do artigo 100.º do Código do Procedimento Administrativo, atitude queapenas tem sentido se tudo se situar no contexto dos actos administrativos.

(R. B.)

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108 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

Fundamentação do acto administrativo — Acções de formaçãoprofissional

I — Não há contradição nem obscuridade na fundamentação, apesar da parcialdivergência dos pareceres para que o acto administrativo remete, se é compreensívelpara um destinatário normal que a remissão abrange apenas a parte em que os parecerescoincidem.

II — Não satisfaz o disposto no n.º 2 do artigo 14.º do Decreto Regulamentar n.º 15/94,de 6 de Julho, uma acção de formação profissional que não tem relação com o universoprofissional e pessoal de representação da associação sindical promotora.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 9 de Novembro de 2000Recurso n.º 44 019(Secção do Contencioso Administrativo)

ACORDAM na Secção do ContenciosoAdministrativo do Supremo TribunalAdministrativo:

1. O Sindicato Nacional e Democrático dosProfessores — SINDEP interpõe recurso con-tencioso pedindo a anulação de dois despachosde 20 de Abril de 1998, da autoria do Sr. Secretá-rio de Estado do Emprego e Formação Profissio-nal, que, negando provimento a recursos admi-nistrativos interpostos em 9 de Outubro de 1995e 23 de Julho de 1996, mantiveram deliberaçõesda comissão instaladora do Instituto do Em-prego e Formação Profissional que haviam inde-ferido candidaturas apresentadas pela recorrenteno âmbito das medidas n.os 942230-B3 e 942230--B6, respectivamente.

Imputa-lhes vícios de forma, violação de lei edesvio de poder, por infracção às normas legaiscontidas nos artigos 363.º, n.º 5, do Código Ad-ministrativo, 7.º, 27.º, 124.º e 125.º do Código doProcedimento Administrativo, 2.º do Decreto- -Lei n.º 129/91 e 267.º, n.º 1, da Constituição daRepública Portuguesa [conclusões a) e r) das ale-gações], de acordo com as conclusões seguintes:

(A — Candidatura no âmbito da medidan.º 942230-B, n.º 3):

«b) O acto de indeferimento expresso do re-curso hierárquico necessário de 9 de Outubro de

1995 padece de vício de forma por os pareceresem que se estriba serem contraditórios entre si.

c) Designadamente, por insuficiência em vir-tude de não especificar quais as razões de facto ede direito em que se estriba para não seguir aposição proposta no parecer de 30 de Abril de1997 de provimento integral do recurso hierár-quico necessário de 9 de Outubro de 1995.

d) Padece do vício de forma por não conside-rar corrigido o fundamento ‘inelegibilidade de 10formandos e enquadramento indevido de 40’ jádepois de o terem considerado suprido na se-quência da notificação feita nos termos e para osefeitos previstos nos artigos 100.º e seguintes doCódigo do Procedimento Administrativo.

e) Padece de vício de forma por omissão ab-soluta de qual(ais) o(s) critérios de facto e ou dedireito em que se estriba para concluir que foramindicadas ‘cargas horárias excessivas em algunsmódulos’ pois não indica em que medida em quemódulos alegadamente tal acontece.

f) Padece do vício de violação de lei em vir-tude de não ter solicitado a correcção das alegadasincorrecções, nem permitir e ou atender as cor-recções entretanto apresentadas ex vi artigos 7.ºdo Código do Procedimento Administrativo, 2.ºdo Decreto-Lei n.º 129/91 e 267.º, n.º 1, da Cons-tituição da República Portuguesa.

g) Seja como for, o certo é que a entidaderecorrida, relativamente a candidaturas de outrasentidades formadoras, de idêntico teor e âmbito,

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109 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

aceitou e considerou adequadas as cargas horá-rias então propostas pelo recorrente, facto nãocontestado pela entidade recorrida, o que consti-tui manifesto desvio de poder, porque descon-forme com os fins legais.»

(B — Candidatura no âmbito da medidan.º 942230-B, n.º 6):

«h) O acto de indeferimento expresso do re-curso hierárquico necessário de 23 de Julho de1996 padece de vício de forma por os pareceresem que se estriba serem contraditórios entre si.

i) Designadamente, por insuficiência da fun-damentação em virtude de não especificar quaisas razões de facto e de direito em que se estribapara não considerar abrangido pelo âmbito doPrograma Pessoa — medida n.º 942230-P1 — opúblico alvo da acção de formação, o que equiva-le à falta de fundamentação.

j) Padece do vício de forma por erro grosseiroquanto aos pressupostos na parte em que se es-tribam para considerarem o curso em causa nãoqualificante e insuficiente com vista à prepara-ção do formando para a criação do próprio em-prego.

l) Padece de vício de forma por erro grosseiroquanto aos pressupostos na parte em que se es-tribam para considerar exigível como duração mí-nima dos cursos a realizar no âmbito da medidan.º 943330-P1 200 horas de formação técnico--profissional específica, quando é certo que osformandos terão, no mínimo, o 9.º ano de escola-ridade.

m) Padece ainda do vício de forma em virtudede não especificar quais as razões de facto e dedireito em que se estriba para não seguir a posi-ção proposta no parecer de 30 de Abril de 1997de provimento integral do recurso hierárquiconecessário de 23 de Julho de 1996.

n) Padece do vício de violação de lei em vir-tude de não ter solicitado a correcção das alegadasincorrecções nem permitir e ou atender as cor-recções entretanto apresentadas ex vi artigos 7.ºdo Código do Procedimento Administrativo, 2.ºdo Decreto-Lei n.º 129/91 e 267.º, n.º 1, da Cons-tituição da República Portuguesa.

o) Padece de vício de violação de lei por errogrosseiro quanto aos pressupostos de facto e dedireito por considerar não abrangido pelo âmbitopessoal e ou funcional da associação sindical ora

recorrente a população alvo abrangida pela me-dida n.º 942230-P1.

p) Seja como for, o certo é que a entidaderecorrida, relativamente a candidaturas de outrasentidades formadoras com idêntico teor e âm-bito, aceitou e considerou como adequadas ascargas horárias então propostas pelo recorrente,favorecendo e viabilizando-as em detrimento dacandidatura do recorrente, facto não contestadopela entidade recorrida, o que constitui mani-festo desvio de poder, porque desconforme aosfins legais.

q) A ‘decisão de indeferimento n.º 99/96’ pa-dece de inexistência jurídica por carência abso-luta de forma, nos termos prescritos no artigo363.º, n.º 5, do Código Administrativo e 27.º doCódigo do Procedimento Administrativo.»

A autoridade recorrida sustenta a legalidadedos despachos impugnados.

O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu pa-recer no sentido da improcedência do recurso,nos termos seguintes:

«O recorrente vem impugnar dois actos admi-nistrativos, ambos proferidos em 20 de Abril de1998 pelo Secretário de Estado do Emprego eFormação Profissional, no âmbito de procedi-mentos autónomos instaurados com vista ao re-cebimento de apoios para o desenvolvimento deacções de formação profissional.

São actos emitidos na sequência de recursoshierárquicos interpostos de deliberações da co-missão executiva do Instituto do Emprego e For-mação Profissional que haviam indeferido aquelespedidos de apoio.

Importa, antes de mais, fixar o conteúdo dosactos recorridos e, em seguida, proceder à suainterpretação.

O primeiro, foi produzido na sequência dorecurso hierárquico deduzido da deliberação doInstituto de 31 de Julho de 1995 (fls. 4 do pri-meiro apenso). Trata-se de um despacho onde senega provimento ao recurso ‘com base nos pare-ceres que me são submetidos’. Visto o processo,constata-se que a antecederem o acto existemduas informações (ou informações/pareceres) dosserviços, sendo a primeira da directora dos Ser-viços Jurídicos (de simples concordância) e a

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110 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

segunda da secretária-geral adjunta do Minis-tério. Tais informações resultaram da emissão deum parecer do consultor jurídico (fls. 6 e se-guintes) que se pronunciara no sentido do provi-mento do recurso hierárquico com os fundamen-tos aí referidos.

O simples confronto entre o parecer e as in-formações e os termos do acto recorrido logoobrigam a concluir existir neste acto manifestaincorrecção terminológica. Na verdade, sendo oparecer jurídico de provimento e o acto de nega-ção o que igualmente sucede com as informações(ou informações/pareceres), ter-se-á, necessa-riamente, de concluir que quando ali se fala empareceres quer-se dizer informações (ou infor-mações/pareceres). Por outro lado, a utilizaçãono despacho da forma plural só tem correspon-dência nas informações e não no parecer.

Assente este ponto, vejamos agora qual o ver-dadeiro sentido do despacho impugnado, que,como se viu, é de mera concordância com as in-formações acima referidas. A da secretária-gerallimita-se a propor o indeferimento com a funda-mentação aduzida na da directora de Serviços.Esta, por sua vez, propôs o indeferimento dorecurso, exclusivamente, por ter entendido que opedido de ajuda apresentado pela recorrente vio-lava o disposto no artigo 2.º do n.º 1, alínea b), doDecreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho,uma vez que ali se exige que o pedido se reportea uma única medida, o que não ocorria naquelecaso. Sublinha-se, até, quanto a este ponto, queexiste inteira concordância com o parecer do con-sultor jurídico (cfr. fls. 9, in fine, do apenso).

Com efeito, como aí se diz, «salienta-se, tam-bém, que o artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do DecretoRegulamentar n.º 15/94 estabelece que o pedidose destina a ‘solicitação de apoio financeiro paragarantir a realização de um curso ou conjunto decursos agrupados numa medida [...]’. Como sevê, cada pedido de apoio e respectivo formuláriodevem reportar-se a uma única medida, o que senão verificou na candidatura em apreço.»

As alegações do recorrente não afrontam odespacho nesta perspectiva e perdem-se em con-siderações sobre aspectos que o acto claramentenão comporta. Improcedem, assim, todas as con-clusões (alíneas a) a g) que o visavam, impro-cedendo o recurso contencioso na parte que otinha como alvo.

O segundo, constituiu-se no seguimento dorecurso hierárquico da deliberação do mesmo Ins-tituto de 21 de Maio de 1996 ( fls. 2 do apenso).Neste caso trata-se também de um despacho deconcordância com parecer que acolhe um outroanterior das mesmas entidades. Ambos igual-mente concordantes com uma nota informativado consultor jurídico. Não se observando ne-nhuma desconformidade entre os diversos inter-venientes, haverá apenas de fixar o conteúdodeste acto.

A informação da directora dos Serviços Jurí-dicos que concordou, no essencial, com o pare-cer jurídico e que mereceu a concordância dasecretária-geral adjunta e do membro do Go-verno competente tem o seguinte teor:

«Concordo com a proposta de manutençãodo acto recorrido na parte em que se acolhe osfundamentos de não cumprimento do artigo 14.º,n.º 2, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, conju-gado com o princípio do aproveitamento dosactos administrativos.

Com efeito, padecendo o acto, em nosso en-tender, de ilegalidade, por se reportar a normasde um regulamento sem eficácia externa, seria omesmo revogável caso este se apresentasse comofundamento único de indeferimento. Contudo, eporque no caso em concreto bastaria a invocaçãodo fundamento acima deduzido, defendemos, deacordo com a jurisprudência dominante, a suamanutenção com base naquele princípio, uma vezque, anulado o acto, viria a ser praticado outrocom conteúdo idêntico.»

O citado n.º 2 do artigo 14.º do referido de-creto regulamentar, que constitui o fundamentoúnico do acto recorrido, proíbe o desenvolvi-mento de acções de formação profissional quenão estejam estritamente relacionadas com a suaactividade ou que não visem satisfazer as suasnecessidades específicas.

Não cumpre esse desiderato o projecto deformação apresentado pelo recorrente, um sindi-cato de professores, que tendencialmente repre-senta licenciados e bacharéis, quando o universodos destinatários dessa acção são trabalhadoresdesempregados, sem qualquer ligação à activi-dade docente ou sequer à actividade sindical, commais de 16 anos de idade e com o 9.º ano deescolaridade como habilitação mínima (fls. 7 dosegundo apenso). A chamada «justificação das

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111 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

necessidades de formação», junta a fls. 9 daqueleapenso, é inequívoca no sentido de que não cum-pre os objectivos impostos pelo citado artigo14.º, n.º 2, para este tipo de acções.

Improcede, assim, a meu ver, a conclusão o)das alegações do recorrente, a única que verda-deiramente tem como destinatário o verdadeiroconteúdo do acto recorrido. As restantes, ou atri-buem ao despacho um teor que ele não tem, ouimprocedem, como sucede com aquelas que lheimputam vício de forma por falta ou insuficiên-cia de fundamentação.

Face ao exposto, emite-se parecer no sentidoda improcedência do recurso contencioso.

2. Consideram-se assentes os factos seguin-tes, face ao alegado e ao que está documentadonos autos e no processo instrutor:

a) O recorrente é uma associação sindical deprofessores de âmbito nacional;

b) Em 10 de Fevereiro de 1995, o recorrenteapresentou pedido de co-financiamento públicopara uma acção de formação ao abrigo do pro-grama «Formação profissional e emprego», sub-programa «Melhoria da qualidade e nível de em-prego», medida «Formação profissional para desem-pregados — 942230-P1», nos termos que cons-tam de fls. 5 e seguintes do PI — «II vol. — B3»;

c) Este pedido foi indeferido por deliberaçãoda comissão executiva do Instituto do Empregoe Formação Profissional de 31 de Julho de 1995,com os fundamentos constantes da informaçãon.º 185/AAP/95 (fls. 1 a 5 do PI «I vol.», que seconsideram reproduzidas);

d) O recorrente interpôs recurso desta delibe-ração para o Ministro para a Qualificação e oEmprego;

e) Sobre este recurso foi emitido parecer porum consultor jurídico, que consta de fls. 5 a 16do PI — «I vol.» e se considera reproduzido,propondo o provimento do recurso por insufi-ciência de fundamentação da deliberação da co-missão instaladora do Instituto do Emprego eFormação Profissional.

f) A directora dos Serviços Jurídicos elaborouseguidamente a seguinte informação/parecer:

«Visto.1 — Conforme resulta do último parágrafo de

fls. 6 do presente parecer, o artigo 2.º, n.º 1, alí-

nea b), do Decreto Regulamentar n.º 15/94 exigeque o pedido se reporte a uma única medida, oque se constata não se haver verificado no casoconcreto. Inquestionável é também a imutabili-dade, no essencial, das candidaturas após o de-curso do prazo previsto no n.º 5 do artigo 15.º domesmo diploma.

2 — Assim sendo, a revogação do acto combase na falta de fundamentação do invocadoquanto a cargas horárias, sendo consequência dailegalidade apontada, mostra-se inútil por se man-ter o indeferimento com base no fundamento ‘ine-legibilidade dos formandos’. Tudo ponderado,entendemos ser de manter o acto recorrido, combase na fundamentação aduzida nesta últimaparte, e apenas nesta, pela entidade recorrida nasua pronúncia ao abrigo do artigo 172.º do Có-digo do Procedimento Administrativo, conjugadacom o princípio do aproveitamento dos actosadministrativos.»

g) A secretária-geral adjunta elaborou segui-damente o seguinte parecer: «À consideração deS. Ex.ª o Ministro para a Qualificação e o Em-prego.

Concordo, pelo que é de manter o acto recor-rido, nos termos e com base nos fundamentosaduzidos no parecer da Sr.ª Directora de Servi-ços»;

h) O Secretário de Estado do Emprego e For-mação Profissional proferiu, em 20 de Abril de1998, o seguinte despacho, na folha em que secontêm os pareceres da directora de Serviços eda secretária-geral adjunta: «No exercício de com-petência delegada, nego provimento ao recurso,com base nos pareceres que me são subme-tidos.»;

i) Em 25 de Setembro de 1995, o recorrenteapresentou pedido de co-financiamento públicopara uma acção de formação ao abrigo do pro-grama «Formação profissional e emprego», sub-programa «Melhoria da qualidade e nível de em-prego», medida «Formação profissional para desem-pregados — 942230-P1», nos termos que cons-tam de fls. 1 e seguintes do PI — III vol. — B6;

j) Este pedido foi indeferido por deliberaçãoda comissão executiva do Instituto do Empregoe Formação Profissional de 21 de Maio de 1996,com os fundamentos constantes da informaçãon.º 66/AAP/96, que remete para a informação

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112 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

n.º 263/AAP/95 (fls. 6 a 11 do PI – «I vol.» quese consideram reproduzidas).

k) O recorrente interpôs recurso desta delibe-ração para o Ministro para a Qualificação e oEmprego.

l) Sobre este recurso foi emitido parecer porum consultor jurídico, que consta de fls. 2 e 3 doPI — «I vol.» e se considera reproduzido, pro-pondo o não provimento do recurso.

m) A directora dos Serviços Jurídicos elabo-rou seguidamente a seguinte informação/parecer:«Concordo com a proposta de manutenção doacto recorrido, na parte em que se acolhe os fun-damentos de não cumprimento do artigo 14.º,n.º 2, do Decreto Regulamentar n.º 15/94, conju-gado com o princípio do aproveitamento dosactos administrativos. Com efeito, padecendo oacto, em nosso entender, de ilegalidade por sereportar a normas de um regulamento sem eficá-cia externa, seria o mesmo revogável caso este seapresentasse como fundamento único de inde-ferimento. Contudo, e porque no caso em apreçobastaria a invocação do fundamento acimaaduzido, defendemos, de acordo com a jurispru-dência dominante, a sua manutenção com basenaquele princípio, uma vez que, anulado o acto,viria a ser praticado outro com conteúdo idên-tico»;

n) A secretária-geral adjunta elaborou segui-damente o seguinte parecer:

«À consideração de S. Ex.ª o Secretário deEstado para a Qualificação e o Emprego.

Concordo.»

o) O Secretário de Estado do Emprego e For-mação Profissional proferiu em 20 de Abril de1998 o seguinte despacho, na folha em que secontêm os pareceres da directora de Serviços eda secretária-geral adjunta:

«No exercício de competência delegada, negoprovimento ao recurso, com base no parecer queme é submetido.»

.3. O recorrente vem impugnar dois actos ad-

ministrativos, ambos proferidos em 20 de Abrilde 1998 pelo Secretário de Estado do Emprego eFormação Profissional, no âmbito de procedi-mentos autónomos instaurados com vista ao re-cebimento de co-financiamento público para o

desenvolvimento de acções de formação profis-sional. São actos emitidos na sequência de recur-sos interpostos de deliberações da comissãoexecutiva do Instituto do Emprego e FormaçãoProfissional que haviam indeferido aqueles pedi-dos de financiamento.

Importa, antes da análise dos vícios impu-tados a cada um dos despachos recorridos, fixaro conteúdo destes. Como vamos ver, porque nãose deteve nesta tarefa, o recorrente erra o alvo emgrande parte do ataque que desfere no presenterecurso contencioso.

4.1. O primeiro despacho (na ordem porqueos tratamos neste recurso, que corresponde àanterioridade do procedimento administrativo)foi produzido na sequência do recurso tutelarnecessário interposto da deliberação do Institu-to de 31 de Julho de 1995 [alíneas b) a h) damatéria de facto].

O despacho nega provimento ao recurso «combase nos pareceres que me são submetidos». Aanteceder o acto existem duas informações (ouinformações/pareceres) dos serviços, sendo aprimeira da directora dos Serviços Jurídicos [alí-nea f) da matéria de facto] e a segunda da secretá-ria-geral adjunta do Ministério [alínea g) damatéria de facto]. Tais informações ou pareceresseguem-se à emissão de um parecer do consultorjurídico [alínea e) da matéria de facto] que sepronunciara no sentido do provimento do recur-so administrativo, por insuficiência de fundamen-tação da deliberação da comissão instaladora doInstituto do Emprego e Formação Profissional.Parecer este que não acompanham quanto à con-clusão, propondo o indeferimento do recurso,com base num dos fundamentos de indeferimentodo pedido de financiamento e de acordo com oprincípio do aproveitamento dos actos adminis-trativos.

O despacho decisório subsequente tem umsentido inequívoco: o indeferimento do recursoadministrativo.

E o seu conteúdo, interpretado o despacho nasequência em que surge e com a atenção devida àcadeia de remissões, não pode ser outro senão ode que o seu autor aderiu às razões que eramapresentadas pela directora dos Serviços Jurídi-cos, como lhe era proposto pela secretária-geraladjunta.

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113 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

Efectivamente, naquela intervenção a direc-tora dos Serviços Jurídicos, com a responsabili-dade pela solução jurídica do caso inerente aocargo, não acompanha o parecer do consultorjurídico quanto à conclusão. Sem discordar dasua análise no que toca aos fundamentos, enten-de que a revogação da decisão da comissãoinstaladora do Instituto do Emprego e FormaçãoProfissional, como nele se propõe, seria inútil,porque sempre subsistiria um motivo de inde-ferimento, nesse mesmo parecer do consultorreconhecido: não respeitar o pedido a uma únicamedida, como impõe o artigo 2.º, n.º 1, alínea b),do Decreto Regulamentar n.º 15/94.

Sendo o parecer do consultor jurídico de pro-vimento e a decisão de negação de provimento,ter-se-á de concluir que, quando no despacho sefala em pareceres quer-se dizer nos termos dasinformações ou informações-pareceres dos ór-gãos dirigentes de preparação da decisão queimediatamente o antecedem, propondo o que foidecidido. E nessa cadeia recolhe a parte do pare-cer do consultor para que remete a directora deServiços.

Aliás, a discussão sobre a denominação que,nesta sequência, deve ser dada aos diversosactos é pouco profícua. Quando se trate de qua-lificar actos de intervenção na preparação da de-cisão de serviços que não sejam estações espe-cializadas de consulta técnica, a distinção entreparecer e informação assenta em bases ténues.Doutrinalmente (por exemplo, Marcello Cae-tano, Manual de Direito Administrativo, vol. II,pág. 1320, 9.ªed.) considera-se que esta diferen-ça «está em que a primeira se limita a carreardados de facto e de direito que interessem à reso-lução do caso, enquanto que o segundo implicauma opinião crítica autorizada acerca da soluçãoa adoptar», mas não há uma praxe administrativauniforme. A intervenção da directora dos Servi-ços Jurídicos é uma opinião crítica autorizada,que recai sobre o próprio parecer do consultor,revendo-o como lhe compete, pelo que a desig-nação de parecer não lhe é desajustada.

Em conclusão : a manutenção do indeferimentoque resulta do despacho recorrido funda-se ape-nas no facto de o pedido não respeitar a umaúnica medida, como se entendeu decorrer do esta-tuído pela alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do De-creto Regulamentar n.º 15/94.

Ora, salvo quanto ao vício de forma — e mes-mo aí apenas na matéria das conclusões b) e c) —as alegações do recorrente e respectivas conclu-sões não visam o despacho recorrido, com o seuconcreto conteúdo. Atacam-no como se tivessesido de simples confirmação da deliberação dacomissão instaladora do Instituto do Emprego eFormação Profissional, conteúdo que ele não tem.Mas quanto à razão do indeferimento retida pelodespacho recorrido, a infracção ao artigo 2.º,n.º 1, alínea b), do Decreto Regulamentar n.º 15/94, nada dizem.

São, por isso, irrelevantes, restando apreciaro vício de falta de fundamentação.

Alega o recorrente que o despacho recorridoenferma de falta de fundamentação por assentarem pareceres contraditórios entre si e por nãoespecificar as razões de facto e direito para nãoseguir a solução proposta no parecer do consul-tor jurídico.

Sem razão.Os pareceres da directora dos Serviços Jurídi-

cos e do consultor jurídico divergem quanto àsolução. Mas quanto ao fundamento retido paranegar provimento ao recurso coincidem inteira-mente.

Efectivamente, a directora de Serviços remeteexpressamente para a passagem do parecer doconsultor em que este afirma, concordando coma comissão instaladora do Instituto do Empregoe Formação Profissional, que a candidatura emapreço não obedece ao disposto no artigo 2.º,n.º 1, alínea b), do Decreto Regulamentar n.º 15/94 porque inclui formandos que deveriam serabrangidos por diferentes medidas (fls. 9 do PI«I vol.», que corresponde a fls. 6 do parecer doconsultor), com a consequente inelegibilidade dosformandos indevidamente incluídos.

E não é exacto que se omitam as razões pelasquais não se adopta a solução proposta no pare-cer do consultor jurídico. Pelo contrário, afirma--se claramente que a revogação do acto por esteproposta seria inútil por sempre se manter umadas causas de indeferimento, invocando-se até oprincípio jurídico do aproveitamento dos actosadministrativos.

Nesta conjugação, a fundamentação é clara,suficiente e congruente, satisfazendo os requisi-

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114 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

tos do artigo 125.º do Código do ProcedimentoAdministrativo.

Improcedem, pois, todas as conclusões da ale-gação do recorrente que respeitam a este despa-cho [conclusões b) a o) e r) na parte respectiva].

4.2. Também na crítica ao despacho que re-caiu sobre o recurso da decisão da comissãoinstaladora do Instituto do Emprego e FormaçãoProfissional de 21 de Maio de 1996 o recorrenteprocede como se ele tivesse um conteúdo que narealidade não tem, valendo mutatis mutandis oque anteriormente se disse.

Aqui o consultor jurídico propôs o não pro-vimento do recurso com confirmação integral dadecisão de indeferimento da comissão insta-ladora. Porém, a directora dos Serviços Jurídicosrestringiu, nos termos acima transcritos na alí-nea m), concordando com a proposta de manu-tenção do acto recorrido, somente, na parte emque acolhe os fundamentos de não cumprimentodo artigo 14.º, n.º 2, do Decreto Regulamentarn.º 15/94. Foi com este parecer que o despachorecorrido se conformou.

Consequentemente, só o que respeitar à ilega-lidade do indeferimento da pretensão por estarazão pode interessar para a decisão do presenterecurso contencioso.

O citado n.º 2 do artigo 14.º do referido de-creto regulamentar, que constitui o fundamentoúnico do acto recorrido, estabelece que a enti-dade promotora só pode promover a realizaçãode formação de acordo com as suas necessidadesespecíficas em matéria de formação ou directa-mente relacionadas com o seu objecto social.

O curso que o recorrente se propõe desenvol-ver, de acordo com a memória descritiva que acom-panha o pedido, é de formação em «informáticaem ambiente Windows», tendo como público alvo«36 desempregados não DLD), habilitados como 9.º ano de escolaridade no mínimo» e comoobjectivos «proporcionar aos formandos conhe-cimentos e experiência que lhes permitam adap-tar-se às constantes inovações tecnológicas e àsmutações organizacionais».

A justificação das necessidades de formação éfeita nos seguintes termos:

«O SINDEP — [...] é uma associação sindicalque tem por objecto, designadamente, a forma-ção contínua.

Nesta sede, tem sido solicitada por associa-dos, seus familiares e por outras pessoas inte-ressadas em obter formação profissional ade-quada, que as habilite a ingressar no mercado dotrabalho, em que os conhecimentos e experiênciano domínio da informática constituem requisitospreferenciais, os quais estão em constante evo-lução.»

Funcionalmente, a formação projectada nãose relaciona com o exercício ou a preparação parao exercício da actividade docente, mas com umaformação genérica em informática, na óptica doutilizador.

E, no âmbito pessoal, como resulta da conju-gação da justificação das necessidades de forma-ção com a indicação do público alvo, a acção deformação projectada dirigia-se, além dos asso-ciados, a outras pessoas que não aquelas que orecorrente representa ou pode representar, semligação à actividade docente e à actividade sindi-cal, designadamente a familiares de associados e,indiscriminadamente a «outras pessoas interes-sadas em obter formação profissional adequada».

Assim, independentemente da questão de sa-ber se indivíduos com 16 anos e com o 9.º ano deescolaridade são, ou podem ser, representadospelo Sindicato recorrente, sempre é válida a afir-mação de que a acção de formação projectadanão se destina a satisfazer as necessidades es-pecíficas do Sindicato recorrente em matéria deformação profissional, nem está directamente re-lacionada com o seu objecto social, pelo que oindeferimento do pedido e o não provimento dorecurso tutelar com este fundamento não violouo disposto no n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lein.º 15/94.

Tanto basta para julgar improcedente a con-clusão o) das alegações do recorrente.

Além desta, referem-se directamente ao des-pacho agora em apreciação as conclusões h) e i),em que o recorrente invoca vício de forma.

Quanto à conclusão h), a simples leitura con-jugada dos antecedentes imediatos do despachorecorrido mostra ser inexacta a afirmação do re-corrente de que o acto se apoia em parecerescontraditórios entre si.

É certo que, também neste caso, não existeinteira concordância entre o parecer do consultore o parecer da directora dos Serviços Jurídicos.

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115 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

Aqui a divergência não incide sobre o sentidoda proposta de decisão do recurso como no casoanteriormente apreciado. O parecer ou «nota in-formativa» do consultor jurídico, o parecer dadirectora de Serviços Jurídicos e a informação dasecretária-geral (esta de simples concordância)coincidiam no sentido da negação de provimentoao recurso tutelar.

O que sucedeu foi que o parecer da directorade Serviços reteve apenas um desses fundamen-tos de indeferimento do pedido, o da infracçãoao n.º 2 do artigo 14.º do Decreto Regulamentarn.º 15/94, julgado suficiente, novamente com in-vocação do princípio do aproveitamento dosactos administrativos, para manter a decisão ob-jecto de recurso administrativo.

Nesta sequência, um destinatário normal doacto em causa entende que o despacho final aco-lheu os fundamentos deste último parecer e, porremissão, a parte da «nota informativa» do con-sultor jurídico com que este parecer concorda.

Não há, portanto, qualquer contradição, masantes rigorosa congruência, nos fundamentos emque se sustenta o não provimento do recursotutelar.

Quanto à conclusão i), só na aparência o víciode forma que denuncia tem relação com o actorecorrido.

Afirma o recorrente que o despacho impug-nado enferma de insuficiência de fundamentaçãopor não especificar quais as razões de facto e dedireito em que se estriba para considerar não abran-gido pelo âmbito do Programa Pessoa — medidan.º 94212230-P1 — o público alvo da acção deformação.

Ora, o despacho recorrido não confirma a de-cisão da comissão instaladora quanto à adequa-ção à referida medida. Basta-se com a inexistênciada relação exigida pelo n.º 2 do artigo 14.º doDecreto Regulamentar n.º 15/94 entre a acção deformação projectada e as necessidades especí-ficas ou o objecto social da entidade promotora.

Por isso, não sendo um aspecto influente nadecisão de indeferimento, o despacho recorridonão tinha que enunciar as razões de facto e dedireito para o não cabimento da acção no âmbitoda medida em causa, nem se lhe comunicam asdeficiências de fundamentação de que, quanto aeste fundamento, porventura sofra a deliberaçãoque apreciou.

Tal como para o despacho que decidiu o pri-meiro recurso tutelar, as demais conclusõesimprocedem, por versarem matéria estranha aoconteúdo do despacho recorrido, atacando-ocomo se tivesse sufragado na íntegra as razões deindeferimento da pretensão de co-financiamentopresentes na deliberação da comissão instaladorado Instituto do Emprego e Formação Profissional.

5. Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimentoao recurso contencioso e condenar recorrente nascustas.

Taxa de justiça: 40 000$00, procuradoria:20 000$00.

Lisboa, 9 de Novembro de 2000.

Vítor Gomes (Relator) — Pais Borges —NunoSalgado.

Estavam em causa nos autos dois actos administrativos proferidos pelo Secretário de Estado doEmprego e Formação, no âmbito de procedimentos instaurados com vista ao recebimento de apoiospara o desenvolvimento de acções de formação profissional, ao abrigo do regime jurídico instituídopelo Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho.

Como pontos relevantes o aresto em anotação assinala que cada pedido apenas poderá reportar-sea uma única medida de apoio [artigo 2.º, n.º 1, alínea b)], e ainda que não é admissível o desenvolvimentode acções de formação profissional que não estejam estritamente relacionadas com a sua actividade ouque não visem satisfazer as suas necessidades específicas (artigo 14.º, n.º 2). Não cumpre estedesiderato o projecto de formação apresentado por um sindicato de professores, que tendencialmenterepresenta licenciados e bacharéis, quando o universo dos destinatários dessa acção são trabalhadoresdesempregados, sem qualquer ligação à actividade docente ou sequer à actividade sindical, com maisde 16 anos de idade e com o 9.º ano de escolaridade como habilitação mínima.

(R. B.)

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116 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

Recurso hierárquico necessário — Prazo de interposição —Notificação defeituosa — Princípios da boa fé e do favor actione

I — Uma das garantias procedimentais assegurados no Código do ProcedimentoAdministrativo tem a ver com direito à notificação, a que se reporta designadamente oartigo 66.º do Código do Procedimento Administrativo, direito esse que, aliás, se assumecomo uma das manifestações do direito à defesa no procedimento.

II — Um dos objectivos prosseguidos com a notificação relaciona-se com o possibi-litar ao respectivo interessado o uso da via administrativa ou contenciosa.

III — Uma notificação que indique erradamente a autoria do acto a notificar não éeficaz, e por o não ser, não dá lugar a que comece a correr o prazo para impugnaradministrativamente tal acto, prazo que, em princípio, permanecerá em aberto até que,designadamente, o interessado se dê por expressamente notificado ou venha a interpor orecurso que era devido, com referência ao verdadeiro autor do acto.

IV — O legislador ao estatuir na alínea b) do n.º 1 do artigo 68.º do Código doProcedimento Administrativo que da notificação deve constar a indicação do autor doacto obviamente partiu do pressuposto de que tal menção fosse efectuada com acerto ecorrecção, por forma a instruir adequadamente o interessado habilitando-o a exercercom eficácia os meios administrativos e contenciosos.

V — Não é de aceitar que um erro imputável à Administração se voltasse contra ointeressado impossibilitando-o de aceder atempadamente à via administrativa oucontenciosa e, muito menos, a que a própria Administração, por exemplo, se servissedesse erro para com base nele rejeitar um recurso hierárquico interposto pelo interes-sado apenas depois de vir a saber qual tinha sido o verdadeiro autor do acto, anterior-mente erradamente identificado no ofício de notificação.

VI — É o que decorre desde logo dos princípios da boa fé e da tutela efectiva queimpedem que o interessado sofra as consequências de erro imputável à Administração,em especial, quando não era legalmente exigível que o interessado adoptasse condutaprocessual diferente da prosseguida.

VII — O princípio do favor actione postula uma interpretação restritiva das causasde inadmissibilidade do recurso hierárquico, tudo isto visando privilegiar sempre quetal seja processualmente possível o conhecimento da questão de fundo, assim se assegu-rando uma tutela mais efectiva das posições subjectivas dos interessados, possibilitandoo exame do mérito das pretensões deduzidas em sede do recurso hierárquico.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 9 de Novembro de 2000Recurso n.º 45 390(Secção do Contencioso Administrativo)

ACORDAM, em conferência, na 1.ª Secçãodo Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

1.1 — ACA — Associação Comercial deAveiro, com sede na Rua do Conselheiro Luís deMagalhães, 25-27, Aveiro, recorre contenciosa-mente do despacho de 14 de Maio de 1999 do

Secretário de Estado do Emprego e Formação,que rejeitou o recurso hierárquico por aquela in-terposto da decisão n.º 431, de 31 de Julho de1997, do gestor do Programa Pessoa.

Nas suas alegações formula as seguintes con-clusões:

«1 — O que está em causa no presente re-curso contencioso é a questão de saber se o re-

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curso hierárquico — interposto em 15 de Junhode 1998 — é ou não tempestivo, tendo em contaque só em 8 de Maio de 1998 ficou esclarecidoque, afinal, o autor do acto recorrido era o gestordo Programa Pessoa e não a comissão executivado Instituto do Emprego e Formação Profis-sional;

2 — Não foi previamente interposto recursogracioso para o Ministro do Trabalho e da Soli-dariedade porque, como o Instituto do Empregoe Formação Profissional (entidade que a ora re-corrente julgava ser a autoridade autora do acto!)é uma entidade submetida à tutela desse membrodo Governo, a norma do n.º 1 do artigo 30.º doDecreto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho,não podia ser aplicada;

3 — Com efeito, nos termos do disposto non.º 2 do artigo 177.º do Código do ProcedimentoAdministrativo, ‘o recurso tutelar só existe noscasos expressamente previsto por lei’;

4 — O Decreto Regulamentar n.º 15/94, de 6de Julho, é um mero regulamento administrativoe não um diploma com força de lei, daí que, aoestabelecer a exigência de um recurso tutelar, oseu artigo 30.º viola claramente o disposto non.º 2 do seu artigo 177.º do Código do Procedi-mento Administrativo;

5 — Doutrina que confirmada por esse vene-rando Tribunal em vários e recentes acórdãos,nomeadamente o de 23 de Setembro de 1999 (pro-cesso n.º 43 534), no seguimento da decisão doacórdão do Tribunal Constitucional n.º 161/99,de 10 de Março de 1999 (proferido nos autos derecurso n.º 813/98);

6 — Tendo porém ficado decidido (por des-pacho do Sr. Juiz Relator do Tribunal Adminis-trativo do Círculo de Lisboa de 8 de Maio de1998, proferido no processo n.º 625/97) que overdadeiro autor do acto recorrido é não a co-missão executiva do Instituto do Emprego e For-mação Profissional, mas, afinal, o gestor doPrograma Pessoa, ficou a ora recorrente a saberque tendo em conta o verdadeiro autor do actoera necessária a interposição de um recurso hie-rárquico;

7 — De facto, como o gestor do ProgramaPessoa — ao contrário do que sucede com o Ins-tituto do Emprego e Formação Profissional —não pode provavelmente ser considerado umaentidade submetida ao poder tutelar do Ministro

do Trabalho e da Solidariedade, mas antes a umpoder de superintendência, o artigo 30.º do De-creto Regulamentar n.º 15/94, de 6 de Julho, podeser efectivamente aplicável aos actos adminis-trativos que ele (gestor) pratique;

8 — Assim sendo, impunha-se à recorrente ainterposição de recurso hierárquico, o que acon-teceu em 15 de Junho de 1998;

9 — Recurso hierárquico esse que, atenta afactualidade descrita, nomeadamente a formacomo foi feita a notificação — contendo um de-cisivo erro na identificação do autor do actorecorrido —, não podia ser considerado intem-pestivo;

10 — Com efeito, a recorrente foi, como re-sulta provado dos autos, claramente induzida emerro quanto à autoria do acto;

11 — Assim, pensando que o autor do actoera um (a comissão executiva do Instituto doEmprego e Formação Profissional) não se apli-caria — em seu entender — o artigo 30.º do De-creto Regulamentar n.º 15/94 já que, nesse caso,estar-se-ia perante um recurso tutelar, pelo quehavia recurso contencioso directo, sendo afinaloutro o órgão autor do acto (o gestor do Pro-grama Pessoa), já se aplica o referido artigo 30.º ,na medida em que se trata de um recurso hierár-quico necessário;

12 — Não pode pois considerar-se extem-porâneo um recurso hierárquico interposto em15 de Junho de 1998, quando só em 8 de Maio de1998 é que o recorrente ficou a saber que, afinal,era um órgão sujeito a hierarquia (e não a tutela)o autor do acto;

13 — Nos termos do disposto na alínea b) doartigo 162.º do Código do Procedimento Admi-nistrativo (aplicável por analogia aos recursoshierárquicos), o prazo para a interposição do re-curso hierárquico conta-se da ‘notificação doacto’;

14 — Ora, o que aconteceu foi que o acto quefoi notificado era um acto inexistente, já que acomissão executiva do Instituto do Emprego eFormação Profissional não praticou o acto re-corrido;

15 — Assim, não tendo havido, em bomrigor, ‘notificação do acto’ do gestor do Pro-grama Pessoa, deve aplicar-se a alínea c) do mes-mo artigo 162.º, porque se trata de um dos ‘res-tantes casos’: o prazo do recurso conta-se a partir

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118 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

‘da data em que o interessado tiver conhecimentodo acto’;

16 — Foi pois tempestivo o recurso hierár-quico interposto em 15 de Junho de 1998, dadecisão n.º 431 do gestor do Programa Pessoa de31 de Julho de 1997, porque a ora recorrente sóteve conhecimento dessa autoria em 8 de Maiode 1998;

17 — Assim, ao rejeitar aquele recurso hierár-quico com fundamento na sua extemporaneidade,o recorrido despacho do Sr. Secretário de Estadodo Emprego e Formação é ilegal por violação dasnormas da alínea d) do artigo 173.º e da alínea c)do artigo 162.º, ambos do Código do Procedi-mento Administrativo, pelo que o mesmo deveser anulado;

18 — A não se entender assim — isto é, aconsiderar-se que o acto do gestor do ProgramaPessoa se deve considerar notificado à ora recor-rente em 26 de Setembro de 1997 —, a alínea b)do artigo 162.º do Código do Procedimento Ad-ministrativo (aplicável por analogia aos recursoshierárquicos necessários) será inconstitucionalpor ofensa do princípio da tutela jurisdicionalefectiva consagrado no n.º 4 do artigo 268.º daConstituição da República Portuguesa, na me-dida em que tal norma está a ser interpretada nosentido de permitir considerar-se correctamentefeita uma notificação que contém um erro deci-sivo (quanto à questão da recorribilidade conten-ciosa) sobre a autoria do acto notificado.

[...]» — Cfr. fls. 63-66.

1.2 — Por sua vez, a entidade recorrida, ten-do alegado, apresentou as seguintes conclusões:

«1 — O recurso hierárquico interposto pelarecorrente em 15 de Junho de 1998 é intempes-tivo, visto que a mesma teve conhecimento dadecisão impugnada em 26 de Setembro de 1997.

2 — Não caberá à recorrente a decisão de nãoaplicação do dispositivo normativo constante doartigo 30.º do Decreto Regulamentar n.º 15/94,tão-pouco a aplicação do artigo 162.º do Códigodo Procedimento Administrativo, por incons-titucionalidade, porquanto só aos órgãos juris-dicionais caberá tal decisão.

3 — O recurso hierárquico interposto em 15de Junho pela recorrente é extemporâneo porforça da aplicação da alínea d) do artigo 173.º doCódigo do Procedimento Administrativo.

Termos em que o despacho recorrido [...] de-verá ser mantido.» — Cfr. fls. 78-79.

1.3 — No seu parecer de fls. 81-82 o magis-trado do Ministério Público pronuncia-se pelonão provimento do recurso contencioso.

1.4 — Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Fundamentação

2. A matéria de facto

Com relevância para a decisão dá-se comoprovado o seguinte:

a) A agora recorrente, na qualidade de enti-dade promotora, apresentou um pedido de finan-ciamento para a realização de acções de forma-ção profissional, no âmbito do programa opera-cional «Programa Pessoa», financiado pelo Fun-do Social Europeu;

b) Esse pedido de financiamento foi aprova-do pelas entidades competentes;

c) A recorrente apresentou ao recorrido o pe-dido de pagamento de saldo, depois da realiza-ção de acções de formação;

d) Através de ofício n.º 16/Pessoa, de 28 deAbril de 1997, foi a recorrente notificada parase pronunciar, em sede de audiência prévia, so-bre a proposta de decisão de aprovação do pe-dido de pagamento de saldo (cfr. os documentosde fls. 14-15 e 16 dos autos, cujo teor aqui se dápor reproduzido);

e) Em 27 de Maio de 1997, a recorrente en-viou uma exposição questionando o montanteapurado (cfr. o documento de fls. 17-18, cujoteor aqui se dá por reproduzido);

f) Foi, então, elaborada a informação n.º 135/UTA/97, de 30 de Junho de 1997, na qual seconclui pela manutenção da projectada reduçãodo financiamento (cfr. o documento de fls. 19-22,cujo teor aqui se dá por reproduzido);

g) O ofício n.º 330/Pessoa, datado de 26 deSetembro de 1997, enviado à recorrente, desti-nava-se à «notificação da decisão de aprovaçãodo pedido de pagamento de saldo final», nele sereferindo, designadamente, o seguinte:

«[...] ficam VV. Ex.as por este meio notifica-dos da deliberação da comissão executiva n.º 431,de 31 de Julho de 1997, que aprovou o vossopedido de pagamento de saldo relativo ao B su-pramencionado, pelos montantes que em se-

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guida se indicam [...]» — cfr. o documento defls. 23, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

h) Em 25 de Novembro de 1997, a recorrenteinterpôs recurso contencioso junto do TribunalAdministrativo do Círculo de Coimbra «da deli-beração n.º 431 da comissão executiva do Ins-tituto do Emprego e Formação Profissional,notificado à recorrente em 26 de Setembro de1997 através do ofício n.º 330/Pessoa [...] peloqual foi aprovado o pedido de pagamento desaldo relativo ao pedido n.º 2 apresentado pelaora recorrente [...]» — cfr. o documento defls. 24, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

i) Por despacho de 12 de Maio de 1998 oM.mo Sr. Juiz do Tribunal Administrativo de Cír-culo, onde pendia o processo a que se reporta orecurso contencioso mencionado em h), ordenoua notificação da recorrente no sentido de corrigira petição de recurso, já que se considerou comoautor do acto impugnado não a comissão exe-cutiva do Instituto do Emprego e Formação Pro-fissional, mas o gestor do Programa Pessoa, maisse tendo entendido que se tratava de erro descul-pável na identificação da autoria do acto recor-rido (cfr. o documento de fls. 25-26, cujo teoraqui se dá por reproduzido), despacho esse noti-ficado através de nota de notificação datada de13 de Maio de 1998 e documentada a fls. 25,cujo teor aqui se dá por reproduzido;

j) Em 15 de Junho de 1998, a recorrente inter-pôs junto do Ministro do Trabalho e da Solida-riedade recurso hierárquico da decisão n.º 431 dogestor do Programa Pessoa de 31 de Julho de1997, que aprovou o pedido de pagamento desaldo final relativo ao pedido n.º 2 do POI, jáatrás mencionado — cfr. o documento de fls. 27,cujo teor aqui se dá por reproduzido;

l) Com referência a tal recurso foi elaborado,em 21 de Outubro de 1998, pela Direcção dosServiços Jurídicos do Ministério do Trabalho eda Solidariedade, o parecer n.º 301/98DSJ, deonde se destaca o seguinte passo:

«6 — Analisando:

a) Tratando-se de recurso necessário (artigo30.º do Decreto Regulamentar n.º 15/94,de 6 de Julho), o prazo para a sua interpo-sição é de 30 dias, nos termos do artigo168.º do Código do Procedimento Admi-nistrativo.

b) Notificada a requerente em 26 de Setem-bro de 1997, em 16 de Junho de 1998,data em que a petição de recurso deu en-trada no Gabinete do Sr. Ministro já ha-viam passado os 30 dias para interposiçãodo recurso necessário;

c) Sendo pois o recurso intempestivo, de-verá o mesmo ser rejeitado nos termos doartigo 173.º, alínea d), do Código do Pro-cedimento Administrativo.

7 — Porque a ignorância não colhe aprovei-tamento na lei, o erro na interpretação sobre aautoria do acto, gestor do Programa Pessoa/co-missão executiva do Instituto do Emprego e For-mação Profissional, não é razão suficiente paraque um recurso interposto intempestivamentepossa ser aceite.

8 — Admitindo, por mera hipótese acadé-mica, que a recorrente se convencera de que oautor do acto contida na notificação processadapelo ofício n.º 330/Pessoa, de 29 de Setembro de1997, era a comissão executiva do Instituto doEmprego e Formação Profissional, cabia à recor-rente dar cumprimento atempado ao dispostono artigo 30.º, n.º 1, do Decreto Regulamentarn.º 15/94, de 6 de Julho, ou seja, devia, no prazode 30 dias após a notificação, ter interposto re-curso administrativo necessário para a entãoMinistra para a Qualificação e o Emprego.

Pelo que, em razão do exposto, não há lugar àapreciação do recurso administrativo pela extem-poraneidade na sua interposição, devendo o mes-mo ser rejeitado com esse fundamento, nos ter-mos do disposto pela alínea d) do artigo 173.º doCódigo do Procedimento Administrativo [...]» —Cfr. o documento de fls. 29-32, cujo teor aqui sedá por reproduzido;

m) Em 14 de Maio de 1999, o Secretário deEstado do Emprego e Formação proferiu, então,o seguinte despacho:

«Concordo. No exercício de competênciasdelegadas rejeito o recurso.» — Cfr. fls. 29;

n) O despacho a que se alude em m) foi ante-cedido, entre outros, de um parecer, de 13 deMaio de 1999, do seguinte teor:

«Não obstante se reconhecer a razão que as-siste à recorrente quanto à imperfeição da notifi-cação, entende-se dever ser acolhida a proposta

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de rejeição constante do presente parecer, umavez que o recurso previsto no artigo 30.º do De-creto Regulamentar n.º 15/94 abrange os actosdos gestores dos programas enquanto como talpraticados e ainda porque a recorrente não usou,podendo, dos meios ao seu dispor para o supri-mento da imperfeição, máxime o artigo 36.º daLei Orgânica do Supremo Tribunal Administra-tivo [...]» — Cfr. fls. 29.

3. O direito

3.1 — A questão a dirimir no âmbito do pre-sente recurso contencioso pode resumir-se nosseguintes termos:

— Na sequência da notificação que lhe foifeita através do ofício a que se reporta o do-cumento de fls. 23, dando notícia da deliberaçãoda comissão executiva n.º 431, de 31 de Julhode 1997, que tinha aprovado o pedido de paga-mento de saldo, a recorrente interpôs recursocontencioso de tal acto junto do Tribunal Admi-nistrativo do Círculo de Coimbra;

— Por decisão do Tribunal Administrativodo Círculo de Coimbra de 12 de Maio de 1998,foi a recorrente notificada, através de nota denotificação, datada de 13 de Maio de 1998, paracorrigir a sua petição de recurso, uma vez que seconsiderou existir erro desculpável ao nível daidentificação do autor do acto recorrido, que eranão a dita comissão executiva mas o gestor doPrograma Pessoa;

— Em 15 de Junho de 1998, a recorrente in-terpôs recurso hierárquico para o Ministro doTrabalho e da Solidariedade do aludido despachodo gestor do Programa Pessoa, sustentando, de-signadamente, a tempestividade do seu recurso,já que só ulteriormente ficou a saber que o actoem causa era da autoria do citado gestor «e não,como fora induzida em erro, da comissão exe-cutiva do Instituto do Emprego e Formação Pro-fissional» — cfr. o artigo 26.º da sua petição, afls. 26 do processo instrutor.

— Diferente foi, contudo, a posição acolhidano despacho agora objecto de recurso conten-cioso, onde se decidiu rejeitar o recurso hierár-quico atenta a sua intempestividade, nos termosda alínea d) do artigo 173.º do Código do Proce-dimento Administrativo, por inobservância do

prazo fixado no artigo 168.º do Código do Proce-dimento Administrativo, dando-se a recorrentepor notificada em 26 de Setembro 1997 e tendo-seentendido não constituir razão suficiente para atardia interposição do recurso hierárquico o errona interpretação sobre o autoria do acto.

3.2 — Perante o quadro que se acabou dedescrever a recorrente considera ser de anularcontenciosamente o despacho recorrido, por con-siderar que o recurso hierárquico, sendo tem-pestivo, como já atrás se assinalou, não poderiater sido rejeitado, basicamente, devido ao erro naidentificação do autor do acto, erro esse que nãolhe pode ser assacado, sendo de imputar à Admi-nistração.

O acto contenciosamente impugnado, ao re-jeitar o recurso hierárquico, teria, assim, violadoo disposto na alínea d) do artigo 173.º e na alí-nea c) do artigo 162.º, ambos do Código do Pro-cedimento Administrativo.

Vejamos se lhe assiste razão.

3.3 — Para uma melhor compreensão das ques-tões em discussão é necessário procurar apreen-der qual a «filosofia» subjacente ao Código doProcedimento Administrativo.

O Código do Procedimento Administrativo éfundamentalmente tributário de uma concepçãovincadamente garantística do procedimento ad-ministrativo, embora esta vertente não seja exclu-dente de outros interesses que também foramtidos por relevantes aquando da elaboração dodiploma em análise, como o caso, por exemplo,da sentida necessidade de se assegurar a eficácia,a celeridade, a racionalidade e a oportunidade daacção administrativa.

De qualquer maneira, não se pode olvidar oobjectivo central que norteou a acção do legisla-dor e que se prende com a dimensão garantísticadas normas procedimentais.

O legislador aderiu, assim, àquela correntedoutrinal que pretende fazer do procedimentoadministrativo um instrumento de melhor e acres-cido controle da Administração, ainda antes dese entrar na via contenciosa, permitindo comoque uma compensação das insuficiências de queenferma a protecção concedida pela jurisdiçãoadministrativa, nesta medida se configurando oprocedimento como um pressuposto ou instru-mento relevante no âmbito da própria protecção

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jurisdicional dos interesses e posições jurí-dico-administrativas, aspecto realçado, entre ou-tros, por Gomes Canotilho, «Procedimento admi-nistrativo e defesa do ambiente», Revista de Le-gislação e de Jurisprudência, ano 123.º, n.º 3794.

Optou-se, por um lado, pela via de uma ex-tensa formalização ao nível do procedimento,apostando-se decididamente na legalidadeprocedimental, ao mesmo tempo que se proce-deu ao aumento das garantias dos particulares.

Vê-se, assim, que o procedimento adminis-trativo se destina, em grande medida, a salva-guardar as posições subjectivas dos particulares.

O procedimento passou, por isso, a ser vistocomo um instrumento de protecção acrescida parao cidadão, ao lado da já disponível através dorecurso à via contenciosa.

3.4 — O que se acabou de explanar adquiriráparticular importância no momento em que setrate de interpretar e aplicar as normas contidasno Código do Procedimento Administrativo,designadamente as que foram convocadas pelarecorrente como fundamento para a peticionadaanulação contenciosa do acto objecto de recurso[alínea d) do artigo 173.º e alínea c) do artigo162.º, todos do Código do Procedimento Admi-nistrativo].

Com efeito, tais preceitos deverão ser inter-pretados em consonância com os atrás explici-tados princípios que enfermam o Código doProcedimento Administrativo, com especial re-levo para a vertente garantística.

3.5 — Ora, uma das garantias procedimentaisasseguradas no Código do Procedimento Admi-nistrativo tem a ver, precisamente, com o direitoà notificação, a que se reporta, designadamente,o artigo 66.º do Código do Procedimento Admi-nistrativo, direito esse que, aliás, se assume comouma das manifestações do direito à defesa noprocedimento.

Um dos objectivos prosseguidos com a noti-ficação relaciona-se com o de possibilitar ao res-pectivo interessado o uso da via administrativaou contenciosa, no caso de se não conformar como acto que lhe tenha sido notificado.

Este específico desígnio só será, em princí-pio, adequadamente cumprido quando se estejaperante um notificação que obedeça aos requisi-tos legalmente fixados.

Um desses requisitos tem a ver com a indica-ção da autoria do acto em causa [cfr. a alínea b)do n.º 1 do artigo 68.º do Código do Procedi-mento Administrativo].

Se a notificação padecer, a este nível, de qual-quer deficiência ou irregularidade, em especial,identificando erradamente o autor do acto, impu-tando-o a outrem que não ao seu verdadeiro au-tor, é patente que esta notificação não se podeconsiderar validamente efectuada.

Por outro lado, as consequências processuaisde tal erro, sendo de atribuir à Administração,não podem, obviamente, repercutir-se negativa-mente no status do particular.

Na verdade, seria de todo em todo inaceitávelque tais consequências acabassem por prejudi-car o particular que para elas não contribuiu.

A entender-se por forma diversa, não deixariade ser afectado o princípio da boa fé que devereger sempre nas relações entre Administração eadministrado, princípio esse expressamente aco-lhido no artigo 6.º-A do Código do ProcedimentoAdministrativo.

Quanto a esta temática, cfr. M. Esteves deOliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco Amorim,Código do Procedimento Administrativo, 2.ª ed.,pág. 114.

Nalgumas situações poderia ser, inclusiva-mente, constitucionalmente inadmissível, sobpena de ofensa do princípio da tutela judicialefectiva (também actuante em sede do procedi-mento administrativo), que o particular se vissenuma posição susceptível de envolver violaçãodos seus direitos de defesa (em especial, o direi-to ao recurso), apesar de ter actuado em confor-midade com o teor da notificação que lhe foi feita.

Com efeito, consagrando o Código do Proce-dimento Administrativo a figura do recurso hie-rárquico necessário, que assim se apresenta comoum pressuposto de admissibilidade do recursocontencioso, se o particular se visse privado dorecurso hierárquico necessário devido, por exem-plo, a erro veiculado na notificação que o levassea usar desde logo a via contenciosa, quando, a tersido correctamente identificado o autor do acto,devesse ter accionado previamente a via admi-nistrativa, o recurso hierárquico que viesse a serinterposto posteriormente não poderia ser con-siderado intempestivo por se ter dado relevânciaà data em que ocorreu a notificação defeituosa,

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122 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

nela se fixando o momento a partir do qual sedeveria contar o prazo para a respectiva inter-posição.

Ora, o quadro que se acabou de enunciarcorresponde precisamente à situação que se ve-rificou no caso dos autos.

De facto, apesar de o acto que aprovou o pe-dido de pagamento de saldo ter sido praticadopelo gestor do Programa Pessoa, no ofício denotificação enviado à recorrente, a autoria de talacto é imputada à comissão executiva.

Para o efeito basta atender ao seguinte passodo dito ofício: «[...] ficam VV. Ex.as por este meionotificados da deliberação da comissão executivan.º 431, de 31 de Julho de 1997, que aprovou ovosso pedido de pagamento de saldo [...]» —cfr. o documento de fls. 23.

Tal notificação não legitimava qualquer dú-vida quanto à autoria do acto em questão, não sepodendo, por isso, chamar à colação a hipótesede a recorrente fazer uso da faculdade concedidapelo artigo 3l.º da Lei de Processo nos TribunaisAdministrativos.

Com efeito, perante a clareza da notificaçãono que concerne à identificação do autor do actoseria descabida qualquer indagação ulterior nosentido de esclarecer uma dúvida que à luz do jámencionado ofício não tinha razão de ser.

Adequando a sua conduta ao teor da notifica-ção que lhe foi feita, a recorrente acedeu, desdelogo, à via contenciosa, tendo interposto recursojunto do Tribunal Administrativo do Círculo deCoimbra do acto que imputou à comissão exe-cutiva do Instituto do Emprego e Formação Pro-fissional (cfr. o documento de fls. 24).

Ora, só quando foi notificada do despacho doM.mo Sr. Juiz do Tribunal Administrativo de Cír-culo de 12 de Maio de 1998 (despachado esteproferido em 12 de Maio de 1998 e não em 8 deMaio de 1998, como incorrectamente refere arecorrente, já que, como decorre do documentode fls. 26, esta última data corresponde não aodespacho do M.mo Sr. Juiz do Tribunal Adminis-trativo de Círculo mas à promoção do magis-trado do Ministério Público) no sentido de corrigira sua petição, por se considerar ter existido errodesculpável quanto à autoria do acto recorrido,é que à recorrente foi possível ficar a saber qualo verdadeiro autor do acto que pretendia im-pugnar.

Daí que, tendo interposto, em 15 de Junho1998, recurso hierárquico necessário junto doMinistro do Trabalho e da Solidariedade do actopraticado pelo gestor do Programa Pessoa,desde logo salientando na sua petição as circuns-tâncias que, na sua óptica, justificavam a inter-posição do recurso apenas nessa altura, a deci-são de rejeição consubstanciada no acto agoraobjecto de recurso contencioso não deixa deviolar o disposto na alínea c) do artigo 162.º e naalínea d) do artigo 173.º do Código do Procedi-mento Administrativo, como se sustenta na ale-gação da recorrente.

É sabido que a citada alínea d) se traduz numacausa de inadmissibilidade do recurso hierár-quico.

Com efeito, se se verificar a intempestividadena interposição de recurso hierárquico não seentrará na apreciação do mérito da pretensãodeduzida pelo interessado.

Ora, o princípio do favor actione postula umainterpretação restritiva das causas de inadmis-sibilidade do recurso hierárquico, tudo isto vi-sando privilegiar, sempre que tal seja proces-sualmente possível, o conhecimento da questãode fundo, assim se assegurando uma tutela maisefectiva das posições subjectivas dos interessa-dos, possibilitando o exame do mérito das pre-tensões deduzidas em sede do recurso hierár-quico, entendimento este que se pode sintetizarna fórmula in dubio pro habilitate instanciae.

Dentro desta linha se inserem, entre outros,os acórdãos deste Supremo Tribunal Administra-tivo, de 10 de Julho de 1997, recurso n.º 35 738,de 2 de Junho de 1999, recurso n.º 44 948, de 23de Setembro de 1999, recurso n.º 42 048, e de 11de Maio de 2000, recurso n.º 45 903, ainda quese trate de arestos que se pronunciaram no con-texto dos pressupostos processuais no âmbitodo recurso contencioso, vide, também neste sen-tido, designadamente, Mário Aroso de Almeida,Direito Administrativo, I.

Retomando, agora, a linha argumentativa atrásexplanada, cumpre assinalar que sendo de consi-derar defeituosa a notificação que foi efectuada àrecorrente, através do já citado ofício (documen-tado a fls. 23), atenta a incorrecção verificada aonível da indicação da autoria do acto nele refe-rido, incorrecção essa que induziu em erro a re-corrente, levando-a a interpor recurso contencioso

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de um suposto acto de autoria da comissão exe-cutiva, tal erro não pode causar prejuízo à recor-rente que adequou a sua conduta reactiva aostermos que lhe foram transmitidos pelo ditoofício.

Não se pode olvidar que um dos objectivosprosseguidos com a notificação tem a ver como possibilitar do desencadear dos mecanismosadministrativos ou contenciosos que ao casocaibam.

Este desiderato passa, manifestamente, peloconhecimento da real autoria do acto que se pre-tende notificar.

Se a notificação enfermar de erro a este nível,indicando como autor do acto uma entidade queo não praticou, daqui decorre, designadamente,que tal notificação não se pode considerar comoeficaz e, por o não ser, não dá lugar a que comecea correr o prazo para a impugnação administra-tiva ou contenciosa do acto indevidamente noti-ficado, prazo que, em princípio, permanecerá emaberto até que, designadamente, o interessado sedê por expressamente notificado ou venha a in-terpor o recurso que era devido com referênciaao verdadeiro autor do acto.

É que, convenhamos, o legislador ao estatuirna alínea b) do n.º 1 do artigo 68.º do Código doProcedimento Administrativo que da notificaçãodeve constar a indicação do autor do acto obvia-mente partiu do pressuposto de que tal mençãofosse efectuada com acerto e correcção, por for-ma a instruir adequadamente o interes-sado,habilitando-o a exercer como eficácia os meiosadministrativos e contenciosos.

Não é de aceitar que um erro imputável à Ad-ministração se voltasse contra o interessado,impossibilitando-o de aceder atempadamente àvia administrativa ou contenciosa e, muito me-nos, que a própria Administração, por exemplo,se servisse desse erro para com base nele rejeitarum recurso hierárquico interposto pelo interes-sado apenas depois de vir a saber qual tinha sidoo verdadeiro autor do acto, anteriormente erra-damente identificado no ofício de notificação.

Este cenário não deixaria de atentar, desde logo,contra o princípio da boa fé, como já atrás seassinalou.

Na verdade, o princípio da boa fé no âmbitodas relações administrativas impede que o parti-cular sofra as consequências de erro imputável à

Administração, em especial quando não eralegalmente exigível que o interessado adoptasseconduta processual diferente da prosseguida.

No caso em apreço, tendo a recorrente inter-posto o recurso hierárquico dentro do prazo de30 dias (aplicável ex vi do artigo 168.º , n.º 1, doCódigo do Procedimento Administrativo) conta-do do momento em que ficou a saber qual o ver-dadeiro autor do acto (momento que se não podefixar em data anterior a 13 de Maio de 1998, datada nota de notificação que lhe foi enviada peloTribunal Administrativo do Círculo de Coimbra— cfr. o documento de fls. 25 — tendo em vistao cumprimento do despacho do M.mo Sr. Juiz,documentado a fls. 26), não se poderia rejeitar odito recurso com base na sua intem-pestividade,já que tal prazo se teria de contar nos termos dosartigos 72.º e 162.º, alínea c), do Código do Pro-cedimento Administrativo, sendo que o últimodos preceitos acabados de mencionar é aplicávelpor analogia aos recursos hierárquicos (cfr., nes-te sentido, a já citada obra de M. Esteves deOliveira, P. Gonçalves e P. Amo- rim, a págs.775, bem como Marcelo Rebelo de Sousa, RDJ,vol. VI, 1992, a págs. 48).

Contudo, esta não foi a via seguida no actoobjecto de recurso contencioso, que, ao rejeitar,por intempestivo, o recurso hierárquico inter-posto pela recorrente, violou o disposto na alí-nea d) do artigo 173.º e na alínea c) do artigo162.º, todos do Código do Procedimento Admi-nistrativo.

3.6 — Procede, assim, o arguido vício de vio-lação de lei.

4. Decisão

Nestes termos, acordam em conceder provi-mento recurso contencioso, anulando o acto re-corrido.

Sem custas.

Lisboa, 9 de Novembro de 2000.

José Manuel da Silva Santos Botelho (Rela-tor) — Albino Gonçalves Loureiro — EugénioAlves Barata.

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124 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

O acórdão insere-se em entendimento jurisprudencial crescentemente afirmado no sentido dadecisão judicial privilegiar o conhecimento das questões de fundo, em obediência a princípiosantiformalistas e pro actione.

Daí que se defenda no aresto que o procedimento administrativo se destina, em grande medida,a salvaguardar as posições subjectivas dos particulares, as quais, como sucede no caso ali em questão,não deverão ser prejudicadas pela notificação deficiente de acto administrativo, consubstanciada emerrada identificação do respectivo autor.

(M. P.)

Reversão de bens expropriados — Efeitos da declaração deutilidade pública — Aquisição de bens por expropriação e porcompra e venda — Transferência desses bens para o Estado —Legitimidade activa — Publicação do acto — Falta de fun-damentação

I — Nos recursos contenciosos, afere-se da legitimidade activa pelo modo como ointeresse qualificado do recorrente é configurado na petição.

II — Antes da entrada em vigor da 2.ª revisão constitucional, o artigo 29.º, n.º 1, daLei de Processo nos Tribunais Administrativos não tinha que ser objecto de uma interpre-tação restritiva, podendo o prazo para a interposição de recurso contencioso de actoexpresso contar-se da respectiva publicação, se esta fosse «imposta por lei».

III — Essa publicação «imposta por lei» era a imposta pela natureza do acto, e nãoa resultante do modo que acidentalmente se escolhesse para o exteriorizar.

IV — As estatuições pelas quais se transmite para o Estado a propriedade de umcerto bem e se procede à afectação desse bem a outra pessoa colectiva de direito público,ainda que inseridas num decreto-lei, têm a natureza de actos administrativos.

V — Se, depois de declarada a utilidade pública da expropriação do aludido bem,os expropriados e a entidade expropriante celebraram, num cartório notarial, uma es-critura em que, mediante um preço, aqueles declararam vender e esta declarou compraresse bem, sem aí se fazer qualquer referência ao procedimento expropriativo e à indem-nização correspondente, não deve esse negócio ser havido como o título de uma expro-priação amigável, já que o artigo 238.º do Código Civil não permite interpretar nessesentido as produzidas declarações negociais.

VI — Não tendo havido essa expropriação amigável, os vendedores do bem care-cem de direito de reversão relativamente a ele, pelo que, no recurso contencioso dirigidocontra os actos ditos em IV, improcede a arguição de todos os vícios que necessariamentese fundavam na existência desse direito.

VII — Na falta de previsão especial em contrário, os actos que não caibam nashipóteses contempladas no artigo 124.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administra-tivo, são insusceptíveis de padecerem de vício de forma, por falta de fundamentação.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 35 703(Secção do Contencioso Administrativo)

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125 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

ACORDAM na 1.ª Secção do SupremoTribunal Administrativo:

José Lobo de Vasconcellos Cabral Parreira,António Lobo de Vasconcellos Cabral Parreira eMaria de Fátima Lobo de Vasconcellos Côrte--Real, identificados nos autos, interpuseram«recurso contencioso dos actos administrativoscontidos no Decreto-Lei n.º 118/89, de 14 deAbril», que, incidindo sobre imóveis diversos emque se incluíam parcelas extraídas de um prédiodos recorrentes que teria sido objecto de expro-priação amigável a favor do Gabinete da Área deSines, transmitiram para o Estado a propriedadedeles e afectaram ao Instituto do Emprego e For-mação Profissional a sua utilização para que aíseja instalado o Centro Protocolar de FormaçãoProfissional para o Sector Agro-Pecuário.

Afirmaram que os actos enfermam de nuli-dade, por se haverem desviado do fim de utili-dade pública determinante da expropriação, porofenderem o conteúdo essencial do direito fun-damental de propriedade, das garantias do pro-cesso expropriativo e do direito de reversão, porviolarem os princípios da justiça e da proporcio-nalidade e por padecerem de falta de funda-mentação.

Dirigiram o recurso contra o Conselho deMinistros e contra o Instituto do Emprego e For-mação Profissional, como recorrido particular.

Ao longo do processo, tanto os recorridoscomo o Ex.mo Magistrado do Ministério Públicosuscitaram algumas excepções, sobre que os re-correntes se pronunciaram e cujo conhecimentofoi relegado para final. Consistiram tais questõesprévias nas alegadas ininteligibilidade do pedido,na falta de objecto do recurso por inexistência dequalquer acto administrativo recorrível, na ilegi-timidade activa e na extemporaneidade do recursocontencioso.

Os recorrentes terminaram a sua alegação derecurso, formulando as seguintes conclusões:

1 — A expropriação por utilidade pública dosprédios sub judice resultou do artigo 36.º, n.º 2,do Decreto-Lei n.º 270/71, de 29 de Novembro,do Sr. Presidente do Conselho, e da delibera-ção do Conselho de Ministros restrito de 26 deJunho de 1973, tendo assumido a forma deexpropriação amigável, prevista no artigo 8.º

do Decreto n.º 43 587, de 8 de Abril de 1961(v. artigos 32.º a 36.º do Código das Expropria-ções de 1991).

2 — O artigo 7.º, n.º 1, do Código das Expro-priações de 1976, ao recusar o direito de rever-são quando a entidade expropriante for de direitopúblico, é manifestamente inconstitucional porviolação da garantia constitucional da proprie-dade privada (v. artigo 62.º, n.º 1, da Constitui-ção da República Portuguesa), do princípio daigualdade (v. artigo 13.º, n.º 1, da Constituição daRepública Portuguesa), dos princípios da jus-tiça e da proporcionalidade (v. artigos 1.º, 2.º e266.º da Constituição da República Portuguesa),dos artigos 20.º, n.º 1, 214.º, n.º 3, e 268.º, n.º 4,da Declaração Universal dos Direitos do Homem,pelo que a sua aplicação in casu deverá ser re-cusada (v. artigo 207.º da Constituição da Repú-blica Portuguesa e artigo 4.º, n.º 3, do Estatuto dosTribunais Administrativos e Fiscais; cfr. acór-dão do Supremo Tribunal Administrativo de24 de Setembro de 1992, Revista de Direito Pú-blico, VII, n.º 13, pág. 108).

3 — Os prédios expropriados aos ora recor-rentes foram transmitidos ao Gabinete da Áreade Sines a fim de ser criado na área de Sines umpólo de desenvolvimento urbano-industrial (v. De-creto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, e Decreto--Lei n.º 487/80, de 17 de Outubro), e tal finali-dade desapareceu quando se extinguiu o Gabi-nete da Área de Sines e se entendeu não se jus-tificar a criação de tal pólo de desenvolvimento(v. Decreto-Lei n.º 242/87, de 15 de Junho).

4 — As atribuições da entidade expropriante— Gabinete da Área de Sines — são diversas dasatribuições das entidades para as quais foramtransmitidos e afectados os prédios expropria-dos aos ora recorrentes — nomeadamente, doInstituto do Emprego e Formação Profissional edo Centro Protocolar de Formação Profissionalpara o Sector Agro-Pecuário (v. artigo 2.º do pro-tocolo homologado pela Portaria n.º 780/87, de8 de Setembro) — pelo que os bens expropria-dos não foram, nem poderão vir a ser, afectadosaos concretos fins de utilidade pública que deter-minaram a sua expropriação (v. artigo 1.º, n.º 1,do Código das Expropriações de 1976, artigo266.º da Constituição da República Portuguesa eartigos 3.º e 4.º do Código do Procedimento Ad-ministrativo).

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126 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

5 — Cessada a afectação aos fins de utilidadepública que determinaram a expropriação dosprédios em causa, constituiu-se o direito de re-versão na esfera jurídica dos ora recorrentes(v. artigo 8.º da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de1948, e artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 43 587, de8 de Abril de 1961; cfr. artigo 5.º do Código dasExpropriações de 1991).

6 — Os actos sub judice, ao determinarem atransmissão dos prédios expropriados aos orarecorrentes para o Estado e a sua afectação ao oInstituto do Emprego e Formação Profissional eao Centro Protocolar de Formação Profissionalpara o Sector Agro-Pecuário, violaram o con-teúdoessencial do direito fundamental de propriedade,das garantias do processo expropria- tivo e dopróprio direito de reversão dos ora recorrentes,que só podem ser restringidos nos termostaxativamente previstos na lei (v. artigos 18.º e62.º, n.os 1 e 2, da Constituição da Repú-blicaPortuguesa; cfr. artigo 5.º do Código das Expro-priações de 1991).

7 — Os actos em causa violaram ainda osprincípios da justiça e da proporcionalidade emque assenta o Estado de direito democrático[v. artigos 1.º, 2.º, 9.º, alínea b), e 266.º, n.º 2, daConstituição da República Portuguesa], pois oúnico meio de respeitar os direitos e interessesdos ora recorrentes afectados pela expropriaçãoinicial seria permitir-lhes exercer o respectivodireito de reversão ou, pelo menos, proceder-seà actualização da indemnização atribuída inicial-mente (v. artigos 5.º e 70.º e seguintes do Códigodas Expropriações de 1991).

8 — (Por lapso evidente, o recorrente desig-nou esta conclusão por 9.ª, errando similarmentena numeração das conclusões seguintes; dora-vante, apresentaremos tais conclusões com nu-meração corrigida) — os actos sub judice sãonulos, pois violaram os referidos direitos e prin-cípios fundamentais (v. Freitas do Amaral, Di-reito Administrativo, 1984, II, pág. 227; autorcitado, A Execução das Sentenças dos TribunaisAdministrativos, pág. 289; Jorge Miranda, Ma-nual de Direito Constitucional, IV, pág. 228;Marcelo Rebelo de Sousa, O Valor Jurídico doActo Inconstitucional, 1988, pág. 32; Esteves deOliveira, Direito Administrativo, vol. 1.º, pág. 547;cfr. artigo 133.º, n.º 2, alínea d), do Código doProcedimento Administrativo).

9 — Os actos sub judice transmitiram os pré-dios expropriados aos ora recorrentes para oEstado e determinaram a sua afectação ao Insti-tuto do Emprego o Formação Profissional e aoCentro Protocolar de Formação Profissional parao Sector Agro-Pecuário, aplicando disposiçõeslegais materialmente inconstitucionais, pelo que,também por esta via, a sua nulidade não podesuscitar dúvidas, pois, «sendo a norma nuladesde a sua origem, por força de inconstituciona-lidade, tornam-se igualmente inválidos [...] osactos jurídicos praticados ao seu abrigo» (v. acór-dão do Tribunal Constitucional n.º 246/90, Diá-rio da República, I Série, de 3 de Agosto de 1990,págs. 3138-3184; cfr. acórdãos do Tribunal Cons-titucional n.º 80/86, n.º 142/85, Acórdãos doTribunal Constitucional, vol. VI, págs. 81 e se-guintes).

10 — Os actos sub judice visaram impedir oexercício do direito de reversão dos ora recorren-tes, negando e restringindo os seus direitos e in-teresses legítimos, não contendo quaisquer razõesde facto e de direito da decisão de atribuir novodestino aos bens expropriados e do não reconhe-cimento do direito de reversão dos ora recor-rentes.

11 — Os actos sub judice enfermam, pois, demanifesta falta de fundamentação ou, pelo me-nos, esta é insuficiente, obscura e incongruente,tendo violado clara e frontalmente o artigo 268.º,n.º 3, da Constituição da República Portuguesa,o artigo 1.º, n.os 1, alíneas a), d), e) e f), 2 e 3,do Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho(cfr. artigos 124.º e 125.º do Código do Procedi-mento Administrativo).

12 — Os actos sub judice violaram assim fron-talmente, além do mais, os artigos 1.º, 2.º, 13.º,18.º, 62.º, 214.º, 266.º, 268.º e 282.º da Constitui-ção da República Portuguesa, o artigo 17.º daDeclaração Universal dos Direitos do Homem, oartigo 8.º da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de1948, o artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 43 587, de8 de Abril de 1961, o artigo 1.º do Código dasExpropriações de 1976 e o artigo 1.º do Decreto--Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho.

A entidade recorrida contra-alegou, concluin-do do modo seguinte:

I — O direito de reversão dos prédios emquestão não existe, nem nunca existiu, uma vez

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127 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

que, quando se poderia conceber o seu exercício,a entidade expropriante detinha a natureza deentidade de direito público contra a qual, nostermos do Código das Expropriações aplicável,não podia esse direito ser exercido.

II — O momento da desafectação ao fim pú-blico justificativo da expropriação foi aquele apartir do qual a entidade expropriante se viu le-galmente impossibilitada de prosseguir as atri-buições em função das quais havia sido criada,devido à extinção do Gabinete da Área de Sinespor força da resolução do Conselho de Minis-tros de 7 de Fevereiro de 1986.

III — Situação essa que ficou consolidada coma prática de vários actos posteriores, de entreeles a publicação do Decreto-Lei n.º 118/89, ondese transferiu para a propriedade do Estado de-terminados bens destinados a serem afectadosao Instituto do Emprego e Formação Profissio-nal e ao Centro Protocolar de Formação Profis-sional para o Sector Agro-Pecuário, ficando defi-nitivamente posto de lado o objectivo que haviapresidido à criação do Gabinete da Área de Sines.

IV — Os prédios expropriados nunca foramaplicados ao fim para que eles e outros foramexpropriados.

V — O facto que poderia ter originado a re-versão foi, pois, a publicação da resolução doConselho de Ministros de 7 de Fevereiro de 1986,a qual só poderia ter sido exercida dentro do pra-zo de um ano a contar da sua data, conforme oprevisto no n.º 3 do artigo 7.º do Código dasExpropriações e, assim sendo, o direito de rever-são dos recorrentes teria caducado em 7 de Feve-reiro de 1987.

VI — Finalmente, a transferência ordenadapelo Decreto-Lei n.º 118/89, dos prédios em causapara o Estado, não releva, conforme o preten-dido pelos recorrentes, como facto gerador dareversão, uma vez que:

a) A verificação de um facto ulterior à cadu-cidade do direito de reversão, por razõesde segurança jurídica e de interesse pú-blico, não pode implicar o «renascimento»desse direito;

b) Admitir o contrário seria pôr em causa ointeresse na subsistência da expropriação,interesse que não é só da entidade expro-priante, como dos terceiros de boa fé aquem ela venha a aliená-los;

c) Sendo que, além do mais, nunca se pode-ria falar em desafectação de bens à pros-secução do interesse público, mas, quandomuito, na afectação a um outro destino deutilidade pública, o que, nos termos don.º 4 do artigo 7.º do Código das Expro-priações, conduz à ilegalidade da apre-sentação de qualquer pedido de reversão.

VII — Em consequência, os recorrentes nãosão detentores de qualquer interesse directo, pes-soal e legítimo na impugnação dos eventuais ac-tos materialmente administrativos que repousamno Decreto-Lei n.º 118/89, uma vez que, maisque não seja, dessa impugnação não resultará paraeles qualquer vantagem.

VIII — Deste modo, os actos sub judice, aodeterminarem a transmissão dos prédios expro-priados aos recorrentes para o Estado e a suaafectação ao Instituto do Emprego e FormaçãoProfissional e ao Centro Protocolar de FormaçãoProfissional para o Sector Agro-Pecuário, nãoviolaram o conteúdo essencial do direito funda-mental de propriedade, nem das garantias do pro-cesso expropriativo e, muito menos, do direitode reversão dos recorrentes, uma vez que, à datada sua prática, já os recorrentes não podiam cha-mar a si quaisquer direitos sobre os prédios emquestão por caducidade do seu «direito».

IX — Por outro lado, também os actos emcausa não violaram os princípios da justiça e daproporcionalidade em que assenta o Estado dedireito democrático, uma vez que a não permis-são de exercício de um eventual direito de rever-são resultou do facto de este, a ter existido, ter jácaducado à data da sua prática.

X — Nessa medida, os actos sub judice nãomerecem a sanção jurídica da nulidade, pois nãoviolaram os referidos direitos e princípios fun-damentais, e, em consequência, também o pre-sente recurso se manifesta extemporâneo pordesrespeito dos prazos que a nossa lei conferepara o exercício do direito de interposição dosrecursos directos de anulação.

XI — Sendo que, a merecer provimento esteentendimento, deverá também acolher-se o daconsequência inerente que é, sem dúvida, o dasanação de quaisquer outros vícios de que osactos em análise eventualmente padecessem.

XII — E, finalmente, de tudo o que acima sereferiu, resulta que, naturalmente, não tinha a

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128 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

entidade recorrida de fundamentar aos recorren-tes a prática de um acto que de modo algum po-deria interferir na sua esfera jurídica e, nessamedida, não podem os actos em apreço padecerdo vício de forma por falta de fundamentação.

O recorrido Instituto do Emprego e Forma-ção Profissional também contra-alegou, enun-ciando as conclusões seguintes:

1 — O presente recurso vem interposto gene-ricamente «dos actos administrativos contidosno Decreto-Lei n.º 118/89, de 14 de Abril, apro-vado em Conselho de Ministros de 22 de De-zembro de 1988», sem se identificar expressa-mente, em evidente violação do artigo 36.º, n.º 1,alínea c), da Lei de Processo nos Tribunais Ad-ministrativos, quais os actos recorridos, o quetorna o pedido ininteligível e determina a rejeiçãodo recurso.

2 — O Decreto-Lei n.º 118/89, de 14 de Abril,consubstancia um verdadeiro e próprio acto legis-lativo, com natureza geral e abstracta, e não con-tém decisões que visem produzir efeitos numasituação individual concreta, pelo que nele nãose descortinam actos administrativos susceptí-veis de impugnação contenciosa.

3 — Ainda que não se verificassem as ques-tões prévias supra-referidas e de cuja procedên-cia não se prescinde, não deveria este tribunal,por extemporaneidade do recurso (artigo 28.º daLei de Processo nos Tribunais Administrativos),conhecer dos vícios invocados pelos recorren-tes, geradores de anulabilidade.

4 — A transmissão para o Estado da proprie-dade dos prédios a que se refere o Decreto-Lein.º 118/89, de 14 de Abril, não encerra qualquerinconstitucionalidade, não viola o conteúdo dodireito de propriedade, as garantias do processoexpropriativo ou do direito de reversão, nemobserva disposições feridas de inconstitucio-nalidade material.

5 — Os recorrentes baseiam o fundamento detodo o recurso na consideração basilar de que atransmissão operada pelo Decreto-Lei n.º 118/89 os impede de exercer o direito de reversão ede, por essa via, fazer respeitar os direitos e inte-resses que viram afectados pela expropriaçãoinicial, o que não corresponde à verdade.

6 — A propriedade dos prédios foi transmi-tida para o ex-Gabinete do Plano de Desenvol-

vimento da Área de Sines através de um negóciode direito privado não integrado em qualquer pro-cesso expropriativo, pelo que nunca se consti-tuiu na esfera jurídica dos recorrentes qualquerdireito de reversão que, antes do mais, pressu-põe a existência de uma expropriação.

7 — Considerando, por mera hipótese, teremos prédios sido expropriados, é certo que nuncaestariam no caso concreto reunidos os pressu-postos legais fixados no artigo 7.º do Código dasExpropriações de 1976 para o exercício do di-reito de reversão.

8 — Os imóveis actualmente afectos ao eCentro Protocolar de Formação Profissional parao Sector Agro-Pecuário, em cujo direito de rever-são os recorrentes pretendem fundamentar o pre-sente recurso, não foram desviados do fim quedeterminou a «expropriação», não se verificandoas invocadas ilegalidades ou, sequer, os pressu-postos legais do direito de reversão.

9 — Ainda que se considerasse haver afecta-ção dos prédios a diferente fim, certo é que, dadaa natureza e atribuições, quer do Centro Proto-colar de Formação Profissional para o Sector Agro--Pecuário, quer do Instituto do Emprego e For-mação Profissional, os fins prosseguidos são deutilidade pública, o que, nos termos do dispostono artigo 7.º, n.º4 (in fine), do Código das Expro-priações de 1976, sempre inviabilizaria o exercí-cio do invocado direito de reversão.

10 — Embora os recorrentes não indiquemem concreto as normas dos artigos 7.º e 102.º doCódigo das Expropriações de 1976 que reputamde inconstitucionais, e considerando não ser esteo lugar próprio para o desenvolvimento da ques-tão, o certo é que, ainda que este venerandotribunal concedesse na inconstitucionalidade re-clamada, o que cremos não se justificar, sempresubsistiriam por preencher os restantes pressu-postos legais da reversão.

11 — Implicando a consideração de incons-titucionalidade a aplicação das normas revogadaspela norma considerada inconstitucional, à luzdos regimes aplicáveis nesse caso (sucessiva-mente, o Decreto-Lei n.º 46 027, de 13 de No-vembro de 1964, e a Lei n.º 2030, de 22 de Junhode 1948, regulamentada pelo Decreto n.º 43 587,de 8 de Abril de 1961), também não haveria direi-to de reversão no presente caso.

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129 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

Por despacho do relator de fls. 157 v.º, osrecorrentes e os recorridos foram convidados a«apresentar alegações complementares».

Só os recorrentes responderam ao convite, nostermos constantes de fls. 159 a 169, tendo sinte-tizado as suas posições do modo seguinte:

Quanto ao problema do objecto do recurso:

a) Os ora recorrentes interpuseram recursocontencioso de actos administrativos, in-seridos num processo de expropriação,praticados ao abrigo de normas de direitopúblico, visando produzir efeitos numasituação individual e concreta (v. artigo1.º do Decreto-Lei n.º 118/89, de 14 deAbril), pelo que os actos sub judice care-cem da generalidade e abstracção caracte-rísticas dos actos normativos (v. acór-dãos do Supremo Tribunal Administra-tivo de 30 de Janeiro de 1992, processon.º 29 595);

b) Os referidos actos lesaram diversos direi-tos e interesses legítimos dos ora recor-rentes, conforme se demonstrou nosartigos 13.º e seguintes da petição de re-curso, pelo que a sua recorribilidade éinquestionável (v. artigo 268.º, n.º 4, daConstituição da República Portuguesa).

Quanto à questão da tempestividade do re-curso:

a) Os actos administrativos sub judice sãonulos, conforme se invocou nos artigos13.º e seguintes da p. r. e se demonstrounas alegações já apresentadas, pelo que aquestão da intempestividade do presenterecurso é manifestamente improcedente(v. artigo 28.º da Lei de Processo nos Tri-bunais Administrativos, cfr. artigo 134.ºdo Código do Procedimento Administra-tivo);

b) Os ora recorrentes nunca foram notifi-cados de qualquer dos actos sub judice,sendo certo que actualmente só a notifi-cação e consequente conhecimento pelosrecorrentes da autoria, data, sentido eobjecto do acto administrativo releva paraefeitos do início do prazo do respectivorecurso (v. artigo 268.º, n.º 3, da Consti-tuição da República Portuguesa).

Quanto ao direito de reversão:

a) O facto constitutivo da relação jurídicada expropriação dos imóveis dos recor-rentes resultou simultaneamente do ar-tigo 36.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 270/71,do despacho do presidente do conselhode 29 de Novembro de 1971 e da delibe-ração do Conselho de Ministros restritode 26 de Junho de 1973;

b) A existência de prévia declaração de utili-dade pública não pode ser posta em dú-vida, porque o próprio Gabinete da Áreade Sines chegou a instaurar um processode expropriação litigiosa relativamente àHerdade do Burrinho;

c) Os imóveis em causa acabaram por serobjecto de expropriação amigável (v. ar-tigo 8.º do Decreto n.º 43 587), tendo osora recorrentes acedido a esta forma deexpropriação em virtude de o pagamentoda indemnização nas expropriações liti-giosas ser feito em prestações.

O Ex.mo Magistrado do Ministério Públicoemitiu douto parecer no sentido da rejeição dorecurso por ilegitimidade dos recorrentes. E odigno magistrado fundou essa excepção na cir-cunstância deles carecerem do direito de rever-são que invocam, já que o respectivo bem nãochegou a ser expropriado, antes tendo sido trans-mitido à entidade expropriante por «contrato decompra e venda de direito privado».

Estão assentes os seguintes factos, pertinen-tes à decisão:

1 — Do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 270/71,de 19 de Junho, constou a declaração da utilidadepública urgente das «expropriações necessáriaspara a execução dos planos geral e parciais queforem aprovados para a área de actuação directado Gabinete da Área de Sines», área essa em quese incluía o prédio denominado «Herdade daOrtiga», descrito na Conservatória do RegistoPredial do Concelho de Santiago do Cacém sob on.º 10 417, que então pertencia aos recorrentes.

2 — Por deliberação do Conselho de Minis-tros restrito de 26 de Junho de 1973, foi decla-rada a sujeição a expropriação sistemática, peloGabinete do Plano de Desenvolvimento da Área

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130 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

de Sines (Gabinete da Área de Sines), de váriosprédios sitos nos concelhos de Sines e de San-tiago do Cacém, no número dos quais se com-preendia aquela «Herdade da Ortiga».

3 — Em 23 de Agosto de 1974, os ora recor-rentes e o Gabinete da Área de Sines celebraramno 4.º Cartório Notarial de Lisboa a escritura decompra e venda relativa à «Herdade da Ortiga»,cuja cópia consta de fls. 24 a 36 dos autos e queserviu de base à inscrição registral desse imóvel afavor do Gabinete da Área de Sines.

4 — Em 14 de Abril de 1989 foi publicado oDecreto-Lei n.º 118/89, em cujos artigos 1.º e 2.ºo Governo decretou a transmissão para o Estadoda propriedade de vários prédios que tinhampertencido ao Gabinete da Área de Sines, nosquais se incluía a referida «Herdade da Ortiga», ea afectação desses prédios ao Instituto do Em-prego e Formação Profissional, designadamentepara a instalação do Centro Protocolar de For-mação Profissional para o Sector Agro-Pecuário.

5 — Os recorrentes não foram notificadosdessas transmissão e afectação.

Passemos ao direito.O presente recurso contencioso tomou por

objecto os «actos administrativos contidos noDecreto-Lei n.º 118/89, de 14 de Abril», diplomaque determinou a transmissão para o Estado, comafectação ao também recorrido Instituto do Em-prego e Formação Profissional, de várias parce-las de terreno de um prédio que fora dos recor-rentes e que estes dizem ter-lhes sido expro-priado por utilidade pública.

Como vimos atrás, são várias as questões pré-vias suscitadas nos autos com vista à rejeição dorecurso. E, dentre elas, merece prioridade de aná-lise a que se funda na ininteligibilidade do pe-dido, por se ignorarem os actos verdadeiramenteatacados no recurso, já que a procedência dessaarguição determinaria que a petição fosse ineptae que, por via disso, todo o processo fosse nulo(cfr. o artigo 193.º do Código de Processo Civil).

É inegável que a interposição de um recursocontencioso contra actos indeterminados tornaincompreensível a pretensão formulada, parali-sando quaisquer hipóteses de uma defesa pre-cisa e colocando o tribunal na impossibilidade dedecidir. Mas essa anómala situação não se veri-fica in casu. A petição de recurso dos autos, que

é o situs onde devemos perscrutar a identidadedos actos recorridos, esclareceu inequivoca-mente que o Decreto-Lei n.º 118/89 era acome-tido na exacta medida em que continha os actosde transmissão, para o Estado, da propriedadesobre parcelas de terreno anteriormente integra-das num prédio dos recorrentes e de afectaçãodelas ao recorrido Instituto do Emprego e For-mação Profissional — como, máxime, se vê doalegado nos artigos 11.º e 20.º a 22.º daquela peçaprocessual. Sendo assim, carece de fundamentoa suposição de que os actos recorridos não esta-riam minimamente individualizados e de que, porisso, o pedido da sua declaração de nulidade ouanulação seria ininteligível.

Passemos a outra questão. Os recorridosafirmaram que o Decreto-Lei n.º 118/89 é pura-mente normativo, pelo que o recurso contenciosonão versaria sobre um qualquer acto administra-tivo vero e seria, portanto, ilegal.

A forma normativa do Decreto-Lei n.º 118/89é absolutamente indiscutível. Mas hoje não seduvida que os actos materialmente administra-tivos, ainda que inclusos em diplomas formal-mente legislativos, são atacáveis a se, pois o queimporta é que tais actos existam e disponhamdos predicados atributivos da sua recorribili-dade, e não a figura do continente que os acolha.Esta solução mostra-se consagrada na Lei Fun-damental, cujo artigo 268.º, n.º 4, consente a im-pugnação contenciosa dos actos administrativos«independentemente da sua forma»; e constaainda do n.º 2 do artigo 25.º da Lei de Processonos Tribunais Administrativos, em que se de-tecta a possibilidade de «exercício do direito derecurso de acto contido em diploma legislativoou regulamentar». Sendo assim, e para se aferirse determinada solução autoritária constitui umacto administrativo, tem de se atender à sua ma-téria, e não apenas ao invólucro formal em queela se apresente.

A distinção entre norma e acto passa pelospredicados da generalidade e abstracção, por umlado, e pelos da individualidade e índole con-creta, por outro. In rebus, todas as realidadessão individuais e concretas; mas, ao prover no-minalmente sobre elas, a razão pode operar numdiferente plano, dispondo para uma generalidadede pessoas e de casos, a que as situações singula-res ulteriormente se subsumirão. Só nesta úl-

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131 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

tima hipótese, em que a solução declarada pres-cinde das notas individuantes dos seus objectose dos seus destinatários, é que a pronúncia seapresenta como geral e abstracta, revelando umanatureza normativa que decisivamente a afastado conceito de acto administrativo — o qual ti-picamente rege para situações individuais.

As anteriores considerações tornam claro queo presente recurso contencioso tomou por alvoactos administrativos, e não injunções normativas.Ao determinar que se transmitiriam para o Es-tado e que se afectariam ao Instituto do Em-prego e Formação Profissional determinadosbens imóveis, o Decreto-Lei n.º 118/89 incidiuimediatamente sobre o destino de bens singula-res, e, na medida em que só esses bens aí estavamem causa, a solução encontrada no diploma inte-ressava directamente, não a um universo de pes-soas genericamente indicado, mas aos indivíduosque, por aquele destino, fossem recte prejudica-dos. Portanto, as estatuições em causa são in-dividuais e concretas. E porque solucionaramautoritariamente uma dada situação regulável pelodireito administrativo, conclui-se que os actosimpugnados têm a natureza de actos administra-tivos. Improcede, assim, a questão prévia cor-respondente.

Enfrentemos outro dos obstáculos erigidos nosautos ao conhecimento do mérito do recurso.A entidade recorrida e o Ex.mo Magistrado doMinistério Público disseram que os recorrentesnão dispõem de legitimidade processual porque,estando o presente recurso exclusivamente orde-nado à salvaguarda de um invocado direito dereversão, eles careceriam desse direito. Portanto,o recurso contencioso seria um meio ao serviçode um fim inatingível e, por isso, seria insus-ceptível de trazer aos recorrentes qualquer van-tagem justificativa do seu interesse em demandar.

Os recorrentes contrapuseram que o Supre-mo Tribunal Administrativo, em sucessivosacórdãos, decidiu que a consolidada transmissãoa terceiros dos bens expropriados é impeditivado exercício do direito de reversão, daí extrapo-lando a necessidade de vencerem este recursopara manterem a expectativa de retomar o imó-vel que alegadamente lhes foi expropriado.

A referida jurisprudência não é hoje a domi-nante (cfr., v. g., os acórdãos do Supremo Tribu-nal Administrativo de 28 de Setembro de 1999,

6 de Outubro de 1999 e 19 de Janeiro de2000, proferidos, respectivamente, nos recursosn.os 30 231, 31 629 e 37 646). Mas o facto de oSupremo Tribunal Administrativo vir ultimamen-te dizendo que o direito de reversão não é preju-dicado pela alienação a terceiros do bemexpropriado, nada de novo aporta à questão dalegitimidade activa em recursos do género do aquipresente, pois é claro que o núcleo do problemaformal em que a legitimidade se analisa tem de seresolver independentemente dos subsídios queas sucessivas correntes jurisprudenciais venhamtrazendo à decisão das questões de fundo.

No contencioso de anulação tem legitimidadeactiva quem for titular de um interesse directo,pessoal e legítimo no provimento do recurso(cfr. o artigo 46.º do Regulamento do SupremoTribunal Administrativo; cfr. ainda o artigo 821.º,n.º 2, do Código Administrativo). A titularidadedesse interesse afere-se pelos contornos da rela-ção jurídica controvertida, tal como é configu-rada pelos recorrentes na petição (cfr. o actualartigo 26.º, n.º 3, do Código de Processo Civil,que consagrou a posição que, sobre o problema,era de há muito dominante). Portanto, e tal comose decidiu no acórdão do Supremo Tribunal Ad-ministrativo de 15 de Janeiro de 1997, recurson.º 29 150, a constatação da existência de uminteresse qualificado na supressão do acto con-tenciosamente recorrido basta-se com a invoca-ção da titularidade, na esfera jurídica do recor-rente, de um direito subjectivo ou de um inte-resse legalmente protegido que se mostre lesadocom a emissão do acto, desde que os termospeticionados tornem verosímil que o impetranteobtenha, através da eliminação do acto, uma qual-quer utilidade ou vantagem dignas de tutela juris-dicional, por assim se lhe propiciar o aprovei-tamento do bem a que aquele direito ou interesseinerem.

Do atrás exposto, podemos reter que é emface da situação desenhada na petição dos recur-sos contenciosos que se afere da legitimidadeactiva, e que a verdade sobre se o direito ou inte-resse invocado realmente existem na esfera jurí-dica do recorrente concerne já a um problema defundo, que se não mistura com o da detecção dospressupostos processuais.

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132 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

Sendo as coisas assim, facilmente se verá queos aqui recorrentes, na medida em que na petiçãoinvocaram a qualidade de expropriados de deter-minados bens e afirmaram deter o direito de re-versão quanto a eles, apresentaram-se comointeressados em acometer os actos que a tais bensimprimiram um novel destino. Para aferirmos dalegitimidade dos recorrentes, não nos importaaveriguar da exactidão do alegado, pois saber-sese eles são detentores dos direitos e interessesinvocados é uma questão de meritis. O que im-porta é apurar se o aludido direito de reversão, aexistir, funda um interesse qualificado dos recor-rentes no provimento do presente recurso. Ora,tem de se considerar que assim é, pois, tendoeles esse direito de reversão, estarão perante osactos recorridos em situação assaz distinta dados demais cidadãos, e, sobretudo, é verosímilpensar-se, tendo até em conta várias decisões doSupremo Tribunal Administrativo proferidas emcasos do género, que a supressão dos actosrecorridos, ao impedir que os bens em causase afastem da esfera jurídica da entidade indi-cada como expropriante, traga aos recorrentesuma efectiva vantagem — traduzida no acautelarda hipótese de amanhã os recorrentes veremrecusada a existência, ou dificultado o exercíciodo direito de reversão com fundamento na con-solidada transferência dos bens para terceiros.

Deste modo, e tendo em conta a fisionomia darelação jurídica controvertida delineada pelos re-correntes in initio, deve reconhecer-se-lhes uminteresse directo, pessoal e legítimo no provi-mento do recurso. Se porventura eles, por umqualquer motivo, carecerem do direito de rever-são que invocaram, isso reflectir-se-á na decisãode fundo a proferir, conduzindo à improcedênciade todos os vícios que pressupunham a existên-cia daquele direito e a sua lesão.

Assente que os recorrentes detêm legitimida-de activa, e que improcede a excepção corres-pondente, resta-nos apreciar o derradeiro dosobstáculos formais invocados pelos recorridos —o qual consiste na alegada extemporaneidade dorecurso contencioso.

Vimos que o presente recurso tomou por ob-jecto actos administrativos contidos no De-creto-Lei n.º 118/89, de 14 de Abril. Como orecurso contencioso só foi interposto mais decinco anos depois da publicação desse diploma,

os recorridos asseveraram que ele é intempes-tivo — ou em relação a todos os vícios arguidos,ou em relação aos que, de entre eles, sejam fautoresde mera anulabilidade.

Os recorrentes defenderam-se desta excepçãopor duas vias: sustentaram que os actos são nu-los e, portanto, atacáveis a todo o tempo; subli-nharam que nunca foram notificados da produçãodos actos e que só essa notificação lhes confe-riria a eficácia subjectiva que firmaria o dies aquo do prazo para recorrerem contenciosamentedeles.

Os actos recorridos constaram de um di-ploma legal publicado em 14 de Abril de 1989.Nesta data, a Lei Fundamental apresentava a ver-são saída da 1.ª revisão constitucional (introdu-zida pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 3 deSetembro), já que a 2.ª revisão só emanou da LeiConstitucional n.º 1/89, publicada em 8 de Julho.Isto significa que, aquando da prática dos actos,o artigo 268.º, n.º 2, da Constituição dispunhaque «os actos administrativos de eficácia externaestão sujeitos a notificação aos interessados,quando não tenham de ser oficialmente publi-cados, e carecem de fundamentação expressaquando afectem direitos ou interesses legalmenteprotegidos dos cidadãos»; e significa ainda quesó mais tarde, com a entrada em vigor da redac-ção saída daquela 2.ª revisão, é que surgiu a exi-gência constitucional de os actos administrativosestarem sujeitos a notificação aos interessados,obrigando, daí em diante, à interpretação restritivado artigo 29.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tri-bunais Administrativos, no ponto em que per-mitia que o prazo para a interposição de recursode acto expresso se contasse da respectiva pu-blicação, se esta fosse imposta por lei (cfr., comoexemplos de jurisprudência sobre o assunto, osacórdãos do Supremo Tribunal Administrativode 1 de Outubro de 1996, recurso n.º 39 853, e de16 de Outubro de 1997, recurso n.º 25 762).

As considerações anteriores denotam que osrecorrentes fundam a necessidade da sua notifi-cação dos actos num texto constitucional queentão não existia ainda. E porque a redacção doartigo 29.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribu-nais Administrativos se harmonizava perfeita-mente com a solução constitucional na alturavigente, a averiguação que se faça sobre se o re-curso foi interposto dentro dos dois meses a que

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133 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

alude o artigo 28.º, n.º 1, alínea a), do mesmodiploma terá de começar por ser realizada à luzdo estatuído naquele artigo 29.º, n.º 1. Enfrente-mos de imediato este problema, pois, se viermosa concluir que aquele prazo de dois meses foirespeitado, tornar-se-á desnecessário ponderar aforma de invalidade correspondente a cada umdos vícios arguidos.

Se os actos sub judicio forem anuláveis poralguma razão, o recurso contencioso a interpordeles devia sê-lo no prazo de dois meses con-tado, ou da notificação dos actos, ou da sua pu-blicação, se esta fosse imposta por lei. É seguroque os actos não foram notificados aos recor-rentes, e é também certo que foram publicados,pois foi-o o decreto-lei que os continha. Primoconspectu, esta publicação, imposta pela lei emvirtude da natureza legislativa do diploma, preen-cheria a hipótese do artigo 29.º, n.º 1, in fine, econduziria à conclusão de que o aludido prazode dois meses não fora respeitado pelos recor-rentes.

Contudo, o problema não se resolve com talsingeleza. A notificação e a publicação aludidasno preceito são espécies de um género que pode-mos designar como comunicação dos actos — ouaté como notificação no sentido amplo da suaetimologia (notus facere). Ao equiparar os efei-tos da notificação sensu stricto aos da publica-ção, o artigo 29.º, n.º 1, da Lei de Processo nosTribunais Administrativos não podia deixar deentrever nesses dois modos de comunicar umasemelhante aptidão comunicadora. E, no que àpublicação respeita, essa aptidão só era pensávelse fosse de crer que o interessado sabia, ou es-tava em condições de saber, que a publicaçãopoderia realizar-se, precavendo-se então para to-mar conhecimento dela. Ora, a única maneira deo interessado poder ter a certeza que a publica-ção era realizável consistia em ele ter conheci-mento da lei que impusesse a publicação do tipode actos em questão — devendo sublinhar-seque as leis, enquanto gerais e abstractas, pre-vêem a publicação de categorias de actos, e não ade actos singulares. O que nos permite concluirque, nos termos do referido artigo 29.º, n.º 1, apublicação só valia como início do prazo dorecurso se a lei previamente impusesse a publi-cação dos actos daquela espécie — partindo olegislador do pressuposto de que os interessa-

dos deviam conhecer essa imposição legal (e deque ignorantia legis non excusat).

Portanto, a publicação «imposta por lei» eraa imposta pela natureza do acto e não a resul-tante do modo que acidentalmente se escolhessepara o exteriorizar. Consequentemente, o que incasu relevará para os fins do artigo 29.º, n.º 1,não é o facto de a lei obrigar a que os decretos--leis fossem publicados, mas o eventual porme-nor de haver uma imposição legal no sentido deos actos que transferissem a propriedade de benspara o Estado e que afectassem bens do Estado aoutros entes públicos deverem ser publicados.E note-se que essa transferência para o Estado éque era decisiva, pois, sem ela, nunca o bem as-sim transferido poderia, enquanto bem do Es-tado, ser objecto de uma ulterior afectação a outroente público.

No processo não se disse uma palavra sobreeste assunto. Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 118/89 não fundou em qualquer diploma legal,impositivo da publicação dos actos de transfe-rência para o Estado da propriedade de bens imó-veis, a opção de fazer constar os actos recorridosde um decreto-lei. É verdade que o Estado cos-tuma de há muito titular actos do género me-diante diplomas com a força de lei (cfr. M. Cae-tano, Manual de Direito Administrativo, vol. II,9.ª ed., pág. 954); trata-se, porém, de uma prá-tica, que, embora repetida, não é imposta porqualquer preceito constitucional, nem parecesê-lo por alguma norma ad hoc do ordenamentojurídico infraconstitucional. E — sublinhe-se denovo — não havendo uma lei que impusesse apublicação da categoria do acto em causa, nãopodia exigir-se aos recorrentes que, sob pena dadrástica solução de transcorrer o prazo para aco-meterem qualquer acto por vícios fautores demera anulabilidade, se mantivessem atentos à pos-sibilidade de tal publicação ocorrer. Essa soluçãoviolentaria a ratio legis do artigo 29.º, n.º 1, infine, da Lei de Processo nos Tribunais Adminis-trativos, e o direito dos ora recorrentes de recor-rerem contenciosamente, pois não é admissívelque se impute a alguém o conhecimento da prá-tica de um acto quando esse suposto conhecedornão foi dele notificado nem dispunha de qual-quer elemento que prefigurasse tal prática.

Concede-se que é virtualmente impossívelproceder aqui à demonstração do facto negativo

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134 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

de que não havia uma «lei» que directamenteobrigasse à publicação do referido acto de trans-ferência para o Estado. No entanto, sendo aextemporaneidade uma excepção dilatória, o quese impunha, para que ela procedesse, era a provapositiva dos seus elementos constituintes, emque se incluía a razão de ser da publicação dosactos. E não podendo afirmar-se que a publica-ção realizada fosse imposta por lei, deve con-cluir-se pela não ocorrência, com um tal funda-mento da excepção em apreço.

Assente que os actos recorridos não foramnotificados, e que a publicação deles também nãofoi subjectivamente eficaz em relação aos recor-rentes, há que concluir que o prazo para a inter-posição do recurso contencioso dos autos nãopodia contar-se de qualquer um daqueles mo-mentos. Sendo assim, recaímos na hipótese pre-vista no artigo 29.º, n.º 3, da Lei de Processo nosTribunais Administrativos, segundo a qual oprazo se conta «a partir do conhecimento doinício da respectiva execução». Como não foi ale-gado nos autos que esse conhecimento ocorreramais de dois meses antes da ocasião em que opresente recurso foi interposto, torna-se evi-dente que não existe qualquer dado de factodonde se possa extrapolar que os recorrentesterão vindo a juízo tardiamente.

Ante o exposto, e ainda que os vícios argui-dos pelos recorrentes apenas pudessem condu-zir à anulação dos actos — questão que deixámosem aberto — tem de se concluir que o recurso foiinterposto em tempo, soçobrando a respectivaexcepção de extemporaneidade.

Ultrapassadas todas as questões prévias sus-citadas nos autos, estamos finalmente em condi-ções de nos debruçarmos sobre o fundo dorecurso.

Os recorrentes afirmaram que os actos im-pugnados são inválidos porque se desviaram dofim de utilidade pública determinante da expro-priação que haviam sofrido, porque violaram oconteúdo essencial do seu direito de proprie-dade, das garantias do processo expropriativo edo direito de reversão e porque, ao prejudicaremo exercício deste último direito, ofenderam osprincípios da justiça e da proporcionalidade. Queristo dizer, como já atrás entrevíramos, que o pre-sente recurso visa coadjuvar o exercício, pelosrecorrentes, do direito de reversão de bens

expropriados, de que eles se julgam titulares.Nessa medida, e se porventura for exacto que osrecorrentes perderam a titularidade dos bens emcausa por via diferente da expropriativa, é admis-sível que o alegado direito de reversão perca abase em que se sustentava — com a consequenteimprocedência dos vícios acima referidos, que atais expropriação e reversão se mostram conca-tenados. Deste modo, essa matéria não pode dei-xar de ser enfrentada neste processo, pois, apesarde os actos recorridos não se lhe referirem direc-tamente, apresenta-se como um pressupostosubstantivo da procedência dos mencionadosvícios.

Não há dúvida que a «Herdade da Ortiga»,que pertencera aos recorrentes, foi abrangida poruma declaração de utilidade pública com vista àsua expropriação urgente a favor do Gabinete daÁrea de Sines. Posteriormente, os aqui recorren-tes transmitiram esse prédio para o Gabinete daÁrea de Sines, através do contrato de compra evenda cuja cópia consta de fls. 24 a 36 dos autos.E com base na índole privada desse negócio, de-fendeu-se no processo que os recorrentes nãodetêm a qualidade de expropriados e que, porisso, é vão o seu intuito de obterem a reversão doimóvel.

Os recorrentes objectaram, sublinhando que,na ocasião em que transmitiram o prédio ao Ga-binete da Área de Sines, já estava em curso aexpropriação a ele relativa; e acrescentaram quefoi para se furtarem a vicissitudes inerentes àfase litigiosa do processo expropriativo que ace-deram em celebrar a escritura de compra e venda,que, por isso mesmo, tem de ser havida como otítulo de uma expropriação amigável.

A declaração de utilidade pública da expropri-ação da «Herdade da Ortiga» ocorreu em 1971,ocasião em que os procedimentos expropriativosestavam sujeitos ao regime constante do Decreton.º 43 587, de 8 de Abril de 1961. Nos seus tra-ços essenciais, esse regime não diferia dos quevieram a seguir-se-lhe, compreendendo as possi-bilidades de a expropriação se realizar amigávelou litigiosamente (cfr. as secções II e III do capí-tulo I do diploma) e devendo o processo, emambos os casos, ser ultimado por decisão judi-cial (cfr. os artigos 10.º, 19.º, n.º 2, 29.º, n.º 4, 4 l.ºe 49.º do Decreto n.º 43 587).

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135 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

Tal como hoje sucede, a expropriação pre-vista nesse decreto não era um acto instantâneo,mas uma relação jurídica que se prolongava notempo. E o facto constitutivo da relação jurídicade expropriação era, como continua a ser, a de-claração de utilidade pública. Este acto adminis-trativo é que permite atribuir ao proprietário dosbens designados a qualidade de expropriado, to-lhendo doravante os seus poderes de livre dispo-sição deles e fazendo nascer na sua esfera jurídicao direito a uma indemnização correlativa do sa-crifício iminente.

Note-se, contudo, que o facto de os referidospoderes estarem tolhidos, como dissemos, nãosignifica que eles hajam inteiramente cessado.O Prof. Marcello Caetano (em torno do conceitode expropriação por utilidade pública, Estudosde Direito Administrativo, pág. 178) assinala quenada impede que, no decurso da relação expro-priativa, os bens em questão mudem de dono —ainda que a transferência não seja a da proprieda-de plena, mas a de «um mero direito precário deuso e fruição acompanhado do direito a receber aindemnização que há-de ser paga quando se efec-tivar a prevista e inevitável transferência para oexpropriante». E essa precariedade justifica que,grosso modo, se diga que a declaração de utili-dade pública «produz a extinção do direito delivre disposição do proprietário e assim cria acoacção psicológica específica do carácter for-çado da transferência» (ibidem).

Voltemos ao carácter duradouro da relaçãojurídica de expropriação. Como já no Decreton.º 43 587 se dispunha, essa relação inicia-se coma declaração de utilidade pública e termina comuma actuação judicial que transfere o bem para aentidade expropriante. O bem, mas não o direitode propriedade que sobre ele incidisse, pois aaquisição pela via expropriativa realiza-se a tí-tulo originário. Nisto, aliás, se distingue da com-pra e venda relativa à propriedade de uma coisa,que se caracteriza pela transmissão do direito doalienante para o comprador, que assim adquireem modo derivado.

É claro que a relação jurídica de expropriação,iniciada pela declaração de utilidade pública, podenão se ultimar, frustrando-se por causas diver-sas, como era o caso da desistência do expro-priante (cfr. o artigo 52.º do Decreto n.º 43 587)e, mais tarde, o da caducidade daquela declara-

ção. A declaração de utilidade pública, emboradotada da força constitutiva que atrás assinalá-mos, não basta para fazer extinguir o direito naesfera jurídica do expropriado e operar o seurenascimento na do expropriante; para que taisefeitos plenamente se obtenham era, e continua aser, necessário, realizar uma série de actos sub-sequentes, prevendo a lei intervenções adminis-trativas e judiciais até que se atinja o fim a que arelação expropriativa naturalmente tende. Se nãose cumprirem os trâmites procedimentais queiriam actualizar o específico modo de aquisiçãoque a declaração de utilidade pública anunciara, ese a entidade expropriante vier a obter o bem emcausa por um título formalmente diverso do cons-tituído pela expropriação, impõe-se a imediatasugestão de que a relação de expropriação, ini-ciada embora, não chegou a ser ultimada.

Foi precisamente isso que sucedeu no casosub judicio. Os recorrentes pretendem fazer crerque o contrato de compra e venda constante defls. 24 e seguintes traduziu uma expropriaçãoamigável. Mas essa modalidade de expropriaçãodevia realizar-se por escritura lavrada perante onotário privativo da entidade expropriante ouperante o chefe da secretaria da Câmara Munici-pal de Santiago do Cacém (cfr. o artigo 7.º doDecreto n.º 43 587) — e não por escritura cele-brada no 4.º Cartório Notarial de Lisboa, comosucedeu. Ademais, essa escritura, se respeitassea uma expropriação, tinha de ser presente ao juiz,a quem competia adjudicar o prédio ao expro-priante, livre de quaisquer ónus ou encargos (ar-tigo 10.º do mesmo diploma) — procedimentoque, in casu, não ocorreu.

Estes aspectos formais induzem imediata-mente a dizer que a «Herdade da Ortiga» foi trans-mitida para o expropriante através de um negóciode direito privado, e não dentro da normal se-quência de uma actuação expropriativa. Mas maisdecisivo é atentar no que os outorgantes da refe-rida escritura nela declararam — já que a qualifi-cação jurídica de qualquer negócio se deve fazerpelo seu conteúdo. Assim, os ora recorrentesmanifestaram aí a vontade de vender aquele pré-dio ao Gabinete da Área de Sines, que exprimiu avontade de o comprar, tudo mediante um preço,conforme dispõe o artigo 874.º do Código Civil.Nessa escritura, não há uma única palavra sobrea declaração de utilidade pública que incidira so-

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136 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

bre o prédio, nem sobre o procedimento expro-priativo, nem, por fim, sobre a indemnização quea tal expropriação corresponderia.

Perante estes dados, a pretensão de vislum-brar na escritura de compra e venda uma expro-priação amigável está votada ao insucesso. Asdeclarações negociais valem com o sentido queum declaratário normal possa deduzir do com-portamento do declarante (cfr. o artigo 236.º doCódigo Civil). E, nos negócios formais, não podea declaração valer com um sentido que não tenhaum mínimo de correspondência no texto do res-pectivo documento, ainda que imperfeitamenteexpresso, a não ser que esse sentido correspondaà vontade real das partes e as razões determinantesda forma do negócio se não opuserem a essa va-lidade (artigo 238.º do Código Civil). Destas nor-mas resulta que o contrato de compra e venda aque vimos aludindo só teria alguma possibili-dade de ser tomado como uma escritura de ex-propriação amigável — e esquecendo agora osobstáculos formais que acima mencionámos —se estivesse seguramente averiguado que a von-tade real das partes intervenientes no negóciofora, não a de comprar e vender, mas a de expro-priar e receber a correlativa indemnização.

A propósito dessa vontade real, os recorren-tes limitaram-se a afirmar que só se dispuseram avender para evitar que a indemnização lhes fossepaga em prestações. Mas isto significa que, afi-nal, sempre quiseram vender, e significa aindaque, sobre a vontade que o Gabinete da Área deSines realmente tivera ao emitir a sua declaraçãonegocial, nada foi adiantado. Aliás, é inexplicávelo motivo por que teria o Gabinete da Área deSines acedido em dizer que comprava, se porven-tura queria expropriar, e, ao invés, é compreensí-vel que o Gabinete da Área de Sines acedesse empagar imediatamente o preço, comprando, porver nesse modo de aquisição quaisquer vanta-gens. Sendo assim, nada existe nos autos quepermita dizer, ou sequer suspeitar, que as partescelebrantes do contrato de compra e venda qui-seram verdadeiramente realizar uma expropria-ção amigável, fautora de uma aquisição originária,fazendo-o sob a capa de um negócio de direitoprivado, causal de uma aquisição derivada.

Aceita-se facilmente que os recorrentes sóterão vendido a «Herdade da Ortiga» ao Gabi-nete da Área de Sines porque se encontravam

pressionados pela declaração de utilidade pú-blica. Mas esse pormenor tem a ver com a sualiberdade enquanto contraentes, e não com a na-tureza do negócio em que participaram. Assimi-lar-se uma compra e venda a uma expropriaçãoamigável apenas em virtude das suas circunstân-cias antecedentes equivale a raciocinar-se por merasemelhança, o que é vedado num domínio em quesó se pode concluir se as relações entre os ter-mos forem de pura identidade.

Em suma: a declaração de utilidade públicaincidente sobre a «Herdade da Ortiga» não ope-rou a expropriação imediata desse prédio nemvedou totalmente aos expropriados a possibili-dade de o alienarem. E tendo-o eles feito atravésde um contrato celebrado com a entidade expro-priante, esse negócio só poderia valer como umaexpropriação amigável se as suas circunstânciasformais e a vontade real das partes permitissemessa qualificação. Como assim não sucede, im-perioso é concluir que os recorrentes não detêma qualidade de expropriados de que neste pro-cesso se reclamam.

Pronunciando-se sobre casos equivalentes, oSupremo Tribunal Administrativo já julgou quea transmissão de um bem, por contrato de com-pra e venda, para uma entidade expropriante nãoconfigura uma aquisição pela via expropriativa(cfr. os acórdãos de 30 de Novembro de 1998,recurso n.º 24 805, e de 24 de Maio de 1989,recurso n.º 24 716). É certo que o acórdão doSupremo Tribunal Administrativo de 6 de Junhode 1995, recurso n.º 30 994, decidiu diferente-mente. Mas fê-lo com base em duas considera-ções que já atrás afastámos: a de que o acto dedeclaração de utilidade pública produzira «aextinção do direito de livre disposição do pro-prietário dos bens pretendidos», afirmação estaque é excessiva e que se mostra contrariada pelasimples existência da escritura de compra e ven-da; e a de que «a propriedade em questão não foitransaccionada livre e espontaneamente pelosseus donos, como sucederia na simples comprae venda, em que é característica também a liber-dade, para o comprador, de dar ao objecto com-prado o destino que lhe aprouvesse». Quanto aesta última frase, e para além do que já dissemos,não se duvidará que, salvo qualquer anormali-dade, os vendedores terão tido, pelo menos, aliberdade de determinarem o tipo contratual uti-

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137 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

lizado, e é sobretudo evidente que a afirmação deque a entidade expropriante compradora só po-dia destinar o bem comprado ao fim previsto naexpropriação envolve uma petitio principii, poisantecipa como assente quod erat demons-trandum. Assim, não vemos razões para nos apar-tarmos da solução acima encontrada.

Tendo em conta que nada permite dizer que odireito de propriedade dos recorrentes sobre a«Herdade da Ortiga» haja findado em resultadode uma expropriação, e dado que os elementosdisponíveis obrigam a afirmar que tal direito foitransferido através de um negócio de direito pri-vado, imediatamente se conclui que eles não dis-põem do direito de reversão de que se arrogam,pois tal direito supõe a consumada ocorrência deuma expropriação, de que é o simétrico reverso(cfr. o artigo 5.º do Código das Expropriações,aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 deNovembro).

Carecendo os recorrentes do direito de rever-são, facilmente se conclui pela improcedência dosvícios invocados no presente recurso e que serelacionam com o exercício de tal direito. Assim,o denunciado desvio do fim de utilidade públicadeterminante da expropriação, que suposta-mente inquinaria os actos impugnados, não ocor-reu, pois, na falta de uma aquisição expropriativa,o Gabinete da Área de Sines adquirente tinha aliberdade de destinar o imóvel comprado à finali-dade que lhe aprouvesse.

Também soçobra a afirmação de que os actosrecorridos teriam violado o conteúdo essencialdo direito de propriedade dos recorrentes, dasgarantias do processo expropriativo e do própriodireito de reversão, já que o título translativo da-quele direito — a compra e venda — não se har-moniza com qualquer desses invocados vícios.Aliás, se os recorrentes acham que o contrato emque outorgaram feriu excessivamente algum di-reito seu, deverão fazer incidir sobre ele a suacrítica através da propositura da acção corres-pondente, na hipótese de permanecerem reuni-das as condições para o efeito.

Por outro lado, não se mostram ofendidospelos actos os princípios da justiça e da pro-porcionalidade, porque, não havendo direito de

reversão, não se justificava que a entidade recor-rida devesse salvaguardá-lo, e, não tendo os re-correntes recebido uma indemnização, estavacompletamente excluída a hipótese de ela vir aser actualizada.

Resta apreciar o alegado vício de forma, resul-tante de falta de fundamentação dos actos. É ver-dade que os actos recorridos não se mostramfundamentados. Contudo, constatámos que osactos conferiram determinados destinos a bensque haviam sido adquiridos mediante um vulgarcontrato de compra e venda. Nessa medida, aestatuição deles constante não afectou quaisquerdireitos ou interesses dos recorrentes, designa-damente o direito de reversão e as posições jurí-dicas que lhe seriam conexas, pelo que a suafundamentação não era exigível à luz do dispostono artigo 124.º, n.º 1, alínea a), do Código doProcedimento Administrativo. E, como essa fun-damentação também não era imposta pelas de-mais alíneas desse artigo 124.º, n.º 1, imedia-tamente se conclui que a circunstância de osactos não estarem fundamentados é insusceptívelde os inquinar por vício de forma.

Em conformidade com o exposto, mostra-seinútil a conclusão 3.ª da alegação de recurso eprejudicada a conclusão 2.ª da mesma peça,improcedendo todas as demais conclusões for-muladas pelos recorrentes — já que nenhum dospreceitos supostamente violados pelos actos oforam realmente. E improcedem ainda as consi-derações que, a propósito das mesmas matérias,os recorrentes teceram na sua alegação comple-mentar.

Nestes termos, acordam em negar provi-mento ao presente recurso contencioso.

Custas pelos recorrentes:

Taxa de justiça 80 000$00; procuradoria40 000$00.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

Madeira dos Santos (Relator) — Isabel Jo-vita — Abel Atanásio.

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138 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

O acórdão aborda desenvolvidamente diversas questões com particular relevo no contenciosoadministrativo, entre as quais a da recorribilidade dos actos administrativos contidos em diplomasnormativos, nomeadamente no tocante ao prazo para a sua impugnação contenciosa, assim como, noprocesso expropriativo, a natureza e efeitos da declaração de utilidade pública na esfera jurídica doexpropriado quanto ao direito de livre disposição dos bens pretendidos.

(M. P.)

Delegação de competência — Falta de lei habilitante

I — No regime legal vigente, os secretários de Estado apenas dispõem de competên-cia delegada.

II — Os secretários de Estado são órgãos de topo da hierarquia administrativa daíque todos os actos administrativos que praticam, ainda que na ausência de delegaçãoou fora do seu âmbito, são actos verticalmente definitivos ainda que possam estar feridosde incompetência.

III — A delegação de competência tem como pressuposto a existência de leihabilitante, isto é, de lei que a autorize — n.º 1 do artigo 35.º do Código do Procedi-mento Administrativo.

IV — É inválida a delegação na ausência de lei habilitante.V — O acto praticado por órgão ou agente subalterno sem competência própria e

sob invocação de delegação que se revela inválida é destituído de definitividade verti-cal, por isso sujeito a recurso hierárquico necessário.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 45 244(Secção do Contencioso Administrativo)

ACORDAM na Secção do ContenciosoAdministrativo do Supremo TribunalAdministrativo:

O director do Departamento Municipal deConstrução e Conservação de Edifícios e o chefede divisão de Fiscalização da Câmara Municipalde Lisboa recorrem da sentença do Tribunal Ad-ministrativo do Círculo de Lisboa de 29 de Ja-neiro de 1999, que concedeu provimento aorecurso contencioso interposto por Electro-Re-clamo, L.da, dos despachos de 15 de Fevereiro de1993 e de 29 de Abril de 1994, dessas entidades,respectivamente.

Alegam e concluem:

1 — No caso em análise e, ao contrário do quese diz na douta decisão recorrida, há lei habilitanteque permite as delegações em causa — artigo54.º da Lei das Autarquias Locais;

2 — Logo, os actos praticados não são anulá-veis por falta de tal lei habilitante;

3 — Não sendo definitivos e executários, detais actos cabia necessariamente o respectivo re-curso hierárquico necessário;

4 — A delegação de poderes inválida ou inefi-caz, seja qual for a razão dessa invalidade ouineficácia, não gera a incompetência do autor doacto;

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139 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

5 — Apenas tomando o acto que daí resulteem não definitivo e executório;

6 — Ao decidir como decidiu, a douta decisãoem crise violou, por errada interpretação, os arti-gos 54.º da Lei das Autarquias Locais e 25.º e 56.ºda Lei de Processo nos Tribunais Administra-tivos.

Termos em que deve ser concedido provi-mento ao presente recurso e, em consequência,ser revogada a douta decisão recorrida, assim sefazendo inteira justiça.

O digno magistrado do Ministério Públicoemite o parecer seguinte:

Vem impugnada a sentença do Tribunal Ad-ministrativo do Círculo de Lisboa que decretou aanulação dos despachos contenciosamente im-pugnados do director do Departamento Munici-pal de Construção e Conservação de Edifícios edo chefe de divisão de Fiscalização da Câmara deLisboa, pelos quais a recorrente foi intimada aproceder à retirada do reclamo luminoso, de queé proprietária, instalado na cobertura de umprédio situado na Avenida de Sidónio Pais, nacidade de Lisboa.

Tal decisão de intimação foi tomada sob invo-cação de delegação de competência do presidenteda Câmara no indicado director de Departa-mento e, deste, no também indicado chefe dedivisão.

Como se concluiu na sentença recorrida, taisdelegação e subdelegação carecem de lei habili-tante, pois que o artigo 54.º da Lei das AutarquiasLocais, para o efeito invocado, apenas consenteque «o presidente da Câmara poderá delegar nosdirigentes dos serviços municipais a assinaturada correspondência e de documentos de meroexpediente».

Assim, como também se concluiu na sen-tença, os actos objecto do recurso contenciosoforam praticados ao abrigo de delegação e sub-delegação inválidos.

Porém, diversamente do entendimento se-guido na sentença recorrida, tal não significa queesses actos sejam, desde logo, passíveis de re-curso contencioso.

Esta depende, ainda, de impugnação graciosanecessária, conforme sustentam, na respectivaalegação, os ora recorrentes.

É o que parece resultar da disposição do ar-tigo 56.º da Lei de Processo nos Tribunais Admi-nistrativos. também invocado nessa alegação:

«Artigo 56.º

Invocação indevida de delegação

No caso de rejeição de recuso contencioso deacto praticado com invocação de delegação ousubdelegação de competência, por estas não exis-tirem, não serem válidas ou eficazes, ou não com-preenderem a prática do acto, pode o recorrenteusar o meio administrativo necessário à aberturada via contenciosa, no prazo de um mês, a contardo trânsito em julgado da decisão de rejeição.»

Procede, pois, a alegação dos recorrentes, nosentido de que se impunha a rejeição do recursocontencioso interposto.

Termos em que somos de parecer que deveráconceder-se provimento ao recurso jurisdicional,revogando-se a sentença recorrida.

Colhidos vistos, cumpre decidir.

Está provada a seguinte matéria de facto cominteresse para a decisão:

a) Pelo ofício n.º 1203, de 29 de Abril de1994, do chefe da Divisão de Fiscaliza-ção da Direcção Municipal de Constru-ção e Conservação de Edifícios da CâmaraMunicipal de Lisboa, a Electro-Reclamofoi intimada, na qualidade de proprietáriado reclamo luminoso instalado na cober-tura do prédio sito na Avenida de SidónioPais, 8, desta cidade, a proceder à suaretirada, em cumprimento do despachode 15 de Fevereiro de 1993 do director doDepartamento (documento de fls. 7);

b) De harmonia com o teor do dito ofício, taldecisão foi proferida ao abrigo da delega-ção de competências conferida pelo des-pacho n.º 192/P/91, de 21 de Outubro de1991, ao abrigo do artigo 54.º do Decreto--Lei n.º 100/84, e por subdelegação decompetências do director municipal (des-pacho n.º 1 DMCCE) — ibidem.

Para decidir a questão em análise, conviráatentar no seguinte.

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140 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

Anteriormente ao Decreto-Lei n.º 3/80, de 7de Fevereiro, os secretários de Estado exerciamcompetência própria.

Este diploma veio no n.º 1 do artigo 5.º disporque os secretários de Estado exerceriam a com-petência que neles fosse delegada e no n.º 2 revo-gou todas as disposições que a essas entidadesatribuíam competência própria.

No n.º 4 acrescenta que «[...] os actos pratica-dos pelos secretários de Estado serão revogadospelo delegante nos termos previstos na lei para arevogação dos actos dos subalternos pelo supe-rior hierárquico», o que levou a afirmar a existên-cia de uma relação hierárquica em sentido restritoentre o ministro e secretário de Estado.

O Decreto-Lei n.º 28/81, de 12 de Fevereiro,que aprovou a Lei Orgânica do VII GovernoConstitucional, manteve no artigo 20.º, n.os 1, 2 e3, a exigência de delegação nos secretários de Es-tado, mas no n.º 4 dispôs que os actos por estespraticados são revogáveis nos termos previstospara a revogação dos actos pelo seu autor.

Com esta alteração deixou de haver funda-mento para afirmar a existência de qualquerpoder de superintendência na titularidade do mi-nistro, integrador de relação de tipo hierárquico.

Os actos dos secretários de Estado passaramdeste modo a ser verticalmente definitivos.

As ulteriores leis orgânicas dos sucessivosgovernos constitucionais mantiveram este re-gime, mas, com o Decreto-Lei n.º 344-A/83, de25 de Julho, Lei Orgânica do IX Governo Cons-titucional, deixou mesmo de fazer-se referência àfaculdade de revogação pelo ministro delegantedos actos do respectivo secretário de Estado.

Neste regime, que veio posteriormente a man-ter-se, inclusive na Lei Orgânica do actual Go-verno, o XIV, Decreto-Lei n.º 474-A/99, de 8 deNovembro, artigo 5.º, os secretários de Estadodispõem apenas de competência delegada, mas,na sua qualidade de membros do Governo e, comotal, órgãos de topo da hierarquia administrativa,todos os actos que proferem são verticalmentedefinitivos.

Se o acto praticado não é abrangido pela dele-gação de poderes estará ferido de incompetência,mas não deixa de ser verticalmente definitivo eassim susceptível de impugnação contenciosa.Assim é, repete-se, porque o secretário de Estadoé órgão de topo da hierarquia administrativa.

Neste sentido, os acórdãos do Supremo Tri-bunal Administrativo de 25 de Junho de 1987,recurso n.º 22 898, de 28 de Junho de 1990, re-curso n.º 26 187, e de 11 de Dezembro de 1996,recurso n.º 29 226, AP Diário da República, de30 de Junho de 1993, 31 de Janeiro de 1995 e 30de Outubro de 1998.

A situação é diferente no que respeita aos ac-tos praticados por órgão ou agente subalterno.

Aqui, a menos que a lei lhe confira competên-cia própria exclusiva ou nele tenham sido delega-dos poderes pelo superior hierárquico, o acto édestituído de definitividade vertical, nessa me-dida insusceptível de impugnação contenciosadirecta e sujeito a recurso hierárquico necessário.Isto porque o subordinado está hierarquica-mente sujeito ao superior, que sobre ele dispõede poderes de superintendência e supervisão, como inerente poder de revogação dos actos por elepraticados.

No caso presente, estamos perante decisãoautoritária proferida pelo chefe da Divisão deFiscalização da Direcção Municipal de Constru-ção e Conservação de Edifícios da Câmara Mu-nicipal de Lisboa, no uso «da delegação de com-petência conferida pelo despacho n.º 192/P/91,de 21de Outubro, ao abrigo do artigo 54.º doDecreto-Lei n.º 100/84» e subdelegação de com-petências do director municipal.

Só que a delegação de competência para a prá-tica de actos administrativos sobre determinadamatéria depende da existência de lei que a talhabilite o delegante.

Dispõe, na verdade, o artigo 35.º, n.º 1, doCódigo do Procedimento Administrativo que:

«1 — Os órgãos administrativos normalmen-te competentes para decidir em determinadamatéria podem, sempre que para tal estejam ha-bilitados por lei, permitir, através de um acto dedelegação de poderes, que outro órgão ou agentepratique actos administrativos sobre a mesmamatéria.»

Na ausência de lei habilitante, o superiorapenas poderá «permitir que o seu imediato in-ferior hierárquico, adjunto ou substituto prati-quem actos de administração ordinária nessamatéria» — n.º 2 do mesmo artigo.

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141 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

«Por actos de administração ordinária», es-crevem Freitas do Amaral e outros, Código doProcedimento Administrativo Anotado, pág. 89,«devem entender-se os actos de gestão corrente,isto é, aqueles que se destinam imediatamente aassegurar a continuidade do serviço. Não se trata,assim (pelo menos, necessariamente), de actosestandardizados, de mero expediente ou de ro-tina — muito embora as respectivas habitualidadee normalidade constituam indícios não desprezí-veis para a sua qualificação como de administra-ção ordinária a nosso ver, a nota específica destaespécie de actos deve antes buscar-se no seucarácter não inovador, complementar ou de exe-cução face àqueles outros que configuram verda-deiras e próprias decisões de fundo, com as carac-terísticas da intencionalidade e da originalidadeque lhes são inerentes — e que, por tal motivo,não prescindem de um acto de delegação maiscircunstanciado (o previsto no n.º 1 do presenteartigo)».

Poder-se-á dizer noutros termos que só po-dem ser classificados como actos de administra-ção ordinária os actos administrativos que nãoenvolvam decisão sobre matérias que se insiramnas atribuições da pessoa colectiva. Sempre queenvolva directamente a prossecução dessas atri-buições, o acto constituirá «uma decisão de fun-do» e não configurará um acto de administraçãoordinária.

Assim sucede com a ordem de remoção doreclamo luminoso, que se inclui nas atribuiçõesmunicipais relativas à segurança e comodidadedo trânsito — alínea e) do n.º 3 do artigo 51.º daLei das Autarquias Locais e por isso só podia ser

tomada com fundamento em competência dele-gada ao abrigo de lei habilitante, nos termos don.º 1 do artigo 35.º do Código do ProcedimentoAdministrativo.

Invocou a entidade delegada como lei habi-litante o artigo 54.º da Lei das Autarquias Locais.Só que este preceito admite apenas a delegaçãoou subdelegação do presidente nos vereadores.

No que respeita aos dirigentes de serviçosmunicipais, tão-só permite a delegação de assi-natura, seja ela de correspondência ou de do-cumentos de mero expediente, categorias em que,pelas razões apontadas, não se inclui a ordem deremoção.

Estamos pois perante delegação inválida que,como tal, não confere à autoridade recorrida opoder de proferir essa decisão.

O acto impugnado é, deste modo, destituídode definitividade vertical e assim insusceptívelde recurso contencioso.

Pelo exposto, acordam na Secção do Con-tencioso Administrativo do Supremo TribunalAdministrativo em conceder provimento ao re-curso jurisdicional e rejeitar o recurso contencioso.

Custas pela interessada Electro-Reclamo, L.da,na 1.ª instância e no Supremo Tribunal Adminis-trativo, com a taxa de justiça e a procuradoriarespectivamente de 20 000$00, 10 000$00,30 000$00 e 15 000$00.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

Cruz Rodrigues (Relator) — Vaz Rebor-dão — Abel Atanásio.

Sobre a matéria a que respeitam os pontos I e II, do sumário, o acórdão reafirma e cita jurispru-dência anterior.

Na doutrina, e sobre o conceito de actos de administração ordinária, para cuja prática a lei (artigo35.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo) consente delegação de poderes, veja-se, ainda,Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do ProcedimentoAdministrativo, 2.ª ed., Almedina, Coimbra 1997, págs. 216 e seguintes.

(A. C. S. S.)

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142 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

Direito de reversão de bem expropriado — Princípio tempusregit actum — Indeferimento tácito

I — Em caso de direito de reversão relativo a bem expropriado no domínio da leianterior e neste não previsto, o prazo de dois anos fixado no n.º 1 do artigo 5.º do Códigodas Expropriações de 1991, conta-se a partir da data em vigor deste diploma (7 deFevereiro de 1992).

II — O pressuposto do direito de reversão é a não aplicação do bem expropriado aoespecífico fim de utilidade pública que justificou a expropriação pelo período de doisanos, e não o facto da apresentação do requerimento em si mesmo, embora este tenha queser obviamente formulado.

III — O facto jurídico a que a lei atribui o significado de constituir o direito dereversão é, por isso, a inércia do expropriante.

IV — Assim, não pode afirmar-se a legalidade do indeferimento tácito do pedido deautorização de reversão apenas com base na constatação da prematuridade da apresen-tação desse pedido (formulado dias antes de se completar o período de dois anos a quese alude em III, pois tal pedido foi mantido actuante perante a Administração até aomomento em que, de acordo com a lei, se considerou tacitamente indeferido e, nessemomento, já aquele período se havia esgotado.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 24 de Novembro de 2000Recurso n.º 37 657(Pleno da Secção do Contencioso Administrativo)

ACORDAM, em conferência, no pleno da1.ª Secção do Supremo Tribunal Admi-nistrativo:

1. Relatório

1.1 — Francisco Gonçalves, casado, resi-dente no Lugar de Prazo, Santo André, Santiagodo Cacém, recorre do acórdão da Secção de 19 deMarço de 1998, que negou provimento ao re-curso contencioso por si interposto do indeferi-mento tácito, imputado ao Sr. Ministro do Pla-neamento e da Administração do Território, dopedido de reversão de prédio expropriado peloGabinete da Área de Sines, feito por requeri-mento de 4 de Fevereiro de 1994.

Nas suas alegações formula as seguintes con-clusões:

«a) O recorrente foi proprietário dum prédiorústico sito na freguesia de Santo André,concelho de Santiago do Cacém, devida-mente identificado nos autos;

b) O referido prédio foi expropriado em 1973pelo Gabinete da Área de Sines;

c) A expropriação por utilidade pública foijustificada pela necessidade de execuçãodos objectivos que o Decreto-Lei n.º 270/71, de 19 de Junho, cometeu ao Gabineteda Área de Sines;

d) Até 17 de Julho de 1989 — data daextinção do Gabinete da Área de Sines —e mesmo posteriormente, até à data deexercício do direito de reversão, não foidada qualquer utilização ou aproveita-mento ao prédio expropriado, quer de in-teresse público, quer outro;

e) A expropriação é um instituto excepcio-nal e traduz-se num acto autoritário con-tra um direito fundamental constitucio-nalmente garantido; o bem expropriadofica vinculado ao fim de utilidade públicajustificativo da expropriação, isto é, atransferência de propriedade fica sujeitaà condição resolutiva de lhe ser dado essedestino específico, o que não aconteceu;

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143 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

f) O direito à propriedade privada tem sidosempre reconhecido como um direito fun-damental no ordenamento constitucionalportuguês;

g) O direito de reversão é o corolário da ga-rantia constitucional da propriedade pri-vada e é também um princípio constitu-cional;

h) Os n.os 1 e 3 do artigo 7.º do Código dasExpropriações de 1976 vieram recusar aosparticulares o direito de reversão quandoa entidade expropriante fosse de direitopúblico, mas são inconstitucionais e comotal têm sido repetidamente declarados,quer pela doutrina, quer pela jurisprudên-cia, nomeadamente desse Supremo Tri-bunal Administrativo e do Tribunal Cons-titucional;

i) Os tribunais não podem aplicar normasque infrinjam o disposto na Constituiçãoou os princípios nela consignados, inde-pendentemente da alegação das partes —artigo 204.º (antigo 207.º) da Constitui-ção;

j) O direito de reversão sempre existiu noperíodo de 1976 a 1994;

l) No domínio do direito de propriedade eda reversão não houve no ordenamentojurídico português qualquer vazio consti-tucional;

m) Antes da publicação do Código das Ex-propriações de 1991 já o recorrente era ti-tular do direito de reversão sobre o prédiorústico «Courela do Poço», a que nuncafora dado o destino justificativo da expro-priação, nem qualquer outro, desde 1973;

n) A omissão do expropriante Gabinete daÁrea de Sines foi constitutiva do direitode reversão do recorrente e o posteriorCódigo das Expropriações de 1991 nãopode suprimi-lo;

o) O direito de reversão do recorrente ba-seava-se directamente no artigo 62.º daConstituição da República Portuguesa etambém por repristinação no artigo 8.º daLei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, enos artigos 59.º e seguintes do Decreton.º 43 587, de 8 de Abril de 1961;

p) Mas o recorrente exerceu o seu direito dereversão em 8 de Fevereiro de 1994 e

é-lhe aplicável portanto o artigo 5.º,n.os 1 e 6, do Código das Expropriaçõesde 1991;

q) O recorrente é titular do direito de re-versão do prédio expropriado pelo Gabi-nete da Área de Sines, e exerceu oportuna-mente tal direito — em 8 de Fevereiro de1994 — de que sempre foi titular, querantes, quer depois do novo Código dasExpropriações de 1991;

r) A autoridade competente para decidir areversão era por delegação o Secretário deEstado da Administração Local e do Or-denamento do Território;

s) O requerimento do recorrente para rever-são do prédio expropriado foi entregue àautoridade competente (o Secretário deEstado da Administração Local e doOrdenamento do Território) em 8 de Fe-vereiro de 1994 — cfr. fls. 39;

t) Desta forma o acto tácito de indeferimentoobjecto deste recurso é do Secretário deEstado da Administração Local e doOrdenamento do Território e o prazode interposição do recurso contenciosocontou-se da data — 8 de Fevereiro de1994 — em que a autoridade competenteo recebeu;

u) Já decorrera portanto, prazo de 2 anosprevisto no n.º 1 do artigo 5.º do novoCódigo das Expropriações de 1991 — queentrou em vigor em 7 de Fevereiro de1992 — quando o recorrente exerceu em8 de Fevereiro de 1994 o seu direito dereversão;

v) Mas ainda que não tivesse decorrido esseprazo — o que não aconteceu — o re-corrente estaria em tempo para requerer— como se referiu nas anteriores alí-neas j) a p) — porque o seu direito dereversão já existia, mesmo antes do Có-digo das Expropriações de 1991, em vir-tude de os n.os 1 e 3 do artigo 7.º do antigoCódigo das Expropriações de 1976 sereminconstitucionais e a reversão ser um prin-cípio constitucional;

w) O acto recorrido de indeferimento tácitoviolou portanto os artigos 12.º, 13.º, 18.º,n.º 1, 62.º e 266.º da Constituição da Re-pública Portuguesa e os artigos 12.º, 279.º,

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144 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

alínea c), 296.º, 297.º, n.º 1, e 1308.º doCódigo Civil, o artigo 8.º da Lei n.º 2030,de 22 de Junho de 1948, os artigos 59.º eseguintes do Decreto n.º 43 587, de 8 deAbril de 1961, bem como os artigos 5.º,n.º 1, e 6.º do novo Código das Expro-priações, aprovado pelo Decreto-Lein.º 439/91, de 9 de Novembro;

x) E o douto acórdão recorrido, além dospreceitos citados, violou o artigo 204.º(antigo 207.º) da Constituição — porqueaplicou normas e princípios inconstitu-cionais;

y) Nos termos expostos, deve ser dado pro-vimento ao recurso com todas as conse-quências legais.» — Cfr. fls. 144-147.

1.2 — Nas suas contra-alegações a entidaderecorrida apresenta as seguintes conclusões:

«a) O douto acórdão recorrido não aplicounormas inconstitucionais;

b) As pretensas normas inconstitucionais,que o recorrente não indica, a reporta-rem-se ao artigo 7.º, n.os 1 e 3, do antigoCódigo das Expropriações, foram revo-gadas pelo artigo 5.º, n.os 1 e 4, respecti-vamente, do novo Código das Expropria-ções;

c) O n.º 1 do artigo 5.º deste último diplomalegal estabelece os factos originadores dodireito de reversão;

d) Por força do n.º 1 do artigo 12.º do Có-digo Civil, o prazo de 2 anos naquelefixado terá de correr, integralmente, navigência do mesmo, sendo eliminado otempo decorrido após a adjudicação dobem, ocorrida na vigência do antigo Có-digo das Expropriações;

e) Esse prazo conta-se a partir da data deentrada em vigor do novo Código das Ex-propriações;

f) O prazo de 2 anos, fixado no n.º 6 domesmo artigo 5.º, para o exercício dessedireito, é um prazo de caducidade;

g) De facto, trata-se de um prazo legal-mente estabelecido, efectivável através derequerimento;

h) Esse prazo iniciou-se em 8 de Fevereirode 1994 e terminou em 8 de Fevereiro de1996;

i) Foi dado como provado que o requeri-mento deu entrada nos serviços compe-tentes em 4 de Fevereiro de 1994;

j) Os poderes desse colendo tribunal limi-tam-se à matéria de direito;

k) Só agora o recorrente levantou a questãode o seu requerimento ter sido remetido aS. Ex.ª o Secretário de Estado da Admi-nistração Local e Ordenamento do Terri-tório;

l) Ainda que a tivesse colocado na 1.ª ins-tância, o órgão delegado pertence ao mes-mo Ministério do órgão delegante, ten-do-lhe sido enviado, oficiosamente, va-lendo como data de entrada do requeri-mento a de 4 de Fevereiro de 1994;

m) Cautelarmente, a não se entender assim,foi dado como provado que a adjudicaçãodo bem expropriado teve lugar em 23 deAgosto de 1973;

n) O novo Código das Expropriações ini-ciou a sua vigência em 7 de Fevereirode1992;

o) À data do exercício do direito de rever-são, em 4 de Fevereiro de 1994, já o mes-mo tinha cessado pelo decurso do prazode 20 anos sobre a data da adjudicação;

p) No caso dos autos, não podia ser tido emconsideração o prazo a contar do factooriginador da reversão;

q) O direito de reversão tinha, pois, de serexercido entre 8 de Fevereiro 1992 e 23de Agosto de 1993;

r) Não o tendo feito o recorrente, o direitode reversão cessou pelo decurso doprazo de 20 anos a contar da data da adju-dicação.

Termos em que deverá ser negado provi-mento ao presente recurso jurisdicional.» —Cfr. fls. 156-158.

1.3 — O magistrado do Ministério Públicoemitiu o seguinte parecer:

«Afigura-se-me que o acórdão recorrido nãomerece censura, como, aliás, vem evidenciado nasalegações da entidade recorrida.

Também no sentido preconizado a fls. 88 eseguintes o acórdão deste Supremo Tribunal de7 de Outubro de 1998, no recurso n.º 37 649.

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145 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

Nesta conformidade, o recurso não é suscep-tível de provimento.» — Cfr. fls. 160 v.º

4.4 — Colhidos os vistos legais, cumpre de-cidir.

Fundamentação

2. A matéria de facto

No acórdão recorrido deu-se como provado oseguinte:

«1 — O recorrente foi proprietário do prédiorústico denominado «Courela do Poço», sito nafreguesia de Santo André, concelho de Santiagodo Cacém, descrito na respectiva Conservatóriado Registo Predial sob o n.º 169 278, a fls. 33 dolivro B-50, e inscrito na matriz cadastral rústicasob parte do artigo 3.ª secção G;

2 — O prédio atrás identificado foi objecto deexpropriação pública urgente, por parte do Ga-binete da Área de Sines, em processo julgado noTribunal Judicial da Comarca de Santiago doCacém (fls. 18 a 22);

3 — O Gabinete da Área de Sines foi judicial-mente investido na posse do referido prédio em23 de Agosto de 1973 (fls. 22);

4 — Em requerimento dirigido ao Ministrodo Planeamento e da Administração do Terri-tório, entrado nos serviços competentes a 4 deFevereiro de 1994, o recorrente requereu a rever-são do prédio expropriado, ao abrigo do dis-posto nos artigos 5.º e 70.º e seguintes do Códigodas Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lein.º 438/91, de 9 de Novembro (documento defls. 11 a 16, cujo conteúdo se dá por integral-mente reproduzido);

5 — Sobre o aludido requerimento não foiproferida qualquer decisão.» — Cfr. fls. 97.

3. O direito

3.1. — Em causa está, com o presente recursojurisdicional, o acórdão da Secção de 19 de Mar-ço de 1998, a fls. 92-104, que negou provimentoao recurso contencioso interposto pelo recor-rente do indeferimento tácito, imputado ao Mi-nistro do Planeamento e da Administração doTerritório, do pedido de reversão de prédio ex-propriado pelo Gabinete da Aérea de Sines.

3.2 — Para assim decidir, o citado aresto con-siderou, em suma, que «à data do pedido de re-versão formulado pelo recorrente, ou seja, em4 de Fevereiro de 1994, ainda não havia decor-rido o prazo legalmente previsto no n.º 1 daqueleartigo 5.º» (do Código das Expropriações, apro-vado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de No-vembro) «pelo que o recorrente ainda não eraainda titular do direito de reversão, não havendoassim qualquer violação do normativo citado [...]»

Perante este quadro, entendeu-se ficar «pre-judicado o conhecimento das restantes questõesinvocadas, impondo-se a improcedência do [...]recurso» — cfr. fls. 103.

3.3 — Sucede, porém, que o recorrente dis-corda da pronúncia contida no aludido aresto, sa-lientando, designadamente, ser titular do direitode reversão do prédio expropriado pelo Gabi-nete da Aérea de Sines, tendo exercido oportuna-mente esse seu direito [cfr. as conclusões p) e q)da sua alegação, a fls. 146], tendo o acórdãorecorrido inobservado o disposto no citado n.º 1do artigo 5.º do Código das Expropriações.

Vejamos se lhe assiste razão.

3.4 — Tudo se reconduz, essencialmente, nadeterminação do momento relevante para a apre-ciação da legalidade do indeferimento tácito ob-jecto de impugnação contenciosa: se o momentoda formulação da pretensão ou se o momento daformação do indeferimento tácito. Ou, numa ou-tra formulação, a questão de saber se a decisãoadministrativa deve atender à situação de factoexistente à data em que é proferida (tratando-sede acto expresso) ou se presume formada (tra-tando-se de acto silente) ou se deve atender àsituação de facto existente à data da apresenta-ção da pretensão dos interessados.

Esta é uma perspectiva que, apesar de nãosuscitada nestes precisos termos nas alegaçõesdo recorrente, não deixa de poder ser «exploradapor este pleno, já que não extravasa a questãoque constitui objecto do presente recurso (a cor-recção do acórdão recorrido ao dar por inexistenteo direito de reversão por ter sido requerido [...]dias antes do seu nascimento) e é sabido que, nãopodendo conhecer ultra vel extra petitum, noentanto — em aplicação dos brocardos latinos dimihi factum, dabo tibi ius e iura novit curia, queo nosso ordenamento jurídico acolhe (cfr. artigos

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146 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

660.º, n.º 2, 661.º, n.º 1, 664.º e 713.º, n.º 2, doCódigo de Processo Civil) — os tribunais nãoestão sujeitos às alegações das partes no tocanteà indagação, interpretação e aplicação das regrasde direito» apud o acórdão deste pleno de 19 deJaneiro de 2000, Acórdãos Doutrinais, n.º 461,págs. 737 e seguintes.

Nada impede, por isso, a análise da questãoagora em apreciação de acordo com a já enuncia-da perspectiva.

A solução acolhida no acórdão recorrido cor-responde à posição à data defendida em diversosacórdãos das subsecções que recaíram sobre si-tuações factuais idênticas à dos presentes autos(indeferimento tácito de pedidos de reversão for-mulados em 4 de Fevereiro de 1994), neles setendo também decidido negar provimento aosrecursos contenciosos com o fundamento de que,à data em que foi exercido, o direito de reversãoainda não existia, por não se terem completadodois anos sobre a entrada em vigor do Código dasExpropriações. Vide, a título meramente exem-plificativo, o acórdão de 28 de Outubro de 1997,Acórdãos Doutrinais, n.º 438, pág. 735.

Ou seja, entendia-se inexistir o direito dereversão, o que implicava o improvimento dosrecursos contenciosos.

Contudo, esta postura começou a ser postaem causa com os acórdãos das subsecções de 22de Outubro de 1998, recurso n.º 37 646, Boletimdo Ministério da Justiça, n.º 480, pág. 157, e de11 de Fevereiro de 1999, recurso n.º 37 648.

Posteriormente, dois acórdãos deste pleno, am-bos de 19 de Janeiro de 2000, recurso n.º 37 652(Acórdãos Doutrinais, n.º 461, pág. 737), e oproferido no recurso n.º 37 646, acabaram porsufragar o entendimento acolhido nos acórdãosda Secção atrás enunciados, assim se começandoa formar uma outra corrente jurisprudencial, emque também se inserem vários acórdãos poste-riores das subsecções, como é o caso do acórdãode 8 de Março de 2000 — recurso n.º 37 622.

Ora, é precisamente este último entendimentoaquele que agora se reitera, na sequência, aliás,dos já citados acórdãos deste pleno de 19 deJaneiro de 2000.

Importa aqui fazer um pequeno parêntesispara assinalar que, em face do posicionamentoadoptado, não se reveste de alcance prático aquestão levantada pelo recorrente nas suas ale-

gações e que se prende com a data em que se devater por apresentado o seu pedido de reversão,uma vez que, mesmo a atender-se à data indicadano acórdão recorrido, o recurso jurisdicional nãodeixará de merecer provimento, como se irá ver.

Tal questão foi pela primeira vez levantadapelo recorrente nas alegações do presente re-curso jurisdicional, onde sustenta que o seu pe-dido de reversão, tendo entrado no Gabinete doMinistro do Planeamento e da Administração doTerritório em 4 de Fevereiro de 1994, foi reme-tido ao Gabinete do Secretário de Estado da Ad-ministração Local, onde teria dado entrada emdata posterior a 7 de Fevereiro de 1994.

De qualquer maneira sempre se dirá com o jámencionado acórdão deste pleno de 19 de Ja-neiro de 2000 (recurso n.º 37 652) que «o certo éque apurar se o requerimento de autorização dereversão foi, ou não, oficiosamente remetido aoGabinete do Secretário de Estado da Administra-ção Local e do Ordenamento do Território e, emcaso afirmativo, em que data aí deu entrada, rele-va de matéria de facto, que extravasa dos pode-res de cognição deste pleno. Ao que acresce quenem na petição de recurso contencioso nem nasrespectivas alegações» o recorrente alegou aque-les factos nem ofereceu ou requereu «que sobreeles se produzisse prova ou ‘suscitou’a questãoda incompletude desse processo ins-trutor. Pe-rante este quadro, o acórdão recorrido nada dis-se, nem nada podia dizer, sobre esses factos e,assim, não pode este pleno, no âmbito da apreci-ação do presente recurso jurisdicional, circuns-crita a matéria de direito, completar tais factos».

Termos em que improcedem ou são irrele-vantes as conclusões a este propósito formula-das pelo recorrente [cfr. as conclusões s), t) e u),da sua alegação].

Retomando, agora, a questão que antes sevinha aflorando e dada a inteira concordância como entendimento explanado no acórdão destepleno de 19 de Janeiro de 2000, proferido norecurso n.º 37 652, aproveita-se para dele trans-crever mais os seguintes passos:

«[...] o fulcro da questão consiste em saberse o momento a ter em conta para apreciar alegalidade do indeferimento tácito impugnado éo momento em que foi apresentada a pretensão

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147 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

indeferida ou é antes o momento em que tal indefe-rimento se considera formado.

E a questão é apenas essa uma vez que nãosuscita controvérsia, no presente caso, a efectivaformação do indeferimento tácito [...]

Assente a efectiva formação de indeferimentotácito, surge também como incontroversa a con-clusão de que a regra tempis regit actum é válidaquer para o acto expresso, quer para o acto tá-cito.

Tendo, no ordenamento jurídico português, osilêncio da Administração o sentido de indefe-rimento (excepcionalmente, de deferimento) dapretensão material deduzida pelo requerente [...]ele conduz à ficção de um acto administrativo deindeferimento ou de deferimento da pretensãomaterial, relativamente ao qual são invocáveis osmesmos vícios que seriam assacáveis a um actoexpresso de idêntico conteúdo decisório (comexcepção, imposta pela natureza das coisas, dovício de falta de fundamentação), e a aferição daexistência desses vícios, ou seja, a aferição dalegalidade ou ilegalidade do (in)deferimento tá-cito também há-de ser feita, tal como para o actoexpresso, segundo a regra tempus regit actum.Isto é, em regra, a (i)legalidade do acto tácitodeve ser aferida segundo o regime jurídico vigen-te e a situação de facto existente à data em queesse acto se considera formado. Seria, de facto,incompreensível, que, elevado o dever de deci-são à categoria de princípio geral do procedi-mento administrativo (artigo 9.º do Código doProcedimento Administrativo), a infracção des-se dever (com a consequência de se considerarindeferida a pretensão formulada) colocasse ointeressado numa situação de desvantagem, naperspectiva da tutela jurisdicional efectiva da suapretensão, em comparação com a situação emque seria colocado se tivesse sido proferido actoexpresso de indeferimento.

É certo que aquela regra conhece excepções,mas, como a seguir se demonstrará, nenhumadessas excepções opera no presente caso.

Na verdade, há situações em que a lei expres-samente determina em que a situação de facto ater em conta na decisão administrativa não é aque se verifica na data desta decisão, mas sim emmomento anterior. É o que acontece, por exem-plo, no procedimento de concurso da funçãopublica, relativamente ao qual a regra é a de que

os requisitos de admissão ao concurso devemestar reunidos até ao termo do prazo fixado paraa apresentação das candidaturas (n.º 2 do artigo21.º do Decreto-Lei n.º 498/88, de 30 de Dezem-bro). Em casos destes, é óbvia a irrelevância dosuperveniente preenchimento desses requisitos(idade, habilitações, tempo de serviço, classifi-cação, etc.), e, assim, não padecerá de ilegalidadeo acto que exclua um candidato por não reunirtais requisitos no termo do prazo para a apre-sentação das candidaturas, mesmo que já os pos-sua no momento em que o acto de exclusão épraticado.

Mas a regulamentação legal do exercício dedireito de reversão não insere qualquer disposi-ção com esse alcance.

Por outro lado, também não é possível atri-buir à apresentação do requerimento de auto-rização do exercício do direito de reversão anatureza de elemento constitutivo do correspon-dente direito. O direito à reversão forma-se como decurso do prazo concedido à entidade expro-priante para afectar o bem expropriado ao fimdeterminante da expropriação sem que essa afec-tação tenha lugar. Tanto assim que a partir dessemomento que se inicia a contagem do prazo decaducidade do exercício do direito de reversão.

Nesta perspectiva, o momento de manifesta-ção da pretensão de reversão não é elementoconstitutivo do correspondente direito, pois,como se sublinhou no citado acórdão de 22 deOutubro de 1998, ‘o pressuposto do direito dereversão é a não aplicação do bem expropriadoao concreto fim de utilidade pública que determi-nou a expropriação no período de dois anos, nãoé o facto da apresentação do requerimento em simesmo. Este é, substantivamente, a declaraçãode vontade de exercer o direito e procedimen-talmente o acto de iniciativa, mas não interferecom a consumação da inércia do expropriante,que este sim é o facto jurídico a que a lei atribui osignificado de constituir o direito de reversão’.

Importa não esquecer que a lei não protege aconservação do bem no património do expro-priante (ou dos seus sucessores), contra a vonta-de do expropriado, fora da aplicação ao fimconcreto da declaração de utilidade pública quemotivou a expropriação. Pelo contrário, como sedisse no acórdão n.º 827/96, do Tribunal Consti-tucional (Diário da Republica, II Série, n.º 53, de

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148 BMJ 501 (2000)Direito Administrativo

4 de Março de 1998, pág. 2776), ‘para, além dofundamento que se adoptar (sobre a natureza dodireito de reversão), o direito de reversão é umaexigência constitucional derivada do artigo 62.º(da Constituição da República Portuguesa), namedida em que exprime uma harmonizaçãovalorativa entre o direito subjectivo e a respon-sabilidade do Estado na protecção e ordenaçãoda propriedade privada, de acordo com os inte-resses envolvidos!’. Ora, a intempestividade dorequerimento (por antecipação) é um facto neu-tro relativamente aos interesses juridicamenterelevantes para a reversão ou nela conflituantes.Com efeito, a apresentação do requerimento an-tes de se ter consumado o prazo a que se refere oartigo 5.º, n.º 1, do Código das Expropriações de1991 não interfere com a possibilidade de, noespaço de tempo sobrante, a entidade expro-priante aplicar o bem expropriado ao fim quedeterminou a expropriação, ou de lhe ter dadooutro destino mediante nova declaração de utili-dade pública (artigo 5.º, n.º 4). Nem a tutela dasituação do beneficiário da expropriação, nem apreservação dos poderes expropriativos da Ad-ministração, nem a regularidade da tramitação doprocesso de reversão impõem que se atribua na-tureza constitutiva do direito de reversão à apre-sentação do correspondente requerimento.

Deste modo, o indeferimento tácito não podeencontrar apoio no facto de à data do requeri-mento do recorrente ‘faltarem [...] dias para secompletar o período de inércia na aplicação dacoisa expropriada em conformidade com o fimprevisto na declaração de utilidade pública que épressuposto da sua pretensão. A entidade com-petente para decidir a reversão permaneceu ins-tada e a vontade de’ o interessado recuperar ‘obem manteve-se viva. Na data em que se formouo indeferimento tácito já alegadamente se verifi-cava aquele pressuposto e é, como se viu, esse omomento relativamente ao qual deve ser aferidaa legalidade desse indeferimento.

Aliás, o exercício prematuro de direitos só é,em regra, inaceitável quando determine pertur-bação da tramitação procedimental ou proces-sual ou quando afecte a racionalidade da decisãoadministrativa ou judicial ou o respeito do prin-cípio do contraditório, impondo o princípio proactione que não se anteponham obstáculos for-

mais injustificados à obtenção de decisões demérito e ao seu efectivo controlo pelos tribunais.

Conclui-se, pois, em resposta à questão porúltimo suscitada, que o princípio tempus regitactum, que manda aferir a legalidade do acto ad-ministrativo pela situação de facto e de direitoexistente à data da sua prolação, no caso de actoexpresso, não pode deixar de valer também paraas hipóteses de indeferimento tácito, conside-rando-se relevante, para o efeito, o momento emque legalmente se considera formado aqueleindeferimento.»

3.5 — É, assim, de concluir que para se afir-mar a legalidade do indeferimento do pedido deautorização de reversão não basta a constataçãoda prematuridade da apresentação desse pedido,via, contudo, indevidamente seguida no acórdãorecorrido, que se baseou na dita prematuridadepara negar provimento ao recurso contencioso,com o consequente não conhecimento das de-mais questões suscitadas nos autos.

Na verdade, tal como já atrás se assinalou, opedido de autorização de reversão foi mantidoactuante perante a Administração até ao mo-mento em que, de acordo com a lei, se consideroutacitamente indeferido.

E isto, sendo certo que, nesse momento, jáhaviam decorrido dois anos sobre a data da en-trada em vigor do Código das Expropriações de1991, pelo que o pedido não podia ser denegadocom fundamento de ainda não se haver esgotadoesse período de tempo de dois anos em que oexpropriante (ou seu sucessor) dispunha paraaplicar o bem expropriado ao fim determinanteda expropriação.

Vê-se, assim, que a legalidade ou ilegalidadedo indeferimento tácito do pedido de autoriza-ção de reversão dependerá, designadamente, dese julgar provado que a entidade beneficiária daexpropriação (ou seu sucessor) começou a apli-car, até 7 de Fevereiro de 1994, o prédio expro-priado ao fim determinante da expropriação ou,ao invés, de se julgar provado que tal prédionunca foi aplicado ao mencionado fim, sem pre-juízo do eventual conhecimento das demais ques-tões não apreciadas no acórdão recorrido.

Estamos perante questões controvertidas, paraa solução das quais o acórdão recorrido nãocarreou matéria de facto suficiente, impondo-se,

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149 Direito AdministrativoBMJ 501 (2000)

por isso, a sua revogação, para ampliação destamatéria, em ordem a constituir base adequadapara a subsequente decisão da questão de di-reito.

4. Decisão

Nestes termos, acordam em conceder provi-mento ao presente recurso jurisdicional, revo-gando o acórdão recorrido e determinando aremessa dos autos à subsecção, para os efeitosindicados.

Sem custas.

Lisboa, 24 de Novembro de 2000.

José Manuel da Silva Santos Botelho (Rela-tor) — António Fernando Samagaio — José daCruz Rodrigues — Rui Manuel Pinheiro Mo-reira — Fernando Manuel Azevedo Moreira —António Simões Redinha — José Anselmo DiasRodrigues — Pedro Manuel de Pinho de Gouveiae Melo — Isabel Jovita Loureiro dos SantosMacedo.

Está em causa o indeferimento tácito de pedido de reversão, apresentado dias antes do termo doprazo para a afectação do prédio expropriado ao fim determinante da respectiva expropriação.

O acórdão reafirma o abandono da jurisprudência que negava, nesse caso, a ilegalidade de um talindeferimento tácito, baseando-se em que, na data da apresentação do pedido, não existia, ainda, odireito de reversão.

Acentua-se, agora, que o facto jurídico constitutivo deste direito é a inércia da Administração eque o pedido se manteve actuante para além do termo daquele prazo, existindo, já, o direito à reversão,quando o pedido se considerou, de acordo com a lei tacitamente indeferido.

(A. C. S. S.)

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150 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

Amnistia — Lei n.º 51-A/96, de 9 de Dezembro — Interpre-tação — Exclusão do ilícito contra-ordenacional

I — As leis que prevêem amnistias, que são providências de excepção, devem inter-pretar-se nos seus precisos termos, sem interpretação extensiva ou analógica, ainda quedaí resultem situações de injustiça relativa.

II — O princípio do primado da lei, basilar num Estado de direito, obsta a que ointérprete possa sobrepor os seus critérios valorativos pessoais aos formulados legisla-tivamente pelos órgãos constitucionais competentes.

III — Por isso, não havendo qualquer suporte legal para concluir pela aplicaçãoda Lei n.º 51-A/96, de 9 de Dezembro, a infracções de carácter contra-ordenaciona1 eresultando do seu texto a limitação do seu âmbito de aplicação a infracções de caráctercriminal, deve afastar-se a sua aplicação a infracções daquele tipo.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 25 446(Secção do Contencioso Tributário)

ACORDAM na Secção do Contencioso Tri-butário do Supremo Tribunal Admi-nistrativo:

1. Gelima — Frigoríficos de Viana, S. A.,António Pedro da Silva Gonçalves, Júlio Ma-nuel Mendes de Almeida e Aldina Neves Coimbrainterpuseram no Tribunal Tributário de 1.ª Ins-tância de Viana do Castelo recurso judicial deuma decisão de aplicação de coima por contra--ordenação fiscal não aduaneira.

Aquele Tribunal ordenou o arquivamento dosautos por entender que, tendo sido pagos os im-postos relacionados com a infracção, a respon-sabilidade contra-ordenacional dos recorrentesestá extinta por força do artigo 3.º da Lei n.º 51--A/96.

Inconformada, a Fazenda Pública interpôs opresente recurso para este Supremo TribunalAdministrativo, apresentando alegações com asseguintes conclusões:

1 — O despacho recorrido padece de erro dedireito, por via da inadequada interpretação quenele se fez do artigo 3.º da Lei n.º 51-A/96, de 9de Dezembro, que, assim, foi violado.

2 — Este normativo, no seu teor literal,compaginado com o dos artigos 1.º, 2.º e 5.º dessa

lei, não suscita dúvidas quanto ao seu decisivosentido e alcance, arredando o alargamento daletra da lei, na busca dum seu espírito (ratio legis),afirmado no despacho recorrido.

3 — A interpretação extensiva operada nodespacho recorrido põe em causa os princípiosda legalidade e da tipicidade das infracções e dassanções em vigor nos distintos âmbitos criminale contra-ordenacional. (artigo 1.º do Código Pe-nal, artigo 2.º do Regime Jurídico das InfracçõesFiscais não Aduaneiras e artigos 1.º e 2.º do De-creto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).

4 — A não punição da contra-ordenação emcausa, inverificando-se as hipóteses de concursode crimes e de contra-ordenação, ou de crimefiscal, significaria a existência de uma factualidadetípica, ilícita e culposa, punível por lei, mas nãopunida, por via da interpretação feita de umanorma excepcional com base em argumentoslógico-jurídicos do tipo identidade de razão oumaioria de razão, insusceptíveis de aplicação, nocaso.

5 — O n.º 5 do artigo 26.º, o artigo 47.º, n.º 3,do Regime Jurídico das Infracções Fiscais nãoAduaneiras, bem como o n.º 7 do artigo 203.º doCódigo de Processo Tributário e os artigos 38.º,n.º 3, e 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de27 de Outubro, e o teor da Lei n.º 51-A/96, 9 de

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151 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

Dezembro, têm por objecto matéria substantivae adjectiva no âmbito das responsabilidades cri-minal e ou contra-ordenacional, fixando, para cadauma destas, regras de estrita legalidade, próprias,materiais e processuais, em consonância com anatureza dos bens jurídicos protegidos pelas dis-tintas normas punitivas e pela desigual resso-nância ética desses bens.

6 — A adesão do contribuinte ao regimeexcepcional do Decreto-Lei n.º 124/96, 10 deAgosto, fora do âmbito de aplicação da Lein.º 51-A/96, de 9 de Dezembro, definido no seuartigo 1.º não legitima a transmutação da respon-sabilidade criminal em responsabilidade contra--ordenacional e, consequentemente, a extinçãodesta, por via duma interpretação extensiva inde-vida do artigo 3.º daquela lei.

7 — A persistência na ordem jurídica e da vidareal dum facto típico, ilícito e culposo, declaradopunível por lei anterior que não consti-tuindocrime ou simultaneamente contra-ordena- ção,constitui contra-ordenação, deverá ser punidocomo contra-ordenação (artigos 2.º e 3.º do Regi-me Jurídico das Infracções Fiscais não Adua-neiras), atentas as finalidades das sanções.

8 — O resultado da interpretação operadatraduz-se na criação de direito material, em vio-lação dos princípios da legalidade e da tipicidadedas infracções e das sanções (ou da sua extinção)pondo em causa os valores da certeza e da segu-rança jurídica, inerentes àqueles princípios.

9 — A letra da lei (artigo 3.º citado e dos res-tantes normativos referidos) é de tal modo clarae precisa, que não legitima qualquer sentido dú-bio ou ambíguo quanto ao seu decisivo alcance eque possa ou deva ser fixado por via de outroselementos hermenêuticos contidos no artigo 9.ºdo Código Civil, sendo que estes confirmam, nocaso, o sentido e alcance decorrentes dessa letra.

10 — A letra da lei interpretada, funcionandocomo ponto de partida e como limite da inter-pretação, não consente a extensão dessa letra porforma a fixar um pensamento legislativo queextravasa claramente o que resulta dessa letra,expressa de forma clara e inequívoca (artigo 9.º,n.º 2, do Código Civil).

11 — Sendo que os elementos histórico eteleológico dessa lei confirmam o sentido e o al-cance decorrentes da sua letra, sendo que o legis-lador, no caso, soube exprimir com correcção o

seu pensamento (artigo 9.º, n.º 3, do CódigoCivil).

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiudouto parecer no sentido do provimento do re-curso, em sintonia com a jurisprudência destaSecção.

2. A única questão apreciada na decisão re-corrida e que é objecto do presente recurso é a desaber se a amnistia prevista no artigo 3.º da Lein.º 51-A/96, de 9 de Dezembro, se aplica a con-tra-ordenações.

Esta questão tem sido frequentemente apre-ciada pelo Supremo Tribunal Administrativo,sendo uniforme a jurisprudência no sentido danão aplicabilidade desta amnistia às contra-orde-nações.

Estabelece-se neste artigo 3.º o seguinte:

«Artigo 3.º

Extinção da responsabilidade criminal

O pagamento integral dos impostos e acrésci-mos legais extingue a responsabilidade criminal.»

Como se vê, o texto deste artigo refere-se ape-nas à responsabilidade criminal e não à contra--ordenacional.

Por outro lado, em várias normas do mesmodiploma fazem-se referências apenas à respon-sabilidade criminal e a crimes e não à responsabi-lidade contra-ordenacional e a contra-ordenações.

É o caso das seguintes normas, além do trans-crito artigo 3.º:

— Artigo 1.º, com a epígrafe «Âmbito de apli-cação», em que se refere que este «diploma éaplicável aos crimes de fraude fiscal, abuso deconfiança fiscal e frustração de créditos fiscais»;

— Artigo 2.º, n.º 3, em que se refere a suspen-são do «prazo de prescrição do procedimentocriminal por crime fiscal»;

— Artigo 5.º em que se afasta o regime desuspensão relativamente ao «crime de fraude fis-cal»;

— Artigo 6.º, em que se refere que as disposi-ções desta lei «são aplicáveis, com as devidasadaptações, aos crimes que tenham dado origema dívidas à Segurança Social».

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152 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

Perante estas repetidas referências a crimesfiscais e responsabilidade criminal, sem con-comitantes referências a contra-ordenações fis-cais e a responsabilidade contra-ordenacional, nãose pode deixar de concluir pela existência de umaintenção legislativa de limitar o âmbito de aplica-ção do diploma a infracções criminais e não tam-bém contra-ordenacionais.

As leis que prevêem amnistias, que são pro-vidências de excepção, devem interpretar-se nosseus precisos termos, observando-se um critériode interpretação estrita, que exclua a interpreta-ção extensiva, restritiva ou analógica, ainda quedaí resultem situações de injustiça relativa (1).

Assim, retirando-se do texto da Lei n.º 51-A/96 a ilação da existência de uma intenção legislativade não aplicação da amnistia referida ao ilícitocontra-ordenacional, o intérprete está limitadopor essa opção legislativa, não podendo, numEstado de direito, assente no princípio basilar doprimado da lei (artigo 3.º, n.º 2, da Constituiçãoda República Portuguesa), sobrepor os seus cri-térios valorativos pessoais aos formuladoslegislativamente pelos órgãos constitucionaiscompetentes, mesmo que esteja convencido queeles são mais sensatos e equilibrados dos que osemanados daqueles órgãos democraticamentelegitimados.

De resto, nem é difícil entrever uma razãoque, possivelmente, estará subjacente àquelaaparentemente ilógica amnistia das infracções denatureza mais grave, sem concomitante aplica-ção do mesmo benefício às de natureza menos

grave, que é a dos direitos adquiridos dos fun-cionários da Administração relativamente às in-fracções contra-ordenacionais (participação noproduto das coimas, prevista no artigo 58.º doRegime Jurídico das Infracções Fiscais não Adua-neiras e na legislação para que aí se remete (2),que não tem paralelo nas infracções fiscais decarácter criminal a que é aplicável aquele diploma(artigos 512.º do Código de Processo Penal e 131.ºdo Código das Custas Judiciais).

É lamentável, decerto, mas muitas vezes,tanto em matéria de política legislativa como noquotidiano, a ponderação áspera e fria dos resul-tados da actuação tem de sobrepor-se ao enlevoda coerência valorativa e axiológica das opções.

E partindo do pressuposto ínsito na previsãodaquele regime legal de participação de funcioná-rios no produto das coimas, de que sem o incen-tivo que aquela participação consubstancia osfuncionários da Administração não cumprirão tãoeficazmente as suas funções (3), ao emitir-se umdiploma que tem como objectivo primordialincrementar a cobrança de receitas fiscais, preve-nir uma possível desmotivação futura dos fun-cionários da Administração que vissem frustradosos seus direitos patrimoniais conexionados comcontra-ordenações que fossem amnistiadas nãodeixaria de ser, naturalmente, uma preocupaçãoa ter em mente.

De qualquer forma, seja ou não esta tão pon-derosa quanto lamentável razão que tenha leva-do à opção legislativa de amnistiar apenas asinfracções previstas no Regime Jurídico das In-fracções Fiscais não Aduaneiras que têm caráctercriminal, o certo é que não há qualquer suportelegal para estender o campo de aplicação da Lei(1) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Ju-

lho de 1987, proferido no recurso n.º 39 119, publicado noBoletim do Ministério da Justiça, n.º 369, pág. 381.

Trata-se de jurisprudência uniforme do Supremo Tribunalde Justiça, como pode ver-se, entre muitos outros, pelosacórdãos n.º 472/96, de 12 de Junho de 1996, publicado naColectânea de Jurisprudência — Acórdãos do SupremoTribunal de Justiça, ano IV, tomo II, pág. 195, e n.º 36/97, de15 de Maio de 1997.

Neste sentido se tem pronunciado também esta Secção doContencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrati-vo, como pode ver-se, entre muitos outros, pelos acórdãos de19 de Junho de 1991, proferido no recurso n.º 13 439, publi-cado em apêndice ao Diário da República, de 30 de Setembrode 1993, pág. 789, de 10 de Novembro de 1999, proferido norecurso n.º 23 675, de 12 de Janeiro de 2000, proferido norecurso n.º 23 621, de 12 de Abril de 2000, proferido no re-curso n.º 24 925, e de 18 de Outubro de 2000, proferido norecurso n.º 25 459.

(2) Este regime de participação no produto das coimas nãofoi revogado pelo Código de Processo Tributário, que até opressupunha no n.º 6 do artigo 25.º, na redacção inicial, quepassou a ser o n.º 7, com implícita reafirmação da sua vigência,como do Decreto-Lei n.º 23/97, de 23 de Janeiro), e continuaem vigor, como se deduz da referência à expressa manutençãoem vigor da totalidade deste artigo 25.º, sem qualquer restri-ção, que é feita no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/99,de 26 de Outubro.

(3) Infelizmente, a lastimável mas forçosa conclusão que setem de retirar do regime de participação dos funcionários noproduto das coimas é a de que, na perspectiva legislativa, semo incentivo da possibilidade de obtenção de proventos pes-soais, aqueles funcionários poderão não cumprir as suas fun-ções com a mesma eficiência.

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153 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

n.º 51-A/96 às infracções de carácter contra--ordenacional.

Termos em que se acorda em conceder provi-mento ao recurso, revogar a sentença recorrida,ordenar que o processo baixe ao Tribunal Tribu-tário de 1.ª Instância a fim de se conhecer doobjecto do recurso judicial interposto da decisão

de aplicação de coima, se a tal não obstar razãodiferente da subjacente à decisão que se revoga.

Sem custas.

Lisboa, 15 de Novembro de 2000.

Jorge Manuel Lopes de Sousa (Relator) —Ernâni Figueiredo — Almeida Lopes.

O interesse maior do acórdão — que segue jurisprudência pacífica sobre a interpretação das leisde amnistia — reside na interpretação da intenção legislativa de, na lei que amnistia crimes, nãoamnistiar contra-ordenações.

(A. M. S.)

Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares — Fraccio-namento de rendimentos — Sociedade conjugal — Liquidaçãode sociedade irregular — Dupla tributação

I — O artigo 65.º do CIRS é aplicável aos casos de fraccionamento de rendimentosque são situações em que determinados rendimentos sujeitos a tributação em IRS devemser repartidos por mais do que um período, dentro do ano a que se reportam.

II — Nas situações em que se constituir ou terminar uma sociedade conjugal, podehaver necessidade de fazer mais do que um englobamento de rendimentos, relativos a ummesmo ano, como se prevê nos artigos 60.º e 61.º do CIRS, sendo para solucionar asquestões que podem suscitar-se quando determinados rendimentos devam repartir-sepor mais de um período, dentro do mesmo ano, que no artigo 65.º se prevêem váriasregras.

III — Da remissão feita no n.º 2 do artigo 65.º do CIRS para o n.º 1 do artigo 63.º domesmo Código conclui-se que o âmbito de aplicação daquela primeira norma se res-tringe aos casos em que o óbito do cônjuge ocorreu no decurso do ano a que se reportamos rendimentos sujeitos a tributação.

IV — Não existe a dupla tributação que se pretende afastar no n.º 2 do artigo 65.ºdo CIRS, nas circunstâncias aí indicadas, se foi objecto de tributação em impostosucessório o valor de uma participação no capital social de uma sociedade irregular eforam objecto de tributação em IRS os rendimentos legalmente considerados como sendode aplicação de capitais, que consistem no valor atribuído aos associados da mesmasociedade em resultado da partilha efectuada na sua liquidação — artigo 6.º, n.º 1,alínea i), do CIRS.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 25 496(Secção do Contencioso Tributário)

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154 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

ACORDAM na Secção do Contencioso Tri-butário do Supremo Tribunal Admi-nistrativo:

1. Maria Amélia, Gil Romero, Madalena Ma-ria Paramés Gil e Ana Maria Paramés Gil, resi-dentes em Lisboa, impugnaram judicialmente umacto de retenção de IRS de 1993.

O Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lis-boa julgou a impugnação improcedente.

Inconformadas as recorrentes interpuseramrecurso para o Tribunal Central Administrativo,que veio a rejeitar a impugnação por ilegalidadeda sua interposição.

As recorrentes recorreram para o SupremoTribunal Administrativo que, por acórdão de 8de Julho de 1999, decidiu que o acto impug-nadoé susceptível de impugnação contenciosa.

Baixando o processo ao Tribunal Central Ad-ministrativo, foi proferido o acórdão recor-rido,que negou provimento ao recurso in-terposto da sentença do Tribunal Tributário de1.ª Instância.

As recorrentes interpuseram novo recursodeste acórdão, apresentando alegações com asseguintes conclusões:

1 — Com o falecimento em 1978 de FelicianoParamés Dominguez, sócio da sociedade irregu-lar — Feliciano Paramés Dominguez e AntónioSarrico dos Santos — transmitiu-se para os seusherdeiros — os recorrentes — a sua quota nestasociedade cujo património líquido era constituí-do pelas fracções imobiliárias autónomas A, B,D, E, I, J, L e N do prédio urbano identificadonos autos — quota que para efeitos de impostosucessório devido por essa transmissão, foi com-putada pela entidade competente — a Reparti-ção de Finanças respectiva — na importância de10 543 962$00, que para o efeito teve em contao valor matricial das referidas acções.

2 — O valor deste mesmo património líqui-do, na parte correspondente à dita quota trans-mitida foi computado em 24 297 127$00, combase no preço das vendas das referidas fracçõesimobiliárias entretanto efectuadas, algumas de-las pelas recorrentes e outras pela liquidação ju-dicial, no processo judicial de liquidação e partilhada referida sociedade ocorrida em 1992.

Foi este valor assim apurado, que, como oprobatório o reconhece [v. n.º 2, alínea c)] é umvalor líquido nomeadamente das entradas (inves-timentos) do sócio falecido para a sociedade, quefoi atribuído na partilha às recorrentes, enquantoherdeiros do referido Feliciano, e subsequente-mente tributado em IRS através da retenção nafonte aqui impugnada.

3 — Há, como se vê, nestes dois momentosde tributação, em imposto sucessório e em IRSuma realidade económica subjacente — que lhesé comum e causante dessa mesma tributação —a quota do falecido Feliciano na dita sociedade— que se transmitiu por virtude da sua mortepara os seus herdeiros — as recorrentes, origi-nando uma liquidação de imposto sucessório napessoa destas, e que 15 anos depois, foi atri-buída em partilha judicial da mesma sociedade,originando uma liquidação de IRS por retençãona fonte.

4 — Em qualquer dos casos, a tributação teveem conta na sua incidência o valor dessa quota,conforme antes referido, nomeadamente sob on.º 5.1, alínea e), calculado apenas por critériospróprios e específicos do regime jurídico de cadaum destes impostos e tidas em conta também asvariações quantitativas decorrentes das épocasdiferenciadas em que ocorreram os respectivosfactos tributários; em qualquer dos casos tribu-tou-se o valor dos bens transmitidos.

5 — O bem partilhado judicialmente foi omesmo que constituiu objecto da transmissãopor morte do sócio Feliciano. O valor atribuídoaos beneficiários dessa partilha, gerado por essebem, participa da natureza e entidade deste mes-mo bem. Embora considerado legalmente, o va-lor partilhado e atribuído, como rendimento decapitais, nem por isso está sujeito a IRS porforça do disposto no artigo 65.º, n.º 2, do CIRS, jáque, antes da ocorrência do facto tributário desteimposto foi objecto de transmissão por morte.

6 — Nestes termos afigura-se claro, tendo emconta o antes referido e nomeadamente nos arti-gos 3.1 a 6.1, que se verificam no caso as con-dicionantes previstas no artigo 65.º, n.º 2, do CIRS,que excluem da incidência do IRS os valores atri-buídos às recorrentes na liquidação e partilha dadita sociedade.

7 — A manter-se a retenção de imposto im-pugnada haveria claramente uma dupla tributa-

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155 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

ção (em IRS e em imposto sucessório) da mesmariqueza, apenas diferente e simplesmente em ter-mos nominais que não reais, quanto aos valoresque exprimem essa riqueza nas diferentes épo-cas — anos de 1978 e 1992 — em que a sua valo-ração para efeito dos ditos impostos foi feita.

8 — O douto acórdão recorrido, com o devidorespeito, terá feito um enquadramento juridica-mente errado da situação que vem provada, vio-lando com isso nomeadamente os artigos 67.º,n.os 1 e 2, alínea a), do CIRC e 65.º, n.º 2, doCIRS.

Termina pedindo a revogação do acórdão re-corrido, com anulação e devolução do impostoretido e pago.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiudouto parecer no sentido do não provimento dorecurso.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2. O Tribunal Central Administrativo fixou aseguinte matéria de facto:

a) O IRS, cuja retenção é aqui impugnada, nomontante de 3 644 119$00, foi calculado sobre ovalor líquido de 24 294 127$00, correspondenteao rendimento atribuído às aqui recorrentes, naliquidação e partilha judicial do património, dasociedade irregular — Herdeiros de FelicianoParamés Dominguez e António Sarrico dos San-tos, homologada por decisão judicial de 28 deAbril de 1992, transitada em julgado (documen-tos de fls. 13 e 27).

b) Aquele valor de 24 294 127$00 foi atri-buído às recorrentes, como herdeiras de FelicianoParamés Dominguez, falecido em 5 de Novem-bro de 1978 (documentos de fls. 13 a 27);

c) E foi calculado de acordo com o preceitua-do no artigo 67.º, n.º 1, do CIRC, tendo em contaos seguintes factores:

Valor da quota de Feliciano Paramés Domin-guez 12 124 916$00;

Valor da quota de António Sarrico dos Santos3 081 881$00;

Valor das despesas efectuadas no investi-mento 3 823 850$00;

Total dos investimentos 19 030 648$00;Produto da venda das fracções habitacionais

13 500 000$00;Produto da venda das fracções não habitacio-

nais 36 000 000$00Total do produto das vendas 49 500 000$00;Total do investimento 19 030 648$00;Total do passivo de IRS 30 469 351$00;79,733% de 30 469 351$00 = 24 294 127$00;24 294 127$00 x 15% = 3 644 119$00 (cfr.

documento de fls. 24);

d) A entrega do IRS ao Estado ocorreu em 16de Julho de 1993, através da guia n.º 70317779344,apresentada na Tesouraria da Fazenda Públicada Repartição de Finanças do 16.º Bairro Fiscalde Lisboa, na importância global de 4 570 403$00,da responsabilidade das impugnantes e 926 884$00da responsabilidade de outro sócio da mesmasociedade — António Sarrico dos Santos (do-cumentos de fls. 13 a 26 e guia a fls. 27);

e) Por sentença do 12.º Juízo do Tribunal Cívelda Comarca de Lisboa de 27 de Maio de 1983,confirmada em acórdão Supremo Tribunal de Jus-tiça de 8 de Maio de 1986, foi reconhecida aconstituição de uma sociedade irregular entreFeliciano Paramés Dominguez e António Sarricodos Santos, para a edificação de um prédio ur-bano sito na Rua da Arrábida, 2 a 2-C, torneandopara a Rua de D. Dinis, 24 e 24-A, inscrito namatriz da freguesia de Santa Isabel sob o artigo849, sociedade que a dita sentença declarou nulapor irregularidades na sua constituição (fls.29a 40);

f) Em 4 de Dezembro de 1978, por óbito deFeliciano Paramés, ocorrido em 5 de Novembrode 1978, foi instaurado na Repartição de Finan-ças do 16.º Bairro Fiscal de Lisboa o respectivoimposto sucessório n.º 997, onde, além de ou-tros bens constantes da relação de bens apresen-tada em 24 de Março de 1979, constam tambémsob as verbas 14 a 21 as fracções autónomasdesignadas pelas letras A, B, D, E, I, J, L e N, doprédio referido na alínea e) supra (certidão defls. 42 v.º);

g) O valor que serviu de base à liquidação,relativamente às fracções autónomas referidas naalínea f) antecedente, foi o valor matricial dasreferidas fracções de 13 224 000$00 (cfr. notaexplicativa de fls. 53);

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156 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

h) Liquidado o imposto sucessório respec-tivo, vieram os herdeiros, posteriormente, reque-rer a rectificação da liquidação, alegando terempago imposto sobre a totalidade do prédioquando este era também propriedade de AntónioSarrico dos Santos, na proporção dos valoresque judicialmente foram atribuídos (informaçãooficial de fls. 53 e documentos de fls. 43 a 50);

i) Perante o requerido e face à certidão da sen-tença homologatória do 12.º Juízo Cível de Lis-boa, referida na alínea a) supra, onde se fixava ovalor da quota do autor da herança na referidasociedade irregular em 12 124 916$90, procedeua Repartição de Finanças à liquidação rectificativado imposto sucessório, tendo apurado o valormatricial de 10 543 962$00, proporcional às en-tradas do autor da herança na sociedade irregular,o qual considerou na liquidação (certidão defls. 42 v.º nota explicativa de Os. 53 e informaçãooficial de fls. 54);

j) À data da liquidação e partilha da sociedadeirregular o património social existente era consti-tuído apenas por 3 fracções autónomas do pré-dio urbano sito na Rua da Arrábida, 2 a 2-C,torneando para a Rua de D. Dinis, 24 e 24-A,inscrito na matriz da freguesia de Santa Isabelsob o artigo 849, fracções designadas pelas letrasA, B e D (relatório dos liquidatários na acçãoespecial de liquidação do património da socie-dade irregular, a fls. 13 a 24);

l) O prédio referido na alínea antecedente écomposto por 16 fracções autónomas e, comexcepção das fracções A, B e D, todas as outrasestavam vendidas à data em que a liquidação epartilha da sociedade foi entregue aos liquidatá-rios (relatório citado a fls. 13 a 24);

m) As 13 fracções que foram vendidas, fo-ram-no pelos herdeiros do Feliciano Paramés Do-minguez, pela quantia de 13 500 000$00 (relatóriocitado, a fls. 13 a 24);

n) As restantes 3 fracções acabaram por servendidas pelos liquidatários nomeados judicial-mente, pelo preço de 36 000 000$00 (relatóriocitado a fls. 13 a 24);

o) A quantia de 13 500 000$00 da venda das13 fracções referidas foi, pelos liquidatários, con-siderada no englobamento da quantia total, a dis-tribuir proporcionalmente pelos dois sócios dasociedade irregular [cfr. alínea c) supra].

3. A questão que é objecto do recurso recon-duz-se a saber se o preceituado no n.º 2 do artigo65.º do CIRS, em que se estabelece o afasta-mento da tributação em sede de IRS dos rendi-mentos de capitais quando as importâncias res-pectivas constituírem objecto de transmissão pormorte, é aplicável à situação fáctica descrita.

Nos termos da alínea i) do n.º 1 do artigo 6.ºdo CIRS, na redacção inicial, vigente à data emque foi praticado o acto impugnado, considera--se rendimentos de capitais o valor atribuído aosassociados em resultado da partilha que, nos ter-mos do artigo 67.º do CIRC, seja consideradorendimento de aplicação de capitais.

Este artigo 67.º do CIRC estabelece que é en-globado para efeitos de tributação dos sócios, noexercício em que for posto à sua disposição, ovalor que for atribuído a cada um deles em resul-tado da partilha, abatido do preço de aquisiçãodas correspondentes partes sociais e que essadiferença, quando positiva, é considerada comorendimento de aplicação de capitais até ao limiteda diferença entre o valor que for atribuído e oque, face à contabilidade da sociedade liquidada,corresponda a entradas efectivamente verificadaspara realização do capital [n.os 1 e 2, alínea a),deste artigo].

O artigo 65.º do CIRS, cuja interpretação estáem causa, tem a seguinte redacção, dada peloDecreto-Lei n.º 267/91, de 6 de Agosto:

«Artigo 65.º

Fraccionamento de rendimentos

1— Sempre que, para efeitos de englobamento,os rendimentos devam repartir-se por mais deum período, observar-se-á o seguinte:

a) Os rendimentos das categorias A, B, F eH são considerados como respeitando aoperíodo em que foram recebidos ou pos-tos à disposição dos seus titulares;

b) Os rendimentos da categoria E são consi-derados como respeitando ao período emque ocorreu o facto constitutivo da obriga-ção de imposto nos termos do artigo 8.º;

c) Os rendimentos da categoria G são consi-derados como respeitando ao período emque tenha ocorrido a realização;

d) Os rendimentos das categorias C e D sãoconsiderados como respeitando ao ano

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157 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

completo, determinando-se a parte rela-tiva a cada período pela divisão propor-cional ao número de dias que nele secontém, sem prejuízo do disposto na alí-nea seguinte;

e) Se as actividades comerciais, industriaisou agrícolas se iniciarem ou tiverem ces-sado no decurso do ano, os rendimentosrespectivos são considerados como res-peitando ao período em que aquelas foramexercidas, determinando-se, pela formaprevista na alínea anterior, a parte rela-tiva a cada período de fraccionamento.

2 — As importâncias referidas nas alíneas a)e b) do número anterior, quando o facto cons-titutivo da obrigação de imposto não se tenhaverificado até à data em que tiver ocorrido o factoprevisto no n.º 1 do artigo 63.º, não serão consi-deradas para efeitos de IRS na medida em queconstituírem objecto de transmissão por morte.»

Este artigo, como se revela, desde logo, pelarespectiva epígrafe, reporta-se aos casos de «frac-cionamento de rendimentos» que, como resultado corpo do seu n.º 1, são situações em que de-terminados rendimentos devem ser repartidos pormais do que um período.

O IRS é um imposto que incide sobre o valoranual da soma dos rendimentos das várias cate-gorias, auferidos em cada ano, depois de feitas asdeduções e abatimentos que deverem ser feitos(artigos l.º, n.º 1, e 21.º, n.º 1, do CIRS).

No entanto, apesar de, em regra, a matériacolectável sobre que incide o imposto se repor-tar à totalidade de cada ano, nas situações em quese constituir ou terminar uma sociedade conju-gal, pode haver necessidade de fazer mais do queum englobamento de rendimentos, relativos a ummesmo ano, como se prevê nos artigos 60.º e 61.ºdo CIRS.

É para solucionar as questões que podem sus-citar-se quando determinados rendimentos de-vam repartir-se por mais de um período, dentrodo mesmo ano, que no transcrito artigo 65.º seprevêem várias regras.

Para estes fins, estabelece-se neste artigo, naparte que aqui interessa, que «os rendimentos dacategoria E são considerados como respeitandoao período em que ocorreu o facto constitutivoda obrigação de imposto nos termos do artigo 8.º

[alínea b) do n.º 1] e que estas importâncias,«quando o facto constitutivo da obrigação deimposto não se tenha verificado até à data emque tiver ocorrido o facto previsto no n.º 1 doartigo 63.º, não serão consideradas para efeitosde IRS na medida em que constituírem objectode transmissão por morte» (n.º 2).

Neste n.º 1 do artigo 63.º do CIRS estabelece--se que «se durante o ano a que o imposto res-peite tiver falecido um dos cônjuges, são englo-bados em nome dos dois os rendimentos corres-pondentes ao período decorrido desde 1 de Ja-neiro até à data do óbito, devendo englobar-seem nome do cônjuge sobrevivo os seus rendi-mentos e os dos dependentes a seu cargo relati-vos ao período decorrido do dia imediato ao doóbito até ao fim do ano».

Assim, «o facto previsto no n.º 1 do artigo63.º», a que se refere este n.º 2 do artigo 65.º, é oóbito do cônjuge durante o ano a que respeite oimposto.

No referido n.º 2 do artigo 65.º prevêem-seexcepções às hipóteses que constam das alí-neas a) e b) do n.º 1 do mesmo artigo e, por isso,os casos a que se aplica o n.º 2 terão de ser casosque seriam abstractamente enquadráveis naque-las alíneas, isto é, situações em que deveria ocor-rer um englobamento de rendimentos que deve-riam repartir-se por mais de um período.

Do conjunto destas disposições resulta, as-sim, o seguinte:

— O n.º 2 do artigo 65.º do CIRS apenas éaplicável a situações em que haja necessidade derepartir rendimentos relativos a um mesmo anopor mais do que um período;

— O mesmo n.º 2 apenas de aplica aos casosem que ocorra a morte de um dos cônjuges noano a que se reportam os rendimentos (facto pre-visto no n.º 1 do artigo 63.º).

No caso dos autos, das três impugnantes,apenas a primeira era cônjuge do falecido FelicianoParamés Dominguez e, por isso, só em relação aela se poderia colocar a possibilidade de aplica-ção do referido n.º 2 do artigo 65.º

Mas, por outro lado, tendo este falecido em1978 e não no ano de 1993, a que se reportam osrendimentos (momento em que são colocados àdisposição dos titulares — artigo 8.º, n.º 1, doCIRS) e o imposto retido, não se está perante

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158 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

uma situação em que deva ocorrer o fracciona-mento de rendimentos — e, por isso, está-sefora do âmbito de aplicação daquele artigo 65.º

Consequentemente, não pode o n.º 2 desteartigo 65.º servir de suporte ao afastamento datributação em IRS, improcedendo a pretensão deanulação com fundamento na matéria a que sereportam as 6 primeiras conclusões das alega-ções de recurso.

4. Afirmam ainda as recorrentes que a man-ter-se a liquidação impugnada haveria uma duplatributação (conclusão 7.ª).

A dupla tributação dos mesmos rendimentos,por tributos distintos, não é genericamente proi-bida por lei, pelo que a sua eventual existêncianão seria, só por si, uma razão para concluir pelailegalidade do acto impugnado.

No entanto, o n.º 2 do artigo 65.º do CIRSacaba por ter esse alcance, ao afastar da tributa-ção em IRS importâncias que tenham sido ob-jecto de transmissão, que constitui facto tributáriopotencialmente gerador de tributação em sede deimposto sucessório (1).

Mas, como se demonstra no acórdão recorri-do, não existe essa dupla tributação.

Na verdade, como se conclui da alínea c) doprobatório, a retenção de IRS impugnada incidiusobre o valor de 24 294 127$00, que correspondea 79,733% (proporção da quota do FelicianoParamés Dominguez na sociedade irregular) dorendimento de capital decorrente da liquidaçãoe partilha da sociedade irregular em causa, cal-culado nos termos do artigo 67.º, n.º 1, doCIRC, isto é, sobre o valor correspondente àdiferença entre o valor total dos investimentosefectuados na dita sociedade irregular pelossócios (19 030 648$00, no qual se incluem osvalores, à data da liquidação e partilha, das quo-tas, que era de 12 124 916$00, quanto ao Feli-ciano Paramés Dominguez, e de 3 081 881$00,

quanto ao António Sarrico dos Santos) e o valorde 49 500 000$00, que é o total das vendas dasfracções que constituíram o património dareferida sociedade irregular: 49 500 000$00 –– 19 030 648$00 = 30 469 648$00 x 79,733% == 24 294 127$00.

Por seu lado, como se constata pela alínea i)da matéria de facto fixada, a tributação em sisaincidiu apenas sobre o valor da quota social da-quele Feliciano, correspondente ao valor matricialdas fracções do prédio referido nos autos, isto é,sobre o valor de 12 124 916$00 que acima sereferiu como tendo sido abatido ao valor das ven-das, para efeitos de determinação da matériacolectável de IRS.

Como bem se refere no acórdão recorrido, «ofacto de em ambas as liquidações os valores sereferirem aos mesmos bens é irrelevante para ocaso, pois em sede de IRS o valor sujeito a im-posto é, como vimos, o rendimento gerado pelaaplicação de capitais, obtido pela dedução docapital investido, quota incluída, ao produto davenda do património social, enquanto no caso doimposto sucessório o valor sujeito a imposto éo valor patrimonial dessa quota, à data da suatransmissão, correspondente, no caso, ao valormatricial dos bens que a integravam, na propor-ção da percentagem do sócio falecido no capitalsocial».

Por outro lado, os valores que serviram debase à tributação em IRS não foram objecto detransmissão por morte, pelo que também poresta via se conclui pelo não enquadramento dasituação na hipótese do n.º 2 do artigo 65.º doCIRS.

Termos em que, com esta fundamentação, seacorda em negar provimento ao recurso e em con-firmar a decisão recorrida.

Custas pelas recorrentes, com 50% de pro-curadoria.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

Jorge de Sousa (Relator) — Ernâni Figuei-redo — Almeida Lopes.

(1) O afastamento da tributação em IRS não ocorre apenasnos casos em que tiver sido liquidado imposto sucessório,mas sim em todos em que as importâncias tenham constituídoobjecto de transmissão, o que nem sempre leva a tributação emimposto sucessório.

Não foi localizada jurisprudência que trata a questão do fraccionamento de rendimentos sujeitosa IRS quando ocorre a factualidade considerada.

(A. M. S.)

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159 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

Recurso jurisdicional — Âmbito do recurso — Nulidades desentença ou acórdão — Omissão de pronúncia — Falta defundamentação — Competência do tribunal tributário —Questão incidental de natureza cível — Poderes de cogniçãodo Supremo Tribunal Administrativo — Direito de audição noprocedimento tributário — Princípio do inquisitório

I — Quando o Tribunal consciente e explicitamente deixa de conhecer de qualquerquestão, por entender que não o deve fazer, poderá haver erro de julgamento mas nãonulidade por omissão de pronúncia.

II — Se o conhecimento do objecto de um processo da competência dos tribunaisadministrativos ou fiscais depende da decisão de uma questão da competência de outrostribunais, a lei não impõe que seja suspensa a instância até que essa decisão seja profe-rida, permitindo que os tribunais tributários conheçam da questão com efeitos limitadosao processo respectivo.

III — Como decorre do preceituado na parte final do n.º 1 do artigo 127.º doCódigo de Processo Tributário, é na petição que os impugnantes têm de indicar as razõesde facto e de direito em que fundamentam o pedido, envolvendo alteração da causa depedir a invocação ulterior de novos factos susceptíveis de integrarem vícios do actoimpugnado, que só pode ser aceite dentro do condicionalismo previsto nos artigos 272.º,273.º e 506.º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do preceituado na alí-nea f) do artigo 2.º do Código de Processo Tributário.

IV — Por isso, fora dos casos referidos e questões de conhecimento oficioso, otribunal só pode conhecer de vícios que tenham sido invocados na petição de impugnação.

V — O artigo 40.º do Código de Processo Tributário permite que o juiz realize ouordene todas as diligências que considerar úteis ao apuramento da verdade, não ha-vendo qualquer limitação deste poder pelas diligências probatórias requeridas pelaspartes.

VI — A aplicabilidade a todos os procedimentos administrativos das normas doCódigo do Procedimento Administrativo que concretizam preceitos constitucionais, pre-vista no n.º 5 do artigo 2.º deste Código (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 6/96, de31 de Janeiro) não obsta à aplicação de regimes especiais de direito de audiência,designadamente no procedimento tributário.

VII — Estando a participação dos contribuintes assegurada pelos artigos 53.º,n.º 2, e 112.º do CIRC no procedimento tributário relativo à fixação da matéria colectávelde IRC, não era de aplicar, antes da vigência da lei geral tributária, o regime de direitode audiência antes da decisão final do procedimento, previsto no artigo 100.º do Códigodo Procedimento Administrativo.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 25 214(Secção do Contencioso Tributário)

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160 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

ACORDAM na Secção do Contencioso Tri-butário do Supremo Tribunal Admi-nistrativo:

1. Construções Campinense, L.da, com sedeem Caranguejeira, impugnou judicialmente aliquidação de IRC relativa ao ano de 1992.

O Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Leiriajulgou a impugnação improcedente.

Inconformada, a impugnante interpôs recursopara o Tribunal Central Administrativo, que ne-gou provimento ao recurso.

Novamente inconformada, a impugnante in-terpôs o presente recurso para este SupremoTribunal Administrativo, apresentando alegaçõescom as seguintes conclusões:

1) A alegante deduziu, nos termos dos artigos111.º do CIRC e 120.º e seguintes do Códigode Processo Tributário, impugnação judicial daliquidação n.º 8310007407 do IRC referente aoano de 1992;

2) A impugnante discordou da sentença pro-ferida em 1.ª instância, interpôs recurso para oTribunal Central Administrativo, onde foi pro-ferido o acórdão, em que foi decidido negar pro-vimento ao recurso;

3) Os M.mos Juízes do Tribunal recorrido, naóptica da alegante, não apreciaram todas as ques-tões postas em crise pela impugnante, e aquelasque apreciaram fizeram-no, na nossa modesta opi-nião, de forma pouco fundamentada, e apenasconclusiva, sem conseguir dar respostas atravésde factos e de fundamentos de direito, o que porsi só conduz ao vício da nulidade do acórdãorecorrido;

4) Os M.mos Juízes a quo, no acórdão recor-rido, não apreciaram as seguintes questões:

— Relativamente às facturas relacionadas noanexo 1 do presente auto de notícia, sobre asquais existem fortes indícios de se tratar de ope-rações simuladas, a firma contabilizou custos nototal de 2 088 000$00, discriminadas pelos se-guintes exercícios:

Lucro tributável declarado 2 491 560$00;Correcções 2 088 000$00;Lucro tributável corrigido 4 579 560$00;

— Pelos factos descritos infringiu o artigo23.º do Código do Imposto sobre o Rendimentodas Pessoas Colectivas;

— Infracções estas punidas pelos artigos 23.ºe 24.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscaisnão Aduaneiras ...;

— Para melhor determinação da responsabili-dade e graduação da multa coima, de acordo como artigo 185.º, n.º 2, alínea e), do Código de Pro-cesso Tributário ...;

— Tanto assim é que a fundamentação de di-reito que apresentam é insuficiente, e quanto àfundamentação de facto nem sequer lhe fazemqualquer referência;

— Ora, na fundamentação de direito apresen-tada pelos serviços fiscais, na parte reservada à«fundamentação» a fls. 5 do documento n.º 2 jájunto apenas se faz referência ao artigo 23.º doCódigo do Imposto sobre o Rendimento das Pes-soas Colectivas e artigos 23.º e 24.º do RegimeJurídico das Infracções Fiscais não Aduanei- ras...;

— Em qualquer alínea ou número dos artigosreferidos pelo Sr. Perito (?) Tributário — JoséAzevedo Carvalho Faria — não tem aplicação aocaso da impugnante;

— Na verdade, a impugnante não praticouqualquer facto imputável que se possa enqua-drar com tendo violado o artigo 23.º do Códigodo IRC;

— Nem se compreende o porquê da atitudedos serviços fiscais;

— Nomeadamente, o de não esclarecerem con-venientemente a impugnante dos motivos de talatitude — apreensão da factura e recibo, e de nãoentregarem as peças processuais requeridas.

E, por outro lado, dúvidas não existem de quenão tem aplicação ao caso da impugnante o dis-posto nos artigos 23.º e 24.º do Regime Jurídicodas Infracções Fiscais não Aduaneiras.

— Isto porque o gerente da impugnante nãoocultou ou alterou factos ou valores que devamconstar das declarações que, para efeitos fiscais,apresente ou preste a fim de que a administraçãofiscal, especificamente, determine, avalie ou con-trole a matéria colectável.

— Por outro lado, o gerente da impugnantenão celebrou qualquer negócio jurídico simulado,quer quanto à natureza quer por interposição,omissão ou substituição de pessoas.

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161 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

— De modo que não têm aplicação ao caso daimpugnante os artigos 23.º e 24.º do Regime Jurí-dico das Infracções Fiscais não Aduaneiras.

— O gerente da impugnante não concordoucom a acusação deduzida pelo Ministério Pú-blico, e dentro do prazo legal em que lhe foi comu-nicada a acusação requereu a abertura da instru-ção, para contrariar a acusação deduzida peloMinistério Público, no inquérito n.º 44182194da 2.ª Secção.

— Aliás, conforme se alega no requerimentode abertura de instrução, este processo pareceque começou muito mal, para a impugnante, epara os serviços fiscais.

— A impugnante, no requerimento de abertu-ra da instrução que apresentou no já indicadoinquérito, levantou a seguinte questão, que paraesta impugnação é pertinente:

«E nos termos do artigo 50.º do Decreto-Lein.º 20-A/90, de 15 de Janeiro:.......................................................................3 — Se estiver a correr processo de im-

pugnação judicial ou tiver lugar oposição deexecutado, nos termos do ..., o processo penalsuspende-se até que transitem em julgado as res-pectivas sentenças.4 — ..............................................................»

Por outro lado, dispõe o artigo 51.º do mesmodecreto-lei.«A sentença proferida em processo de impug-

nação judicial e a que tenha decidido da oposiçãode executado ..., uma vez transitada, constituemcaso julgado para o processo penal fiscal ...»Ora, obtendo o arguido provimento nos re-

cursos que irei atempadamente interpor no Tri-bunal Tributário de 1.ª Instância, visto que con-forme já se disse ainda está em tempo, e muitoem tempo.Aliás, na notificação que foi efectuada ao ar-

guido pela GNR consta como denunciante aDirecção de Finanças de Leiria.Daí ter cabimento aquilo que se acabou de

dizer.— Aquilo que é apresentado pelo Sr. Perito

(?) Tributário — José Azevedo Carvalho Faria —não tem suporte legal.— Visto que à impugnante não lhe são forne-

cidos todos os elementos necessários e suficien-

tes para apresentar a impugnação, e não é mo-tivo justificado aquele apresentado.

— Assim, os serviços fiscais mais não fize-ram até à data do que «tropear» a justiça.

— Certamente os serviços fiscais, com a pressade apresentarem serviço, esqueceram-se do quedispõem as normas já referidas — artigos 50.ºe 51.º do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Ja-neiro.

— E os serviços prestados pela firma emi-tente da factura apreendida foram-no em obrasque a impugnante levou a efeito, sendo esse ser-viço inclusivamente enquadrado no seu objectosocial.

— Os serviços fiscais não têm legitimidade esuporte legal para se deslocarem à sede da im-pugnante e apreenderem documentos, sem queresulte prova cabal de indícios de ilegalidade, eum despacho proferido pelo juiz competente quepermita tal apreensão.

— As apreensões de documentos só são le-gais quando procedidas de um despacho emi-tido por um juiz do tribunal competente queconcorde com tal apreensão, depois de ser pro-posto tal apreensão pelo Ministério Público.

Isto é, não pode o Ministério Público juntodo Tribunal de Leiria, ordenar a apreensão dedocumentos sem que previamente haja um des-pacho emitido por um juiz do tribunal compe-tente que aprove a proposta do Ministério Pú-blico.

— Assim, a apreensão dos documentos dacontabilidade da impugnante — factura n.º 55e recibo n.º 061, é ilegal e inconstitucional —«nula».

— Ilegal por violação dos artigos 174.º, 175.º,176.º, 177.º e 178.º do Código de Processo Penal.

— Inconstitucional por violação dos artigos32.º e 34.º da Constituição da República Portu-guesa.

— Pelo que, sendo ilegal a apreensão dos do-cumentos da contabilidade da impugnante, tam-bém é ilegal a nota de liquidação adicional do IRCreferente ao ano de 1992, pelos mesmos motivos.

— Acresce que não existem quaisquer inexac-tidões ou omissões na escrita da impugnante noperíodo de 1992.

— Assim, como também nunca foi notificadopelo Ex.mo Sr. Chefe da Repartição de Finançasde Leiria, ou outro chefe qualquer dos serviços

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162 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

do IRC das rectificações que foram efectuadassem o seu conhecimento e consentimento.

— E a impugnante, bem como o seu gerente,também não praticou qualquer inexactidão ouomissão nas declarações periódicas.

— Bem como também não atrasou a entregado imposto autoliquidado nos cofres do Estado.

— Pelo que a referência que é feita ao ar-tigo 23.º do CIRC não tem aplicação ao caso daimpugnante.

— Tem aqui cabimento aquilo que o gerenteda impugnante alegou nos artigos 23.º a 35.º dorequerimento de abertura da instrução.

5) Embora o M.mo Juiz na 1.ª instância abordea questão da simulação da factura e recibo quedeu causa a esta impugnação, certo é que o meiopróprio para declarar a simulação não é este pro-cesso, mas sim um processo no tribunal compe-tente, nos termos dos artigos 240.º e seguintesdo Código Civil;

6) Não se podia declarar a simulação nesteprocesso sem que a mesma tenha sido arguidapela Fazenda Pública;

7) Para se declarar e reconhecer que a facturaque deu causa a esta impugnação era falsa, dever--se-ia obrigatoriamente ter-se deduzido o inci-dente de falsidade, previsto no Código de Pro-cesso Civil, e, para se poder declarar que o negó-cio era simulado, dever-se-ia ter-se recorrido aodisposto nos artigos 242.º e seguinte do CódigoCivil;

8) Para se decidir que a factura é falsa, comose depreende da análise da sentença e acórdãosrecorridos, não basta a alegação simples, é neces-sário que existam elementos de facto no pro-cesso que de forma inequívoca assim levem a taldecisão;

9) Era sempre necessário que alguma daspartes do processo, neste caso impugnante ouFazenda Pública, tivessem suscitada tal questãoem alegações,

10) Que não foi o caso;11) A sentença e o acórdão recorrido são nu-

los, quando dizem que ouve simulação, pois nãoindicam a forma e modo como decorreu essa si-mulação, nem indicam quem foram os seus inter-venientes, e com que fim o fizeram;

12) A simulação não pode ser conhecida quan-do uma parte diz uma coisa e outra parte dizoutra, como sucede neste caso em concreto;

13) Para se poder declarar uma simulação dealgo — documento, acto, etc. — é necessário queseja proposta uma acção no tribunal competentepara o efeito;

14) O Tribunal de 1.ª Instância Tributário nãotinha competência para apreciar esta questão,uma vez que ela é da competência dos tribunaiscíveis, e não foi alegada pelas partes com interes-se na causa, o que inviabilizava a possibilidadedo Ex.mo Sr. Juiz de 1.ª Instância de conhecerdela, mesmo com os amplos poderes de investi-gação que lhe são dados pela lei;

15) Poder de investigar é uma coisa, e apreciarquestões que não podem ser apreciadas nesteprocesso é outra coisa bem diferente;

16) Pelo facto dos emitentes das facturas ne-garem a prestação de serviços, não pode o tribu-nal decidir apenas pela simulação do negócio,porque estes negaram;

17) Pois qualquer deles (emitentes) está inte-ressado em negar, para não ser condenado a pa-gar os impostos devidos;

18) O acórdão recorrido é nulo neste parte,porque conheceu de matéria que não podia, ou,melhor, aceitou a apreciação da matéria feita pelotribunal de 1.ª instância, como tendo competên-cia para conhecer dela;

19) Neste caso em concreto, tanto o Ex.mo

Sr. Juiz da 1.ª Instância como os Ex.mos Srs. Juízesda 2.ª Instância cometeram uma nulidade — ex-cesso de pronúncia;

20) Não foram apreciadas tanto na sentençarecorrida como no acórdão recorrido as seguintesquestões, nomeadamente:

A apreensão da factura e recibo pelos servi-ços fiscais, sem despacho proferido pelo juizcompetente;

A elaboração deste processo, sem ouvir osgerentes da impugnante;

21) A impugnante tem vários gerentes, con-forme consta da certidão a fls. ..., e não podia oprocesso ser elaborado apenas contra um, ououvido apenas um dos gerentes;

22) A sociedade não se vincula apenas comum gerente;

23) Na sentença recorrida ou no acórdão re-corrido nada se diz sobre estas matérias, o quepor si só leva à sua nulidade, nos termos do ar-tigo 144.º do Código de Processo Tributário,

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163 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

por violação dos artigos 142.º e 143.º do Códigode Processo Tributário;

24) Na pequena parte que o acórdão se pro-nunciou fê-lo, no nosso modesto entender, comerrada interpretação e aplicação das normas queenuncia;

25) A Fazenda Pública não apresentou pro-vas, nem requereu dentro do prazo previsto noartigo 131.º qualquer diligência de prova, con-forme se alegou em recurso para o Tribunal Cen-tral Administrativo;

26) No acórdão recorrido pouco se diz sobreesta matéria, pelo que existe ornissão de pronúncia;

27) A omissão de pronúncia gera a sua nuli-dade;

28) À Fazenda Pública incumbia o ónus daprova, nomeadamente nos termos do artigo 78.ºdo Código de Processo Tributário e artigos doCIRC respectivos;

29) A Fazenda Pública nada provou, pois nemsequer arrolou prova;

30) O M.mo Juiz da 1.ª instância, por muitaboa vontade que tenha, não pode, porque a leinão lhe permite, pois é julgador, e não parte inte-ressada, arranjar prova para poder contrariar aprova apresentada pela impugnante;

31) A Fazenda Pública, para que o Ex.mo

Sr. Juiz da 1.ª Instância pudesse apreciar estaquestão, teria forçosamente na sua contestaçãoindicar meios de prova, e ainda por exemplo pe-dir uma peritagem à escrita dos emitentes da fac-tura, para verificar se a mesma existia conta-bilizada no seu livro de registo, etc.;

32) Nada disso foi feito;33) Daí que se não possa manter a sentença

proferida na l.ª instância, bem como o acórdãorecorrido;

34) A prova que o M.mo Juiz na 1.ª instância,arranjou fora do prazo legal, e que pelos vistosserviu de base às decisões recorridas, não temqualquer credibilidade — são os próprios inte-ressados na forma como se decidiu até ao mo-mento neste processo;

35) As testemunhas arroladas pelo Ex.mo

Sr. Juiz são partes interessadas no logro destaimpugnação, e que pelos vistos, com o seu sim-ples depoimento, conseguiram;

36) Não é ao juiz que incumbe a indicação daprova nas impugnações, como é o caso nesteprocesso, mas somente às partes interessadas;

37) Poder de investigação é uma coisa, poderde indicar prova é outra coisa;

38) A investigação tem de ser feita dentro dosestritos elementos de prova carreados para osautos no tempo preciso e permitido por lei, pe-las partes, sem que se possa em qualquer mo-mento alterar essa prova, ou indicar-se uma outra,sobretudo pelo Ex.mo Sr. Juiz da 1.ª instância,como foi feito;

39) O artigo 133.º do Código de Processo Tri-butário dispõe: «o juiz ordenará as diligências deprodução de prova necessárias, incluindo, se foro caso, a remessa do processo [...]»;

40) Ordenar diligências de produção deprova é uma coisa e indicar prova é outra coisa;

41) O M.mo Juiz da 1.ª instância indicouprova como se fosse parte interessada na deci-são final;

42) Nem sequer, no nosso processo crime vi-gente, o juiz tem possibilidades de substituir-seàs partes, quanto mais no nosso ordenamentojurídico-fiscal;

43) O artigo 40.º do Código de Processo Tri-butário dispõe: «devendo realizar ou ordenartodas as diligências de prova»;

44) Realizar ou ordenar todas as diligênciasde prova não é indicar prova;

45) Mesmo que esse venerando Tribunal co-nheça apenas da matéria de direito, certo é que,neste caso em concreto, poderá sempre apreciaresta questão em apreço, pois trata-se de umainterpretação e aplicação de uma norma legal, eum comportamento a essa norma legal, a estecaso em concreto, por parte do Ex.mo Juiz dotribunal de 1.ª instância e dos Ex.mos Srs. Drs.Juízes ao interpretarem tal norma do modo comoconsta do acórdão recorrido;

46) No acórdão recorrido deliberou-se que nãotem aplicação a este caso em concreto, por setratar de impugnação o disposto nos artigos 100.ºe seguintes do Código do Procedimento Admi-nistrativo;

47) O acórdão recorrido reconhece que: «aotempo dos factos vigorava o Código de ProcessoTributário que previa como garantia dos contri-buintes um ‘direito de audição’ [artigo 19.º, alí-nea c)]»;

48) A administração fiscal violou esta normalegal, dado que não ouviu a impugnante antes deproferir a decisão final;

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164 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

49) Se verificarmos em todo o processo, aadministração fiscal não ouviu a impugnante, nemantes nem durante, apenas tendo emitido a liqui-dação impugnada sem nunca ter comunicado algopreviamente à impugnante;

50) Dúvidas não existem de que o dispostonos artigos 100.º e seguintes do Código do Pro-cedimento Administrativo têm aplicação a estecaso em concreto, visto o disposto na alínea b)do artigo 2.º do Código de Processo Tributário;

51) Dado que esta norma legal processualfiscal dispõe: «são de aplicação supletiva no pro-cesso tributário, de acordo com a natureza docaso omisso:

....................................................................c) As normas de natureza processual dos

códigos fiscais e de outras leis tributárias;d) ................................................................

52) Pelo que foi erradamente, na nossa mo-desta opinião, interpretado o disposto nestasnormas legais, no acórdão recorrido;

53) O disposto na alínea e) do artigo 23.º doCódigo de Processo Tributário não contraria aobrigatoriedade da prévia notificação do contri-buinte de todos os actos nos termos dos artigos100.º e seguintes do Código do ProcedimentoAdministrativo;

54) Tanto assim é que, com a alteração aoCódigo de Processo Tributário pelo Decreto-Lein.º 398/98, de 17 de Dezembro — lei geral tribu-tária — artigo 60.º, bem como com o Decreto-Lein.º 433/99, de 26 de Outubro — Código de Pro-cedimento e de Processo Tributário — artigo 45.º,está expressamente contemplada esta situaçãoda obrigatoriedade da administração fiscal ouvirsempre previamente o contribuinte, antes donotificar de qualquer acto que o possa preju-dicar, permitindo que este se pronuncie ou atéindique meios de prova, etc.;

55) Estando a administração fiscal obrigada ater em conta na decisão final: «[...] obrigatoria-mente em conta na fundamentação da decisão, oselementos novos suscitados na audição dos con-tribuintes, nos ternos do disposto no n.º 6 doartigo 60.º da lei geral tributária;

56) Daí que o acórdão recorrido tenha de serrevogado;

57) O M.mo Juiz na 1.ª instância não funda-mentou de facto e de direito, na sentença recor-

rida, qual o motivo pelo qual não tem aplicaçãoneste caso concreto o disposto nos artigos 100.ºe seguintes do Código do Procedimento Admi-nistrativo;

58) Não tendo esta matéria sido abordada noacórdão recorrido;

59) No acórdão recorrido diz-se: «[...] a prete-rição não implica necessariamente a invalidadedo acto final», o que é uma interpretação defi-ciente sobre o que tem sido a prática seguidapelos nossos tribunais em vários acórdãos;

60) Em vários processos que foram aprecia-dos por esse venerando Tribunal — 1.ª Sec-ção — sempre que se alegou e provou a falta deaudição prévia do contribuinte, nos termos dosartigos 100.º e seguintes do Código do Procedi-mento Administrativo, foi julgado a nulidade res-pectiva, devolvendo-se o processo à entidadeadministrativa para suprir a nulidade;

61) É o que tem de suceder neste processo;62) A impugnação ser julgada procedente, pela

nulidade cometida pela falta da audição prévia daimpugnante, e pelo facto do acórdão recorridoter apreciado esta questão deficientemente;

63) Pelo que também o acórdão recorrido pra-ticou uma nulidade nos termos do artigo 144.º doCódigo de Processo Tributário;

64) O acórdão recorrido viola o disposto nasalíneas b) e c) do artigo 668.º do Código de Pro-cesso Civil, aplicáveis por força do disposto naalínea f) do artigo 2.º do Código de Processo Tri-butário;

65) O acórdão recorrido viola o disposto nos:

Artigos 13.º, 202.º, 204.º e 262.º da Constitui-ção da República Portuguesa;

Artigos 16.º, 17.º, 21.º, 22.º, 120.º, 142.º, 143.ºe 144.º do Código de Processo Tributário;

Artigos 100.º, 124.º e 125.º do Código do Pro-cedimento Administrativo;

Artigos 174.º, 175.º, 176.º, 177.º e 178.º doCódigo de Processo Penal;

Artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15de Janeiro.

Termina pedindo a revogação do acórdãorecorrido.

Não foram apresentadas contra-alegações.

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165 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiudouto parecer no sentido do não provimento dorecurso, pelas seguintes razões, em suma:

— Não existe a nulidade do acórdão recor-rido por omissão de pronúncia, pois nele se to-mou posição sobre as questões invocadas pelorecorrente, entendendo que seria o processo cri-minal o meio processual próprio para as apreciar;

— O acórdão recorrido não enferma de nuli-dade por excesso de pronúncia, pois a recorrentesuscitou a questão da simulação e falsificação dafactura e recibo juntos aos autos;

— Também não corre omissão de pronúnciarelativamente às questões da apreensão da fac-tura e recibo pela administração fiscal sem des-pacho do juiz e da não audição dos gerentes daimpugnante, pois a primeira foi apreciada e,quanto à segunda, o Tribunal não é obrigado aconhecer de todos os argumentos invocados pe-las partes, mas apenas sobre as questões sus-citadas, e a questão foi tratada no ponto 2 dadecisão;

— O tribunal não está proibido de pronun-ciar-se sobre a veracidade da factura e recibo jun-tos aos autos, pois trata-se, de uma questão queimporta para apreciar a validade do acto de liqui-dação;

— No processo tributário vigora o princípiodo inquisitório pleno, pelo que o juiz não estálimitado pela prova apresentada pelas partes.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2. O Tribunal Central Administrativo fixou aseguinte matéria de facto:

2.1 — Encontra-se inscrita na Conservatóriado Registo Comercial de Leiria a sociedade Cons-truções Campinense, L.da, com sede em Cam-pinos, Caranguejeira, Leiria, cujo objecto socialé «construção civil, compra e venda de imóveise revenda dos adquiridos para esse fim» — do-cumento de fls. 35-39, no mais aqui dado porreproduzido, para todos os legais efeitos.

2.2 — Em 28 de Maio de 1993 aquela socie-dade, ora impugnante, apresentou na 1.ª Repar-tição de Finanças de Leiria a declaração modelon.º 22 do IRC, relativa ao exercício de 1992, daqual consta um lucro tributável de 2 491 560$00e a matéria colectável de 169 000$00.

2.3 — Por entender que existiam fortes indí-cios no sentido de que a factura n.º 055, junta afls. 107 dos autos, no montante de 2 088 000$00,que a impugnante contabilizou como custos, setratava de uma operação simulada, a fiscalizaçãolevantou, em 24 de Julho de 1995, o auto denotícia de fls. 25-27, cujo teor aqui se reproduzna íntegra, para todos os legais efeitos.

2.4 — Em 30 de Outubro de 1995 a Ad-ministração emitiu a declaração correctiva defls. 23-24, na qual, por força da introdução decustos não aceites no montante atrás referido de2 088 000$00, o lucro tributável (corrigido) pas-sou a ser de 4 579 560$00.

2.5 — Na sequência do que se vem referindo,a Administração emitiu, em 9 de Fevereiro 1996,a liquidação adicional n.º 8310007407, da qualresultou um total a pagar de 1 051 518$00 (IRCmais juros compensatórios), sendo a data limitede pagamento 6 de Maio de 1996 — liquidaçãode fls. 17 no mais aqui dada por reproduzida,para todos os legais efeitos.

2.6 — A impugnante foi notificada da liquida-ção em 13 de Março de 1996 (fls. 21).

2.7 — A impugnação foi apresentada em 27de Maio de 1996 (cfr. nota de registo de entradade fls. 2 e informação de fls. 41).

2.8 — Dão-se aqui por reproduzidos, paratodos os legais efeitos, a factura atrás referida(com o n.º 055 e junta a fls. 107) e o recibon.º 061, junto a fls. 108 dos autos.

2.9 — Quer a factura quer o recibo a que an-teriormente se fez referência foram disponibi-lizados pelo Carlos Manuel Cardoso Lopes(identificado a fls. 138) ao Vítor Manuel Car-doso Costa (identificado a fls. 138).

2.10 — O Carlos, com o seu punho e letra,apôs a sua assinatura na factura e no recibo, queo Vítor preencheu, com os restantes dizeres quedeles constam.

2.11 — Como contrapartida, e na altura emque procedeu a esse preenchimento, o Vítor re-cebeu de um dos sócios da impugnante, cuja iden-tidade não foi possível apurar, uma quantiamonetária cujo montante se situa entre 7% e 8%do valor do IVA, que consta da referida factura.

2.12 — Por lhe ter disponibilizada a facturae o recibo, o Vítor entregou ao Carlos uma im-portância em dinheiro que não foi possível de-terminar.

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166 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

2.13 — Nem o Carlos nem o Vítor prestaramà impugnante quaisquer serviços, nomeada-mente na área da construção civil, e concreta-mente nenhum deles prestou ou efectuou àimpugnante os serviços mencionados na facturaa que se vem fazendo referência.

3. A recorrente imputa ao acórdão recorridonulidade por omissão de pronúncia relativa-mente a várias questões que arrola no ponto 4das conclusões das suas alegações.

A nulidade de acórdão por omissão de pro-núncia verifica-se quando o Tribunal deixe depronunciar-se sobre questões sobre as quais de-veria pronunciar-se — artigo 668.º, n.º 1, alí-nea d), do Código de Processo Civil, aplicávelpor força do disposto no artigo 716.º do mesmodiploma e artigo 2.º, alínea f), do Código de Pro-cesso Tributário (1).

Na falta de norma neste diploma sobre os de-veres de cognição do Tribunal, há que recorrer ànorma do artigo 660.º, n.º 1, do Código de Pro-cesso Civil, em conformidade com o disposto noreferido artigo 2.º

Nesta disposição impõe-se ao juiz o dever deconhecer de todas as questões que as partes te-nham submetido à sua apreciação, exceptuadasaquelas cuja decisão esteja prejudicada pela so-lução dada a outras.

O Supremo Tribunal Administrativo vem en-tendendo que, quando o Tribunal consciente efundamentadamente não toma conhecimento dequalquer questão, poderá haver erro de julgamento,se for errado o entendimento em que se baseiaesse não conhecimento, mas não nulidade poromissão de pronúncia.

Esta só ocorrerá nos casos em que o Tribunal,pura e simplesmente, não tome posição sobrequalquer questão de que devesse conhecer,inclusivamente não decidindo explicitamente quenão pode dela tomar conhecimento (2).

No caso dos autos, verifica-se que o TribunalCentral Administrativo se pronunciou sobretodas as questões referidas pela recorrente noponto 2, alínea a), referindo-as, globalmente,como «infracções aos artigos 23.º do Código doImposto sobre o Rendimento das Pessoas Co-lectivas, infracções estas punidas pelos artigos23.º e 24.º do Regime Jurídico das Infracções Fis-cais não Aduaneiras [conclusão 7.ª, alíneas a) aee)]» e entendendo que elas não deviam ser co-nhecidas em processo de impugnação judicial masem processo criminal.

Por isso, se este entendimento fosse errado,estar-se-ia perante um erro de julgamento e nãoperante uma nulidade do acórdão.

Por outro lado, nas alegações do recurso parao Tribunal Central Administrativo, que delimita-vam o seu objecto, a recorrente não colocou es-sas questões à consideração directa desse tribunal,antes as arrolou como indicação de questões so-bre as quais o Tribunal Tributário de 1.ª Ins-tância não se pronunciara e a recorrente entendiaocorrer nulidade da sentença por omissão de pro-núncia.

Por isso, o que o Tribunal Central Adminis-trativo tinha de apreciar, sobre tal matéria, nãoera, desde logo, as questões arroladas, mas simpronunciar-se sobre a nulidade arguida.

Ora, também sobre esta questão o TribunalCentral Administrativo se pronunciou, enten-dendo que não existia tal nulidade (fls. 227 a 229).

Por isso, não ocorre nulidade por omissão depronúncia, neste ponto.

4. A recorrente vem arguir também a nulidadepor excesso de pronúncia, consubstanciada em oTribunal Central Administrativo, como o Tribu-nal Tributário de 1.ª Instância, se ter pronun-ciado sobre a existência de simulação (conclu-sões 5.ª a 19.ª).

De harmonia com o preceituado na 2.ª parteda alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código deProcesso Civil, a nulidade por excesso de pro-núncia ocorre quando o Tribunal conheça de ques-tão de que não podia tomar conhecimento, à face

(1) As nulidades de sentença estão previstas no artigo144.º do Código de Processo Tributário, mas não existe qual-quer norma que determine a aplicação desta norma aosacórdãos.

(2) Neste sentido, entre muitos outros, podem ver-se osacórdãos de 24 de Novembro de 1993, proferido no recurson.º 16 535, publicado em Apêndice ao Diário da República,de 18 de Dezembro de 1995, pág. 306, e de 9 de Novembro de

1995, proferido no recurso n.º 13 807, publicado em Apên-dice ao Diário da República, de 14 de Novembro de 1997,pág. 2751.

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167 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

da referida regra do artigo 660.º do mesmo Có-digo.

No caso, a liquidação impugnada teve comopressuposto a existência de indícios de a facturan.º 055 tinha por base a operação simulada(ponto 2.3 da matéria de facto fixada no acórdãorecorrido).

Por outro lado, na petição inicial, a impugnantedefendia que a operação titulada pela referidafactura se realizara (artigos 28.º e 29.º).

Por isso, é manifesto que era pertinente apre-ciar a questão de saber se existia ou não a simula-ção invocada pela administração tributária, quefora colocada pelas partes e, consequentemente,tinha de ser apreciada, à face do preceituado non.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil.

Outra questão, atinente a esta matéria, masque não tem a ver com nulidade por excesso depronúncia, é a de saber se o Tribunal Tributáriode 1.ª Instância e o Tribunal Central Administra-tivo tinham competência para conhecer de talquestão, ou se ela era da competência dos tribu-nais cíveis, como sustenta a recorrente na con-clusão 14.ª das alegações do presente recurso.

Sobre esta matéria, quando o conhecimentodo objecto de um processo da competência dostribunais administrativos ou fiscais depende dadecisão de uma questão da competência de ou-tros tribunais, a lei não impõe que seja suspensaa instância até que essa decisão seja proferida,apenas atribuindo ao tribunal administrativo oufiscal a faculdade de o fazer, como se conclui daexpressão «pode» utilizada no artigo 4.º, n.º 2,do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fis-cais, aplicável por força do preceituado no artigo2.º, alínea b), do Código de Processo Tributário.

Se o tribunal administrativo ou fiscal enten-der não ser caso para suspender a instância, deci-dirá ele mesmo a referida questão, com efeitoslimitados ao processo, à semelhança do que ex-pressamente se prevê, para a situação análoga,quando se decida a suspensão e ocorra inérciados interessados (artigo 7.º da Lei de Processonos Tribunais Administrativo) (3).

No caso, o M.mo Juiz do Tribunal Tributáriode 1.ª Instância não entendeu usar a faculdadereferida, decidindo ele próprio esta questão, etinha competência para a decidir, com a limita-ção referida.

Por isso, não ocorre incompetência nem nuli-dade por excesso de pronúncia.

Por outro lado, é inquestionável que a ques-tão da simulação das operações tituladas pelafactura referida nos autos era objecto do pro-cesso, uma vez que foi a existência de indícios desimulação que levou à prática do acto impugna-do e a própria recorrente se refere a tal questãona petição inicial (artigos 8.º e 19.º).

No acórdão recorrido, reproduzindo a sen-tença do Tribunal Tributário de 1.ª Instância,são indicadas as razões por que levaram à for-mulação do juízo probatório sobre esta matéria(fls. 233 a 235), pelo que não há omissão defundamentação sobre este ponto que impliquenulidade da sentença ou acórdão, pois, como re-sulta do próprio texto da alínea b) do n.º 1 doartigo 668.º do Código de Processo Civil, só existenulidade por falta de fundamentação quando hajaausência de especificação dos fundamentos dadecisão, quando ela está de todo ausente, e nãoquando ela possa ser considerada insuficiente oudeficiente.

No que concerne à questão a que se reportamas conclusões 12.ª, 16.ª e 17.ª, de saber se sedevem ou não considerar provados os factos emque assenta a conclusão da existência de simula-ção, não pode este Supremo Tribunal Adminis-trativo censurar a decisão do Tribunal CentralAdministrativo, pois trata-se de fixação de ma-téria de facto, matéria que está fora dos poderesde cognição deste Supremo Tribunal Adminis-trativo (artigo 21.º, n.º 4, do Estatuto dos Tribu-nais Administrativos e Fiscais).

5. A recorrente imputa ao acórdão recorridooutras nulidades, por omissão de pronúncia, re-lativamente às questões da apreensão da facturaou recibo pelos serviços fiscais, sem despachoproferido pelo juiz competente, a elaboração doprocesso sem ouvir os gerentes da impugnante,ter vários gerentes e o processo ser elaboradoapenas contra um, ou ser ouvido só um e a so-ciedade não se vincular apenas com um gerente(conclusões 20.ª a 23.ª).

(3) Neste sentido, pode ver-se João Caupers e João Ra-poso, Contencioso Administrativo Anotado e Comentado,pág. 100.

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168 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

A recorrente colocara estas questões nas con-clusões 14.ª a 17.ª do recurso interposto para oTribunal Central Administrativo (fls. 210) e oTribunal Central Administrativo faz referência atais conclusões no ponto 2, alínea a), entendendo,relativamente à primeira, que, a existir nulidadeela deveria ser arguida no processo penal.

De qualquer forma, independentemente dalegalidade ou não da apreensão referida à luz dasnormas de processo penal, o certo é que a admi-nistração tributária podia tomar em considera-ção tal documento e proceder à sua cópia paraefeitos de fixação da matéria colectável de IRC,como resulta directamente do preceituado nosn.os 1 e 3 do artigo 108.º do CIRC.

Por isso, não tem qualquer relevo, para efei-tos da legalidade do acto de liquidação impugna-do, a eventual ilegalidade da apreensão paraefeitos de processo penal.

Quanto às questões relacionadas com os ge-rentes, trata-se de matéria que a recorrente nãoalegara na petição inicial.

Como decorre do preceituado na parte finaldo n.º 1 do artigo 127.º do Código de ProcessoTributário, é na petição que os impugnantes têmde indicar as razões de facto e de direito em quefundamentam o pedido.

A invocação ulterior de novos factos que pos-sam fundamentar a impugnação constitui umaalteração da causa de pedir, que só pode seraceite dentro do condicionalismo previsto nosartigos 272.º, 273.º e 506.º do Código de Pro-cesso Civil, aplicáveis por força do preceituadona alínea f) do artigo 2.º do Código de ProcessoTributário, que no caso não ocorre, pois nãohouve qualquer manifestação de concordânciapor parte da Fazenda Pública com uma am-pliação da causa de pedir nem se trata de factosobjectiva ou subjectivamente supervenientes(trata-se de factos anteriores à apresentação dapetição e relativos à estrutura orgânica da pró-pria impugnante e a membros dos seus órgãos).

Por isso, não tendo invocado tais factos napetição da impugnação e não sendo permitida asua invocação posterior, a impugnante perdeu odireito de os invocar como fundamento de anula-ção do acto impugnado, não tendo o TribunalTributário de l.ª Instância ou o Tribunal CentralAdministrativo de os apreciar como fundamentoda impugnação, pois não se está perante ques-

tões suscitadas pela impugnante por forma pro-cessualmente válida e, para além de questões deconhecimento oficioso (o que não é o caso), sósobre aquelas existe o dever e a possibilidade depronúncia (artigo 660.º, n.º 2, do Código de Pro-cesso Civil).

Consequentemente, não havendo dever de pro-núncia, não pode haver omissão de pronúnciapor parte do Tribunal Tributário de 1.ª Instânciaou do Tribunal Central Administrativo sobre asreferidas questões relacionadas com a eventualexistência de vários gerentes e sua participaçãono processo.

6. Quanto à falta de requerimento de diligên-cias de prova pela Fazenda Pública, que a recor-rente refere nas conclusões 24.ª a 27.ª, o Tribu-nal Central Administrativo tomou posição, pelomenos implicitamente, afirmando a não limitaçãodo tribunal pelas provas apresentadas (fls. 236).

Por isso, não há omissão de pronúncia sobreeste ponto.

7. Quanto às questões relacionadas com oónus da prova da Fazenda Pública, necessidadede indicação de prova por ela, impossibilidadede o juiz ordenar a produção de prova não reque-rida (conclusões 28.ª a 45.ª) é correcta a posiçãoassumida no acórdão recorrido.

Com efeito, o artigo 40.º do Código de Pro-cesso Tributário, aplicável nos autos, permiteque o juiz realize ou ordene todas as diligênciasque considerar úteis ao apuramento da verdade.

Não se estabelece aqui qualquer limitação des-tes poderes do juiz pelas diligências probatóriasrequeridas pelas partes e, por isso, não podedeixar de entender-se que todas as diligências quese afigurarem ao juiz como úteis podem ser orde-nadas oficiosamente.

Para realizar ou ordenar tais diligências quereputar como úteis, o juiz não tem de fazer qual-quer «indicação» de prova, pois pode decidi-lassem qualquer acto prévio de indicação.

Por isso, não há qualquer censura a fazer, so-bre este ponto, ao acórdão recorrido.

8. A recorrente sustenta ainda que ocorreu umvício do procedimento que conduziu à prá-ticado acto impugnado, por não ter-lhe sido asse-gurado o «direito de audição», previsto nos arti-

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169 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

gos 100.º e seguintes do Código do Procedimen-to Administrativo, e a ocorrência deste vício terde conduzir à anulação do acto impugnado (con-clusões 46.ª a 63.ª).

O Tribunal Central Administrativo apreciouesta questão, tendo entendido que não se impu-nha a audição da ora recorrente, antes da decisãofinal, por se estar «perante um conflito de inte-resses e as correspondentes posições subjecti-vas» e que, a ser aplicável o disposto no artigo100.º do Código do Procedimento Administra-tivo, ocorreria um vício de forma, por preteriçãode uma formalidade essencial, que se degradariaem não essencial por a recorrente ter impugnadojudicialmente, «pois da preterição da formalida-de não resultou uma lesão efectiva e real dosinteresses ou valores protegidos pelo preceitoviolado» (fls. 239).

Tendo o Tribunal Central Administrativo apre-ciado tal questão, fundamentadamente, não é oacórdão recorrido nulo, como pretende a recor-rente (conclusão 63.ª), podendo apenas ocorrerum erro de julgamento,

É isso que se passará a apreciar.

9. Antes de mais, convém precisar qual ovício procedimental que é de apreciar, pois nãohá sintonia total entre o teor da alegação e con-clusões do presente recurso e o teor da petiçãoinicial.

Com efeito, no presente recurso a recorrentevem afirmar que «se verificarmos em todo o pro-cesso, a administração fiscal não ouviu a impug-nante nem antes nem durante, apenas tendoemitido a liquidação impugnada sem nunca tercomunicado algo previamente à impugnante»(conclusão 49.ª).

No entanto, na petição inicial, o que a recor-rente afirmou, relativamente a tal matéria, nãofoi uma a omissão de qualquer comunicação, massim, mais precisamente, a omissão de cumpri-mento do disposto no artigo 100.º do Código doProcedimento Administrativo, com envio de pro-jecto de decisão.

Na verdade, a recorrente escreveu na petição,sobre este ponto:

«50.º — Sucede, por outro lado, que as enti-dades perito tributário, responsável pelo IRC echefe da 1.ª Repartição de Finanças, antes de

proferirem decisão final, estavam obrigados aouvir a impugnante, nos termos dos artigos 100.ºe seguintes do Código do Procedimento Admi-nistrativo, aplicável por força da alínea b) doartigo 2.º do Código de Processo Tributário.

51.º — Isto é, estas entidades antes de teremdecidido da forma que o fizeram, teriam que terenviado à impugnante o seu ‘projecto’ de deci-são, para esta, querendo, pronunciar-se.

52.º — Certo é que isto não aconteceu, o queconstitui desde logo uma ilegalidade insanável.»

São questões distintas a de saber se não houvequalquer comunicação dirigida pela administra-ção tributária à recorrente, antes do acto de liqui-dação, e a de saber se não foi dado cumprimentoao artigo 100.º do Código do Procedimento Ad-ministrativo, com envio do «projecto» de deci-são. Esta última questão está incluída na primeira,mas esta, a primeira, tem um âmbito claramentemaior.

Como atrás se referiu, a invocação de vícioprocedimental não incluído na petição envolveuma alteração da causa de pedir que só pode seraceite dentro do condicionalismo previsto nosartigos 272.º, 273.º e 506.º do Código de Proces-so Civil, aplicáveis por força do preceituado naalínea f) do artigo 2.º do Código de Processo Tri-butário que, no caso, não ocorre.

Por isso, o vício procedimental imputado napetição, de que se conheceu na 1.ª instância foi oda omissão de cumprimento do artigo 100.º doCódigo do Procedimento Administrativo, comenvio de um «projecto» de decisão, sendo ape-nas relativamente a esse que, neste ponto, aqueleTribunal tinha poderes de cognição, em face dosfactos alegados (artigo 664.º do Código de Pro-cesso Civil).

Foi também apenas esse o vício procedimentalinvocado pela recorrente nas conclusões das ale-gações do recurso interposto para o TribunalCentral Administrativo (conclusões 49.ª a 51.ª),pelo que foi apenas esse que foi apreciado poresse Tribunal.

Assim, destinando-se os recursos jurisdi-cionais a apreciar a correcção das decisões re-corridas — artigo 676.º do Código de ProcessoCivil — e não a produzir jurisprudência sobrematérias não conhecidas pelas instâncias, o queo Supremo Tribunal Administrativo tem de apre-

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170 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

ciar relativamente a esta matéria será se foi cor-recta ou não a decisão da 2.ª instância e não apre-ciar questões não decididas pelo Tribunal CentralAdministrativo.

Aliás, as instâncias, a nível de matéria de fac-to, pronunciaram-se apenas sobre a inexistênciade uma comunicação com envio de projecto dedecisão que a recorrente colocara, não esclare-cendo se houve ou não qualquer outra comunica-ção. Por isso, não poderia este Supremo TribunalAdministrativo, com poderes de cognição limi-tados a matéria de direito (artigo 21.º, n.º 2, doEstatuto dos Tribunais Administrativos e Fis-cais), assentar a sua apreciação do recurso nopressuposto da inexistência de qualquer comu-nicação, que a recorrente invoca no presente re-curso. Por outro lado, não se tratando de factosalegados pela recorrente na petição inicial, nãopoderia ser ordenada a ampliação da matéria defacto, em face da referida limitação, derivada doartigo 664.º do Código de Processo Civil.

Assim, o vício procedimental a apreciar é,precisamente, o que pode derivar da omissão doprevisto no artigo 100.º do Código do Procedi-mento Administrativo, com envio de projecto dedecisão.

10. A Constituição da República Portuguesa,no n.º 4 do artigo 267.º (na redacção de 1989,vigente à data da aprovação do Código de Pro-cesso Tributário, a que corresponde o n.º 5 domesmo artigo na redacção de 1997) exige que oprocessamento da actividade administrativa as-segure a «participação dos cidadãos na formaçãodas decisões e deliberações que lhes disseremrespeito».

Não se concretiza, nesta norma constitucio-nal, a forma como deve ser assegurada tal partici-pação.

O artigo 100.º do Código do ProcedimentoAdministrativo é uma concretização desse direitode participação, estabelecendo que «concluída ainstrução, e salvo o disposto no artigo 103.º, osinteressados têm o direito de ser ouvidos no pro-cedimento antes de ser tomada a decisão final,devendo ser informados, nomeadamente, sobreo sentido provável desta».

No entanto, a Constituição da República Por-tuguesa não exige que o direito de participaçãoque assegura seja concretizado precisamente atra-

vés de uma comunicação prévia do sentido pro-vável da decisão final, sendo a fórmula constitu-cional compatível com outras formas de parti-cipação dos particulares nos procedimentosadministrativos, desde que possibilitem a estesinfluenciar o sentido da decisão final.

O Código de Processo Tributário enunciou naalínea c) do artigo 19.º o direito de audição comouma das garantias dos contribuintes, ao lado dosdireitos de reclamação, impugnação e oposição.

Na concretização destes direitos, efectuadano artigo 23.º, faz-se referência ao direito de au-dição apenas relativamente ao processo contra--ordenacional — alínea e) — concretizando-se aforma do exercício desse direito através de umanotificação para exercício do direito de defesa(artigos 199.º e 200.º do Código de Processo Tri-butário).

No entanto, esta referência expressa ao di-reito de audição para estes processos e não tam-bém para os procedimentos de liquidação dostributos não significa que o Código de ProcessoTributário e as leis tributárias não assegurassem,através de outras vias, o direito de participaçãodos cidadãos na formação das decisões.

Na verdade, nos casos em que o processo deliquidação se inicia com base nas declarações doscontribuintes, o que é regra (artigo 76.º, n.os 1 e 2,do Código de Processo Tributário), essa partici-pação é assegurada imediatamente, não havendonecessidade de qualquer outra intervenção da-queles no procedimento se a liquidação se vier aefectuar com base nos dados que constam dessasdeclarações.

Por outro lado, nos casos em que a adminis-tração tributária faz alterações ao teor das decla-rações, são asseguradas formas de participaçãodos cidadãos no procedimento tributário atravésda notificação das correcções efectuadas, queconferem aos contribuintes a possibilidade derequererem a revisão ou impugnarem adminis-trativamente tais actos, podendo manifestar aías suas posições antes de ser praticado o actofinal do procedimento, que é o que concretiza aliquidação do tributo (artigo 84.º do Código deProcesso Tributário, artigo 67.º do CIRS e arti-gos 53.º, 54.º e 112.º do CIRC, entre outras nor-mas).

No caso dos autos, em que se está peranteuma liquidação adicional de IRC, com prévia cor-

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171 Direito FiscalBMJ 501 (2000)

recção da declaração do contribuinte (pontos 2.2e 2.4 da matéria de facto fixada), a forma previstana lei para o contribuinte exercer o seu direito departicipação na formação do acto final de liqui-dação era a notificação prevista naqueles artigos53.º, n.º 2, e 112.º, n.º 1 , do CIRC, que possibi-litava a interposição de recurso hierárquico comefeito suspensivo da liquidação, quanto à partedo IRC correspondente aos valores contestados(n.os 2 e 3 deste artigo).

Trata-se de forma de participação na forma-ção da decisão final e não de meios de impugnaçãodesta, pois a decisão final do procedimento deliquidação é o acto de liquidação, que só é prati-cado após a decisão administrativa sobre a fixa-ção da matéria tributável.

Esta é uma forma adequada de assegurar aparticipação dos cidadãos no procedimento deliquidação (globalmente considerado), pelo que,para dar satisfação à referida exigência constitu-cional, nenhuma outra forma de participação eranecessário assegurar, designadamente através deuma comunicação prévia de um projecto do actode liquidação (é este o acto que decide o procedi-mento), como a ora recorrente pretende.

Este regime processual, vigente com a entradaem vigor do Código de Processo Tributário, an-tes da publicação do Código do ProcedimentoAdministrativo, não foi alterado com a entradaem vigor deste último Código.

Com efeito, o Código de Processo Tributário,no seu artigo 2.º, em que se indica a legislaçãosubsidiária, não contém qualquer remissão espe-cífica para o Código do Procedimento Adminis-trativo, nem inicialmente (este diploma não existiaainda), nem posteriormente, apesar de o Códigode Processo Tributário ter sofrido várias altera-ções.

Não há também, naquele artigo 2.º do Códigode Processo Tributário, qualquer remissão atra-vés de uma determinada categoria de legislação,não se podendo, designadamente, enquadrar oCódigo do Procedimento Administrativo na alí-nea b) desse artigo 2.º, como defende a recor-rente, pois aí se indicam, como legislação sub-sidiária, as normas sobre organização e processonos tribunais administrativos e fiscais e o Có-digo do Procedimento Administrativo regula aactividade procedimental, que decorre perante aAdministração, e não o processo nos tribunais.

O Código do Procedimento Administrativo, noentanto, a partir da redacção dada pelo Decreto--Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro, contém uma nor-ma, que é o n.º 5 do artigo 2.º, que determina aaplicação das suas normas que concretizam pre-ceitos constitucionais a toda e qualquer actuaçãoda Administração Pública, entendimento este quejá era defensável à face da redacção inicial (4).

Uma dessas normas é artigo 100.º do Códigodo Procedimento Administrativo, pelo que eleterá passado a ser potencialmente aplicável noprocedimento tributário.

No entanto, a jurisprudência uniforme desteSupremo Tribunal Administrativo, concretizadaem vários arestos da Secção do ContenciosoAdministrativo, tem sido no sentido de que assuas normas só são aplicáveis quando não hánormas procedimentais especiais sobre as maté-rias nele reguladas (5).

No específico caso do procedimento tributá-rio e das alterações à matéria colectável, sendoestas alterações decisivas para determinar o sen-tido da liquidação, a comunicação do conteúdodestas, com a subsequente possibilidade deimpugnação administrativa, é, decerto, uma for-ma eficaz de garantir aos interessados a sua par-ticipação na formação do acto final de liquidação,sendo mesmo mais adequada do que a mera pos-sibilidade de audição sobre um projecto de liqui-dação que assentasse numa já definida alteraçãoda matéria colectável, pois a liquidação é umaoperação de carácter exclusivamente jurídico deaplicação de uma taxa à matéria colectável pre-viamente fixada, em cuja conformação é inútil aparticipação do contribuinte.

(4) Neste sentido, pode ver-se Freitas do Amaral, JoãoCaupers, João Martins Claro, João Raposo, Pedro Siza Vieirae Vasco Pereira da Silva, Código do Procedimento Adminis-trativo Anotado, l.ª ed., pág. 30.

(5) Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos daSecção do Contencioso Administrativo, relativos à preva-lência das normas que asseguram o direito de audição do ar-guido em procedimento disciplinar sobre o regime previstono Código do Procedimento Administrativo:

— De 28 de Setembro de 1995, proferido no recurson.º 33 172, publicado em Apêndice ao Diário da República,de 27 de Janeiro de 1998, pág. 7069.

— De 1 de Abril de 1998, proferido no recurso n.º 41 646;— De 17 de Março de 1999, proferido no recurso n.º 41 560;— De 5 de Abril de 2000, proferido no recurso n.º 38 210.

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172 BMJ 501 (2000)Direito Fiscal

Por isso, não seria compreensível que o Có-digo do Procedimento Administrativo, com assuas evidentes preocupações de assegurar no pro-cedimento administrativo a efectivação, dos di-reitos constitucionais dos administrados, fosseoptar por um regime de participação dos interes-sados na formação das decisões que ofereciamenos possibilidades de intervenção.

A contraprova de que o legislador do Códigodo Procedimento Administrativo não pretendeusobrepor as suas normas sobre direito de audiên-cia às normas especiais procedimentais tributá-rias relativas à participação dos contribuintesencontra-se no Decreto-Lei n.º 7/96, de 7 de Fe-vereiro, aprovado pouco tempo depois de tersido aprovado o diploma que veio a ser o De-creto-Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro, que introdu-ziu alterações no Código do Procedimento Admi-nistrativo, designadamente explicitando a apli-cação das suas normas que concretizam precei-tos constitucionais a toda e qualquer actuação daAdministração Pública. Na verdade, naqueleDecreto-Lei n.º 7/96 introduziram-se alteraçõesàs normas do CIRS e do CIRC relativas aosmeios procedimentais de impugnação adminis-trativa das decisões de fixação da matéria tribu-tável, designadamente os artigos 54.º e 112.º doCIRC e 67.º e 68.º do CIRS, o que denota que nãose pretendeu com o Código do Procedimento Ad-ministrativo eliminar a vigência deste regime es-pecial de participação dos contribuintes no pro-cedimento tributário.

Por outro lado, assegurada por esta via a par-ticipação dos interessados no procedimento tri-butário, não se justificaria que, cumulativamente,se assegurasse o direito de audição nos termos

do artigo 100.º do Código do Procedimento Ad-ministrativo, pois não há qualquer instrução pos-terior ao procedimento de revisão da matériacolectável ou ao recurso hierárquico previsto noartigo 112.º do CIRC e, sem a realização de actosde instrução, não se justifica a audição, como seinfere do próprio texto do n.º 1 do artigo 100.º

Assim, é de concluir que, na situação emapreço, não havia lugar à aplicação do artigo 100.ºdo Código do Procedimento Administrativo, peloque a actuação da administração tributária nãoenferma do vício procedimental que lhe imputa arecorrente.

Para além disso, mesmo que houvesse lugar àaplicação deste artigo, não seria necessário o en-vio de qualquer projecto de decisão, como recla-ma a recorrente (artigo 51.º da petição inicial),pois este artigo 100.º não prevê tal envio, pre-vendo apenas, na redacção de 1996, a comunica-ção do sentido provável da decisão. O envio doprojecto de decisão, no procedimento tributário,apenas é exigido pelo artigo 60.º, n.os 1 e 4, da leigeral tributária, mas este diploma, aprovado peloDecreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, nãotem aplicação ao caso dos autos, cujos factosocorreram nos anos de 1995 e 1996.

Termos em que se acorda em negar provi-mento ao recurso.

Custas pela recorrente, com 50% de procura-doria.

Lisboa, 29 de Novembro de 2000.

Jorge de Sousa (Relator) — Ernâni Figuei-redo — Almeida Lopes.

É a primeira vez que esta Secção do Supremo Tribunal Administrativo se pronuncia sobre aforma de exercício do direito de audiência antes da lei geral tributária e a questão das formas especiaisde exercício desse direito previstas nas leis tributárias sobre as normas do Código do ProcedimentoAdministrativo.

Presentemente esse direito está assegurado no artigo 60.º da lei geral tributária.

(F. P. V.)

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173 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

Recurso extraordinário — Fixação de jurisprudência — Decisãoda 1.ª instância proferida contra jurisprudência fixada peloSupremo Tribunal de Justiça — Trânsito em julgado — Recursoordinário — Inadmissibilidade de recurso directo para o SupremoTribunal de Justiça

I — A disposição do n.º 2 do artigo 437.º do Código de Processo Penal, ao exigirque já não seja admissível recurso ordinário, deve considerar-se correspondentementeaplicável ao recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal, nos termos don.º 2 deste artigo, pois só após o trânsito em julgado se pode considerar existente decisãocom possibilidade de eficácia contrária à jurisprudência fixada.

II — Proferida, em 1.ª instância, decisão, susceptível de recurso ordinário, contrajurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, o recurso deve ser interpostopara o Tribunal da Relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça, conforme as regrasde repartição de competências resultantes da conjugação dos artigos 427.º, 428.º e 432.ºdo Código de Processo Penal.

III — Só depois do trânsito em julgado de decisão do Tribunal da Relação ou doSupremo Tribunal de Justiça contrária à jurisprudência fixada poderá ter lugar o re-curso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 8 de Novembro de 2000Processo n.º 2729/2000 — 3.ª Secção

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

I

A Ex.ma Magistrada do Ministério Públicojunto do Tribunal de Instrução Criminal de Lis-boa interpôs recurso para o Tribunal da Relaçãode Lisboa do douto despacho do Ex.mo Juiz da-quele Tribunal de Instrução na parte em que nãopronunciou o arguido Nuno Manaças Rodriguespela prática de crimes de detenção de arma e demunições proibidas, de que fora acusado, pre-vistos e punidos pelo artigo 275.º, n.os 3 e 4, doCódigo Penal, ordenando o arquivamento dosautos quanto a tais ilícitos.

Invocou fundamentalmente que a douta deci-são recorrida contraria o sentido do acórdão doSupremo Tribunal de Justiça para fixação de ju-risprudência de n.º 2/98, de 4 de Novembro, pu-blicado no Diário da República, I Série-A, de 17de Dezembro de 1998, que decidiu: «Uma armade fogo, com calibre 6,35 mm, resultante de uma

adaptação ou transformação clandestina de umaarma de gás ou de alarme, constitui uma armaproibida, a ser abrangida pela previsão do n.º 2do artigo 275.º do Código Penal de 1995, antes daalteração pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro.»

O recurso foi admitido com efeito devolutivo,a subir imediatamente e em separado.

Recebidos os autos no Tribunal da Relação deLisboa, o Ex.mo Juiz Relator, pelo douto despa-cho de fls. 40, determinou que o processo fossedevolvido ao Tribunal recorrido para se proce-der à tramitação ordenada pelo artigo 446.º, n.º 2,do Código de Processo Penal.

Cumprido o despacho, o processo foi reme-tido ao Supremo Tribunal de Justiça.

Após despacho preliminar recebendo o re-curso e corridos os vistos, afigurou-se ao relatordever apreciar-se previamente da competênciado Supremo Tribunal de Justiça para apreciar orecurso, tal como foi interposto.

Realizada conferência para esse efeito, cum-pre decidir.

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174 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

II

O recurso previsto no artigo 446.º do Códigode Processo Penal é um dos instrumentos legaiscom vista a garantir, nos termos que a actuallegislação o permite, a uniformização da juris-prudência, impondo que o Ministério Públicorecorra obrigatoriamente de quaisquer decisõesproferidas contra jurisprudência fixada pelo Su-premo Tribunal de Justiça.

A este recurso aplicam-se as correspondentesdisposições específicas do capítulo referente aorecurso extraordinário para fixação de jurispru-dência (n.º 2 do citado artigo 446.º) e sub-sidiariamente, por força do artigo 448.º dessecapítulo, as disposições que regulam os recursosordinários.

Da letra e do espírito dos preceitos aplicá-veis, directamente ou por remissão, afigura-seresultar que a sua teleologia é no sentido de quesó se justifica o recurso extraordinário quando adecisão já não é susceptível de recurso ordinário,pois só então estamos face a decisão que, porquetransitada em julgado, tem eficácia em sentidocontrário ao da jurisprudência fixada.

Assim acontece no caso do recurso previstono artigo 437.º do Código de Processo Penal(n.º 2 desse artigo), pois só então se verifica aoposição estabilizada que importa apreciar parafixação de jurisprudência.

E não há razão para que assim não se entendano caso do recurso previsto no artigo 446.º, namedida em que, como se disse, só após trânsitoem julgado, porque esgotados os recursos ordi-nários, se pode considerar existente decisão compossibilidade de eficácia contrária à jurisprudên-cia fixada, justificativa por isso do recurso ex-traordinário que essa disposição prevê.

A citada disposição do n.º 2 do artigo 437.º, aoexigir que já não seja admissível recurso ordi-nário, deve pois considerar-se corresponden-temente aplicável nos termos do n.º 2 do ar-tigo 446.º

De forma que, proferida em 1.ª instância deci-são, susceptível de recurso ordinário, contra ju-risprudência fixada pelo Supremo Tribunal deJustiça, o recurso deve ser interposto para o Tri-bunal da Relação ou para o Supremo Tribunal deJustiça, conforme as regras de repartição de com-petências resultantes da conjugação dos artigos427.º, 428.º e 432.º

Só depois do trânsito em julgado de decisão (doTribunal da Relação ou do Supremo Tribunal deJustiça) contrária à jurisprudência fixada poderáter lugar o recurso previsto no artigo 446.º (1).

No caso concreto, porque a decisão recorridaé susceptível de recurso ordinário, foi proferidapelo juiz singular e não transitara em julgadoquando interposto o recurso, o conhecimentodeste compete ao Tribunal da Relação, por forçadas disposições conjugadas dos citados artigos427.º e 432.º

III

Em conformidade e considerando o dispostonos artigos 32.º e 33.º do Código de ProcessoPenal, declara-se incompetente o Supremo Tri-bunal de Justiça para conhecer do recurso e de-termina-se a remessa dos autos ao Tribunal daRelação de Lisboa, por ser o competente.

Não é devida tributação.Notifique-se e informe-se o Tribunal recor-

rido.

Lisboa, 8 de Novembro de 2000.

Ribeiro Coelho (Relator) — Leonardo Dias —Virgílio Oliveira.

(1) Neste sentido, cfr., v. g., Simas Santos-Leal Henriques,Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2000, pág. 1037,e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembrode 1996, Colectânea de Jurisprudência — Acórdãos do Su-premo Tribunal de Justiça, ano IV, tomo III, pág. 146.

DECISÃO IMPUGNADA:

Sentença do 1.º Juízo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, processo n.º 37/99.

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175 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

No mesmo sentido, cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 1996,Boletim do Ministério da Justiça, n.º 459, pág. 434, e Colectânea de Jurisprudência — Acórdãos doSupremo Tribunal de Justiça, ano IV, tomo III, pág. 146; de 23 de Outubro de 1996, Boletim doMinistério da Justiça, n.º 460, pág. 594; de 8 de Junho de 2000, processo n.º 1649/2000, 5.ª Secção,Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 42, pág. 61, e de 28 de Setembro de 2000,processo n.º 1798/2000, 5.ª Secção, ibidem, n.º 43, pág. 63, citados por Maia Gonçalves, Código deProcesso Penal, 12.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2001, anotação ao artigo 446.º

Quanto ao duplo grau do recurso previsto no artigo 446.º do Código de Processo Penal, vertambém o acórdão de 29 de Outubro de 1997, processo n.º 1098/97, na base de dados informatizadada jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

(E. A. M.)

Meios de prova em processo penal — Depoimento indirecto —Leitura permitida de auto

I — O que a lei pretende com o dispositivo do artigo 129.º do Código de ProcessoPenal é evitar que o arguido se não possa defender. Sempre que as declarações aí previs-tas sejam feitas na presença dos arguidos, o seu direito de defesa está garantido.

II — Se em audiência de julgamento vierem a depor como testemunhas órgãos depolícia criminal pronunciando-se sobre factos por si apurados antes da participação enão tendo eles tido qualquer intervenção no decurso do processo, não ocorre ofensa dodisposto no n.º 7 do artigo 356.º do Código de Processo Penal.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 15 de Novembro de 2000Processo n.º 2551/2000

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça,3.ª Secção:

No 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial deGondomar responderam, em processo comum eperante o tribunal colectivo, os arguidos Lean-dro Abel Azevedo, Filipe Miguel Teixeira Ferreirae Álvaro José Vieira Azevedo, todos com os si-nais dos autos, a quem o Ministério Público, nasua acusação, imputara a prática aos dois pri-meiros arguidos, como co-autores materiais, deum crime de furto qualificado, previsto e punidopelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea c),do Código Penal, e ao terceiro arguido de umcrime de receptação, previsto e punido pelo ar-tigo 231.º, n.º 1, do mesmo Código.

Os arguidos não contestaram.Pelo ofendido foi deduzido pedido cível con-

tra os arguidos nos termos de fls. 127 e seguintes.Também não houve contestação.

Realizada a audiência de discussão e julga-mento, veio o tribunal a julgar o pedido cível deindemnização improcedente, por não provado,pelo que dele absolveu os arguidos; por não pro-vada, julgou improcedente a acusação formuladacontra os arguidos Leandro Azevedo e FilipeMiguel Ferreira, pelo que da mesma foram ab-solvidos, e a julgar a acusação procedente emrelação ao arguido Álvaro Azevedo, pelo que,como autor do crime previsto e punido pelo ar-tigo 231.º, n.º 1, do Código Penal, foi condenadona pena de um ano de prisão que, nos termos dos

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artigos 1.º, n.º 1, e 4.º da Lei n.º 29/99, de 12 deMaio, foi declarada perdoada resolutivamente.

Não se conformou o Ex.mo Magistrado doMinistério Público com a absolvição dos argui-dos Leandro Azevedo e Filipe Miguel Ferreira,pelo que interpôs o presente recurso.

Da motivação apresentada extraiu o recor-rente as seguintes conclusões:

«1 — Embora o testemunho directo seja aregra, não existe na legislação portuguesa a proi-bição absoluta do testemunho de ouvir dizer.

2 — Ao invés, o testemunho de ouvir dizer apessoa determinada, que não é possível inquirirpor morte, anomalia psíquica superveniente ouimpossibilidade de ser encontrada, serve comomeio de prova;

3 — Da opção do arguido pelo direito ao si-lêncio não decorre a proibição da admissão e davaloração do testemunho de outiva;

4 — Admitir como meio de prova o depoi-mento de ouvir dizer ao arguido, mesmo quandoeste exerce o seu direito ao silêncio não ofendequalquer direito de defesa.

5 — A situação do arguido que se refugia noseu direito ao silêncio é substancialmente igualou mesmo ainda mais favorável para si do que ado arguido que não pode ser encontrado.

6 — O depoimento de ouvir dizer ao arguidopode ser plenamente contraditado.

7 — É pois razoável e proporcionado quesirvam como meio de prova a apreciar segundo alivre convicção do tribunal e à luz das regras daexperiência comum os depoimentos dos agentespoliciais que extraprocessualmente ouviram osarguidos confessar a autoria dos factos prova-dos, mesmo que estes tenham exercido o seu di-reito ao silêncio.

8 — O Tribunal, fazendo aplicação de inter-pretação precisamente em sentido contrário a este,recusou como meio de prova o depoimento dosagentes policiais inquiridos na audiência de jul-gamento.

9 — Com o que ficou impedido de proferiruma decisão materialmente justa e juridicamentecorrecta.

O douto acórdão recorrido, na interpretaçãoexpressa na fundamentação da matéria de facto— de não admitir à valoração o depoimento dosagentes policiais que, extraprocessualmente, ou-

viram os arguidos confessar a autoria de furtoprovado, só porque estes exercem o seu direitoao silêncio — violou o disposto no artigo 129.º,n.º 1, conjugado com o disposto no artigo 128.º,n.º 1, do Código de Processo Penal.

Deve o douto acórdão recorrido ser revogado.Deve ordenar-se a prolação de outro em sua

substituição no qual, o mesmo tribunal, admitacomo meio de prova, para ser submetido à sualivre e prudente convicção, o depoimento dosagentes policiais com o conteúdo que foi pres-tado na audiência de julgamento e que a funda-mentação muito resumidamente expressa.»

Neste Supremo Tribunal a Ex.ma Procuradora--Geral Adjunta teve vista dos autos e foi proferi-do o despacho preliminar.

Colhidos os vistos, realizou-se a audiênciaoral.

Nas doutas alegações que proferiu, a Ex.ma

Procuradora-Geral Adjunta defendeu o provimen-to do recurso, uma vez que nada impede que setome em linha de conta o depoimento dos doisagentes de autoridade cujo conhecimento dos fac-tos é consequência de diligências por eles efec-tuadas.

Por outro lado, a defesa foi de entendimentoque era de negar provimento ao recurso, manten-do-se a decisão recorrida.

Cumpre decidir.

Da matéria de facto dada como provada inte-ressa reter o seguinte:

«1 — A hora indeterminada da noite de 5 deSetembro de 1996 foram assaltadas as instala-ções da oficina de ourivesaria, pertença do quei-xoso António da Cruz Moutinho, situada na Ruade Bento de Jesus Caraças, 208, em São Cosme,Gondomar.»

E entre a matéria não provada há que subli-nhar o seguinte facto:

«Toda a factualidade vertida, quer na acusa-ção pública, quer no pedido de indemnizaçãocivil, que permita imputar aos arguidos Leandroe Filipe o crime de furto qualificado.»

Finalmente e por que no cerne da questãotranscreve-se o seguinte passo da «fundamenta-

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ção»: «No caso presente, temos que os arguidosnegaram a prática dos factos. Ora, quanto aofurto por que vêm os arguidos Leandro e Filipeacusados, além do silêncio dos arguidos, temostão-só os depoimentos de José Fernando e doFrancisco, agentes da PSP de Gondomar, queapenas sabem ter feito diligências para descobriro autor ou autores do furto e que na sequênciadelas os próprios arguidos (Leandro e Filipe)lhes confessaram terem sido eles os autores docitado assalto. Nada mais. Isto é, temos apenas ochamado depoimento indirecto das aludidas tes-temunhas, que se limitam a referir o que ouviramdizer aos próprios arguidos. Ora, estamos emface do denominado depoimento indirecto a quese refere o artigo 129.º do Código de ProcessoPenal.

Não obstante alguma divergência em tal maté-ria, temos entendido que o depoimento das tes-temunhas, baseado no que ouviram dizer aosarguidos é um depoimento indirecto sujeito à dis-ciplina do artigo 129.º do Código de ProcessoPenal, não podendo servir como meio de provase os arguidos exercerem o seu direito de nãoprestarem declarações em audiência. Foi o queaconteceu no caso presente.»

O recurso interposto do acórdão final do tri-bunal colectivo para o Supremo Tribunal de Jus-tiça visa exclusivamente o reexame da matéria dedireito, conforme dispõe a alínea d) do artigo 432.ºdo Código de Processo Penal.

É pacífica a jurisprudência deste SupremoTribunal no sentido de que o âmbito de recursose define pelas conclusões que os recorrentes ex-traiam da respectiva motivação, sem prejuízo,contudo, das questões de conhecimento oficioso.

Perante o que consta dos autos, parece-nosevidente de que não se está, face aos depoimen-tos dos dois agentes de autoridade, perante de-poimentos indirectos.

Diz o n.º 1 do artigo 129.º do Código de Pro-cesso Penal: «Se o depoimento resultar do que seouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz podechamar estes a depor.»

Os aludidos agentes identificaram a pessoacom quem falaram: o arguido Filipe. Em audiên-cia de julgamento os arguidos Leandro e Filipenão prestaram declarações. Sempre o seu direitode defesa estava garantido, uma vez que sendofeitas na presença dos arguidos tais declarações

bem podiam defender-se. O que a lei pretendecom o dispositivo do artigo 129.º é evitar que oarguido se não possa defender. Se todos estãopresentes e tudo identificado, a razão de ser dopreceito desaparece.

Como se vê dos autos, o agente José Bragançaprocedeu a diligências no sentido de apurar quemfora o autor ou autores do crime de furto — verfls. 29 — e foi no decurso dessas diligências queveio a apuraram quem foram os autores.

Mais tarde foram ouvidos como testemunhas— fls. 121 e 122 — e foi nessa qualidade quemais tarde vieram a depor em audiência.

Quer dizer: os dois agentes não foram instru-mentos do processo e não tomaram declaraçõesaos arguidos no decurso da instrução.

Determina o n.º 7 do artigo 356.º do Código deProcesso Penal: «Os órgãos de polícia criminalque tiverem recebido declarações cuja leitura nãofor permitida, bem como quaisquer pessoas que,a qualquer título, tiverem participado da suarecolha, não podem ser inquiridas como teste-munhas sobre o conteúdo daqueles».

Não é o caso dos autos, pois, como vimos, nodecurso do processo não houve qualquer inter-venção das aludidas testemunhas.

Foi, face às diligências efectuadas antes daparticipação que as testemunhas apuraram osfactos sobre os quais, mais tarde, vieram a depore, antes, a elaborar a participação.

Sendo assim, não nos parece que o tribunalrecorrido devesse ter afastado os depoimentosdas aludidas testemunhas, quer por não se tratarde depoimento indirecto, quer por não ofender odisposto no n.º 7 do artigo 356.º

Este Supremo Tribunal de Justiça, aliás, já sepronunciou no mesmo sentido em situações pa-ralelas às dos autos, como se pode ver pelosacórdãos de 29 de Março de 1995, Boletim doMinistério da Justiça, n.º 445, pág. 279; de 30 deOutubro de l996, Boletim do Ministério da Jus-tiça, n.º 460, pág. 425, e respectiva anotação; de25 de Setembro de 190, Boletim do Ministério daJustiça, n.º 469, pág. 351, e respectiva anotação,e de 30 de Setembro de 1998, Boletim do Minis-tério da Justiça, n.º 479, pág. 414, e respectivaanotação.

As diligências efectuadas não se limitaram aouvir um arguido; traduziram-se também, na efec-tiva apreensão de bens furtados e em poder do

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arguido receptados, em resultado das informa-ções prestadas pelo arguido Filipe.

Assim, nada impedia que o tribunal tivessetomado em consideração o depoimento das tes-temunhas em causa, por nenhuma violação legalocorrer, tendo-as em conta.

Nestes termos, acordam em dar provimentoao recurso, pelo que o tribunal recorrido deveráproferir nova decisão em que seja tomado emconsideração o depoimento das testemunhas José

Fernando Bragança e Francisco José Nabiço Afon-so.

Sem custas.Fixam-se em 18 000$00 os honorários a pa-

gar a cada um dos Ex.mos Defensores Oficiosos, aliquidar pelos Cofres.

Lisboa, 15 de Novembro de 2000.

Flores Ribeiro (Relator) — Brito Câmara —Lourenço Martins — Pires Salpico.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Gondomar, processo n.º 400/99.

II — Acórdão de 11 de Abril de 2000 da 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, processon.º 778/2000.

I — Veja-se, além da jurisprudência citada no acórdão e respectivas anotações, ainda o acórdãodo Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 1997, processo n.º 152/97. Interessantes são aindaas anotações e os comentários ao artigo 129.º do Código de Processo Penal, in Simas Santos e LealHenriques, Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 2.ª ed., págs. 712 e segs., e Maia Gonçalves,Código de Processo Penal Anotado, 1999, 10.ª ed., págs. 326 e seguintes.

II — Veja-se, em sentido semelhante, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 deMarço de 1995, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 445, pág. 279, de 11 de Dezembro de 1996,n.º 462, pág. 299, e de 27 de Maio de 1998, processo n.º 353/98.

(A. L. L.)

Responsabilidade civil conexa com a criminal— Absolviçãocriminal — Pedido cível

I — Só será possível a condenação em indemnização civil, nos termos do ar-tigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se os factos integrantes do objecto doprocesso na sua vertente estritamente penal e simultaneamente constitutivos da causa depedir do pedido de indemnização civil estão provados.

II — Não pode a condenação ter por base factos diferentes dos imputados e, deentre estes, os factos provados — embora insuficientes para a condenação pelo crime,determinando a absolvição deste — têm de se mostrar suficientes ao preenchimento dospressupostos da responsabilidade civil extracontratual, única que, por força do prin-cípio da adesão, pode estar em causa no processo penal (artigo 71.º do Código deProcesso Penal).

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 22 de Novembro de 2000Processo n.º 1776/2000

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179 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

Na 5.ª Vara Criminal de Lisboa foi o arguidoFernando José Alves de Figueiredo, identificadonos autos, sob a imputação de haver cometidoum crime de burla agravada, previsto e punidopelas disposições conjugadas dos artigos 313.º e314.º, alínea c), do Código Penal de 1982 [hojeartigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), doCódigo Penal, versão de 1995], sendo absolvidoda prática de tal crime e do pedido cível neleenxertado.

Em desacordo com o assim sentenciado, deleinterpôs recurso o Ministério Público (apenasna parte referente ao pedido cível), que motivoupara concluir que «houve violação do princípioda adesão, previsto nos artigos 71.º e 377.º, n.º 1,ambos do Código de Processo Penal, já que oTribunal, tendo apreciado os factos que estão nabase do pedido de indemnização [...], podia edevia ter decidido, condenando o arguido no res-pectivo pagamento de 2 762 600$80».

Respondendo, contramotivou o arguido paraconcluir assim:

«Vem o presente recurso interposto porS. Ex.ª o Procurador da República, apenas noque ao pedido de indemnização cível formuladodiz respeito.

O recurso em causa segmenta o douto acórdãoem crise, de forma a retirar do mesmo apenas osconcretos factos que fundamentariam uma deci-são relativamente à procedência do mesmo.

E assim, o que mais choca é a forma ‘gros-seira’ com que os representantes do Estado, numverdadeiro venire contra factum proprium, pre-tendem agora retirar do presente acórdão outrasconsequências, úteis para outras ‘guerras’ mascompletamente à margem da realidade jurídicados presentes autos.

Isto porque só assim se justifica a forma comoo Ministério Público não põe em crise que oarguido tenha utilizado as verbas em causa para‘pagar viagens que efectuou na sua qualidade dedeputado às comunidades portuguesas residen-tes na Europa e os custos inerentes às mesmascomo hotéis, refeições, táxis’, solicitando porémo reembolso das verbas a título não se sabe bemdo quê [...]

— Como resultou claro do julgamento reali-zado, transposto de forma cristalina para o acór-dão que agora se põe em crise na parte cível, oarguido utilizou as verbas que lhe foram entre-gues no âmbito das suas funções como depu-tado, ou seja, em benefício do Estado (o arguido‘recebeu assim os respectivos quantitativos e uti-lizou-os para pagar as concretas e requisitadasviagens [...], mas sim para o exercício das suasfunções como deputado e com o objectivo devisitar os seguintes países: Alemanha Ocidental,Andorra, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França,Grã-Bretanha, Itália, Luxemburgo, Países Bai-xos, Suécia e Suíça, viagens que utilizou de avião,comboio, automóvel’ (cfr. acórdão recorrido).

Mais. Para que o pedido de indemnização cívelproceda, torna-se necessária a invocação de pre-juízos [...]

Tais prejuízos, porém, não ficaram provadosem julgamento, nem sequer (não era possível)são alegados pelo Ministério Público.

— O recorrente, de forma habilmente mani-pulada, ignora a lapidar conclusão do tribunalcolectivo quanto conclui o acórdão, tratando dopedido cível:

‘[...] a reclamada verba de 2 762 600$80 foiafinal integralmente utilizada pelo arguido para odesempenho da sua actividade profissional dedeputado do Círculo da Emigração, não tendosido usado para outros fins que não esses, ne-nhum prejuízo advém para o Estado da sua con-duta, não havendo, por isso, qualquer base legalpara a procedência do pedido indemnizatório,por ausência dos respectivos pressupostos’.

— Admitindo que o Ministério Público co-nhece o acórdão do mesmo modo que o arguido,o que o leva agora a justificar um recurso quandonem uma linha é utilizada para afastar a argu-mentação utilizada no acórdão em causa?

— Qual foi o prejuízo que teve o Estado daconduta descrita pelo arguido quando é o pró-prio Estado a reconhecer que o arguido utilizouas verbas em causa no exercício das suas fun-ções, portanto, em benefício do Estado?

Quais os pressupostos em que justifica oMinistério Público um enriquecimento ilegítimodo arguido que reconhece não se ter verificado?

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180 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

— O que pretende, enfim, trazer o recorrenteaos autos que altere um dos factos pelos quaisacusou e foi considerado não provado e que aquise reproduz:

‘(Não ficou provado) [...] que o arguido ti-vesse actuado astuciosamente, agindo com a in-tenção de alcançar um enriquecimento para si epara a agência, de forma livre e consciente, sa-bendo que a sua conduta era proibida por lei.

(Não ficou provado) [...] que o arguido tenhacausado qualquer prejuízo ao Estado, designa-damente no montante de 2 037 221$00, e quetenha enriquecido, neste, ou em qualquer outrovalor, à custa do Estado’.

Admitir a procedência do presente recurso (oque por exacerbada cautela de patrocínio se pon-dera mas não se concede) seria permitir ao Esta-do um enriquecimento sem causa à custa doarguido em manifesta violação do artigo 473.º doCódigo Civil e do próprio artigo 155.º da Consti-tuição da República Portuguesa.

Por outro lado, e contrariamente ao que pre-tende o Ministério Público nas suas conclusõesde recurso, não existiu nenhuma violação do prin-cípio de adesão.

Não se ignora que, no caso da sentença abso-lutória na parte penal, sempre que o pedido deindemnização civil se revele fundado, deve havercondenação no pedido cível, conforme dispõe oartigo 377.º, n.º 1, do supramencionado diploma.

Impõe-se, porém, que se verifiquem os pres-supostos da responsabilidade civil por actosilícitos (artigo 483.º do Código Civil), ou seja, edesde logo, um acto que consubstancie uma vio-lação ilícita de um direito de outrem, ou qualquerdisposição legal destinada a proteger interessesalheios (cfr. acórdão de fixação de jurisprudêncian.º 7/99, publicado no Diário da República, I Sé-rie-A, de 3 de Agosto de 1999).

E se assim é, como já amplamente se deixoureferido, tais pressupostos não se verificam nocaso concreto.

Aliás, o próprio acórdão se debruçou sobreeles, não concluindo (antes pelo contrário) peloprejuízo do Estado que, de resto, é justificadoonde radica no recurso apresentado.

Sendo certo que, para além de tudo o mais, aperegrina tese (ou ausência dela) do MinistérioPúblico é ‘trucidada’ pela simples leitura (insis-

ta-se, simples leitura) do acórdão que se preten-de pôr agora em crise.

Por outro lado, e ainda que assim se não en-tendesse o que só por exacerbada cautela de pa-trocínio se pondera mas não se concede, ensina oartigo 563.º do Código Civil que a ‘obrigação deindemnização só existe em relação aos danos queo lesado não teria sofrido se não fosse a lesão’.

Ora, estes ‘danos’ não se encontram justifica-dos, nem o próprio Ministério Público os con-sidera.

E como poderia fazê-lo, se beneficiou da con-duta do arguido, como ele próprio reconhece?»

Já neste Supremo Tribunal de Justiça o Mi-nistério Público limitou-se a promover se desig-nasse dia para a audiência oral.

Tramitado o recurso, cumpre decidir.

2. Tem-se por assente a seguinte matéria defacto:

— O arguido exerceu o mandato de deputadoà Assembleia da República pelo Círculo da Emi-gração-Europa, nas III, IV e V Legislaturas, nosperíodos compreendidos entre 19 de Junho de1983 e 3 de Novembro de 1985 (III); 4 e 6 deNovembro de 1985; 8 de Novembro de 1985 e12 de Agosto de 1987 (IV); 13 de Agosto de1987 e 16 de Julho de 1988; 31 de Julho e 16 deOutubro de 1988; 17 de Abril e 1 de Junho de1989; 19 de Outubro e 25 de Novembro de 1989,e 15 de Fevereiro e 31 de Julho de 1991 (V), inte-grando as listas do Partido Social-Democrata.

— Por virtude do cargo então exercido, o ar-guido Fernando Figueiredo podia utilizar, nostermos do artigo 15.º, n.os 1 e 3, da Lei n.º 3/85, de13 de Março, no exercício das suas funções dedeputado, ou por causa delas, transportes colec-tivos para as Regiões Autónomas dos Açores eda Madeira, uma vez por ano, podendo aindautilizar transportes colectivos que efectuassemo percurso correspondente às deslocações aoestrangeiro que fossem autorizadas pelo Presi-dente da Assembleia da República, com base nocalendário anual das viagens de carácter perma-nente, nas convocatórias e nos convites dirigidosao gabinete do referido Presidente.

As deslocações às Regiões Autónomas dosAçores e da Madeira eram processadas através

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181 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

da Divisão de Apoio Estatutário, sendo precedi-das de autorização do Presidente da Assembleiada República.

Para as deslocações ao estrangeiro, a Divisãode Relações Públicas Internacionais Interparla-mentares preenchia um boletim de deslocaçãooficial, o qual, depois de autorizado pelo Presi-dente da Assembleia da República, era remetidoà Divisão de Gestão Financeira, que emitia umarequisição (modelo oficial — Decreto n.º 23, de4 de Fevereiro de 1922), onde constava o nomedo deputado e o percurso, devolvendo-a ao de-putado para que este adquirisse a viagem juntoda agência do seu agrado.

Neste caso, as agências de viagens ou trans-portadoras remetiam as requisições que lhes eramapresentadas pelos deputados aos serviços finan-ceiros da Assembleia da República, acompanha-das das respectivas facturas, como forma de seressarcirem do pagamento dos serviços prestados.

Em nenhuma das situações os bilhetes de trans-porte de tais viagens acompanhavam as facturase requisições enviadas pelas agências de viagem àAssembleia da República, que, dessa forma, nãotinha possibilidade de controlar se a viagem ti-nha sido efectivamente realizada, sendo certo que,enquanto o arguido exerceu as suas funções dedeputado, nunca a Assembleia da República exi-giu de qualquer agência de viagem a entrega doscorrespondentes títulos de transporte.

Este era o sistema de processamento de via-gens para o estrangeiro, já implantado pela As-sembleia República antes de o arguido ser depu-tado, e que vigorou enquanto o mesmo exerceuessas funções, sendo apenas alterado pela Deli-beração n.º 15/PL/89, do Presidente da Assem-bleia da República de 7 de Dezembro de 1989.

Com esta, e que entrou progressivamente emvigor a partir de 1 de Janeiro de 1990, foi deter-minado que os deputados teriam de entregar osbilhetes de avião ao Conselho de Administração,o qual, se assim o entendesse, os remeteria paraos serviços financeiros da Assembleia da Repú-blica, com vista a apurar a efectiva realização daviagem.

O Conselho de Administração da Assembleiada República era formado pelos deputados atra-vés da respectiva representação parlamentar, pelosecretário da Assembleia da República por ine-rência e por um representante dos trabalhadores,

sendo que apenas os deputados tinham direito avoto.

O Conselho de Administração nunca enviouaos serviços financeiros da Assembleia da Repú-blica qualquer bilhete entregue pelos deputados,pelo que tais serviços, dessa forma, nunca pude-ram controlar se os deputados tinham ou não rea-lizado a viagem que havia sido paga por aquela.

Como deputado pelo Círculo da Emigração oarguido tinha direito a três requisições por ses-são legislativa de viagens ao estrangeiro, nos ter-mos da mencionada Lei n.º 3/85, de 13 de Março.

Estas viagens tinham o objectivo de visitar ascomunidades portuguesas espalhadas pela Eu-ropa e eram pagas pela Assembleia da República.

Contudo, tal pagamento reportava-se apenasao valor da viagem, não comportando qualquerimportância adicional, designadamente ajudas decusto, para suportar as despesas de alojamento,refeições, táxis ou quaisquer outras.

Os deputados eleitos pelo Círculo da Emigra-ção eram os únicos que não tinham direito a aju-das de custo nas suas viagens.

Por tal facto, e após se ter informado comoutros deputados, o arguido utilizou o métododesde então sempre seguido pelos seus anterio-res colegas deputados dos Círculos da Emigra-ção, e mesmo pelos que eram então, também,deputados por tal Círculo, e que consistia emtransformar as três requisições de viagens per-mitidas por lei na obtenção de meios económicosque lhe permitissem fazer essas ou outras via-gens e pagar os custos inerentes às mesmas, comohotéis, almoços, jantares, táxis e outras.

Este procedimento era comum aos deputadoseleitos pelo Círculo da Emigração e do perfeitoconhecimento dos Serviços Administrativos eFinanceiros da Assembleia da República.

O arguido suscitou perante o seu grupo parla-mentar e perante o Presidente da Assembleia daRepública a questão da inexistência de ajudas decusto por parte dos deputados da emigração,pugnando pela atribuição das mesmas, com vistaa obviar à necessidade do procedimento de trans-formação das requisições das viagens atrás des-crito.

Questão que esteve então em estudo e que sóem 1989 foi resolvida com a atribuição de subsí-dios de transporte e ajudas de custo correspon-dentes para os deputados da emigração, no valor

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de 570 000$00 por sessão legislativa para via-gens a realizar no Círculo da Europa e a gerir porcada deputado, atribuição consagrada pela já re-ferida Deliberação do Presidente da Assembleiada República n.º 15/PL/89, de 7 de Dezembro de1989.

Para as viagens pelo arguido efectuadas noexercício das suas funções foi por si utilizada aTurivisa — Agência de Viagens, L.da, onde existiauma conta corrente em nome pessoal do deputa-do Fernando Figueiredo, a qual passaria a seralimentada por verbas provenientes do orçamentoda Assembleia da República, conta corrente essaque viria a funcionar durante todo o período emanálise.

Na aludida conta corrente era creditada umapercentagem correspondente a cerca de 91% dasdespesas de transporte aéreo do arguido Figuei-redo que viessem a ser facturadas à Assembleiada República e por esta pagas à citada agência,relativas a viagens oficiais pelo arguido requisi-tadas, emitindo a Turivisa as correspondentesfacturas que remetia à Assembleia da República,acompanhadas das requisições oficiais, tendo emvista a respectiva cobrança.

A mencionada agência emitia ainda notas decrédito a favor do arguido, de valor correspon-dente a cerca de 91% do que era facturado àAssembleia da República, as quais seriam lançadasa crédito na conta corrente «cliente FernandoFigueiredo», revertendo a favor da agência, a tí-tulo de comissão, o valor remanescente, corres-pondente a cerca de 9% do valor facturado,lançando a débito da mencionada conta corrente,quer entregas directas em dinheiro ao arguido,quer os pagamentos decorrentes de futuras pres-tações de serviços que lhe viesse a efectuar.

Em circunstância alguma a Assembleia da Re-pública foi reembolsada de quantitativos por sipagos à mencionada agência, a título de des-pe-sas de deslocação do arguido Figueiredo, que vi-essem a não ser realizadas, total ou parcialmente,nos termos das requisições às mesmas entreguespor aquele.

No decurso dos anos de 1986 a 1989 o ar-guido entregou à Turivisa as requisições de via-gem com os números abaixo indicados, no valorglobal de 3 037 221$00, as quais correspondemàs facturas que a seguir igualmente se discrimi-nam, que foram emitidas pela aludida agência nas

datas também abaixo mencionadas e onde se iden-tificam, respectivamente, o número da requisi-ção, o número da factura, a data da factura, onúmero do file constante da factura e da notade crédito e ainda as folhas do apenso onde amesma se mostra junta:

1) 8943; 12394; 19.11.86; 13290; 13, 14, 12;2) 9035; 13271; 06.01.87; 13437; 22, 23, 20;3) 9125; 13454, 09.03.87; 1367; 27, 28, 25;4) 9124; 13453; 09.03.87;13674; 26, 29, 25;5) 9211; 13547; 03.04.87; 13776; 35, 36, 32;6) 9749 14473; 02.11.87; 14848; 41, 40, 38;7) 10030; 14878; 04.02.88; 15145;8) 10031; 14879, 08.02.88; 15145;9) 10035; 14901; 18.02.88; 15145;10) 10588; 15554, 05.07.88; 15786; 73, 72, 71;11) 10600; 15597; 15.07.88; 15803; 78, 79, 75;12) 12195; 16855; 03.05.89; 16929; 83, 84, 81.

As aludidas requisições respeitavam a vintee quatro passagens aéreas para percursos na Eu-ropa e América, as quais foram pagas pelaAssembleia da República, respectivamente atra-vés das autorizações de pagamento n.os 747/86,774/87, 257/87, 302/87, 734/87, 161/88, 449/88e 256/89 (fls. 222, 225, 227, 230, 232, 237, 244e 258 do apenso).

Por seu turno, às mencionadas doze facturasda Turivisa correspondeu a emissão de dez no-tas de crédito a favor do arguido, com a expres-são cada uma delas correspondente a 91% dovalor facturado.

O total creditado a favor do arguido perfaz aimportância de 2 762 600$80, estabelecendo-seabaixo a correspondência entre as facturas e asnotas de crédito emitidas, com indicação dos va-lores e das respectivas datas de emissão, dis-criminando-se, respectivamente, o número dafactura, a data da factura, o valor da factura, onúmero da nota de crédito, o valor da nota decrédito e as folhas do apenso em que a mesmaestá junta:

— 12394; 19.11.86; 248 000$00; 1950;225 680$00; 14, 15, 61;

— 13271; 06.01.87; 339 813$00; 2009;308 126$00; 23, 24, 62;

— 13454; 09.03.87; 26 200$00; 2095;23 842$00; 28, 30, 62;

— 13453; 09.03.87; 42 200$00; 2096;38 402$00; 29, 31, 62;

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183 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

— 13547; 03.04.87; 389 215$00; 2119;354 081$00; 36, 37, 62;

— 14473; 02.11.87; 250 318$00; 2444;227 6812$00; 40, 42, 64;

— 14878; 04.02.88; 41 400$00;— 14879; 08.02.88; 66 600$00;— 14901; 18.02.88; 396 025$00, sendo esta

factura com as duas anteriores junta na mesmanota de crédito, n.º 2646, no valor de 458 822$00,junta a fls. 52, 53 e 65 do apenso;

— 15554; 05.07.88; 41 400$00; 2777;37 674$00; 72, 74, 67;

— 15597; 15.07.88; 710 125$00; 2786;646 100$00; 79, 80, 67; e

— 1685; 03.05.89; 485 925$00; 3113;442 191$80; 84, 85, 69.

À data da emissão da primeira factura e dacorrespondente nota de crédito, mencionadas noquadro que antecede — 19.11.96 — a conta cor-rente do arguido Figueiredo apresentava já umsaldo credor no montante de 1 038 834$00, oqual se mantinha desde 08.10.86 e cuja pro-veniência não foi possível determinar, sendo omontante global das mencionadas facturas de3 037 221$00, dos quais 277 620$20 ficaram naTurivisa e os restantes 2 762 600$80 foram cre-ditados na conta corrente do arguido.

O citado valor de 3 037 221$00 foi pago peloEstado à Turivisa, que nenhuma quantia lhe de-volveu.

A Turivisa fez constar aleatoriamente das re-quisições remetidas à Assembleia da Repúblicanúmeros de bilhetes aéreos, os quais correspon-dem a percursos diversos dos constantes das re-quisições, sendo também diversos os seusutilizadores.

Efectivamente, o referido montante de2 762 600$80 encontra-se englobado no quanti-tativo total de 3 805 234$80 referente à soma dovalor dos cheques abaixo mencionados e onde seindicam, respectivamente, o número, a data, ovalor e as folhas dos autos em que os mesmosconstam:

27471900; 04.12.86; 100 000$00; 61, 86 e86 v.º do apenso;

2814114; 19.12.86; 100 000$00; 61, 87 e87 v.º do apenso;

29012228; 13.03.87; 100 000$00; 62, 88, 89e 89 v.º do apenso;

29012660; 31.03.87; 100 000$00; 62, 90, 91e 91 v.º do apenso;

2901342; 11.05.87; 300 000$00; 63, 92, 93e 93 v.º do apenso;

4029699495; 05.06.87; 150 000$00; 1206 dosAT, e 63, 94, e 94 v.º e 95 do apenso;

629700183 ; 07.07.87; 200 000$00; 1205 dosAT, e 63 ), 96, 96 v.º e 97 do apenso;

5530974429; 06.11.87; 242 765$00; 1204 dosAT, e 64, 98, 98 v.º e 99 do apenso.

5430974968; 14.12.87; 227 862$00; 1203 dosAT, e 64, 100 v.º e 101 do apenso;

9331890482; 06.01.88; 150 000$00; 1215 dosAT, 65, 102, 102 e v.º 103 do apenso;

6132882386; 20.05.88; 308 822$00; 1214 dosAT, 66, 104, 104 v.º e 105 do apenso;.

2734021353; 15.07.88; 200.000$00; 1216 dosAT, 67, 106, 106 v.º e 107 do apenso;

34022112; 26.08.88; 250 000$00; 1213 dosAT, 67, 108, 108 v.º e 109 do apenso;

7434022210; 02.09.88; 250 000$00; 1212 dosAT, 67, 110, 110 v.º e 111 do apenso;

6134842659; 06.10.88; 200 000$00; 1211 dosAT, 68, 112, 112 v.º e 113 do apenso;

3934842780; 14.10.88; 150 000$00; 1210 dosAT, 68, 114, 114 v.º e 115 do apenso;

2034843612; 09.11.88; 333 774$00; 1209 dosAT, 68, 116, 116 v.º e 117 do apenso;

37372661; 21.07.89; 150 000$00; 70; 118,119 e 119 v.º do apenso;

5938393549; 11.08.89; 150 000$00; 1208 dosAT, 70, 120 a 122 do apenso;

938393727, 25.08.89; 142 191$80; 1207 dosAT e 123 a 125 do apenso;

Total: 3 805 234$00.

Todos estes cheques foram emitidos pelaTurivisa sobre a conta da sua titularidade no BEScom o n.º 0230710001, tendo sido subscritospor Maria Ondina Machado, sócia gerente da-quela agência, e entregues ao arguido, tendo osrespectivos montantes sido lançados a débito naconta corrente referente ao mesmo e existente naTurivisa.

O arguido recebeu assim os respectivos quan-titativos e utilizou-os para pagar, não as concre-tas e requisitadas viagens que, pagas pela As-sembleia da República, nunca foram por si efec-tuadas, mas sim para no exercício das suas fun-ções de deputado e com o objectivo de contactar

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184 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

as comunidades portuguesas aí residentes o ar-guido visitar os seguintes países: Alemanha Oci-dental, Andorra, Bélgica, Dinamarca, Espanha,França, Grã-Bretanha, Itália, Luxemburgo, Paí-ses Baixos, Suécia e Suíça, viagens que efectuoude avião, comboio e de automóvel.

O quantitativo supra-referenciado de2 762 600$80 foi assim utilizado pelo arguidopara pagar viagens que efectuou na sua qualidadede deputado às comunidades portuguesas resi-dentes na Europa e os custos inerentes às mes-mas, como hotéis, refeições, táxis.

O referido montante de 2 762 600$80 não foiutilizado para outros fins que não a realização deoutras viagens no âmbito da sua actividade dedeputado eleito pelo Círculo da Emigração-Eu-ropa.

O arguido, nas suas funções de deputado, es-teve presente na Semana Cultural Portuguesa emChalons-S-Marne, que se realizou entre 19 deOutubro de 1997 e 24 de Outubro de 1997.

Ainda nessas funções, deslocou-se a Boissele Roi, na 1.ª Semana Cultural Portuguesa em 17de Abril de 1988.

O arguido quando viajava no âmbito das suasfunções, para esses efeitos ou por necessidadede justificar as suas faltas, tendo em conta ostrabalhos da Assembleia da República, infor-mava o Presidente da Assembleia da República ea direcção do seu Grupo Parlamentar.

O arguido foi funcionário da TAP– Air Portu-gal durante 35 anos, tendo-se reformado em 1992.

É casado, com dois filhos.Não tem antecedentes criminais.

O tribunal a quo deu como não provados osseguintes factos:

Que o arguido, sabedor da faculdade descritade 2.1 a 2.1.6 e de 2.1.19 a 2.1.22, tivesse que-rido usá-la, aproveitando-se da mesma para uti-lizar montantes referentes a despesas de desloca-ção correspondentes às requisições que preen-chesse para pagamento de despesas pessoais,fora do âmbito oficial em que desenvolvia as suasfunções de deputado, cujo respectivo Estatutosabia não permitir serem suportadas com verbasdo Estado;

Que o arguido, com os montantes que fossempagos pela Assembleia da República, em função

das requisições de transporte apresentadas, nãotivesse pretendido deslocar-se, no exercício oupor causa das suas funções, no espaço do CírculoEleitoral da Europa por onde tinha sido eleito;

Que, em datas exactas que não foi possívelapurar, entre o arguido Fernando Figueiredo eindivíduo(s) cuja identidade não foi possível apu-rar da agência Turivisa — Agência de Viagens,L.da, tenha sido estabelecido um acordo que con-duzia a que o primeiro e a mencionada agênciaauferissem vantagem patrimonial que não lhesera devida, aquando do processamento de via-gens requisitadas por aquele, na qualidade dedeputado da Assembleia da República em exercí-cio de funções;

Que tal plano consistisse na existência daconta corrente supramencionada e que os lança-mentos a crédito e a débito atrás descritos e aemissão das facturas e o seu envio à Assembleiada República a ele obedecessem, bem como aentrega dos cheques atrás referenciados;

Que na execução do dito plano tenha ficadoestabelecido que em circunstância alguma aAsembleia da República seria reembolsada dequantitativos por si pagos à mencionada agência,a título de despesas de deslocação do arguidoFigueiredo, a não ser realizadas, total ou parcial-mente, nos termos das requisições às mesmasentregues por aquele;

Que na execução do referido plano, e à medidaem que o arguido Figueiredo foi entregando nasinstalações da Turivisa as requisições de viagensadiante indicadas, funcionários da mesma, emobediência a ordens nesse sentido especificamentedadas por responsável(is) da Turivisa cuja iden-tidade não foi possível apurar, tenham sido mon-tadas as operações atrás discriminadas;

Que o facto de a Turivisa ter feito constaraleatoriamente das requisições àquela remetidasnúmeros de bilhetes aéreos, os quais correspon-dem a percursos diversos dos constantes dasrequisições, sendo também diversos os utiliza-dores, tenha sido realizado com o objectivo decriar nos serviços da Assembleia da República aconvicção de que as viagens a que se reportavacada uma das facturas haviam sido efectiva-mente realizadas;

Que o arguido se tenha apoderado, em pro-veito próprio, do valor de 2 762 600$80, prove-niente da Assembleia da República;

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185 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

Que o arguido, contando para tanto com acolaboração da agência Turivisa, ao longo dasvezes que reclamou da Assembleia da Repúblicao pagamento das facturas que para o efeito forampor tal agência àquela remetidas e a que acima sealudiu, tivesse actuado astuciosamente, agindocom a intenção de alcançar um enriquecimento,para si e para a agência, de forma livre e cons-ciente, sabendo que a sua conduta era proibidapor lei;

Que o arguido tenha causado qualquer pre-juízo ao Estado, designadamente no montante de3 037 221$00 e que tenha enriquecido, neste, ouem qualquer outro valor, à custa do Estado;

Com base em tal factualidade o tribunal a quodecidiu absolver o arguido da imputação criminal(matéria que o recorrente segregou do presenterecurso) e ainda do pedido cível acoplado.

Sendo em relação a este que a impugnação édirigida, há que ajuizar do merecimento das ra-zões adiantadas pelo órgão recorrido e que levouà absolvição do recorrente.

O referido Tribunal alicerçou a sua decisão daforma que se segue:

«[...] o que importa ter em conta é que nosautos ficaram por demonstrar os elementos ob-jectivos e subjectivos do tipo legal de crime,designadamente o dolo do agente, o prejuízo doEstado e a criação objectiva de um quadro deartifício fraudulento que levasse o Estado a pra-ticar actos que de outra forma não cometeria.

Raciocínio similar se terá de fazer em rela-ção ao pedido cível formulado, na medida emque, tendo-se apurado que a reclamada verba de2 762 600$80 foi afinal integralmente utilizadapelo arguido para o desempenho da sua activi-dade profissional de deputado do Círculo da Emi-gração, não tendo sido usado para outros finsque não esses, nenhum prejuízo advém para oEstado da sua conduta, não havendo, por isso,qualquer base legal para a procedência do pedidoindemnizatório, por ausência dos respectivospressupostos.»

A tese do Ministério Público recorrente as-senta em outra linha de raciocínio.

Com efeito, segundo a motivação, o dever deindemnizar por parte do arguido reside no factode ele «transformar as três requisições de via-

gens permitidas por lei na obtenção de meioseconómicos que lhe permitissem fazer essas ou-tras viagens e pagar os custos inerentes às mes-mas, como hotéis, almoços, jantares, táxis eoutras».

Ou seja, na perspectiva do Ministério Pú-blico recorrente «não houve crime de burla, mashouve indubitavelmente desvio de utilização da-quela verba que teria de ser consumida só emdespesas de transportes», já que o arguido «nãotinha direito a despesas de ajudas de custo e nãopoderia utilizar para esses fins as verbas atri-buídas para transportes nas viagens».

Apreciando

Nos termos do artigo 377.º, n.º 1, do Códigode Processo Penal, a sentença, ainda que abso-lutória, condena o arguido em indemnizaçãocivil, sempre que o pedido respectivo vier a re-velar-se fundado ...

E o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdãon.º 7/99, de 17 de Junho de 1999, publicado noDiário da República, n.º 179, de 3 de Agosto de1999, velo fixar jurisprudência no sentido de quea condenação em indemnização civil, nos termosdo citado artigo 377.º, n.º 1, só poderá verificar--se «se o pedido se fundar em responsabilidadeextracontratual ou aquiliana, com exclusão da res-ponsabilidade contratual».

A solução da questão objecto do recursocentra-se pois em saber se estamos face a casointegrante dessa responsabilidade civil por fac-tos ilícitos, já que é evidente não se verificar hi-pótese de responsabilidade pelo risco, quepossibilitaria também a condenação ao abrigo docitado artigo.

E a resposta a esta questão está naturalmentelimitada pela consideração dos factos fixados naacusação, que constituíram o objecto do pro-cesso crime e simultaneamente fundamento dopedido de indemnização civil conexa com a res-ponsabilidade criminal que aqueles factos impli-cariam, se provados.

Ou seja, só será possível a condenação emindemnização civil nos termos do citado artigo377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal se osfactos integrantes do objecto do processo na suavertente estritamente penal e simultaneamenteconstitutivos da causa de pedir do pedido deindemnização civil estão provados, integrando

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186 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

ilícito criminal, ainda que tenha lugar a absolvi-ção pelo crime, por motivo independente da ve-rificação desse ilícito à data da prática dos factos,como sucede, por exemplo, no caso de amnistia.

Não pode efectivamente a condenação ter porbase outros factos diferentes desse núcleo es-sencial não só à existência do ilícito criminal in-vocado, ou outro para que possa convolar-sedentro dos limites legais, mas também à verifica-ção da única responsabilidade civil que, porforça do princípio da adesão, pode estar emcausa no processo penal, ou seja, a responsabili-dade civil fundada na prática de um crime (artigo71.º do Código de Processo Penal). Sob pena deo arguido poder sofrer uma decisão surpresa, combase em factos diversos dos que constituíam oobjecto da acusação e o núcleo essencial do fun-damento do pedido de indemnização civil. O queseria inadmissível, face à inexistência de meca-nismos aptos a garantir o indispensável contra-ditório, só previstos em processo penal para osaspectos criminais (cfr. artigos 358.º e 359.º doCódigo de Processo Penal).

Assim, o pedido de indemnização civil só podeconsiderar-se «fundado» para os efeitos do dis-posto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Pro-cesso Penal se com suporte bastante nos aludidosfactos simultaneamente essenciais à integraçãodo ilícito criminal e dos pressupostos da respon-sabilidade civil que tem a sua fonte naquele ilí-cito. Só nessa hipótese pode relevar a razão deeconomia processual que fundamenta o preceitodo artigo 377.º, n.º 1, do Código de ProcessoPenal, razão que não pode, naturalmente, preva-lecer face a princípios fundamentais como os re-ferentes às garantias da imutabilidade, como regrageral, do objecto do processo, conexionado como princípio do contraditório.

Ora verifica-se dos autos (1) que o pedido deindemnização civil, no montante de 2 762 600$80,se fundou nos factos imputados na acusaçãocomo praticados pelo arguido com a intenção dese apoderar, em proveito próprio, dos quantita-tivos correspondentes aos custos das viagenssuportados pelo Estado para o exercício das suafunções como deputado pelo círculo da Europa,

mediante a conduta astuciosa aí descrita comosendo levada a cabo em execução de plano urdidoe executado pelo arguido com a colaboração daagência de viagens, resultando de tal conduta oenriquecimento do arguido e o correspondenteprejuízo do Estado no referido montante de2 762 600$80.

E verifica-se do elenco dos factos não prova-dos, constantes da decisão recorrida e acima trans-critos, que não se provaram os factos essenciaisà integração de elementos dos tipos objectivo esubjectivo de ilícito criminal, simultaneamenteconstitutivos dos pressupostas da responsabili-dade civil neste fundada.

Ficou designadamente por provar a referidaintenção de obter enriquecimento à custa do Es-tado e foi considerado provado que todas as quan-tias despendidas pelo arguido com os montantescorrespondentes aos custos das viagens o foramintegralmente «para pagar viagens que efectuouna sua qualidade de deputado às comunidadesportuguesas residentes na Europa e os custosinerentes às mesmas, como hotéis, refeições,táxis», não tendo aquele montante sido «utili-zado para outros fins».

É certo que a lei então em vigor (artigo 13.º,n.º 6, da Lei n.º 3/85, de 13 de Março) previaapenas o direito dos deputados eleitos pelos cír-culos dos emigrantes «à requisição oficial detransporte colectivo até 3 vezes por sessãolegislativa para se deslocarem aos círculos porque tiverem sido eleitos» e não a possibilidadede «transformação» desse direito na utilizaçãodo dinheiro correspondente ao custo oficial dasviagens nas despesas com viagens de custo infe-rior e outras despesas inerentes a essas deslo-cações.

E esses factos apurados, cometidos pelo de-mandado, directamente ou por intermédio da agên-cia de viagens, envolvendo a referida «transfor-mação» do dinheiro correspondente ao custo ofi-cial das viagens, com a inerente «ficção» do en-vio de facturas pela agência à Assembleia daRepública como sendo relativas as requisiçõesoficiais das viagens, implicam evidentes irregula-ridades, sempre potencialmente lesivas do pres-tígio das instituições públicas mesmo se incen-tivadas, como parece, pela omissão do Estadorelativa à atempada legislação atribuindo ajudasde custo para compensação de outras despesas,

(1) Cfr., designadamente, os artigos 1.º e seguintes dopedido de indemnização civil, referidos aos factos descritosna acusação (fls. 1744 a 1745 e 1732 a 1742).

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187 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

para além das correspondentes às viagens, ine-rentes ao cumprimento do referido direito/deverde deputado.

Tais factos têm porém conteúdo e significadobem diversos dos constantes da acusação e pe-dido de indemnização civil, não fundando a im-putada responsabilidade criminal, conformedecisão absolutória já transitada, e, em consequên-cia manifesta, também não sustentando a con-creta responsabilidade civil com aquela conexa,por nela fundada.

E só esta responsabilidade civil foi reclamadae cognoscível nestes autos, não podendo por issonele conhecer-se de quaisquer outras consequên-cias porventura resultantes dos factos diversosprovados.

Impõe-se assim a absolvição do arguido doconcreto pedido de indemnização civil, por res-ponsabilidade extracontratual, formulado nosautos, em virtude de não «se revelar fundado»,uma vez que improcedeu o seu único fundamentoessencial invocado e de conhecimento possívelneste processo os factos integrantes da práticado crime por que vinha acusado.

Em conformidade, julgando-se improcedenteo recurso, confirma-se, nestes termos, o doutoacórdão recorrido, absolvendo o recorrente dopedido de indemnização civil formulado nos au-tos, por improcedência do concreto fundamentoinvocado.

Não são devidas custas.Fixam-se em 18 000$00 os honorários ao Ex.mo

Defensor Oficioso, a suportar pelos Cofres.

Lisboa, 22 de Novembro de 2000.

Gomes Leandro (Relator) — Leonardo Dias —Virgílio Oliveira — Leal Henriques (vencido,consoante declaração de voto que junto).

Declaração de voto:

Daria provimento ao recurso pela seguinteordem de razões:

1.º — Quanto à competência do tribunal:

O legislador processual penal, como constaexpressamente da lei (cfr. artigo71.º do Código

de Processo Penal), definiu-se como defensor doprincípio da adesão, segundo o qual constituiregra a da obrigatoriedade da formulagão e atri-buição da indemnização civil decorrente de umcrime e fundada nele no processo penal.

E fez tal opção por entender, com base naexperiência da prática dos tribunais, que o pro-cedimento penal, obrigatório para o conheci-mento dos feitos criminais, estaria à altura defornecer ao ressarcimento dos danos ocasiona-dos por tais ílicitos a mesma garantia que pode-ria ser dada pelo procedimento civil, com avantagem de permitir a poupança de custos, pro-cessuais e outros, que um duplo accionamentopoderia acarretar.

Esta realidade tem que ter implicações sériase definitivas em todo o percurso do processopenal onde foi enxertado pedido de indemniza-ção civil; ou seja, não pode, sem mais e impune-mente, abandonar-se ou ter que se abandonar ummeio que inicialmente foi considerado idóneo parasatisfazer tal desiderato, só porque o TribunalCriminal ajuizou negativamente, em julgamento,os pressupostos de que dependia a aplicação aoarguido de uma censura penal.

Foi por isso que o mesmo legislador teve ocuidado de escolher as palavras que a propósitoditou para a lei, consagrando no artigo 71.º a ex-pressão «pedido de indemnização civil fundadona prática de um crime» e não qualquer outra, edizendo no artigo 377.º que «a sentença, em casode absolvição, condenará no pedido de indemni-zação civil», o que obviamente tem que ter umsentido e objectivo determinados.

E isto traz à baila necessariamente o assentode 17 de Junho de 1999, processo n.º 993/98,que veio estabelecer doutrina segundo a qual odisposto em tal preceito, dito artigo 377.º, não serefere à indemnização assente em responsabili-dade meramente contratual.

Mas não para lhe dar o alcance que, salvo odevido respeito, sem fundamento algum, certosoperadores jurídicos teimam em lhe atribuir.

E que, segundo os melhores princípios dahermenêutica jurídica, o que esse assento pre-tende fixar é tão-somente que, morto o proce-dimento criminal, nunca se poderá esperar queele estabeleça qualquer indemnizagão civil, quetenha por base exclusivamente responsabilidadecontratual.

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188 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

Só por isso, e não mais do que isso, como, porexemplo, parece sufragar o acórdão vencedor.

Nem poderia ser de outro jeito.E nem se argumente com aquilo a que se cha-

mava a extinção da causa de pedir, que seria ocrime, pois jamais se pode afirmar que o proce-dimento criminal ou o pedido cível nele enxerta-do tenham tal causa petendi.

A responsabilidade civil assim desencadeadanunca poderia ser prática e consequente conde-nação pelo cometimento de um crime.

A lei é clara a esse propósito, falando tão-so-mente em indemnizagão civil fundada na práticade um crime, o que é completamente diferente.

Isto é: ao denunciar-se um crime gerou-se odireito de pedir o ressarcimento dos danos que asua prática terá causado.

Por isso o artigo 377.º do Código de ProcessoPenal tem que ser «visto» e «interpretado» deacordo com os dizeres do artigo 71.º do mesmoCódigo, para que o sistema se não quebre.

A menos que se queira retirar ao falado ar-tigo 377.º todo o seu conteúdo, o que acontecerásempre que, absolvido alguém da prática de umcrime, se ponha desde logo de parte qualquerhipótese de indemnização no processo penal, sóporque esse crime se não provou.

Isso seria até ignorar que o legislador soubedistinguir bem as responsabilidades, aceitandosem margem para dúvidas aquilo que é aquisiçãofirme da doutrina e da jurisprudência: o que otribunal não cuidou provado como crime podeperfeitamente valer para a caracterização da res-ponsabilidade civil, aproveitando-se todo oacervo probatório que foi recolhido e poupando--se assim os litigantes a uma outra lide, dispen-diosa e porventura menos concludente.

Aliás, muito sintomaticamente, o legislador, eno que respeita à fase da sentença, só permite adedução do pedido em separado no foro cível, nocaso previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 71.º eno artigo 82.º, n.º 3, ambos do Código de Pro-cesso Penal e para o qual aquele remete.

Ora, na tese vencedora, pressupõe-se que estaexcepção seja alarga da para abranger também assituações em que o arguido é absolvido do proce-dimento criminal, o que parece contrariar a filo-sofia que, sobre a matéria, o legislador quis im-primir ao Código.

Daí que, em meu juízo, nada impeça — antestudo aconselha — que o processo penal sirva,como no caso dos autos, para satisfazer as exi-gências da responsabilidade civil.

2.º — Quanto à questão de fundo:

Vencida a questão da competência, conhece-ria de fundo, com base nos argumentos expen-didos no projecto de acórdão que saiu vencido eque são do seguinte teor:

«De acordo com estudos de Almeida e Costa,há responsabilidade civil ‘quando uma pessoadeve reparar um dano sofrido por outro’ (Di-reito das Obrigacões, págs. 433 a 435).

A responsabilidade civil, de harmonia com umadas classificações aceites pela doutrina, pode sercontratual ou obrigacional (a que decorre da vio-lação de um direito de crédito ou de uma obriga-ção) ou extracontratual ou delitual (a que temcomo fonte qualquer outro ilícito de naturezacivil).

A primeira recebe consagração legal atravésdos artigos 798.º e seguintes, enquanto que a se-gunda tem a cobertura dos artigos 483.º e seguin-tes, acudindo ainda, e em relação a ambas e quantoao dever de indemnizar, as regras ínsitas nos ar-tigos 562.º e seguintes, disposições todas doCódigo Civil.

Porque só esta última (a extracontratual) nosinteressa para a solução do problema em apreço,apenas a ela nos vamos referir aqui, e necessa-riamente de forma breve.

A responsabilidade por facto ilícito apoia-sefundamentalmente no preceito do artigo 483.º doCódigo Civil, no qual se estabelece o princípiosegundo o qual a violação, por dolo ou meraculpa, do ‘direito de outrem ou qualquer dis-posição legal destinada a proteger interessesalheios’, gera a obrigação de indemnizar o lesado(n.º 1), só existindo ‘obrigação de indemnizarindependentemente desculpa nos casos especifi-cados na lei’ (n.º 2).

Assim se textuando, temos que os pressu-postos essenciais da responsabilidade civil porfacto ilícito são os seguintes:

a) O facto voluntário do agente, que se tra-duza em acção ou omissão;

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189 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

b) A ilicitude desse facto, isto é, a violaçãode um qualquer dever jurídico que proíbaque se agridam direitos subjectivos alheios;

c) O dano ou prejuízo, consubstanciadonuma lesão de bens jurídicos alheios;

d) O nexo de causalidade, seja a ligação dofacto ao prejuízo, por forma a poder afir-mar-se que o dano resultou directamentedo facto do agente.

Feito este resumido e linear excurso pela ma-téria — pois não se crê que seja necessário irmais longe —, há que descer ao caso concreto.

Como a seu tempo se relatou, deu o tribunala quo por provado que o arguido Alves de Fi-gueiredo, deputado pelo Círculo da Emigração,nas circunstâncias de modo, tempo e lugar assina-ladas nos autos, e devidamente credenciado pelaAssembleia da República, realizou diversasdeslocações ao exterior, pelo que, para o efeito,lhe foi fornecida a respectiva documentação a fimde que pudesse, em agência do seu agrado, obteros bilhetes de transporte necessário para o efeito.

E igualmente deu como provado que o refe-rido arguido, porque as requisições fornecidaspela Assembleia da República apenas se repor-tavam ao custeio dos bilhetes de avião, decidiu,após troca de impressões com outros deputa-dos, transformar em numerário as três requisi-ções de transporte anualmente permitidas, porforma a custear também outras despesas aindaque relacionadas com tais deslocações, como se-jam as inerentes a hotéis, almoços, jantares, táxise outras, o que fez através de um sistema deconta corrente com a sua agência, Turivisa —Agência de Viagens, L.da, conta corrente essa queera «alimentada» pelos montantes das ditas re-quisições de transporte.

Eis, pois, através destas condutas, consu-mado o facto voluntário do agente, primeiro re-quisito da responsabilidade civil por facto ilícito.

E que esse facto era ilícito também está pro-vado, como está que o arguido conhecia bem essailicitude.

Na verdade sabia ele que as requisições paraas deslocações ao exterior a que tinha direito naqualidade de deputado pelo Círculo da Emigra-ção só comportavam, bem ou mal, o pagamentodos transportes, tanto assim que se insurgiu con-tra o sistema, pugnando junto do seu grupo par-

lamentar e perante o próprio Presidente da As-sembleia da República para que, em tais casos,fossem atribuídas ajudas de custo para suportede tais despesas relacionadas com as deslocações.

Por conseguinte, a utilização de dinheiros des-tinados a transportes para pagamento de outrasdespesas que não aquelas constitui facto ilícito,por violadora do dever de não utilizar dinheirospúblicos senão nos casos e para os fins legal-mente permitidos.

E que o arguido Alves de Figueiredo agiu comculpa no caso concreto também está assente naprova dos autos.

Com efeito, ficou provado que o arguido, para«tornear» a inexistência de ajudas de custo, acor-dou com a sua agência de viagens abrir umaconta corrente entre ambos, na qual seriam «in-jectados» quantitativos vários titulados pelas re-quisições de transporte que lhe foram fornecidaspela Assembleia da República, creditando-se nes-sa conta «cerca de 91% das despesas de trans-porte aéreo do arguido Figueiredo que viessem aser ‘facturadas’ à Assembleia da República [...]revertendo a favor da agência, a título comissão,o valor remanescente, correspondente a cercade 9% do valor facturado, lançando a débito damencionada conta corrente, quer entregas direc-tas em dinheiro ao arguido, quer os pagamentosdecorrentes de futuras prestações de serviços quelhe viesse a efectuar».

Como do mesmo modo se provou que o arodo«recebeu [...] os respectivos quantitativos e utili-zou-os para pagar, não as concretas e requisi-tadas viagens, que pagas pela Assembleia daRepública nunca foram por si efectuadas, massim para no exercício das suas funções de depu-tado e, com o objectivo de contactar as comuni-dades portuguesas aí residentes, visitar os se-guintes países [...]».

Ora a culpa reside exactamente nisto: desvioconsciente e voluntário para fins diversos doslegalmente consentidos de quantitativos forne-cidos exclusivamente para o pagamento de trans-portes aéreos.

Igualmente se tem por verificado o requisitodo dano ou prejuízo.

Sendo ele expresso na lesão de bens jurídicosalheios, não podem restar dúvidas, perante a pro-va produzida nos autos, que, na situação em aná-lise, essa lesão existiu.

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190 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

Não se ignora que se as verbas constantes dasrequisições de transporte fornecidas ao arguidopela Assembleia da República fossem utilizadasno integral respeito da lei, o Estado sempre abri-ria mão dos quantitativos nelas mencionados e,portanto, a despesa não aumentaria.

Mas, salvo o devido respeito, tal raciocínio éincorrecto e assenta sobretudo num princípioerrado.

É que a questão tem que ser colocada entre odinheiro que a Assembleia da República dispo-nibilizou ao arguido para determinado fim e ouso que se fez dele.

Assim, será gasto excessivo, e por conse-guinte dano, aquele dispêndio que for feito paraalém do acto a que estava destinado.

Ou seja: ao usar-se dinheiros públicos em gas-tos não cobertos por lei ou instrumento autori-zante, está-se a prejudicar o Estado no montanteequivalente, como foi o caso.

E nem se argumente com as passagens doacórdão recorrido em que se afirma que o arguidoapenas utilizou as verbas concedidas pela As-sembleia da República «para o desempenho dasua actividade profissional de deputado do Cír-

culo da Emigração» para daí se extrair que de talconduta não adveio «nenhum prejuízo [...] parao Estado», já que isso são exclusivamente con-clusões jurídicas que não integram obviamentematéria de facto a impor-se a este Tribunal derecurso.

Quanto ao nexo de causalidade não há a me-nor dúvida de que o prejuízo havido pelo Estadona situação concreta resultou directamente daconduta do arguido Alves de Figueiredo ao utili-zar, pela forma antes descrita, os dinheiros quelhe foram disponibilizados exclusivamente parapagar bilhetes de avião em deslocações ao exterior.

Donde que se tenham por preenchidos todosos requisitos ou pressupostos legais da respon-sabilidade civil por facto ilícito, o que constitui oarguido no dever de indemnizar .

Os autos, contudo, não habilitam este Su-premo Tribunal de Justiça a quantificar, desdejá, o montante dos prejuízos causados ao Estadopelas condutas do arguido, pelo que esse mon-tante terá que ser fixado ulteriormente e em outrasede, ou seja em execução de sentença.

Leal-Henriques.

I — O presente acórdão parte dos seguintes pressupostos, em nosso entender:

1.º — O artigo 129.º do Código Penal de 1995, com a epígrafe «Responsabilidade civil emergentede crime» ao estatuir que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela leicivil, pretende significar que a lei civil regula essa indemnização «quantitativamente» e nos seus«pressupostos».

2.º — As questões processuais, por seu turno, são reguladas no Código de Processo Penal,nomeadamente nos seus artigos 71.º a 84.º

O artigo 71.º do Código de Processo Penal, à semelhança do que acontece como artigo 129.º doCódigo Penal de 1995, refere-se ao «pedido de indemnização fundada na prática de um crime», sendocerto que o n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal estatui que a sentença, ainda queabsolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a reve-lar-se fundado (cfr., também, o artigo 84.º deste último diploma).

Absolvido, o arguido da prática do crime, restará a possibilidade de ter existido, residualmente,ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco.

Por acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/99, de 17 de Junho de 1999, publicado no Diárioda República, I Série-A, n.º 179, de 3 de Agosto de 1999, fixou-se jurisprudência, a este propósito, noseguinte sentido:

Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamentoum facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Códigode Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado emindemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana,com exclusão da responsabilidade civil contratual.

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191 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

O artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal tem em vista tão-somente as situações em que,apesar de o arguido ser absolvido pelos factos que constituem ilícito criminal, existam factos que,muito embora insuficientes para a condenação pelo crime objecto do processo, determinando aabsolvição deste, têm de se mostrar suficientes para o preenchimento dos pressupostos da responsa-bilidade civil extracontratual, única que, por força do princípio da adesão, pode estar em causa noprocesso penal, que constituam responsabilidade objectiva nos termos do artigo 483.º, n.º 2, doCódigo Civil.

De realçar, no entanto, que não basta que se provem factos que consubstanciem uma obrigaçãode natureza civil, é necessário que se esteja perante um ilícito civil que produza o dever de indemnizar,nos termos do artigo 483.º do Código Civil.

O presente acórdão é claro a este propósito, quando nele se escreve, e citamos:

Assim, o pedido de indemnização civil só pode considerar-se «fundado» para osefeitos do disposto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal se com suportebastante nos aludidos factos simultaneamente essenciais à integração do ilícito criminale dos pressupostos da responsabilidade civil que tem a sua fonte naquele ilícito. Sónessa hipótese pode relevar a razão de economia processual que fundamenta o preceitodo artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, razão que não pode, naturalmente,prevalecer face a princípios fundamentais como os referentes às garantias da imu-tabilidade, como regra geral, do objecto do processo, conexionado com o princípio docontraditório.

II — A situação não é pacífica na nossa jurisprudência sobre esta matéria. O facto de o SupremoTribunal de Justiça conhecer, como conheceu, o presente recurso, corresponde, por si, a uma dasposições que sobre esta matéria se acha dividido o Supremo Tribunal de Justiça. A este propósito,cfr. o voto de vencido proferido no acórdão estampado a fls. 198 na Colectânea de Jurisprudência —Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII, tomo III.

(P. B.)

Juiz — Impedimento— Poderes de cognição do SupremoTribunal de Justiça — Audiência de julgamento — Provatestemunhal — Prova por reconhecimento — Tráfico deestupefaciente — Tráfico de menor gravidade

I — Para que funcione o impedimento constante do artigo 40.º do Código de Pro-cesso Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, e tal comodecorre do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/98, de 18 de Fevereiro de 1998,publicado no Diário da República, I Série-A, de 20 de Março de 1998, torna-se necessárioque o juiz que intervenha no julgamento haja intervindo no processo numa dupla dimen-são: que tenha decretado e, posteriormente, mantido a prisão preventiva.

II — Tendo um dos vogais do colectivo presidido, como juiz de turno, ao primeirointerrogatório do arguido, validado a sua detenção e decretado a sua prisão preventiva,e somente voltado a ter intervenção no processo na audiência de julgamento, tal impedi-mento não se verifica, não sendo pois aceitável a ideia de que a intervenção esporádicae perfunctória do juiz de turno na fase de inquérito tem a virtualidade de comprometer,em grau inaceitável, a independência e imparcialidade do juiz na fase de julgamento.

III — Não tendo o arguido atempadamente reagido relativamente a um despachodo presidente do colectivo que entendeu não ter qualquer utilidade a inquirição de

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192 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

determinada testemunha prescindida pelo Ministério Público, ou o reconhecimento doarguido em julgamento, não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer agora destasquestões, por os seus poderes cognitivos estarem legalmente confinados, em regra, aoreexame da matéria de direito.

IV — Não pode considerar-se como consideravelmente diminuída a ilicitude docomportamento de quem é detido na posse de 1,430 g de heroína, acondicionada em20 embalagens, e de 1,899 g de cocaína, dividida em 24 embalagens, e que conhecendoa natureza estupefaciente de tais produtos os destinava à cedência a terceiros, mediantecontrapartida monetária.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 23 de Novembro de 2000Processo n.º 2715/2000

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Na 6.ª Vara Criminal de Lisboa, processon.º 367/99, o arguido José António CarvalhoEduardo foi condenado como autor material deum crime de tráfico de estupefacientes, previstoe punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lein.º 15/93, na pena de 5 anos de prisão.

Inconformado, o arguido interpôs recurso parao Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo, emsíntese, a sua motivação:

1) Foram violadas as regras relativas ao modode determinar a composição do tribunal de julga-mento, pois fez parte do colectivo o mesmo juizque efectuou o primeiro interrogatório e ordenoua prisão preventiva, havendo nulidade insanávelnos termos dos artigos 40.º, 41.º, n.º 3, e 119.º,alínea a), do Código de Processo Penal, bem comohouve violação dos artigos 32.º, n.º 5, da Consti-tuição da República Portuguesa e 6.º, n.º 1, daConvenção Europeia dos Direitos do Homem.

2) Foram violados os artigos 147.º e 355.º doCódigo de Processo Penal e 32.º, n.os 5 e 6, daConstituição da República Portuguesa, por nãoter sido feito qualquer reconhecimento do arguido.

3) Foram violados os artigos 327.º do Códigode Processo Penal e 32.º, n.os 1, 2 e 5, da Consti-tuição da República Portuguesa, por ter sido dis-pensada a audição de uma terceira testemunha.

4) A factualidade dos autos permite concluirum pequeno tráfico do artigo 25.º, alínea a), daLei n.º 15/93.

5) Violaram-se os artigos 70.º e 71.º do CódigoPenal por a pena ser excessiva, desproporcionale inadequada, justificando-se a suspensão damesma, acompanhada, nos termos do artigo 53.ºdo Código Penal, de regime de prova.

Pediu que se declarasse inválido o julgamentocom a nulidade do acórdão ou então alteração daqualificação jurídica para o artigo 25.º, alínea a),supracitado, reduzindo-se a pena e suspen-dendo-se.

II

O venerando Tribunal da Relação de Lisboa,após uma análise minuciosa de todas as questõessuscitadas e das pretensões apresentadas, as quaisteve por improcedentes, decidiu, por acórdão de12 de Julho de 2000, negar provimento ao recurso.

III

Ainda inconformado, o arguido interpôs opresente recurso, em cuja motivação apresentaas seguintes conclusões:

1 — Que o juiz que no inquérito tenha orde-nado a prisão preventiva do arguido, e que pos-teriormente a tenha mantido, está impedido defazer o julgamento, está previsto no artigo 40.ºdo Código de Processo Penal;

2 — Fez parte do tribunal colectivo que jul-gou o arguido em 1.ª instância o mesmo M.mo

Juiz que efectuou o primeiro interrogatório dearguido preso e ordenou e manteve a prisão pre-ventiva;

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193 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

3 — A ratio do referido preceito é a de que ojuízo de ilicitude e culpa que esteve na base dadecisão que ordenou a prisão preventiva pelojuiz do inquérito não seja «transportado» para ojulgamento;

4 — Foram violadas, nos presentes autos, asregras legais relativas ao modo de determinar acomposição do tribunal de julgamento, o queconsubstancia uma nulidade insanável nos ter-mos dos artigos 40.º, 41.º, n.º 3, e 119.º, alínea a),ambos do Código de Processo Penal, mais seviolando o estabelecido no artigo 32.º, n.º 5, daConstituição da República Portuguesa e artigo6.º, § 1.º, da Convenção Europeia dos Direitos doHomem, que contêm o princípio da imparciali-dade da decisão;

5 — O artigo 40.º do Código de Processo Pe-nal deve ser interpretado e aplicado no sentidodo juiz de inquérito, que aplicou a medida deprisão preventiva e que até à realização do julga-mento não a revogou, estava impedido de fazer ojulgamento, pois, caso contrário, violar-se-á oprincípio da presunção de inocência do arguido ea estrutura acusatória do processo estabelecidosno artigo 32.º, n.os 2 e 5, da Constituição da Re-pública Portuguesa e artigo 6.º, § 1.º, da Conven-ção Europeia dos Direitos do Homem;

6 — Caso contrário, o arguido apresentar-se-áem julgamento a ter que ilidir um juízo de culpaque sob si impende, anteriormente formado, oque contraria os referidos princípios com digni-dade e, aliás, assento, jurídico-constitucional;

7 — A questão do juiz do inquérito, que foitambém o do julgamento, ter ordenado a prisãopreventiva do arguido e não a ter revogado, nemsequer foi apreciada pelo tribunal a quo, nãoobstante tal resultar de fls. 11 e 89 dos autos(mencionados na decisão), existindo uma contra-dição insanável da fundamentação [artigo 410.º,n.º 2, alínea b), ex vi do artigo 434.º, 1.ª parte, doCódigo de Processo Penal];

8 — Efectivamente, o tribunal a quo invo-cando fls. 11 e 89 dos autos ignora a prisão pre-ventiva decretada pelo juiz de inquérito, maistarde transformado em julgador;

9 — De qualquer modo, a decisão contendotal vício é recorrível para este Supremo Tribunal,dado consubstanciar tal impedimento uma nuli-dade insanável (artigo 410.º, n.º 3, ex vi do artigo434.º, 1.ª parte, do Código de Processo Penal);

10 — Vem o arguido condenado na prática decrime de tráfico de estupefacientes sem que qual-quer das duas únicas testemunhas da acusação otivesse identificado e reconhecido em julga-mento como sendo o seu autor;

11 — Resultou desrespeitado o contido nosartigos 147.º e 355.º do Código de Processo Pe-nal e os princípios da presunção de inocência, doacusatório, do contraditório e da defesa plasma-dos nos n.os 2, 5 e 6 do artigo 32.º da Constitui-ção da República Portuguesa por não ter sidofeito qualquer reconhecimento do arguido e porterem sido tomadas em consideração na forma-ção da convicção do Tribunal os depoimentosdas referidas duas testemunhas da acusação;

12 — Os artigos 147.º e 355.º do Código deProcesso Penal deviam ter sido interpretados nosentido de ser exigível o reconhecimento presen-cial do arguido pelas testemunhas da acusação;

13 — O tribunal a quo ao afirmar que o reco-nhecimento do arguido foi efectuado no julga-mento conforme resulta da acta de fls. 90 e 91 eque a falta do reconhecimento não foi alegada emtempo pela defesa, resultando o contrário da re-ferida acta, revela uma contradição insanável nasua fundamentação [artigo 410.º, n.º 2, alínea b),ex vi do artigo 434.º, 1.ª parte, do Código deProcesso Penal].

14 — Por outro lado, tendo sido dispensada aaudição da terceira testemunha de acusação queno dizer da primeira testemunha «na detençãoefectuada ao arguido foi a que foi na frente» comoresulta de fls. 90, foram desrespeitados os prin-cípios da descoberta da verdade, do contradi-tório, do acusatório e da defesa previstos no ar-tigo 327.º do Código de Processo Penal, resul-tando do acórdão recorrido uma contradiçãoinsanável da sua fundamentação [artigo 410.º,n.º 2, alínea b), ex vi do artigo 434.º, 1.ª parte, doCódigo de Processo Penal];

15 — Dado que por regra de experiência seriaesta a testemunha que em melhor situação seencontraria para esclarecer o tribunal a quo so-bre quem atirara o produto apreendido para ochão;

16 — Não teve o tribunal a quo em conta ascircunstâncias privilegiantes resultantes dos au-tos que fazem subsumir a conduta do arguido noprevisto na alínea a) do artigo 25.º do Decreto--Lei n.º 15/93;

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194 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

17 — Efectivamente, a factualidade dos autospermite concluir que se está perante uma con-duta traduzida num pequeno tráfico de ilicitudeconsideravelmente menos grave do que aquela aque se refere o artigo 21.º do mencionado di-ploma, devendo a mesma ser punida, não poreste preceito mas pela mencionada alínea a) doartigo 25.º do citado diploma;

18 — Na verdade, no arguido não foi encon-trado qualquer instrumento (navalha, tesoura,plásticos) ou dinheiro (mesmo jogado para osolo) que são objectos utilizados por traficantede droga;

19 — Nem resulta dos autos que o arguidofosse conhecido na Curraleira como vendedor,nem que qualquer outra vez tenha sido conde-nado em crime de tráfico de estupefacientes,sendo, aliás, primário;

20 — Resulta também dos autos que vivecom a mãe, é de modesta condição económica esocial e que auferia diariamente 2 a 3 contos doexercício da sua actividade profissional, traba-lhando à data dos factos;

21 — Tais circunstâncias afastam o elementode habitualidade da actividade, excluindo que oarguido se dedique usualmente ao tráfico de es-tupefacientes, sendo tudo mais consentâneo comuma situação de toxicodependência como é a doarguido do que com a de traficante;

22 — Condenar o arguido a 5 anos de prisãoefectiva, quando dos autos resulta diminuída ailicitude e culpa pelas circunstâncias privile-giantes apontadas, bem como dada à ausência deantecedentes criminais, é manifestamente exces-sivo, desproporcional e inadequado;

23 — Levando-se o fim punitivo muito alémdo que é justo e necessário, sem que a necessi-dade de prevenção a tanto obrigue e ignorando anecessidade de aproveitamento e reinserção so-cial do arguido, assim se violando o disposto nosartigos 70.º e 71.º do Código Penal;

24 — Aliás, atendendo à sua inserção e acom-panhamento familiar, justificar-se-ia plenamentea suspensão da pena, acompanhada, nos termosdo artigo 53.º do Código Penal, de regime deprova assente em plano individual de recupera-ção, a elaborar e executar pelos serviços do IRS,com homologação e sob a orientação do tribunala quo.

Termos em que deve ser declarado inválido ojulgamento com a consequente nulidade doacórdão recorrido ou, assim não se entendendo,ser alterada a qualificação jurídica efectuada, pas-sando a conduta a ser punida pelo alínea a) doartigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, sendo dequalquer modo de reduzir a pena de prisão apli-cada a uma medida justa e proporcional — sus-pendendo-se a sua aplicação com regime de prova.

IV

Na sua douta resposta, o Ex.mo Magistrado doMinistério Público pondera e conclui:

1. Retoma o recorrente toda a argumentaçãoque esgrimiu ingloriamente no recurso da decisãoda 1.ª instância.

Tal insistência não passa disso mesmo — merarepetição do já dito. O recorrente reincide na fra-gilidade e improcedência da sua primeira minuta,não logrando, assim, causar o mínimo abalo aodouto acórdão recorrido, que é exemplar em con-cisão, em rigor técnico e em sentido de justiça ede equilíbrio na aplicação da lei.

2. As quatro questões colocadas pelo recor-rente mostram-se já respondidas de modo claro eeficiente, ponto por ponto, na contramotivaçãodo Ministério Público, a fls. 134-137.

Pouparemos, por isso, V. Ex.ª ao fastídio deinúteis e repetitivos arrazoados. O que teríamosa argumentar está já dito na referida peça donosso colega da 6.ª Vara Criminal. Nada temos,da nossa lavra, a acrescentar, cientes de que to-dos os argumentos expendidos pelo recorrentena sua motivação se encontram plenamente re-batidos em tal peça.

Tomamos, assim, a liberdade de para ela re-meter, fazendo nossos os respectivos fundamen-tos e conclusões.

3. Termos em que deve ser negado provi-mento ao recurso.

V

Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador--Geral Adjunto, na vista que teve do processo,nada opôs ao conhecimento do recurso.

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195 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

Assim, colhidos os vistos, procedeu-se à au-diência, com observância do formalismo legal.

Cumpre decidir.

Na 1.ª instância deram-se como provados osseguintes factos:

1 — No dia 8 de Julho de 1999, pelas 20.15horas, o arguido encontrava-se no largo existentena Quinta da Curraleira, em Lisboa, e logo que seapercebeu da presença dos agentes da PSP nolocal lançou para o chão um saco em plásticoonde estavam acondicionadas 20 embalagens con-tendo heroína, com o peso líquido de 1,430 g, e24 embalagens contendo cocaína, com o pesolíquido de 1,899 g;

2 — O arguido conhecia a natureza e as carac-terísticas estupefacientes daqueles produtos, quelhe pertenciam e destinava-os à cedência a tercei-ros mediante contrapartida monetária;

3 — Agiu deliberada, livre e conscientemente;4 — Sabia que a detenção e a venda de heroína

e de cocaína lhe eram proibidas;5 — O arguido é toxicodependente, consumi-

dor de cocaína, produto que usualmente adquiriana Curraleira;

6 — O arguido vive com a mãe;7 — Tem o 2.º ano de escolaridade;8 — Auferia diariamente 2 a 3 contos no exer-

cício da sua actividade profissional;9 — Não tem antecedentes criminais;10 — Apresenta modesta condição social e

precária situação económica.

VI

Esta matéria de facto tida por provada foi, naíntegra, confirmada pelo douto acórdão ora re-corrido.

VII

Apreciando:O recorrente, neste recurso, renova e reitera

todos os argumentos que utilizou na impugnaçãoda decisão da 1.ª instância, no recurso que delainterpôs para o Tribunal da Relação e que poreste venerando Tribunal foram rechaçados:

Existe mesmo coincidência e reprodução dasconclusões deste recurso com aquelas que foramapresentadas no recurso interposto para o Tri-

bunal da Relação de Lisboa (12 são meras repro-duções; as restantes são simples desenvolvimen-tos ou desdobramentos das anteriores), sendomesmo idênticos os pedidos com que terminamas respectivas motivações.

Ora, não se pode olvidar que o presente re-curso tem a natureza de um específico recursode revista, onde a decisão impugnada é o acórdãoda Relação (artigo 721.º do Código de ProcessoCivil) e jamais a decisão (final) do tribunal de1.ª instância, que por tal acórdão foi apreciado econfirmado em via de recurso [artigo 691.º doCódigo Processo Civil, conjugado com o dis-posto nos artigos 4.º, 400.º, 427.º e 432.º, alí-nea b), todos do Código de Processo Penal].

Acontece, porém, que o recorrente não im-pugna, de forma específica, os fundamentosdecisórios do acórdão da Relação, ora recorrido.

Apesar disso, vamo-nos debruçar sobre ospontos de discordância enunciados nas conclu-sões da motivação do recurso.

A) Nulidade insanável por violação do dis-posto no artigo 40.º do Código de ProcessoPenal.

Neste recurso e neste ponto está em causa odisposto no artigo 40.º do Código de ProcessoPenal que era do seguinte teor:

«Nenhum juiz pode intervir em recurso oupedido de revisão relativos a uma decisão quetiver proferido ou em que tiver participado, ouno julgamento de um processo a cujo debateinstrutório tiver presidido.»

Actualmente (e por força da alteração ope-rada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), o men-cionado artigo 40.º apresenta idêntica redacção,apenas com o acrescento «ou em que tiver apli-cado e posteriormente mantido a prisão preven-tiva do arguido».

No domínio da primitiva redacção, o acórdãode Tribunal Constitucional n.º 935/96, de 10 deJulho de 1996, publicado no Diário da Repú-blica, II Série, de 11 de Dezembro do mesmoano, julgou inconstitucional a norma constantedo artigo 40.º do Código de Processo Penal naparte em que permite a intervenção no julga-mento do juiz, que na fase do inquérito decretoue posteriormente manteve a prisão preventiva

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196 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

do arguido, por violação do artigo 32.º, n.º 5, daConstituição.

Por sua vez, o acórdão n.º 186/98 do TribunalConstitucional, de 18 de Fevereiro de 1998, pu-blicado no Diário da República, I Série-A, de 20de Março de 1998, tendo por base o referidoacórdão n.º 935/96 e dois outros acórdãos, nomesmo sentido, declarou, com força obrigatóriageral, a inconstitucionalidade da norma cons-tante do artigo 40.º do Código de Processo Penal,na parte em que permite a intervenção no julga-mento do juiz que, na fase de inquérito, decretoue posteriormente manteve a prisão preventivado arguido, por violação do artigo 32.º, n.º 5, daConstituição da República Portuguesa.

No caso sub judice, o juiz que interveio nojulgamento não interveio no processo, nesta dupladimensão: aconteceu que um dos juízes que in-terveio, como adjunto, na composição do colec-tivo (o Ex.mo Dr. Francisco António de FigueiredoCaramelo), presidiu, sendo juiz de turno, ao pri-meiro interrogatório do arguido, aquando da suadetenção, e, findo o interrogatório, validou adetenção, decretando a sua prisão preventiva(cfr. fls. 11, 13 e 90) e somente voltou a ter inter-venção no processo na audiência de julgamento(cfr. fls.47 — reexame — e fls.68 — saneamento).

Assim, por força do disposto no artigo 40.ºdo Código de Processo Penal (com a nova re-dacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 deAgosto, na sequência eventualmente da jurispru-dência obrigatória adoptada pelo Tribunal Cons-titucional vide acórdão supramencionado), nãoestava aquele magistrado impedido de intervir naaudiência de julgamento.

Acresce que a interpretação do artigo 40.º doCódigo de Processo Penal (nova redacção) pre-conizada pelo recorrente de que o «juiz de in-quérito, que aplicou a medida de prisão preven-tiva e que até à realização do julgamento não arevogou», está impedido de fazer o julgamento,não tem, salvo o devido respeito, o mínimo cabi-mento nem no texto nem no espírito do preceitoem causa, tanto mais que o M.mo Juiz que decre-tou a prisão preventiva não era o juiz titular doprocesso.

Neste ponto, assume plena oportunidade oexpendido no aresto impugnado.

Quanto à questão do impedimento de um juizpara o julgamento, resulta dos autos que de facto

que o juiz do primeiro interrogatório (fls. 11)interveio no julgamento como juiz adjunto (fls. 89).

Há no entanto que distinguir entre impedi-mento por participação em processo (artigo 40.ºdo Código de Processo Penal) e recusas e es-cusas (artigo 43.º do Código de Processo Penal).

E na esteira de Prof. Doutor Figueiredo Diasentendemos que «a prática pelo juiz de instruçãode actos isolados não deve constituir causa deimpedimento, mas tão-só [...] motivo de even-tual suspeição».

Ora, ninguém requereu a suspeição do M.mo

Juiz Adjunto, não tendo este magistrado pedidoescusa, nos termos do artigo 43.º, n.º 4, do Có-digo de Processo Penal, pelo que, como interveioem acto isolado, não tendo posteriormente man-tido a prisão preventiva, nenhum impedimentoresultava nos termos do artigo 40.º do Código deProcesso Penal.

Improcedem pois as alegadas nulidades e vio-lações legais, designadamente da Constituição daRepública Portuguesa e Convenção Europeia dosDireitos do Homem.

Pode mesmo deduzir-se que esta intervençãoesporádica, perfunctória, do juiz de turno na fasede inquérito não teve, in casu, a virtualidade decomprometer, em grau inaceitável, a sua inde-pendência e imparcialidade na fase do julga-mento, sendo mesmo sintomático que os interes-sados tenham silenciado o assunto quando sou-beram da composição do colectivo de juízes edurante o decurso da audiência (cfr. acórdão doSupremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembrode 1999, processo n.º 36/99).

Mostra-se, deste modo, inverificada a nuli-dade arguida pelo recorrente [artigo 119.º, alí-nea a), conjugado com o artigo 40.º, ambos doCódigo de Processo Penal].

B) A falta de reconhecimento do arguido e adispensa de audição de uma testemunha.

No que se reporta a esta questão, o acórdãorecorrido teceu as seguintes considerações, im-pressivas por doutos e pertinentes:

«Quanto à questão da falta do reconheci-mento do arguido, como resulta da acta a fls. 91,o reconhecimento do arguido pelas testemunhas

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197 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

que procederam à sua detenção tomava a diligên-cia desnecessária.

O mesmo se diga em relação à testemunhaprescindida, a qual sempre poderia ter sido apre-sentada com o rol da defesa, no prazo legal, peloque não se verificam as violações alegadas dosartigos 147.º (o reconhecimento só se efectuaquando necessário), 355.º (as provas que forma-ram a convicção foram todas produzidas e exa-minadas em audiência), 327.º (as questões surgidasforam decididas após ouvido o mandatário doarguido, conforme acta de fls.90), pelo que nãoresultam as alegadas violações legais, designa-damente da Constituição da República Portu-guesa.

De qualquer modo, o despacho que decidiuestas questões foi proferido na audiência de 7 deNovembro de 2000 e a verdade é que o arguidonão arguiu atempadamente qualquer eventualirregularidade, nos termos do artigo 123.º do Có-digo de Processo Penal.»

O arguido não arguiu atempadamente qual-quer eventual irregularidade, nem impugnouatempadamente (acrescentamos) o despacho pro-ferido, sobre a matéria, na audiência de julga-mento (sessão de 7 de Fevereiro de 2000), o qual,pela sua acutilância e interesse, se transcreve:

— Tendo o Ministério Público prescindidode uma testemunha de acusação, após a inquiri-ção de duas outras, oportunamente arroladas, otribunal colectivo não viu qualquer utilidade oueficácia de prova na inquirição da testemunhaprescindida, razão pela qual deferiu o doutamenterequerido.

— Não se descortina qualquer nulidade de-corrente da situação, para além do mais e no querespeita à matéria de facto referida no requeri-mento do ilustre mandatário, sempre se dirá quenão foi a norma referida no momento, legalmenteprevisto, ou seja, em sede de alegações. Comefeito a convicção do julgador só a este diz direc-tamente respeito, tomando em consideraçãodesignadamente a prova testemunhal produzidaem audiência. Não encontra o tribunal colectivoreflectido na matéria de facto mencionado no re-ferido requerimento correspondência no essen-cial ao aduzido no mesmo requerimento. Certa-mente que sendo a audiência pública os mais aten-

tos recordarão que foi preocupação do juiz pre-sidente, conforme imposição legal, em saber arazão da ciência das testemunhas inquiridas. Asduas únicas testemunhas até ao momento inqui-ridas não tiveram qualquer dúvida em afirmar arazão pela qual se encontravam presentes paratestemunhar. Por outro lado foram estas teste-munhas que procederam à detenção do mesmoarguido. Por este motivo não houve qualquernecessidade de proceder ao reconhecimento doarguido, deligência esta que aliás poderia sempreser requerida pela defesa. Por último, se a defesaentendia de promordial importância da testemu-nha prescindida, poderia ter sempre, dentro doprazo que a lei estipula, tê-la apresentado junta-mente com o rol que atempadamente juntou aosautos.

— Pelo incidente considerado anómalo o mí-nimo de multa.

Seja como for, é mister observar que estamosno âmbito de um recurso para o Supremo Tribu-nal de Justiça, de revista, onde apenas se podereexaminar matéria de direito [artigos 721.º eseguintes do Código de Processo Civil, conjuga-dos com os artigos 4.º, 400.º, 427.º, 428.º e 432.º,alínea b), todos do Código de Processo Penal],em que a Relação já exerceu, a seu tempo, umefectivo 2.º grau de jurisdição em matéria de facto.

Daí que não possa agora o Supremo Tribunaltornar a censurar a matéria de facto à procura deuma irregularidade ou nulidade (rechaçadas pordespacho não impugnado), por se ter omitido ainquirição de testemunha de acusação (prescin-dida pelo Ministério Público) e por ausência doreconhecimento do arguido ... a efectuar pelasduas únicas testemunhas de acusação ouvidas …

Em suma: a censura ou apreciação da matériade facto ficou precludida com a intervenção, emrecurso, do Tribunal da Relação, uma vez que,em processo penal (tal como no processo civil),não se pode estar sempre a questioná-la, paranão se correr o risco de se estar «a malhar emferro frio»!

Assim, concluímos que não se mostram vio-ladas as normas discriminadas na motivação dorecurso e respectivas conclusões.

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198 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

C) Subsunção dos factos ao crime de tráficode menor gravidade (artigo 25.º do Decreto-Lein.º 15/93, de 22 de Janeiro).

O douto acórdão recorrido refutou a possi-bilidade de o acervo de factos provados poderpreencher o crime de tráfico de menor gravidade,tipificado no preceito supra-referido, por nãovir provada uma ilicitude consideravelmentediminuída ...

E correctamente:

1 — O arguido quando foi «apanhado» pelosagentes da autoridade tinha consigo:

a) Heroína, 20 embalagens, com o peso lí-quido de 1,430 g;

b) Cocaína, 24 embalagens, com o peso lí-quido de 1,899 g;

2 — Conhecia a natureza e as característicasestupefacientes daquelas (drogas duras);

3 — Esses produtos eram de sua pertença;4 — Destinava-os à cedência a terceiros,

mediante contrapartida monetária.

Ora, tendo presentes os parâmetros do tipolegal de crime em apreço, também não nos me-rece censura a subsunção da factualidade apu-rada ao crime de tráfico de estupefacientes,previsto pelo artigo 2l.º, n.º 1, do Decreto-Lein.º 15/93, de 22 de Janeiro, punido com pena deprisão de 4 a 12 anos.

D) A medida concreta da pena.

1. O acórdão recorrido teve por adequada apena em concreto aplicada e efectiva (5 anos deprisão), a qual considerou bem fundamentada,dado o aludido carácter altamente pernicioso doilícito e as consequências desvastadoras para oser humano e a sociedade em geral.

2. O douto acórdão da 6.ª Vara Criminal deLisboa, que o Tribunal da Relação, em recurso,apreciou, expendeu as seguintes considerações:

I — No plano genérico e no que concerne àescolha e medida da sanção: «São sobejamenteconhecidos os malefícios da droga, não só paraaqueles que a consomem, mas para sociedade emgeral, sendo factor de instabilidade social e fami-liar, com efeitos criminógenos dela consequentes.

A toxicodependência leva à degradação e destrui-ção do ser humano, privando também a so-ciedade do contributo que os consumidores dedroga poderiam trazer à comunidade. Por outrolado, o custo social e económico, por via do con-sumo de estupefacientes, é exorbitante, em par-ticular se se atender também aos crimes e violênciaque origina e na erosão dos valores que provoca.

O tráfico de estupefacientes é pois um fenó-meno altamente pernicioso, que deve ser comba-tido e os seus autores devem considerar-se, naactualidade, potenciais homicidas da sociedade.»

II — No plano específico e reportando-se àdeterminação da medida concreta da pena, de-pois de enunciar os critérios constantes do ar-tigo 71.º do Código Penal, salientou: «À culpa doarguido impõe-se uma contribuição justa em con-formidade com a sua liberdade de determinação.

As exigências decorrentes do fim preventivogeral tão elevadas atendendo à necessidade decontenção de criminalidade e à defesa da socieda-de, conforme foi explanado.

Considera-se também a necessidade de pre-venção especial.

Milita a favor do arguido a ausência de ante-cedentes criminais, a sua condição social e situa-ção económica.»

Consequentemente, julgou adequado sancio-nar o arguido com uma pena de 5 anos de prisão.

3. A estas pertinentes considerações e a estadouta ponderação apenas se impõe explicitar que:

1 — O arguido tinha, à data dos factos, 37anos de idade, o que, aliado à ausência de antece-dentes criminais, adquire valor atenuativo de al-gum significado;

2 — Apesar de ser toxicodependente (consu-midor de cocaína, produto que usualmente ad-quiria na Curraleira), exercia a actividade de esto-fador de automóveis, por conta própria, auferindodiariamente entre 2000$00 a 3000$00, no exercí-cio dessa actividade profissional;

3 — Apresenta modesta condição social e pre-cária situação económica (vivendo com a mãe), oque conexionado com a sua situação de toxico-dependente e com a quantidade de droga apreen-dida (1,430 g de heroína e 1,899 g de cocaína)permite deduzir que o arguido detinha essa droga

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199 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

para ceder a terceiros, mas também para conse-guir a cocaína necessária para o seu consumo.

4 — Nestes termos e sopesando todos osfactores atenuativos enumerados, afigura-se ade-quado e ajustado reduzir para 4 anos e 3 meses apena de prisão aplicada.

VIII

Em face do exposto, concedendo-se provi-mento parcial ao recurso, acorda-se em reduzirpara 4 anos 3 meses a pena de prisão aplicada aoora recorrente e confirmar, no demais, o acórdãorecorrido.

Custas pelo recorrente, pelo decaimento par-cial, fixando-se em 5 UCs a taxa de justiça.

Lisboa, 23 de Novembro de 2000.

Dinis Alves (Relator) — Guimarães Dias —Carmona Mota (com declaração de voto).

Declaração de voto:

Inclinar-me-ia para, na parcial procedência dorecurso, incluir a conduta do arguido no tipo pri-vilegiado de «tráfico de menor gravidade» (ar-tigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93). Por um lado,a conduta do arguido aproximar-se-á da de um«traficante-consumidor» (artigo 26.º), pois que,tratando-se de um «toxicodependente, consumi-dor de cocaína», destinaria necessariamente par-te da droga adquirida para consumo próprio. Seo arguido «adquiria na Curraleira» a cocaína queconsumia, nem se compreende, sequer, por queo colectivo concluiu que as «24 embalagenscontendo cocaína que o arguido detinha, pelas20.15 horas do dia 8 de Julho de 1999, no Largoda Quinta da Curraleira» as destinava ele, todas(!), «à cedência a terceiros». Por outro lado, aquantidade de droga por ele detida era assazreduzida (1,43 g de heroína e 1,899 g de cocaína),sendo certo que, considerado apenas o respec-tivo princípio activo, esse quantitativo — o único,aliás, verdadeiramente considerável — seriaainda bem menor (uma vez que, de uma parte, oexame pericial não revelou, devendo tê-lo feito,qual o grau de pureza das preparações apreendi-das e que, de outra parte, é sabido que a droga, à

medida que avança na respectiva cadeia comer-cial, é sucessivamente adulterada, sendo que éexactamente mediante essa adulteração que osrevendedores de último grau conseguem algumamargem de lucro). Dir-se-á, enfim, que os pe-quenos traficantes de rua — como era, sem dú-vida, o arguido — não passam, as mais das vezes,de toxicodependentes aproveitados («dados àmorte») por retalhistas (estabelecidos nas redon-dezas, em casa própria ou em partes de casaarrendadas para o efeito, onde preparam a «mi-xórdia» e a dividem em pequeníssimas dosesindividuais destinadas aos consumidores de me-nores recursos) que, tirando partido da sua de-pendência, atrás deles se encobrem e, utilizan-do-os como «carne para canhão», lhes vão ali-mentando o vício a troco desse serviço — de altorisco, porque visível — de contacto directo como consumidor. Daí que o tráfico de rua — comoera o do arguido — deva ser visto, em regra (e,sobretudo, o imputável, no último elo da cadeia,a toxicodependentes), como de «menor gravida-de», sob pena de «completa inversão da estraté-gia, a de privilegiar o grande tráfico, que, mesmoduma perspectiva proibicionista, poderá teralgum êxito na contenção do fenómeno dadroga» (1), de «a guerra à droga se transformarnuma guerra aos utilizadores de drogas» (2), e,

(1) «Um relatório recente do organismo especializado dasNações Unidas para a droga veio salientar uma questão muitoimportante: a necessidade de privilegiar na luta contra adroga o grande tráfico, em detrimento dos retalhistas, pois,conforme expressamente se diz em tal relatório, nenhum sis-tema penal ou penitenciário aguentará a repressão generaliza-da. Esta é uma realidade que facilmente constatamos no nossoPaís. A estratégia repressiva atinge basicamente os consumi-dores, traficantes-consumidores, pequenos traficantes. Sãoesses que inundam os tribunais de processos e enchem a abar-rotar as cadeias, numa progressão contínua que, a manter-seesta política, nada fará parar. Todo o nosso sistema penal está‘colonizado’ pelo consumo e pequeno tráfico de estupefa-ci-entes. Trata-se da completa inversão da estratégia que, mes-mo duma perspectiva absolutamente proibicionista, como é ada ONU, poderá ter algum êxito na contenção do fenómeno dadroga, estratégia essa que terá de privilegiar o grande tráfico,ou seja, a produção e a circulação internacional das substân-cias estupefacientes. Haverá coragem para inverter a situaçãoe dirigir os esforços e os meios contra o ‘inimigo principal’,ou seja, o grande tráfico?» (Eduardo Maia Costa, Revista doMinistério Público, n.º 69, pág. 9)

(2) «Não posso aceitar que a guerra à droga se transformenuma guerra aos utilizadores de drogas!» Jorge Sampaio,«Discurso de 22 de Janeiro de 1997», Revista do MinistérioPúblico, n.º 69, págs. 11 e seguintes).

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200 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

enfim, de, «metendo-se no mesmo saco todos ostraficantes», «se esvaziar quase completamenteos artigos 25.º e 26.º [do Decreto-Lei n.º 15/93]»:

Importa analisar a forma como a jurisprudên-cia tem interpretado os crimes mais frequentes,ou seja, os dos artigos 21.º, 25.º e 26.º Emboratimidamente enunciado, teve o legislador o pro-pósito de não «meter no mesmo saco» todos ostraficantes, distinguindo entre os casos «graves»(artigo 21.º), os muito graves (artigo 24.º), ospouco graves (artigo 25.º) e os de gravidade redu-zida (artigo 26.º), redução essa motivada no fundopela condição de toxicodependente do agente.Pois bem: a jurisprudência esvaziou quase com-pletamente os artigos 25.º e 26.º, remetendo parao artigo 21.º a generalidade das situações. Paratanto, faz uma interpretação contra legem doartigo 25.º Com efeito, estabelece este artigo quese aplica às situações em que «a ilicitude do factose mostrar consideravelmente diminuída, tendo

em conta nomeadamente os meios utilizados, amodalidade ou as circunstâncias da acção, a qua-lidade ou a quantidade» das drogas. A interpreta-ção que parece mais consentânea com o texto (ecom a epígrafe do artigo) é a de que o legisladorquis incluir aqui todos os casos de menor gravi-dade, indicando exemplificativamente circunstân-cias que poderão constituir essa situação. Assim,será correcto considerar-se preenchido este cri-me sempre que se constate a verificação de umaou mais circunstâncias que diminuam considera-velmente a ilicitude, como poderá ser, por exem-plo, uma quantidade reduzida de droga, ou estaser uma «droga leve», ou quando a difusão é res-trita, etc. O crime do artigo 25.º é para o pequenotráfico, para o pequeno «retalhista» de rua.

Eduardo Maia Costa, «Direito penal dadroga», Revista do Ministério Público, n.º 74--103, págs. 114 e seguintes.

Carmona da Mota.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença da 3.ª Secção da 6.ª Vara Criminal de Lisboa, processo n.º 367/99.

II — Acórdão da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 6398/2000.

I e II — Não se encontrou jurisprudência sobre a matéria versada no acórdão em análise.

III — Constitui jurisprudência prática do Supremo Tribunal de Justiça.

IV — O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo, nos últimos anos, a ser mais sensível adeterminadas circunstâncias que revelam uma diminuição sensível da ilicitude do facto, o que lhe tempermitido fazer funcionar o regime privilegiado do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 deJaneiro.

Contudo, situações concretas idênticas à relatada no acórdão têm sido tratadas como tipificandoo crime previsto e punido pelo artigo 21.º daquele diploma legal, por se entender que não se verificadiminuição sensível de ilicitude de facto, como se constata dos sumários dos acórdãos do SupremoTribunal de Justiça de 18 de Outubro de 1995, processo n.º 48 077, de 22 de Janeiro de 1997,processo n.º 799/96, de 7 de Maio de 1997, processo n.º 1371/96, de 3 de Julho de 1997, processo529/97, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 469, pág. 181, de 25 de Setembro de 1997, processon.º 474/97, de 16 de Outubro de 1997, processo n.º 489/97, de 20 de Novembro de 1997, processon.º 979/97, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 471, pág. 163, de 3 de Dezembro de 1997, processon.º 1083/97, de 25 de Março de 1998, processo n.º 1470/97, de 1 de Abril de 1998, processo n.º 90/98,de 1 de Março de 2000, processo n.º 26/2000, e de 15 de Junho de 2000, processo n.º 196/2000.

Relativamente ao tema de tráfico de menor gravidade, cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal deJustiça de 7 de Julho de 1993, processo n.º 44 875, de 7 de Julho de 1993, processo n.º 45 051, de 24

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201 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

de Novembro de 1993, processo n.º 45 036, de 19 de Janeiro de 1994, processo n.º 45 827, de 25de Maio de 1994, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, tomo II, pág. 221, processon.º 45 748, de 7 de Julho de 1994, processo n.º 46 762, de 5 de Abril de 1995, processo n.º 47 802, de10 de Maio de 1995, processo n.º 47 129, de 18 de Outubro de 1995, processo n.º 48 077, de 15 deNovembro de 1995, processo n.º 47 721, de 7 de Dezembro de 1995, processo n.º 48 296, de 17 deJaneiro de 1996, processo n.º 48 623, de 17 de Janeiro de 1996, processo n.º 48 685, de 7 de Fevereirode 1996, processo n.º 48 574, de 7 de Fevereiro de 1996, processo n.º 48 914, de 14 de Fevereiro de1996, processo n.º 47 398, de 14 de Fevereiro de 1996, processo n.º 48 872, de 14 de Fevereiro de1996, processo n.º 48 693, de 21 de Fevereiro de 1996, processo n.º 48 929, de 22 de Fevereiro de1996, processo n.º 48 595, de 7 de Março de 1996, processo n.º 48 860, de 28 de Março de 1996,processo n.º 48 934, de 2 de Maio de 1996, processo n.º 26/96, de 15 de Maio de 1996, processon.º 47 722, de 15 de Maio de 1996, processo n.º 128 /96, de 16 de Maio de 1996, processo n.º 372/96,de 16 de Maio de 1996, 146/96, de 30 de Maio de 1996, processo n.º 93/96, de 30 de Maio de 1996,processo n.º 300/96, de 4 de Junho de 1996, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, pág.186,processo n.º 47/69, de 12 de Junho de 1996, processo n.º 218/96, de 19 de Junho de 1996, processon.º 48 891, de 20 de Junho de 1996, processo n.º 48 500, de 3 de Julho de 1996, processo n.º 48 170,de 3 de Julho de 1996, processo n.º 47 196, de 10 de Julho de 1996, processo n.º 246/96, de 26 deSetembro de 1996, processo n.º 737/96, de 16 de Outubro de 1996, processo n.º 777/96, de 31 deOutubro de 1996, processo n.º 48 117, de 31 de Outubro de 1996, processo n.º 470/96, de 20 deNovembro de 1996, processo n.º 682/96, de 21 de Novembro de 1996, processo n.º 836/96, de 28 deNovembro de 1996, processo n.º 626/96, de 8 de Janeiro de 1997, processo n.º 48 516, de 15 deJaneiro de 1997, processo n.º 1061/96, de 22 de Janeiro de 1997, processo n.º 799/96, de 29 de Janeirode 1997, processo n.º 1065/96, de 6 de Fevereiro de 1997, processo n.º 1457/96, de 20 de Fevereirode 1997, processo n.º 966/96, de 27 de Fevereiro de 1997, processo n.º 795/96, de 6 de Março de1997, processo n.º 997/96, de 12 de Março de 1997, processo n.º 1412/96, de 20 de Março de 1997,Boletim do Ministério da Justiça, n.º 465, pág. 346, processo n.º 1475/96, de 9 de Abril de 1997,processo n.º 973/96, de 7 de Maio de 1997, processo n.º 1371/96, de 14 de Maio de 1997, processon.º 425/97, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 461/97, de 22 de Maio de 1997, processo n.º 275/97,de 28 de Maio de 1997, processo n.º 54/97, de 28 de Maio de 1997, processo n.º 241/97, de 30 deMaio de 1997, processo n.º 48 410, de 4 de Junho de 1997, processo n.º 213/97, de 11 de Junho de1997, processo n.º 1103/96, de 11 de Junho de 1997, processo n.º 578/97, de 12 de Junho de 1997,Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo II, pág. 233, de 3 de Julho de 1997, processon.º 173/97, de 3 de Julho de 1997, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 469, pág. 181, processon.º 529/97, de 9 de Julho de 1997, processo n.º 345/97, de 9 de Julho de 1997, processo n.º 300/97, de10 de Julho de 1997, processo n.º 16/97, de 10 de Julho de 1997, processo n.º 353/97, de 18 de Se-tembro de 1997, processo n.º 502/97, de 18 de Setembro de 1997, processo n.º 466/97, de 18 deSetembro de 1997, processo n.º 445/97, de 25 de Setembro de 1997, processo n.º 474/97, de 25 deSetembro de 1997, processo n.º 523/97, de 8 de Outubro de 1997, processo n.º 615/97, de 8 deOutubro de 1997, processo n.º 470/97, de 15 de Outubro de 1997, processo n.º 913/97, de 16de Outubro de 1997, processo n.º 489/97, de 16 de Outubro de 1997, processo n.º 149/97, de 22 deOutubro de 1997, processo n.º 1004/97, de 22 de Outubro de 1997, processo n.º 245/97, de 23de Outubro de 1997, processo n.º 530/97, de 5 de Novembro de 1997, processo n.º 859/97, de 6 deNovembro de 1997, processo n.º 107/97, de 12 de Novembro de 1997, processo n.º 864/97, de 12 deNovembro de 1997, processo n.º 655/97, de 12 de Novembro de 1997, processo n.º 453/97, de 13de Novembro de 1997, processo n.º 1048/97, de 20 de Novembro de 1997, Boletim do Ministério daJustiça, n.º 471, pág. 163, processo n.º 979/97, de 3 de Dezembro de 1997, processo n.º 1083/97, de11 de Dezembro de 1997, processo n.º 996/97, de 7 de Janeiro de 1998, processo n.º 1293/97, de 8 deJaneiro de 1998, processo n.º 1201/97, de 8 de Janeiro de 1998, processo n.º 974/97, de 13 de Janeirode 1998, processo n.º 1239/98, de 27 de Janeiro de 1998, processo n.º 575/97, de 28 de Janeiro de1998, processo n.º 1080/97, de 4 de Fevereiro de 1998, processo n.º 1072/97, de 12 de Fevereiro de

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202 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

1998, processo n.º 146/97, de 12 de Fevereiro de 1998, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 474, pág.321, processo n.º 1355/97, de 18 de Fevereiro de 1998, processo n.º 1468/97, de 18 de Fevereiro de1998, processo n.º 1446/97, de 19 de Fevereiro de 1998, processo n.º 9/98, de 19 de Fevereiro de1998, processo n.º 407/97, de 19 de Março de 1998, processo n.º 1403/98, de 25 de Março de 1998,processo n.º 1470/97, de 1 de Abril de 1998, processo n.º 105/98, de 1 de Abril de 1998, processon.º 90/98, de 6 de Maio de 1998, processo n.º 296/98, de 6 de Maio de 1998, processo n.º 269/98, de7 de Maio de 1998, processo n.º 260/98, de 13 de Maio de 1998, processo n.º 227/98, de 14 de Maiode 1998, processo n.º 294/98, de 14 de Maio de 1998, processo n.º 1440/97, de 14 de Maio de 1998,processo n.º 80/98, de 27 de Maio de 1998, processo n.º 130/98, de 24 de Junho de 1998, processon.º 416/98, de 2 de Julho de 1998, processo n.º 515/98, de 8 de Julho de 1998, processo n.º 380/98, de24 de Julho de 1998, processo n.º 749/98, de 1 de Outubro de 1998, processo n.º 457/98, de 1 deOutubro de 1998, processo n.º 838/98, de 8 de Outubro de 1998, Acórdãos do Supremo Tribunal deJustiça, ano VI, tomo III, pág. 188, processo n.º 838/98, de 14 de Outubro de 1998, processon.º 719/98, de 14 de Novembro de 1998, processo n.º 795/98, de 2 de Dezembro de 1998, processon.º 1103/98, de 2 de Dezembro de 1998, processo n.º 1142/98, de 7 de Janeiro de 1999, processon.º 1214/97, de 21 de Janeiro de 1999, processo n.º 1117/98, de 4 de Fevereiro de 1999, processon.º 1050/98, de 10 de Fevereiro de 1999, processo n.º 1381/98, de 19 de Maio de 1999, processon.º 371/99, de 2 de Junho de 1999, processo n.º 269/99, de 16 de Junho de 1999, processo n.º 565/99,de 7 de Julho de 1999, processo n.º 646/99, de 20 de Outubro de 1999, processo n.º 918/99, de 21 deOutubro de 1999, processo n.º 909/99, de 10 de Novembro de 1999, processo n.º 1008/99, de 17 deNovembro de 1999, processo n.º 1007/99, de 7 de Dezembro de 1999, processo n.º 1005/99, de 15de Dezembro de 1999, processo n.º 907/99, de 15 de Dezembro de 1999, processo n.º 912/99, de 9 deDezembro de 1999, processo n.º 939/99, de 9 de Dezembro de 1999, processo n.º 935/99, de 24 deNovembro de 1999, processo n.º 937/99, de 24 de Novembro de 1999, processo n.º 1029/99, de 7 deDezembro de 1999, processo n.º 1005/99, de 15 de Dezembro de 1999, processo n.º 907/99, de 15de Dezembro de 1999, processo n.º 912/99, de 9 de Dezembro de 1999, processo n.º 939/99, de 9 deDezembro de 1999, processo n.º 935/99, de 23 de Fevereiro de 2000, processo n.º 1003/99, de 3 deFevereiro de 2000, processo n.º 1164/99, de 24 de Fevereiro de 2000, processo n.º 35/2000, de 1 deMarço de 2000, processo n.º 26/2000, de 23 de Março de 2000, processo n.º 54/2000, de 30 de Marçode 2000, processo n.º 1175/99, de 10 de Maio de 2000, processo n.º 118/2000, de 17 de Maio de 2000,processo n.º 260/2000, de 12 de Janeiro de 2000, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII,tomo I, pág. 163, processo n.º 829/99, de 28 de Junho de 2000, processo n.º 113/2000, de 15 deJunho de 2000, processo n.º 172/2000, e de 15 de Junho de 2000, processo n.º 196/2000.

(A. C. A. S.)

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203 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

Despacho de não pronúncia — Decisões absolutórias —Inadmissibilidade de recurso

I — A coerência do sistema jurídico impede que se admita recurso para o SupremoTribunal de Justiça de acórdão do Tribunal da Relação que confirma o despacho de nãopronúncia, quando não há recurso para aquele Tribunal de acórdão condenatório,proferido pelo Tribunal da Relação.

II — Os despachos de não pronúncia devem ser equiparados aos acórdãosabsolutórios, previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de ProcessoPenal, para efeitos de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

III — Dos acórdãos do Tribunal da Relação que confirmem o despacho de nãopronúncia, por razões de facto ou de direito, não há recurso para o Supremo Tribunal deJustiça.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 29 de Novembro de 2000Processo n.º 2950/2000

ACORDAM, em conferência, na Secção Cri-minal do Supremo Tribuna1 de Justiça:

I

1. No processo de instrução n.º 506/93.6TB.CSC, do 3.º Juízo Criminal de Cascais, recorreu aassistente Maria José Sotto Mayor Matoso Ale-xandre da Fonseca para o Tribunal da Relação deLisboa, impugnando dois despachos:

— O de não pronúncia, de fls. 986 a 991, comdata de 16 de Dezembro de 1999, por entenderque existem indícios suficientes para que aosarguidos seja aplicada uma pena pelo crime deabuso de confiança, estando a norma do artigo291.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de ProcessoPenal ferida de inconstitucionalidade material aoviolar o direito ao recurso do despacho judicial aíreferido; se assim não for entendido, deve decla-rar-se nula toda a fase de instrução, a partir dodebate instrutório, inclusive, e ordenar-se a ex-pedição de carta rogatória às Justiças do Princi-pado do Listenstaina para a apreensão de todosos documentos, contas e livros de escrita daFondation de Famille Egalité;

— O de fls. 993, também de 16 de Dezembrode 1999, que não recebeu o recurso interpostoem 17de Março de 1999 (fls. 910) das decisõesque indeferiram a expedição de carta rogatória àsJustiças do Principado de Listenstaina e a recla-

mação apresentada sobre tal decisão (fls. 888 e970 a 976), por ofensa de caso julgado formadopelo despacho de 19 de Setembro de 1994.

Por acórdão de 17 de Maio de 2000, profe-rido no recurso n.º 2567/2000, 3.ª Secção, o Tri-bunal da Relação de Lisboa deliberou:

— Rejeitar o recurso do despacho de fls. 993;— Absolver da instância os arguidos quanto

aos crimes de abuso de confiança e de infideli-dade, porque verificada a incompetência abso-luta dos tribunais portugueses para deles conhecer;

— Confirmar o despacho recorrido no quetange à não pronúncia pelo alegado crime de ofen-sas à integridade física simples.

2. Continuou a não se conformar, em parte,com o decidido a assistente Maria José SottoMayor Matoso Alexandre da Fonseca e recorrepara este Supremo Tribunal, extraindo da moti-vação do seu recurso as seguintes conclusões (portranscrição):

«1 — O Tribunal do Listenstaina apreciouapenas a pretensão da recorrente em relação aopedido de documentos respeitantes à Fundação.

2 — O Tribunal do Listenstaina não julgou osarguidos pelos factos denunciados nos presen-tes autos, em relação ao abuso de confiança e deinfidelidade, pelo que não há qualquer impedi-mento ao julgamento dos arguidos em Portugal,

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204 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

face ao estabelecido no n.º 1 do artigo 6.º do Có-digo Penal.

3 — Nada obsta à aplicação da lei penal por-tuguesa aos denunciados crimes de abuso de con-fiança e de infidelidade, nem ao julgamento dosarguidos pelos tribunais portugueses.

4 — Por isso, não se verifica a incompetênciaabsoluta dos tribunais portugueses, sendo inexis-tente a excepção dilatória, que levou à absolviçãoda instância, nos termos conjugados dos arti-gos 5.º, n.º 1, do Código Penal, 101.º e 493.º,alínea a), do Código de Processo Civil.

5 — Existem nos autos indícios suficientes dese ter verificado os pressupostos de que dependea aplicação aos arguidos de uma pena, nomeada-mente, a pena prevista para o crime de abuso deconfiança.

6 — Os arguidos têm de ser pronunciados,pela prática do crime de abuso de confiança, àdata dos factos previsto e punido pelo artigo300.º do Código Penal e presentemente pelo ar-tigo 205.º nem do actual Código Penal.

7 — Ao não se pronunciarem os arguidos,violou-se o artigo 308.º do Código de ProcessoPenal.

8 — Houve uma insuficiência evidente dainstrução e omissão de diligências reputadas es-senciais para a descoberta da verdade, pelo queconstitui uma nulidade, nos termos da alínea d)n.º 2 do artigo 120.º do Código de ProcessoPenal.

9 — Há insanável contradição entre os funda-mentos e a decisão que recusou o pedido dosdocumentos às autoridades judiciais do Lis-tenstaina, tendo, inclusive, sido atribuído à re-corrente a culpa pelo decurso do tempo, quandofoi o Tribunal que recorreu a diligências que po-dia ter dispensado.

10 — Foram retiradas pelo M.mo Juiz deInstrução ilações de um documento não autenti-cado e contestado e impugnado pela recorrente— o regulamento —, artigo 410.º, n.º 2, alínea c),do Código de Processo Penal.

11 — A norma constante do artigo 291.º, 2.ªparte, do Código de Processo Penal está feridade inconstitucionalidade material ao violar o di-reito ao recurso do despacho judicial que indefiraos actos requeridos durante a instrução do pro-cesso, quando o juiz considere que os mesmosnão interessam à instrução ou servem apenas

para protelar o andamento do processo, por vio-lar flagrantemente o princípio constitucional deacesso à justiça e aos tribunais, consagrado noartigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental.

Pelo que, nos termos expostos, deverá oacórdão recorrido ser revogado e proferir-seacórdão a pronunciar os arguidos pela prática docrime de abuso de confiança.

Subsidiariamente e sem conceder.Se, porventura, se entender que não existem

indícios suficientes nos autos para pronunciaros arguidos, deve ser declarado nulo toda a fasede instrução, a partir do debate instrutório, in-clusive, e ordenar-se a expedição de carta rogatóriadirigida às Justiças do Principado do Listenstainapara a apreensão de todos os documentos, con-tas e livros de escrita da Fondation de FamilleEgalité.

Responderam ao recurso o Dig.mo Procuradorda República junto da Relação e os arguidos JoséCândido Sotto Mayor Matoso e Maria Elsa daPiedade Franco Cunha Sá Sotto Mayor Matoso.

Entende o Ministério Púbico que:

— É inadmissível o presente recurso, umavez que cabe no âmbito do disposto no artigo400.º, n.º 1, alínea c), do Código de ProcessoPenal, sendo que o despacho de admissão porparte do Tribunal da Relação não vincula o Su-premo Tribunal de Justiça, devendo, pois, serrejeitado;

— A não se entender desse modo, o recursonão merece provimento.

Por seu turno, o arguido José Cândido Matosodefende que:

— A arguição de inconstitucionalidade do ar-tigo 291.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de ProcessoPenal assenta na ideia errada de que na protecçãoconstitucional dos direitos de defesa do arguidocabem, em igualdade de circunstâncias, os direi-tos do ofendido e do acusador particular;

— No Listenstaina não houve apenas um pe-dido de acesso a documentos mas uma queixacontra a ora co-arguida, e os responsáveis daFondation de Famille Égalité, da qual o res-pondente foi administrador, não existindo dúvi-das que o caso julgado absolutório abrange a sua

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205 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

própria responsabilidade pelos actos denuncia-dos, tal como a dos restantes responsáveis daFundação, designadamente a sua mãe e co-ar-guida nestes autos; deve ser desatendido o re-curso e condenada a recorrente por litigância demá fé, em multa e indemnização, que o recorridopede seja fixada segundo a equidade.

Respondeu também a arguida Maria Elsa daPiedade Franco Cunha Sá Sotto Mayor Matoso,dizendo, em síntese, o seguinte:

— A posição assumida pelo douto acórdãorecorrido, ao entender que os procedimentos ju-diciais ocorridos no Listenstaina constituem umasituação que se enquadra na expressão «não tiversido julgado no país da prática do facto», doartigo 6.º, n.º 1, do Código Penal, é a correcta,sendo certo que a competência de um tribunaluma vez fixada se mantém;

— Mas para além da questão formal da com-petência jurisdicional, qualquer tribunal — dePortugal ou do Listenstaina — que se debrucesobre o fundo da questão facilmente chegará àmesma conclusão: a da inexistência dos crimesque são imputados à ora alegante.

3. Subindo os autos a este Supremo Tribunal,a Ex.ma Representante do Ministério Público foide opinião, tal como o seu colega no Tribunal daRelação, que o recurso é inadmissível, não ape-nas porque o despacho de não pronúncia nãopõe termo à causa — alínea b) do artigo 432.º,por referência ao disposto na alínea c) do artigo400.º do Código de Processo Penal —, como tam-bém (subsidiariamente) por virtude de o mon-tante da pena aplicável ao crime de abuso deconfiança — no caso, não superior a 8 anos deprisão —, em face do disposto na alínea e) (sic)do citado artigo 400.º

Notificados desta posição do Ministério Pú-blico os intervenientes processuais, apenas a re-corrente se pronunciou, considerando a decisãorecorrível porque põe de facto termo à causa,insistindo em que existem indícios suficientespara ser deduzida acusação.

Entendeu o relator que a questão prévia daadmissibilidade do recurso teria pertinência, im-plicando o envio dos autos à conferência.

Recolhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II

1. O que diz, em resumo, a recorrente é oseguinte: não existe res judicata no tribunal es-trangeiro quanto ao crime de abuso de confiançaimputado aos dois arguidos; há indícios bastan-tes para a pronúncia pela prática do dito crime; anão se entender assim, deve ser declarada a nuli-dade da fase de instrução, a partir do debateinstrutório, inclusive, e ordenar-se a expediçãode carta rogatória dirigida às Justiças do Princi-pado do Listenstaina para a apreensão de todosos documentos, contas e livros de escrita daFondation de Famille Egalité (a norma constantedo artigo 291.º, 2.ª parte, do Código de ProcessoPenal está ferida de inconstitucionalidade mate-rial ao violar o direito ao recurso do despachojudicial que indefira os actos requeridos durantea instrução do processo).

2. Antes do mais, vejamos como actuou oTribunal da Relação recorrido, sem perder de vistaa perspectiva do enquadramento da sua decisãonas mencionadas alíneas c) e ou e) do artigo 400.º,ou outra, atinentes à questão prévia suscitada.

Também aquele Tribunal superior teve de en-frentar as questões prévias de saber se deviarejeitar o recurso interposto do despacho defls. 993, e se a instância se encontrava ou nãoextinta.

E rejeitou o recurso do despacho de fls. 993,nos termos conjugados dos artigos 291.º, n.º 1,420.º, n.º 1 (2.ª parte), e 414.º, n.º 2, todos doCódigo de Processo Penal, designadamente por-que não se usara o meio próprio, a reclamação.

Quanto ao restante, considerou extinta a ins-tância pelas razões seguintes.

Das três queixas apresentadas, nos anos de1990 e 1991, duas delas por crimes de naturezapatrimonial, referiam-se a factos ocorridos noListenstaina, tendo havido denúncia tambémnesse Principado.

Analisado o teor da decisão proferida peloTribunal da Relação do Principado do Listens-taina, em Vaduz, chegou o Tribunal da Relaçãode Lisboa, no acórdão recorrido, à conclusão deque havia identidade de objecto — crimes atri-buídos —, ao mesmo tempo que a investigaçãoabrangera as condutas dos dois arguidos, mãe efilho, sendo que aquele Tribunal do Principado

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206 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

do Listenstaina não encontrara indícios de in-fracção de qualquer norma de natureza penal eque a pretensão da assistente apenas podia serconsiderada em sede de instância cível.

Considerando aplicável, também para a fasede investigação/instrução, o disposto no artigo6.º, n.º 1, do Código Penal — «A aplicação da leiportuguesa a factos praticados fora do territórionacional só tem lugar quando o agente não tiversido julgado no país da prática do facto [...] —,e uma vez que as «instâncias judiciais do paísonde os factos tiveram lugar decidiram, em defi-nitivo e após análise dos factos em toda a suadimensão e alcance, que não se podia sequer che-gar a essa fase», a não se aceitar em Portugal taldecisão haveria ofensa ao princípio constitucio-nal do non bis in idem, consagrado no artigo 29.º,n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Daí considerar verificada a incompetência ab-soluta dos tribunais portugueses, determinanteda existência da correspondente excepção dila-tória — artigos 5.º e 6.º, n.º 1, do Código Penal,101.º, 493.º e 494.º-A, estes do Código de Pro-cesso Civil, aplicáveis por força do artigo 4.º doCódigo de Processo Penal.

III

1. Antepõe-se à apreciação sobre o mérito dorecurso, tal como suscitado pela recorrente, oexame da questão prévia de saber se a lei lheconfere, in casu, a faculdade de recurso para esteSupremo Tribunal.

1.1 — É o que passamos a fazer, começandopor recordar o conteúdo dos dispositivos legaisde algum modo implicados, os dos artigos 400.º,414.º, n.os 2 e 3, 420.º e 432.º, todos do Código deProcesso Penal.

Sob a epígrafe «Decisões que não admitemrecurso», diz-se no artigo 400.º:

«l — Não é admissivel recurso:

a) De despachos de mero expediente;b) De decisões que ordenam actos depen-

dentes da livre resolução do tribunal;c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas

relações, que não ponham termo à causa;d) De acórdãos absolutórios proferidos, em

recurso, pelas relações, que confirmem de-cisão de 1.ª instância;

e) De acórdãos proferidos, em recurso, pe-las relações, em processo por crime a queseja aplicável pena de multa ou pena deprisão não superior a cinco anos, mesmoem caso de concurso de infracções, ou emque o Ministério Público tenha usado dafaculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3 (1);

f) De acórdãos condenatórios proferidos,em recurso, pelas relações, que confirmemdecisão de 1.ª instância, em processo porcrime a que seja aplicável pena de prisãonão superior a oito anos, mesmo em casode concurso de infracções;

g) Nos demais casos previstos na lei.

2 — .............................................................»

E no artigo 414.º («Admissão do recurso»):

«1 — ..............................................................2 — O recurso não é admitido quando a deci-

são for irrecorrível, quando for interposto forade tempo, quando o recorrente não tiver as con-dições necessárias para recorrer ou quando faltara motivação.

3 — A decisão que admita o recurso ou quedetermine o efeito que lhe cabe ou o regime desubida não vincula o tribunal superior.

7 — ..............................................................»

Estabelece o artigo 420.º, n.º 2, a rejeição dorecurso «sempre que for manifesta a sua impro-cedência ou que se verifique causa que devia terdeterminado a sua não admissão nos termos doartigo 414.º, n.º 2».

E, finalmente, o artigo 432.º («Recurso para oSupremo Tribunal de Justiça»):

«Recorre-se para o Supremo Tribunal de Jus-tiça:

a) ................................................................b) De decisões que não sejam irrecorríveis

proferidas pelas relações, em recurso, nostermos do artigo 400.º;

e) ..............................................................»

1.2 — Da leitura do primeiro destes citadospreceitos, em conjugação com o disposto na alí-

(1) Refere-se este n.º 3 do artigo 16.º às situações em queo Ministério Público quando acusa propondo a aplicação depena concreta não superior a cinco anos.

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207 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

nea b) do artigo 432.º, colhe-se a indicação clarade que o novo equilíbrio, após a revisão operadapela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, se pretendecimentar entre uma adequada possibilidade deimpugnação das decisões de 1.ª instância, emmatéria de facto e de direito, reforçando os pode-res da Relação no que toca à apreciação da maté-ria de facto, ao mesmo tempo que se resguardao Supremo Tribunal, como regra, para a apre-ciação da matéria de direito.

E tal equilíbrio aparece justificado no preâm-bulo do diploma de revisão, ao referir-se [n.º 16,alíneas c), e) e f), da exposição de motivos daproposta de lei n.º 157/VII] o princípio da «du-pla conforme» que harmoniza «objectivos deeconomia processual com a necessidade de limi-tar a intervenção do Supremo Tribunal de Jus-tiça a casos de maior gravidade», e ainda quando,no mesmo sentido, se pretende retomar a ideiade diferenciação orgânica, posto que apenas fun-dada «no princípio de que os casos de pequenaou média gravidade não devem, por norma, che-gar ao Supremo»; e também quando se ampliamos poderes de cognição das Relações.

Tais pontos traduzem um sentido «restritivo»da subida de recursos ao Supremo Tribunal, semquebra de garantias essenciais prevenidas cons-titucionalmente, e ressaltam com evidência doconfronto entre a redacção anterior e actual des-tes preceitos.

2. Estamos agora em condições de voltar àquestão prévia:

— É ou não admissível o recurso da decisãodo Tribunal da Relação?

Segundo o entendimento dos Ex.mos Repre-sentantes do Ministério Púbico, quer na Relaçãoquer neste Supremo Tribunal de Justiça, o re-curso é inadmissível uma vez que cai no âmbitodo disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea c), comotambém (subsidiariamente) por virtude da penaaplicável ao crime de abuso de confiança — nocaso, não superior a 8 anos de prisão —, em facedo disposto na alínea e) do citado artigo 400.º

Diz o Ex.mo Magistrado junto da Relação, ci-tando jurisprudência deste Supremo Tribunal,que a decisão só porá termo à causa se conhecerdo mérito. Entendimento que permitisse o re-curso do despacho de pronúncia ou de não pro-

núncia, confirmado pela Relação, para ao Su-premo Tribunal, introduziria uma «contradiçãovalorativa» entre as situações contempladas naalínea c), por um lado, e nas alíneas d) e f) doartigo 400.º, por outro.

Haveria contra-senso no caso concreto namedida em que o crime de abuso de confiançaque a recorrente pretende ver imputado aos ar-guidos é apenas punível, em face da evolução dasleis criminais no tempo, com pena de prisão nãosuperior a oito anos (2).

Além, disso, nesta sede de pronúncia ou nãopronúncia o que está em causa é primordialmentea avaliação de matéria de facto.

É certo que no caso sub iudicio no acórdãorecorrido conheceu-se apenas de uma excepçãodilatória — e portanto de uma questão de di-reito —, com base na qual se absolveu da ins-tância.

Mas nem por isso se deve concluir de outramaneira, já que tal excepção é de conhecimentooficioso e jurisprudência vária deste SupremoTribunal de Justiça, que cita, tem decidido quenão é admissível recurso de acórdão absolutórioproferido, em recurso, pela Relação, que confir-me decisão de 1.ª instância, ainda que não setenha debruçado sobre o mérito da causa, por seter limitado a rejeitar, por questões processuais,o recurso que para ela tenha sido interposto (3).

Por outro lado, nos termos do assento doSupremo Tribunal de Justiça, publicado no Diá-rio da República, I Série, de 12 de Abril de 1990,dos acórdãos da Relação proferidos sobre des-pachos de pronúncia não há recurso para o Su-premo Tribunal de Justiça, quer versem matériade facto quer de direito. Não é de receber o re-curso de acórdão da Relação sobre despachos depronúncia ou não pronúncia.

Pormenorizemos, entrando na discussão edecisão.

(2) Indica o acórdão de 27 de Janeiro de 2000 — processon.º 1145/99, da 5.ª Secção.

(3) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 deDezembro de 1999, publicado na Colectânea de Juris-prudência — Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça,ano VII, tomo III, 1999, pág. 239; idem nos acórdãos de 10 deAbril de 1997 e de 4 de Março de 1999, publicados ambos naColectânea de Jurisprudência — Acórdãos do SupremoTribunal de Justiça, 1997, tomo I, pág. 254, e 1999, tomo I,pág. 238.

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208 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

3. A afirmação de que o despacho de nãopronúncia não põe termo à causa, na medida emque podem surgir novos factos ou elementos quecomprometam tal posição poderia não ser de-cisiva para excluir a reapreciação mediante re-curso. Como se mostra pelo caso de espécie nemsempre estará em debate a suficiência ou insufi-ciência dos indícios, mas outras questões quepodem ser de pendor estritamente jurídico, va-lendo então dizer-se que a decisão pôs termo àcausa e nem sequer incide sobre matéria de facto.

Por isso, as razões que propendemos paraconsiderar terminantes no sentido de afastar aadmissibilidade do recurso, vingando assim aprocedência da questão prévia, filiam-se numainterpretação que valoriza sobremaneira a argu-mentação que confere coerência à globalidade dosistema e à sua unidade de entendimento, ponde-rando particularmente as modificações introdu-zidas no Código de Processo Penal através darevisão de 1998.

Com efeito, na sequência do que já se anotou,seria despido de fundamento que um acórdãocondenatório proferido em recurso da Relaçãopor crime a que seja aplicável pena de prisão nãosuperior a oito anos fosse irrecorrível, nos ter-mos da citada alínea f) do artigo 400.º do Códigode Processo Penal, e fosse recorrível um despa-cho de não pronúncia. A diferença de gravidadede situações fala por si: no caso mais grave nãohavia recurso, havendo-o no menos grave.

Aliás, se bem reparamos, a situação aproxi-ma-se mais ainda da prevista na alínea d) — acór-dãos absolutórios proferidos, em recurso, pelasRelações, que confirmem decisão de l.ª instân-cia — uma vez que a decisão da 1.ª instânciacorrespondeu a uma resolução absolutória (semembargo de o processo, mediante determinadocondicionalismo temporal, poder ser reaberto),confirmada pela Relação.

Se tanto não bastasse, haveria ainda que, naesteira da jurisprudência já mencionada, designa-damente do assento de 24 de Janeiro de 1990 (4),atentar em que de há muito se vem entendendo

que do despacho de pronúncia (ou não pronún-cia) não é admissível recurso para o SupremoTribunal.

Na verdade, embora aquele assento fixasseorientação apenas quanto ao despacho de pro-núncia, a jurisprudência posterior entendeu-ocomo também aplicável aos despachos de nãopronúncia (5). Assim como se entendeu que «se-ria incompreensível que o Supremo não pudesseconhecer do mérito de uma decisão de pronúnciaou não pronúncia tomada pela Relação e já pu-desse apreciar a decisão meramente adjectiva» (6).

Posto que vocacionado para uma outra ver-tente, a da celeridade processual, pode ainda in-vocar-se o disposto nos artigos 310.º, n.º 1, e313.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Concluímos, pois, que não é recorrível oacórdão de não pronúncia, procedendo a questãoprévia suscitada.

IV

Nos termos expostos, acordam os juízes doSupremo Tribunal de Justiça em julgar não ad-missível o recurso interposto, pelo que dele nãotomam conhecimento — artigos 414.º, n.º 2, 420.º,n.º 2 (2.ª parte), e 432.º , alínea b), todos do Có-digo de Processo Penal.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de10 UCs e 1/3 de procuradoria.

Lisboa, 29 de Novembro de 2000.

Lourenço Martins (Relator) — Pires Sal-pico — Leal Henriques.

(4) Publicado no Diário da República, I Série, n.º 86, de12 de Abril de 1990, do seguinte teor: «Dos acórdãos daRelação proferidos sobre despachos de pronúncia não há re-curso para o Supremo Tribunal de Justiça, quer verse sobrematéria de direito quer de facto.»

(5) Cfr. acórdãos de 18 de Setembro de 1991, processon.º 41 881 (I — Nos termos do assento do Supremo Tribunalde Justiça de 24 de Janeiro de 1990, dos acórdãos da Relaçãoproferidos sobre despacho de pronúncia não há recurso parao Supremo Tribunal de Justiça, quer verse sobre matéria dedireito quer de facto. II — Não sendo possível recorrer de taisdespachos, por maioria de razão não deve ser admitido recursodos despachos de não pronúncia, por versarem matériafactualmente subtraída à competência do Supremo Tribunal deJustiça); de 29 de Abril de 1993, processo n.º 44 047, de 22 deSetembro de 1993, processo n.º 44 824, de 10 de Maio de2000, processo n.º 1191/99, 3.ª Secção, extraídos da BD/JSTJ/ex-DGSI (Internet), como os outros em que não se indique afonte.

(6) Acórdão de 30 de Junho de 1994, processo n.º 46 794.

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209 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do 1.º Juízo do Tribunal de Cascais, processo n.º 506/93.

II — Acórdão de 17 de Maio de 2000 da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, processon.º 2567/2000.

O Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido da inadmissibilidade de recursode despachos de pronúncia para aquele tribunal, no assento de 12 de Abril de 1990, publicado noDiário da República, I Série, de 12 de Abril de 1990.

Tal como se refere no acórdão, a jurisprudência daquele tribunal entendeu como aplicável aorecurso de despacho de não pronúncia a orientação decorrente daquele acórdão para unificação dejurisprudência.

O Tribunal da Relação tinha negado provimento ao recurso, para além do mais, por entender quea anterior instauração de processo de natureza penal, perante a justiça do Principado do Listenstaina,para investigação dos mesmos factos, apesar desse processo ter sido arquivado por falta de indícios,implicava o julgamento do arguido, para os efeitos do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do Código Penal.

(L. D)

Omissão de acta de julgamento — Co-arguido falecido —Extinção do procedimento criminal — Leitura das declaraçõesem instrução — Prova não proibida — Elemento não decisivo —Livre apreciação

I — A omissão em acta de julgamento das declarações do arguido finado, seguidade um acrescento à falta de menção à leitura em audiência, constituía uma nulidaderelativa que devia ser conhecida se tivesse sido arguida atempadamente, o que nãoaconteceu.

II — Os arguidos e co-arguidos no mesmo processo ou em processo conexos nãopodem depor como testemunhas, mas sempre podem prestar declarações que o tribunalvalorizará dentro do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

III — A qualidade do arguido extingue-se necessariamente com a sua morte porextinção do procedimento criminal, passando as declarações a corresponder a declara-ções de uma pessoa, que como arguido prestou em vida e que o tribunal colectivo assimleu e valorou.

IV — A leitura destas declarações são permitidas, nos termos do n.º 4 do ar-tigo 356.º do Código de Processo Penal, porque, além de prestadas perante um juiz, odeclarante não pode comparecer por falecimento e não integra uma prova proibida poiso Código de Processo Penal não o proíbe nem lhe confere um valor tarifado pois não édeterminado expressamente o valor a atribuir-lhe.

V — Porque o colectivo assentou também em muitas outras provas recolhidas emaudiência, a valoração das declarações dentro dos poderes de livre apreciação daprova não atingiu um valor exagerado nem foi elemento decisivo.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 30 de Novembro de 2000Processo n.º 2828/2000 — 5.ª Secção

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210 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Can-tanhede foi julgado, em processo comum comintervenção do tribunal colectivo, o arguido ArturMiguel Trindade Mendes, devidamente identifi-cado, que, a final, veio a ser absolvido da práticade um crime de falsificação de documento porque se encontrava acusado, e condenado, comoautor material de um crime de roubo, previstonos artigos 296.º, 297.º, n.º 2, alíneas c) e h), e306.º, n.os 1 e 2, alínea a), 3, alíneas a) e b), e 5, epunido no artigo 306.º, n.º 2, alíneas a) e b), doCódigo Penal, na pena de cinco anos de prisão àqual foi declarado perdoado um ano, nos termosdo artigo 1.º da Lei n.º 29/99.

Inconformado, recorre o arguido para esteSupremo Tribunal culminando a sua motivaçãocom este extenso rol de conclusões:

1.º — Em capítulos diferentes e segundo dife-rente regime, a lei processual penal regula espe-cialmente a prova por declaração do arguido e aprova testemunhal.

2.º — As normas que se referem a declaraçõesdo arguido, aos respectivos direitos, deveres eimpedimentos, são regras específicas, no sen-tido de excepcionais, como é a do artigo 133.º,n.º 2, não comportando por isso interpretaçãoextensiva ou analogia.

3.º — Daí que não se possa veicular da regrado artigo 356.º, n.º 4, o entendimento extensivoou analógico de que ali esteja incluído o sentidodo preceito do artigo 133.º, n.º 2.

4.º — A especial e excepcional norma do ar-tigo 133.º, n.º 1, do Código de Processo Penaldeclara aos arguidos e co-arguidos uma proibiçãototal e absoluta de depor como testemunhas na-quele processo.

5.º — E isso mesmo é definir como regra im-perativa a de que eles não são — e não podemser — testemunhas.

6.º — Uma única excepção se abre em tal proi-bição e imperativa regra, que é a de os arguidosconsentirem expressamente em depor (artigo133.º, n.º2).

7.º — E mesmo assim, ainda parece pertinentea questão de saber se esse consentimento ex-presso dos arguidos e co-arguidos em depor como

testemunhas terá de ser com consentimentoexpresso conjunto dos arguidos de um mesmocrime ou de um crime conexo, ou se qualquer umdos arguidos, só por si e contra a vontade dosdemais, poderá depor como testemunha se ele— e só ele — nisso expressa e singularmenteconsentir.

8.º — Assente pois que se verifica, como es-pecial regra do artigo 133.º, n.º l, uma proibiçãototal e absoluta de os arguidos e co-arguidos de-porem como testemunhas.

9.º — E assente também que esta especialregra comporta uma única excepção, que é a deos mesmos expressamente consentirem em de-por (artigo 133.º, n.º 2).

10.º — Forçoso será aceitar que, salvo o seuconsentimento dado de modo inequivocamenteexpresso, eles não são — e não podem ser —testemunhas.

11.º — E é obrigatório reconhecer — será en-fático afirmá-lo — que não se trata de um qual-quer consentimento, presumido ou tácito.

12.º — Tem de ser inequívoco e claramenteexpresso, como inequívoco e expresso é, quantoa isso, o legislador do n.º 2 do artigo 133.º doCódigo de Processo Penal.

13.º — Completamente diferente é o regimeestabelecido para os parentes e afins dos argui-dos, para as pessoas abrangidas pelo segredoprofissional, para os funcionários no exercíciode funções e relativamente aos factos que consti-tuam segredo de Estado (artigos 134.º a 137.º doCódigo de Processo Penal).

14.º — Nestes casos — e ao contrário do quese estabelece para arguidos — a regra é que essaspessoas são, podem e devem ser testemunhas.

15.º — É permitido, porém, que se recusem adepor como testemunhas os parentes e afins,podendo também escusar-se a depor as pessoaselencadas no artigo 135.º, quanto aos factos abran-gidos pelo segredo profissional, assim como osfuncionários e ainda no que respeita a factos queconstituam segredo de Estado.

16.º — Não se trata aqui — como no caso doarguido e co-arguidos — de impedimentos abso-lutos para depor como testemunhas (e com aúnica excepção do n.º 2 do artigo 133.º), mas simdo direito de recusa perante a especial relaçãoexistente entre a testemunha (que o é) e o ar-guido (que não é testemunha), havendo ainda

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211 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

casos de recusa de depoimento ou proibição deinquirição, recusa e proibição apenas relativa acertos factos, tendo em atenção certas qualida-des ou posição relativa da testemunha que vaidepor.

17.º — Resulta do exposto que é bem dife-rente o regime estabelecido para os arguidos eco-arguidos (que não são testemunhas por regraimperativa do legislador, e até por coerênciasistémica) do dos demais declarantes, que são oupodem ser testemunhas.

18.º — Assim, quando no artigo 356.º, n.º 4,do Código de Processo Penal se diz que é aindapermitida a leitura de declarações prestadas …se os declarantes não tiverem podido compare-cer por falecimento …, isto não pode aplicar-seaos arguidos nem aos co-arguidos.

19.º — Até porque, além do mais e do acimaexposto, se o arguido tiver falecido não haveráquaisquer declarações a ler, porque se extingue,por isso mesmo, o procedimento criminal.

Se os co-arguidos tiverem falecido (como nocaso dos autos) deixarão de o ser, exactamenteporque se lhes extingue o procedimento criminal.

20.º — E faltará, de todo o modo, o consen-timento que a lei inequivocamente exige que sejaexpresso.

21.º — A norma do artigo 356.º, n.º 4, aplica--se assim a todos os que tenham de prestar de-clarações, nomeadamente às testemunhas, masnão aos arguidos ou co-arguidos, já que, paraestes, a regra é a da proibição (impedimento totale absoluto) de deporem, com a única excepção denisso expressamente consentirem (artigo 133.º,n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal).

22.º — Acresce ainda que essa «prova» dasdeclarações do co-arguido João Leitão Duarte nãofoi controlada pela defesa do arguido ora recor-rente, já que foram prestadas na ausência do co--arguido por elas atingido ou do seu defensor.

23.º — Quanto a tais declarações, não foi as-sim possível garantir o contraditório, nos termosexigidos, entre mais, pelos artigos 323.º, n.º 1, e327.º do Código de Processo Penal.

24.º — A análise dos autos permite ver que oM.mo Tribunal aplicou a norma do artigo 356.º,n.º 4, no sentido de que a mesma permite nelaincluir as declarações do co-arguido João LeitãoDuarte, rejeitando obediência ao comando do ar-tigo 133.º, n.os 1 e 2.

25.º — E omitiu as obrigações legais de garan-tir o contraditório, decorrentes dos artigos 323.º,n.º 1, e 327.º do Código de Processo Penal.

26.º — Além disso, conheceu de questão defacto (declarações do co-arguido João LeitãoDuarte) de que não podia tomar conhecimento,pelo que a respectiva sentença é nula nos termosdo disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), doCódigo de Processo Penal.

27.º — Cometeu o Tribunal — diz-se com odevido respeito — uma nulidade de julgamento,por assunção de um meio de prova proibido.

28.º — E assim, ao disso conhecer, conheceu,repete-se, de questão de que não podia tomarconhecimento [artigo 379.º, n.º 1, alínea c), doCódigo de Processo Penal].

29.º — De facto, se da motivação da sentença,nos termos do artigo 374.º, n.º 2, in fine do Có-digo de Processo Penal, constar que as declara-ções do co-arguido contribuíram irrestritamentepara a formação da convicção do Tribunal, veri-fica-se uma situação de nulidade do julgamentopor assunção de meio de prova proibido, comviolação do disposto nos artigos 323. º, alínea j),e 327.º, n.º 2, do Código de Processo Penal(Rodrigo Santiago, «Reflexões sobre as declara-ções do arguido como meio de prova no Códigode Processo Penal de 1987», Revista Portuguesade Ciência Criminal, ano 4.º, fascículo I, Ja-neiro-Março, 1994, pág. 62; ver também, SimasSantos e Leal Henriques, Código de ProcessoPenal Anotado, vol. I, 28.ª ed., pág. 726).

30.º — E, «não tendo esse depoimento do(co-arguido) sido controlado pela defesa do co--arguido atingido, nem corroborado por outrasprovas, a sua credibilidade é nula.

Na medida em que esteja totalmente sub-traído ao contraditório, o depoimento de co-ar-guido não deve constituir prova atendível contrao(s) co-arguido(s) por ele afectado(s). A sua valo-ração seria ilegal e inconstitucional». (Prof.ª Te-reza Beleza, Revista do Ministério Público, anos1958 e 1959).

31.º — Não era lícito pois ao Tribunal, naque-las circunstâncias, proceder à leitura das declara-ções do co-arguido João Leitão Duarte, como ofez, para nelas fundamentar a sua convicção e adouta sentença, contra a manifesta vontade doarguido-recorrente.

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212 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

32.º — Assim, o tribunal a quo infringiu,entre mais, as disposições dos artigos 379.º,n.º 1, alínea c), 323.º, alínea f), 327.º, n.º 2, e 133.º,n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, tendofeito inadequada aplicação do disposto no artigo356.º, n.º 4, da Lei de Processo Penal.

33.º — O que acarreta a nulidade da sentençasob recurso e do julgamento.

Termina pedindo, no provimento do recurso,que se declare nula a sentença de que recorre eo julgamento subjacente, com as legais conse-quências.

Respondeu o Ministério Público junto do tri-bunal a quo nos seguintes termos:

I — Realizado que foi o julgamento no âmbitodestes autos, foi o arguido Artur Miguel conde-nado, pela prática de um crime de roubo, pre-visto e punido pelo artigo 306.º, n.º 2, alíneas a)e b), do Código Penal, na pena de 5 anos deprisão, e absolvido do crime de falsificação dedocumento pelo qual vinha igualmente acusado.

O arguido, não recorrendo desta decisãocondenatória nem da medida da pena aplicada,insurge-se quanto ao facto de o tribunal a quo, naaudiência de julgamento realizada, ter procedidoà leitura das declarações prestadas pelo arguidoJoão Leitão, perante o juiz de instrução criminale ter tal elemento de prova contribuído para aformação da sua convicção.

Por tal motivo, e no entender do recorrente, otribunal a quo «[...] cometeu uma nulidade dejulgamento, por assunção de um meio de provaproibido».

Cremos não assistir razão ao recorrente.

II — Na verdade, entendemos que a leitura dedeclarações prestadas por arguido perante o juizé permitida quando se verifica uma impossibili-dade de comparecimento do mesmo em audiên-cia de discussão e julgamento por falecimentocomo é o caso dos autos.

É o que resulta expressa e claramente do dis-posto no artigo 356.º, n.º 4, do Código de Proces-so Penal, que dispõe:

«É permitida a leitura de declarações presta-das perante o juiz ou o Ministério Público se osdeclarantes não tiverem podido comparecer por

falecimento, anomalia psíquica superveniente ouimpossibilidade duradoira.

Assim, tendo o arguido João Leitão falecido eexistindo nos autos declarações por ele presta-das perante o juiz de instrução criminal, nadaimpedia, ao abrigo daquele normativo, que taisdeclarações fossem lidas em audiência de julga-mento.

E como bem refere o M.mo Juiz a quo no seudouto despacho de 13 de Julho de 2000, «o im-pedimento a que se refere o artigo 133.º, n.º 2, doCódigo de Processo Penal não tem aplicação nestecaso [...]», uma vez que o que se pretende prote-ger com tal preceito é que o co-arguido não sejaobrigado a contribuir para a sua própria conde-nação e, tendo aquele falecido, tal protecção nãotem sentido no caso sub judice.

Aliás, cremos que, salvo o devido respeito, aargumentação expendida pelo recorrente incorrenum equívoco.

O recorrente estriba toda a sua argumentaçãopara concluir que as declarações do co-arguidoJoão Leitão não podiam ter sido lidas no facto deos arguidos estarem impedidos de depor comotestemunhas, a menos que nisso consintam, comodecorre do disposto no artigo 133.º, n.os 1 e 2, doCódigo de Processo Penal.

E, na realidade, assiste-lhe razão nessa suaafirmação, uma vez que é inquestionável que osarguidos não podem depor como testemunhas.

Só que, no caso em apreço, não é disso que setrata, pois que o referido co-arguido não foi ou-vido como testemunha nem as suas declaraçõesforam lidas como se de prova testemunhal setratasse.

As declarações do mencionado co-arguido fo-ram lidas como tal, isto é, como declarações dearguido, e têm o valor e a relevância que resultadeste meio de prova.

Na verdade, no título II do Código de Pro-cesso Penal, sob a epígrafe «Dos meios deprova», vêm previstos os diversos meios de provaadmitidos em processo penal, e neles se incluema prova testemunhal (capítulo I) e as declaraçõesdo arguido, do assistente e das partes civis (capí-tulo II).

Assim, vemos que as declarações do arguidosurgem como um meio de prova autónomo e di-verso da prova testemunhal, não se confundindocom esta. O seu valor, em abstracto, é, necessa-

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213 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

riamente, inferior ao valor da prova testemunhal,uma vez que as testemunhas prestam juramentoe estão sujeitas ao dever de verdade e os arguidosnão — cfr. artigo 140.º, n.º 3, do Código de Pro-cesso Penal.

Não obstante, as declarações do arguido nãodeixam de ser admitidas como meio de prova e depoder ser levadas em conta na formação da con-vicção do juiz.

E foi nessa perspectiva e como tal — comodeclarações de arguido — que as declarações doco-arguido João Leitão foram lidas e não comoprova testemunhal.

E daí que não faz sentido, em nossa opinião,estar-se a argumentar, como faz o recorrente, queos arguidos e co-arguidos estão impedidos dedepor como testemunhas e que apenas o podemfazer se nisso expressamente consentirem, poisque não foi nessa qualidade ou não foi com essealcance — de prova testemunhal — que as decla-rações do mencionado Leitão foram lidas.

III — Refere ainda o recorrente que, com asprovas assim produzidas, através da leitura dedeclarações prestadas anteriormente por co-ar-guido ausente, não é possível garantir o exercíciodo contraditório.

Também aqui nos parece não assistir razão aorecorrente.

Na verdade, ao serem lidas em audiência dediscussão e julgamento as declarações do co-ar-guido João Leitão, cremos que foi assegurado oexercício do contraditório, na medida em que,nessa medida, o arguido foi com elas confron-tado e foi-lhe dada a oportunidade de dizer o quetivesse por conveniente sobre o teor das mes-mas, de requerer os meios de prova complemen-tares que bem entendesse, etc.

Haveria violação deste princípio apenas e senão se tivesse procedido à leitura de declaraçõesanteriormente prestadas em audiência de discus-são e julgamento e se tivessem sido as mesmaslevadas em linha de conta na fundamentação dasentença a proferir.

Aí sim, tais declarações tinham sido subtraí-das ao controlo da defesa e, consequentemente,ao exercício do contraditório.

Ao serem aquelas declarações lidas em au-diência de discussão e julgamento, o arguido pôde,como dissemos, exercer o respectivo contraditó-

rio, não tendo havido, pois, qualquer coartaçãodo seu direito de defesa.

A não ser assim, não se compreenderia o con-teúdo dos artigos 356.º e 357.º do Código de Pro-cesso Penal, que permitem a leitura em audiênciade declarações anteriormente prestadas.

IV — Deste modo, o tribunal a quo não co-meteu qualquer nulidade ao proceder à leituradas declarações do co-arguido João Leitão emaudiência de discussão e julgamento.

Termos em que deve ser negado provimentoao recurso interposto e mantida a decisão recor-rida, nos seus precisos termos, assim se fazendojustiça.

2. Subidos os autos, com visto do Ex.mo Pro-curador-Geral Adjunto, realizada a audiência,cumpre decidir.

Como se vê, o recurso vem limitado à apre-ciação de uma só questão processual: a valoraçãofeita pelo colectivo das declarações prestadasperante o juiz de instrução por um co-arguido— João Leitão Duarte — entretanto já falecido àdata do julgamento. Valoração que o recorrentetem como ilícita, uma vez que, diz, a respectivaleitura foi feita «contra a manifesta vontade dorecorrente».

Vejamos os factos com interesse para a solu-ção da questão posta:

No acórdão recorrido dá-se como fundamen-tação da convicção do tribunal sobre a matéria defacto dada como provada:

— Fotografias de fls. 308 a 310, 356 e 357;— Exame de fls. 332 a 333;— Exames médicos de fls. 334 e 964;— Artigos apreendidos a fls. 360;— Auto de apreensão de fls. 844;— Guia de entrega de fls. 844;— Guia de entrega de fls. 845;— Fotografia de fls. 888;— Relatório do Instituto de Reinserção So-

cial de fls. 1263;— Certidão da sentença de fls. 1202 a 1215;— Leitura das declarações do co-arguido João

Leitão perante o Sr. Juiz de Instrução Criminal,com a fundamentação constante da acta de au-diência;

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214 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

— Depoimento de Celestino Azenha, vítima,que descreveu como foi abordado e todo o de-senrolar dinâmico dos factos. Esta testemunhafoi explícita a reconhecer a fisionomia do ar-guido, que não se encontrava mascarado e preci-sou que já o conhecia por o ter visto a abordar ostand tempos antes. Por outro lado, a forma comoidentificou o arguido foi de tal forma vincada quemereceu do tribunal a firme convicção da autoriados factos;

— Depoimento de Ulisses Cardoso, que, logoapós a ocorrência dos factos, surpreendeu, nolocal, a vítima baleada;

— Depoimento de Alberto Freitas e JoséCarlos Neves que compareceram para se abaste-cerem e viram a vítima agredida e os resultadosda actuação do arguido e seus acompanhantes;

— Depoimento do agente da Polícia Judiciá-ria Valter Constantino, que apurou as caracterís-ticas do veículo e efectuou várias diligências paradescoberta da autoria, apurando a fuga do argui-do para a Itália;

— Nota de aluguer de veículo inserta a fls. 363do vol. III, que demonstra a conexão do arguidoaos demais arguidos.

Há que acrescentar que, embora não constan-do da leitura da acta de julgamento que as alegadasdeclarações do co-arguido ali tenham sido objectode leitura, a fls. 1547 dos autos surge o seguinteprocessamento:

Tribunal Judicial de Cantanhede

Em 13 de Julho de 2000 — Conc. Trago aoconhecimento de V. Ex.ª que por infortúnioperdi os elementos onde constava a oposição domandatário à leitura das declarações do co-ar-guido João Leitão ao Sr. Juiz de Instrução Crimi-nal, pelo que requeiro que seja relevada a falta eque V. Ex.ª tente reproduzir a posição que assu-miu.

Despacho

No essencial o arguido opôs-se à leitura dasdeclarações do co-arguido João Leitão por en-tender que é necessário o seu consentimento ex-presso conforme dispõe o artigo 133.º, n.º 2, doCódigo de Processo Penal, o que está inviabili-zado com o seu falecimento.

A nossa posição em relação a esta questão é aseguinte:

Nos termos do artigo 356.º, n.º 4, é permitidaa leitura de declarações prestadas perante o juizse o declarante não tiver podido comparecer porfalecimento.

O impedimento a que se refere o artigo 133.º,n.º 2, não tem aplicação neste caso porquantonão há qualquer impedimento jurídico formal ouconstitucional.

O que se pretende proteger no n.º 2 do artigo133.º é que o co-arguido não seja obrigado a con-tribuir para a sua própria condenação.

Este princípio resulta directamente do artigo32.º da Constituição.

Ora se o co-arguido já faleceu, está implicita-mente extinto o procedimento criminal, pelo quea leitura das declarações não contribui para a suaincriminação.

Foi seguramente com este argumento forte eoutros que de momento não poderemos repro-duzir fielmente que entendemos que as declara-ções do co-arguido João Duarte, já falecido, sãoum meio de prova admissível, legal e constitu-cional.

Neste encadeamento procedemos à leitura dasdeclarações.

Tal processamento foi objecto de expressanotificação ao recorrente na pessoa de seu man-datário que contra ela nada disse.

Aqui chegados cumpre enfim conhecer de di-reito.

Não fora o acrescento à acta de julgamentoora mencionado — é com tal sentido que se in-terpreta o processamento subsequente ao acórdãorecorrido acabado de transcrever — e decertoestaríamos perante uma omissão da acta respec-tiva — a falta de menção à leitura em audiênciasdas declarações do finado João Leitão que a lei— artigos 356.º, n.º 8, e 357.º, n.º 2, do Códigode Processo Penal — sanciona com a nulidadedo acto.

De todo o modo, trata-se de uma nulidaderelativa, de que não cumpriria conhecer sem ar-guição dos interessados — artigo 120.º, n.os 1 e 3,do mesmo diploma. E tal arguição não foi feita.

Assim sendo, entramos, finalmente, no âmagodo objecto do recurso.

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215 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

O arguido presta declarações em audiência sequiser e no momento que entender — artigo 343.º,n.º 1, do Código de Processo Penal.

A leitura das declarações anteriormente pres-tadas pelo arguido só é permitida (1) nos casosprevistos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo357.º do Código de Processo Penal: ou seja, a suaprópria solicitação e, em tal caso, qualquer queseja a entidade perante a qual tiverem sido pres-tadas, ou quando, tendo sido feitas perante ojuiz, houver contradições ou discrepâncias sen-síveis entre elas e as feitas em audiência que nãopossam ser esclarecidas de outro modo.

Por outro lado, resulta da lei que respon-dendo vários co-arguidos, o presidente deter-mina se devem ser ouvidos na presença uns dosoutros; em caso de audição separada, o presi-dente, uma vez todos os arguidos ouvidos eregressados à audiência, dá-lhes resumidamenteconhecimento, sob pena de nulidade, do que setiver passado na sua ausência.

Por outro lado, é certo ainda que estão impe-didos de intervir como testemunhas o arguido eos co-arguidos no mesmo processo ou em pro-cessos conexos — artigo 133.º do Código de Pro-cesso Penal.

Em caso de separação de processos, os argui-dos de um mesmo crime ou de um crime conexopodem depor como testemunhas, se nisso ex-pressamente consentirem — n.º 2 do artigo aca-bado de citar.

Conjugando tudo isto, resulta claro que se écerto que os arguidos no mesmo processo ou emprocessos conexos não podem depor como tes-temunhas, não é menos verdade que sempre po-dem prestar declarações, que o tribunal valorizarádentro das balizas do artigo 127.º do mesmo di-ploma adjectivo.

Por outro lado, resulta do disposto no artigo356.º, n.º 4, do mesmo Código que «é permitida aleitura de declarações prestadas perante o juizou o Ministério Público, se os declarantes nãotiverem podido comparecer por falecimento, ano-malia psíquica superveniente ou impossibilida-de duradoura».

É certo que, nos termos limitativos do artigo357.º citado, esta disposição será inaplicável àsdeclarações do arguido.

É certo ainda que, em regra, se tem de tero depoimento de co-arguido «como meio deprova particularmente frágil» (2).

Porém, no caso sub judice, não foi lido o de-poimento de nenhum arguido. Se é certo que ocolectivo usou essa expressão para se referir aofalecido João Leitão, claramente usou de lingua-gem jurídica menos rigorosa, sabido que é que, amorte, fim inexorável de tudo o que é contigente,não podia deixar de o ser também quanto à res-ponsabilidade criminal, extinguindo tanto o pro-cedimento criminal como a pena ou a medidade segurança — artigos 127.º e 128.º do CódigoPenal.

Ora, se a qualidade de arguido se assume quandoalguém é alvo de acusação ou de instrução reque-rida em processo penal — artigo 57.º do Códigode Processo Penal —, ela extingue-se necessaria-mente com a morte do agente. Isso mesmo vemreconhecido na conclusão 19.ª da douta moti-vação.

Como assim, o que o colectivo leu e valorounão foram declarações do arguido João Leitão,antes, declarações que o João Leitão, como ar-guido, prestou em vida, o que é diferente.

Por outro lado, como é bom de ver, nunca setrataria aqui de depoimento em sentido técnico,já que as declarações prestadas pelo falecidoLeitão não revestiram essa roupagem jurídica:ele prestou declarações como arguido perante ojuiz de instrução e não qualquer depoimento.

E pelo facto de essas declarações terem agorasido lidas, em julgamento, perante o tribunal co-lectivo, não se transformaram em depoimento deco-arguido nem aquele em testemunha.

Por isso mesmo, ao contrário do que defendeo recorrente e como bem discorre o MinistérioPúblico junto do tribunal a quo, a invocação dadisciplina do artigo 133.º do Código citado é,assim, claramente descabida, já que, ao caso, temaplicação, isso sim, o regime emergente do n.º 4do artigo 356.º, por, como ficou referido, não setratar de depoimento ou, sequer, declarações dearguido, e só, da leitura de declarações de umapessoa já falecida que, outrora, foi arguido, o quenão é a mesma coisa.

(1) Sublinhado agora mas a expressão é a da lei.(2) A expressão é de Teresa Pizarro Beleza, na Revista do

Ministério Público, ano 19.º, n.º 74, pág. 58.

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216 BMJ 501 (2000)Direito Processual Penal

De resto, convém lembrar que, ao contráriodo que parece resultar da douta motivação dorecorrente, mesmo que se tratasse de um depoi-mento de co-arguido — e não trata — ele nãoseria, em abstracto, uma «prova proibida emdireito português» (3), pois como se sabe, «onosso Código de Processo Penal não determinouexpressamente o valor a atribuir a este tipo dedepoimento. Nem o proibiu, nem lhe atribuiuvalor ‘tarifado’ — como aliás o não fez emgeral [...]» (4).

De todo o modo, estas considerações vão jápor demais estendidas, uma vez que, em qual-quer caso, se não está perante um depoimento,antes de declarações que o tribunal colectivovalorou dentro dos seus poderes de livre apre-ciação.

E nem sequer se pode afirmar que nessa apre-ciação se atribuiu valor exagerado a tal elementoda sua convicção, pois, como resulta do relatofeito, o colectivo assentou a motivação em mui-tas outras provas recolhidas, nomeadamente emdepoimentos prestados em audiência, podendomesmo inferir-se do acórdão que a impugnada

leitura está longe de ter sido o elemento decisivonessa convicção.

Para terminar, não deixará de se dizer que nãose vê como tenha sido postergado qualquer direi-to ao exercício do contraditório, uma vez quetendo a leitura sido feita em audiência, tudo quan-to dela resultou pôde ter sido contrariado pelorecorrente.

E não se vê, finalmente, que o acórdão recor-rido tenha conhecido de questão que não devesseou não pudesse conhecer. Mesmo que se tivessecomo ilícita a leitura em causa.

Não resultam, assim, violadas as disposiçõeslegais referidas nas muitas conclusões da doutamotivação, o mesmo é dizer que o recursoimprocede.

3. Termos em que, negando provimento aorecurso, confirmam a parte impugnada do acórdãorecorrido.

O recorrente pagará taxa de justiça que se fixaem 5 UCs.

Lisboa, 3 de Novembro de 2000.

Pereira Madeira (Relator) — Simas Santos —Costa Pereira — Abranches Martins.

(3) Cfr. Teresa Pizarro Beleza, loc. cit., págs. 48 e 58.(4) Mesma autora, loc. cit., pág. 46.

DECISÃO IMPUGNADA:

Acórdão de 13 de Julho de 2000 do 2.º Juízo do Tribunal de Cantanhede, processo n.º 112/99.

I — Sobre nulidade sanável com registo em acta, ver acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de17 de Abril de 1996, processo n.º 48 208, 3.ª Secção.

II — Na jurisprudência no mesmo sentido, ver os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiçade 4 de Junho de 1998, processo n.º 1235/97, 3.ª Secção, de 25 de Fevereiro de 1999, 3.ª Secção,Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VII, tomo I, pág. 229; de 3 de Maio de 2000, Acórdãosdo Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII, tomo II, pág. 180. E sobre o depoimento do co-arguido veracórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Março de 2000, processo n.º 1134/99, 3.ª Secção;de 10 de Dezembro de 1996, processo n.º 48 697, 3.ª Subsecção, de 2 de Julho de 1997, processon.º 240/97, 3.ª Subsecção; de 30 de Outubro de 1997, processo n.º 849/97, 5.ª Subsecção, de 28 deNovembro de 1990, Actualidade Jurídica, n.º 13; de 4 de Maio de 1994, processo n.º 44 383,3.ª Secção. Na doutrina ver as anotações e autores citados ao artigo 127.º do Código de ProcessoPenal Anotado, 2.ª ed., págs. 682 a 688, de Simas Santos e Leal Henriques.

III — No sentido de também ter capacidade para ser testemunha, ver os acórdãos do SupremoTribunal de Justiça de 6 de Março de 1996, processo n.º 48 548, 3.ª Secção, e de 10 de Julho de 1997,processo n.º 90/96, 3.ª Secção.

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217 Direito Processual PenalBMJ 501 (2000)

IV — Na doutrina, sobre prova proibida, ver Criminologia, O Homem Delinquente e a Socie-dade Criminógena, págs. 506 a 508, Figueiredo Dias e Costa Andrade, anotações aos artigos 355.º e356.º, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª ed., págs. 386 e 397, de Simas Santos e Leal Henriques,e Código de Processo Penal, Comentado e Anotado, págs. 670 e 671, de Maia Gonçalves, jurispru-dência os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 1995, Acórdãos do SupremoTribunal de Justiça, ano III, tomo I, pág. 94; de 25 de Setembro de 1997, Boletim do Ministério daJustiça, n.º 469, pág. 351; de 8 de Fevereiro de 1995, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça,ano III, tomo I, pág. 94, de 25 de Setembro de 1997, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 469,pág. 351; de 4 de Junho de 1998, processo n.º 1174/97, 3.ª Subsecção; de 11 de Novembro de 1998,processo n.º 1008/98, 3.ª Subsecção; de 9 de Março de 1999, Acórdãos do Supremo Tribunal deJustiça, ano VII, tomo I, pág. 23; e de 13 de Dezembro de 2000, processo n.º 2752/2000, 5.ª Secção.

Em sentido diverso o acórdão de 26 de Março de 1998, processo n.º 44/98, 5.ª Secção.

V — No mesmo sentido e em especial sobre a livre apreciação da prova, ver os acórdãos doSupremo Tribunal de Justiça de 17 de Novembro de 1999, processo n.º 826/99, 3.ª Secção; de 13 deJaneiro de 2000, processo n.º 982/99, 5.ª Secção; de 27 de Outubro de 1999, processo n.º 98/99,3.ª Secção; de 21 de Janeiro de 1999, processo n.º 1191/98, 5.ª Secção; de 8 de Abril de 1999,Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII, tomo II, pág. 171; e de 3 de Março de 1999,Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VII, tomo I, pág. 231; de 25 de Novembro de 1999,processo n.º 641/99, 5.ª Secção; de 18 de Janeiro de 2001, processo n.º 3105/2000, 5.ª Secção. Nadoutrina, ver as anotações e autores citados ao artigo 127.º do Código de Processo Penal, Comentadoe Anotado, 12.ª ed., pág. 339, de Maia Gonçalves.

(M. G. L. M.)

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218 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

Acção emergente de acidente de viação — Inexistência deseguro — Fundo de Garantia Automóvel — Ónus de impugnaçãodo artigo 490.º do Código de Processo Civil, seu funcionamentono que toca à falta de seguro automóvel

I — As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil emergente deacidente de trânsito, quando o responsável seja conhecido e não tenha seguro válido eeficaz, devem obrigatoriamente ser interpostos contra o Fundo de Garantia Automóvele o responsável civil, sob pena de ilegitimidade — artigo 29.º, n.º 6, do Decreto-Lein.º 522/85.

II — A inexistência de um seguro válido e eficaz é um facto constitutivo do direitoinvocado, pelo autor, recaindo assim sobre o mesmo o respectivo ónus de prova.

III — Assim cabe ao lesado (autor numa acção por acidente de viação) a alegaçãoe prova dos factos constitutivos do direito invocado — artigo 342.º, n.º 1, do CódigoCivil.

IV — Por outro lado, dispõe o n.º 3 do artigo 490.º do Código de Processo Civil que«se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale àconfissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento eequivale à impugnação no caso contrário».

V — O saber da existência ou não de um seguro válido e eficaz é um facto pessoal ede que o réu deva ter conhecimento.

VI — Logo, deve considerar-se como não cumprido o ónus de impugnação doartigo 490.º do Código de Processo Civil — e consequentemente comprovada ainexistência do seguro automóvel por parte do veículo responsável no acidente —,sempre que o Fundo de Garantia Automóvel (demandado numa acção emergente deacidente de viação) declare, quanto a tal inexistência de seguro, que «desconhecia setais factos eram ou não verdadeiros».

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 7 de Novembro de 2000Processo n.º 2500/2000

ACORDAM, em conferência, no SupremoTribunal de Justiça:

I — Francisco António Mira Pereira Valentimintentou acção emergente de acidente de viaçãocontra o Fundo Garantia Automóvel e José Joa-quim Afonso Benvindo, pedindo que os réus se-jam condenados a pagar 5 409 890$00 e juros.

Alegou que foi vítima de acidente de viaçãocausado pelo veículo automóvel conduzido peloréu Benvindo, veículo esse que à data não tinhaseguro.

Contestando, o Fundo de Garantia Auto-móvel excepcionou a prescrição e, em sede deimpugnação, disse desconhecer as circunstân-cias do acidente e a inexistência do seguro.

O outro réu, por sua vez, além de invocarigualmente a prescrição, atribuiu a culpa do aci-dente ao autor.

O processo prosseguiu termos, tendo tidolugar audiência de discussão e julgamento, sendoproferida sentença, que decidiu pela procedênciaparcial da acção.

Apelou o réu Fundo de Garantia Automóvel.O Tribunal da Relação, embora com diferente

fundamentação, confirmou a decisão.Novamente inconformado, recorre o mesmo

réu para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:

— O recorrido não logrou, em 1.ª instância,fazer prova de um facto constitutivo do direito

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que se arroga perante o Fundo de Garantia Auto-móvel, a ausência de seguro válido e eficaz doveículo conduzido pelo responsável pela ocor-rência do acidente de viação;

— Veio, contudo, o Tribunal da Relação con-siderar provada a ausência de seguro, porquantoa impugnação por desconhecimento de tal facto,por parte do Fundo de Garantia Automóvel, emsede de contestação, constitui confissão, nos ter-mos do artigo 490.º do Código de Processo Civil,visto tratar-se de um facto que o Fundo de Ga-rantia Automóvel não poderia desconhecer;

— O acórdão recorrido não fez a mais cor-recta interpretação da lei ao considerar a ausên-cia de seguro válido e eficaz um facto do conhe-cimento pessoal do Fundo de Garantia Auto-móvel, uma vez que, embora o Fundo de Garan-tia Automóvel esteja formalmente integrado noInstituto de Seguros de Portugal, nos termos doDecreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, pos-sui receitas e despesas próprias, personalidadejudiciária própria e funciona em instalações geo-graficamente distintas das do Instituto de Segu-ros de Portugal;

— Também não cabe no elenco das atribui-ções do Fundo de Garantia Automóvel, defi-nidas pelo Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de De-zembro, conhecer da existência de seguro válidoe eficaz para determinado veículo, sendo certoque essa atribuição cabe ao Departamento deMercado Nacional do Instituto de Seguros dePortugal, encontrando-se o Fundo de GarantiaAutomóvel, quanto a essa questão, em idênticasituação à de um qualquer particular;

— Não seria, aliás, possível ao Fundo de Ga-rantia Automóvel conhecer da existência de se-guro no curto prazo da contestação, quando écerto que, o processo de inquérito do Departa-mento de Mercado Nacional do Instituto de Segu-ros de Portugal demora, em média, cerca de doismeses;

— Considerar que a impugnação por desco-nhecimento equivale a confissão da ausência deseguro, traduz-se, na prática, em retirar ao Fun-do de Garantia Automóvel qualquer possibili-dade de defesa em clara violação do princípio docontraditório, e em considerar sempre ausenteum facto que pode não ter qualquer correspon-dência com a realidade, em clara violação do prin-cípio da verdade material;

— O acórdão recorrido violou o n.º 2 do artigo490.º do Código de Processo Civil, porquanto talnorma não pode ser entendida no sentido de seconsiderar confessado um facto que o Fundo deGarantia Automóvel não praticou, não conhecia,nem teve possibilidade de conhecer no curto es-paço de tempo que mediou a sua citação para aacção e o término do prazo da contestação;

— Deve, pois, o acórdão recorrido ser refor-mado no sentido de, considerando-se não pro-vada a ausência de seguro, se absolver o réu Fundode Garantia Automóvel do pedido.

Não houve contra-alegações.Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II — Vem dado como provado:

No dia 1 de Março de 1992, cerca das 15 ho-ras, o veículo ligeiro de passageiros de matrículaGA-00-07, conduzido pelo autor e pertença deJosé Francisco Ribeiro, circulava na estrada mu-nicipal que liga Terena e Hortinhas, no concelhode Alandroal, no sentido de marcha Terena- -Hortinhas;

Na mesma ocasião e local, o veículo ligeiro depassageiros de matrícula AX-65-89, circulava nosentido de marcha Hortinhas-Terena, conduzidopelo réu José Joaquim Afonso Benvindo, seuproprietário;

Após o veículo do réu ter descrito uma curva,os dois veículos embateram;

O autor travou o veículo por si conduzido;Em consequência do embate, o veículo con-

duzido pelo autor capotou;No local do embate, a via tem cerca de 3,60 m

de largura;O réu imobilizou o seu veículo a 14,60 m do

local do embate e a 2,10 m da faixa esquerda,atento o sentido de marcha Terena-Hortinhas enão deixou qualquer rasto de travagem;

O veículo conduzido pelo autor deixou umrasto de travagem de 9 m e imobilizou-se a 9,20 mdo local do embate;

Na data e local referidos o tempo estava bome o piso encontrava-se seco;

O autor, logo após o embate, foi transportadoao Hospital Distrital de Évora, onde foi obser-vado nos serviços de urgência;

Em virtude do seu estado ser considerado crí-tico, foi imediatamente transferido para o Hos-

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220 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

pital de São José, em Lisboa, onde ficou inter-nado;

Em consequência do embate, o autor sofreuum traumatismo craniano com perda de conheci-mento, de que resultou esfacelo da hemiface es-querda, com fractura do complexo zigomá-tico-malar esquerdo e fractura cominutiva dahermimendíbula esquerda;

O autor foi operado em 4 de Março de 1992,em 15 de Junho de 1992, em 16 de Julho de 1992e em 11 de Março de 1993;

Esteve internado no Hospital de São Josédesde 27 de Maio a 29 de Julho de 1992;

Depois de 29 de Julho de 1992, o autor teveque se deslocar, por várias vezes, ao Hospital deSão José e teve de sujeitar-se a outros exames;

Durante algumas semanas andou com a bocatapada, ingerindo alimentos líquidos;

O autor apresenta cicatrizes na pálpebra infe-rior esquerda, na face esquerda, na face lateral dopescoço, nos maxilares e na boca;

Em consequência dos tratamentos e interven-ções cirúrgicas o autor sofreu dores intensas nosmaxilares e na face esquerda, a qual ficou defor-mada;

O autor não consegue abrir completamente aboca, que ficou deformada;

O autor vai sujeitar-se a uma operação plás-tica para tentar minorar as deformações;

O autor era um jovem saudável e sem qual-quer limitação de ordem física antes de 1 de Marçode 1992;

Como consequência directa e necessária daslesões por si sofridas, o autor sofreu um enormedesgosto e angústia pelo facto de se ver, de ummomento para o outro, um homem deformado euma enorme ansiedade por não saber até queponto as deformações o iriam prejudicar para oresto da vida;

No dia 1 de Março de 1992 o autor trabalhan-do como ajudante de mecânico por conta da fir-ma Auto-Alandroense, auferia um salário mensalno montante de 50 000$00;

Desde 1 de Março de 1992 até 29 de Julho de1992, o autor não recebeu o salário, nem as pres-tações suplementares correspondentes aos sub-sídios de férias e de Natal;

O autor gastou em medicamentos a quantia de9890$00.

III — O autor, sustentando que foi vítima deacidente de viação causado por veículo automó-vel que não tinha seguro, intentou competenteacção contra o Fundo de Garantia Automóvel econtra o proprietário da viatura.

As instâncias, embora com fundamentaçõesdiversas, decidiram pela procedência parcial daacção.

Daí o recurso do Fundo de Garantia Automó-vel, conformando-se o outro réu com o decidido.

A única questão trazida até este Tribunal eque importa resolver consiste em saber comofunciona o ónus da prova, no que toca à alegadainexistência do seguro.

A solução dada pelo acórdão recorrido aosdemais problemas suscitados nos articulados foiaceite pelas partes.

O Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro(que reviu o Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 deSetembro), regula hoje o seguro obrigatório deresponsabilidade civil automóvel.

Ao institucionalizar tal seguro, como se es-creve no preâmbulo do referido diploma, criou-seuma medida de alcance social inquestionável, queprocura dar resposta cabal aos legítimos interes-ses dos lesados por acidente de viação.

O número de seguros obrigatórios tem, aliás,vindo a alargar-se, inserindo-se naquilo que sepoderá designar como socialização do risco. Se-gundo informa José Vasques — «Contrato deSeguro», pág. 49 — é já de 43 o número de casosde seguro obrigatório, entre os quais assumeespecial relevância (e no que aqui interessa) oseguro obrigatório de responsabilidade civil au-tomóvel.

Intimamente ligado à obrigatoriedade do se-guro, foi instituído pelo Decreto Regulamentarn.º 58/79, de 25 de Setembro, o Fundo de Garan-tia Automóvel.

Em obediência à Directiva n.º 84/5/CEE, de30 de Dezembro de 1983, foi o Fundo criadocom as atribuições que aí se traçavam.

Previa-se na directiva, efectivamente, que cadaEstado membro devia criar ou autorizar a criaçãode um organismo que tivesse por missão reparar,pelo menos dentro dos limites da obrigação doseguro, os danos materiais ou corporais cau-sados por veículos não identificados ou relativa-mente aos quais não tenha sido satisfeita a obri-gação de segurar (artigo 1.º, n.º 4, 1.ª parte).

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221 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

Compete ao Fundo satisfazer as indemniza-ções decorrentes de acidentes originados porveículos sujeitos ao seguro obrigatório, garan-tindo, por acidente originado por esses veículos,a satisfação das indemnizações por morte oulesões corporais, quando o responsável seja des-conhecido ou não beneficie de seguro válido oueficaz ou for declarada a falência da seguradora epor lesões materiais, quando o responsável,sendo conhecido, não beneficie de seguro válidoou eficaz [artigo 21.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e b), doDecreto-Lei n.º 522/85, tendo em conta a redac-ção do Decreto-Lei n.º 122-A/86, de 30 de Maio,e Decreto-Lei n.º 130/94, de 19 de Maio].

As acções destinadas à efectivação da respon-sabilidade civil decorrente de acidente de viação,quando o responsável seja conhecido e não bene-ficie de seguro válido ou eficaz devem obrigato-riamente ser interpostas contra o Fundo de Ga-rantia Automóvel e o responsável civil, sob penade ilegitimidade (n.º 6 do artigo 29.º do mencio-nado Decreto-Lei n.º 522/85).

É exactamente o que acontece no caso con-creto.

Tendo o autor sustentado que à data do sinis-tro a responsabilidade civil por danos causados aterceiros no que respeita ao veículo causador doacidente não se encontrava transferida para ne-nhuma companhia de seguros, devia, necessa-riamente, intentar a acção pela forma como o fez.

A inexistência de um seguro válido e eficaz éum facto constitutivo do direito invocado peloautor, recaindo assim sobre o mesmo o respec-tivo ónus da prova. É esta, aliás, a jurisprudênciadominante — por todos o acórdão do SupremoTribunal de Justiça de 15 de Outubro de1996, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 460,pág. 644.

Cabia, pois, ao lesado a alegação e prova dosfactos constitutivos do direito invocado, nos ter-mos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

A tal respeito foi formulado o ponto n.º 27.ºda base instrutória, com a seguinte redacção: «Em1 de Março de 1992, a responsabilidade civilpor danos causados a terceiros pelo veículoAX-65-89 não se encontrava transferida paranenhuma companhia de seguros?»

A resposta foi «Não provado».Daqui parte a recorrente para concluir que

deveria ter sido absolvida.

Pensamos que não tem razão, estando cor-recta a tese perfilhada no acórdão recorrido.

O autor alegou, além do mais, que à data doacidente o veículo conduzido pelo réu não tinhaseguro, uma vez que a empresa que o alienou nãoavisou tempestivamente a seguradora, pelo queo contrato de seguro se não transmitiu, havendocessado os seus efeitos antes do sinistro (artigos15.º a 19.º da petição inicial).

Na contestação o réu ora recorrente limitou--se, a tal respeito, a afirmar que desconhecia setais factos eram ou não verdadeiros.

Dever-se-á considerar cumprido o ónus deimpugnação imposto pelo artigo 490.º do Có-digo de Processo Civil?

Afigura-se-nos que não.

As Directivas n.os 84/5/CEE, de 31 de De-zembro de 1983, e 90/232/CEE, de 14 de Maiode 1990 (entre outras), com os consequentes re-flexos na criação do Fundo e nas disposiçõesatinentes do Decreto-Lei n.º 522/85 pretendemque os Estados membros tomem as medidas ade-quadas para que as pessoas implicadas num aci-dente vejam prontamente satisfeitos os seusdireitos, considerando-se os organismos criadoscomo mais aptos e melhor colocados para tomaras providências adequadas — sobre a temáticaSeguro Obrigatório de Responsabilidade CivilAutomóvel, dos Drs. Garção Soares, Maia dosSantos e Rangel de Mesquita, págs. 68, 69, 169e 170.

No caso do direito português considerou-secomo responsável, em primeira linha, o Fundo,sem prejuízo do direito de regresso que lhe pos-sa assistir. Veja-se, por exemplo, o n.º 5 do artigo21.º do Decreto-Lei n.º 522/85.

Nos termos do n.º 3 do artigo 39.º do mesmodiploma e na lógica da protecção à vítima que sereferiu, compete ao Instituto de Seguros de Por-tugal organizar um sistema que garanta às pes-soas implicadas num acidente de viação conhe-cerem em curto espaço de tempo o nome dasseguradoras que cobrem a responsabilidade civilresultante da utilização de cada um dos veículosimplicados nesse acidente.

Essa competência está, aliás, prevista na alí-nea v) do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 251/97, de26 de Setembro, que aprovou o Estatuto do refe-rido Instituto.

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222 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

Ora, o Fundo de Garantia Automóvel está in-tegrado no Instituto de Seguros de Portugal (arti-go 22.º do Decreto-Lei n.º 522/85).

Não se pode assim sustentar que saber daexistência ou não de um seguro válido e eficaz éum facto que não é pessoal nem de que o réudeva ter conhecimento (artigo 490.º, n.º 3, doCódigo de Processo Civil).

Não faria sentido considerar que estando oFundo de Garantia Automóvel integrado no Ins-tituto, se trata de duas pessoas colectivas distin-tas, de forma a que uma ignore aquilo que a outratem obrigação de saber.

Se a consulta que o Fundo terá que fazer aoInstituto apresenta as dificuldades que a recor-rente invoca, então, forçosamente, em maior com-plicação burocrática se verá o lesado pelo acidentepara obter os elementos necessários.

A protecção ao lesado que a legislação men-cionada pretende dar não se harmoniza com o

entendimento de que o Fundo de Garantia Auto-móvel não é obrigado a conhecer as informaçõesque o Instituto onde está integrado terá que dar.

A existirem eventuais demoras na obtençãodos dados, face ao prazo da contestação, sempreo recorrente terá ao seu dispor mecanismos pro-cessuais que lhe permitirão superar a dificuldade.

Como se afirma no bem fundamentado acór-dão, sendo a confissão um dos meios de prova,deve concluir-se que o autor cumpriu o ónus aque estava obrigado.

Pelo exposto, nega-se a revista.

Sem custas.

Lisboa, 7 de Novembro de 2000.

Pinto Monteiro (Relator) — Lemos Triun-fante — Reis Figueira.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do Tribunal Judicial de Redondo, processo n.º 9/97.

II — Acórdão da 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 235/2000.

Acórdão da Relação de Lisboa proferido no recurso n.º 4555/99, de 9 de Novembro de 1999,Colectânea de Jurisprudência, 1999, tomo V, pág. 77.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 145/96, de 15 de Outu-bro de 1996, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 460, pág. 644.

Acórdão da Relação de Évora proferido no processo n.º 406/97, de 27 de Novembro de 1997,Boletim do Ministério da Justiça, n.º 471, pág. 477

(A. S.)

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223 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

Expropriação por utilidade pública — Actualização da indem-nização — Limites da condenação — Jurisprudência unifor-mizada — Recursos sempre admissíveis (artigo 678.º, n.º 6, doCódigo de Processo Civil)

I — O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Outubro de 1996, Diário daRepública, I Série-A, de 26 de Novembro de 1996, que uniformizou jurisprudência nosentido de que «o tribunal não pode, nos termos do artigo 661.º, n.º 1, do Código deProcesso Civil, quando condenar em dívida de valor, proceder oficiosamente à suaactualização em montante superior ao valor do pedido do autor», tem em vista apenas aacção regulada no Código de Processo Civil, ou seja, a acção que se inicia com umapetição, onde se formula um pedido.

II —Tal acórdão não se aplica ao processo de expropriação por utilidade pública,que se inicia com a fase da arbitragem, isto é, pela constituição de um tribunal arbitral,com a finalidade de encontrar a justa indemnização a atribuir ao expropriado.

III — Se no recurso da decisão arbitral, interposto apenas pelo expropriante, aexpropriada defende a manutenção da decisão arbitral e logo manifesta a vontade daactualização do valor da indemnização arbitrada, «de acordo com a evolução dos pre-ços no consumidor sem habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística»,sendo esta a sua primeira intervenção no processo na sua fase jurisdicional, cumpre aotribunal atentar nesse pedido, sem que haja condenação ultra petitum, com violação dodisposto no artigo 661.º do Código de Processo Civil ou do atrás referido acórdãouniformizador de jurisprudência.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 14 de Novembro de 2000Processo n.º 2494/2000 — 6.ª Secção

ACORDAM no SupremoTribunal de Justiça:

Nos presentes autos de expropriação, em queé expropriante a Junta Autónoma de Estradase é expropriada Ferreira Guedes & Soares, L.da,os árbitros nomeados para o efeito, pelo acórdãode fls. 40 e seguintes, datado de 6 de Fevereirode 1994, tirado por unanimidade, fixaram em14 899 000$00 a indemnização a pagar pelaexpropriante.

Notificada a decisão arbitral, dela recorreu parao Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova deGaia a expropriante, pugnando pela redução daindemnização ao valor matricial do imóvel ex-propriado.

Respondeu ao recurso a expropriada no sen-tido de àquele ser negado provimento, actuali-zando-se o valor da indemnização arbitrada, comodetermina o artigo 23.º do Código das Expro-

priações, de acordo com a evolução dos preçosno consumidor, sem habitação, publicado peloInstituto Nacional de Estatística.

O Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, porsentença de 21 de Julho de 1999, julgou impro-cedente o recurso e, consequentemente, fixou em14 899 000$00 o montante da indemnização de-vida à expropriada, «quantia que deve ser actua-lizada de acordo com os índices de preços noconsumidor, com exclusão da habitação, forneci-dos pelo Instituto Nacional de Estatística, até aotrânsito em julgado desta decisão».

Ainda inconformada, a expropriante interpôsrecurso de apelação.

O Tribunal da Relação do Porto, pelo acórdãode fls. 186 e seguintes, datado de 10 de Abril de2000, negando provimento ao recurso, confir-mou aquela sentença.

Continuando inconformada, a exproprianterecorreu de revista, por entender que a decisão

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224 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

proferida o foi contra jurisprudência uniformi-zada por este Suprerno Tribunal (artigo 678.º,n.º 6, do Código de Processo Civil), concluindo asua alegação da forma seguinte:

1.º — O douto acórdão recorrido consubs-tanciou violação de jurisprudência uniformizadapelo Supremo Tribunal de Justiça relativamenteà questão aqui em causa (qual seja a de saber sedeve ou não entender-se ter o tribunal a quo apossibilidade de proceder oficiosamente à actua-lização de uma dívida de valor em montante su-perior ao pedido pelos expropriados — v. g., emcasos como o dos autos, em que os expropriadosnão recorreram da decisão arbitral);

2.º — É sabido que, no processo civil, vigorao princípio do dispositivo, segundo o qual nãohá processo sem iniciativa dos interessados, nemrecurso sem a sua iniciativa;

3.º — Outra vertente do mesmo princípio tra-duz-se no facto de o tribunal só poder e deverdecidir dentro dos limites quantitativos e quali-tativos do que se peticiona (cfr. artigos 3.º e 661.º,n.º 1, do Código de Processo Civil e acórdão doSupremo Tribunal de Justiça n.º 13/96, Diário daRepública, I Série-A, de 26 ele Novembro de 1996;

4.º — Conexo com tal princípio está o da auto--responsabilidade das partes, segundo o qual seas mesmas não pedem o que se justifica, quandoé caso disso, incorrem no risco decorrente da suaconduta, designadamente quanto aos limites dosseus pedidos, uma vez que as suas omissões nãopodem ser supridas pela actividade do juiz;

5.º — Ora, a arbitragem é hoje unanimementereconhecida como funcionando enquanto tribu-nal arbitral necessário, detendo, por isso, os ár-bitros função decisória, intervindo o tribunal decomarca como tribunal de recurso ou de 2.ª ins-tância;

6.º — Nessa qualidade, o seu poder determi-na-se pelas alegações dos recorrentes, ex vi arti-gos 684.º, 690.º, n.º 1, e 668.º, n.º 1, alínea d),todos do Código de Processo Civil;

7.º — A expropriada não interpôs qualquerrecurso da decisão arbitral, que, por isso. transi-tou em relação àquela;

8.º — Sendo certo que, pelas razões já antesdescritas, a ora recorrente entende que em pro-cesso de expropriação não pode o tribunal ofi-ciosamente proceder a qualquer actualização quese traduza na atribuição de montante indem-

nizatório superior ao pedido ou aquele que tivertransitado em julgado em relação à parte res-pectiva;

9.º — De referir, por último, que entende aexpropriante que, para além do mais, o enten-dimento dado pelo douto acórdão recorrido aopreceito constante do artigo 661.º do Código deProcesso Civil consubstancia manifesta incons-titucionalidade, por violação do princípio doacesso ao direito — artigo 20.º da Constituiçãoda República Portuguesa — e do princípio cons-titucional da justa indemnização — artigo 62.º daLei Fundamental — razão pela qual, a vir a con-firmar-se tal interpretação sempre tal matériateria de ser objecto de apreciação pelo TribunalConstitucional.

Contra-alegando, a recorrida pugna no sen-tido de ser negada a revista.

Cumpre decidir.

Os factos considerados assentes pelas ins-tâncias são os seguintes:

Por despacho do Sr. Secretário de Estado dasObras Públicas de 28 de Janeiro de 1992, publi-cado no Diário da República, II Série, de 6 deFevereiro de 1992, foi declarada a utilidade pú-blica, com carácter de urgência, das parcelas deterreno necessárias à construção do IC 1 — lançoMiramar-Maceda;

Dentre as ditas parcelas figura, entre outras, aparcela n.º 68, com a área de 1600 m2 situada emFontinha, Eirado, freguesia de Arcozelo, conce-lho de Vila Nova de Gaia, pertencente à expro-priada;

Em 19 de Julho de 1992 foi efectuada a vis-toria ad perpectuam rei memoriam na presençade um representante da expropriada;

A parcela expropriada confrontava a nas- centecom a parcela n.º 69-A do mesmo proprietário, aqual, por sua vez, confinava com a Tra-vessa doEirado;

A parcela expropriada situava-se a cerca de20 m de distância da Travessa do Eirado e ape-nas separada deste arruamento pela dita parcelan.º 69-A;

A Travessa do Eirado era em macadame e pos-suía redes de distribuição de energia eléctrica (comiluminação pública), de abastecimento de água ede drenagem de águas pluviais;

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225 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

A parcela situava-se na sua maior parte (apro-ximadamente 1300 m2) a menos de 50 m de dis-tância da Travessa do Eirado;

O terreno era plano, com uma ligeira inclina-ção no sentido nascente-poente, inserindo-senuma zona residencial em expansão, onde pre-dominam construções do tipo moradias unifa-miliares com dois pisos acima do solo (com cave,rés-do-chão e dois andares);

A parte poente do prédio expropriado estavaa ser utilizada como pastagern e a parte a nas-cente estava afecta à exploração florestal compinheiros, eucaliptos e mato.

Postos os factos, entremos na apreciação dorecurso.

Como é sabido, da decisão sobre a fixação dovalor da indemnização devida ao expropriado nãoé admissível recurso para o Suprerno Tribunalde Justiça (artigo 46.º, n.º 1, do Código das Ex-propriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro, e acórdão uniformizadorde jurisprudência deste Suprerno de 30 de Maiode 1995, publicado no Diário da República,I Série-A, de 15 de Maio de 1997, para o Códigodas Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lein.º 438/91, de 9 de Novembro, e ainda artigo660.º, n.º 5, do Código das Expropriações, apro-vado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro).

Assim, o presente recurso foi interposto eapenas foi admitido à sombra do n.º 6 do artigo678.º do Código de Processo Civil: o acórdãorecorrido foi proferido contra jurisprudência uni-formizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Tal jurisprudência, aponta a recorrente, é aconsagrada no acórdão deste Supremo com on.º 13/96, publicado no Diário da República,I Série-A, de 26 de Novembro de 1996, que uni-formizou a jurisprudência no sentido de «o tri-bunal não pode, nos termos do artigo 661.º, n.º 1,do Código de Processo Civil, quando condenarem dívida de valor, proceder oficiosamente à suaactualização em montante superior ao valor dopedido do autor».

A questão que se coloca é, pois, a seguinte: oacórdão recorrido afrontou esta jurisprudência?

A resposta, adiante-se desde já, é negativa.O referido acórdão uniformizador de jurispru-

dência tem em vista apenas a acção regulada noCódigo de Processo Civil, ou seja, a acção que se

inicia com uma petição, onde se formula um pe-dido. E o que resulta de tal acórdão é que o tri-bunal nunca pode condenar o réu em montantesuperior ao valor do pedido do autor.

O caso dos autos é totalmente diferente.Trata-se de um processo de expropriação por

utilidade pública, regulado por lei própria, o Có-digo das Expropriações, que se inicia com a faseda arbitragem, isto é, pela constituição de umtribunal arbitral, com a finalidade de encontrar ajusta indemnização a atribuir ao expropriado.

Só depois dessa fase o processo transita parao tribunal judicial, podendo as partes recorrer dadecisão dos árbitros.

No caso dos autos, só a expropriante recorreu.Notificada, a expropriada, respondendo aos

termos do recurso, defendeu a manutenção dadecisão arbitral e logo manifestou a vontade, istoé, assim o pediu, da actualização do valor daindemnização arbitrada,«de acordo com a evolu-ção dos preços no consumidor, sem habitação,publicado pelo Instituto Nacional de Estatística(fls. 80 v.º).

Sendo esta a sua primeira intervenção no pro-cesso na sua fase jurisdicional, cumpria ao tribu-nal atentar neste pedido. Foi o que sucedeu noacórdão recorrido, que manteve a actualizaçãodo valor da indemnização.

Não se vê, pois, que o acórdão recorrido hajacondenado ultra petitum, violando o dispostono artigo 661.º do Código de Processo Civil ouo referido acórdão uniformizador de jurispru-dência.

Assim sendo, havendo um pedido da expro-priada, formulado na altura em que o podia fazer,pois que se conformou em receber a indemniza-ção fixada pela arbitragem se ela lhe fosse paganaquela altura, não há que apreciar, a inconstitu-cionalidade do referido artigo 661.º do Código deProcesso Civil, invocada pela recorrente, poisnão se vê que o mesmo viole o princípio doacesso ao direito ou o princípío da justa indem-nização (artigos 20.º e 62.º, n.º 2, da Constitui-ção).

Por outro lado, ainda que a expropriada nãotivesse formulado o referido pedido, sempre ha-veria que proceder à actualização da indemniza-ção arbitrada à expropriada.

O Código das Expropriações de 1976 nadadizia sobre o momento a que se devia atender

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226 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

para calcular o valor da justa indemnização a atri-buir ao expropriado nem sobre a actualização damesma.

A jurisprudência, como nos dá nota a sen-tença da 1.ª instância, encontrava-se dividida.

Tal momento era localizado na data da posseadministrativa, na data da arbitragem, na data daavaliação pelos peritos ou na data da sentença.

Com o Código das Expropriações de 1991, olegislador indicou o modo de efectuar o cálculodo montante da indemnização. Nos termos don.º 1 do artigo 23.º deste Código, «o montante daindemnização calcula-se com referência à data dadeclaração de utilidade pública, sendo actuali-zado à data da decisão final do processo de

acordo com a evolução do índice de preços noconsumidor, com exclusão da habitação».

Tratando-se de lei interpretativa integra-se nalei interpretada (artigo 13.º, n.º 1, do Código Ci-vil), pelo que é de aplicação nos presentes autos.

Não merece, pois, qualquer censura a decisãorecorrida.

Termos em que se nega a revista.Sem custas.

Lisboa, 14 de Novembro de 2000.

Tomé de Carvalho (Relator) — Silva Paixão —Silva Graça.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do 5.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, processo n.º 85/99.

II — Acórdão da 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 274/2000.

Em sentido idêntico ao do acórdão que se anota decidiu também o Supremo Tribunal de Justiçapor acórdão de 13 de Março de 2001, processo n.º 298/2001, 6.ª Secção.

No que concerne aos limites da condenação do artigo 661.º e à jurisprudência uniformizada,remetemos para o Boletim do Ministério da Justiça, n.º 460, págs. 76 a 87 (parecer do MinistérioPúblico) e 169 a 183 (acórdão uniformizador de jurisprudência), onde vem citada abundante doutrinae jurisprudência.

(B. N.)

Arresto — Dano — Jogador de futebol — Direito de cedênciaou de transferência («passe») — Penhora — Sentença — Faltade fundamentação — Nulidade — Abuso de direito (venire contrafactum proprium) — Litigante de má fé — Constitucionalidade

I — O artigo 392.º, n.º 1, do Código de Processo Civil afasta expressamente aaplicação aos procedimentos cautelares especificados, por isso ao arresto, da regra don.º 2 do artigo 387.º do mesmo Código.

II — O direito de cedência ou transferência («passe») de jogador profissional defutebol é susceptível de penhora e arresto.

III — Não havendo cedência, ou sendo a mesma a título gratuito, não se materializaum direito avaliável em dinheiro, pelo que o arresto não opera, mas existindo umacedência ou transferência onerosas existirá um crédito, de conteúdo pecuniário, queresponde pelas dívidas nos termos do artigo 821.º do Código de Processo Civil; esta

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227 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

conclusão resulta hoje segura do artigo 860.º-A do Código de Processo Civil, nos termosdo qual é possível a penhora de direitos ou expectativas de aquisição de bens determi-nados.

IV — A nulidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civilsó ocorre quando há falta absoluta de fundamentação e não quando o tribunal nãotenha apreciado especificadamente todas as razões invocadas pelas partes.

V — É no artigo 334.º do Código Civil, designadamente na boa fé aí enunciada,que se encontra a base legal do venire contra factum proprium, que se traduz no exercíciode uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormentepelo exercente.

VI — Todavia, não é vedado no nosso direito assumir comportamento contraditóriocom comportamentos anteriores, pelo que haverá que analisar cada caso concreto parase concluir se ocorre o circunstancialismo especial que justifica a aplicação daquelafigura.

VII — A verificação de má fé por parte de litigante, hoje alargada à conduta comnegligência grave, exige uma apreciação casuística, não cabendo em estereótipos rígi-dos, sob pena de se limitar o direito de acção ou defesa.

VIII — Quer o arresto quer os meios consentidos de defesa aos arrestados são osadequados para a prossecução dos fins visados pela lei e são, no caso, os menos onero-sos para os direitos, liberdades e garantias, situando-se numa justa medida, não despro-porcionada em relação aos fins visados e obtidos.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 21 de Novembro de 2000Agravo n.º 2518/2000

ACORDAM, em conferência, no SupremoTribunal de Justiça:

I — Artur Alves da Silva Meneses instaurouprocedimento cautelar contra União Desportivade Leiria, pedindo o arresto do direito de cedênciados jogadores da equipa de futebol profissionalda requerida.

Alegou ser credor de 164 414 078$00 que arequerida não paga, sendo certo que o únicoactivo da mesma é constituído pelos direitos decontratação dos jogadores de futebol que está naeminência de alienar.

Inquiridas testemunhas, foi, sem audição pré-via da requerida, decretado o arresto relativamentea três dos «passes» em causa.

Posteriormente, foi o requerente autorizado apraticar actos indispensáveis à conservação dodireito de crédito arrestado.

Agravou a requerida.A oposição deduzida foi julgada improce- den-

te e o arresto mantido.Agravou de novo a requerida.

O Tribunal da Relação manteve o decidido.Não se conformando recorre a requerida para

este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:

— O acórdão do qual se recorre aplicou erra-damente a Lei de Processo;

— O contrato de trabalho desportivo é umverdadeiro contrato de trabalho;

— Os direitos de cedência arrestados não exis-tem enquanto direitos, como o próprio acórdãorefere ao denominador de «faculdade de cedên-cia»;

— Foram arrestados direitos inexistentes;— Não existem direitos de cedência mas sim a

faculdade ou o poder de ceder;— A cedência de um praticante desportivo

configura uma verdadeira cessão da posiçãocontratual, como admite o acórdão recorrido;

— Os direitos de transferência arrestados nãoexistem enquanto direitos;

— Para que haja cedência ou transferênciade um praticante desportivo nos termos da Lei

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228 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

n.º 28/98 é necessário o consentimento expressodo jogador;

— A transferência de um praticante despor-tivo implica que a relação laboral com a entidadeà qual se encontrava ligado já tenha sido extinta;

— Sendo necessário quer para a cedência querpara a transferência o consentimento e interven-ção do praticante desportivo não é possível asua apreensão judicial, atendendo ao dispostono artigo 822.º do Código de Processo Civil.

— O contrato de cedência e de transferêncianão são contratos por natureza onerosos, comoo próprio acórdão refere, estando assim despro-vidos de valor venal são insusceptíveis de pe-nhora;

— O acórdão do qual se recorre é nulo por-quanto não especifica os fundamentos de facto ede direito que justificam quer a decisão de manu-tenção de providência apesar do prejuízo para aagravante quer o abuso de direito, estando a deci-são em contradição com a matéria dada comoassente;

— Assim, o facto de existir um direito de cré-dito por parte do agravado não implica sem maisa inexistência de um abuso de direito, já que estepor definição implica que haja direito;

— A actuação do agravado foi contrária aoque garantira perante a agravante que iria ser asua conduta;

— A decisão em causa violou os artigos 668.º,755.º e 822.º do Código de Processo Civil e a Lein.º 28/98, de 26 de Junho.

Contra-alegando, o requerente defende a ma-nutenção do decidido.

Está junto parecer de ilustre professor.Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II — Vem dado como provado:

O requerente tem domicílio em Ribeira deBaixo, Porto de Mós;

O requerente é um empresário de renome, como núcleo da sua actividade na Região Centro doPaís;

A requerida, por seu turno, é uma agremiaçãodesportiva de utilidade pública reconhecida comotal pelo Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de Novem-bro;

Em diversas ocasiões e para fazer face às difi-culdades financeiras da requerida, o requerente

prestou-lhe financiamentos, denominados pelaspartes como suprimentos, no valor de largas cen-tenas de milhares de contos;

Por seu turno e com o intuito de canalizarmeios para o financiamento da actividade des-portiva, algumas empresas do requerente afixa-ram publicidade estática no Estádio Municipalde Leiria, por ocasião de diversos jogos inte-grados no Campeonato Nacional de Futebol da1.ª divisão, no qual a requerida participa;

Com o apuramento destas responsabilidadesrecíprocas, o requerente detém um saldo credorjunto da requerida no valor de 163 141 106$00;

Algumas sociedades cederam ao requerenteos seus créditos sobre a requerida, facto que foidesde sempre conhecido desta, até porque todasas sociedades são dominadas em absoluto pelo re-querente, fazendo parte do denominado «GrupoMeneses»;

Ao saldo de 163 142 106$00 acrescem aindaresponsabilidades decorrentes de juros e comis-sões decorrentes da existência de conta darequerida, caucionada pelo requerente, tendo estepago por essa via a quantia de 1 271 972$00;

Todas as responsabilidade se encontram jávencidas;

A União Desportiva de Leiria tem manifes-tado não concordar com os fundamentos da re-clamação efectuada pelo requerente, referindo queos valores mutuados por este sempre tiveram«intenção liberatória»;

Para além disso, é conhecida a situação detotal debilidade financeira da requerida, moti-vada, essencialmente, pelos elevados custos demanutenção de uma equipa primodivisionária;

Não se podendo prever quando poderá o«clube» requerido sair da difícil situação econó-mico-financeira em que se encontra;

Este facto é agravado pelo facto de o únicoactivo da União Desportiva de Leiria ser consti-tuído pelos direitos de contratação dos jogado-res de futebol profissional da União Desportivade Leiria, os denominados «passes» dos joga-dores;

As instalações administrativas e o estádiodesportivo não são propriedade da requerida mas,outrossim, da Câmara Municipal de Leiria;

Pela circunstância de se encontrar eminente aabertura de inscrições dos jogadores junto da Liga

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229 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

Portuguesa de Futebol Profissional, o que suce-derá no próximo dia 1 de Junho;

Daí poderá resultar a transferência de diver-sos jogadores da União Desportiva de Leiria paraoutras equipas;

Com a consequente alienação dos direitos decontratação (passe);

Para além disso, é possível à requerida tran-saccionar os direitos de contratação dos seusjogadores para outros clubes de qualquer partedo mundo através da Federação Portuguesa deFutebol;

Fazem o requerente temer pela possibilidadede recuperação do seu crédito vencido e vincendo;

A requerida tem como único activo os direitosdecorrentes dos contratos de trabalho dos prati-cantes desportivos, mais precisamente os con-tratos celebrados com os jogadores da equipa defutebol profissional, nos termos da Lei n.º 28/98,de 26 de Junho;

De tais direitos, com expressão pecuniária,relevam os direitos de cedência e de transferênciado praticante desportivo para qualquer clube defutebol nacional ou internacional;

Por via do direito de cedência, pode a reque-rida, mediante remuneração, transferir tempora-riamente o praticante desportivo para outraentidade empregadora desportiva;

No que tange ao direito de transferência, podea requerida transmitir de forma definitiva o pra-ticante desportivo para uma congénere entidadeempregadora desportiva.

III — Requerido arresto do direito de cedênciade jogadores de uma equipa de futebol profis-sional, foi o mesmo decretado relativamente ao«passe» de três desses jogadores.

Não se conforma a requerida e daí o recurso.A questão de fundo a resolver consiste em

saber se é possível o arresto dos «passes» dejogadores de futebol.

Conexamente, a recorrente invoca a nulidadedo acórdão, o abuso de direito e a má fé do reque-rente.

As providências cautelares visam obter umacomposição provisória do litígio, quando ela semostre necessária para assegurar a utilidade dadecisão, a efectividade de tutela jurisdicional, oefeito útil da acção a que se refere o artigo 2.º,n.º 2, do Código de Processo Civil.

São meios de tutela do direito que carecem deautonomia, dependendo de uma acção já inten-tada ou a intentar.

Dessa justificação e finalidade decorre a carac-terização das providências cautelares: a proviso-riedade; a instrumentalidade; a sumaria cognitivo;o carácter urgente; a estrutura simplificada.

As providências cautelares não visam resol-ver questões de fundo, nem a decisão proferidanas mesmas se reflecte na acção principal.

Estes processos visam acautelar os efeitospráticos da decisão definitiva a obter na acçãoproposta ou a propor, fazendo-se, por isso, umainvestigação sumária, não resolvendo definitiva-mente o litígio.

Tem sido pacificamente entendido que sãopressupostos autónomos dos procedimentoscautelares: a probabilidade séria da existência dodireito; o fundado receio de que outrem causelesão grave e de difícil reparação a esse direito;não exceder o prejuízo resultante da providênciao dano que com ela se pretende evitar.

No que respeita ao primeiro dos requisitos,bastará um juízo de verosimilhança, de probabi-lidade. Numa apreciação, necessariamente, su-mária deve apurar-se se o direito é verosímil.

Já no que toca ao segundo dos requisitos seránecessário concluir que existe um receio fundadoe actual e não meramente hipotético.

Exige-se finalmente um juízo de razoabilidade,uma análise da proporcionalidade entre os danosem conflito no decretamento de uma providên-cia.

A prova que se exige é, em conformidade, umaprova sumária, assente num grau de probabili-dade razoável e não numa convicção plena, comoterá que existir aquando da apreciação do litígioem si.

O arresto é um dos procedimentos cautelaresespecificados.

A lei substantiva dispõe, a propósito, que ocredor que tenha justo receio de perder a garantiapatrimonial do seu crédito pode requerer o ar-resto dos bens do devedor, nos termos da lei doprocesso (artigo 619.º, n.º 1, do Código Civil).

Em consonância, o artigo 406.º, n.º 1, do Có-digo de Processo Civil estipula que o credor quetenha justificado receio de perder a garantia patri-monial do seu crédito pode requerer o arrestodos bens do devedor.

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230 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

Em concreto, o requerente do arresto deduziuos factos que tornam provável a existência doseu crédito e justificam o receio invocado, rela-cionando os bens que devem ser apreendidos comas indicações necessárias à realização da dili-gência. Deu assim cumprimento ao disposto noartigo 407.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

As instâncias deram como provada a existên-cia dos requisitos e decretaram o arresto.

A ora recorrente alega, a propósito, que oacórdão recorrido é nulo porquanto não especi-fica os fundamentos de facto e de direito quejustificam a manutenção da providência, apesardo prejuízo que daí advém para a agravante.

Invoca o artigo 387.º, n.º 2, do Código de Pro-cesso Civil, de harmonia com o qual a providên-cia pode ser recusada pelo Tribunal quando oprejuízo dela resultante para o requerido excedaconsideravelmente o dano que com ela o reque-rente pretende evitar.

A recorrente não tem razão, por três motivos.Em primeiro lugar há que ter em conta que o

artigo 392.º, n.º 1, do referido diploma ao preco-nizar a aplicação subsidiária aos procedimentosnominados das disposições gerais, textualmentediz: «Com excepção do preceituado no n.º 2 doartigo 387.º»

Ora, das disposições específicas do arrestonão consta nenhuma que preencha a pretensãoda recorrente.

Não é, por outro lado, exacto que na decisãorecorrida a questão não tenha sido apreciada.Expressamente se referiu que a agravante temum plantel cujos passes estão avaliados em800 000 000$00, tendo o arresto sido decretadosó em relação a três, apesar de requerido relati-vamente a treze jogadores, assim se salvaguar-dando o invocado prejuízo.

Acresce que tendo a requerida deduzido opo-sição, onde sustentava já tal tese, a mesma foijulgada não provada e é certo que era a ela quecompetia alegar e provar factos que se destina-vam a infirmar os fundamentos que justificavamo decretamento do arresto.

Acrescenta-se uma nota.

Como é sabido, ao Supremo, como Tribunalde revista, só cumpre decidir questões de direitoe não julgar matéria de facto. No recurso éadmissível apreciar a eventual violação da lei adjec-

tiva, mas só no caso de erro na apreciação dasprovas ou na fixação dos factos materiais dacausa (artigos 729.º e 722.º do Código de Pro-cesso Civil).

Ora, a apreciação dos requisitos ou, melhor,da factualidade de que os mesmos dependem éda competência das instâncias — em parte oProf. Alberto Reis, Código de Processo CivilAnotado, I, págs. 685 e seguintes.

A questão, contudo, não se esgota aqui.O arresto consiste numa apreensão judicial de

bens, à qual são aplicáveis as disposições relati-vas à penhora (artigo 406.º, n.º 2, do Código deProcesso Civil).

Só poderão assim, como princípio, ser ob-jecto de arresto bens que possam ser penho-ráveis, até porque o arresto será convertido empenhora, por despacho, no processo executivo.

Suscita-se, por isso, o problema de saber se odireito de cedência ou transferência dos jogado-res é susceptível de penhora.

Estão sujeitos à execução todos os bens dodevedor susceptíveis de penhora que, nos ter-mos da lei substantiva, respondem pela dívidaexequenda (artigo 821.º do Código de ProcessoCivil).

A regra geral é a de que são penhoráveis todosos bens alienáveis, salvo se a lei expressamenteos excluir. Dentro desse princípio, e para além dedisposições especiais, o Código Civil consideraa existência de bens absoluta ou totalmente im-penhoráveis (artigo 822.º), bens relativamenteimpenhoráveis (artigo 823.º) e bens parcialmentepenhoráveis (artigo 824.º).

No acórdão recorrido concluiu-se que o di-reito em causa pode ser objecto de penhora earresto. Decidiu-se bem, segundo pensamos.

O praticante profissional de futebol liga-se aorespectivo clube mediante um contrato de traba-lho desportivo, regulado pela Lei n.º 28/98, de 26de Junho, que apresenta particularidades e espe-cificidades impostas pela natureza da práticadesportiva.

No que aqui importa há que salientar que findoo prazo do contrato o jogador é livre para cele-brar novo contrato com o mesmo ou outro clube.Neste caso o novo clube não terá que pagar aoanterior qualquer verba. É o que em linguagemfutebolística se chama adquirir o jogador a«custo zero».

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231 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

Enquanto vigorar o contrato o jogador poderásair do clube ou por acordo ou por rescisão docontrato se existir motivo justificativo.

Mas, para além disso, na vigência do contratode trabalho desportivo é permitida, havendoacordo das partes, a cedência do praticante des-portivo a outra entidade empregadora despor-tiva, devendo constar do contrato de cedênciaa declaração de concordância do trabalhador(artigos 19.º, n.º 1, e 20.º, n.º 2, da referida Lein.º 28/98).

O clube pode assim ceder a outro clube o seujogador, na vigência do contrato. Ceder por «em-préstimo» temporariamente ou a título defini-tivo por «transferência».

Cedência essa que envolve, obviamente, a con-cordância do jogador e que este, naturalmente, sódará se daí lhe advierem vantagens patrimoniaisou outras.

Embora a lei não imponha um custo para talcedência, a verdade é que é um facto público enotório que as transferências (mesmo no nossomeio desportivo) atingem, por vezes, milhões decontos.

É também sabido que dado o elevado valordos «passes» dos jogadores de futebol, algunsclubes (em particular da divisão principal) têmnesse valor o seu principal património.

Basta para tal atentar (o que também é públi-co e notório) na valorização de tais «passes» aquando da constituição das SAD.

A possibilidade que a lei concede ao clubepara, directamente ou por intermédio de empre-sário desportivo, ceder um seu jogador mediantecontrapartida financeira constitui, como correc-tamente se diz na decisão recorrida, um direitoeconomicamente avaliável que constitui umactivo patrimonial.

Sustenta a recorrente que a cedência de umpraticante desportivo mais não é do que umacessão da posição contratual, inexistindo quais-quer direitos de cedência na esfera jurídica daentidade desportiva. Não existindo qualquer di-reito a ceder, mas uma faculdade ou poder deceder, não pode ser decretado o arresto já queincidiria sobre um direito inexistente.

Pensamos que não é assim.Não havendo cedência ou sendo a mesma a

título gratuito, não se materializa um direito ava-liável em dinheiro, pelo que o arresto não opera.

Não havendo acordo do jogador não pode ha-ver cedência, pelo que a questão não se coloca,pelo menos nesta fase.

Mas, existindo uma cedência ou transferênciaonerosas, então existirá um crédito do clube, deconteúdo pecuniário e que responde pelas dívi-das nos termos do artigo 821.º do Código Pro-cesso Civil.

Conclusão que resulta hoje segura do artigo860.º-A do mencionado Código, onde expressa-mente se prevê a penhora «de direitos ou expec-tativas de aquisição de bens determinados».

Esta possibilidade de penhorar direitos ouexpectativas afigura-se-nos como uma inovaçãode grande alcance prático, não obstante as difi-culdades que a sua concretização pode suscitar.

São assim penhoráveis a posição do promi-tente-comprador fundada em contrato com efi-cácia real, a posição do titular de direito de pre-ferência, o direito que seja objecto de negóciocondicional, na pendência da condição e outrosdireitos e expectativas de aquisição — Prof.Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2.ª ed.,págs. 204-205; conselheiro Amâncio Ferreira,Curso de Processo de Execução, 2.ª ed., pág. 178.

A circunstância de o direito estar condicio-nado não limita o arresto, transferindo-se antespara a fase executiva o problema de conhecer daverificação ou não da condição.

Nem de tal é igualmente impeditivo o facto dese estar perante uma cessão da posição contratual.É que em caso de recusa do consentimento docedido não pode ter lugar a transmissão da posi-ção contratual para o cessionário, com completaexoneração do cedente, pelo que, em princípio,não se produzirão quaisquer efeitos, mesmo en-tre cedente e cessionário — Prof. Mota Pinto,Cessão da Posição Contratual, pág. 474.

Só existindo uma efectiva e válida cessão oarresto se tornará realmente eficaz.

Defende por fim a agravante a tese de que oacórdão recorrido é nulo por não especificaçãodos fundamentos de facto e de direito que justi-ficaram o não atendimento do alegado abuso dedireito e da má fé do agravado.

Na decisão abordaram-se ambas as questões,pelo que não ocorre qualquer nulidade da previ-são do artigo 668.º do Código de Processo Civil.

Diga-se, aliás, que, como é jurisprudência fir-mada, a nulidade da alínea b) do n.º 1 do artigo

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232 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

668.º só ocorre quando há falta absoluta de moti-vação e não quando o Tribunal não tenha apre-ciado especificamente todas as razões invocadaspelas partes — por todos o acórdão do SupremoTribunal de Justiça de 14 de Maio de 1974, Bo-letim do Ministério da Justiça, n.º 237 , pág. 132.

Acrescentar-se-ão, contudo, algumas consi-derações, já que, como é sabido, trata-se de ma-téria de conhecimento oficioso.

O artigo 334.º do Código Civil diz que é ilegí-timo o exercício de um direito quando o titularexceda manifestamente os limites impostos pelaboa fé, pelos bons costumes ou pelo fim socialou económico desse direito.

Aceita o legislador a concepção objectivista.Não é preciso que o agente tenha consciência

da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bonscostumes ou ao fim social ou económico do di-reito exercido. Basta que o acto se mostre con-trário, exigindo-se, contudo, que o titular dodireito tenha excedido manifestamente esses li-mites impostos ao seu exercício — Prof. AlmeidaCosta, Obrigações, págs. 52 e seguintes.

A figura do abuso de direito surge como umaforma de adaptação do direito à evolução da vida,procurando contornar situações que os limitesapertados da lei não contemplam por forma con-siderada justa pela consciência social em deter-minado momento histórico e procurando evitarque observada a estrutura formal do poder que alei confere, se excedam manifestamente os limi-tes que se devem observar, tendo em conta a boafé e o sentimento de justiça em si mesmo.

É exactamente no referido artigo 334.º, desig-nadamente na boa fé enunciada, que se encontraa base legal do venire contra factum proprium,que se traduz no exercício de uma posição jurí-dica em contradição com o comportamento as-sumido anteriormente pelo exercente.

Ninguém pode fazer valer um poder em con-tradição com o seu comportamento anterior,quando este comportamento, à luz da lei, dosbons costumes ou da boa fé se deve entendercomo «renúncia concomitante ao poder ouquando o exercício posterior do poder contendacom a lei, os bons costumes ou a boa fé». Hávenire contra factum proprium quando uma pes-soa, em termos que especificamente não a vin-culam, manifeste a intenção de não ir praticar

determinado acto e, depois, o pratique, aindaquando o acto em causa seja permitido por inte-grar o conteúdo de um direito subjectivo. Podeacontecer quando o titular exercente manifesta aintenção de não exercer um direito potestativo,mas exerce-o e também quando o titular exercenteindicia não ir exercer um direito subjectivo co-mum, mas exerce-o — Prof. Menezes Cordeiro,De Boa Fé no Direito Civil, 1984, II, págs. 742--770; Obrigações, I, págs. 49 e seguintes.

Não existe no nosso direito uma proibiçãogenérica de contradição, nem é vedado assumircomportamento contraditórios com comporta-mentos anteriores.

Haverá, por isso, que analisar o caso concretopara concluir se ocorre o circunstancialismo es-pecial que justifica a aplicação do venire contrafactum proprium.

Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro naob. cit. «fica em aberto a oportunidade da suaaplicação em cada caso concreto».

Um dos critérios possíveis é o de ninguémpoder exercer um direito em contradição com ocomportamento anterior quando este justifiquea conclusão de que não o iria fazer e, por viadisso, tenha despertado na outra parte uma de-terminada confiança, juridicamente tutelável.

Será assim no caso em apreço?Da factualidade trazida até este Tribunal não

é possível concluir pela afirmativa.O requerente da providência limita-se a acau-

telar a satisfação do que diz ser um seu avultadocrédito sobre a requerida. Nada impede que even-tuais outros credores recorram aos meios que alei lhes concede.

Nem se vê que da actuação do agravado sepossa extrair a conclusão de que a mesmo foicontrária ao que garantira à agravante.

Este Tribunal tem que se cingir à factualidadeapurada pelas instâncias e dela não resulta que seesteja a tentar fazer valer um poder em contradi-ção com o comportamento anterior do recorrido.

Vejamos finalmente a questão da má fé.Na anterior redacção do artigo 456.º, n.º 2, do

Código de Processo Civil, de forma quase uni-forme, a jurisprudência seguia o entendimentode que a condenação por litigância de má fé pres-suponha a existência de dolo, não bastando umalide temerária, ousada ou uma conduta mera-mente culposa.

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233 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

É o ensinamento que vinha do Prof. AlbertoReis, Código de Processo Civil Anotado, II,pág. 259, e do Prof. Manuel de Andrade, NoçõesElementares de Processo Civil, pág. 343.

Consagrando a actual redacção do n.º 2 doartigo 456.º esse entendimento, o conceito de máfé foi, contudo, alargado, abrangendo a negligên-cia grave, com o que parece ser uma pretensãomoralizadora da lide.

Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ounegligência grave, tiver deduzido pretensão ouoposição cuja falta de fundamento não deviaignorar; quem tiver alterado a verdade dos factosou omitido factos relevantes para a decisão dacausa; quem tiver praticado omissão grave do de-ver de cooperação; quem tiver feito do processoou dos meios processuais um uso manifestamentereprovável, com o fim de conseguir um objectivoilegal; impedir a descoberta da verdade; entor-pecer a acção da justiça ou protelar sem funda-mento sério o trânsito em julgado da decisão[artigo 456.º, n.º 2, alíneas a), b), c) e d)].

Terá o ora recorrido deduzido pretensão cujafalta de fundamento não devia ignorar ou teráomitido factos relevantes para a decisão dacausa?

A questão da má fé não pode ser vista com alinearidade que, por vezes, lhe é atribuída, sobpena de se limitar o direito de acção ou defesa.

Terá que haver uma apreciação casuística, nãocabendo a análise do dolo ou negligência graveem estereótipos rígidos, como já se escreveu emanteriores acórdãos.

Em concreto, o requerente socorre-se de umafaculdade que a lei lhe concede e justificou o re-

querido com os fundamentos exigidos por essamesma lei.

As relações do requerente com a requerida oucom o clube de futebol são aspectos que, po-dendo relevar na questão de fundo, não são es-senciais em sede de procedimento cautelar.

Nem eventuais facilidades concedidas pela orarecorrida são impeditivas de o mesmo vir fazervaler os seus direitos.

Não se vê que tenha intencionalmente sidoocultado qualquer elemento essencial para o queaqui se discute.

Faz ainda a recorrente uma ligeira referênciaaos direitos constitucionalmente consagrados.

Não existe qualquer violação.Quer o arresto, quer os meios consentidos de

defesa aos arrestados são os adequados para aprosecução dos fins visados pela lei e são nocaso os menos onerosos para os direitos, liber-dades e garantias, situando-se numa «justa me-dida», não desproporcionada em relação aos finsvisados e obtidos, no dizer dos Profs. GomesCanotilho e Vital Moreira, Constituição da Re-pública Portuguesa Anotada, 1993, designa-damente a págs. 152-153.

Não merece assim censura o bem fundadoacórdão.

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo.Custas pela recorrente.

Lisboa, 21 de Novembro de 2000.

Pinto Monteiro (Relator) — Lemos Triun-fante — Reis Figueira.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença da 1.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, processo n.º 291/99.

II — Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 112/2000.

I — Deverá reter-se a alargada informação doutrinal e jurisprudencial constante do acórdão.

II — Não se localizaram decisões anteriores do Supremo sobre a cedência dos «passes» dosjogadores de futebol.

III — Para além da doutrina citada, podem ver-se, quanto ao abuso de direito tratado, porexemplo, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 299, Antunes Varela, Das

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234 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª ed., págs. 563-567, Almeida Costa, Revista de Legislação e deJurisprudência, ano 129.º, págs. 31-36, Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência,ano 127.º, págs. 234-237, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, 1999,ponto 67, págs. 200-203.

IV — O Tribunal Constitucional apreciou de forma indirecta o arresto quando, no acórdão de9 de Janeiro de 1987 (apreciação preventiva), Diário da República, I Série, de 9 de Fevereiro de 1987,pág. 504, e no acórdão de 7 de Maio de 1991 (fiscalização sucessiva), Diário da República, II Série,de 11 de Setembro de 1991, pág. 9133, julgou não inconstitucionais as normas constantes do n.os 1 e 3do artigo 337.º do Código de Processo Penal de 1987 que regulam os efeitos da contumácia.

(A. A. O.)

Contestação — Oportunidade de dedução da defesa —Articulado superveniente — Defesa superveniente —Superveniência subjectiva

I — O artigo 523.º do Código de Processo Civil, ao estatuir que a parte pode juntaros documentos até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, mas com condenaçãoem multa, salvo se provar que não pôde oferecê-los com o articulado, tem por objectivoconciliar o princípio da disciplina processual, que postula o oferecimento imediato dosdocumentos, com o princípio de justiça, segundo o qual a decisão deve ser a expressão,tão perfeita e completa quanto possível, da verdade dos factos que interessam ao litígio.

II — A lei quer que os documentos sejam juntos com o respectivo articulado, masnão proíbe que sejam apresentados mais tarde, porque podem ser necessários para es-clarecer a questão e habilitar o juiz a proferir a decisão justa, punindo, no entanto, commulta a negligência ou a malícia da parte que guarda para o fim documentos que podiae devia juntar no momento oportuno.

III — Notificada a contraparte do oferecimento dos documentos operado após asua contestação a respectiva conduta processual não está limitada a uma interpretaçãodo artigo 526.º do Código de Processo Civil, segundo a qual este normativo tem umafunção exclusivamente de verificação da veracidade ou exactidão dos documentos, nostermos do artigo 544.º do mesmo Código.

IV — Mais do que isso, pode completar a sua defesa com articulado posterior desdeque deduzido no prazo de 10 dias a contar da notificação da junção dos documentos,pois só a partir desta tomou conhecimento do conteúdo dos mesmos, pelo que não ofazendo sibi imputed.

V — É a chamada defesa superveniente ou superveniência subjectiva, consentidanos termos do artigo 498.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e que exige o uso de umarticulado superveniente, permitido pelo artigo 506.º, n.º 2, do mesmo Código.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 23 de Novembro de 2000Processo n.º 2463/2000

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235 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

ACORDAM na Secção Cível do SupremoTribunal de Justiça:

Commerzbank ag., instituição bancária comsede em Frankfurt intentou contra Minas e Meta-lúrgica, S. A., com sede em Branca, Albergaria-a--Velha, acção declarativa sob a forma ordinária,em que conclui pedindo que a ré seja condenadaa pagar-lhe a quantia de 17 288 687$00, por-quanto é legítimo portador de duas letras de câm-bio, por via de endosso, daquele montante, sacadaspela ré e que não foram pagas na data do respec-tivo vencimento.

Citada a ré, precedendo a distribuição, como aautor requereu, logo a fls. 7 veio dizer por reque-rimento que estava impedida de contestar pornão estar na posse dos documentos que a autoraprotestou juntar, mas contestando disse desco-nhecer as letras de câmbio referidas na petiçãoinicial, mas por mera cautela impugnou toda amatéria articulada pela autora e conclui pela im-procedência da acção.

Com o requerimento de fls. 16 entrado após aapresentação da contestação, a autora juntou fo-tocópia autenticada das letras devidamente tra-duzidas e legalizadas, tendo a ré sido notificadacom o envio do duplicado das letras.

Após a realização de uma tentativa de conci-liação, que não conduziu a qualquer resultado,foi elaborado o saneador e organizados a espe-cifiçação e o questionário, tendo a ré interpostorecurso do saneador, que foi admitido como agravocom subida diferida e efeito devolutivo.

E seguindo a acção os seus regulares termos,veio a final a ser proferida sentença que julgou aacção procedente e condenou a ré a pagar ao au-tor a quantia pedida.

Inconformada a ré interpôs recurso de ape-lação, mas a Relação, conhecendo desta e doagravo, negou provimento a este e julgou aquelaimprocedente.

De novo irresignada recorre de revista e, ale-gando, formula as seguintes conclusões:

I — O douto despacho saneador e, depois, adouta sentença, contém a «nulidade secundária»prevista no n.º 1 do artigo 201.º do Código deProcesso Civil, resultante de ter sido omitida, napronúncia, uma formalidade que pode influir, einfluiu, na decisão da causa;

II — A omissão de tal formalidade consistiuna impossibilidade de a recorrente analisar (ver)as letras e sobre elas se pronunciar, eventual-mente deduzindo excepções, no prazo legal quetinha para o fazer;

III — E tanto assim foi que a recorrente nãopôde, ao menos, confessar ou negar a firma;

IV — Aliás, foi a própria recorrida que norequerimento com que juntou as letras — em 21de Outubro de 1996, portanto fora do prazo quea recorrente tinha para contestar — escreveu «[...]nas quais se fundamenta a acção [...]»;

V — Ora, sendo a letra de câmbio um título«rigorosamente formal», era absolutamente in-dispensável que estivessem autuadas no prazoque a recorrente tinha para contestar;

VI — Tal nulidade devia ter sido consideradano despacho saneador e, depois, na sentença,pelo que, não o tendo sido, há nulidade destasdoutas peças processuais;

VII — O douto acórdão da Relação confirmaa douta sentença com um argumento que se podesintetizar no seguinte: quando os documentos(letras) foram juntos, podia a recorrente «[...]contestar em articulado subsequente, quer aadmissibilidade, quer a autenticidade, quer aforça probatória do documento tardiamentejunto pela outra parte»;

VIII — Salvo o devido respeito, não é, po-rém, assim, porque as letras de câmbio, nestaacção de letra, não são meros documentos paraprova de factos alegados, antes constituindo aprópria causa de pedir da acção, o que, aliás,resulta do teor da própria douta petição inicial,que remete exclusivamente para as letras, semalegar quaisquer factos que pudessem corporizarnegócio jurídico eventualmente subjacente à emis-são das letras;

IX — Ora, além do mais, «[...] a emissão daletra, embora motivada por uma relação jurídicasubjacente, dá lugar a uma obrigação abstractaque dessa causa se liberta» (cfr. douto acórdãodo Supremo Teibunal de Justiça de 11 de Junhode 1969, Boletim, n.º 188, pág. 205);

X — Acresce que a recorrente, contraria- men-te ao que se exarou no douto acórdão da Relação,não dispunha de «[...] articulado subsequente[...]» no qual pudesse contestar, porque, alémdos articulados «normais», digamos assim, só sepodem deduzir articulados supervenientes nas

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236 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

condições previstas no artigo 506.º do Có-digode Processo Civil, condições que não se verifi-cam no caso em apreço;

XI — Significa tudo isto que a recorrente nãopôde, efectivamente, contestar — no sentido deimpugnar, aduzir argumentos, deduzir excepções,etc. ... —, o que denunciou logo no seu requeri-mento de fls. 7 e também no próprio articuladoque serviu de «contestação»;

XII — Contrariamente ao que se exarou nodouto acórdão da Relação, a notificação de umdocumento, nos termos do disposto no artigo526.º, não permite «[...] à parte contrária contes-tar em articulado subsequente, quer a admissibi-lidade, quer a autenticidade, quer a força pro-batória do documento tardiamente junto pelaoutra parte»;

XIII — «I —A notificação ordenada pelo ar-tigo 526.º do Código Processo Civil visa tão--somente a tomada de posição quanto à veraci-dade dos documentos juntos. II — Se a partenotificada, na resposta, apreciar o valor dessedocumento, fazendo considerações sobre o seuconteúdo ou sobre factos que com ele se pro-curam provar, deve essa resposta ser mandadadesentranhar dos autos» (cfr. douto acórdão doSupremo Tribunal Administrativo de 4 de Feve-reiro 1975, apêndice ao Diário da República, de7 de Novembro de 1976, pág. 81);

XIV — «A notificação prevista no artigo 526.ºdo Código de Processo Civil destina-se exclusi-vamente à verificação da veracidade ou exactidãodos documentos, não permitindo o aproveita-mento dessa oportunidade para serem tratadosoutros assuntos que envolvam a apresentação deum novo articulado ou alegações sobre a matériada acção» (cfr. douto acórdão do Supremo Tri-bunal de Justiça de 21 de Abril de 1980, Boletimdo Ministério da Justiça, n.º 296, pág. 240);

XV — Este último douto acórdão, que invocadoutrina do conselheiro Rodrigues Bastos e doProf. Alberto dos Reis, além do mais, exara, cer-teira e judiciosamente: «[...] A não ser assim, fi-caria aberta a porta à indisciplina processual, por,sob as vestes de resposta sobre a veracidade ouexactidão de documentos juntos nas circunstân-cias previstas no artigo 526.º do Código de Pro-cesso Civil, ser possível a reabertura da fase dosarticulados»;

XVI — Os dois acórdãos referenciados e quese transcreveram, em parte, não deixam dúvidasque a recorrente só na contestação podia pro-nunciar-se, sem limitações, sobre as letras, causade pedir da acção;

XVII — Tendo a recorrente ficado impedidade contestar, ocorreu a «nulidade secundária»prevista no n.º 1 do artigo 201.º do Código deProcesso Civil porque, segundo o Prof. Albertodos Reis, «[...] é ao tribunal que compete, no seuprudente arbítrio, decretar ou não a nulidade,conforme entenda que a irregularidade cometidapode ou não exercer influência no exame ou deci-são da causa»;

XVIII — Tal nulidade exerceu influência ter-minante na decisão da causa, porque a recorrenteficou, realmente, impedida de exercer um seu di-reito fundamental, o de contestar;

XIX — Houve, portanto, omissão de pro-núncia e nulidade do douto despacho saneador e,depois, dos doutos sentença e acórdão recorri-dos.

XX —Foi, assim, violado, designadamente, oque dispõem os artigos 201.º, 510.º e 660.º doCódigo de Processo Civil, além de ter sidoinobservado, por exemplo, o douto acórdão doSupremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de1980, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 296,pág. 240, devendo o recurso proceder.

A parte contrária contra-alegou e defende aconfirmação do julgado.

Vem dado como assente a seguinte matéria defacto:

— A autora é uma instituição bancária, socie-dade anónima, com sede em Mainzer Landstrasse,Frankfurt, Alemanha;

— A ré é uma sociedade anónima com sede emPachal, Branca, nesta comarca de Albergaria- -a-Velha;

— A autora é legítima portadora de duas le-tras de câmbio:

— Uma no montante de DM 52 784,51 (cin-quenta e dois mil, setecentos e oitenta e quatromarcos alemães, e cinquenta e um pfenning).

— Outra no montante de DM 104 875,00(cento e quatro mil, oitocentos e setenta e cincomarcos alemães), sacada em 24 de Julho de 1995e vencida em 1 de Setembro de 1995;

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237 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

— Estas letras foram aceites por Ernest WeiregGunhh e Co. K.G., sociedade comercial emcomandita, com sede em Industrielhof Treeknase,10, Remscheid, Alemanha, e sacadas por Minase Metalurgia, S. A., ré na presente acção, encon-trando-se protestadas e sacadas;

— Tendo sido indicadas como lugar de paga-mento as instalações da autora sitas na locali-dade de Reimscheid, a débito da conta bancárian.º 6802508, de que é titular o sacado;

— As duas letras foram endossadas à autora,a qual, por sua vez, as endossou ao banco alemãoLandeszentral-bank, Remscheid;

— Apresentadas as letras nas suas respecti-vas datas de vencimento ao sacado no lugar dopagamento, este não as pagou;

— O protesto efectuou-se num dos dias úteisseguintes àquele em que a letra era pagável, nocaso uma segunda-feira.

Cumpre agora decidir.

Se bem atentarmos nas suas longas conclu-sões a recorrente levanta apenas uma questão eque é a seguinte: a autora não juntou com a peti-ção inicial as letras que constituíam a causa depedir ou fundamento da acção e só o fez, devida-mente traduzidas e autenticadas, após o termodo prazo de contestação, o que a impediu denesta referir todas as excepções ou questões re-lacionadas com a literalidade da letra. É certo quefoi notificado da junção das letras, mas a notifi-cação prevista no artigo 526.º do Código de Pro-cesso Civil destina-se exclusivamente à verificaçãode veracidade de exactidão de documentos.

Houve assim, por banda do acórdão da Rela-ção, como já houvera no despacho saneador e nasentença da 1.ª instância, omissão de pronúnciaresultante do facto de não se ter conhecido duma«nulidade secundária» prevista no n.º 1 do artigo201.º do Código de Processo Civil, omitindo-seuma formalidade que influiu no exame e decisãoda causa e que consistiu na impossibilidade de arecorrente analisar (ver) as letras e sobre elas sepronunciar, eventualmente deduzir excepções, noprazo legal que tinha para o fazer.

Intui-se claramente do artigo 201.º do Códigode Processo Civil que as irregularidades emergidasno decurso do processo (a prática de um actoque a lei não permita ou a omissão de um acto ou

de uma formalidade que a lei prescreva) não ge-ram, em princípio, a nulidade do processo a nãoser que a irregularidade cometida possa influirno exame ou decisão de causa — vide Prof.A. Varela, Revista de Legislação e de Jurispru-dência, ano 122.º, pág. 210.

Mas no caso em apreço foi cometida qualquerirregularidade, seja por acção seja por omissãoenquadrável no n.º 1 do artigo 201.º do Código deProcesso Civil (versão anterior à actual, que é aaplicável)?

A nossa resposta é francamente negativa, tan-to mais que o artigo 523.º daquele Código éclaro a este respeito e por isso o vamos refe-rir na íntegra:

«1 — Os documentos destinados a fazerprova dos fundamentos da acção ou da defesadevem ser apresentados com o articulado em quese aleguem os factos correspondentes.

2 — Se não forem apresentados em articuladorespectivo, os documentos podem ser apre-sentados até ao encerramento da discussão em1.ª instância, mas a parte será condenada emmulta, excepto se provar que os não pôde ofere-cer com o articulado.»

A simples leitura deste preceito da lei inculcaque não foi cometida qualquer irregularidade,pois o autor cumpriu a lei, e a este propósito oProf. A. Reis, Código de Processo Civil Ano-tado, vol. IV, pág. 550, depois de afirmar que aparte pode juntar os documentos até ao encerra-mento da discussão em 1.ª instância, mas é con-denado em multa, salvo se provar que não pôdeoferecê-los com o articulado, acrescenta: «con-cilia-se assim o princípio de disciplina proces-sual que postula o oferecimento imediato de do-cumentos, com o princípio de justiça segundo oqual a decisão deve ser a expressão, tão perfeitae completa quanto possível, da verdade dos fac-tos que interessam ao litígio. Não se priva a par-te do direito de juntar os documentos, porqueestes podem ser necessários para esclarecer aquestão e habilitar o juiz a proferir decisão justa;mas pune-se em multa a negligência ou malícia daparte em aguardar para o fim documentos quepodia e devia juntar com os articulados».

De todo o acima exposto pode, pois, con-cluir-se que a lei quer que os documentos sejamjuntos com o respectivo articulado, mas não

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238 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

proíbe que sejam apresentados mais tarde e,assim sendo, não ocorre qualquer nulidade.

A recorrente foi notificada da junção dos do-cumentos e nada disse, argumentando já em sedede recurso que a notificação feita nos termos doartigo 526.º não lhe permitia levantar questõesou excepções que a análise dos documentos even-tualmente suscitava e também não lhe era permi-tido deduzir articulado superveniente.

É certo que alguma doutrina, designadamenteo Prof. A. Reis, Código Penal Anotado, vol. IV,pág. 28, assinala à notificação prevista no artigo526.º (anteriormente era o artigo 547.º) uma fun-ção exclusivamente de verificação de veracidadeou exactidão dos documentos, nos termos do ar-tigo 544.º e também o acórdão do Supremo Tri-bunal de Justiça de 21 de Abril de 1980, Boletimdo Ministério da Justiça, n.º 296, pág. 240, opinano mesmo sentido.

A opinião defendida por aquele ilustre mestree a resultante daquele aresto, encerrando um prin-cípio verdadeiro, não inibe a parte de lançar mãosde outros procedimentos processuais que a leiadjectiva põe ao seu alcance. No aresto citadoquer-se referir à simples junção de documentos,fora do contexto do artigo 523.º, n.º 2, do Códigode Processo Civil, enquanto a opinião do Prof.A. Reis não colide de forma alguma com a cha-mada defesa superveniente que ele próprio aceitaem comentário ao artigo 493.º do Código de 1939,Código de Processo Civil Anotado, vol. III,pág. 48, e que o mesmo Código, na versão ante-rior à actual, também admite no n.º 2 do artigo489.º quando diz que «depois da contestação sópodem ser deduzidas as excepções, incidentes emeios de defesa que sejam supervenientes, ouque a lei expressamente admita passado estemomento [...]!»

É a própria recorrente que diz que não se pôdedefender convenientemente por não estarem jun-tas as letras e portanto desconhecer o seu teor edaí a sua contestação ser incompleta e assim con-ter uma defesa deficiente. Lógico, portanto, quejuntas as letras após a contestação, a condutaprocessual da recorrente não podia estar limi-

tada por esta interpretação do artigo 526.º doCódigo de Processo Civil, até porque estamosfora do seu verdadeiro campo de aplicação, eantes pudesse completar a sua defesa com arti-culado posterior desde que deduzido no prazode 10 dias a contar da notificação de junção dasletras, pois só a partir desta tomou conheci-mento do conteúdo das mesmas.

Assim ao contrário do que alega e conclui arecorrente, estamos perante um caso típico deuso de articulado superveniente, pois não temosqualquer dúvida em afirmar que a defesa super-veniente, consentida nos termos do artigo 489.º,n.º 2, do Código de Processo Civil, exige um arti-culado daquela espécie permitido pelo artigo 506.ºn.º 2, e avalizada pela opinião sábia do Prof.Castro Mendes, Direito Processual Civil, II,pág. 617.

Na verdade estamos perante aquilo que o Prof.Teixeira de Sousa, Estudos ..., pág. 298, chamasuperveniência subjectiva, pois a recorrente sóteve conhecimento do teor das letras depois defindar o prazo da apresentação da contestação,pese embora o facto do autor lhes fazer referên-cia na petição inicial sem as juntar.

Assim sendo, fácil é de concluir que não foicometida qualquer nulidade e também não houveomissão de pronúncia nem violação dos precei-tos indicados pelo recorrente.

Antes se constata que a recorrente baseadanuma interpretação errada do artigo 526.º doCódigo de Processo Civil e portanto inadequadapara responder à situação criada pela junção tar-dia, mas legal, por banda do autor dos documen-tos que serviam de fundamento à acção, ficouparalisada e não usou o meio processual ade-quado e que tinha ao seu alcance. Sibi imputet ...

Termos em que improcedem as conclusões ese nega a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 23 de Novembro de 2000.

Óscar Catrola (Relator) — Araújo de Bar-ros — Oliveira Barros.

DECISÃO IMPUGNADA:

Sentença da 2.ª Secção do 1.ª Juízo do Tribunal de Albergaria-a-Velha, processo n.º 210/96.

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239 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

Para além da doutrina e da jurisprudência citada no texto do acórdão que, por si só, fornece umapanorâmica cabal da questão tratada (cuja análise jurídica não é pacífica, nomeadamente no tocante àadmissibilidade do chamado articulado superveniente a coberto da notificação do artigo 526.º doCódigo de Processo Civil), consultar ainda, como exemplo de alguma divergência a nível jurisprudencial,o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 1980, neste Boletim, n.º 296, págs. 240e segs., bem como o acórdão da Relação do Porto de 26 de Maio de 1983, na Colectânea de Jurispru-dência, ano VIII, tomo III, pág. 294.

(A. A. P. C.)

Reforma agrária — Arrendamento rural — Direito de reserva —Embargos — Título executivo

Um arrendamento rural (titulado por escritura), de prédio expropriado na sequên-cia de reforma agrária, renasce, simultaneamente, com o renascimento da propriedadedo anterior titular por efeito da lei e do acto administrativo que reconheceu e atribuiu aeste o direito de reserva.

Assim, o título executivo invocável para a entrega do prédio ao arrendatário, dessemodo restabelecido, é a própria escritura na qual foi acordado o arrendamento, inte-grada por acto legislativo que fez renascer o contrato e pelos actos administrativos queculminaram com a concessão e atribuição da reserva do proprietário.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 30 de Novembro de 2000Processo n.º 2050/2000

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

Teófilo de Castro Duarte instaurou contraLeone Maria Irion Falcão, Maria Teresa Mas-carenhas de Oliveira Falcão de Azevedo, MariaJosé Mascarenhas Falcão Themudo de Castro,José Mascarenhas Falcão e Francisco AugustoMascarenhas Falcão e mulher, Maria FilomenaPatrício Lino Neto Falcão, execução ordinária paraentrega de coisa certa, concretizada no prédiodenominado «Herdade da Torre de Palma», in-vocando, como título executivo, uma escritura dearrendamento rural outorgada em 20 de Agostode 1974 pela qual ele tomou de arrendamentoesse e outros prédios, pelo prazo de dez anos,com início em 1 de Fevereiro de 1975, o qual foiocupado e expropriado no âmbito da Reforma

Agrária, mas depois restituído aos proprietáriosa título de reserva do direito de propriedade, semque estes hajam reposto a situação jurídica dearrendamento que vigorava na data da expro-priação.

Opuseram-se os executados por embargos,alegando a inexistência de título executivo, a ca-ducidade do arrendamento por efeito da expro-priação do prédio e a falta do procedimentoadministrativo previsto nas leis da Reforma Agrá-ria, pois o requerimento nesse sentido por eledirigido ao Ministério da Agricultura e Pescas,foi indeferido.

Contestou o exequente após o que foi sus-pensa a instância até ao julgamento de um re-curso contencioso no Supremo Tribunal Admi-nistrativo visando a anulação de um despachoministerial de 21 de Fevereiro de 1991.

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240 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

Por acórdão de 13 de Julho de 1993, o Su-premo Tribunal Administrativo concedeu provi-mento ao recurso anulando aquele acto adminis-trativo que indeferira o pedido de entrega daHerdade Torre da Palma, decisão que foi confir-mada pelo pleno daquele Supremo Tribunal emacórdão de 12 de Março de 1998.

No Tribunal de Círculo de Portalegre reali-zou-se a audiência preliminar na qual se recusouo pedido de apensação deste processo a umaacção declarativa intentada pelos actuais arren-datárias da Herdade da Torre de Palma contra oora embargado e, subsidiariamente, o da sustaçãodesta execução até ao julgamento dessa acção, eoutro condenando os embargantes em multa porjunção de documentos já constantes do processo.

De tais despachos agravou a embarganteMaria Teresa e, depois de admitidos os agravos,foi proferido o saneador que, conhecendo demérito, julgou os embargos improcedentes.

Da sentença apelaram todos os embargantese, conhecendo dos agravos e da apelação, a Rela-ção de Évora negou provimento ao agravo rela-tivo ao despacho que indeferiu o pedido de apen-sação da execução ou de sustação da execução,concedeu-o quanto ao despacho que condenou aagravante na multa por junção de documentos e,na procedência da apelação, julgou procedentesos embargos e extinta a execução por inexistênciade título executivo.

Pede agora revista o exequente que, alegando,conclui assim:

1 — A alteração da matéria de facto é irre-levante porquanto a decisão é independente delae, em qualquer caso, a nova redacção dada aosquesitos 1.º e 2.º vai para além da escrituraquando só por esta podem ser provados; a novaredacção do facto n.º 6 equivale a ter-se o factocomo não articulado enquanto a redacção inicialcorresponde a facto alegado na contestação eprovado por certidão predial e a nova redacçãodos facto n.os 7 e 8 incluem, respectivamente,matéria de direito, e vai contra documentos nãoimpugnados que são o seu meio de prova neces-sário.

2 — Assim, o julgamento da matéria de factodo acórdão recorrido viola os preceitos dos arti-gos 660.º, n.º 2, 663.º, n.º 2, 664.º e 659.º do

Código de Processo Civil, 8.º do Código doNotariado, 364.º, n.º 1, 238.º, n.º 1, e 9.º, n.º 2,371.º e 376.º do Código Civil.

3 — O caso julgado anterior decide, com forçaobrigatória, que, com o provimento do recursodo Supremo Tribunal Administrativo, o arrenda-mento em causa se mantém intangível ou renasceautomaticamente ope legis e, assim, a res- pectivaescritura constitui título executivo, pois

4 — As decisões de suspensão da execução edos embargos têm, por pressuposto lógico, essaintangibilidade ou renascimento, sob pena deconstituírem denegação de justiça vexatória daspartes (artigos 20.º, n.º 4, da Constituição daRepública Portuguesa e 6.º da Convenção dosDireitos do Homem.

5 — Tendo o acórdão da Relação, como pres-suposto, tais intangibilidade ou renascimento,violou, por isso, as normas dos artigos 675.º e677.º do Código de Processo Civil.

6 — Em qualquer caso, a intangibilidade doarrendamento ou o seu restabelecimento ex tunce ope legis e, consequentemente, a natureza detítulo executivo da respectiva escritura são im-postos pelo regime legal da Reforma Agrária comoé jurisprudência deste Supremo Tribunal.

7 — Violou, assim, o acórdão recorrido ospreceitos dos artigos 11.º, 14.º, 20.º e 22.º da Lein.º 109/88, de 26 de Setembro, 61.º, n.º 1, 81.º,alínea b), 82.º, n.º 3, 94.º e 95.º da Constituição daRepública Portuguesa.

Contra-alegando, pugnam os recorridos pelaconfirmação do julgado.

Como se vê das conclusões, estão fora doobjecto desta revista as questões que constituí-ram objecto dos agravos.

Quanto à apelação, descreve-se, a seguir, oessencial da matéria de facto, como foi fixada naRelação, que directamente interessa ao conheci-mento do recurso:

1 — Por escritura de 20 de Agosto de 1974,Teófilo de Castro Duarte (ora recorrente), to-mou de arrendamento a Carlos Mascarenhas Fal-cão e outros (ora recorridos), um conjunto deherdades conhecidas por Torre da Palma consti-tuídas pelos seguintes prédios rústicos: a deno-minada «Herdade da Palma», a denominada «Her-dade do Monte Branco dos Tenreiros» e a deno-

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241 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

minada «Herdade da Torre da Palma», por dezanos, com início em 1 de Fevereiro de 1975,sendo a renda calculada indexadamente ao valordo trigo e da carne de bovino a pagar numa pres-tação anual.

2 — Em 1975, na sequência da «ReformaAgrária», aqueles prédios foram ocupados porpessoas que vieram a fundar a UCP da Torre daPalma, S. C. R. L., e, pela Portaria n.º 560/75, de17 de Setembro, a Herdade da Torre da Palma foiexpropriada.

3 — Por escritura de 6 de Dezembro de 1983,aquela UCP comprou a Herdade da Palma, aHerdade do Monte Branco e a Herdade da Betuga,e nela interveio o referido Teófilo Duarte que aídeclarou ter sido «[...] até à presente data arren-datário agrícola da Herdade da Torre da Palma eseus anexos, constituída pelos prédios rústicosatrás descritos» e que «por esta escritura res-cinde o contrato de arrendamento atrás referido erenuncia ao direito de preferência sobre a vendados prédios».

4 — Em 10 de Novembro de 1992 foi aver-bado no registo o cancelamento à inscrição destecontrato, através do av. 3 (ap. 03/921110).

5 — Por despacho de 25 de Setembro de 1989,foi atribuído aos embargantes (ora recorridos) odireito de reserva da propriedade, reserva essaque foi entregue livre do ónus de arrendamentocom o Teófilo Duarte.

6 — Por despachos de 30 de Novembro de1990 e 21 de Fevereiro de 1991, foi decidido nãohaver lugar ao restabelecimento administrativode qualquer direito de arrendamento do TeófiloDuarte por, na escritura de 6 de Dezembro de1983, ter havido denúncia do contrato celebradoem 20 de Agosto de 1974.

7 — Esta decisão foi objecto de recurso con-tencioso de anulação, tendo o Supremo TribunalAdministrativo concedido provimento ao re-curso e anulado o acto. Os embargantes (aquirecorridos) recorreram para o pleno do SupremoTribunal Administrativo que negou provimentoao recurso e, depois, foi indeferido pedido deaclaração e, finalmente, indeferida a arguição denulidade condenando os recorrentes como liti-gantes de má fé.

O recorrente, prevenindo embora que a alte-ração da matéria de facto operada na Relação é

irrelevante, insurge-se contra a nova redacção dadaaos factos n.os 1 e 2 por ir para além da escritura;rejeita a nova redacção do facto n.º 6 por se tra-duzir em considerar um facto não articulado e ado n.º 7 por incluir matéria de direito; e sustentaque a nova redacção do n.º 8 vai contra documen-tos não impugnados que são o seu meio de provanecessário.

São tudo questões relativas a matéria de factoque, em princípio, o Supremo não pode conhe-cer a não ser que, como estabelece o n.º 2 doartigo 722.º do Código de Processo Civil, estejaem causa ofensa de disposição expressa que exijacerta espécie de prova para a existência do factoou que fixe a força de determinado meio de prova.

Das situações invocadas só as que respeitamaos factos n.os 1, 2 e 8 são questões aqui sin-dicáveis nos termos daquela disposição.

Quanto aos factos integrantes dos pontosn.os 1 e 2, respeitantes ao conteúdo da escriturade arrendamento de 20 de Agosto de 1974, malse percebe a objecção do recorrente pois foi preo-cupação da Relação cingir-se rigorosamente aoclausulado, constituindo, precisamente, a novaredacção uma reprodução exacta do que ali seacordou (vide fls. 1013 e seguintes).

No que se refere ao ponto n.º 8 — reconheci-mento da qualidade de rendeiro do ora recorrentepor despachos ministeriais de 15 de Setembro de1989 e 15 de Janeiro de 1990 — observa-se quese trata de matéria que a Relação entendeu elimi-nar por considerar que envolve, exclusivamente,uma qualificação jurídica e, consequen-temente,estranha à descrição dos factos.

É óbvio que o facto de existirem decisões noâmbito da Administração, depois anuladas porprocedência de recurso contencioso, que reco-nhecem essa qualidade, não tem a menor relevân-cia nesta acção que, precisamente, tem comoobjecto a definição dessa questão fundamental.

Por isso, como bem se decidiu, é matéria quenão cabe na decisão quanto aos factos.

A Relação de Évora não acolheu o entendi-mento da 1.ª instância segundo o qual o meroreconhecimento e atribuição do direito de reservaa proprietário faz renascer, sem mais, os direitosreais menores e de arrendamento que oneravam oprédio na data da expropriação ou ocupação.

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242 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

Entendeu que, pelo contrário, o restabeleci-mento de tais direitos não é automático, sendonecessário que o seu titular exerça o respectivodireito instaurando o competente processo ouque este seja oficiosamente desencadeado pelaAdministração.

Assim, a decisão do recurso depende, em pri-meira linha, da resposta à questão geral de saberse, uma vez reconhecido e atribuído o direito dereserva a proprietário de prédios expropriadosna sequência da «Reforma Agrária», se verificaou não o restabelecimento ipso jure dos direitosreais menores ou de arrendamento que sobre elesincidiam na data da expropriação ou ocupaçãoou, pelo contrário, se tal restabelecimento exige aprolação de decisão administrativa que culmineprocedimento próprio instaurado pelos interes-sados ou promovido oficiosamente pela Admi-nistração.

E, depois, se no caso sub judice, o ora em-bargado e recorrido, pode invocar a situação dearrendatário rural do prédio objecto da acção comdireito ao restabelecimento do respectivo direito,tendo em conta a intervenção que teve na refe-rida escritura pública de 6 de Dezembro de 1983.

A primeira questão foi objecto de larga dis-cussão nas instâncias e nela intervieram commagistrais pareceres os Profs. Menezes Cor-deiro (fls. 119 e seguintes), Antunes Varela (fls.947 e seguintes) e Marcelo Rebello de Sousa (fls.1187 e seguintes).

Os dois últimos sufragando o entendimentoseguido na Relação e o primeiro apoiando a tese,seguida na l.ª instância, do restabelecimento au-tomático logo que ocorra o reconhecimento e atri-buição, pela Administração, da reserva ao pro-prietário.

A douta decisão da 1.ª instância (fls. 663 eseguintes), quanto à primeira questão, e no pres-suposto da invocabilidade do contrato de 1974como base suficiente para o renascimento do seudireito de arrendatário, conceptualiza a situaçãodescrevendo-a como a de um arrendamento ex-tinto por caducidade em consequência da expro-priação do prédio [artigo 1051.º, alínea f), doCódigo Civil] que renasce, com o mesmo «invó-lucro», simultaneamente com o renascimento dapropriedade do anterior titular por efeito da lei e

do acto administrativo que reconheceu e atribuiua este o direito de reserva.

Assim, o título executivo invocável para aentrega do prédio ao arrendatário desse modorestabelecido é a própria escritura na qual foiacordado o arrendamento, integrada por actolegislativo que fez renascer o contrato e pelosactos administrativos que culminaram com a con-cessão e atribuição da reserva ao proprietário.

E porque o arrendatário não necessita, paraalém do reconhecimento e atribuição da reservaao proprietário, de nenhum acto administrativoespecífico para reconhecimento e accionamentodo seu direito, pode, invocando o contrato de1974, a norma que instituiu o direito de reserva ea decisão administrativa que o reconheceu e atri-buiu aos proprietários, impor a estes a efectivaçãodo seu direito.

Por sua vez a Relação entende que, para alémdesses elementos, é ainda necessário que, atra-vés de procedimento administrativo adequado, aAdministração reconheça e atribua, oficiosamenteou a requerimento de quem invoque a titularidadedum direito real menor ou a condição de arrenda-tário na data da expropriação, a qualidade dereservatário como tal.

E quanto à condição de arrendatário, justificaesta solução considerando que o arrendamentorestabelecido pode não ser o mesmo quer quantoao respectivo prazo, como decorre do artigo 49.ºda Lei n.º 109/88 quer quanto às áreas das reser-vas do proprietário e do arrendatário, as quaisnão terão de coincidir necessariamente já que asrespectivas demarcações poderão ou não sobre-por-se.

Desde logo se nota que ambas as soluçõesconcordam em que não basta a invocação do con-trato de arrendamento e a norma que institui odireito de reserva para que se restabeleça a situa-ção de arrendatário, sendo imprescindível um actoda Administração que culmine o procedimentoprevisto no Decreto-Lei n.º 12/91, de 9 de Ja-neiro, que regulamenta o exercício do direito dereserva instituído pela Lei de Bases da ReformaAgrária (Lei n.º 109/88, de 26 de Setembro, eDecreto-Lei n.º 46/90, de 16 de Agosto).

Só que enquanto na Relação se entendeu quenão basta a decisão administrativa que reconhece

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243 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

e atribui a reserva ao titular do direito de pro-priedade, sendo necessário ainda uma outra deci-são que especificamente reconheça e atribua odireito de reserva do arrendatário, a solução da1.ª instância é no sentido de que basta o reconhe-cimento e a atribuição do direito de reserva inde-pendentemente de quem quer que tenha desenca-deado o respectivo procedimento, configurando,assim, esse procedimento e a decisão que o cul-mina uma actuação administrativa unitária querespeita a todos os interessados e a todos bene-ficia e vincula.

Qual, pois, a solução que melhor correspondeao espírito e à letra da lei?

A Lei de Bases da Reforma Agrária define osgrandes objectivos da política agrícola, procede àreestruturação fundiária estabelecendo as condi-ções e os limites da expropriação de prédios rús-ticos e institui o direito de reserva aos proprie-tários de prédios expropriados, restabelecendo orespectivo direito de propriedade tal como exis-tia à data da expropriação ou ocupação, logo de-finindo o seu conteúdo dentro de certos limitese condicionalismos, e prevendo, de modo gené-rico, o procedimento para a sua concretização.

No que respeita ao direito de reserva logo res-salta a ideia que ele tem em vista, directamente, areposição dos direitos do proprietário pleno deprédios expropriados.

Tudo, porém, sem prejuízo da posição jurí-dica dos titulares de outros direitos reais meno-res, que incidam sobre o mesmo prédio, ou doarrendatário à data da expropriação ou ocupação(artigos 14.º e 20.º daquela lei).

Daqui decorre que a concessão do direito dereserva não só não impede a invocação de direi-tos de outros titulares afectados pelo acto deexpropriação ou ocupação, como, sobretudo, quedela resulta o seu restabelecimento com as limi-tações que o instituto de reserva implica.

Isto logo se reflecte na regulamentação do exer-cício do direito de reserva estabelecido pelo De-creto-Lei n.º 12/91, de 9 de Janeiro, cujo processo,nos termos do seu artigo 2.º, pode ser desenca-deado oficiosamente ou a requerimento do «reser-vatário» ou de qualquer pessoa jurídica cominteresse relevante sobre o prédio rústico a que areserva se refere.

Acresce que toda a disciplina do procedi-mento para a atribuição do direito de reserva con-figura-o como actuação administrativa unitáriacom vista a uma única decisão mal se compreen-dendo a ponto de vista que o concebe como per-mitindo a dedução de pretensões autónomas porcada um dos titulares de outros direitos reaismenores com vista, igualmente, a decisões sepa-radas contemplando os diferentes interesses naatribuição desse direito.

Na verdade, embora se reconheça a legitimi-dade de todos os interessados para desencadearo respectivo processo (artigo 2.º, n.º 1, do De-creto-Lei n.º 12/91, de 9 de Janeiro), logo se de-termina que, havendo sobreposição de direitos,«é obrigatória a apensação dos processos dostitulares dos direitos de propriedade e de direi-tos reais menores ou de arrendamento» (n.º 5 doartigo 3.º do mesmo diploma).

É óbvio que a obrigatoriedade da apensaçãosó pode ter como objectivo a prolação de umaúnica decisão que a todos respeite.

Estabelece ainda o n.º 2 da Lei 109/88, na re-dacção introduzida pela Lei n.º 49/90, que a de-marcação da reserva ou a reversão do prédiorústico é obrigatoriamente precedida da notifica-ção, para audiência, dos titulares de outros direi-tos sobre os prédios em causa referidos no n.º 1do artigo 20.º ... o que evidencia que se trata deprocesso unitário em que todos os interessadossão chamados a defender os seus interesses vi-sando uma decisão única que a todos aproveita.

A eventual omissão de tal formalidade consti-tuirá irregularidade geradora de nulidade que,obviamente, só poderá ser invocada pelo inte-ressado na observância da formalidade, nunca lhepodendo ser oposta (n.º 1 do artigo 203.º do Có-digo Civil).

E, sendo assim, de acordo aliás com o que fluida norma do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 109/88,uma vez reconhecido e atribuído o direito de re-serva, há que respeitar e reconhecer, porque issosucede sem seu prejuízo, a posição jurídica dostitulares de outros direitos reais ou dos arrenda-tários à data da expropriação, sendo desnecessá-ria qualquer outra actividade administrativa queos reconheça ou defina o seu conteúdo.

Direitos esses que, quanto ao seu conteúdo edimensão, sofrerão a adaptação correspondenteà nova fisionomia do direito de propriedade que

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244 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

resultou da concessão e atribuição da reserva,sendo certo porém que, quanto ao arrendamento,logo decorre uma alteração pois o respectivo pra-zo apenas consente duas renovações de três anoscada.

Assim, uma vez reconhecido e atribuído o di-reito de reserva, a subsistência, estrutura e con-teúdo dos outros direitos reais ou de arrenda-mento existentes à data da expropriação ouocupação é questão alheia à Administração Pú-blica já que pela sua situação no domínio jurídicoprivado só aos tribunais comuns cabe apreciar edirimir.

Por isso, à rigorosa definição da qualidade dearrendatário do ora requerente, é indiferente umadecisão constante de despacho ministerial que,concordando com um parecer da Administração,lhe reconhece a qualidade de rendeiro e, do mesmomodo, não pode concluir-se o contrário — ine-xistência dessa qualidade — da decisão do Su-premo Tribunal Administrativo que anule aqueledespacho. Isso seria o mesmo que pretender-seque a qualidade de casado poderia decorrer dumadecisão favorável da Administração que conheçade pretensão em que se invoque essa qualidade.

De tudo se conclui, de acordo com a decisãoda 1.ª instância, que uma vez proferida decisãodefinitiva que reconhece e atribui o direito dereserva, isso basta para que os titulares de ou-tros direitos reais e o arrendatário possam exer-cer os seus direitos sem necessidade de qualqueroutra actividade autónoma específica da Admi-nistração.

Daí que, há que reconhecê-lo, e salvo o devidorespeito, foi absolutamente inútil o longo pe-ríodo em que a instância esteve suspensa aguar-dando a decisão final do Supremo Tribunal Admi-nistrativo.

É este, como atrás se referiu, o ponto de vistado Dr. Menezes Cordeiro no parecer junto aosautos e é uma solução que está na lógica da dou-trina do acórdão deste Supremo Tribunal de 6 deMarço de 1990 (Boletim do Ministério da Jus-tiça, n.º 392, pág. 542) que, definindo a naturezajurídica do direito de reserva, configura esta comoárea inexpropriável preexistente à expropriação,mantendo-se após ela e não se definindo poste-riormente. O mesmo sucede com os direitos re-ais menores e com o arrendamento que, por isso,não caducam com a expropriação.

Assente, assim, que é suficiente para fazervaler os direitos do arrendatário de prédio expro-priado, a invocação do título constitutivo do con-trato e a decisão da Administração que reconheceue atribuiu ao proprietário o direito de reserva, asorte deste pleito fica a depender da resposta àquestão de saber se, in casu, o embargado/exe-quente e ora recorrente pode ainda invocar a qua-lidade de arrendatário do prédio em causa na datada expropriação.

Na 1.ª instância, como vimos, entendeu-se quesim e decidiu-se em conformidade, julgando-seimprocedentes os embargos.

Porém, a Relação, certamente porque ali seentendeu que tal questão estava prejudicada pelasolução dada à questão anterior, não se pronun-ciou a propósito.

É óbvio que não é caso de omissão de pronún-cia sobre questão de conhecimento obrigatório,geradora da nulidade da alínea d) do artigo 668.ºdo Código de Processo Civil já que, pela lógicado acórdão recorrido, era inútil o seu conheci-mento.

Por isso, impõe-se o seu conhecimento se,bem entendido, os autos fornecerem os indis-pensáveis factos.

Não oferece dúvidas que quer o despacho daAdministração que rejeitou o requerimento paraatribuição da reserva ao arrendatário com o fun-damento de que este não podia invocar essa qua-lidade, quer a decisão do Supremo TribunalAdministrativo que a anulou, são irrelevantes paraa definição dessa posição jurídica, além do mais,por se tratar de questão estritamente civil alheiaà jurisdição administrativa.

O essencial da questão reside em saber, comojá foi dito, qual o significado jurídico da interven-ção do ora recorrente e embargado na escriturapública de 6 de Dezembro de 1983 pela qual aUCP da Torre da Palma, S. C. R. L., comprou asherdades da Palma, do Monte Branco e da Betugaaos ora recorridos e na qual Teófilo Duarte, aquirecorrente, invocando ter sido até então arrenda-tário agrícola da Herdade da Torre da Palma eseus anexos constituída pelos prédios atrás des-critos, declarou que, por essa escritura rescindia

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245 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

o contrato de arrendamento atrás referido e re-nunciava ao direito de preferência sobre a vendados prédios.

Como se vê da matéria de facto provada, ocontrato de arrendamento celebrado em Agostode 1974 tinha como objecto um conjunto de her-dades conhecidas por Torre de Palma e nele eramidentificadas as herdades da Palma, do MonteBranco dos Tenreiros e da Torre da Palma.

Todas elas foram ocupadas na sequência daReforma Agrária, mas só uma delas, a denomi-nada «Herdade da Torre da Palma», foi objectode expropriação por portaria de 17 de Setembrode 1975.

Assim, no momento da celebração da escri-tura de arrendamento, em Agosto de 1983, só aHerdade da Torre da Palma havia sido expro-priada, mantendo-se as restantes ocupadas.

Por outro lado, nessa escritura aparece a refe-rência a uma herdade, a da Betuga, que não vemreferida na escritura de arrendamento.

Põe-se, assim, um problema da interpretaçãodo real sentido da declaração do embargado naescritura de 1983, uma vez que é legítima a ques-tão de saber, dada a dupla referência nesse con-trato como no de 1974 à Herdade de Torre daPalma como referida ao conjunto de todas as her-dades, e como denominação de uma das herdadesdesse conjunto, qual o verdadeiro alcance dessadeclaração .

Não há dúvida de que a constituição da re-serva incidiu apenas na Herdade da Torre daPalma enquanto elemento desse conjunto, poisfoi a única que foi objecto de expropriação.

Daí que, porque aquela declaração foi emitidaapós a expropriação mas antes da atribuição dareserva, se possa concluir que ela não lhe poderespeitar uma vez que, por efeito da expropria-ção, o arrendamento se extinguira por caduci-dade [alínea f) do artigo 1051.º do Código Civil]e, consequentemente, não tem sentido falar-seem rescisão de contrato extinto ou renúncia adireito inexistente.

Porém, uma vez que na altura da escritura de1983 estava já legalmente instituído o direito dereserva (Lei n.º 77/77, de 29 de Setembro), é ra-zoável sustentar-se que a declaração de rescisão,que aqui poderá ser entendida como denúncia,não era dirigida directamente ao contrato, mas àexpectativa do seu renascimento.

É claro que o contrato de 1983, uma vez quenele se faz referência expressa à escritura de ar-rendamento de 1974, só pode ser devidamenteinterpretado em confronto com esta.

O contrato de arrendamento refere, como cons-tituindo o seu objecto, um conjunto de herdadesconhecidas por Torre de Palma, especificando--se as denominações de cada uma delas, sendoesse conjunto o objecto unitário do contrato.

Por sua vez na declaração que fez na escriturade compra e venda de Agosto de 1983, contratoque tinha como objecto, além de outros prédiosurbanos, a Herdade do Monte Branco, Herdadede Palma e Herdade de Besugo de Baixo, o orarecorrente Teófilo Duarte declarou ter sido atéentão arrendatário agrícola da Herdade da Torrede Palma constituída por aqueles prédios rústi-cos e que por essa escritura rescindia o contratode arrendamento e renunciava ao direito de pre-ferência sobre a venda dos prédios que tinha dearrendamento e ora vendidos ...

Nota-se assim que em ambos os contratosaparece a denominação «Torre da Palma» comoreferindo um conjunto de herdades, sendo ra-zoável o entendimento segundo o qual a declara-ção de rescisão (aqui entendida como denúncia)do arrendamento constante da escritura de 1983tem como objecto o contrato de arrendamentono seu todo, inclusive, pelos motivos atrás ex-postos, a renúncia ao potencial direito (atravésda atribuição da reserva) de ver restabelecido oarrendamento do prédio expropriado.

Não foi este o entendimento seguido na 1.ª ins-tância onde, pelo contrário, se entendeu que arescisão (renúncia) não respeitava ao prédioexpropriado e ao correspondente direito de re-serva, o que culminou na decisão de improcedên-cia dos embargos.

A Relação, como vimos, não se pronunciousobre a questão por, implicitamente, a ter consi-derado prejudicada pela solução dada ao proble-ma respeitante às condições da atribuição dareserva quanto ao arrendatário.

Impõe-se, pois, a fixação do exacto sentidodaquela declaração, o que, por ser questão res-peitante aos factos e envolve a interpretação dascláusulas do contrato, é, em princípio, matériada exclusiva competência das instâncias.

O Supremo apenas poderá sindicar sobre aobservância ou não das normas dos artigos 236.º

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246 BMJ 501 (2000)Direito Processual Civil

e 238.º do Código Civil (acórdão do SupremoTribunal de Justiça de 21 de Janeiro de 1994, Bo-letim do Ministério da Justiça, n.º 432, pág. 332).

A matéria de facto provada que à questão in-teressa é, apenas, o conteúdo da declaração cons-tante da escritura de Agosto de 1983, e é atravésdela que terá de buscar-se o seu sentido.

A declaração negocial terá de ser interpretadade acordo com a norma do n.º 1 do artigo 236.º doCódigo Civil, que consagrou a teoria da impres-são do declaratário, isto é, a declaração terá devaler com o sentido que um declaratário normal,colocado na posição real do declaratário, possadeduzir do comportamento do declarante.

Só não será assim se o declaratário conhecer oreal sentido da declaração pois, neste caso, é deacordo com ele que vale a declaração (n.º 2 da-quele artigo).

Mas a pesquisa sobre o se e o como o decla-ratário captou o real sentido da declaração cons-titui, por se tratar duma estrita questão de facto,matéria da exclusiva competência das instânciase, sendo assim, à míngua de elementos de factoque o revelem, haveria que, sendo possível, or-denar a ampliação da matéria de facto nos termosdo n.º 3 do artigo 729.º do Código Civil.

Porém, os autos revelam que nada foi a talrespeito alegado pelas partes e daí que estejaabsolutamente fora de causa o reenvio do pro-cesso.

Terá, assim, que determinar-se o sentido da-quela declaração de acordo com os critérioslegais dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, oque, por constituir questão de direito, poderáefectuar-se no âmbito desta revista.

Já foi referido que no momento em que foiproferida a declaração de «rescisão» do arrenda-mento ela, prima facie, não poderia respeitar aocontrato na parte em que este abrangia a denomi-nada «Herdade de Torre da Palma» — enquantoreferida a uma das herdades que integravam todoo conjunto conhecido por essa designação — umavez que, nessa parte, ele já se extinguira pelacaducidade decorrente da expropriação [alínea f)do artigo 1051.º do Código Civil].

Porém, sempre ficaria de pé a questão de sa-ber se tal declaração deve ou não ser entendidacomo referida a todo o objecto do arrendamento

celebrado em Agosto de 1974, isto é, a todas asherdades abrangidas na denominação genérica deTorre da Palma e, designadamente, se ela respei-tou também aos direitos decorrentes da expro-priação da Herdade da Torre da Palma, nomea-damente o direito de indemnização, e os que de-correm da atribuição da reserva.

Um ponto parece claro. É o de que a interven-ção do ora recorrente na escritura de 6 de De-zembro de 1983, intitulada de «compra, emprés-timo com hipoteca e renúncia», teve em vistapossibilitar a transferência da propriedade dosprédios vendidos, livres de quaisquer ónus ou daincidência dos direitos que aquele, como arren-datário, detinha sobre eles.

Daí a rescisão (denúncia) do arrendamento e arenúncia ao direito de preferência.

Por isso, dificilmente se compreenderá que,numa tal escritura, aquela declaração pudesse di-rigir-se a outros bens alheios ao objecto da vendae muito menos à expectativa — decorrente dainstituição do direito de reserva — de ver resta-belecido um arrendamento extinto por efeito deexpropriação do prédio a que respeitava.

É, assim, forçoso concluir que um declaratárionormal, colocado na posição dos restantes inter-venientes naquele contrato, só poderia deduzirque aquela declaração respeitava, apenas, aosprédios objecto da venda e a nada mais.

Por outro lado, porque, do ponto de vista dodeclarante e ora recorrente, se tratou de um negó-cio gratuito — renúncia a direitos sem qualquercontrapartida — terá de prevalecer aquele sen-tido por ser o menos gravoso para o disponente(artigo 237.º do Código de Processo Civil).

Na verdade, a única consequência da declara-ção, quanto ao declarante, foi, apenas, a entregade todo o gado e alfaias que este já possuía nosprédios arrendados.

Tratou-se, assim, de restituição daquilo quejá era seu, o que, obviamente, não retira o carác-ter de gratuitidade à sua intervenção no negócio.

Por tudo o exposto terá de concluir-se que,não tendo havido acto que validamente tivesseneutralizado o direito do recorrente, como inicialarrendatário do prédio expropriado e depois res-tituído em consequência da atribuição do direitode reserva, o arrendamento tem de ter-se porrestabelecido, o que confere à escritura de arren-

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247 Direito Processual CivilBMJ 501 (2000)

damento, completada com a decisão administra-tiva que atribuiu a reserva, a qualidade de títuloexecutivo invocável para a reposição dos direi-tos do arrendatário.

Nestes termos, concedendo a revista, revo-gam o douto acórdão, julgando improcedentes osembargos.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 30 de Novembro de 2000.

Duarte Soares (Relator) — Abel SimõesFreire — Moitinho de Almeida — Roger Lopes(votei a decisão) — Noronha Nascimento.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença da 2.ª Secção do Tribunal Judicial de Portalegre, processo n.º 195/98.

II — Acórdão da 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 603/99.

Insere-se, como resulta do texto e dos acórdãos nele citados, na jurisprudência do SupremoTribunal de Justiça.

(V. M.)

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248 BMJ 501 (2000)Direito Civil — Parte Geral

Expropriação — Indemnização — Depósito — Prazo — Jurosde mora — Renúncia

I — Estabelecida a quantia a depositar por decisão transitada, fica o exproprianteobrigado a pagar uma quantia certa em dinheiro, sobre a qual recaem juros de mora.

II — A dívida de valor existe antes de ser fixada a quantia e a actualização apenastem sentido quando estamos na fase da fixação da quantia certa a pagar.

III — O prazo para o expropriante pagar o valor da indemnização é um prazo denatureza substantiva.

IV — O levantamento da quantia depositada não consubstancia um facto que, comtoda a probabilidade (n.º 1 do artigo 217.º do Código Civil), revele a renúncia a jurosde mora.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 9 Novembro de 2000Processo n.º 2894/2000

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

Joaquim Lopes da Silva Júnior e mulher,Maria Emília Alves Salgueiro, residentes emMoreira, Maia, vieram propor a presente acçãocom processo ordinário contra Aeroportos eNavegação Aérea — ANA, E. P., com sede emLisboa, pedindo a sua condenação a pagar-lhe aquantia de 2 577 425$00 e juros legais a partir dacitação e até efectivo pagamento, invocandocomo causa de pedir o facto da ré, após o trân-sito em julgado da decisão proferida em pro-cesso de expropriação e que fixou aos autores aindemnização complementar de 79 389 053$00,ter deixado de depositar no prazo de 10 dias paraque foi notificada a quantia relativa à indemniza-ção arbitrada.

Pede a taxa de 10% por juros legais e 5% desanção pecuniária compulsória, esta desde 31 deMaio de 1996 a 17 de Setembro 1996 e a taxa de10% num período de 64 dias.

Citada a ré veio contestar alegando que foiordenada a sua notificação para fazer o depósitoem causa em 28 de Junho de 1996 no prazo de 10dias e no dia 9 de Setembro seguinte depositouaquela quantia, que comportava a respectivaactualização até 13 de Setembro de 1996, o quefoi confirmado no processo em 17 de Setembrode 1996.

O prazo para efectuar o depósito é um prazojudicial, que se suspendeu durante as férias, sá-

bados, domingos e feriados. O último dia doprazo foi em 15 de Julho de 1996 e em 16 deJulho de 1996 iniciaram-se as férias judiciais queterminaram em 14 de Setembro de 1996. Alémdisso requereu em 15 de Setembro de 1996 aprorrogação do prazo para fazer o depósito doque foram notificados os autores para se pro-nunciarem, sem que tenham dito o que quer quefosse.

Os autores não sofreram qualquer prejuízo,tanto mais que a indemnização foi actualizadaaté 13 de Setembro de 1996.

Replicaram os autores reafirmando a existên-cia de mora. A actualização teve lugar até 30 deJunho de 1996 e não até 13 de Setembro de 1996.

Improcede, assim, a contestação.Os autos seguiram os seus termos, vindo a

acção a ser julgada improcedente em 1.ª instância.Tendo havido recurso para a Relação, veio

aqui a ser parcialmente procedente e condenadaa ré a pagar aos autores a quantia de 1 827 033$00,incluídos juros legais e sanção pecuniária com-pulsória, cabendo aos autores l 522 527$90 e aoEstado 304 505$50, sendo a devida aos autoresacrescida de juros à taxa de 10% a contar de 10 deSetembro de 1996 e até efectivo pagamento.

Inconformada recorreu a ré para este Tribu-nal, concluindo nas suas alegações:

A recorrente foi notificada com registo de 28de Junho de 1996 para proceder ao depósito daindemnização devida pela expropriação;

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249 Direito Civil — Parte GeralBMJ 501 (2000)

Tal depósito foi efectuado em 9 de Setembrode 1996;

O depósito foi efectuado dentro dos três diasúteis ao termo do prazo — artigos 10.º da LeiOrgânica dos Tribunais Judiciais e143.º do Có-digo de Processo Civil de 1939;

O prazo do artigo 100.º do Código das Expro-priações é peremptório (fixa o período dentro doqual se há-de realizar qualquer acto processual),sendo lícita a prática do acto nos três dias úteissubsequentes ao seu termo, pelo que o depósitofoi tempestivo, inexistindo mora.

De qualquer modo a recorrente, antes de ex-pirar o prazo para o depósito da indemnização,requereu a sua prorrogação por 5 dias, que lhe foideferida pelo M.mo Juiz;

Os autores não recorreram de tal despachopelo que ele transitou em julgado.

Os autores, notificados do depósito da in-demnização (actualizada até 9 de Setembro de1996), concordaram, sem apor qualquer reserva,renunciando deste modo a qualquer indemniza-ção decorrente do mesmo.

Conclui pela revogação do acórdão recorridopor violação dos artigos 145.º e 673.º e seguintesdo Código de Processo Civil, 805.º do CódigoCivil e 100.º do Código das Expropriações, re-dacção do Decreto-Lei n.º 845/76.

Contra-alegaram os autores defendendo a im-procedência do recurso.

Perante as alegações da ré são as seguintes asquestões postas:

O prazo é processual e o depósito teve lugardentro do prazo fixado;

Há caso julgado quanto ao deferimento doprazo de 5 dias;

A quantia depositada encontra-se actualizadacom referência a 9 de Setembro de 1996.

Factos

No processo de expropriação que correu osseus termos no 7.º Juízo Cível do Porto (n.º 2675da 1.ª Secção), em que era expropriante a ora ré eexpropriados os ora autores, por sentença tran-sitada em 19 de Março de 1996, foi fixada a in-demnização em 98 734 500$00, actualizável desdea data da avaliação até à data do pagamento.

Em 28 de Junho de 1996, por carta registada,foi a expropriante notificada para, no prazo de10 dias, proceder ao depósito da quantia em faltareferente à indemnização fixada.

Em 15 de Julho de 1996 a expropriante reque-reu a concessão dum prazo de 5 dias para efec-tuar o depósito.

Por despacho de 16 de Setembro de 1996 orequerimento foi deferido.

Em 9 de Setembro de 1996 a expropriantedepositou na Caixa Geral de Depósitos a quantiade 79 389 053$00.

Em 17 de Setembro de 1996 a expropriantejuntou aos autos de expropriação a guia de depó-sito respectiva.

Face ao depósito efectuado, os expropriados,aceitando o cálculo da actualização do capital,requereram autorização para levantar o montan-te depositado.

Apreciando o requerido, o M.mo Juiz ordenoua emissão de precatório cheque.

O direito

Natureza do prazo

Dispõe o artigo 144.º, n.º 1, do Código deProcesso Civil:

«O prazo judicial é marcado por lei ou fixadopor despacho do juiz.»

A doutrina vem ensinando que o prazo judi-cial «significa o período de tempo fixado parase produzir um determinado efeito processual»(A. Reis, Comentário, vol. 2.º, pág. 52). No mes-mo sentido de que se trata dum prazo que me-deia entre dois actos judiciais praticados em pro-cesso judicial se pode ver Tomás de Resende,citado na Revista de Legislação e de Jurispru-dência, ano 116.º, pág. 311. Idêntica é a opiniãode Eliseu Figueira, O Contencioso Administra-tivo, pág. 187, e de A. Varela, Revista de Legis-lação e de Jurisprudência, ano 128.º, pág. 176.E este vem sendo o entendimento deste Tribunal(v. g. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiçade 10 de Novembro de 1981, Boletim do Ministé-rio da Justiça, n.º 311, pág. 320, de 6 de Janeirode 1987, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 363,pág. 433, de 3 de Novembro de 1994, Colectâ-nea de Jurisprudência, ano II, tomo III, pág. 116).

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250 BMJ 501 (2000)Direito Civil — Parte Geral

No caso dos autos o prazo para o depósito daquantia devida, tal como o prevê o artigo 100.º doDecreto-Lei n.º 845/76 e o artigo 68.º do Decreto--Lei n.º 438/91, não se destina a estabelecer a tra-mitação entre actos processuais e a conceder aoslitigantes o lapso de tempo para cumprirem umacto inserido no processo que se destina a atingiro seu fim, a decisão judicial, mas uma interpela-ção destinada a convocar a parte para depositar aquantia devida no prazo que a própria lei estabe-lece. Estamos perante um acto de natureza subs-tantiva. Este, se bem que requerido no processo,não se confunde com os actos processuais, pelamesma razão por que se não confunde com atramitação processual o prazo concedido aopreferente para depositar o preço, nos termosdo artigo 1410.º do Código Civil e que a jurispru-dência vem entendendo ser de natureza substan-tiva (um prazo de caducidade). Neste sentido vero acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10de Outubro de 1985, Boletim do Ministério daJustiça, n.º 350, pág. 330, o acórdão da Relaçãode Coimbra de 20 de Outubro de 1987, Boletimdo Ministério da Justiça, n.º 370, pág. 619,acórdão da Relação de Coimbra de 13 de Abril de1999, apenso n.º 421/99, acórdãos da Relação deLisboa de 26 de Novembro de 1987 e de 22 deOutubro de 1992, Colectânea de Jurisprudência,ano XII, tomo V, pág.125, e ano XVII, tomo IV,pág. 180.

Tratando-se de um acto de natureza substan-tiva, só lhe é aplicável o regime processual doartigo 144.º, n.º 3 (suspenso aos sábados, domin-gos e dias feriados), nos termos em que o prevê alei substantiva (artigos 279.º e 296.º, ambos doCódigo Civil). No caso dos autos a contagem doprazo é contínua, não havendo lugar à suspensãoprevista na lei processual, sem prejuízo de a prá-tica do acto se transferir para o primeiro dia útilseguinte se o acto a praticar o for em juízo [artigo279.º, alína e), do Código Civil]. Como vem re-ferido no acórdão do Tribunal Constitucionalde 5 de Março de 1998, publicado no Diário daRepública, II Série, de 10 de Julho de 1998, e noBoletim do Ministério da Justiça, n.º 475, pág. 140,com que se concorda e que versa uma situaçãosemelhante à dos autos, «a constituição em morada entidade expropriante ocorre quando se com-pletar o prazo de 10 dias referido no artigo 100.º,n.º 1, do Código das Expropriações de 1976.

Estamos aqui perante uma obrigação de prazocerto, pelo que esta incorre automaticamente emmora com o decurso daquele prazo. Aconsequência principal da mora do exproprianteé a obrigação da indemnização dos danosmoratórios, nos termos do artigo 804.º, n.º 1, doCódigo Civil. Traduzindo-se, para os efeitos queestamos a considerar, a indemnização por expro-priação numa obrigação pecuniária, a lei presu-me (juris et de jure) que há sempre danoscausados pela mora e fixa, à forfait, o montantedesses danos».

O relator deste acórdão (Prof. Alves Correia)defende idêntica posição na Revista de Legisla-ção e de Jurisprudência, ano 132.º, pág. 244,para justificar que só são devidos juros de mora«passados os 10 dias fixados para a efectivaçãodo depósito da quantia devida a título de indem-nização [...]»

Traduzindo-se o prazo em questão numprazo substantivo devia a quantia devida ser de-positada até ao dia 11 de Junho de 1996, descon-tado o prazo de 3 dias (não de natureza processual,mas de presunção de recebimento) previsto noDecreto-Lei n.º 121/76.

A expropriante defere para 15 de Julho de1996 o prazo para fazer o depósito, contando-ocomo processual. E na esteira desse pensamentoalega ter feito o depósito em prazo, atento o n.º 5do artigo145.º do Código de Processo Civil.

Trata-se aqui dum acto processual, inaplicávelao caso dos autos, como vem sendo dito.

Deferimento do prazo pelo juiz

Alega a expropriante que foi deferida a pror-rogação do prazo para o depósito da quantia fi-xada na expropriação e que, não tendo o despachoque assim decidiu sido impugnado, transitou emjulgado.

Ao assim argumentar a expropriante parte dopressuposto, por si invocado, de que o prazopara efectuar o depósito é de natureza proces-sual, o que não corresponde ao nosso entendi-mento. O prazo é de natureza substantiva e nãopode ser prorrogado pelo juiz, sendo que a pró-pria lei indica a sua extensão. O deferimento parafazer o depósito só pode significar que é conce-dida à parte um prazo para a sua comprovação,que não a extinção do direito já constituído pelos

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251 Direito Civil — Parte GeralBMJ 501 (2000)

expropriados aos danos que resultam do nãocumprimento atempado do prazo de depósito.Ao deferir a notificação e ao ser esta feita, decor-ridos os 10 dias, garantiu o juiz o direito a jurosaos expropriados. A denegação desse direito sópodia resultar duma sentença ou despacho revo-gatório da decisão anterior.

Aliás, o deferimento do prazo para mais5 dias não se inclui numa relação processual, peloque não pode constituir-se com ela caso julgadoformal. E também não se pode constituir casojulgado material, porque se não prova a existên-cia duma relação substancial que aquele despa-cho quisesse decidir. E se assim fora, que não é, odespacho extintivo do direito a juros, para alémdo prazo de 10 dias, colidiria com o direito ante-riormente concedido, que se lhe sobrepunha porser mais antigo.

Actualização da quantia a depositar com re-núncia a outra indemnização

Invoca a expropriante que depositou umaquantia que actualiza a importância a depositar,querendo com isso significar que com a delongano depósito não prejudicou os expropriados.

Como é entendido pela doutrina (MenesesCordeiro e Teixeira de Sousa, Colectânea de Ju-risprudência, ano XV, tomo V, pág. 21, e AlvesCorreia, As Garantias do Particular na Expro-priação por Utilidade Pública, pág. 151), e najurisprudência, aqui com vários entendimentos,a quantia a arbitrar devia ser actualizada entre adata da declaração por utilidade pública e a de-cisão que fixava o quantitativo indemnizatório,entendendo uns que o devia ser até à data daarbitragem (v. g., acórdão da Relação de Évorade 29 de Março de 1979), outro entendimentoaté ao encerramento da decisão em 1.ª instância(v. g., acórdão da Relação do Porto de 21 deMarço de 1985, Colectânea de Jurisprudência,1985, tomo II, pág. 223), até à data da sentençaem 1.ª instância (v. g., Colectânea de Jurisprudên-cia, 1990, tomo IV, pág. 206) e até à data em quefosse proferido o acórdão na Relação (v. g., acór-dão da Relação do Porto de 1 de Abril de 1986,Colectânea de Jurisprudência, 1986, tomo II,pág. 184). O acórdão do Supremo Tribunal deJustiça de 24 de Fevereiro de 1994, Boletim doMinitério da Justiça, n.º 434, pág. 404, entendeuque a indemnização para ser justa deve ser actua-

lizada à data da decisão final de acordo com oartigo 23.º do Decreto-Lei n.º 438/91. Este enten-dimento parece ser o que resulta do acórdão doTribunal Constitucional, acima referido, de 5 deMarço de 1998 e que reflecte a posição do seurelator (Alves Correia) na doutrina que defendiae ao referir a certo passo que «de facto deve serconcedida ao expropriado uma indemnização omais actualizada possível, pelo que deve consi-derar-se errónea a opinião que defende que a de-claração por utilidade pública congela o valor dobem (Garantias do Particular, pág. 151)».

Tudo isto reflecte a ideia geral em direito civilde que nas dívidas de valor a quantia a estipulardeve ser actualizada de acordo com a desvalori-zação da moeda; fixada a quantia devida passama ser devidos juros moratórios nos termos que alei especificar.

No caso dos autos, estabelecida a quantia adepositar por decisão com trânsito em julgado,fica o expropriante obrigado a pagar uma quantiacerta em dinheiro (artigo 559.º do Código Civil)depois de notificado para pagar em 10 dias. E ésobre esta que recaem os juros. A dívida de valorexiste antes de ser fixada a quantia e a actua-lização apenas tem sentido quando estamos nafase da fixações da quantia certa a pagar. Aliás, adiscussão jurisprudencial que teve lugar no do-mínio do Decreto-Lei n.º 845/76 e deu margem àsvárias orientações, a que acima nos referimos,entendemos ser a consagrada no artigo 23.º doDecreto-Lei n.º 438/91 em favor da que preconi-zava que a actualização tinha lugar com referên-cia à decisão final.

Afirma a expropriante que, tendo os expro-priados recebido a quantia depositada, actuali-zada até 9 de Setembro de 1996, renunciaram aqualquer indemnização específica.

O levantamento da quantia depositada não sepode equiparar à renúncia aos juros. Tal levanta-mento não consubstancia um facto que, com todaa probabilidade, o revele (artigo 217.º do CódigoCivil, renúncia tácita).

De resto a renúncia invocada nas alegações éuma questão nova que não foi referida na contes-tação, pelo que não podia agora ser conhecida(artigo 684.º do Código de Processo Civil). Ofacto de se dizer na contestação (artigo 19.º) queos autores aceitaram o cálculo da indemnizaçãonão mostra que tivessem renunciado aos juros.

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252 BMJ 501 (2000)Direito Civil — Parte Geral

Acresce que o acórdão recorrido não se pro-nuncia sobre a agora invocada renúncia tácita e aexpropriante também não invocou a nulidade doacórdão por esse facto [artigo 668.º, n.º 1, alí-nea d), do Código de Processo Civil] pelo que,mesmo que existisse verdadeira invocação, nãopodia ser conhecida dada a nulidade não arguidada decisão de 2.ª instância. Improcedem, assim,as alegações da recorrente.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Maia, processo n.º 572/97.

II — Acórdão da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 144/2000.

Na fundamentação do acórdão dá-se conta da jurisprudência e da doutrina mais relevantes acercada matéria sumariada.

Aos artigos 23.º e 68.º do Código das Expropriações de 1991 correspondem, respectivamente, osartigos 24.º e 71.º do Código das Expropriações aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro.

(A. E. R.)

Nega-se revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 9 de Novembro de 2000.

Simões Freire (Relator) — Roger Lopes —Costa Soares.

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253 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

Contrato de aluguer de longa duração (ALD) — Incumprimento —Resolução do contrato — Indemnização

I — Contrato de aluguer de longa duração (ALD) é aquele pelo qual o locadorcede ao locatário, mediante pagamento de uma retribuição, o gozo de um veículo terres-tre, facul-tando a prestação de serviços de manutenção e assistência.

II — Tal contrato rege-se, em primeiro lugar, pelo Decreto-Lei n.º 354/86, de 23 deOutubro, pelas disposições gerais do contrato de locação que não contrariem aquelediploma legal e ainda pelas disposições gerais dos contratos que não entrem em contra-dição com aquelas, sem esquecer, obviamente, o princípio da liberdade contratual, aautonomia privada, onde possa ter lugar.

III — Se o locatário deixar de pagar as mensalidades estipuladas, o locador poderesolver o contrato, com fundamento em incumprimento da cláusula contratual acor-dada, nos termos do artigo 17.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 354/86.

IV — Resolvido o contrato de longa duração, se nada tiver sido especialmenteacordado, o locatário, por força do artigo 1045.º, n.º 1, do Código Civil, fica obrigado apagar até ao momento da restituição do veículo alugado, os alugueres estipulados, atítulo de indemnização.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 7 de Novembro de 2000Processo n.º 2318/2000 — 1.ª Secção

ACORDAM, em conferência, no SupremoTribunal de Justiça:

I — Sagrup, Aluguer de Automóveis, S. A.,intentou acção com processo ordinário contraMaria Amália Gil de Paiva Oliveira e marido,Manuel dos Santos Oliveira, pedindo que os réussejam condenados a pagar alugueres vencidos evincendos, juros, uma indemnização a liquidarem execução de sentença e ainda condenados arestituir à autora o veículo automóvel em ques-tão e a pagar sanção pecuniária compulsória.

Alegou que deu de aluguer aos réus um veí-culo automóvel, tendo os réus deixado de pagaros alugueres convencionados e não tendo resti-tuído a viatura, apesar de a autora ter resolvido ocontrato.

Citados os réus não contestaram.A acção foi julgada parcialmente procedente.Apelou a autora.O Tribunal da Relação alterou a decisão.Novamente inconformada, recorre a autora

para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:

— O contrato de aluguer do veículo automó-vel dos autos, celebrado entre a autora, ora recor-rente, e os réus, ora recorridos, é um verdadeirocontrato de aluguer de veículo automóvel semcondutor, nos termos e, de harmonia com o dis-posto nos artigos 1022.º e seguintes do CódigoCivil, mas sujeito a algumas particularidades,designadamente decorrentes do próprio clau-sulado do contrato e ainda das normas ínsitas noDecreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, e atédas constantes do artigo 18.º do Decreto-Lein.º 15/88, de 16 de Janeiro, e não um contrato delocação financeira;

— Nada nos autos permite concluir que oreferido contrato de aluguer de veículo automó-vel sem condutor é um negócio simulado de ondese aproveita uma locação financeira ou qualqueroutro tipo de contrato;

— Pelo contrário, dos autos e da matéria defacto neles considerada provada resulta inequí-voco que o referido contrato é um contrato dealuguer de veículo automóvel sem condutor aoqual se aplicam os referidos diplomas legais;

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254Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

— Aliás, atenta a matéria de facto provadanos autos, os elementos fornecidos pelos autos,a falta de invocação de pretensa simulação, ofacto de tal questão não ter sido colocada ao tri-bunal a quo e a impossibilidade prática destepoder saber com um mínimo de segurança — oumesmo sem ela — se houve divergência entre avontade declarada e a vontade real das partes nodito contrato, é evidente que o tribunal a quoexorbitou de forma flagrante os seus «poderes»ao proferir a decisão recorrida;

— Para além dos ora recorridos estarem obri-gados a restituir à recorrente o veículo automó-vel dos autos — o que aliás é propriedade plenada recorrente — a ora recorrente, por força dodisposto no artigo 1045.º do Código Civil — in-teiramente aplicável ao contrato dos autos —tem direito a receber dos ora recorridos os mon-tantes mensais idênticos aos dos alugueres docontrato dos autos, à razão de 60 199$00 pormês, desde a data da resolução do referido con-trato até à data da efectiva restituição à ora recor-rente do veículo automóvel objecto do ditocontrato de aluguer, e respectivos juros de moraaté integral pagamento;

— O contrato de aluguer de veículo sem con-dutor dos autos foi validamente resolvido pelarecorrente;

— A referida resolução do contrato de aluguerde veículo sem condutor dos autos pela ora re-corrente — que aliás ressalta da matéria de factoprovada nos autos — não constitui qualquer abu-so do direito mas tão-só o exercício legítimo dodireito legal e contratual de resolver o con-tratopor incumprimento do mesmo por parte dos re-corridos;

— Mesmo que a ora recorrente não tivesseresolvido o contrato dos autos — como inequi-vocamente resolveu — e ou mesmo que por ab-surdo não se considerasse válida a dita resolução,o certo é que ainda assim os ora recorridos, paraalém de terem de restituir o veículo dos autos àrecorrente, estariam — como estão embora naverdade se trate de montantes idênticos aos doaluguer mensal e não já o aluguer mensal pro-priamente dito — obrigados a pagar à ora recor-rente não só os alugueres vencidos e não pagosaté ao termo do contrato — que se não tivessesido resolvido, como foi, terminaria em 5 deMarço de 1997 — como também os montantes

mensais idênticos ao valor do aluguer, à razão de60 199$00 por mês, desde o termo do contratoaté à data da efectiva restituição à recorrente detal veículo, restituição que ainda não ocorreu,pelo que mesmo tendo em conta os errados «en-tendimentos» do acórdão recorrido os ora recor-ridos deviam ter sido condenados a pagar àrecorrente tais quantias;

— O tribunal a quo ao decidir como fez noacórdão recorrido violou inequivocamente o dis-posto nos artigos 9.º, 236.º, 240.º, 241.º, 282.º,334.º, 349.º, 405.º, 432.º, 436.º e 1045.º do Có-digo Civil, artigos 264.º, 660.º, 664.º e 684.º doCódigo de Processo Civil, artigo 17.º, n.º 4, do De-creto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, e artigo1.º do Decreto-Lei n.º 171/79, de 6 de Outubro.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II — Vem dado como provado:

Os réus pretendiam adquirir o veículo auto-móvel marca Hunday, modelo Pony 1.3, com amatrícula 66-75-BS, tendo para o efeito con-tactado a Miracar — Automóveis, L.da;

Como os réus não dispusessem ou não pu-dessem pagar de pronto o preço do dito veículo,solicitaram à Miracar esta possibilitar-lhe o alu-guer do mesmo por um período de quatro anos,com a colaboração ou a intervenção da ora au-tora;

Na sequência do que lhe foi solicitado pelaMiracar, por ela e em nome dos réus, a autoraadquiriu para os réus aquele veículo automóvel;

Cujo valor é de 2 300 000$00;Pelo «contrato de aluguer de veículo sem con-

dutor», o veículo deveria ser restituído à locado-ra em 5 de Março de 1997;

O contrato foi estabelecido por 48 meses, cominício em 5 de Março de 1993;

Pelo 1.º mês de aluguer o locatário pagaránesta data (2 de Março de 1993) à locadora: alu-guer — 471 045$00; IVA 16% — 75 367$00,num total de 546 412$00;

Por cada um dos meses seguintes (47) o loca-tário pagará antecipadamente à locadora por trans-ferência bancária para a conta 991421000196310/BNU — aluguer — 51 452$00; IVA 16% —8232$00, num total de 59 684$00;

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255 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

Sendo que a partir de 1 de Janeiro de 1995 oIVA passou a ser de 17% e, assim, do montantede 8747$00, ficando o valor do aluguer elevado a60 199$00;

Cada uma das importâncias referidas deveriaser paga pelos réus à autora até ao dia 5 do mês aque respeitasse, por meio da dita transferênciabancária;

Após a celebração do referido contrato os réusreceberam o veículo e passaram a utilizá-lo;

Os réus partir do 30.º aluguer, inclusive, quese venceu em 5 de Agosto de 1995 deixaram depagar os alugueres acordados;

Por carta de 23 de Outubro de 1995, data dereferência 2 de Novembro de 1995, a autoracomunicou aos réus a resolução do contrato nos10 dias posteriores;

Dando conta da dívida para com esta empresano montante de: débitos em mora — 120 415$00;juros de mora — 23 452$00, total — 143 867$00;

Na qual a autora considerava a não restituiçãodo veículo como uso do locado contra a vontadeda Sagrup-Rent, incorrendo VV. Ex.as na práticade crime de abuso de confiança;

Os réus não entregaram o veículo à autora;Os réus, posteriormente, pagaram à autora o

30.º aluguer, vencido em 5 de Agosto de 1995 ao34.º vencido em 5 de Dezembro de 1995, bemcomo os respectivos juros sobre eles incidentes;

Os réus não pagaram à autora os valoresmensais idênticos aos de cada aluguer venci-dos até 12 de Junho de 1996, no valor total de361 194$00;

A cláusula 8.ª — «Rescisão e denúncia pelalocadora» estabelece o seguinte: 1 — «O incum-primento pelo locatário de qualquer das obriga-ções por ele assumidas no presente contrato darálugar à possibilidade da sua resolução pela loca-dora, tornando-se efectiva essa resolução à datada recepção pelo locatário de comunicação fun-damentada nesse sentido». 3 — «A resoluçãopor incumprimento não exime o locatário do pa-gamento de quaisquer dívidas em mora para coma locadora, da reparação de danos que o veículoapresente, do valor dos eventuais quilómetrossuplementares calculados numa base proporcio-nal aos meses decorridos desde o início do con-trato, ainda do pagamento de indemnização àlocadora». 4 — «A indemnização referida desti-nada a ressarcir a locadora — que fará sempre

suas todas as importâncias até então pagas pelolocatário nos termos deste contrato — dos pre-juízos resultantes da desvalorização do veículo edo próprio incumprimento em si do contrato pelolocatário — não será nunca inferior a 75% dovalor total dos montantes fixos referidos nas con-dições particulares e na cláusula 3.ª, n.º 1, alí-nea a), deste contrato»;

A cláusula 9.ª — restituição do veículo: 1 —«Findo o contrato, ou efectuada a rescisão nostermos da cláusula 8.ª, o veículo será restituídono local e perante a entidade indicada nas condi-ções particulares, a qual procederá a inspecçãodo mesmo e determinará não só o montante pre-visto para quilómetros suplementares, bem comoo necessário à reparação de quaisquer danos noveículo da responsabilidade do locatário e, se foro caso, a indemnização devida conforme referidona cláusula anterior»;

Cláusula 3.ª — Preço: 1 — «O preço, retri-buição do aluguer, consiste num montante fixo,pagável sob a forma de mensalidades, todas elasde igual valor, independentemente dos quilóme-tros percorridos pelo veículo, em número, valorunitário e nos demais termos constantes das con-dições particulares; num montante variável, a de-terminar e liquidar no termo deste contrato,correspondente ao número de quilómetros su-plementares percorridos pelo veículo. Só aplicá-vel quando tal constar das condições particulares;

No recurso n.º 7914/99 do mesmo relator,colectivo e 2.ª Secção, a autora usou aí a figura daacção directa (artigo 336.º do Código Civil) parafazer regressar ao seu património o veículo daí,ao contrário do que fez aqui (artigo 514.º, n.º 2,do Código de Processo Civil).

III — A autora, invocando ter celebrado comos réus um contrato de aluguer de veículo auto-móvel sem condutor e sustentando que o con-trato foi resolvido por não terem sido pagas asmensalidades acordadas, pediu que os réus fos-sem condenados em: pagamento de mensalida-des vencidas, vincendas e juros; indemnização aliquidar em execução de sentença; restituição doveículo; pagamento de sanção pecuniária com-pulsória.

No acórdão recorrido, que alterou a decisãode 1.ª instância, considerou-se que existiu simu-lação, sendo o negócio dissimulado a locação fi-

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256Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

nanceira e condenou-se os réus unicamente nopagamento de prestações em dívida e juros.

Daí o recurso.Pretende a recorrente que se considere o ne-

gócio jurídico celebrado como um contrato dealuguer de veículo sem condutor, que se julgueválida a resolução de tal contrato e se condene osréus a restituir o veículo e a pagar 60 199$00mensais desde a data da resolução do contrato eaté à efectiva restituição, bem como juros.

As questões a resolver são assim: qualifica-ção do contrato celebrado; saber se existiu reso-lução desse mesmo contrato por forma válida;consequências que daí poderão advir no que tocaao pedido de restituição do veículo e pagamentode mensalidades.

Importa, antes de mais, proceder ao enqua-dramento legal do contrato em causa.

As partes celebraram entre si um negócio jurí-dico que intitularam de «contrato de aluguer deveículo sem condutor».

Nas condições particulares do contrato esti-pularam que o contrato era estabelecido por 48meses, com início em 9 de Março de 1993, que olocatário pagaria uma mensalidade pela utiliza-ção do veículo locado e que este devia ser resti-tuído à locadora em 5 de Março de 1997.

Destes elementos tem que se concluir que aspartes celebraram um contrato de aluguer delonga duração (ALD), que é aquele pelo qual olocador cede ao locatário, mediante pagamentode uma retribuição, o gozo de um veículo terres-tre, facultando a prestação de serviços de manu-tenção e assistência.

Tal contrato rege-se, em primeiro lugar, peloDecreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, pelasdisposições gerais do contrato de locação quenão contrariem aquele diploma legal e ainda pe-las disposições gerais dos contratos que não en-trem em contradição com aquelas, sem esquecer,obviamente, o princípio da liberdade contratual,a autonomia privada, onde possa ter lugar.

No acórdão recorrido considerou-se, porém,que esse contrato é simulado e o que, verdadeira-mente, existe é um contrato de locação financeira.

Para que se possa falar de simulação, como ésabido, é necessário que se verifiquem os ele-mentos integradores: intencionalidade da diver-gência entre a vontade e a declaração; acordo entreo declarante e declaratário (acordo simulatório),

intuito de enganar terceiros (artigo 240.º, n.º 1,do Código Civil).

E para que se possa falar de simulação rela-tiva tem que se apurar que as partes fingem cele-brar um certo negócio jurídico, quando na realidadepretendem outro. Por detrás do negócio simu-lado existe um negócio real (artigo 241.º, n.º 1, doCódigo Civil).

Ora, da factualidade trazida até este Tribunalnão é possível concluir pela existência de simula-ção. Não se vê onde exista a divergência entre avontade e a declaração, como e por quem é feitoo acordo simulatório ou quais os terceiros enga-nados.

Também não se mostram preenchidos os re-quisitos para considerar que o contrato celebra-do é de locação financeira.

O artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 171/79, de 6 deAgosto (aqui aplicável), define contrato de loca-ção financeira como aquele pela qual uma daspartes se obriga, contra retribuição, a conceder aoutra o gozo temporário de uma coisa, adquiridaou construída por indicação desta e que a mesmapode comprar total ou parcialmente num prazodeterminado ou determinável nos termos do pró-prio contrato.

Esse direito potestativo de o locatário adqui-rir o bem em parte alguma aparece expresso.O que consta do contrato é que o veículo locadodeveria ser restituído à locatária em 5 de Marçode 1997, findo o prazo estipulado.

É certo, como escreve a Dr.ª Cristina Alves, OContrato de Aluguer de Longa Duração — Aná-lise Tipológica, págs. 9-13, que as inúmeras res-trições de que foi alvo o contrato de locaçãofinanceira, nomeadamente quanto aos bens quepodiam ser objecto do mesmo, e as restriçõesimpostas à venda a prestações, fizeram com queos sujeitos económicos, para superar a barreiralegislativa, então imposta, recorressem à seme-lhança do que se passava em vários países daEuropa, ao aluguer de longa duração.

É certo ainda que, por vezes, se configuramsituações de fraude à lei.

Mas, se é assim, a verdade é que não existemelementos nos autos que permitam tirar tais con-clusões.

Qualificado o contrato como de ALD im-portatirar daí as necessárias consequências.

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257 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

As partes acordaram que o incumprimentopelo locatário de qualquer das obrigações assu-midas daria lugar à possibilidade da sua resolu-ção pela locadora, tornando-se efectiva essa reso-lução à data da recepção pelo locatário da comu-nicação fundamentada em tal sentido.

Tendo os locatários deixado de pagar as men-salidades estipuladas, a ora recorrente resolveu ocontrato, com fundamento em incumprimentoda cláusula contratual acordada.

Tal resolução é consentida pelo artigo 17.º,n.º 4, do Decreto-Lei n.º 354/86, que permite àempresa de aluguer sem condutor rescindir o con-trato, nos termos da lei, com fundamento emincumprimento das cláusulas contratuais e foifeita por forma válida com comunicação à outraparte (artigo 436.º n.º 1, do Código Civil).

Estão assim os réus, nos termos em que sevincularam, obrigados a restituir o veículo, o quesempre decorreria dos princípios gerais estabe-lecidos para a locação, que obrigam o locatário arestituir a coisa locada (artigo 1043.º, n.º 1, doCódigo Civil).

Estão igualmente os réus obrigados a pagar osalugueres em dívida e a indemnização a liquidarem execução de sentença, tal como se decidiu na1.ª instância e não foi posto em causa no recursointerposto pela autora.

O que se questionou e continua a questionar étão-somente o direito de que a autora se arroga dereceber dos ora recorridos os montantes mensaisidênticos aos dos alugueres, à razão de 60 199$00por mês, desde a data da resolução do contrato eaté à data da efectiva restituição do veículo.

O contrato de aluguer de longa duração rege--se, como já está dito, em primeiro lugar, peloDecreto-Lei n.º 354/86, de 23 de Outubro, e nãoestando, como não está, regulada aí a questão,haverá que atender às disposições gerais do con-trato de locação, sem esquecer as disposiçõesgerais dos contratos.

Ora, em concreto, dispõe o artigo 1045.º,n.º 1, do Código Civil que se a coisa locada nãofor restituída, por qualquer causa, logo que findoo contrato, o locatário é obrigado, a título deindemnização, a pagar até ao momento da resti-tuição, a renda ou aluguer que as partes tenhamestipulado.

Não tendo sido acordada a tal respeito qual-quer cláusula especial, a obrigação desse paga-mento é devida não como preço do contrato, jáque este foi resolvido, mas a título de indemniza-ção, a qual se considera justa por continuar olocatário a usar a coisa em prejuízo do locador —Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, CódigoCivil Anotado em anotação ao artigo referido;acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 deDezembro de 1995, Colectânea de Jurisprudên-cia, ano III, pág. 135.

Dir-se-á, como nota final, que contrariamenteao sustentado no acórdão recorrido não se veri-fica qualquer situação de abuso do direito.

Esta figura, consagrada na concepção objec-tivista no artigo 334.º do Código Civil, surge comouma forma de adaptação do direito à evolução davida, procurando contornar situações que oslimites apertados da lei não contemplam porforma considerada justa pela consciência socialem determinado momento histórico e procurandoevitar que observada a estrutura formal do poderque a lei confere, se exceda manifestamente oslimites que se devem observar, tendo em conta aboa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Não é preciso que o agente tenha consciênciada contrariedade do seu acto à boa fé, aos bonscostumes ou ao fim social ou económico do di-reito exercido. Basta que o acto se mostre con-trário, exigindo-se, contudo, que o titular do di-reito tenha excedido manifestamente esses limi-tes impostos ao seu exercício — Prof. AlmeidaCosta, Obrigações, págs. 52 e seguintes.

Ora, a recorrente limita-se a exercer um di-reito que a lei lhe confere dentro dos limites dessamesma lei.

Não se mostra, face à factualidade trazida atéeste Tribunal, que a actuação da recorrente estejadespida da boa fé que deve estar presente nacelebração dos negócios jurídicos.

O contrato celebrado, como todos os contra-tos de adesão, apresenta aspectos que se mos-tram menos favoráveis ao aderente, que tem aquia sua liberdade contratual fortemente limitada.

Certo é, porém, que o nosso ordenamento,jurídico consente esse contrato tal como foi con-cretizado, sem que se mostre que foi violadoqualquer princípio básico desse mesmo orde-namento.

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258Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

Impõe-se assim a revogação do acórdão deci-dido.

Pelo exposto, concede-se a revista.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 7 de Novembro de 2000.

Pinto Monteiro (Relator) — Lemos Triun-fante — Torres Paulo.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença da 1.ª Secção do 6.º Juízo Cível de Lisboa, processo n.º 476/96.

II — Acórdão da 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 7848/99.

O contrato de aluguer de longa duração (ALD) é regulado pelo Decreto-Lei no 354/86, de 23 deOutubro, e pelas disposições gerais do contrato de locação consignadas nos artigos 1022.º e seguintesdo Código Civil.

Na doutrina, para além da obra citada no douto aresto que se anota, aconselha-se a leitura doestudo intitulado «Locação financeira e aluguer de longa duração», de José Vieira dos Reis, Jornal deContabilidade, n.º 197, Agosto de 1993.

Na jurisprudência, sobre contratos ALD tem sido abundante a prolação de acórdãos pelo Supre-mo Tribunal de Justiça nos anos mais recentes. Assim e passando a enumerá-los: acórdãos de 17 deNovembro de 1998, processo n.º 711/98, Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 25, pág. 30(incumprimento; indemnização); de 17 de Junho de 1999, processo n.º 435/99, 2.ª Secção, Sumáriosdo Supremo Tribunal de Justiça, n.º 32, pág. 45 (incumprimento; resolução do contrato); de 23 deMaio de 2000, processo n.º 314/2000, l.ª Secção, Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 41,pág. 27 (caducidade; perda da coisa locada); de 3 de Outubro de 2000, processo n.º 1955/2000, l.ª Secção, Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 44, pág. 13 (resolução do contrato);e de 13 de Dezembro de 2000, processo n.º 3072/2000, l.ª Secção, Sumários do Supremo Tribunal deJustiça, n.º 46, pág. 15 (locação financeira ou ALD; interpretação do negócio jurídico).

(B. N.)

Direito de retenção — Promessa de compra e venda — Processode falência — Restituição provisória de posse

Mau grado a subsistência do direito de retenção em favor do promitente-compra-dor, em processo de falência, a função de garantia desse direito restringe-se à preferên-cia sobre os demais credores.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 9 de Novembro de 2000Processo n.º 1759/2000

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

Recorrente: Massa falida de SOSUL — So-ciedade Hoteleira do Sul, S. A.

Recorrido: Alexandre Agostinho Pereira.

1.1. SOSUL — Sociedade Hoteleira do Sul,S. A., foi declarada falida, no Tribunal Judicial daComarca de Vila Real de Santo António.

O liquidatário judicial nomeado procedeu àapreensão dos bens da massa falida e, no que aosautos interessa, foram invadidos os apartamen-

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259 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

tos n.os 801, 802 e 803, prometidos comprar peloora recorrido à ora falida e que fora autorizado ahabitar em férias por si, familiares e amigos.

O liquidatário mandou mudar as fechaduras eretirou ou mandou retirar os bens pessoais aliencontrados.

Mais tarde, o filho do ora recorrente foi impe-dido de ocupar qualquer daqueles apartamentos.

1.2. Com base em tais factos, o ora recorrenteinstaurou, naquele Tribunal, procedimentocautelar de restituição provisória de posse emque pede a restituição provisória de tais aparta-mentos e notificação do liquidatário para se abs-ter de praticar qualquer acto que inviabilize autilização dos ditos apartamentos, nomeadamentedesligando ou mandando desligar a energia eléc-trica ou o abastecimento de água.

Considera o requerente que o direito de reten-ção de que é titular impedia a apreensão.

O requerido não deduziu oposição

Foi requerido que o procedimento consti-tuísse um apenso do processo de falência.

O que foi indeferido.Não foi decretada a restituição, por ter sido

considerado ter o liquidatário actuado no exercí-cio das suas funções.

A Relação confirmou a decisão de não devercorrer por apenso o procedimento e decretou aprovidência.

1.3. Do acórdão, na parte em que decretou arestituição, agravou a massa falida.

Alegando, formulou as conclusões seguintes:

1 — O douto acórdão recorrido e bem assim otambém douto acórdão proferido pelo Tribunalda Relação de Coimbra de 4 de Junho de 1996decidiram, sob a mesma questão fundamental, deforma contraditória;

2 — A mesma questão fundamental de direitoassim decidida pode ser formulada, tal como ofez o tribunal ad quem, da seguinte forma:

«Será que é legítimo, à face do Código de Fa-lência, que sejam objecto de apreensão os bensque gozam do direito de retenção?»

3 — O tribunal recorrido respondeu de formanegativa à citada questão, com o fundamento deque se assim não fosse estar-se-ia a esvaziar o

conteúdo e natureza jurídica do próprio direitode retenção enquanto direito real de garantia eque se traduz «no direito que tem o devedor dediferir a entrega de uma coisa na sua posse ou dea reter, como meio de levar o credor a cumpriruma obrigação em que se encontra para com ele».

4 — Diferentemente decidiu o douto acórdãodo Tribunal da Relação de Coimbra, responden-do, à mesma questão, de forma positiva.

5 — Fundamenta este Tribunal a sua decisãoem três parágrafos, os quais constituem o seusumário, para além do que se pode ler, comofundamentos, ao longo de toda a decisão cons-tante do mesmo.

6 — A massa falida, aqui agravante, perfilha aposição adoptada neste citado acórdão, sufra-gando toda a sua orientação.

7 — Entende, igualmente, a agravada que odireito de retenção é um direito real de garantia enão de gozo.

8 — A declaração de falência priva o promi-tente-vendedor, caso este seja o falido, de, per si,cumprir o contrato prometido pois que é suaconsequência a privação do falido de dispor dosseus bens, os quais passam para a massa sob aadministração e poder de disposição do liquida-tário judicial — n.º 1 do artigo 147.º do Códigodos Processos Especiais de Recuperação da Em-presa e de Falência.

9 — Desaparece, por consequência, da esferajurídica do respectivo promitente-comprador aobrigação de entregar, ao promitente-vendedorfalido, o objecto prometido vender.

10 — Não existindo o dever de entrega, desa-parece um dos requisitos necessário e essencialpara a atribuição do direito de retenção — artigo754.º do Código Civil.

11 — Ainda por outro lado, desaparecendo odever de entrega, nenhum interesse tem, para ocredor, a retenção da coisa uma vez que, nestanova situação jurídica em que se encontra, a leilhe confere o direito de ser pago preferencial-mente em relação aos demais credores — artigo759.º do Código de Processo Civil em confrontocom o artigo 181.º, n.º 1, do Código dos Proces-sos Especiais de Recuperação da Empresa e deFalência.

12 — Posição contrária colidiria com as nor-mas imperativas do Código dos Processos Espe-ciais de Recuperação da Empresa e de Falência,

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260Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

nomeadamente as que respeitam à apreensão dosbens do devedor, ainda que arrestados, penho-rados ou por qualquer outra forma apreendidosou detidos — alínea c) do artigo 28.º do Códigodos Processos Especiais de Recuperação da Em-presa e de Falência.

13 — Posição contrária convergiria necessa-riamente a um resultado sem solução pois que senuma determinada falência todos ou grande partedos bens do devedor falido estivessem oneradoscom direitos de retenção, tal processo falimentarestaria, logo à partida, votado ao insucesso por-quanto tais bens nunca poderiam ser apreendi-dos, não o sendo não poderiam ser vendidos enão sendo vendidos nunca os credores, indepen-dentemente das garantias detidas, incluindo odireito de retenção, veriam os seus créditos sa-tisfeitos.

14 — Assim a garantia fundamental dada pelodireito de retenção, na falência, deve ser, tão-só,o de chamar o credor seu titular a ser pago prefe-rencialmente sobre todos os demais credores,abrindo, deste modo, caminho ao normal anda-mento do processo de falência.

15 — No caso dos autos o Aparthotel Nep-tuno é um estabelecimento da falida em plenofuncionamento.

16 — Aceitar o direito de retenção tal como ofez o douto acórdão recorrido é privilegiar, paraalém do que a lei permite, os credores da falidatitulares dos direitos de retenção pois que, naprática, permite-se-lhes, para além do privilégioàqueles direitos inerentes, os direitos de uso efluição dessa unidade hoteleira com prejuízo paraos restantes credores pela diminuição efectiva daoferta de habitações no mercado hoteleiro, fican-do os restantes credores, apenas e só, com umamera expectativa de venda sem horizontes deconcretização.

Não houve contra-alegações.Correram vistos.

A ora falida prometeu vender ao ora recorrido— e este prometeu comprar — determinadasfracções autónomas, tendo sido entregue certovalor como sinal e princípio de pagamento e sidoentregue a detenção material das fracções.

Antes de cumprir a sua obrigação de vender, apromitente-vendedora faliu.

O liquidatário judicial procedeu à apreensãomaterial das fracções, contra o que se insurgiu opromitente-comprador, por meio de procedi-mento judicial de restituição provisória de posse.

Na 1.ª instância, o procedimento foi indefe-rido mas, na 2.ª, foi deferido.

Foi então pedido se decidisse fixando juris-prudência no sentido de que são apreensíveis,para a massa falida, bens sobre os quais existadireito de retenção.

Isto na convicção de que o direito de retençãonão confere, ao seu titular, direito de oposição atal apreensão mas apenas direito de ser pago,preferencialmente e por isso, no concurso de cre-dores.

2.1. Não houve alteração na descrição dosfactos que fora feita em 1.ª instância.

Mas vai ser transcrita, para melhor com-preensão.

Temos assim que:

1 — Por sentença de 6 de Novembro de 1996,transitada em julgado, foi decretada a falência deSOSUL — Sociedade Hoteleira do Sul, S. A., noâmbito do processo n.º 106/93 (acção especial derecuperação de empresa).

2 — Foi nomeado, pelo Tribunal, o respec-tivo administrador de falência.

3 — Pelo escrito que se encontra de fls. 27 a30, datado de 9 de Novembro de 1989, o orarequerente prometeu comprar e a SOSUL pro-meteu vender-lhe, pelo preço de 23 580 000$00,os apartamentos n.os 801, 802 e 803 do edifício,em fase de acabamento, denominado AparthotelNeptuno.

4 — No processo de falência, pelo créditorelativo ao não cumprimento do negócio acor-dado, o ora requerente reclamou o crédito de23 580 000$00, correspondente ao dobro do si-nal, pedindo, também, que lhe fosse reconhecidoo direito à execução específica do contrato-pro-messa.

5 — O ora requerente vinha ocupando os apar-tamentos n.os 801, 802 e 803 desde a sua conclu-são, para gozo de férias suas, de amigos e defamiliares.

6 — O então liquidatário judicial invadiu taisapartamentos, mudou as fechaduras e retirou

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261 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

todos os bens pessoais que o aqui requerente látinha.

7 — No dia 10 de Julho de 1998, o filho dorequerente foi impedido de ocupar o aparta-mento n.º 801, ou qualquer dos outros.

8 — O aqui requerente foi impedido de conti-nuar a habitar os apartamentos, não lhe tendosido entregues cópias das chaves que dão acessoaos mesmos, nem permitida a entrada.

2.2. O processo de falência entrou em juízoem 1993, sendo a decisão de falência de 1996.

O presente procedimento cautelar entrou emjuízo em 1998.

A lei aplicável, porque em vigor à data da ins-tauração do processo de falência — processo n.º106/93, é:

— A do Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril,diploma que aprovou o Código dos ProcessosEspeciais de Recuperação da Empresa e de Fa-lência;

— Código de Processo Civil, na redacção exis-tente na data de instauração.

Haja em vista o disposto no artigo 8.º, n.º 3,daquele decreto-lei.

2.3. No caso dos autos, era admissível recur-so ordinário para este Supremo Tribunal, em fun-ção do valor do processo.

Sendo certo, ainda, que a decisão recorridanão pôs termo ao processo e que a Relação nãoconfirmou essa decisão, pelo que um recurso deagravo é sempre admissível.

Estatui o Código de Processo Civil, na redac-ção do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de De-zembro, no seu artigo 678.º, correspondente aon.º 4 do artigo 674.º na redacção anterior:

«..................................................................... 4 — É sempre admissível recurso, a proces-

sar nos termos dos artigos 732.º-A e 732-B, doacórdão da Relação que esteja em contradiçãocom outro, dessa ou de diferente Relação, sobrea mesma questão fundamental de direito, e doqual não caiba recurso ordinário por motivo es-tranho à alçada do tribunal, salvo se a orientaçãonele perfilhada estiver de acordo com a jurispru-dência já anteriormente fixada pelo Supremo Tri-bunal de Justiça.

......................................................................»

Assim, o recurso a tramitar nos termos darevista ampliada, com vista à uniformização dajurisprudência, se ao caso não couber o recursode revista, como acontece aqui, pressupõe quenão seja admissível o recurso, por motivo estra-nho à alçada.

No caso dos autos, porque a Relação não con-firmou a decisão da 1.ª instância e porque a deci-são recorrida pôs termo a esse processo, éadmissível o recurso de agravo, por força do ar-tigo 754.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

O n.º 2 do artigo 754.º do Código referido estáem consonância com o n.º 4 do artigo 678.º

Dado que não se encontra, ainda, debatidomuitas vezes e com profundidade o assunto, demodo a haver decisões, várias, com diferentesfundamentações e em sentidos contraditórios,também se não afigura que, oficiosamente, sepromova uniformização.

2.4. A apreensão de bens para a massa falidasegue os termos próprios da penhora — Códigodos Processos Especiais de Recuperação da Em-presa e de Falência, artigo 175.º, n.º 1.

A apreensão dos apartamentos n.os 801, 802 e803 implicou arrombamentos e mudança de fe-chaduras, sendo certo que existiam, neles, benspessoais do ora requerente.

Não consta dos autos que, para tal, tenha sidochamada a autoridade policial.

A ser assim, terá havido excesso, da responsa-bilidade do liquidatário judicial, que não terá ob-servado o disposto nos artigos 831.º, 840.º, n.º 2,e 850.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.

O que implica ilicitude da apreensão.Em termos de forma.O administrador tinha o dever de apreender e

apreendeu, mas não observou o devido ritua-lismo. O que não foi, porém, questão concreta-mente suscitada no presente recurso.

Pelo que não poderá, por isso, decretar-se asua anulação.

2.5. O contrato-promessa não foi previsto naversão inicial do Código dos Processos Espe-ciais de Recuperação da Empresa e de Falência.

Foi o Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outu-bro, que lhe aditou o artigo 164.º-A, onde se dis-tinguiu entre os contratos-promessa com eficáciareal e sem ela.

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262Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

Adoptaram-se soluções diversas, mas que seinspiram nas grandes linhas constantes do artigo1197.º do Código de Processo Civil e no artigo161.º do Código dos Processos Especiais acimareferido, na sua primeira redacção.

Assim, na redacção actual, havendo eficáciareal, o contrato subsiste nos termos gerais se ofalido for promitente-adquirente, cabendo ao li-quidatário judicial optar, se o falido for promi-tente-alienante, sobre a conveniência do seu cum-primento ou incumprimento.

Não havendo eficácia real, a lei decidiu pelaextinção do contrato ressalvando, embora, a pos-sibilidade de optar pelo efectivo cumprimento.

Este regime não é aplicável neste caso con-creto, porque a declaração de falência foi anteriorà introdução desta inovação legislativa.

No entanto, deve considerar-se que a prefe-rência pela caducidade do contrato foi tomadaabertamente pelo legislador ou é de extrair da lei,nos casos em que, ao contrato, subjaz a con-fiança pessoal entre as partes, conforme se pas-sa, designadamente, na associação em participa-ção, na agência, mandato ou comissão.

Mas fora destes limites os contratos podemmanter-se, se a massa falida nisso tiver interesse.

Era o caso no regime do Código de ProcessoCivil.

No caso do Código dos Processos Especiaisem causa, o artigo 161.º não deve ser conside-rado como uma norma excepcional, aplicável es-tritamente ao contrato de compra e venda.

Ele deve ser aplicado por analogia.As considerações que se deixam expostas são

retiradas do acórdão deste Supremo de 11 deAbril de 2000, processo n.º 166/2000, da 1.ª Sec-ção, que merecem inteiro acolhimento.

Declarada que foi, falida, a promitente-ven-dedora ficou inibida para administrar e dispordos seus bens e venceram-se todas as suas obri-gações, mas não se produziu a resolução detodos os contratos bilaterais em que era parte.

Neste último caso, porque ficou a caber, aoadministrador, optar pelo cumprimento ou nãoem certos casos, consoante o que fosse tido pormais conveniente para a massa falida.

No presente processo verifica-se mesmo que,no seu parecer, o administrador assumiu que,perante o ora recorrido, a falida tem uma dívidade 22 300 000$00 — dobro do sinal recebido —

o que traduz opção, tácita, pelo não cumpri-mento do contrato-promessa.

2.6. O direito de retenção é um direito real,que encontra a sua disciplina própria nos artigos754.º a 761.º do Código Civil.

Não de gozo mas de garantia, conforme re-sulta da própria inserção na sistemática do Có-digo Civil.

Consiste na faculdade que tem o detentor deuma coisa de a não entregar a quem lha podeexigir, enquanto este último não cumprir umaobrigação que tem para com o primeiro — ar-tigo 754.º

Como direito real, de garantia, goza de se-quela (artigo 760.º) e o detentor pode executar acoisa e, tratando-se de imóveis, pode mesmoexecutá-los nos mesmos termos em que o podefazer o credor hipotecário (artigo 759.º), sendopago, em qualquer caso, com preferência emrelação aos demais credores do devedor.

O promitente-comprador que obteve a tradi-ção do bem prometido comprar goza, assim [ar-tigo 755.º, n.º 1, alínea f)], dos citados direitos depreferência e de sequela, podendo executá-lo efazer-se pagar pelo preço da venda, mas sem quea esta se possa opor, por não ser nem proprie-tário nem possuidor — ele é um mero detentorlegítimo.

Perante uma venda em execução, o direito deretenção apenas confere ao seu titular o direitode ser pago, com preferência em relação aos de-mais credores reconhecidos do executado.

No sentido que se deixa indicado, sem preo-cupação de esgotar, os acórdãos deste SupremoTribunal de 10 de Novembro de 1998, no pro-cesso n.º 942/98 (e jurisprudência aí amplamentecitada), de 14 de Janeiro de 1998, no processon.º 789/97, e de 6 de Fevereiro de 1997, processon.º 435/96 (este último subscrito pelo ora relator,como adjunto).

O mesmo se diga em relação à apreensão debens e venda em processo de falência.

A natureza do direito de retenção mantém-se.O ora requerente é titular de direito de reten-

ção sobre os imóveis que prometeu adquirir,porque beneficiou de «tradição» deles — CódigoCivil, artigo 755.º, n.º 1, alínea f).

O que quer dizer que, em relação ao seu deve-dor, o titular tem o direito de recusar a entrega do

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263 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

bem, sem ser pago da indemnização por incum-primento definitivo do contrato — artigo 759.º,n.º 1.

Mas isto é nas relações imediatas, entre con-tratantes.

Existindo processo de execução ou de falên-cia, com correspondentes penhora ou apreensãode bens, o bem objecto de direito de retençãopassa a garantir os direitos a que se reportam aexecução ou a falência, isto é, passa a poder edever ser retirado ao poder do titular do direitode retenção, com entrega a depositário e deve servendido para, com o valor assim obtido, se efec-tuarem pagamentos.

Não é efeito próprio da declaração de falênciao fim de tal direito.

Com a extinção da falida e subsequente subs-tituição pela massa falida, o credor já não podecompelir, quem deixou de existir, a cumprir qual-quer das obrigações decorrentes do contrato-pro-messa.

Assim, mau grado a subsistência do direito deretenção em favor do promitente-comprador, emprocesso de falência, a função de garantia dessedireito restringe-se à preferência sobre os demaiscredores.

3. O recurso merece provimento, porquantoo direito de retenção não obsta à apreensão masgarante pagamento privilegiado nos termosacima expostos.

Assim, concede-se a revista, mantém-se aapreensão, consignando-se que o direito de re-tenção concede o direito de ser pago o seu titularem termos preferenciais.

Custas, nas instâncias e neste Supremo, pelamassa falida.

Lisboa, 9 de Novembro de 2000.

Roger Lopes (Relator) — Noronha Nasci-mento — Costa Soares.

DECISÕES IMPUGNADAS

I — Sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real de Santo António, processo n.º 368/98.

II — Acórdão da 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 877/99.

Remete-se para a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça citada no texto.

(V. M.)

Contrato de arrendamento — Consentimento tácito — Mortedo locador — Usufrutuário — Caducidade — Abuso de direito(venire contra factum proprium)

I — Os proprietários plenos de metade indivisa de um prédio e radiciários da outrametade que tiveram conhecimento de contrato de arrendamento celebrado como loca-dor pelo mero usufrutuário de metade dele, e que durante mais de 25 anos não deduziramqualquer oposição ao mesmo, deram-lhe o seu tácito consentimento, assistindo-se, porconseguinte, à confirmação tácita desse arrendamento (cfr. artigos 217.º, n.º 1, 288, n.º 3,e 1024.º, n.º 2, do Código Civil).

II — Tendo, assim, assumido, de igual modo, a qualidade de senhorios no contratode arrendamento, a morte do usufrutuário que nele outorgara não conduz à caducidadedo arrendamento.

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264Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

III — À luz do pensamento normativo que domina o disposto no artigo 334.º doCódigo Civil, constitui manifesto abuso de direito por parte daqueles proprietáriospugnar pela caducidade de tal arrendamento.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 14 de Novembro de 2000Processo n.º 3165/2000

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Carlos António Pires Pinto e mulher,Armanda Fonseca Peixoto Martins Pinto, inten-taram acção declarativa de simples apreciação,com processo ordinário, em 28 de Junho de 1996,no 11.º Juízo Cível de Lisboa, contra Maria He-lena Andrade Pedro da Ponte e Edite PinheiroSaraiva de Andrade, pedindo, designadamente,que se declarasse:

— Que o contrato de arrendamento habita-cional que, como arrendatários, celebraram em1 de Outubro de 1969, relativo ao rés-do-chãoidentificado, não caducou com a morte do últimousufrutuário;

— Que — a entender-se que tal contrato ca-ducou — têm direito a novo arrendamento, massem aumento ou actualização de renda;

— Que, nos termos do artigo 334.º do CódigoCivil, é ilegítimo o exercício do direito à caduci-dade invocado pelas demandadas.

2. As rés contestaram, pugnando pela impro-cedência da acção.

Após réplica, foi elaborado o despacho sa-neador e organizada a peça condensadora.

Efectuado o julgamento, foi proferida sen-tença, em 23 de Abril de 1999, a decretar a proce-dência da acção, declarando «que o contrato dearrendamento mencionado na petição inicial nãocaducou, continuando, consequentemente, aovigorar para o futuro, sem quaisquer limitações esem sujeição a aumento extraordinário de renda».

3. Inconformadas, as rés apelaram.Com êxito parcial, diga-se, pois a Relação de

Lisboa, por acórdão de 6 de Abril de 2000, de-pois de considerar que o contrato caducou, de-clarou que os autores tinham direito a novo

arrendamento, sendo, porém, devido aumento derenda, nos termos do artigo 79.º do Regime doArrendamento Urbano.

4. Irresignados com o assim decidido, tantoos autores como as rés recorreram de revista,advogando a revogação desse acórdão.

A) Os autores culminaram a sua alegação comestas conclusões:

I — «As demandadas sempre figuraram, nobem imóvel, como proprietárias plenas de me-tade do prédio urbano, desde 1961».

II — «Não é um facto irrelevante, sem qual-quer consequência jurídica como mal decidiu oacórdão recorrido, através de uma interpretaçãode que não importa que seja um usufruto total ouparcial».

III — «Através de declaração negocial tácita,as recorrentes deram o seu assentimento, quantoa arrendar, ficando vinculadas no contrato de ar-rendamento como senhorias, na parte em queeram proprietárias plenas».

IV — «Se há que falar-se de caducidade, porextinção do usufruto, por óbito do usufrutuário,então essa caducidade só pode ter-se verificadona parte onerada, scilicat metade; nesta óptica, éirrelevante o conhecimento ou a ignorância daposição real do senhorio, por parte do arrenda-tário».

V — «A invocação da caducidade constituiabuso do direito».

VI — «Não se trata só de aplicar o regime darenda condicionada e duração limitada, intro-duzida pelo Regime do Arrendamento Urbano(artigo 66.º). Trata-se, isso sim, de considerar-seilegítima essa invocação, por excesso manifestodos limites impostos pela boa fé (venire contrafactum proprium)».

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265 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

B) As rés, por seu turno, sustentando nãoterem os autores direito à celebração de um novocontrato de arrendamento, concluíram:

I — «A carta junta como documento n.º 4 dapetição inicial manifesta a recusa inequívoca dosrecorridos em celebrar o novo contrato de arren-damento».

II — «Em face dessa recusa, os recorridosperderam o direito à celebração do novo contratode arrendamento».

Foram colhidos os vistos.

5. Eis, antes de mais, os factos representadosassentes pelas instâncias:

a) O autor Carlos Pinto, na qualidade de ar-rendatário, fez um contrato de arrenda-mento para habitação com Alberto DiasAndrade, assinado por ambos em 22 deSetembro de 1969 e com início em 1 de Ou-tubro de 1969 (documento de fls. 28-29);

b) O locado fora objecto de escritura pú-blica de 14 de Dezembro de 1961, em queLeonel António Barreiro e outros decla-ram vender a Alberto Dias Andrade emulher, Maria José Ramos Andrade, atéà morte do último destes compradoresque declaram comprar, em comum e par-tes iguais, o usufruto de metade indivisado prédio urbano situado na Amadora,Praceta de Guilhermina Gomes, 4, an-tigo lote 7, descrito na Conservatória doRegisto Predial de Oeiras sob o n.º 783,livro B-3, e com registo definitivo de trans-missão a favor deles a Francisco ManuelRamos Andrade, casado, em regime deabsoluta separação de bens, com EditePinheiro Saraiva de Andrade, e a MariaHelena Andrade Pedro da Ponte, casadacom Sebastião Pedro da Ponte, que desterecebeu autorização para o acto e estes(Francisco e Maria Helena) declaram com-prar, em comum e partes iguais, a umapropriedade de metade do prédio aludi-do, cativo daquele usufruto vendido ecomprado por aqueles, como acima seexplicita, abrangendo ainda tal compra evenda a plena propriedade de outra me-tade do prédio acima identificado;

c) Tal prédio urbano não estava constituídoem regime de propriedade horizontal;

d) Em 10 de Novembro de 1995, o autorCarlos Pinto recebeu das rés a comunica-ção que lhe dava conta da morte da viúvade Alberto Dias de Andrade, em 3 deAgosto de 1995 — Maria José RamosAndrade, com 98 anos de idade —, tendo,agora, por substitutas as rés, Maria He-lena Andrade Pedro da Ponte e EditePinheiro Saraiva de Andrade (fls. 30-31);

e) Através dessa mesma comunicação e de-vido aos óbitos ali referidos, as rés pro-puseram aos autores um novo arrenda-mento por cinco anos, ou seja, de 1 deJaneiro de 1996 a 31 de Dezembro de2000, mediante a actualização da rendade 7242$00 para 22 810$00 (fls. 30-36);

f) Os autores não aceitaram as condiçõesreferidas em c) — fls. 37-40;

g) Maria Helena e Edite Pinheiro semprefiguraram como proprietárias do prédioidentificado em b);

h) O autor, até 10 de Novembro de 1995,desconhecia a posição das rés, mencio-nada em g).

6. De harmonia com o estatuído na alínea c)do artigo 1051.º do Código Civil, o contrato delocação caduca «quando cesse o direito ou fin-dem os poderes legais de administração com basenos quais o contrato foi celebrado».

Assim, o arrendamento feito pelo usufrutuá-rio caducará — ao menos em princípio — com amorte desta [artigos 1443.º e 1476.º, n.º 1, alí-nea a), do mesmo Código].

Sabido que o regime de caducidade do arren-damento é o vigente à data do facto que a deter-minou (doutrina e jurisprudência pacíficas),importa realçar que, quando o arrendamento parahabitação caduque por força da alínea c) docitado artigo 1051.º, o arrendatário tem direito aum novo arrendamento, de duração limitada ecom renda condicionada, direito que, contudo,deve ser exercido mediante declaração escritaenviada ao novo senhorio nos 30 dias subsequen-tes ao conhecimento da caducidade do contratoanterior (artigos 66.º, n.º 2, 90.º, 92.º, 94.º e 98.ºdo Regime do Arrendamento Urbano).

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7. O âmbito dos dois recursos interpostosreconduz-se, no fim de contas, prioritariamente,à questão de saber se o contrato de arrendamentohabitacional celebrado por usufrutuário caducoucom a morte deste e se, de todo o modo, consti-tuirá abuso do direito a invocação dessa caduci-dade por parte das rés.

Antes de mais, convém relembrar não só aespecificidade como também a complexidade dasituação ajuizada.

Assim, cabe reter esta factualidade:

— Quando o rés-do-chão, em 22 de Setembrode 1969, foi dado de arrendamento para habita-ção do autor, o locador Alberto Dias Andrade eramero usufrutuário de metade indivisa do respec-tivo prédio;

— As rés eram, já desde 14 de Dezembro de1961, radiciárias de todo o prédio e, ainda, usu-frutuárias de metade;

— Esse prédio não estava constituído emregime de propriedade horizontal;

— O autor nunca foi informado da qualidadede usufrutuário do locador e só teve conheci-mento da «posição das rés quando estas, em 10de Novembro de 1995, lhe deram conta da morteda usufrutuária de metade do prédio — MariaJosé Ramos Andrade, viúva de Alberto DiasAndrade —, ocorrida em 3 de Agosto de 1995, elhe propuseram a celebração de novo arrenda-mento, com duração limitada e com actualizaçãoda renda.

8. O contrato — qualquer contrato — é es-sencialmente um acordo vinculativo de vonta-des opostas, mas harmonizáveis entre si. Ora,sendo o arrendamento um contrato, para que eleexista é indispensável o mútuo consenso, quehá-de revelar-se através da declaração negocialde cada uma das partes — senhorio e arrenda-tário.

As declarações negociais que, contudo, po-dem ser expressas ou tácitas (artigo 217.º, n.º 1,do Código Civil) são, pois, um verdadeiro ele-mento do contrato, «uma realidade componenteou constitutiva da sua estrutura» (cfr. MotaPinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed.,págs. 387 e 415, e Antunes Varela, Das Obriga-ções em Geral, vol. I, 9.ª ed., pág. 223).

A declaração negocial é tácita, segundo o n.º 1do citado artigo 217.º, «quando se deduz de fac-tos que, com toda a probabilidade, a revelam» —os chamados facta concludentia.

Desta formulação legal resulta claramente— escreve Mota Pinto, ob. cit., pág. 425 — que«a inequivocidade dos factos concludentes nãoexige que a dedução, no sentido do auto-regula-mento tacitamente expresso, seja forçosa ou ne-cessária, bastando que, conforme os usos doambiente social, ela possa ter lugar com toda aprobabilidade».

A inequivocidade dos facta concludentia éaferida, pois, por um critério prático, empírico enão por um critério estritamente lógico. Ela exis-tirá «sempre que, conforme os usos da vida»,haja toda a probabilidade — «aquele grau de pro-babilidade que basta na prática para as pessoassensatas tomarem as suas decisões» — de osfactos terem sido praticados com determinadasignificação negocial, «ainda que porventura nãoesteja abstractamente precludida a possibilidadede outra significação» (cfr. Rui Alarcão, A Con-firmação dos Negócios Anuláveis, vol. I, pág. 192,e Manuel de Andrade, Teoria Geral da RelaçãoJurídica, vol. II, 1998, pág. 132).

9. No caso em apreço, as rés, é certo, nãointervieram no contrato celebrado em 22 de Se-tembro de 1969.

Todavia, apesar de terem sido desde sempre— mais concretamente desde 14 de Dezembrode 1961 — proprietárias plenas de metade indi-visa do prédio e radiciárias da outra metade (omesmo é dizer radiciárias de todo o prédio eusufrutuárias de metade), aceitaram a validadedo contrato de arrendamento celebrado em 22 deSetembro de 1969, em que interveio como loca-dor quem era mero usufrutuário de metade doprédio, como resulta, até, do facto de as rés con-siderarem que o autor tinha direito a novo arren-damento, com a morte da usufrutuária Maria JoséRamos Andrade.

Não tendo nunca deduzido, pois, qualqueroposição à ocupação do rés-do-chão pelo autor,durante mais de 25 anos, à sombra de tal con-trato, as rés deram-lhe o seu tácito assentimento,tendo-se assistido, por conseguinte, à confirma-ção tácita desse arrendamento (cfr. artigos 217.º,n.º 1, 288.º, n.º 3, e 1024.º, n.º 2, do Código Civil).

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267 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

Com efeito, referindo-se no n.º 3 do artigo288.º à confirmação tácita sem fazer qualquerrestrição, está implicitamente a remeter para ocritério geral definidor da declaração tácita con-tido no n.º 1 do artigo 217.º (cfr. Rui Alarcão,ob. cit., págs. 212-213 e 217-218; ver, também,Antunes Varela, Revista de Legislação e de Ju-risprudência, ano 107.º, pág. 362), cujo alcanceficou explanado em 8.

O descrito comportamento omissivo das rés,ao longo de tão dilatado período — mais de 25anos — é incompreensível se não for conside-rado como tácita anuência ao arrendamento cele-brado pelo usufrutuário de apenas metade indi-visa do prédio.

Tal comportamento, apreciado objectivamen-te, na perspectiva de um declaratório sensato,revela inequivocamente, de modo implícito, comtoda a probabilidade, a vontade de as rés assumi-rem, também, a posição de senhorias.

Na vida social, os actos das pessoas não va-lem só pelo seu próprio conteúdo; valem, tam-bém, por aquilo que deles se pode extrair, comsegurança e razoabilidade (cfr. Carvalho Fer-nandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II,pág. 343).

Ora, tendo as rés assumido, de igual modo, aqualidade de senhorias no contrato de arrenda-mento outorgado pelo usufrutuário de metadedo prédio, a morte desse usufrutuário nunca po-deria conduzir à caducidade do arrendamento(cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de 19 deMarço de 1976, Boletim, n.º 255, pág. 119, de 20de Novembro de 1973, Boletim, n.º 231, pág. 146,e acórdão de Relação do Porto de 11 de Junhode 1981, Colectânea de Jurisprudência, ano VI,tomo III, pág. 158).

10. As coisas ainda poderiam ser apreciadaspor uma outra perspectiva.

A invocação da caducidade do arrendamentopor parte das rés não será susceptível de sereconduzir à figura do abuso do direito, tal comose encontra conceptualizada no artigo 334.º doCódigo Civil?

Vejamos.De acordo com este normativo, «é ilegítimo o

exercício de um direito, quando o titular excedamanifestamente os limites impostos pela boa fé,

pelos bons costumes ou pelo fim social ou eco-nómico desse direito».

O exercício de um direito poderá ser ilegítimo,pois, quando houver manifesto abuso, ou seja,quando o direito seja exercido em termos clamo-rosamente ofensivos da justiça, traduzindo umaclamorosa ofensa ao sentimento jurídico social-mente dominante (cfr. Pires de Lima e AntunesVarela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 299).

Um dos comportamentos que tem sido apon-tado como variante inquestionável do abuso dodireito, por violação manifestamente excessivados limites impostos pelo princípio basilar daboa fé, é o denominado venire contra factumproprium.

A relevância da chamada conduta contradi-tória exige, contudo, segundo o melhor entendi-mento, a «conjugação dos vários pressupostosreclamados pela tutela da confiança».

A proibição de comportamentos contraditó-rios é de aceitar quando o venire atinja propor-ções juridicamente intoleráveis, traduzido emaberrante e chocante contradição com o compor-tamento anteriormente adoptado pelo titular dodireito (cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé noDireito Civil, vol. 2.º, págs. 724 e segs.; Pires deLima e Antunes Varela, ob. cit. e loc. cit.; AntunesVarela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª ed.,págs. 563-567; e Almeida Costa, Revista deLegislação e de Jurisprudência, ano 129.º,págs. 31-36).

11. Na hipótese vertente, é indubitável que asrés, há mais de 25 anos, tinham conhecimento dacedência do gozo do rés-do-chão ao autor porparte de quem era usufrutuário de apenas me-tade do prédio — repete-se.

E nunca gizaram a menor reacção contra talcedência, nem nunca informaram o autor quer daqualidade do locador que tinha intervindo no con-trato de arrendamento, quer da sua própria qua-lidade de radiciárias de todo o prédio e deusufrutuárias de metade.

Ora, tais circunstâncias tornam manifesta-mente contrário aos limites da boa fé o exercíciodo direito de caducidade do primitivo arrenda-mento.

Após mais de 25 anos de contemporização,constitui manifesto abuso do direito, à luz dopensamento normativo que domina o disposto

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no artigo 334.º do Código Civil (cfr. AntunesVarela, Revista de Legislação e de Jurisprudên-cia, ano 127.º, págs. 234-237), pugnar pela cadu-cidade do arrendamento celebrado em 22 deSetembro de 1969 pelo usufrutuário de apenasmetade do prédio.

12. Assim sendo, concedendo-se a revistados autores e negando-se a das rés, revoga-se o

acórdão recorrido, para ficar a subsistir a decisãoda 1.ª instância.

Custas pelas rés, incluindo as da Relação.

Lisboa, 14 de Novembro de 2000.

Silva Paixão (Relator) — Silva Graça — Ar-mando Leandro.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença da 1.ª Secção do 11.º Juízo Cível de Lisboa, processo n.º 1431/96.

II — Acórdão da 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 953/2000.

O acórdão apresenta uma alargada referência jurisprudencial e doutrinária das várias questõesque aborda.

(A. A. O.)

Contrato-promessa de compra e venda do direito e acção àherança — Requisitos formais

O contrato-promessa de compra e venda do direito e acção à herança, integradapor bens imóveis, não está sujeito aos requisitos de forma enunciados no n.º 3 do ar-tigo 410.º do Código Civil.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 21 de Novembro de 2000Processo n.º 3127/2000 — 6.ª Secção

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. José Ribeiro de Oliveira intentou acçãodeclarativa, com processo ordinário, em 7 de Ju-lho de 1998, no Tribunal de Círculo de Braga,contra Maria Isabel Lisboas, José Carlos VieiraMachado, António Emílio Lisboas e LuísAntónio Vieira Machado, pedindo, com funda-mento na inobservância do disposto no n.º 3 doartigo 410.º do Código Civil, a declaração denulidade do contrato-promessa de compra evenda do «direito e acção à herança» por óbito

do Braúlio Duarte Machado e mulher, Isabel daRessurreição Vieira — cujo «acervo hereditáriodas pessoas» referidas é composto pelo «prédiourbano» e pelo «prédio rústico» que nele identi-ficaram —, titulado por escrito de 11 de Maio de1993, celebrado entre o autor (como promitente--comprador) e os réus (como promitentes-ven-dedores), e a consequente condenação dos réusna restituição da quantia de 4 000 000$00 (sinalpassado), acrescida de juros desde a citação.

2. Os réus contestaram, defendendo a vali-dade do contrato-promessa e a improcedência daacção.

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269 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

Após réplica, foi proferido saneador-sen-tença, em 7 de Abril de 1999, a julgar a acçãoimprocedente.

Para tanto, sustentou-se que os réus prome-teram vender «o direito e acção às heranças poróbito das pessoas referidas no contrato» — enão os imóveis que os integram —, pelo que,sendo inaplicável a norma do n.º 3 do artigo410.º do Código Civil, o contrato-promessa eraválido.

3. Inconformado, o autor apelou.Sem êxito, contudo, pois a Relação do Porto,

por acórdão de 2 de Maio de 2000, manteve osentenciado.

Ainda irresignado, o autor recorreu da revista,insistindo nos seus antecedentes pontos de vistae pugnando pela revogação desse acórdão, porinterpretação errada do n.º 3 do artigo 410.º, emconjugação com os artigos 2124.º e 2126.º, todosdo Código Civil.

Em contra-alegações, os réus bateram-se pelaconfirmação do julgado.

Foram colhidos os vistos.

4. Não tendo sido impugnada a matéria defacto reputada assente pela Relação, nem ha-vendo lugar à sua alteração, remete-se para o aídecidido quanto a tal aspecto, ao abrigo do precei-tuado nos artigos 713.º, n.º 6, e 726.º do Códigode Processo Civil.

Assim, a questão — única — a dilucidar noâmbito do presente recurso é esta:

O contrato-promessa de compra e venda dodireito e acção à herança, integrada por bens imó-veis — prédio urbano e prédio rústico discrimi-nados no contrato —, está sujeito aos requisitosde forma enunciados no n.º 3 do artigo 410.º doCódigo Civil?

Respondemos, desde já, negativamente.Vejamos.

5. Enquanto a herança se mantiver no estadode indivisão, nenhum dos herdeiros tem direitossobre bens certos e determinados; nem um di-reito real sobre os bens em concreto da herança,nem sequer uma quota-parte em cada um deles.

Até à partilha, os herdeiros são titulares, tão--só, do direito a uma fracção ideal do conjunto,

não podendo exigir que essa fracção seja inte-grada por determinados bens ou por uma quotaem cada um dos elementos a partilhar.

Dito de outro modo, antes da partilha, aosherdeiros cabe apenas um direito à herança, uni-versalidade de bens, ignorando-se sobre qual ouquais esse direito hereditário se concretizará, bempodendo tais bens ficar a pertencer só a algunsou a um, sendo os demais compensados comtornas.

Só depois da realização da partilha é que oherdeiro poderá ficar a ser proprietário ou com-proprietário de determinado bem da herança.

Com efeito, a partilha «extingue o patrimónioautónomo de herança indivisa», retroagindo osseus efeitos ao momento da abertura da conces-são (artigo 2119.º do Código Civil).

O que significa que, com a partilha, cada umdos herdeiros passa a ser considerado sucessorúnico dos bens que lhe foram atribuídos, comoresulta expressamente do apontado dispositivo.

A partilha, por conseguinte, «converte os vá-rios direitos a uma simples quota (indeterminada)de um todo (determinado) em direito exclusivo auma parcela determinada do todo» (cfr. Pires deLima e Antunes Varela, Código Civil Anotado,vol. III, 2.ª ed., págs. 347-348, e vol. VI, págs. 195--196 e 203; Pereira Coelho, Direito das Suces-sões, 4.ª ed., 1970, págs. 71-72; Capelo de Sousa,Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2.ª ed.,págs. 90-92, 99 e 126; e acórdão deste Supremode 26 de Janeiro de 1999, recurso n.º 1214/98,1.ª Secção, de que foi relator o do presente).

6. O regime geral, digamos, do contrato-pro-messa encontra-se definido nos n.os 1 e 2 do ar-tigo 410.º do Código Civil.

Esse n.º 1 dispõe que «à convenção pela qualalguém se obriga a celebrar certo contrato sãoaplicáveis as disposições legais relativas ao con-trato prometido, exceptuadas as relativas à for-ma e as que, por sua razão de ser, não se devamconsiderar extensivas ao contrato-promessa».

E o n.º 2 acrescenta que «a promessa res-peitante à celebração de contrato para o qual a leiexija documento, quer autêntico, quer particular,só vale se constar de documento assinado pelaparte que se vincula ou por ambas, consoante ocontrato-promessa seja unilateral ou bilateral».

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270Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

Simplesmente, quanto à «promessa relativa àcelebração do contrato oneroso de transmissãoou constituição de direito real sobre edifício, oufracção autónoma dele, já construído, em cons-trução ou a construir», o legislador veio estabe-lecer no n.º 3 do referido preceito requisitosespeciais, inerentes à forma externa, exigindo queo documento que titula o contrato-promessa con-tenha o reconhecimento presencial da assina-tura do promitente ou promitentes e a certifica-ção, pelo notário, da existência da licença res-pectiva de utilização ou de construção.

O aditamento do n.º 3 do artigo 410.º doCódigo Civil, operado pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho (posteriormente reformuladopelo Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novem-bro), mereceu esta justificação no preâmbulodaquele diploma:

«[...] como primeira medida destinada não sóa dar mais solenidade ao contrato mas também aimpedir que, sem conhecimento do promitente--comprador, possam ser objecto de promessa devenda prédios de construção clandestina, exige--se o reconhecimento presencial das assinaturasdos promitentes no respectivo documento e queneste o notário certifique a existência de licençade construção do prédio [...]».

Quer dizer, o legislador entendeu convenienterodear de cuidados especiais a celebração doscontratos-promessas discriminados no n.º 3, im-pondo uma maior solenidade, «considerando aprojecção social dos contratos prometidos».

Com as exigências quer do reconhecimentopresencial das assinaturas quer da certificaçãonotarial da licença de utilização ou de constru-ção, pretendeu-se, em primeira linha, «a protec-ção dos meros particulares adquirentes de direitosreais sobre edifícios ou fracção autónomas des-tes», reconduzindo tal disciplina «ao âmbito dodireito de defesa do consumidor».

Todavia, «enquanto a finalidade do reconhe-cimento presencial se esgota aí, o escopo da alu-dida certificação do notário vai mais longe: trata-se,ainda, posto que lateralmente, da protecção dointeresse público que reclama o combate à cons-trução clandestina» (cfr. Almeida Costa, Contrato--Promessa — Uma Síntese do Regime Vigente,6.ª ed., 1999, págs. 31-32 e 36, e Antunes Varela,Sobre o Contrato-Promessa, 2.ª ed., 1988, pág. 39).

7. Na situação ajuizada, não estamos pe-rante «promessa relativa à celebração de con-trato oneroso de transmissão ou constituição dedireito real sobre edifício, ou fracção autónomadele, já construído, em construção ou a cons-truir», reportada no n.º 3 do artigo 410.º

Estamos, isso sim, diante de um contrato-pro-messa de compra e venda do direito e acção àsheranças abertas por óbito de Braúlio DuarteMachado e de Isabel da Ressurreição Vieira.

E nem sequer em face de um contrato-pro-messa de compra e venda dos bens imóveis— prédio urbano e, acentue-se, prédio rústico —que integram tais heranças.

Ora, estando excluído do âmbito da previsãonormativa do n.º 3 do artigo 410.º, atento o seuescopo, o contrato-promessa de compra evenda do direito e acção a herança, a inaplicabili-dade desse preceito ao caso em apreço é incon-troversa.

8. Sublinhe-se, a terminar, que os artigos2124.º e 2126.º do Código Civil, invocados peloautor, nunca poderiam abonar a tese que intentafazer vingar.

Com efeito, quanto à forma externa da aliena-ção da herança ou de quinhão hereditário im-porta distinguir o caso em que a herança ou oquinhão contêm apenas coisas móveis daqueleem que na herança ou no quinhão existem bensimóveis.

Na primeira situação, a alienação da herançaou do quinhão hereditário deve constar de do-cumento particular. Na segunda, a alienação teráde ser efectuada por escritura pública (artigo2126.º, n.os 1 e 2).

Daqui resulta que, por imperativo do n.º 2 doartigo 410.º, o correspondente contrato-pro-messa de alienação só valerá se constar de do-cumento assinado pelas partes (quer na herança ouno quinhão existam bens imóveis ou só móveis).

Mas isso não significa a sua sujeição aosrequisitos contemplados no n.º 3 do mesmo pre-ceito.

9. Consequentemente, nega-se a revista, con-denando-se o recorrente nas custas.

Lisboa, 21 de Novembro de 2000.

Silva Paixão (Relator) — Silva Graça —Ar-mando Lourenço.

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271 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, processo n.º 166/98.

II — Acórdão da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 1101/99.

O entendimento preconizado constitui uma consequência lógica e necessária do princípio geral,segundo o qual a herança indivisa constitui um património autónomo, do que deriva que até à partilhaque ponha termo à indivisão, os herdeiros não têm direitos sobre bens certos e determinados, nem umdireito real sobre os bens em concreto da herança, nem sequer uma quota-parte em cada um deles, masapenas e tão-só são titulares do direito a uma fracção ideal do conjunto do acervo hereditário.

Não obstante, aconselha-se a consulta dos subsídios doutrinais e jurisprudenciais citados, apropósito, no texto do acórdão.

(A. A. P. C)

Acidente de viação — Conculpabilidade — Juros de mora:momento da constituição —Cumulação com a correcção do valorda indemnização

I — Contribuiu em maior medida para o evento danoso o condutor de veículoautomóvel que, em troço de estrada nacional com duas vias na meia faixa em que cir-culava, sem razão justificativa e com velocidade excessiva, foi embater na via mais àdireita em ciclomotorista que, vindo de uma estrada camarária, e embora indevidamente,desrespeitando o sinal «Stop», invadiu aquela via.

II — Os juros devidos nos termos do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil visamcompensar um mal diferente do da lesão ocasionada pelo próprio facto ilícito a que serefere o n.º 2 do artigo 566.º do mesmo diploma legal.

III — É devida a cumulação, em relação ao período de tempo que vai da citação atéà sentença, da actualização da expressão monetária da indemnização por danos nãopatrimoniais, com juros de mora.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 23 de Novembro de 2000Processo n.º 46/2000 — 7.ª Secção

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

Nuno Miguel Milhinhos Guerra, Manuel Eu-génio Oliveira Guerra e mulher, Joaquina InêsMourato Guerra, intentaram, a 4 de Janeiro de1995, acção declarativa, de condenação, com pro-cesso sumário, contra Portugal Previdente —Companhia de Seguros, S. A., pedindo a con-denação desta a pagar ao autor Nuno, a título

de indemnização, a quantia de 11 198 970$00,bem como uma renda vitalícia no montante de60 000$00 por mês, à razão de catorze mesespor ano, actualizável em razão da inflação, e semprejuízo de actualização nos termos do artigo567.º do Código Civil, em ambos os casos acres-cidas de juros de mora a contar da citação quantoaos danos já verificados e a contar do venci-mento das respectivas prestações quanto à rendavitalícia, e a assegurar ao mesmo autor assistên-

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272Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

cia médica e medicamentosa futura e, ainda, apagar aos autores Manuel e Joaquina, ao mesmotítulo, a quantia de 599 585$00, igualmente acres-cida de juros a contar da citação.

Para tanto, os autores alegaram danos decor-rentes de acidente de viação ocorrido a 12 deFevereiro de 1993 em que o veículo automóvelPL-01-64, conduzido por José Maria Constan-tino Baptista, seguro na ré, embateu no velocí-pede com motor 1-PTG-26-27, conduzido peloprimeiro autor, que ficou gravemente ferido (comamputação de uma perna); os segundos autoresfizeram despesas com socorro do primeiro.

A ré contestou pugnando pela absolvição dopedido, para o que alegou que o evento se ficou adever exclusivamente a conduta culposa do pri-meiro autor.

O Tribunal de Círculo de Portalegre, por sen-tença de 6 de Julho de 1998, condenou a ré apagar aos autores as seguintes quantias:

a) Ao autor Nuno, a título de danos patri-moniais já verificados, a quantia de3 300 000$00 (2 800 000$00 + 500 000$00),quantia acrescida do montante de jurosvencidos e vincendos, à taxa emergentedo artigo 559.º, n.º 1, do Código Civil,desde a data da citação da ré até integralpagamento;

b) Ao autor Nuno, a título de indemnizaçãopor danos não patrimoniais passados efuturos, a quantia de 4 000 000$00, quan-tia acrescida do montante de juros vin-cendos à taxa emergente do artigo 559.º,n.º 1, do Código Civil, desde a data destasentença até integral pagamento;

c) Ao autor Nuno, para ressarcimento dosdanos patrimoniais futuros, a renda vita-lícia de 50 000$00 por mês, catorze me-ses por ano, desde Fevereiro de 1995,renda actualizável em razão da inflaçãoanual dos preços de venda ao consumi-dor, índices do INE, acrescida de juros demora vencidos e vincendos à taxa emer-gente do artigo 559.º, n.º 1, do CódigoCivil, desde a data do vencimento de cadaprestação mensal até integral pagamento;a renda vencer-se-á no primeiro dia útilde cada mês, vencendo-se os dois paga-mentos restantes nos dias 1 de Junho e 1de Dezembro de cada ano;

d) A assegurar ao autor Nuno Miguel a as-sistência médica e medicamentosa que aslesões sofridas com o acidente futuramentedeterminem e o pagamento de todas aspróteses que, para correcção de tal lesão,lhe forem sendo necessárias;

e) A pagar aos autores Manuel Eugênio eJoaquina Inês a quantia 599 585$00,acrescida de juros de mora à taxa emer-gente do artigo 559.º, n.º 1, do CódigoCivil, desde a data da citação da ré atéintegral pagamento.

Apelaram a ré e, subordinadamente, os au-tores.

O Tribunal da Relação de Évora, por acórdãode 1 de Julho de 1999, alterou a sentença nosentido de reduzir a metade os montantes indem-nizatórios fixados pela 1.ª instância por ter en-tendido que o primeiro autor concorreu nessaproporção para a produção do acidente.

Inconformados, os autores pedem revista.

Os autores pretendem a reposição dos mon-tantes indemnizatórios fixados pela sentença eque os juros quanto à indemnização a favor doprimeiro autor por danos não patrimoniais se-jam contados a partir da data da citação: são es-tas as duas questões a decidir neste recurso.

A ré sustenta que a revista deve ser negada.O recurso merece conhecimento?Vejamos se merece provimento.

Quanto à matéria de facto, uma vez que nãovem posta em crise, remete-se para os termos doacórdão recorrido, de harmonia com o dispostonos artigos 713.º, n.º 6, e 726.º, ambos do Códigode Processo Civil.

No acórdão recorrido entendeu-se que o autorNuno Miguel concorreu para a produção do aci-dente ao infringir a obrigação de parar antes deentrar no entroncamento junto do qual se encon-trava o sinal n.º 25 do artigo 4.º, n.º 2, do Regula-mento, aprovado pelo Decreto n.º 39 987, de 22de Dezembro de 1954, e de ceder a passagem aoveículo PL-03-64 que circulava na estrada nacio-nal n.º 18, no sentido de Fortios para Portalegre,e, mais, entendeu-se fixar este concurso em me-dida igual à do condutor do PL (este por condu-zir o veículo a uma velocidade superior a noventa

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273 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

ou cem quilómetros por hora, desadequada aolocal onde existe o limite máximo de sessentaquilómetros por hora).

Daqui a redução dos montantes das indem-nizações atribuídas na sentença a metade, aten-dendo ao disposto no artigo 570.º, n.º 1, do CódigoCivil.

Ora, é inegável que o autor Nuno Miguel in-fringiu aquele dever.

Mas não se acompanha a Relação no passoonde fixa a contribuição do Nuno Miguel emmedida igual à do condutor do PL, o José Maria.

É que é preciso tomar em consideração qual amedida em que a conduta de cada um dos condu-tores, em especial a do Nuno Miguel, foi causaldo evento.

E para isso importa prestar atenção à confi-guração das vias naquele local, verdadeiramenteespecial.

Passa ali a estrada nacional n.º 18, ligando (noque aqui interessa) Fortios a Portalegre, com duasmeias-faixas de rodagem divididas (em parte) porum separador central.

O PL seguia, precisamente, neste sentido.Ora, ali nasce daquela estrada, para o lado

direito (considerando aquele sentido de marcha),uma variante que segue para Elvas e Estremoz.

Esta variante, nos seus primeiros metros, co-meça por seguir adjacente ou tangentemente àestrada nacional, dela se distinguindo por sim-ples tracejado, para, depois, abrir e se desviarpara a direita.

Por isto, nesses metros é como se a meia-faixada estrada nacional aumentasse de largura, para adireita, ficando com duas vias de circulação: uma,mais à esquerda, destinada ao trânsito que segueem frente, no sentido de Fortios para Portalegre,outra mais à direita (a que ali nasce encostada àanterior), destinada à circulação dos veículos quepretendem sair da estrada nacional e entrar navariante para Elvas e Estremoz.

E é precisamente no início desta segunda viade circulação (ou seja, do início da variante) queentronca a estrada municipal n.º 1114 em cujotérmino está colocado o falado sinal vulgarmentedesignado por «Stop».

O José Maria, circulando com o PL pela es-trada nacional n.º 18, no sentido de Fortios paraPortalegre, pretendia seguir em frente, em direc-ção a Portalegre. Não pretendia nem entrar na

estrada municipal n.º 1114, nem na variante deElvas e Estremoz.

Por isto, a via que competia ao PL era a maisà esquerda.

Não lhe cabia a via mais à direita visto queesta é destinada a quem quer entrar na estradamunicipal n.º 1114 ou passar a circular na varian-te de Elvas e Estremoz da qual esta via mais àdireita constitui o início.

Ora, sem qualquer razão justificativa, o JoséMaria, àquela velocidade, saiu da via mais à es-querda, a que lhe competia, e entrou pela viamais à direita.

E foi nesta que o embate veio a ocorrer.Por seu turno, o Nuno Miguel não se devia ter

limitado a parar junto do sinal Stop, como fez.Devia ter esperado que o PL tivesse passadopara só a seguir avançar.

Mas acontece que o Nuno Miguel, ao avan-çar, não invadiu a via que cabia ao PL, a via poronde o PL vinha circulando e por onde lhe com-petia continuar a circular (com velocidade muitomenor, claro), a via de que o PL necessitava, ouseja, a via própria da estrada nacional n.º 18, amais à esquerda.

A via que o Nuno Miguel invadiu, emboraindevidamente, foi a mais à direita, a inicial davariante para Elvas e Estremoz, uma via de que oPL não necessitava para seguir em direcção aPortalegre e por onde não lhe cabia circular.

Isto posto, em relação a acidente ocorrido nestavia mais à direita, a do início da variante, tem-secomo de maior peso a contribuição do José Ma-ria, condutor do PL, por imprimir ao veículo ve-locidade excessiva e por ter invadido uma via decirculação que lhe não cabia; e de menor peso ado Nuno Miguel, por ter desrespeitado aquelesinal indo ocupar a via onde o embate veio aocorrer, apesar de não ser aquela pela qual o PLdeveria e poderia ter passado.

Isto posto, há que lançar mão do disposto noartigo 570.º, n.º 1, do Código Civil:

«Quando um facto culposo do lesado tiverconcorrido para a produção [...] dos danos, cabeao tribunal determinar, com base na gravidadedas culpas de ambas as partes e nas consequên-cias que delas resultaram, se a indemnização deveser totalmente concedida, reduzida ou mesmoexcluída.»

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274Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

Na espécie, temos que as consequências doacidente para o autor Nuno Miguel são extrema-mente graves, como resulta do descrito na moti-vação de facto, salientando-se aqui a circunstânciade, na flor da idade, ter sofrido amputação daperna esquerda imediatamente acima do joelho,tendo ficado a sofrer de incapacidade permanentepara o trabalho da ordem dos 70%, o que compro-meteu a possibilidade de seguir na profissão demecânico de automóveis para a qual se vinhapreparando; no futuro, carecerá de regular acom-panhamento médico, já sofreu muito e conti-nuará a sofrer e a viver angustiado.

Conjugando a significativamente maior con-tribuição do lesante para o acidente — que aquinos abstemos de quantificar em percentagem poro direito não ser matemática — com a gravidadedas consequências do acidente e, ainda, não es-quecendo a modéstia de algumas das verbas atri-buídas a título de indemnização (3 300 000$00por danos patrimoniais já verificados e 4 000 000$por danos não patrimoniais, passados e futu-ros), entende-se conceder 80% da indemnizaçãocalculada pela 1.ª instância, ao abrigo do citadopreceito legal.

É tempo de passar à segunda questão.Esta é a de saber se existe e é devida a «cumu-

lação», em relação ao mesmo período de tempo,o que vai da data da citação até à da sentença(rectius, data do encerramento da discussão), daactualização da expressão monetária da indemni-zação por danos não patrimoniais com juros demora; é a de saber se tal «cumulação» implica umenriquecimento sem causa.

Desde já se adianta a resposta: esta «cumu-lação» é devida, cada um dos factores tem a suacausa própria, distinta da do outro, não há qual-quer enriquecimento sem causa em tal situação.

De harmonia com o disposto no artigo 566.º,n.º 2, do Código Civil:

«[...] a indemnização em dinheiro tem comomedida a diferença entre a situação patrimonialdo lesado, na data mais recente que puder seratendida pelo tribunal, e a que teria nessa data senão existissem os danos.»

E, por força do disposto no artigo 663.º, n.º 1,do Código de Processo Civil:

«[...] deve a sentença tomar em consideraçãoos factos constitutivos, modificativos ou extin-

tivos do direito que se produzam posterior-mente à proposição da acção, de modo a que adecisão corresponda à situação existente no mo-mento do encerramento de discussão.»

Este preceito legal é aplicável ao julgamentoda relação, perante a qual se reabre, dentro decertos limites, a discussão da matéria de facto,por força do disposto no artigo 713.º, n.º 2, doCódigo de Processo Civil.

Adaptando estes preceitos legais à fixação daindemnização por danos não patrimoniais, veri-fica-se que a sua fixação nada tem a ver nem como tempo em que o acidente ocorreu, nem com adata em que a acção foi intentada ou o réu foicitado.

A fixação da expressão monetária do desvalora compensar com atribuição da indemnização sótem a ver com a data em que se encerra a discus-são (na 1.ª ou na 2.ª instância). É nessa data e emrelação a ela que caberá avaliar qual a situação emque o lesado se encontra e aquela em que se en-contraria se não fosse a lesão, achar a diferença eexprimir esta diferença em dinheiro, atendendoao valor deste, ao seu poder aquisitivo à data dadecisão, com recurso à equidade.

Se a indemnização tivesse sido fixada logo nopróprio dia em que a lesão ocorreu, certamenteque a sua expressão monetária seria diferentedaquela que assumirá se vier a ser fixada cincoanos mais tarde (em regra esta será maior já que ainflação também é a regra).

Porém, esta diferença de expressão monetáriado desvalor que é o dano não patrimonial nãosignifica que no segundo momento a indemniza-ção seja maior: o que cresce não é a indemniza-ção, que continua a ser a mesma, mas a suaexpressão monetária em consequência de ter bai-xado o valor da moeda.

Claro que isto é assim se nestes cinco anos odano se não tiver agravado; porque se tal agrava-mento ocorrer, sendo o desvalor maior à data dadecisão, então é que a própria indemnização teráque ser maior (porque será maior a diferença aque o artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil mandaatender) e não apenas a sua expressão monetária.

A obrigação de pagamento de juros sobre aexpressão monetária da indemnização não tem aver com a reparação da lesão a que nos vimosreferindo.

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275 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

Tem a ver com um outro mal, o da demora nacompensação do lesado pelo dano sofrido.

Quem pela prática de facto ilícito causa a ou-trem um dano tem o dever de o reparar imedia-tamente. É a regra estabelecida no artigo 805.º,n.º 2, alínea b), do Código Civil:

«Há [...] mora do devedor, independente-mente de interpelação, se a obrigação provier defacto ilícito.»

Esta regra conhece uma excepção no caso deiliquidez do crédito do lesado.

Esta excepção, após o aditamento do De-creto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho, ao n.º 3 doartigo 805.º do Código Civil, é a seguinte:

«Se o crédito for ilíquido, não há mora en-quanto se não tornar líquido, salvo [...]; tratan-do-se, porém, de responsabilidade por factoilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se emmora desde a citação, a menos [...]»

Esta excepção àquela regra (a de o devedorpor facto ilícito se constituir imediatamente emmora, no próprio dia em que praticou o facto,sem necessidade de interpelação) deve exprimir--se assim:

«Em caso de responsabilidade civil por factoilícito, ou pelo risco, sendo o crédito ilíquido, odevedor constituiu-se em mora a partir da inter-pelação feita mediante citação para a acção judi-cial em que se peça a sua condenação a pagar.»

Seguramente que em termos puramente lógi-cos, de uma lógica geométrica, não joga bem aconstituição em mora com a iliquidez da obriga-ção (seja pelo que respeita à obrigação em si, sejapelo que respeita à forma do seu cálculo); paraquem se limite a raciocinar em tais termos resultaincompreensível que se sancione o devedor, obri-gando-o ao pagamento de juros, por não pagarimediatamente, ainda antes de saber quanto temque pagar.

O que acontece é que a solução da lei não sejustifica por aquela razão de construção lógica.

A razão de ser da lei é a equidade: é justo, éadequado, é bom, que o devedor compense o cre-dor, no caso de responsabilidade civil por factoilícito (e, até, pelo risco), pela demora no cum-primento resultante da duração do processo, dademora de solução da questão inerente à necessi-

dade de assegurar ao devedor a respectiva de-fesa (1). É justo, é equitativo, que seja o devedor,em tais hipóteses de facto ilícito ou de risco, asuportar o preço da demora, aliás compensadopor pagar mais tarde.

Releva, aqui, também, o carácter e função desanção (e não apenas de compensação) da obri-gação de indemnizar com fundamento na práticade facto ilícito ou de criação de um risco especial.

O legislador, com realismo e conhecimento davida, verificou que a demora do processo (que osdevedores frequentemente provocavam) redun-dava, em especial em época de inflação elevada,em grande benefício para o devedor que, aplican-do o capital respectivo nos negócios, obtinha,com o tempo ganho, muito maiores benefíciosque o do aumento da indemnização a pagar. Istoera de tal sorte que, em certas épocas, pagar meiadúzia de anos mais tarde era, em termos financei-ros, o mesmo que nada pagar (e quiçá continua aser ainda hoje) (2).

O legislador, sempre com realismo, não seesqueceu que, na aplicação deste preceito legal,se encontra, as mais das vezes, um conflito entreo lesado em acidente de viação (a sofrer danos,patrimoniais e não patrimoniais, que podem sermuito graves e exigir rápida indemnização) e uma(ou mais) companhias de seguros com ampla ca-pacidade económica. Por isto, entendeu ser equi-tativo sacrificar em alguma medida o devedor,em benefício de interesse atendível do credor.

O legislador de 1983 não desconhecia o dis-posto nos artigos 566.º, n.º 2, do Código Civil e663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tendoque se aceitar que foi de caso pensado, conscien-temente, que ao disposto naqueles preceitoslegais aditou ao artigo 805.º, n.º 3, do CódigoCivil o apontado regime.

Cabe não esquecer, de resto, que foi o mesmolegislador quem aditou ao artigo 806.º do CódigoCivil o seu actual n.º 3, que permite ao credor,sempre em caso de responsabilidade civil porfacto ilícito ou pelo risco, reclamar indemniza-

(1) Continua a ser a equidade que levou o legislador aaceitar que os juros possam incidir sobre um capital que à datada citação seria inferior ao que venha a ser apurado com refe-rência à data do encerramento da discussão.

(2) Continua a ser vantajoso fazer investimentos adqui-rindo a crédito bens não consumíveis.

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276Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

ção pela mora em montante superior ao dos ju-ros de mora.

E, também, quem introduziu no mesmo Có-digo o actual artigo 829.º-A, em especial, peloque aqui nos interessa, o seu n.º 4, criando umasanção pecuniária compulsória.

Em conclusão: os juros devidos nos termosda regra aditada ao n.º 3 do artigo 805.º do CódigoCivil pelo legislador de 1983 visam compensarum mal diferente do mal da lesão pelo própriofacto ilícito: uma coisa é a indemnização devidapelo mal do facto ilícito, outra coisa é o mal de olesado ter de esperar longo tempo, às vezes anose anos, sem horizonte, pelo pagamento da in-demnização.

Aquela refere-se e calcula-se nos termos doartigo 566.º, n.º 2; esta dos artigos 805.º e 559.º,todos do Código Civil.

O legislador, nestes artigos 804.º e 805.º doCódigo Civil, não faz qualquer distinção entreindemnização por danos patrimoniais e não patri-moniais. Nem há que proceder a tal distinção poisque o credor também no caso da indemnizaçãopor danos não patrimoniais sofre a espera comoum mal, o de ser indemnizado tarde e a más horas.

Este entendimento pode confortar-se com odecidido por este Tribunal nas espécies julgadaspor acórdãos de 17 de Janeiro de 1995 (PereiraCardigos), Boletim, n.º 443, págs. 270 e 281, de30 de Maio de 1995 (Araújo Ribeiro), Boletim,n.º 447, págs. 485 e 490, de 28 de Setembro de1995 (Figueiredo de Sousa), Boletim, n.º 449,págs. 344 e 348, e também na Colectânea deJurisprudência, 1995, tomo III, pág. 36, e de 18de Março de 1997 (Silva Paixão), Colectânea deJurisprudência, 1997, tomo I, págs. 163 e 166, ede 13 de Janeiro de 2000 (Sousa Inês), tirado narevista n.º 1027/99, da 7.ª Secção.

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunalde Justiça em, concedendo revista, alterar oacórdão recorrido no sentido de condenar a ré apagar aos autores, a título de indemnização, 80%das quantias encontradas na sentença da 1.ª ins-tância, mantendo-se a absolvição da ré de pagar20% dessas quantias; quanto a juros, mantém-seo decidido pela 1.ª instância, salvo pelo que res-peita aos que acrescem ao montante da indemni-zação por danos não patrimoniais, que secon-tarão a partir da citação.

Custas pelos autores e pela ré, na proporçãodo vencido.

Lisboa, 23 de Novembro de 2000.

Sousa Inês (Relator) — Nascimento Costa(votei decisão com declaração de voto) — AlvesCorreia (concordo com os juros desde a citação,relativamente aos danos não patrimoniais, para asua fixação não se reportar à data da sentença) —Duarte Soares (vencido, nos termos da declara-ção de voto junta).

Declaração de voto:

Subscrevi o acórdão, excepto na parte em quese estabelece que os juros sobre a quantia atri-buída para compensar o dano não patrimonial sevencem a partir da citação.

Continuo a entender que, sendo fixada a ditacompensação neste momento, em obediência aoartigo 566.º, n.º 2, do Código Civil, e tratando-sepor isso de montante actualizado, não faz sen-tido sobre ele contar juros desde a citação, sobpena de enriquecimento do lesado.

Os juros sobre essa parte da indemnizaçãodeveriam pois incidir só a partir do trânsito.

Nascimento Costa.

Declaração de voto:

1. Nas circunstâncias, o desrespeito do sinalStop, por parte da vítima, é, pelo menos, tãograve como o excesso de velocidade absoluto (90/100 km/hora para um limite de 60 km/hora) docondutor do auto ligeiro; ambas são considera-das, face à lei estradal vigente, infracções graves,e eram reprimidas em medida igual na vigência doCódigo da Estrada de 1954 (vigente ao tempo),não havendo razões para sobrevalorizar, no caso,o excesso de velocidade. Por outro lado, o factode o condutor do automóvel ter circulado pelameia-faixa mais à direita, como quem seguia paraa variante de Estremoz, em vez de utilizar a daesquerda, destinada ao trânsito para Portalegre(que era o seu destino), não pode virar-se contraele, uma vez que o acidente ocorreria, na mesma,se a intenção do condutor do auto ligeiro fosse,

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277 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

mesmo, seguir pela dita variante. Nestes termos,não vejo razão alguma para alterar o decididopela Relação sobre a proporção de culpas e oefeito que tal proporção exerceu nos quantita-tivos indemnizatórios.

2. Os juros sobre a indemnização pelos danosnão patrimoniais (únicos em questão) devemcontar-se desde a data da sentença (em 1.ª ins-tância), nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do

Código Civil, e não desde a citação, por aplica-ção, neste caso, do n.º 3 do artigo 805.º do Có-digo Civil; é evidente que o tribunal de 1.ª instânciaatribuiu uma indemnização actualizada (à datada sentença), não havendo, por isso, motivo paraaplicação da medida compensatória prevista naúltima das referidas disposições legais, relativa-mente ao período que medeia entre a citação e asentença.

Duarte Soares.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do Tribunal de Círculo de Portalegre, processo n.º 11/97.

II — Acórdão da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 228/99.

I — Sobre a graduação da culpa em acidente de viação e o recurso à equidade, poderão consultar--se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 2000, de 4 de Outubro de 2000,de 11 de Novembro de 1999 e de 10 de Março de 1998, publicados o primeiro na Colectânea deJurisprudência, ano VIII, 2000, tomo I, pág. 50, os dois últimos no Boletim, n.º 491, pág. 78, e n.º 475,pág. 635, respectivamente, e o segundo, proferido no processo n.º 2213/2000, publicado no n.º 500.

II e III — O acórdão segue a lição da melhor doutrina segundo a qual a indemnização revestedupla natureza: reparatória e de reprovação ou castigo (Prof. Antunes Varela, Das Obrigações emGeral, 9.ª ed., I, pág. 630).

Não é pacífica a compatibilização quanto às disposições dos artigos 805.º, n.º 3, e 566.º, n.º 2, doCódigo Civil, como se vê pelo voto de vencido. Fazendo uma interpretação restritiva do artigo 805.º,n.º 3, pronunciaram-se pela inacumulabilidade de juros de mora, desde a citação, com a correcção dovalor da obrigação de ressarcimento dos prejuízos decorrentes do atraso da reparação dos danosprovocados por facto ilícito, face à erosão do valor da moeda, os acórdãos do Supremo Tribunal deJustiça, inter alia, de 6 de Julho de 2000 e de 15 de Dezembro de 1998, de 28 de Janeiro de 1997,publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, 2000, tomo II, pág. 144, e ano VI, 1998,tomo III, pág. 156, ano V, 1997, tomo I, pág. 83, respectivamente.

Como o deste aresto decidiram os seguintes do mesmo tribunal: de 24 de Fevereiro 1999, de 3 deDezembro de 1998, de 11 de Novembro de 1997, de 4 de Dezembro de 1996, de 18 de Junho de 1996,de 28 de Setembro de 1995, de 30 de Maio de 1995, de 9 de Fevereiro de 1995, de 17 de Janeiro de1995 e de 24 de Janeiro de 1995, publicados neste Boletim, n.º 484, pág. 359, n.º 482, pág. 211, n.º 471,pág. 369, n.º 462, pág. 396, n.º 458, pág. 287, n.º 449, pág. 344, n.º 447, pág. 485, n.º 443, pág. 372,e n.º 443, págs. 270 e 372, respectivamente, e os de 23 de Abril de 1998, de 9 de Abril de 1997, de 18de Março de 1997 e de 9 de Janeiro de 1996, publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano VI, 1998,tomo II, pág. 50, ano V, 1997, tomo II , pág. 180, ano V, 1997, tomo I, pág. 163, e ano IV, 1996, tomo I,pág. 42, também respectivamente.

Relativamente à aplicação da lei no tempo do artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil foi proferido oassento do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Julho de 1994, publicado no Diário da República,I Série-A, de 19 de Agosto de 1994.

Pela via do recurso à equidade para a quantificação da indemnização poderão consultar-se osseguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 2000, de 28 de Outubro de1999, de 23 de Abril de 1998 e de 10 de Fevereiro de 1998, publicados na Colectânea de Jurisprudên-

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278Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

cia, ano VIII, 1999, tomo III, pág. 50, ano VII, 1999, tomo III, pág. 66, ano VI, 1998, tomo II, pág. 51,e ano VI-1998, tomo I, pág. 67, respectivamente, e os de 8 de Junho de 1999, de 25 de Novembro de1998, de 11 de Novembro 1997, de 11 de Março de 1997, de 9 de Maio de 1996, de 5 de Março de1996, e de 6 de Outubro de 1994, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 488, pág. 323,n.º 481, pág. 470, n.º 471, pág. 369, n.º 465, pág. 537, n.º 457, pág. 325, 455, pág. 439, e n.º 440,pág. 418, também respectivamente.

Os sumários de 30 de Novembro de 2000, de 19 de Novembro de 1998 e de 17 de Novembro de1998 (2) revistas n.º 3254/2000, 7.ª Secção, n.º 866/98, 2.ª Secção, n.º 342/98, 1.ª Secção, e n.º 883/98,1.ª Secção, poderão consultar-se no sítio: www.cidadevirtual.pt/stj/

Quanto ao momento atendível para o cálculo do dano o Supremo propende para se atender ao doencerramento da discussão em 1.ª instância: inter alia, acórdãos de 10 de Maio de 1994 e de 9 deDezembro de 1993, publicados, respectivamente, na Colectânea de Jurisprudência, ano II, tomo II,pág. 92, e neste Boletim, n.º 432, pág. 342, sendo este último particularmente elucidativo das sobreditasquestões.

Reportando o momento à decisão da Relação, decidiu o acórdão de 14 de Fevereiro de 1995 e aodo trânsito em julgado os de 30 de Novembro de 1995, de 21 de Setembro de 1993 e de 30 de Maiode 1995. Encontram-se os mesmos publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano III, 1995, tomo I,pág. 81, ano III, tomo III, pág. 130, e ano I, tomo II, pág. 14, e neste Boletim, n.º 447, pág. 475,respectivamente.

Doutrina:

Simões Patrício, «Estudo», Boletim do Ministério da Justiça, n.º 305, págs. 13 e segs.; Vaz Serra,«O dever de indemnizar e o interesse e terceiro. Conculpabilidade do prejudicado», Boletim doMinistério da Justiça, n.º 86, pág. 103;

J. A. Doral García, «Reparación y sanción: el cumplimiento de las obligaciones en forma especí-fica», Anuario de Derecho Civil, tomo XLVI, fasc. II, Madrid, 1993;

Girolamo Montelone, «Per un Chiarimento sul concetto di responsabilità o garanzia patrimonialedel debitore», Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, Parte prima,anno XCI, n.º 5 e 6, Padova, 1993.

(H. P. T.)

Responsabilidade civil — Seguro de responsabilidade civilobrigatória — Direito de regresso — Alcoolemia

I — O direito de regresso previsto no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 deDezembro, explica-se pelo facto de se tratar de situações de risco especial e acrescido— que, se tivessem sido previstas, implicariam uma estipulação especial, para além dascondições gerais do seguro obrigatório —, justificando-se por isso que a seguradora,tendo suportado o encargo da indemnização, goze da faculdade de recuperar o quepagou ao beneficiário do seguro.

II — O legislador português actual, baseando-se nos dados científicos à sua dispo-sição, considerou que uma TAS de 0,5 g/l é susceptível de influenciar o comportamentodo condutor, por isso tendo fixado esse valor como aquele a partir do qual a alcoolemiareleva para efeitos contravencionais.

III — Por estas razões, para que opere o direito de regresso da seguradora sobre ocondutor, previsto na alínea c) do n.º 1 da artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, basta,

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segundo a sua própria letra, comprovar que aquele agiu sob influência do álcool, semnecessidade de se demonstrar ainda que foi a alcoolemia a causadora do acidente.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 23 de Novembro de 2000Revista n.º 3132/2000

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Ao direito de regresso da seguradora sobreo segurado, nos termos da alínea c) do n.º 1 doartigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 deDezembro, basta a prova de que o condutor doveículo seguro tinha, na ocasião do acidente deque foi considerado culpado, uma taxa de alcoo-lemia superior à permitida ou, para além disso, énecessária a prova de que a culpa do condutor foiuma consequência dos efeitos do álcool sobre asua capacidade de atenção, de reacção e de repre-sentação do perigo?

É este o tema do presente recurso, na acçãoque Global — Companhia de Seguros, S. A., mo-veu a José Alberto Metrolho Horta, em exercíciodo direito de regresso consagrado no artigo19.º,n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31de Dezembro.

As instâncias optaram pela primeira alterna-tiva, e, deste modo, atribuíram ganho de causa àGlobal — Companhia de Seguros, S. A., que nãohavia, sequer, alegado a dita relação específica decausalidade entre a alcoolemia e o sinistro.

2. A norma em questão é, pois, o artigo19.º,n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85, naparte em que atribui direito de regresso da segu-radora contra o condutor se este tiver agido sobinfluência do álcool.

Para já, numa perspectiva de unidade e har-monia do sistema jurídico, que importa nuncaperder de vista, há que assentar em que a condu-ção sob influência do álcool, a que se refere aalínea c) do artigo19.º do Decreto-Lei n.º 522/85,tem o sentido que lhe atribui o artigo 1.º do De-creto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, que é o di-ploma legal mais recente que versa a conduçãosob influência do álcool.

Isto é, condução sob influência do álcool acon-tece quando o condutor apresenta uma taxa deálcool no sangue (TAS) igual ou superior a 50 g/l.

Numa aproximação hermenêutica meramenteanalístico-linguística (a tradicionalmente desig-nada interpretação gramatical, isto é, da normalegal enquanto texto, sem preocupação com oproblema de dever ser nela implicado), a decisãodas instâncias impõe-se com evidência: o legisla-dor que se exprimisse em termos adequados e qui-sesse exigir uma específica relação de causalidadeentre a alcoolemia e o facto gerador de responsa-bilidade civil (sinistro) não usaria a expressão«tiver agido sob influência do álcool» mas outra,mais significante, como, por exemplo, o «acidenteter-se ficado a dever à alcoolemia do condutor».

Há muito tempo, porém, que passou ao ar-quivo das memórias do direito a regra in clarisnon fit interpretatio, como também aquela outraque se exprimia na fórmula ubi lex non distinguitnec nos distinguere debemus, ambas expressõesde uma prevalência do sentido literal dos textossobre o do pensamento legislativo, quer o sub-jectivo quer o objectivo.

Sendo isto assim, como bem o evidencia oartigo 9.º do Código Civil (seja qual for a aborda-gem que o seu conteúdo deliberadamente abertopermite), não menos certo é que a letra da lei e osentido jurídico ou a significação linguística queela exprime constitui, além de um elemento dainterpretatio com o mesmo relevo dos restantes(sistemático, histórico, teleológico), um limite àespeculação interpretativa, conforme o n.º 2 docitado artigo 9.º

A referida hermenêutica textual não nos podesatisfazer, portanto, mas ela constitui, pela suaclareza (in claris, como afirmavam os antigostratadistas), um bom princípio exploratório dareconstituição do pensamento legislativo, que sefará testando a sua resistência face aos demaiselementos interpretativos privilegiados pelo le-gislador, e que, na hipótese, possam ser levadosem conta.

O elemento sistemático não é menos favorá-vel à tese das instâncias.

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280Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

Na verdade, o questionado pressuposto om-breia com o da falta de habilitação para condu-zir, que também não foi declarado como causaespecífica do acidente, nem consta que algumavez tivesse sido interpretado como tal.

Que diferença específica existe, com efeito,entre, por exemplo, a ultrapassagem irregular feitapor um encartado e por um não encartado?

Seria razoável, por outro lado, que o direitode regresso da seguradora sobre o condutor nãoencartado só existisse no caso de este desconhe-cer, por isso mesmo, o significado do sinal de«sentido proibido», e já não existir se, apesar dafalta de carta, ele souber o significado do sinal,que, no entanto, desrespeitou?

O dito pressuposto alinha, ainda, com umoutro [o da não apresentação do veículo à ins-pecção periódica — alínea f) do mesmo artigo19.º] relativamente ao qual, no entanto, o legisla-dor já teve o cuidado de salvaguardar a prova deque o sinistro nada teve a ver com o mau funcio-namento do veículo, e, portanto, com a falta deinspecção. Cuidado esse que, como se viu, nãoteve quanto aos pressupostos da alínea c), emque se insere a norma em causa, o que, pressu-pondo a harmonia do sistema, induz a pensarque, nos casos ali previstos, o legislador quisdispensar a prova de uma causalidade específica,no sentido pretendido pelo recorrente.

O elemento teleológico da interpretação é, deigual modo, favorável à tese das instâncias.

O que do conjunto de pressupostos de direitode regresso adoptados no artigo 19.º se retiracomo Leitmotiv é a ideia de que as seguradorassuportam, em definitivo, os encargos indem-nizatórios, como contrapartida dos prémios queo segurado paga, mas que lhes assiste o direito derecuperar o que pagaram aos beneficiários doseguro nos casos em que o sinistro ocorre emcircunstâncias que, a serem previstas, implica-riam uma estipulação especial, não abrangida pe-las condições gerais do seguro obrigatório.

São situações de risco especial e acrescido,quase todas elas, aliás, estranhas ao tomador doseguro, enquanto tal [com excepção da da alí-nea e)], que nada justificaria deixarem a segura-dora de mãos atadas perante o causador do riscoanormal sob o qual ocorreu o sinistro. É o casodo condutor que causa o acidente com dolo [alí-nea a)], o dos autores e cúmplices dos crimes de

roubo, furto e furto de uso do veículo causadordo acidente [alínea b)], o dos já referidos condu-tores não habilitados ou que tenham agido sobinfluência do álcool e, também, de estupefacien-tes ou outros produtos tóxicos [alínea c)], o docondutor que tenha abandonado a vítima [mes-ma alínea c)], o do responsável pelos danos cau-sados em virtude de queda de carga mal acon-dicionada [alínea d)], o do tomador de segurorelapso [alínea e)], e, finalmente, o também járeferido caso do responsável pela apresentaçãodo veículo causador do acidente à inspecção pe-riódica, que não o tenha feito [alínea f)].

Só o caso da alínea e) diz respeito ao tomadordo seguro, qua tale, justificando-se, aí, o direitode regresso da seguradora pelo facto de se encon-trar suspensa, quanto ao tomador, a garantia re-sultante do contrato de seguro.

Tal como já se disse, é um direito de regressoque, salvo no caso da alínea e), não tem a ver como tomador do seguro, enquanto tal, mas, sim,com os autores de ou os responsáveis por deter-minadas acções ou comportamentos que en-volvem riscos acrescidos, e que, não excluindoa responsabilidade da seguradora perante osbeneficiários, atento o carácter obrigatório doseguro, justificam em pleno que se reconheça aesta última o direito de se ressarcir do montantepago em indemnizações perante o autor do com-portamento potenciador do risco.

A questão está na potencialidade danosa doscomportamentos considerados, e é isso o quantobasta para que a seguradora fique com direito deregresso sobre os agentes de tais comporta-mentos.

Finalmente, um argumento de pura racio-nalidade, também em favor da interpretação se-guida nas instâncias.

Que específica diferença poderá haver, comefeito, entre, por exemplo, a ultrapassagem irre-gular, causadora de acidente, efectuada por umcondutor sóbrio e a realizada por um condutoralcoolizado, que permita concluir que, ali, houve,ou não houve, a influência do álcool?

Como estabelecer, em cada caso, o que de es-pecífico trouxe a alcoolemia ao sinistro?

Tarefa essa, as mais das vezes, de realizaçãoimpossível, a tornar letra morta a disposição le-gal em causa. É que, não o esqueçamos, a influên-cia nefasta do álcool no sangue dá-se muito antes

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281 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

das externas manifestações corporais própriasde um embriagado.

O que se sabe, e cada vez mais pormenori-zada e quantificadamente, é que a influência doálcool nunca é indiferente ao comportamento docondutor dos veículos, e por essa razão as TASde 0,50 g/l e 1,2 g/1 são, como se sabe, os valoresa partir dos quais entram em campo as normasrepressivas do direito contra-ordenacional e cri-minal, respectivamente (cfr. Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, e, nomeadamente, os seusartigos 1.º e 2.º, bem como o artigo 292.º do Có-digo Penal de 1995).

O direito não pode fechar os olhos aos avan-ços dos ramos das ciências exactas que interes-sam à definição e compreensão das suas normas,e, portanto, se, em razão disso, o legislador pu-blicou a legislação repressiva citada, por consi-derar, de acordo com as informações advindasdos conhecimentos científicos, que uma TAS de0,50 g/l influencia o comportamento do condu-tor, diminuindo-lhe as capacidades de atenção,de reacção, de avaliação e, até, de visão, conside-rando-o, em tais circunstâncias, sob influênciado álcool, que mais será preciso para, na inter-pretação da questionada alínea c) do artigo 19.ºdo Decreto-Lei n.º 522/85, dar como definitiva-mente preenchido o pressuposto ali exigido paraa existência do direito de regresso da seguradorado que a prova de que o condutor contra quemesse direito é exercido tinha uma TAS igual ou

superior a 0,50 g/l, isto é, se encontrava sob in-fluência do álcool, tal como, em perfeito parale-lismo textual com as citadas normas do Decreto--Lei n.º 124/90 e do Código Penal de 1995, pres-creve a citada alínea c)?

Para além de um seguro elemento interpreta-tivo de racionalidade, não será isto, ainda, e tam-bém, um argumento convincente de interpretaçãosistemática?

Não resta senão concluir que a alínea c) doartigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 deDezembro, na parte em que atribui o direito deregresso da seguradora contra o condutor quetenha agido sob influência do álcool, deve serinterpretado no sentido de que o legislador sujei-tou a tal direito da seguradora o condutor causa-dor do acidente que conduzia com uma TASsuperior à legalmente permitida, e que não temnenhum sentido, nem qualquer hipótese de reali-zação prática, a ideia de lhe acrescentar uma es-pecífica relação circunstancial de causalidadeentre a alcoolemia e o sinistro.

3. Por todo o exposto, negam a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 23 de Novembro de 2000.

Quirino Soares (Relator) — Neves Ribeiro —Sousa Dinis.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do 1.º Juízo do Tribunal de Leiria, processo n.º 285/97.

II — Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 519/2000.

A jurisprudência tem-se dividido no tocante à questão fulcral analisada na decisão ora sumariada.Seguem a mesma orientação por esta adoptada, nomeadamente, os acórdãos dos Tribunais da

Relação de Coimbra de 31 de Outubro de 1990 (Colectânea de Jurisprudência, 1990, tomo IV,pág. 100 — referindo que a alcoolemia acima de certo limite reduz sempre as faculdades do condutor,não podendo, por isso, ser de todo em todo estranha ao seu comportamento) e de 5 de Julho de 1994(Colectânea de Jurisprudência, 1994, tomo IV, pág. 21), da Relação de Lisboa de 28 de Junho de 1991(Colectânea de Jurisprudência, 1991, tomo III, pág. 178 — realçando que o direito de regresso daseguradora existe também em caso de responsabilidade objectiva ou pelo risco, e, até, se se desconhe-cerem as concretas circunstâncias do acidente) e de 19 de Outubro de 1995 (Colectânea de Jurispru-dência, 1995, tomo IV, pág. 124 — apontando que é o condutor que tem o ónus de afastar a presunção

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282Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

de que foi a alcoolemia a causadora do acidente) e da Relação do Porto de 12 de Maio de 1988 (Boletimdo Ministério da Justiça, n.º 337, pág. 546), de 1 de Junho de 1993 (Boletim do Ministério da Justiça,n.º 428, pág. 682) — argumentando que é o desvalor do condutor e não o do resultado desta queconstitui a razão de ser da norma em discussão), de 15 de Abril de 1995 (Boletim do Ministério daJustiça, n.º 446, pág. 357) e de 4 de Julho de 1996 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 459, pág. 600).

Esta posição tem também encontrado eco na doutrina. Citem-se, a propósito: Pereira de Soueae outros, «Alcoolemia e peritagem médico-legal» Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa, LX,1984, pág. 183 — invocando que estudos realizados na matéria revelam que a simples existência deálcool no sangue aumenta o risco estatístico de acidente; Alfredo Gaspar, Tribuna da Justiça, n.º 3,1990, págs. 95-96.

Em contraposição, todavia, os seguintes acórdãos julgaram que o direito de regresso em questãodepende da prova do nexo causal entre a alcoolemia e o acidente; do Supremo Tribunal de Justiça de14 de Janeiro de 1997 (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1997, tomo I, pág. 39 — especi-ficando ser necessário provar que a alcoolemia foi causa adequada ou uma das causas do acidente), edos Tribunais da Relações de Lisboa de 24 de Outubro de 1991 (Colectânea de Jurisprudência, 1991,tomo IV, pág. 191) e de 21 de Dezembro de 1995 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 452, pág. 484),do Porto de 17 de Outubro de 1991 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 410, pág. 875 — indicandoque se torna assim necessário provar que o direito de regresso se reporta existir na esfera jurídicado anterior credor, o sinistrado), de 30 de Setembro de 1993 (Colectânea de Jurisprudência, 1993,tomo IV, pág. 216) e de 11 de Maio de 1995 (Colectânea de Jurisprudência, 1995, tomo III, pág. 215),e de Évora de 2 de Fevereiro de 2000 (Colectânea de Jurisprudência, 2000, tomo I, pág. 281 — emcuja fundamentação se citam outros acórdãos recentes, não publicados, sobre a matéria).

(L. N. L. S.)

Contrato de fornecimento — Energia eléctrica — Médiatensão — Interpretação da lei — Caducidade

I — Se o contrato dos autos — celebrado entre uma empresa cujo objecto socialconsiste na distribuição e venda de energia eléctrica e um utente — foi qualificado comode fornecimento de energia eléctrica em média tensão, tal deveu-se por certo ao facto deser essa — e não a qualificação de alta tensão ou baixa tensão — a tecnicamente ade-quada para o caracterizar.

II — Sendo subsumível ao conceito de média tensão o fornecimento de energiaeléctrica efectuado à tensão nominal de 30 kV, não está afastada, por força do n.º 3, aaplicação ao caso sub judice do disposto no n.º 2, ambos do artigo 10.º da Lei n.º 23/96,de 26 de Julho.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 28 de Novembro de 2000Revista n.º 3011/2000 — 1.ª Secção

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283 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

I

SLE — Electricidade do Sul, S. A., intentouacção declarativa com processo ordinário contraContenur (Portugal) — Comércio de Plásticos,L.da, ambas com os sinais dos autos, pedindo acondenação da ré a pagar-lhe o montante de35 794 827$00, acrescido de juros de mora à taxade 15%, contados desde a citação.

Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:

a) Entre a autora, constituída por cisão daEDP — Electricidade de Portugal, S. A.,da qual lhe foram transmitidas as respec-tivas relações jurídicas conexas com o seuobjecto social, e a ré foi outorgado, em 22de Julho de 1991, contrato de forneci-mento de energia eléctrica, pelo que foiinstalada nas instalações da ré a respec-tiva equipa de contagem destinada a re-gistar e medir a energia consumida;

b) Em Novembro de 1995 foi substituído ocontador de energia activa, integrante damencionada equipa de contagem;

c) Por lapso dos serviços da autora, no sis-tema informático que executa a facturação,detectado em 1998, a autora facturou e aré pagou cerca de metade da energiaconsumida durante um determinado pe-ríodo de tempo;

d) Foi então apurado o débito relativo aoperíodo entre Novembro de 1995 e No-vembro de 1997, no total de 31 023 553$00,cujo pagamento foi solicitado à ré por cartaenviada em 9 de Fevereiro de 1998;

e) Mais alegou que emitiu ainda as notas dedébito rectificativas das facturas de De-zembro de 1997 e de Janeiro de 1998, novalor de 1 794 827$00, cujo pagamentofoi solicitado à ré em 5 de Fevereiro de1998;

f) A ré ainda não procedeu ao pagamentodaquelas quantias.

Contestando, a ré invocou a caducidade dodireito da autora, nos termos previstos no artigo10.º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, ouainda por força do artigo 890.º , n.º 1, do CódigoCivil. Mais alegou que a cobrança pretendida pela

autora consubstancia abuso de direito, na me-dida em que, não tendo facturado o efectivo con-sumo de energia, não permitiu à autora fazerrepercutir nos seus clientes aqueles custos. Talcircunstância traduziria ainda um prejuízo pas-sível de compensação com o crédito reclamado,se, porventura, o pedido da autora viesse a serjulgado procedente.

Na audiência preliminar, após cumprimentodo disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 508.º-Ado Código de Processo Civil, foi proferido des-pacho saneador-sentença, no qual foi julgada pro-cedente a invocada excepção de caducidade.

Apelou a autora, tendo, porém, o Tribunal daRelação de Évora negado provimento ao recurso,por acórdão de 11 de Abril de 2000 — cfr. fls. 93a 100.

Continuando inconformada, a autora traz apresente revista, na qual pede a revogação doacórdão recorrido na parte em que confirma adecisão da 1.ª instância quanto à procedência daexcepção da caducidade prevista no artigo 10.º,n.º 2, da Lei n.º 23/96, ao mesmo tempo que for-mula, no essencial, as seguintes conclusões:

1 — A recorrente é uma empresa que exerce’ aactividade de prestação do serviço público dedistribuição de energia eléctrica;

2 — No exercício dessa actividade a recor-rente, em 1991, celebrou com a recorrida um con-trato de fornecimento de energia eléctrica à tensãonominal de 30 kV (30 000 V);

3 — Para medir a energia fornecida à recor-rida, a recorrente instalou uma equipa de conta-gem constituída por transformadores de inten-sidade, transformadores de tensão e um conta-dor, que se destinava a possibilitar que fossemedida e registada no contador; à tensão de 100 V,a energia fornecida à tensão de 30 000 V;

4 — Para proceder à correcta facturação daenergia fornecida, a recorrente aplica os factoresde correcção determinados pela relação de trans-formação de intensidade e de transformação dacorrente existente;

5 — No período entre Novembro de 1995 eNovembro de 1997 a recorrente aplicou, à ener-gia no contador, o factor de correcção de 13,6quando devia ter aplicado o factor de correcção27,270, pelo que facturava somente cerca demetade da energia fornecida;

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284Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

6 — A recorrente calculou o valor da ener-gia fornecida e não paga no período entre Novem-bro de 1995 e Novembro de 1997, que totaliza34 023 553$00, tendo do facto dado conheci-mento à recorrida, por carta de 9 de Fevereiro de1998, na qual solicitava o respectivo pagamento;

7 — Por carta de 5 de Fevereiro de 1998, arecorrente havia já remetido à recorrida notas dedébito rectificativas das facturas de Dezembrode 1997 e Janeiro de 1998, no valor de 1 794 827$00;

8 — A recorrida não pagou qualquer daquelesvalores;

9 — No caso do fornecimento da energia eléc-trica, é indubitável e resulta do relatório da pro-posta de lei, que o legislador pretende excluir doâmbito da aplicação dos prazos de prescrição ecaducidade do artigo 10.º da Lei n.º 23/96 os gran-des clientes (consumidores ou utentes), pelo queexcepciona daquela aplicação, nos termos don.º 3, «o fornecimento de energia eléctrica em altatensão»;

10 — Por conseguinte, alta tensão, no âmbitoda Lei n.º 23/96, é a que reflecte o conceito co-mum, de toda a tensão que não é baixa, a tensãosuperior a 1 kV;

11 — Tal conceito encontra legal acolhi-mento, designadamente: no Decreto Regulamen-tar n.º 90/84, de 26 de Dezembro (cfr. pontos 14,18 e 19 do artigo 3.º); no Decreto Regulamentarn.º 1/92, de 18 de Fevereiro (cfr. ponto 51 doartigo 4.º); no Decreto-Lei n.º 740/74, de 26 deDezembro; no Decreto-Lei n.º 28 852, de 30 deJulho de 1936, com as diversas alterações quelhe foram introduzidas; no Decreto-Lei n.º 43 335,de 19 de Novembro de 1960 e, a contrario, De-creto-Lei n.º 344-B/82, de 1 de Setembro;

12 — Realçamos o disposto no Decreto-Lein.º 43 335 que foi o grande esteio da electrifica-ção nacional e é o diploma legal ao abrigo do qualfoi celebrado o contrato de fornecimento emcausa nos autos, designadamente quanto ao dis-posto nas «condições gerais de venda de energiaeléctrica em alta tensão»;

13 — O Decreto-Lei n.º 43 335 só difere dosrestantes diplomas citados ao admitir que o limi-te inferior da alta tensão é de 6 kV, conforme ofaz no artigo 116.º Contudo, tal é determinadopela previsão no artigo 83.º, que, tendo comoobjecto a normalização das tensões utilizadas nasredes, determina quais os concretos valores das

tensões a adoptar na rede eléctrica nacional, dosquais o menor é de 6 kV (6000 V);

14 — Esta posição mereceu total acolhi-mento no douto acórdão do Supremo Tribunalde Justiça proferido em 6 de Janeiro de 2000, noprocesso n.º 738/99;

15 — Em virtude do fornecimento de energiaeléctrica à recorrida ser efectuado à tensão de30 kV é um fornecimento em alta tensão, peloque ex vi do n.º 3, não lhe são aplicáveis os n.os 1e 2 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96.

Contra-alegando, a ré vem pugnar pela im-procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II

São os seguintes os factos dados como pro-vados:

1 — Em 22 de Julho de 1991 foi outorgado ocontrato denominado «contrato de fornecimentode energia eléctrica em média tensão», medianteo qual foi acordado o fornecimento a Contenur(Portugal) — Comércio de Plásticos, L.da, que seobrigou a adquirir a energia eléctrica necessáriaao abastecimento das instalações situadas emLau, Algeruz, Palmela;

2 — Foi previsto naquele contrato que a ener-gia seria fornecida sob a forma de corrente alter-nada trifásica, à frequência de 50 Hz, tensãonominal de 30 kV entre fases, com a potência de800 kW, mediante o pagamento pela Contenurda energia consumida;

3 — Em 1991, na sequência da outorga da-quele contrato, foi instalada a respectiva equipade contagem que se destinava a registar e medir(em baixa tensão) a energia consumida;

4 — Com fundamento em que foi facturadacerca de metade da energia consumida no âmbitodo contrato outorgado em 22 de Julho de 1991com a Contenur, relativamente aos meses deNovembro de 1995 até Novembro de 1997, aSLE — Electricidade do Sul, S. A., apurou umcrédito referente àquele período no valor globalde 34 023 553$00;

5 — Com data de 9 de Fevereiro de 1998, aSLE enviou uma carta à Contenur, na qual infor-mou que os serviços detectaram que a facturaçãode energia eléctrica relativa ao contrato de 22 de

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285 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

Julho de 1991 não tinha sido calculada correcta-mente, já que os preços da energia e potênciafacturados tinham um valor duas vezes inferioràquele a que correspondia o seu valor real, noque respeitava ao consumo dos meses de No-vembro de 1997 até Novembro de 1998, datasrectificadas na carta de 12 de Fevereiro de 1998para o período de Novembro de 1995 até No-vembro de 1997;

6 — Naquela carta de 9 de Fevereiro de 1998foi ainda referido que procedera ao cálculo dospreços exactos e à diferença com que o consumodaqueles meses fora facturado, indicando o mon-tante de 34 023 553$00;

7 — Com data de 5 de Fevereiro de 1998, aSLE enviou uma carta a Contenur, sob a referên-cia «facturação de energia eléctrica MT [...]», naqual mencionou o envio de «notas de débito [...]»relativas a rectificações efectuadas nas facturascorrespondentes a Dezembro de 1997 e Janeirode 1998 de consumo energia eléctrica, diferençaessa provocada «[...] por avaria no relógio comu-tador de tarifas da equipa de contagem [...]»;

8 — O montante global dessas notas de dé-bito é de 1 794 827$00;

9 — Pela Contenur não foi paga quer aquantia de 34 023 553$00, quer o montante de1 794 827$00.

IIIPonto prévio

A questão que cumpre resolver consiste emsaber se se verifica, ou não, a caducidade do di-reito ao recebimento da diferença de preço daenergia eléctrica consumida pela recorrida entreNovembro de 1995 e Novembro de 1997 e, bemassim, o diferencial resultante das rectificaçõesefectuadas nas facturas correspondentes a De-zembro de 1997 e Janeiro de 1998.

No cerne da decisão situa-se o disposto pelosn.os 2 e 3 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 deJulho, que, por isso, desde já se transcrevem:

«1 — ……………....……………………….2 — Se, por erro do prestador do serviço, foi

paga importância inferior à que corresponde aoconsumo efectuado, o direito ao recebimento dadiferença de preço caduca dentro de seis mesesapós aquele pagamento.

3 — O disposto no presente artigo não seaplica ao fornecimento de energia eléctrica emalta tensão.»

Na simplicidade da previsão do n.º 3, desdelogo se detecta a dificuldade a superar: trata-seda interpretação, no contexto do diploma, da ex-pressão «alta tensão».

1. Vejamos, antes do mais, o que consta docontrato celebrado entre as partes em 22 de Ju-lho de 1991 e, bem assim, das cartas acima men-cionadas, remetidas pela recorrente à recorrida,com relevo e interesse para a questão ora empresença.

Trata-se de um «contrato de fornecimento deenergia eléctrica em média tensão», como re-sulta, desde logo, da respectiva epígrafe. Do res-pectivo clausulado retira-se a mesma referência.Assim, na cláusula 9.ª («Tarifas») pode ler-seque «a facturação da potência, da energia activa eda energia reactiva, será feita de harmonia com osistema tarifário e respectivas taxas em vigor nadata do fornecimento». Posto o que se pode ler oseguinte: «A tarifa a aplicar será a ‘média ten-são — longas utilizações’».

Considerando que o adjectivo «média» foiinscrito na epígrafe do contrato no espaço embranco destinado à qualificação do contrato defornecimento, encontrando-se todos os restan-tes dizeres em caracteres maiúsculos pré-impres-sos, e ainda a circunstância de o mesmo ter acon-tecido com a expressão «média tensão — longasutilizações», aposta no espaço em branco àfrente da parte inicial da frase, dúvidas não po-dem restar de que os outorgantes quiseram qua-lificar o presente contrato como de fornecimentode energia eléctrica em média tensão.

Isto mesmo é confirmado no primeiro pará-grafo da carta de 9 de Fevereiro de 1998, enviadapela recorrente à recorrida, sob a epígrafe «fac-turação de energia eléctrica». Aí se pode ler, comefeito, o seguinte: «Vimos informar V. Ex.ª queos nossos serviços detectaram que a facturaçãode energia eléctrica relativa ao contrato de forne-cimento que, oportunamente, foi celebrado parao fornecimento de energia eléctrica em médiatensão, não tem estado a ser calculada correcta-mente» — cfr. pág. 19 (1).

(1) Sublinhado agora.

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Donde cumpre retirar as seguintes ilações:

a) Em primeiro lugar, sendo a recorrente umasociedade anónima constituída por des-taque do património da EDP, cujo objec-to social consiste na distribuição e vendade energia eléctrica nas áreas onde se en-contre legalmente autorizada [cfr. os arti-gos 1.º e 3.º, n.º 1, dos respectivos esta-tutos (2) (fls. 8 e seguintes)], dúvidas nãopode haver a respeito da sua capacidade econhecimentos para a adequada qualifi-cação técnica dos contratos em que inter-vém, na qualidade de fornecedora de ener-gia eléctrica;

b) Pelo que é de presumir que a realidadetécnica correspondente à expressão «mé-dia tensão» seja dotada de um conteúdo ealcance diversos dos que correspondemaos conceitos de «baixa tensão» ou de«alta tensão».

Ou, por outras palavras, se o contrato dosautos foi qualificado como de «fornecimento deenergia eléctrica em média tensão», tal deveu-se,por certo, ao facto de ser essa — e não a qualifi-cação de «alta tensão» ou «baixa tensão» — atecnicamente adequada para corresponder a umcontrato com as características do presente.

2. Nestes termos, não pode deixar, desde logo,de se considerar algo estranho que a recorrente, àrevelia do contrato por si outorgado, tenha vindopretender reconduzir o objecto do presente con-trato a um fornecimento de energia eléctrica emalta tensão.

E isto com o argumento de que «alta tensãono âmbito da Lei n.º 23/96, é a que reflecte oconceito comum, de toda a tensão que não ébaixa, a tensão superior a 1 kV» — cfr. conclu-são 10.ª

Trata-se, no mínimo, de uma conclusão apres-sada, retirada sem preocupações de rigor, numcontexto normativo marcado por grande tecni-cidade, onde é frequente a existência de concei-tos dotados de falta de unidade de significações(conceitos não unívocos), dependendo o sentido

concreto da intencionalidade dos diplomas, doseu objecto ou do âmbito da respectiva aplicação.

Vejamos, em qualquer caso, mais de perto,com referência aos textos legais.

2.1. De entre os diplomas que cita, na conclu-são 11.ª, a maior parte dos quais não aplicáveisao contrato em apreço, datado, recorde-se, de 22de Julho de 1991, a recorrente atribui particularrealce ao Decreto-Lei n.º 43 335, de 19 de No-vembro de 1960 — cfr. conclusão 12.ª

Começa por não se compreender, em face docontrato dos autos, a afirmação produzida, se-gundo a qual teria sido ao abrigo de tal diplomaque «foi celebrado o contrato de fornecimentoem causa nos autos». Isto tanto mais quanto écerto que o único diploma legal citado no textodo contrato é o Decreto-Lei n.º 103-C/89, de 4 deAbril.

Acresce que nenhum argumento se retira dosnormativos citados do diploma em causa a favorda tese defendida pela recorrente.

Com efeito, nos termos do artigo 116.º destediploma, «os concessionários da grande distri-buição são obrigados a levar energia eléctrica atodas as cabeças de concelho da área concedida ea fornecê-la a uma tensão que não excederá, emregra, 30 kV nem será inferior a 6 kV».

É manifesta a total indiferença da disciplinadeste normativo em relação ao caso dos autos.

A recorrente refere, no entanto, adicionalmente,a previsão do artigo 83.º do mesmo diploma. Alise prescreve que «os valores nominais das ten-sões a adoptar no transporte ou na grande dis-tribuição serão de 6000 V, 15 000 V, 30 000 V,60 000 V, 100 000 V, 150 000 V e 220 000 V [...]».

Ou seja, não se estabelece qualquer tipologiade modalidades de «tensão» passível de aprovei-tar à tese da recorrente segundo a qual «a tensãonominal de 30 kV seria de qualificar como ‘altatensão’».

O que se constata é, pelo contrário, que na-quele normativo são considerados valores nomi-nais de tensões bem acima da tensão nominal de30 000 V.

Fica, assim, sem qualquer explicação a refe-rência feita na conclusão 12.ª, segundo a qualteria sido ao abrigo do Decreto-Lei n.º 43 335que «foi celebrado o contrato de fornecimentoem causa nos autos, designadamente quanto ao

(2) Publicados no Diário da República, III Série, n.º 3, de4 de Janeiro de 1995.

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disposto nas ‘condições gerais de venda de ener-gia eléctrica em alta tensão’».

2.2. A recorrente invoca ainda, como elementocoadjuvante, o Decreto-Lei n.º 344-B/82, de 1 deSetembro (interpretado), a contrario, sem men-ção, no entanto, de qualquer das respectivas nor-mas.

No entanto, debalde se busca, na sistemáticado diploma, um normativo que possa ter-se comorelevante para a solução do caso sub judice. Bas-tará atentar no facto de que o artigo 1.º, depois deestabelecer que a distribuição no continente deenergia eléctrica em baixa tensão competir aosmunicípios, os quais podem exercê-la em regimede exploração directa ou em regime de concessão(n.º 1), prescreve que a distribuição de energiaeléctrica em baixa tensão, em regime de conces-são, só pode, em princípio, ser exercida pela EDPou por empresas públicas de âmbito local ouregional, criadas nos termos que venham a serdefinidos por lei (n.º 3).

Qual pudesse ser a disposição que, em inter-pretação a contrario, fosse susceptível de vir emapoio da tese da recorrente apresenta-se, assim,como exercício de mera adivinhação — todavia,porque inexistente, sem solução possível.

2.3. É certo que os Decretos Regulamentaresn.º 90/84, de 26 de Dezembro, que aprovou oRegulamento de Segurança de Distribuição deEnergia Eléctrica em Baixa Tensão, e n.º 1/92, de18 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento deSegurança de Linhas Eléctricas de Alta Tensão,incluem algumas normas que, na aparência, apoia-riam o entendimento da recorrente. Na verdade,o primeiro dos citados diplomas regulamentaresobedece a uma lógica puramente dicotómica oubipolar, movimentando-se exclusivamente emtorno das realidades «alta» e «baixa» tensão.

Nessa perspectiva, estabelece que se consi-derará que «uma instalação ou parte de instala-ção será de alta ou baixa tensão conforme o valoreficaz ou constante da sua maior tensão nominalexcede ou não: a) em corrente alternada: 1000 V;b) em corrente contínua: 1500 V (artigo 4.º daDecreto Regulamentar n.º 90/84 e n.os 14, 18 e 19do artigo 3.º do Regulamento que lhe é anexo).

Já, porém, o Regulamento aprovado peloDecreto Regulamentar n.º 1/92 prescreve, no seu

artigo 3.º, que, conforme a sua tensão nominal, asinstalações são classificadas nas três seguintesclasses: a) 1.ª classe — instalação cuja tensãonominal não ultrapassa 1000 V em correntealternada ou 1500 V em corrente contínua;b) 2.ª classe — instalação cuja tensão nominal ésuperior aos valores acima indicados e inferior a40 000 V; c) 3.ª classe — instalação cuja tensãonominal é igual ou superior a 40 000 V.

Ou seja, na sua tipologia tripartida, a soluçãoacabada de apresentar pareceria apontar para ascategorias de «baixa», «média» e «alta» tensão.

O certo, porém, é que, ao proceder à definiçãode «linha de alta tensão» e «1inha de baixa ten-são», o artigo 4.º (cfr. pontos 51 e 52) reproduzo constante do Regulamento aprovado pelo De-creto Regulamentar n.º 90/84, nos seus pontos18 e 19, fazendo corresponder a linha de altatensão àquela em que o valor eficaz ou o valorconstante da tensão nominal excede os já referi-dos valores de 1000 V em corrente alternada e1500 V em corrente contínua.

Anteriormente, porém, o Regulamento de Se-gurança das Instalações de Utilização de EnergiaEléctrica, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 740/74,de 26 de Outubro, utilizara outros critérios ouparâmetros de referência na seguinte definiçãode «instalação de baixa tensão»: «Instalação cujatensão nominal não excede os valores seguintes:a) em corrente contínua entre quaisquer condu-tores activos: 650 V; b) em corrente alternada,entre qualquer condutor activo e a terra, se ainstalação tiver ponto neutro à terra, ou entredois quaisquer condutores activos, se a instala-ção não tiver ponto neutro à terra: 250 V» (artigo7.º do Regulamento). Razão por que, correspon-dentemente, a instalação de alta tensão foi defi-nida como aquela cuja tensão nominal excede osvalores indicados no artigo 7.º» (artigo 9.º).

Ou seja: atenta a especificidade técnica damatéria e o âmbito próprio dos diplomas, é com-preensível que se verifique a já assinalada faltade uniformização de «conceitos», variando a res-pectiva definição em função do âmbito objectivoconcreto de cada diploma.

Ver-se-á, porém, que há outros diplomas apli-cáveis ao caso sub judice — em vigor à data dacelebração do contrato referido nos autos, maispróximos da actividade que ora releva, ou seja,do fornecimento de energia eléctrica e, pela sua

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natureza, dotados de força superior à de um re-gulamento — que estabelecem diferentes tipo-logias baseadas em correspondências distintas eem parâmetros diversos.

3. Na verdade, pelo que já se disse, impõe-seconcluir não ser possível aceitar-se, sem umasólida base normativa, a tese da recorrente, se-gundo a qual, em termos técnicos absolutos, ape-nas existem duas grandes categorias de tensão: a«baixa», em que a tensão não ultrapassa 1000 vol-tes, e a «alta», em que ultrapassa aquele limite.

Trata-se de um entendimento que, além domais, esquece o Decreto-Lei n.º 103-C/89, de 4de Abril, em vigor à data da celebração do contra-to entre recorrente e recorrida, aliás, o único di-ploma expressamente citado no texto do referidocontrato (3).

O Decreto-Lei n.º 103-C/89 visou disciplinara cobrança de créditos por consumo de energia,tendo revisto o enquadramento jurídico em quese inserem o sistema de cobranças dos créditosresultante da execução dos contratos de forneci-mento celebrados e, bem assim, o regime das cau-ções a prestar pelos consumidores. Procedeuainda à definição das condições de facturação daenergia eléctrica, dos prazos de vencimento dasfacturas, da penalização pela mora no cumpri-mento e das garantias contratuais exigíveis. Noque agora mais interessa, o diploma em causadistingue, para efeitos da regularização dos atra-sos de pagamento superiores a 30 dias contadosda data de emissão das respectivas facturas, «osconsumidores de energia eléctrica em ‘muito alta’,‘alta’ e ‘média’ tensão e os consumidores nãodomésticos em ‘baixa’ tensão com potências con-tratadas superiores a 39,6 kVA [...]» — cfr. o ar-tigo 2.º, n.º 1. Igual referência (aos consumidoresem muito alta, alta e média tensão, por um lado,ou em baixa tensão não domésticos, por outro),consta, v. g., da alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º Porsua vez, noutras normas, como é o caso do n.º 4do referido artigo 2.º, faz-se referência à reali-zação dos pagamentos por parte dos «consumi-

dores em baixa tensão domésticos ou com potên-cias contratadas iguais ou inferiores a 39,6 kVA[...]».

Esta distinção, como se esclarece no acórdãorecorrido, «tem a ver com a complexidade damedição e da facturação da energia consumida,implicando, no segundo caso, operações váriasde conversão, pelo facto da medição e registoserem efectuados em baixa tensão e o consumoem alta, aplicando-se coeficientes e cálculos dosistema tarifário».

Ou seja: no âmbito do Decreto-Lei n.º 103-C/89, diploma cuja disciplina é expressamenteinvocada no contrato celebrado entre as partesem 22 de Julho de 1991, faz-se expressa referên-cia, não a uma tipologia bipartida — baixa e altatensão mas sim a quatro categorias de tensão —muito alta, alta, média e baixa.

3.1 — A legislação avulsa mais recente distin-gue entre alta, baixa e média tensão, fazendo-seainda, em alguns diplomas, referência expressa àmuito alta tensão. Particularmente relevantes,neste domínio, são algumas normas dos diplo-mas integrantes do «pacote» legislativo publi-cado em 27 de Julho de 1995, constituído pelosDecretos-Leis n.os 182/95, 183/95, 184/95, 185/95, 186/95, 187/95 e 188/95.

3.1.1 — Assim, o Decreto-Lei n.º 184/95, de27 de Julho, que estabeleceu um novo regimejurídico do exercício da actividade de distribui-ção de energia eléctrica no âmbito do SistemaEléctrico de Serviço Público (SEP), organizadoem termos de prestação de um serviço público, edo Sistema Eléctrico não Vinculado (SENV), or-ganizado segundo uma lógica de mercado, vemadoptar expressamente a classificação tripartida«alta tensão», «baixa tensão» e «média tensão».

Com efeito, sob a epígrafe «Definições», o ar-tigo 2.º prescreve, na sua globalidade, o seguinte:

a) Alta tensão (AT): tensão superior a 45 kVe igual ou inferior a 110 kV;

b) Baixa tensão (BT) — tensão até 1 kV;c) Cliente — entidade que adquire energia

eléctrica;d) Consumidor — entidade que recebe ener-

gia eléctrica para utilização própria;e) Fornecimento de energia eléctrica —

venda de energia eléctrica a qualquer enti-dade que é cliente do distribuidor;

(3) O Decreto-Lei n.º 103-C/89 estabeleceu os novos pra-zos resultantes do consumo de energia eléctrica, tendo revo-gado o artigo 46.º das Condições Gerais de Venda de EnergiaEléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei n.º 43 335, de19 de Novembro de 1960, o Decreto-Lei n.º 116/87, de 14 deMarço, e o Decreto n.º 160/78, de 20 de Dezembro.

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f) Média tensão (MT) — tensão superior a1 kV e igual ou inferior a 45 kV (4).

Não será excessivo chamar a atenção para estanorma — e, bem assim, para as que, adiante, vãoser enunciadas (5), todas constantes do «pacotelegislativo» publicado em 27 de Julho de 1995 —,tendo em vista a compreensão da situação con-creta ora em análise.

Não só está(ão) inserida(s) em diploma(s)vigente(s) à data da rectificação dos valores doconsumo no âmbito do contrato a que os presen-tes autos se referem (cfr. artigo 7.º da petiçãoinicial), mas também faz(em) aplicação do con-ceito de «média tensão», expressamente invoca-do para qualificar o aludido contrato. Por outrolado, em face da proximidade das datas de publi-cação dos citados diplomas de 27 de Julho de1995 e da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, em cujanormação se inscreve a norma a interpretar — on.º 3 do artigo 10.º —, é lógica a suposição de quea tipologia tripartida acabada de definir não po-dia ser desconhecida pelo legislador da lei de1996. Razão por que, ao falar em «alta tensão»no referido n.º 3 do artigo 10.º, a Lei n.º 23/96estaria, muito provavelmente, a dar ao conceitoo sentido que lhe foi atribuído pelas normas dosdiplomas de 27 de Julho de 1995.

3.1.2 — Também o Decreto-Lei n.º 182/95,igualmente de 27 de Julho, que estabeleceu asbases da organização do Sistema Eléctrico Nacio-nal (SEN), distingue a «alta tensão» — AT —(superior a 45 kV e inferior a 110 kV), a «baixatensão» — BT — (até 1 kV) e a «média tensão»— MT — (tensão superior a 1 kV e inferior a45 kV) — cfr., respectivamente, as alíneas a), b)e f) do artigo 4.º Acrescenta, porém, mais umacategoria — a «muito alta tensão» — MAT —(tensão superior a 110 kV) — cfr. a alínea g) doreferido artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 182/95.

O artigo 32.º deste diploma prescreve, porsua vez, no n.º 1, que as tarifas de venda de ener-gia eléctrica aos clientes finais em muito alta ten-são, alta tensão, média tensão e baixa tensão sãoreguladas através do Regulamento Tarifário, cujas

disposições são de cumprimento obrigatório porparte das entidades do SEP (artigo 40.º, n.º 3).

Diga-se ainda que até à publicação da regula-mentação enunciada no artigo 63.º, n.º 1, manti-veram-se em vigor as disposições do Decreto-Lein.º 43 335, de 19 de Novembro de 1960, referen-tes à matéria coberta pelos referidos regulamen-tos — artigo 68.º, n.º 1.

3.1.3 — Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 185/95, da mesma data, que estabeleceu o regime ju-rídico do exercício da actividade de transporte deenergia eléctrica no Sistema Eléctrico Nacional(SEN), define, no artigo 2.º, nos termos já referi-dos «alta tensão» [alínea a)], «média tensão» [alí-nea h)] e «muito alta tensão» [alínea i)], omitindo,por isso, em razão do objecto do diploma, a de-finição de «baixa tensão».

Quer isto dizer que, uma vez mais, a «médiatensão» é definida como a tensão superior a 1 kVe igual ou inferior a 45 kV».

4. No entanto, importa realçar que os Decre-tos-Leis n.os 182/95, 184/95 e 185/95 são pos-teriores à data do contrato dos autos, que é,recorde-se, de 22 de Julho de 1991.

O certo, porém, é que, como vimos, à data docontrato já o Decreto-Lei n.º 103-C/89 distinguiaos consumidores em baixa tensão e os de muitoalta, alta e média tensão.

Por outro lado, examinado o tarifário cons-tante dos quadros n.os 1 e 2 anexos à Portarian.º 29-A/88, de 14 de Janeiro (6), ao abrigo daqual se terá procedido à rectificação do facturadoque deu causa à presente acção, conclui-se que omesmo mantém a distinção entre a baixa, a mé-dia, a alta e a muito alta tensão. Do que resultaque, também com este fundamento, não é de acei-tar, ao menos para os efeitos da questão que nosocupa, a alegação da recorrente no sentido de que«a subdivisão da alta tensão em muito alta, alta emédia representa uma divisão artificial da altatensão». Ali se prevêem diferentes tarifas con-forme as potências contratadas sejam superioresa 19,8 kVA, distinguindo-se, no quadro n.º 1 atensão de referência em kilovoltes nos seguintestermos: a «baixa» igual ou inferior a 1 kV; a

(4) Sublinhado agora. Procedeu-se à transcrição integraldo artigo, uma vez que, na economia do presente recurso, sãotambém relevantes os conceitos de «cliente», «consumidor»e de «fornecimento de energia eléctrica».

(5) Cfr. infra pontos 3.1.2 e 3.1.3.(6) Cujas tarifas foram mantidas em vigor pelo Decreto-Lei

n.º 18-A/89, de 12 de Janeiro — artigo 2.º, n.º 4.

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«média» maior de que 1 kV mas menor do que60 kV; a «alta» igual a 60 kV; a «muito alta»superior a 60 kV.

5. Tendo sido a vontade das partes a de for-necer — por parte da autora — e a de comprar— por parte da ré — energia eléctrica em médiatensão, resta saber se a situação dos autos estáou não excluída da excepção do n.º 3 do artigo10.º da Lei n.º 23/96, do seguinte teor, que ora serecorda: «O disposto no presente artigo não seaplica ao fornecimento de energia eléctrica emalta tensão.»

Será que procede a tese da recorrente segundoa qual «alta tensão no âmbito da Lei n.º 23/96 é aque reflecte o conceito comum, de toda a tensãoque não é baixa, a tensão superior a 1 kV»?

Os elementos já carreados são suficiente-mente impressivos e ponderosos para permiti-rem sustentar uma resposta negativa.

Na verdade, a interpretação da expressão «for-necimento de energia eléctrica em alta tensão»,de mais a mais constante de uma norma de umdiploma editado em 1996, quando a legislaçãopublicada acerca da matéria é unânime no sen-tido de distinguir, em sede de fornecimento deenergia eléctrica, pelo menos, entre «alta»,«baixa» e «média» tensão, não pode ir ao encon-tro do entendimento propugnado pela recorrente.

O legislador da Lei n.º 23/96, ao falar em «altatensão», não podia ignorar (e deixar de ter pre-sente) o «pacote legislativo» de 1995 que distin-gue com clareza e de modo uniforme a alta tensão,a baixa tensão e a média tensão — cfr., designa-damente, o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 184/95,supratranscrito.

Ora, considerando a definição de média ten-são — tensão superior a 1 kV e igual ou inferiora 45 kV —, importa concluir que as partes qua-lificaram com propriedade o contrato dos autos,classificando-o como de fornecimento de energiaeléctrica em «média tensão». É que em causa es-tava o fornecimento de energia eléctrica à tensãonominal de 30 kV.

5.1 — Como escreve Calvão da Silva, a finali-dade da Lei n.º 23/96, claramente indicada non.º 1 do artigo 1.º, é a de proteger o utente ouutilizador de qualquer dos bens ou serviços pú-blicos nela enumerados: a água, a electricidade, ogás ou o telefone.

E para esse efeito a lei considera utente a pes-soa singular ou colectiva a quem o prestador deserviço se obriga a prestá-lo (artigo 1.º, n.º 3).

Como refere o mesmo autor, «a tutela nor-mal e justificadamente reservada a consumidores— pessoas singulares que em situação de fraque-za contratam com empresas ou outros profissio-nais o fornecimento de bens ou a prestação deserviços para fins não pertencentes ao âmbito dasua actividade profissional — aparece estendidapela Lei n.º 23/96 aos demais utilizadores debens ou serviços públicos essenciais nela indica-dos [...]».

Assim, ao lado dos particulares assinantes detelefone, de água, de electricidade ou de gás, paraa residência pessoal ou familiar, e dos profissio-nais — assinantes dos mesmos serviços paraescritório, consultório ou empresa, os utentesprotegidos pela Lei n.º 23/96 abrangem «qual-quer pessoa colectiva, nacional, estrangeira oumultinacional, pública ou privada, de fim religio-so, de fim económico, de fim ideal, de fim social,sociedades, associações, fundações, partidospolíticos, autarquias locais, embaixadas, Estado,etc., etc.» (7).

5.2 — A Lei n.º 23/96, determinando a cadu-cidade do direito ao recebimento da diferença depreço dentro do prazo de seis meses após o pa-gamento, por motivo de erro do prestador doserviço, de importância inferior à que correspondeao consumo efectuado, implementou um quadrolegal mais favorável ao devedor que, assim, nãofica na contingência do pagamento da diferençadurante muito tempo, com a inerente incerteza einstabilidade.

Reconhece a recorrente, no arrazoado das ale-gações que a Lei n.º 23/96 visa «criar mecanis-mos de protecção do utente dos serviços públicosessenciais». No entanto, paradoxalmente, pre-tende extrair de tal (indiscutível) constatação aconclusão de que «o conceito de alta tensão aíexpresso será, necessariamente, o conceito abran-gente, de entendimento comum: alta tensãoversus baixa tensão».

(7) Cfr. Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano132.º, págs. 138 e segs., anotação aos acórdãos de 9 de Julhode 1998 da Relação de Lisboa e de 28 de Junho de 1999 daRelação do Porto.

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291 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

Após o que a recorrente prossegue o discursoargumentativo nos seguintes termos: «Sendo abaixa tensão uma realidade incontestada, a altatensão a que se refere a norma em apreço é a quereflecte o conceito comum, com larga expressãona lei, de toda a tensão que não é baixa, por con-seguinte a tensão superior a 1 kV» — cfr. fls. 106.

Não é possível acompanhar esta argumen-tação.

5.2.1 — Em primeiro lugar, se valesse a inter-pretação sustentada pela recorrente, tal enten-dimento seria aquele que menos protegeria osutentes, objectivo manifesto e declarado da lei.

A recorrente não tem razão quando, na con-clusão 9.ª, afirma que o legislador pretende ex-cluir do âmbito de aplicação dos prazos de pres-crição e caducidade do artigo 10.º da Lei n.º 23/96os grandes clientes (consumidores ou utentes),pelo que excepciona daquela aplicação, nos ter-mos do n.º 3, «o fornecimento de energia eléc-trica em alta tensão».

Pelo contrário, e como se viu, a recorridacabe no universo dos utentes protegidos pela Lein.º 23/96.

Em face do objectivo do diploma, que, comojá se disse, consiste na protecção dos utentes dequalquer dos serviços públicos enumerados non.º 2 do seu artigo 1.º, objectivo que encontrafundamento no n.º 1 do artigo 86.º da Constitui-ção da República Portuguesa, segundo o qual«[...] o Estado [...] fiscaliza o cumprimento dasrespectivas obrigações legais, em especial porparte das empresas que prossigam actividadesde interesse económico geral», não pode con-cluir-se que o âmbito de aplicação das normasque integram a Lei n.º 23/96 se limita a regular asrelações jurídicas estabelecidas para o forneci-mento de tais serviços entre os pequenos consu-midores-utentes, mormente pessoas singulares,e as entidades funcionalmente adstritas à obriga-ção de os prestarem. Protegidos têm de estartambém os demais utilizadores de bens ou servi-ços públicos essenciais, designadamente pes-soas colectivas, tendo em conta a função econó-mico-social que lhes cabe desempenhar.

5.2.2 — Por outro lado, não resiste à crítica aafirmação, apresentada ainda por cima como sefosse uma decorrência lógica inevitável, segundoa qual «o conceito de alta tensão aí expresso será,

necessariamente, o conceito abrangente de en-tendimento comum: alta tensão versus baixatensão».

Cabe perguntar: mas porque é que há-de serassim? Por se tratar de «designações correntes econhecidas do público em geral para distinguir aenergia eléctrica que corre nos condutores e seconsome»? (8).

Mas o conceito de «média tensão» será de talmaneira abstracto ou inacessível ao público emgeral? Não se trata, pelo contrário, de um con-ceito perfeitamente inteligível, constituindo umacategoria intermédia na classificação tripar-tida — baixa, média e alta tensão? Ou numa tipo-logia quadripartida que acrescente ainda às ante-riores a classificação de muito alta tensão?

É evidente, por outro lado, que o conceito de«média tensão» está legislativamente consagra-do nos termos já expostos, que não deixam lugara dúvidas.

Por outro lado, e isso revela-se decisivo, aspartes qualificaram o contrato dos autos comosendo de «fornecimento de energia eléctrica emregime de média tensão».

Ora, quer à data da celebração do contrato,quer à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/96existiam diplomas vigentes que reconheciam oconceito de «média tensão» — cfr., respectiva-mente, o Decreto-Lei n.º 103-C/89, de 4 de Abril,e a Portaria n.º 29-A/88, de 14 de Janeiro, noprimeiro momento, e os Decretos-Leis n.os 182/95, 184/95 e 185/95, todos de 27 de Julho, nosegundo.

Assim sendo, pretender fazer corresponder,para o efeito e no âmbito da Lei n.º 23/96, «altatensão» a «tensão superior a 1 kV» (cfr. conclu-são 10.ª) corresponderia a ignorar a teleologia dodiploma, a passar por cima das normas atrás as-sinaladas do «pacote» legislativo de 27 de Julhode 1995, a fazer tábua rasa da categoria legal-mente prevista de «média tensão», fundindo-aartificialmente com a «alta tensão», e, por fim, adesrespeitar a vontade das partes que claramenteclassificaram o fornecimento de energia eléctricados autos como de «média tensão».

(8) Neste sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal deJustiça de 6 de Janeiro de 2000, revista n.º 738/99, citado pelarecorrente na conclusão 14.ª, e de cuja interpretação se dis-corda.

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292Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

É por todas estas razões que não se pode daracolhimento à tese da recorrente e não se podeaderir ao entendimento constante do referidoacórdão deste Supremo Tribunal, concordando--se, em contrapartida, com o bem fundamentadoacórdão recorrido.

Assim, pode concluir-se que, sendo sub-sumível ao conceito de «média tensão», o forne-cimento de energia eléctrica efectuado à tensãonominal de 30 kV não está afastada, por força don.º 3, a aplicação ao caso sub judice do disposto

no n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 deJulho.

Termos em que se nega a revista, confirman-do-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 28 de Novembro de 2000.

Garcia Marques (Relator) — Ferreira Ra-mos — Pinto Monteiro.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do 1.º Juízo do Tribunal de Setúbal, processo n.º 15/99.

II — Acórdão da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 484/2000.

A jurisprudência e a doutrina existentes sobre a específica questão em análise são referenciadasno acórdão sob a anotação.

(A.E. R.)

Contrato-promessa de compra e venda — Fracção autónomade imóvel — Forma do contrato — Nulidade por inobservânciada forma — Abuso de direito — Venire contra factum proprium

I — Para ser válido o contrato-promessa de compra e venda de fracção autónomade imóvel é necessário o reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes,mas o promitente-vendedor só pode invocar a omissão daquele requisito se a mesma tiversido culposamente provocada pela outra parte — cfr. o artigo 410.º, n.º 3, do CódigoCivil.

II — O abuso do direito consubstancia-se em comportamento contrário aos valoresfundamentais do sistema jurídico que, segundo uma concepção finalista, reflectem astendências de socialização, eticização e funcionalização do direito, considerado comoinstrumento de controlo social.

III — Venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica emcontradição com o comportamento assumido anteriormente pelo mesmo interessado edepende da verificação dos seguintes pressupostos:

— Situação de confiança justificada pela boa fé, que leva uma pessoa aacreditar, estavelmente, em conduta alheia — no factum proprium determinanteda aquisição de uma posição jurídica;

— Investimento dessa confiança como orientação de vida, desenvolvendoactividade na crença do factum proprium, actividade que depois se vê destruídapelo venire, com o correlativo regresso injusto à situação anterior;

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293 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

— Imputacão da situação criada à outra parte, por esta ter culposamentecontribuído para a inobservância da forma prevista pela lei, ou ter-se assis-tido à execução do contrato através de situações que pacificamente se arras-taram no tempo.

IV — O promitente-comprador que, conhecendo a nulidade do contrato-promessa,iniciar o seu cumprimento e aceitar o cumprimento da contraparte poderá ver recusadoo seu direito de invocar a invalidade, por abuso de direito, se tiver criado uma fundadaconvicção, no promitente-vendedor, de que o contrato, embora nulo, estava destinadoao cumprimento.

V — À mesma conclusão poderá chegar-se, mas agora com base na proibição dovenire contra factum proprium, se o promitente-comprador realizar alguma prestaçãodelitoria importante contratualmente e se decorrer um lapso de tempo de tal duraçãoque seja susceptível de gerar na mente da contraparte, que entretanto foi adoptandoprovidências de vida dependentes do cumprimento do contrato, a ideia de que a invalidadedeste não poderá vir a ser invocada.

VI — A manutenção de um contrato-promessa, nas condições descritas nas duasanteriores conclusões, pode considerar-se como uma forma de indemnização no contextopróprio da reconstituição natural — cfr. os artigos 562.º e 566.º, n.º 1, do Código Civil.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 28 de Novembro de 2000Processo n.º 3189/2000 — 1.ª Secção

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No Tribunal de Círculo de Portimão, EmílioAntónio do Emílio e mulher, Maria HermíniaGonçalves Gabriel, como promitentes vendedo-res de fracção, que identificaram, invocando con-trato-promessa de compra e venda relativo àquelafracção, que outorgaram e assinaram em 11 deNovembro 1991, sofrendo aditamentos em 4 deFevereiro de 1993 e 18 de Outubro de 1993, comAna Jorge Guerreiro da Silva Brito e ManuelGarcia Rodriguez, como promitentes-comprado-res, accionaram estes por o incumprirem defini-tivamente desde 31 de Dezembro de 1995, vi-sando a resolução daquele contrato e aditamentode 4 de Fevereiro de 1993, com as correlativasconsequências pedidas e a declaração de nuli-dade do aditamento de 18 de Outubro de 1993.

Em contestação os réus vieram arguir a excep-ção peremptória de nulidade do contrato-pro-messa assinado em 11 de Novembro de 1991 porfalta de reconhecimento presencial das assinatu-ras de todos os promitentes — artigo 410.º, n.º 3,do Código Civil — nulidade que se projecta noaditamento de 4 de Fevereiro de 1993.

Depois impugnaram e deduziram pedidoreconvencional.

Agravou-se do despacho saneador ao julgarimprocedente a alegada excepção de nulidade docontrato.

E apelou-se da sentença que julgou a acçãoparcialmente procedente.

O douto acórdão da Relação de Évora— fls. 178 a 184 — começando naturalmentepor conhecer do agravo, deu-lhe provimento e,declarando nulo o contrato-promessa de 11 deNovembro de 1991, condenou os réus a devolvera fracção aos autores e estes a restituírem àque-les a quantia de 5 000 000$00, recebida a títulode sinal, acrescida de juros legais.

Daí a presente revista interposta pelos au-tores.

2. Os autores recorrentes nas conclusões dassuas alegações afirmam, em resumo:

a) O contrato datado de 11 de Novembro de1991 é nulo — artigo 410.º, n.º 3 —,enfermando de nulidade ou anulabilidadeatípica, passível de sanação, convalidação— artigos 906.º e 913.º — ou confirma-

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294Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

ção — artigo 228.º — todos do CódigoCivil, ao celebrar-se o aditamento de 4 deFevereiro de 1993, que confirmou aquele;

b) Invocando a nulidade do contrato de 11de Novembro de 1991 e assinando o adi-tamento de 4 de Fevereiro de 1993 quesubstituiu, confirmou e validou aquele,os réus recorridos violaram a proibiçãode venire contra factum proprium, agindoem abuso de direito.

Em contra-alegação pugnou-se pela bondadedo decidido.

3. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

4. Em face do estatuído no n.º 6 artigo 713.ºex vi artigo 726.º, ambos do Código de ProcessoCivil, remete-se para o douto acórdão recorrido amatéria fáctica provada nele inserta.

5. Estamos perante contrato-promessa decompra e venda de fracção, prometida venderpelos autores e prometida comprar pelos réus,datado de 11 de Novembro de 1991, sem que asassinaturas dos seus promitentes fossem presen-cialmente reconhecidas.

Todos estão de acordo que a preterição destaformalidade ad substantiam inserta no n.º 3 doartigo 410.º determina a sua nulidade — artigos220.º e 285.º do Código Civil.

Impõe-se a forma ad substantiam para fundara própria consubstanciação do contrato.

E bem, se imobilizarmos o contrato na suafrieza, em face do círculo estático e seco do n.º 3do artigo 410.º

6. Atentemos, porém, agora na dinâmica dosfactos com interesse directo para a questão emapreço:

a) Através de contrato-promessa de com-pra e venda outorgado e assinado sem oreconhecimento presencial em 11 de No-vembro de 1991, os autores prometeramvender aos réus e estes prometeram com-prar-lhes as fracções «A» e «B» identifi-cadas;

b) Aí se estipulou que o preço total de vendaera de 15 000 000$00, a ser pago escalo-nadamente, conforme foi indicado, sendo

a última prestação realizável em 30 deJaneiro de 1993;

c) Os réus pagaram só 5 000 000$00, atra-vés de cinco prestações, a última das quaisem 21 de Novembro de 1992;

d) A responsabilidade da marcação da escri-tura de compra e venda ficaria a cargo dosautores, que, para tanto, avisariam os réuscom pelo menos dez dias de antece-dência;

e) Em 4 de Fevereiro de 1993, autores e réuscelebraram contrato denominado «adita-mento ao contrato-promessa de comprae venda», com assinaturas reconhecidaspresencialmente, por estarem de acordoem os réus não terem cumprido os paga-mentos nos prazos fixados no contrato--promessa de 11 de Novembro de 1991;

f) Ali voltaram a especificar o clausuladoneste: identificação das fracções, preçototal da venda;

g) E a quantia de 5 000 000$00 já paga, peloque fizeram novo escalonamento de pa-gamento dos 10 000 000$00 em dívida,com juros pelo atraso;

h) Fixaram a data de escritura em 31 de De-zembro de 1993;

i) E aditaram cláusula, para fazer parte in-tegrante do contrato-promessa, relativaà ocupação das fracções, sendo certoque os autores permitiram que os réus«ocupassem as fracções autónomas ob-jecto do presente contrato para nele ins-talarem um estabelecimento de snack-bar»;

j) Em 18 de Outubro de 1993, autores eréus outorgaram entre si e assinaramnovo aditamento ao contrato-promessade 11 de Novembro de 1991, identifi-cando o seu clausulado — compra e vendadas fracções «A» e «B» e preço —, decla-rando que o preço da fracção «A» é de6 000 000$00 e o da «B» é de 9 000 000$00;

l) Por acordo, os réus entregaram aos auto-res a fracção «B» em 20 de Março de1995;

m) Em resposta à carta dos autores de 8 deMaio de 1995, onde pediam a entrega dafracção «A», por rescisão do contrato ce-lebrado em 11 de Novembro de 1991, osréus responderam-lhes por carta datada

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295 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

de 19 de Maio de 1995, começando porescrever: «Efectivamente foi celebrado umcontrato-promessa de compra e venda em11 de Novembro de 1991, posterior-mente objecto de um aditamento em 4 deFevereiro de 1993 e nos termos dos quaisnos obrigamos a adquirir as fracções au-tónomas ‘A’ e ‘B’[...]»

E mais à frente: «Posteriormente em18 de Outubro de 1993 foi outorgadonovo aditamento alterando a cláusula [...]»;

n) Em resposta à carta dos autores de 29 deMaio de 1995, onde fixaram aos réus opagamento de 6 000 000$00 referente àfracção «A», estes responderam-lhes, porcarta de 12 de Outubro de 1995, que sepropõem pagar a quantia em dívida de1 000 000$00, no acto da escritura decompra e venda da fracção «A».

Todos estes factos constam da especificação.

7. O desenvolvimento harmonioso desta ar-rastada, no tempo, matéria de facto provada re-vela que desde 11 de Novembro de 1991 autorese réus quiseram efectiva e respectivamente ven-der e comprar a fracção designada pela letra «A»,pois quanto à designada pela letra «B» perdeu--se o seu interesse, projectado na sua omissão nopedido da acção.

A vontade das partes foi sendo sempre corro-borada pelos aditamentos de 4 de Fevereiro de1993, onde até se estipulou cláusula nova, quantoà ocupação das fracções, a fazer parte integrantedo contrato-promessa de 18 de Outubro de 1993e pelas cartas dos autores dirigidas aos réus em8 de Maio de 1995 e 29 de Maio de 1995 erespostas destes àqueles pelas cartas de 19 deMaio de 1995 e de 12 de Outubro de 1995, atrásreferidas.

Desta forma as partes firmam claramente asua vontade de compra e venda da fracção «A»desde 11 de Novembro de 1991 até 12 de Ou-tubro de 1995 — praticamente durante quatroanos —, havendo alterações somente quanto àsformas de pagamento das prestações em dívida,sempre por causa de atrasos imputáveis aos réus,adaptando-as a esta realidade e correcção quantoà ocupação, aceite por todos.

Ou seja, os réus pagaram cinco prestações, nototal de 5 000 000$00, para a compra no valor de15 000 000$00 e em troca obtiveram, em princí-pio, permissão por parte dos autores de ocupa-rem as fracções em causa para instalarem umestabelecimento de snack-bar.

8. Os autores pediram nuclearmente a decla-ração de resolução do contrato-promessa de com-pra e venda de 11 de Novembro de 1991 e seuaditamento de 4 de Fevereiro de 1993, com ascorrelativas consequências quanto à fracção «A».

Perante aquela matéria fáctica apurada as ins-tâncias julgaram diferentemente.

No saneador concluiu-se ser nulo o contrato--promessa, mas considerando que o seu adita-mento revestia as características de um verda-deiro e válido contrato-promessa, julgou-se im-procedente a alegada excepção de nulidade docontrato ex adverso, o douto acórdão recorrido,socorrendo-se da doutrina de impressão do des-tinatário, recebida pelo artigo 236.º, n.º 1, do Có-digo Civil, concluiu que «quando da elaboraçãodo ‘aditamento’ as partes não terão querido apa-gar a existência do contrato-promessa originário,pois que um e outro, pela análise conjunta quedeles fazemos, se entrecruzam coexistindo» —fls. 183.

Por isso, olhando só para o contrato-pro-messa, declarou-o nulo, com as respectivas con-sequências e daí a procedência do agravo, queacabou por se reflectir em verdadeira decisão defundo.

Nenhuma das duas versões se apresenta to-talmente correcta.

9. A ordem jurídica traçada pelo juslibe-ralismo assente numa conexão entre autodeter-minação e auto-responsabilização está ultra-passada.

Assiste-se hoje na controvertida área do con-trato a um maior envolvimento de carácter in-juntivo «imposição frequente de modelos dejustiça pelo legislador em nome de um equilíbriodesejável da prestação ou da defesa da parte so-cialmente mais débil ou a admissão de um cres-cente controlo judicial do conteúdo dos con-tratos — Dr. Carneiro Frada, 1994, Contrato eDeveres de Prestação, pág. 21.

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296Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

Daí o aparecimento do n.º 3 do artigo 410.º«reconhecimento presencial de assinaturas dospromitentes e [...]»

Visa-se aqui, no caso em apreço, proteger ointeresse do promitente-comprador, como é en-tendimento unânime da doutrina e jurisprudên-cia intervenção em nome da protecção do consu-midor.

Lei e vontade completam-se assim na elabo-ração do conteúdo do contrato.

Por isso, vários princípios ordenadores: au-tonomia privada, confiança e justiça comuta-tiva — Prof. A. Varela, Obrigações I, pág. 231;ou autodeterminação, segurança no tráfego, equi-valência das prestações e força ética de fideli-dade ao contrato — fundamentam o negóciojurídico.

Daí que o princípio predominante do con-sensualismo na formação dos actos jurídicos, ecode autonomia privada, é, por vezes, afastadoquando o direito impõe formas solenes e especi-ficas para a dimanação de declaração negocial,ferindo de nulidade a sua inobservância — ar-tigo 220.º

São factores justificativos deste procedi-mento legal, sempre repassado, de se alcançaridoneidade no ajuste de vontades, visando a efec-tivação de consequências juridicamente justas: amelhor reflexão das partes, que os defenda con-tra a precipitação, facilidade de prova, publici-dade, clareza de conteúdo, acautelar a posição deterceiros, certeza e segurança.

Mas o que se pretende apurar é o que as par-tes efectivamente pretenderam e declararam.

E isto é de decisiva importância.

10. A nulidade é a consequência ou a sançãoque o ordenamento jurídico liga às operaçõescontratuais contrárias aos valores ou aos objecti-vos de interesse público por ele prosseguidos,ou àqueles que o direito não considere justo eoportuno, no interesse público, prestar reconhe-cimento e tutela.

Nulidade emergente da aplicação da teoria daresponsabilidade e imposta pelos princípios daboa fé e equidade.

Não a equidade espécie — artigo 4.º do Có-digo Civil — que visa corrigir a generalidade abs-tracta da lei por meio da apreciação das parti-cularidades da espécie.

Mas a geral, visando aproximar-se do ideal dejustiça e, como tal, recebida pelo sistema.

Como projecção de «jurisprudência do pre-sente» e «uma necessária perspectiva social den-tro do sistema» — acórdão do Supremo Tribunalde Justiça de 26 de Abril de 1995, processon.º 86 831, ou seja, como topoi, no dizer de Esser.

O actual formalismo imposto pelo n.º 3 artigo410.º é determinado por uma ideia de protecçãopública social — e nada mais —, ficando a inova-ção da sua omissão reservada ao promitente-com-prador.

Não ao promitente-vendedor por se presumirque ele é culpado da omissão das formalidadesexigidas, a não ser que ela «tenha sido culposa-mente causada pela outra parte».

Daqui resulta que estamos perante um regimeatípico: anulabilidade atípica, dado que pode serinvocável a todo o tempo ou nulidade atípica,preferentemente, uma vez que o seu traçado foipensado pelo legislador para melhor e mais efi-cazmente proteger o promitente-comprador.

Realidade que na sempre feliz expressão doProf. M. Andrade «pode ser útil e acomodada àsexigências da justiça», embora «seja um regimeassimétrico, pouco harmonioso e elegante, sob oaspecto lógico ou formal».

Nulidade atípica «passível de sanação ouconvalidação (artigo 906.º, ex-artigo 913.º), o con-trato será juridicamente tratado como se tivessesido concluído sem defeitos» — Prof. Calvão daSilva, Sinal e Contrato-Promessa, 6.ª ed., 1998,págs. 79 e 80.

11. Os válidos princípios da segurança davida jurídica e da certeza do direito não podemimpor-se com sacrifício das elementares exigên-cias do justo.

Já fez carreira a tese do Prof. M. Andrade,Revista de Legislação e de Jurisprudência, 1987,pág. 308, de as disposições legais sobre a formado negócio jurídico deverem ter aplicaçãoindefectível por imperiosas exigências de certe-za; admitindo somente a indemnização, pelo in-teresse negativo, quando a nulidade do vício deforma ocorresse em circunstâncias que tornassea sua arguição verdadeiramente escandalosa.

Mas nunca haveria validação da nulidade.Hoje a ratio legis terá de ser superada pela

ratio iuris.

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297 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

A justiça é o fundamento da interpretação —aplicação do direito.

E para alcançá-la, dada cada vez mais a suavivência e flexibilidade, impõe-se surpreender umsistema móvel e aberto e ter a percepção da natu-reza funcional do direito como instrumento decontrolo social.

Sistema móvel, onde não há uma hierarquiarígida, mas insusceptibilidade de graduação deprincípios entre si, sua aplicação concreta den-tro do sistema em regime de igualdade.

Na coordenada da realização da justiça — sis-tema e problema — entra também em equação aindispensável busca de elementos normativostranspositivos.

Sem esquecer a utilização da sinépica, comoconjunto de regras que, apetrechando o inter-prete aplicador a pensar em consequências, per-mite o conhecimento e ponderação dos efeitosda decisão.

A hermenêutica é agora um normativo encon-trar direito em concreto.

Se é certo que factores teleológicos são osdeterminantes das disposições legais que pres-crevem certas formas, com as consequências atrásfocadas, certo é também que assegurados, emcada caso concreto, os escopos que levaram àimposição de forma, a sua preterição não justifi-caria a radicalidade sancionatória de nulidade, emface do princípio da confiança, repassado pelaboa fé: haveria como que uma redução teleológica,através de uma restrição de norma — na sua letrae no seu espírito — que impunha a formalidade.

Tudo porque as causas determinantes da-quela forma perderiam então a sua razão de ser:não teriam aplicação.

É solução não aceite pelo Prof. M. Cordeiro,Tratado, I, parte geral, tomo I, 1999, págs. 323e 324.

Mas aceite pelo Prof. Baptista Machado, Re-vista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117.º,págs. 232 a 322.

Para ele, sendo as declarações da vontadenegocial «condutas comunicativas com preten-sões de normatividade», justifica-se que a ordemjurídica tutele a confiança legítima baseada naconduta de outrem, positivamente, conside-rando o contrato nulo por falta de forma, então,neste caso, como vinculante para a outra parte.

Tratar-se-ia, portanto, «de um efeito ex lege,não de um efeito do contrato nulo».

Próximo dele Larenz «vê na forma uma sim-ples condição de eficácia do negócio jurídico, peloque nada obstaria a que em determinadas situa-ções excepcionais a ordem jurídica renunciasse aeste requisito de eficácia em benefício das par-tes».

Haveria no n.º 3 artigo 410.º uma desubstan-cialização da forma do contrato-promessa.

12. O caminho juridicamente mais seguro parasolucionar a questão, frente à concreta matériafáctica provada, passa pela forma como que de-cidiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 5 de Fevereiro de 1998, Boletim, n.º 474,págs. 431 a 435.

Solução que acabou por receber o aplauso doProf. M. Cordeiro, ob. cit., pág. 325.

A tese dos réus não pode vencer: existe abusode direito da sua parte — o seu comportamento,ao levantar a excepção de nulidade do contrato--promessa, contraria os valores fundamentais dosistema em projecção das tendências de socia-lização, de ecticização e funcionalização do di-reito, frente a uma concepção finalista do direito.

Repetindo o sumário daquele acórdão do Su-premo Tribunal de Justiça, o venire contra factumproprium traduz o exercício de uma posição jurí-dica em contradição com o comportamento as-sumido anteriormente pelo exercente: o com-portamento que tenha imprimido confiança aossujeitos envolvidos ficará de pé.

Os seus pressupostos passam por:

a) Situação de confiança justificada pelaboa fé, que levam uma pessoa a acreditar,estavelmente, em conduta alheia — nofactum proprium — determinante de aqui-sição de posição jurídica;

b) Investimento dessa confiança como orien-tação de vida, desenvolvendo actividadena crença do factum proprium, actividadeque se vê agora destruída pelo venire, como correlativo injusto regresso à situaçãoanterior;

c) Imputação da situação criada à outraparte, por esta ter culposamente contri-buído para a inobservância da forma pre-vista pela lei ou ter-se assistido à execução

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298Direito Civil — Direito das Obrigações BMJ 501 (2000)

do contrato através de situações que searrastaram no tempo e pacificamente.

13. Os réus deram azo a uma nulidade for-mal: falta de reconhecimento presencial da assi-natura.

Vindo agora alegá-la, depois de todo o seucomportamento, durante quase quatro anos,como se descreveu, cometeram um acto ilícitoatentatório de boa fé.

Há que paralisar o efeito jurídico emergenteda falta de observância do correspondente ónusde respeitar a forma legal — Prof. CarvalhoFernandes, Teoria Geral, 2.ª ed., 1966, vol. II,pág. 493.

Estamos perante uma espécie de excepçãomaterial.

Os réus, praticando acto ilícito, terão de in-demnizar — artigo 483.º, n.º 1.

A indemnização, mediante reconstituição na-tural — artigos 562.º e 566.º, n.º 1 — implica asuspensão do vício, pela validade do contrato,lesão que se traduz na invocação da excepção emabuso de direito.

Paralelamente a Dr.ª Ana Prata, O Contrato--Promessa e o Seu Regime Civil, 1995, pág. 526:«Quem, conhecendo a nulidade do contrato-pro-messa, inicia o seu cumprimento e aceita o cum-primento da contraparte, pode ver afastado oseu direito de invocar a invalidade, por abuso dedireito, dado ter criado uma fundada convicçãona contraparte de que o contrato, embora nulo,estava destinado ao cumprimento.»

E logo a seguir: «À mesma conclusão poderáchegar-se, somado à realização de alguma presta-ção delitória importante contratualmente, se ve-rificar o decurso de um lapso temporal de talduração que se justifique considerar que a con-traparte, que já tranquilamente adoptou provi-dências de vida dependentes do cumprimento docontrato, não tem, nem pode ter, em mente apossibilidade de vir a ser invocada a nulidadeformal do contrato.»

E em anotação (n.º 1232) concluiu na esteirado Prof. Vaz Serra «trata-se, pois, de proibir ovenire contra factum proprium».

Posição que o Prof. Vaz Serra defendeu naRevista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.º,págs. 215 e 216 e também a págs. 451 e 452.

No mesmo sentido o Prof. Mota Pinto, Teo-ria Geral, 1976, págs. 347 a 349.

E de certo modo o Prof. Rui Alarcão, «Formados negócios jurídicos», Boletim, n.º 86, págs. 184a 186, que também se serve, para atingir o mes-mo fim, das regras sobre a culpa in contrahendo.

Os réus ao excepcionarem, fazendo até entãotábua rasa dos requisitos formais do invocadocontrato-promessa, exercitaram aquele seu di-reito a um fim que não corresponde àquele paraque o mesmo foi tido pela lei.

Como vimos, o direito de invocar nulidadesformais fundamenta-se nos valores atrás descri-tos, não visando proporcionar à parte incumpriro acordado a seu belo talante.

Para maiores desenvolvimentos doutrinais,nacionais e estrangeiros, ver Dr.ª Ana Prata,ob. cit., em nota 1209, págs. 513 a 518, e Dr. Vic-tor Calvete, «A forma do contrato-promessa e asconsequências da sua inobservância», Boletim daFaculdade de Direito, Coimbra, vol. LXIII, 1987,págs. 183 e seguinte.

O contrato-promessa em apreço e o adita-mento globalmente — artigo 236.º, n.º 1 —estruturam a sua função: preparar o contratofinal, definindo os termos de equilíbrio econó-mico-jurídico respectivos.

14. Estando de pé o invocado contrato-pro-messa, revoga-se o douto acórdão recorrido, de-vendo o processo descer ao Tribunal da Relaçãode Évora para agora conhecer da interposta ape-lação sobre a qual se silenciou.

Custas pelos réus recorridos.

Lisboa, 28 de Novembro de 2000.

Torres Paulo (Relator) — Aragão Seia —Lopes Pinto.

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299 Direito Civil — Direito das ObrigaçõesBMJ 501 (2000)

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença do Tribunal Judicial de Silves, processo n.º 174/99.

II — Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 228/2000.

O entendimento jurisprudencial constante do sumário exprime-se, no essencial, em sentidoidêntico ao das posições expressas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Fevereiro de1998, publicado no Boletim, n.º 474, pág. 431, remetendo-se, por isso, na parte que aqui interessa,para as anotações II e III constantes de fls. 436 daquela publicação.

A abundância e a valia dos elementos doutrinais citados no n.º 13 do acórdão anotado dispensaqualquer aditamento.

(M. G. D.)

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300Direito Comercial BMJ 501 (2000)

Acção especial de inquérito judicial — Legitimidade parainterpor tal acção — Comunicabilidade dos direitos e deveresdos sócios ao património comum do casal —Diferença, nesteponto, entre o regime actual do Código das SociedadesComerciais e o regime anterior — Natureza interpretativa dasnormas actuais

I — A quota é latu sensu um direito do sócio que se configura, não como um únicodireito, mas antes como um feixe de direitos de diversa natureza e conteúdo.

II — O direito dos sócios não é um direito real, mas um conjunto de direitos coope-rativos ou de socialidade, representando a quota «a unidade formal de tais direitos comos deveres correlativos», expressando a medida da participação do sócio na sociedadea que pertence.

III — Tais direitos são de duas espécies: por um lado, o de participar na administra-ção social, nas suas várias modalidades; por outro, o de quinhoar no dividendo doslucros a mais e no activo da liquidação.

IV — Assim, por serem eminentemente pessoais, os direitos de voto, de fazer parte daadministração e do conselho fiscal, o de fiscalizar a acção dos administradores ougerentes e o de impugnar as deliberações, a comunhão que se possa estabelecer, fruto dacomunicabilidade resultante do regime de bens, limitar-se-á à mera percepção e fruiçãodos frutos ou utilidades normais dos bens postos em comum.

V — Por outras palavras, na comunhão matrimonial de bens entra apenas o valorpatrimonial da quota, não adquirindo o cônjuge do sócio a qualidade de sócio com todoo correspondente complexo de direitos e deveres pessoais dos sócios.

VI — O direito à informação — que pode efectivar-se na prática pela instauraçãode uma acção especial de inquérito judicial — é um direito extrapatrimonial do sócio e,como tal, não é comunicável ao seu cônjuge.

VII — Assim, e atenta a natureza eminentemente pessoal do direito à informaçãodos sócios de uma sociedade por quotas, não tem legitimidade para intentar uma acçãoespecial de inquérito contra aquela sociedade o cônjuge de um dos sócios, casado emregime de comunhão de adquiridos, acção essa instaurada na pendência de um processode divórcio pendente à data da sua instauração.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 28 de Novembro de 2000Recurso n.º 3162/2000

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

Dr.ª Suzete Maria de Queirós Costa Maga-lhães, com processo de divórcio pendente à datae que actualmente já foi decretado, requereuacção especial de inquérito judicial contraROMATIL — Sociedade de Construções e Es-tudos, L.da, António Pais Martins (seu ex-sogro)e engenheiro António Rodrigues Martins (seu

ex-marido), a fim de se o instaurar versando so-bre as matérias constantes do seu requerimento,de se determinar que as informações por si soli-citadas lhe sejam prestadas de forma completa,pormenorizada e elucidativa, nomeadamente atra-vés de exames periciais e ou oportunamente or-denada a suspensão da gerência pelos requeridos,com a consequente destituição e nomeação deum administrador substituto.

Após contestação e réplica, e alguns inciden-tes, foi proferido saneador-sentença que, por

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301 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

julgar a autora parte ilegítima, absolveu os reque-ridos da instância.

Agravaram a autora e, subordinadamente, osrequeridos — aquela, por defender a sua legiti-midade processual, estes por, qualificando asituação de ilegitimidade substantiva activa, en-tenderem dever ter sido absolvidos do pedido.

Do acórdão da Relação do Porto que negouprovimento aos agravos recorreu a autora, con-cluindo, em suma e no essencial, em suas alega-ções:

— É co-titular, porque «meeira» do seu ex--casal com o engenheiro António Martins, da quo-ta correspondente a 24% do capital social dasociedade requerida;

— E, por decisão judicial transitada em jul-gado, fiel depositária dessa quota, no processode arrolamento que correu por apenso ao pro-cesso de divórcio entre ela e seu ex-marido, peloque era a única que detinha a sua administração;

— A comunhão conjugal representa uma com-propriedade que se traduz no património comumconjugal, pelo que, inclusive, pode ser conside-rada plena proprietária da quota e a contitula-ridade da quota comum do casal não se assemelhaà figura da associação à quota;

— A quota adquirida por um dos cônjugespor título que não afastasse a comunhão impor-tava uma compropriedade da quota;

— As sociedades por quotas são essencial-mente sociedades por capitais;

— A quota da comunhão do casal é não sópertença de ambos os cônjuges como está sujeitaà administração comum;

— Os direitos da quota não são incindíveis,não existindo uma parte da quota que respeite apersonalidade ou individualidade da quota e umaparte económica da quota;

— Ao caso são aplicáveis, por o contrato dasociedade ser anterior à entrada em vigor do Có-digo das Sociedades Comerciais, as disposiçõesdo Código Civil e da Lei das Sociedades porQuotas, das quais a norma do artigo 8.º, n.º 2, doCódigo das Sociedades Comerciais não é inter-pretativa mas inovadora e consagrando soluçãocontrária à jurisprudência anterior do SupremoTribunal de Justiça, conquanto esta norma reveleque a presente participação social se torna bemcomum;

— As funções de administração, provendo àconservação do bem administrado e à sua fru-tificação, só podem ser exercidas se se admitirque a fiel depositária possa representar a quotaface à sociedade;

— Os direitos de acompanhar e fiscalizar avida social, intervir em assembleias gerais, votaras contas, etc., são direitos de natureza eminen-temente patrimonial e, no caso, os únicos quepermitem exercer adequadamente as funções defiel depositário;

— Ao arrolamento são aplicáveis as disposi-ções relativas à penhora que não contrariem anatureza do arrolamento e a única forma de con-seguir evitar o extravio, ocultação ou dissipaçãodo valor da quota é subtrair integralmente aquota no seu complexo de direitos e obrigações àposse, administração e representação do ex-côn-juge;

— A interpretação dos artigos 8.º e 239.º doCódigo das Sociedades Comerciais, dada na sen-tença, viola os princípios constitucionalmenteconsagrados nos artigos 12.º, 13.º, 17.º, 18.º, 20.º,36.º, 202.º, n.º 2, e 204.º da Constituição;

— Violado o disposto nos artigos 1403.º,1678.º, 1679.º, 1732.º, 1733.º do Código Civil,8.º, 222.º, 234.º e 239.º do Código das SociedadesComerciais, 421.º, 424.º, 425.º e 427.º do Códigode Processo Civil e 6.º e 9.º da Lei das Sociedadespor Quotas.

Contra-alegando, pugnam os recorridos pelaconfirmação do acórdão.

Colhidos os vistos.

Matéria de facto fixada pelas instâncias e cominteresse para o agravo:

a) À data da constituição da sociedaderequerida, a requerente era casada com oengenheiro António Martins, seu sóciofundador, em regime de comunhão de ad-quiridos;

b) No processo de arrolamento dos bens docasal, que correu por apenso ao respec-tivo processo de divórcio, foi a reque-rente nomeada fiel depositária da referidaquota social;

c) No artigo 4.º do pacto social da requeridaestabelece-se que são livres entre sóciosas cessões de quotas, totais ou parciais,

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302Direito Comercial BMJ 501 (2000)

bem como as necessárias divisões: as ces-sões a favor de estranhos só poderão rea-lizar-se com o acordo dos consócios;

d) No artigo 9.º do pacto estabelece-se que asociedade se reserva o direito de amorti-zar qualquer quota que seja penhorada,arrestada ou por qualquer forma envol-vida em procedimento judicial;

e) O divórcio do casal da requerente com orequerido engenheiro António Martins jáfoi decretado;

f) A sociedade foi constituída em 1977,sendo seus sócios fundadores os requeri-dos e o cônjuge do primeiro.

Decidindo

1. A única questão suscitada respeita a saberse a autora tem ou não interesse directo em de-mandar e, para a sua solução, apela aquela paraduas vertentes — a contitularidade provenienteda integração da quota no património comum docasal e a sua qualidade de depositária judicial daquota.

As instâncias não foram sensíveis à sua argu-mentação e, por isso, tem como violando princí-pios constitucionais, a interpretação que fizeramdos artigos 8.º e 239.º do Código das SociedadesComerciais.

Os requeridos tiveram como de direito subs-tantivo a questão pelo que defenderam que a ab-solvição deveria ser do pedido e não da instância.

Convém ainda referir que do processo nãoconsta que já tivesse tido lugar a partilha dosbens do casal.

2. A sociedade requerida foi constituída nodomínio da Lei das Sociedades por Quotas ondeo seu tratamento a colocava entre a sociedade depessoas e a sociedade de capital, dependendo asua aproximação maior ou menor a uma ou outrada configuração que em concreto resultasse dasestipulações do seu pacto social, como bem acen-tuou, entre outros, Ferrer Correia (Colectâneade Jurisprudência, ano XIV, tomo IV, pág. 34;Raul Ventura, embora afirmasse não ser socieda-de de pessoas, não deixava de reconhecer que alarguíssima liberdade de estipulação, caracterís-tica essencial deste tipo de sociedades, permite

às partes, dentro de uma moldura legal muitoampla, modificar radicalmente as feições da so-ciedade concreta, designadamente em matéria decessão de quotas — Colectânea de Jurisprudên-cia, ano XIV, tomo IV, págs. 39 e 41, e Cessão deQuotas, pág. 18). O mesmo autor, conjunta-mente com A. Caeiro, Vasco Lobo Xavier e Ma-ria Ângela Coelho, na nota prévia ao seu ante-projecto de lei para as sociedades por quotas,refere que foi intenção imprimir à disciplina legaldas mesmas a característica de uma grande ma-leabilidade, em conceder aos interessados umagrande liberdade de escolha da estrutura mais ade-quada à sociedade que efectivamente pretendemconstituir (Revista de Direito e Economia, n.º 2,1976, pág. 2).

Porque na sociedade por quotas a pessoa dossócios não é indiferente, se alicerça num vínculode mútua confiança entre os seus membros, umprimeiro aspecto que salta in casu desde logo àvista é a componente humana na constituição darequerida — pai, mãe e filho, apenas eles.

Conhecido o carácter consensual da socie-dade, já Raul Ventura escrevia (Associação àQuota, pág. 17), a respeito das sociedades depessoas, que «um sócio não pode fazer entrarum terceiro como sócio na sociedade, pois re-pugnará aos mais elementares princípios jurídi-cos que, formada uma sociedade entre váriaspessoas, uma destas pudesse, sem a vontade dasoutras, alargar a novos sócios o âmbito da socie-dade» (no mesmo sentido, Ferrer Correia, Co-lectânea de Jurisprudência, ano XIV, tomo IV,pág. 34).

A pretensão da autora coloca-se, porém, emsede não de ser uma «outra» sócia mas de con-titularidade, porque meeira, num único direitosobre coisa comum, o que pressupõe a integraçãoda quota, na extensão que a recorrente lhe con-fere, na comunhão conjugal.

3. Na análise da concreta configuração de umasociedade por quotas constitui «pedra-de-toque»o que tenha sido estipulado em matéria de cessãode quotas a terceiros.

Entre os sócios foi estipulada a liberdade decessão mas em relação a terceiros só com oacordo dos consócios e, em caso de procedimentojudicial que envolva a quota, reservou-se a so-ciedade o direito de a amortizar.

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303 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

A gerência foi confiada apenas aos sócios re-queridos (pai e filho), sendo a outra sócia a côn-juge do primeiro.

Revela isto, citando, uma vez mais, FerrerCorreia, que se quis uma sociedade fechada, quenão quis sujeitar-se a ter de admitir no seu gré-mio uma pessoa qualquer e pretendeu antes re-servar-se um direito de controlo (Raul Venturacomeçou por desvalorizar, no caso em que deuparecer, a cláusula sobre a cessão de quotas namedida em que pôs em dúvida que as partes ti-vessem, à data do pacto social, conhecimento dadistinção entre valor patrimonial da quota e qua-lidade de sócio pelo que a interpretou no sentidode a dispensa de consentimento para a cessãobeneficiar os dois cônjuges, ambos consideradossócios para o efeito — pág. 39; além de ser argu-mentação de fraca consistência, parte do fim parao princípio, dando como demonstrado o que te-ria de demonstrar; de qualquer modo, a diferençade situações é grande — ali, o pacto é de 1926,sendo a Lei das Sociedades por Quotas de 1901;aqui é de 1977 e entre uma e outra data já asRelações e o Supremo Tribunal de Justiça ti-nham sido chamadas a pronunciar-se por diver-sas vezes).

Revelado o intuitus personae, configura-se asociedade requerida, sem prejuízo da sua natu-reza mista, como mais aproximada da sociedadede pessoas.

4. Quota — no seu sentido amplo de «qui-nhão», «parte», «participação social» — é, se eenquanto traduzindo o direito do sócio, não «umúnico direito, mas antes um feixe de direitosvários, de vária natureza e conteúdo» (FerrerCorreia, Lições de Direito Comercial, vol. II,Sociedades Comerciais, págs. 84-85 e 349).

A. Pereira de Almeida, a propósito da situa-ção jurídica do sócio, define-o como a parte inte-grante da sociedade, o seu substrato pessoal(Sociedades Comerciais, pág. 44).

O direito dos sócios não é um direito real eantes um conjunto de direitos corporativos oude socialidade, representando a quota «a unidadeformal desses direitos, com os deveres corre-lativos, e» exprimindo «a medida da participa-ção do sócio na sociedade a que pertence» (autore loc. cits.). São de «duas espécies de direitos —de um lado, o de participar na administração so-

cial, em suas diferentes modalidades (direito depresença e de voto nas assembleias gerais, de sereleito para os cargos directivos, de fiscalizar aacção dos administradores ou gerentes e impug-nar as deliberações da assembleia contrárias à leiou aos estatutos); de outro, o de quinhoar nodividendo dos lucros anuais e no activo de liqui-dação» (Ferrer Correia, Estudos Jurídicos, II,págs. 70-71; no mesmo sentido, Rivolta apudPinto Furtado, Código Comercial Anotado, I,pág. 366, e este mesmo autor, págs. 366 e se-guintes).

E, continua, «quando se diz do sócio ter eleparticipação no património social, isto só podeentender-se (no rigor dos princípios) no sentidode que lhe compete um determinado quinhão doslucros anuais e do activo da liquidação. A tantose resume a participação do sócio naquele patri-mónio: a uma quota nos resultados da explora-ção da empresa».

Porque assim, sendo pessoais os direitos devoto, de fazer parte da administração ou do con-selho fiscal, o de fiscalizar a acção dos adminis-tradores ou gerentes e o de impugnar as delibe-rações, a comunhão que se possa estabelecer,fruto da comunicabilidade resultante do regimede bens, limitar-se-á à mera percepção e fruiçãodos frutos ou utilidades normais dos bens pos-tos em comum.

É isso o que significa afirmar-se que na comu-nhão matrimonial de bens entra apenas o valorpatrimonial da quota, não adquirindo o cônjuge aqualidade de sócio com todo o correspondentecomplexo de direitos e deveres; daí ainda que, emrelação ao cônjuge sócio possa exercer os direi-tos patrimoniais correspondentes à sua parte na-quele valor.

O Supremo Tribunal de Justiça afirmou que acomunicabilidade ao cônjuge casado em regimede comunhão geral de bens se reportava ao qui-nhão social mas não aos direitos pessoais dosócio (acórdãos de 28 de Novembro de 1969,Boletim, n.º 191, pág. 300, onde se refere anterioracórdão de 1935 no mesmo sentido, de 24 deOutubro de 1969, Boletim, n.º 190, pág. 344, e de10 de Maio de 1966, Boletim, n.º 157, pág. 282;em sentido oposto, os acórdãos de 15 de Dezem-bro de 1964, Boletim, n.º 142, pág. 362, e de 11de Fevereiro de 1966, Boletim, n.º 154, pág. 353,salientando-se que, no primeiro, a conclusão é

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304Direito Comercial BMJ 501 (2000)

estabelecida «uma vez que nada se alegou quecontrarie esta regra geral» e a sociedades de quo-tas em causa ter sido tratada como de capitais,enquanto, no último, resultou de não ter sidoaceite a distinção entre valor patrimonial e quali-dade de sócio; já o acórdão de 21 de Julho de1964, Boletim, n.º 139, pág. 345, é inconclusivo,permitindo ser lido como defendendo a incomu-nicabilidade entre os cônjuges da qualidade desócio que só um deles permita ou, antes, comoaceitando a tese oposta como o faz o acórdão de15 de Dezembro de 1964 quando o cita).

Além dos vários acórdãos apontados nos pa-receres insertos na Colectânea de Jurisprudên-cia, ano XIV, tomo IV, de Ferrer Correia e RaulVentura, já citados, veja-se no sentido de inco-municabilidade da qualidade de sócio, só a ha-vendo quanto ao valor patrimonial no domínioanterior ao Código das Sociedades Comerciais(cfr. acórdãos da Relação de Lisboa de 6 de Ou-tubro de 1987, Colectânea de Jurisprudência,ano XII, tomo IV, pág. 139, de 11 de Junho de1989, Colectânea de Jurisprudência, ano XIV,tomo IV, pág. 121, de 26 de Abril de 1990,Colectânea de Jurisprudência, ano XV, tomo II,pág. 166, e da Relação de Évora de 8 de Outubrode 1992, Boletim, n.º 420, pág. 674).

Nem do disposto nos artigos 1724.º, alí-nea b), 1732.º e 1733.º do Código Civil de 1966,ou antes nos artigos 1108.º e 1109.º do CódigoCivil de 1867, nem do artigo 9.º da Lei das So-ciedades por Quotas de 11 de Abril de 1901resultava que no património comum do casaltivesse de ingressar mais que o valor patrimonialda quota. Enquanto este é «um bem susceptívelde compor a comunhão», já a «qualidade de só-cio, que dentro da participação social se caracte-riza pelas posições orgânica e administrativacoligadas aos seus direitos patrimoniais, [...] ésempre indissociável da pessoa do titular da res-pectiva participação social», «é incomunicávelentre cônjuges, enquanto permanecer encabeçadana pessoa de um deles» (Pinto Furtado, ob. cit.,págs. 371 e 372).

Permite esta conclusão compatibilizar a natu-reza da comunhão nos bens do casal com os po-deres de administração. A comunhão matrimonialde bens entre os cônjuges traduz uma proprie-dade colectiva (por não haver quotas, todos ostitulares são sujeitos de um único direito) cuja

fisionomia radica no vínculo pessoal que liga en-tre si os cônjuges, património esse que deve sub-sistir como tal enquanto perdurar o vínculo (VazSerra). Dissolvida a sociedade conjugal e enquantose não fizer partilha (como é o caso), está-seperante uma situação de comunhão a que o artigo1404.º do Código Civil manda aplicar subsidia-riamente as regras da compropriedade, sem pre-juízo do disposto especialmente para cada umdeles e, como se viu, há, relativamente ao pro-blema da comunicabilidade da quota, especifici-dade assinalada.

5. Sobreveio o Código das Sociedades Co-merciais e também, através do mesmo, se alcançaidêntica conclusão.

Na realidade, «quando uma participação so-cial for, por força do regime patrimonial de bens,comum aos dois cônjuges, nas relações com asociedade será considerada como sócio aquele ouaqueles que tenham celebrado o contrato de so-ciedade ou, no caso de aquisição posterior aocontrato, aquele por quem a participação tenhavindo ao casal» (artigo 8.º, n.º 2).

«Disposição que resolve o problema em ter-mos uniformes para todos os tipos sociais» cons-tituídas após a sua entrada em vigor, como refereFerrer Correia.

A autora afirma-a como norma inovadora e,como tal, inaplicável. Mas, por outro lado, inter-preta-a no sentido que a quota (note-se que nãoaceita a distinção entre valor patrimonial e quali-dade de sócio), aqui, é bem comum.

Relativamente a situações anteriores que res-peitem a uma sociedade de pessoas ou a umasociedade de cunho paternalista não consagrasolução diversa daquela que concluímos. Confi-gura-se assim como norma interpretativa.

Se no direito anterior a questão de direito eracontrovertida ou incerta e o julgador ou o intér-prete poderiam chegar, sem ultrapassar os limi-tes normalmente impostos à interpretação eaplicação da lei à mesma solução que a lei nova,deve esta lei ser considerada interpretativa (Bap-tista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo doNovo Código Civil, pág. 287, e P. Lima eA. Varela, Código Civil Anotado, I, pág. 62).

Note-se que, como observa Baptista Ma-chado (ob. cit., pág. 288) e o Supremo Tribunalde Justiça que a lei nova, para ser considerada

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interpretativa da lei anterior, não tem de neces-sariamente consagrar uma corrente doutrinal oujurisprudencial prevalecente, sendo suficiente aadopção de uma interpretação defendida ante-riormente (acórdão de 17 de Janeiro de 1990,Boletim, n.º 393, pág. 612).

A circunstância de a lei nova ter vindo substi-tuir toda a regulamentação anterior não é obstá-culo à conclusão sobre a natureza interpretativadaquela norma. Com efeito, não se introduziuum instituto jurídico novo nem em relação ao jáexistente se criou norma contrária à anterior ouincompatível com o espírito do respectivo siste-ma legislativo.

A solução encontrada vem na esteira de umacorrente jurisprudencial, como se frisou citandoos arestos respectivos, e com apoio na doutrina.

Norma interpretativa, pois (Código Civil, ar-tigo 13.º, n.º 1; neste sentido, entre outros, ocitado acórdão da Relação de Évora).

6. Dispõe o Código das Sociedades Comer-ciais, «o sócio a quem tenha sido recusada a in-formação ou que tenha recebido informação pre-sumivelmente falsa, incompleta ou não elu-cidativa pode requerer ao tribunal inquérito àsociedade» (artigo 216.º, n.º 1).

Como refere Ferri, o direito de controlo ou àinformação e controlo não diz respeito à estrutu-ra íntima da sociedade, antes é reconhecido aosócio para a melhor tutela dos direitos essenciaisque derivam do contrato de sociedade, pelo quese pode considerar como seu acessório para per-mitir o correcto exercício dos mesmos (neste sen-tido, artigos 289.º, n.º 1, 290.º, n.os 1 e 3, 263.º,n.º 1, 291.º, n.os 1 e 4, 248.º, n.º 1, 214.º e 215.º).

O direito à informação é um direito extra-patrimonial do sócio.

É um direito corporativo (= direito dos mem-bros da corporação, a sociedade enquanto pes-soa jurídica) ou de socialidade (= inerente àqualidade de sócio de uma sociedade).

Ferrer Correia, sintetizando este pensa-mento, afirma — «o direito dos sócios não recai,portanto, nos bens sociais, mas só pode cons-truir-se como um direito em face da corporação:direito ou, antes, posição jurídica complexa (con-junto de direitos e deveres), que exprime justa-mente a qualidade de ser membro do corpo social»

(Scientia Juridica, Janeiro/Dezembro 1986, tomoXXXV, n.º 199-204, pág. 341).

Porque direito do membro da corporação (osócio), inerente à qualidade de sócio, não é co-municável ao cônjuge do sócio, compreende-seno conjunto de direitos e obrigações deste. Inte-gra-se nos direitos corporativos gerais e, dentrodestes, nos que Rivolta descreve como referen-tes às posições orgânica e administrativa, as quaisse ligam aos direitos patrimoniais de participa-ção nos lucros e no activo da liquidação por umnexo de dupla instrumentalidade: a relativa à tu-tela dos direitos patrimoniais do sócio e a rela-tiva ao funcionamento da organização colectiva.

Um afloramento do reconhecimento da dis-tinção entre valor patrimonial da quota e a quali-dade de sócio e da aceitação das consequênciasdesse reconhecimento encontra-se expresso naparte final do n.º 1 do artigo 239.º do Código dasSociedades Comerciais a respeito do exercício dodireito de voto em caso de penhora da quota (é otitular da quota quem continua a exercer o direitoe não o seu depositário judicialmente nomeado)e na preferência estabelecida a favor dos sóciosem caso de venda ou adjudicação judicial (n.º 5).Aplicando-se ao arrolamento, onde a especifi-cidade do regime não o contrariar, as disposiçõesrelativas à penhora e, por força delas, quanto àpenhora de quota o Código das Sociedades Co-merciais (Código de Processo Civil, artigos 424.º,n.º 5, e 862.º n.º 5), não está ele subtraído aodisposto no artigo 239.º do Código das Socieda-des Comerciais e onde se lê «a penhora de umaquota abrange os direitos patrimoniais a ela ine-rentes» leia-se «o arrolamento de uma quotaabrange [...]» — «direitos patrimoniais» e não «aqualidade de sócio».

Outro afloramento está na necessidade de pre-visão do seu exercício pelo usufrutuário quandolhe caiba exercer o direito de voto — n.º 8 doartigo 214.º

Outro afloramento e ainda também quanto àssociedades por quotas, encontramos a propó-sito do direito à informação no artigo 214.º doCódigo das Sociedades Comerciais, máxime non.º 4. Tem de ser exercido pessoalmente pelosócio, que se pode fazer acompanhar de um pe-rito e tirar fotocópias, excepto se a sociedadeinvocar, quanto a estas, motivo grave para impe-dir a reprodução dos documentos. E a recusa da

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306Direito Comercial BMJ 501 (2000)

informação apenas em situações legalmente limi-tadas pode suceder (artigo 215.º), colocando a leiao alcance do sócio os meios para vencer quer arecusa quer a sua prestação falsa ou defeituosa(artigos 215.º, n.º 2, e 216.º, n.º 1). Inclusive, umacordo parassocial sobre o direito à informaçãonão será válido se eliminar esse direito ou o des-pir de conteúdo (artigo 17.º, n.º 3).

O mesmo se diga quanto ao direito a accionara anulação de deliberação social — ou o órgão defiscalização ou o sócio (artigo 59.º, n.º 1), quantoà composição da gerência — ou designada nopacto ou eleita posteriormente (artigo 252.º), equanto à destituição de gerentes — deliberadapelos sócios ou requerida por sócio (artigo 257.º,n.os 1 e 4).

Se nestes nada foi preciso referir sobre nãoassistir ao cônjuge do sócio esses direitos, já paraafirmar mas pela positiva houve necessidade emse lhe referir expressamente.

É o caso de, num outro afloramento, o Códigodas Sociedades Comerciais ter, por um lado, pos-sibilitado («pode») e, por outro, limitado («sópode»), que a representação voluntária do sócioseja conferida ao seu cônjuge (ou a um seu ascen-dente ou descendente ou a outro sócio) — artigo249.º, n.º 5.

A circunstância de ser depositária da quota sólhe atribui a legitimidade para exercer os direitosque tenham origem no que realmente foi arrolado(«os direitos patrimoniais a ela inerentes, comressalva do direito a lucros já atribuídos [...]»);segue-se que os direitos inerentes à qualidade desócio não foram abrangidos por aquela provi-dência.

Se em consequência do regime de bens acomunicabilidade na quota (quota-valor) se limi-ta à mera percepção e fruição dos frutos ou utili-dades normais dos bens postos em comum,enquanto depositária judicial o dever de admi-nistrar (Código de Processo Civil, artigo 843.º,n.º 1) não pode colidir nem impedir o exercício detodo o restante complexo de direitos e deverespelo sócio.

Como se lê na sentença, citando José MariaVaz — «o exercício dos direitos pessoais, comosão os do sócio, não é afectado por uma medidaque tem carácter eminentemente patrimonial»,para depois acrescentar: «compete ao depositá-rio arrecadar os lucros sociais, como acto de mera

administração, devendo a sociedade facultar osmeios e informações necessárias ao desempenhoeficaz de tal competência. Já não lhe cabe, po-rém, o exercício do direito social que é de natu-reza pessoal e não pode por isso transferir-separa o depositário».

Acresce que o arrolamento em causa advémcomo providência em acção de divórcio, não estárelacionado com a vida da sociedade, pelo que aadministração da «quota» pelo cônjuge do sócioferia a cláusula de estabilização e se apresentariaperturbadora do desenvolvimento normal davida da sociedade, não cabe na previsão do n.º 3do artigo 8.º do Código das Sociedades Comer-ciais.

Como escreveu Moitinho de Almeida: «o ar-rolamento não produz qualquer diminuição dacapacidade do titular dos bens arrolados, apenaso priva de alienar tais bens» (Anulação e Suspen-são de Deliberações Sociais, pág. 61).

Porque não titular do direito à informação pelasociedade (ilegitimidade substantiva activa), nãoé a requerente portadora de interesse directo emdemandar accionando um inquérito judicial(ilegitimidade processual activa) — artigo 26.º,n.º 1, do Código de Processo Civil.

7. Inconstitucionalidade das normas dos arti-gos 8.º, n.º 2, e 239.º do Código das SociedadesComerciais na interpretação que lhes foi dada noacórdão recorrido.

Não há que dedicar ao assunto mais que trêsbreves apontamentos.

A norma aplicada não é qualquer das aponta-das — porque aplicável à questão de direito —comunicabilidade da quota ao cônjuge do sócio —o regime jurídico anterior ao Código das So-ciedades Comerciais, o aludido artigo 8.º apenasfoi chamado à colação enquanto norma interpre-tativa. Mas, ainda que o não fosse, não resultariadaí, se aplicável fosse, que a quota sofreria, quantoà sua comunicabilidade, alteração.

É da conclusão tomada à sombra da lei antigaque decorre a consequência (relativa à ilegitimi-dade) de que discorda a requerente. O apelo aoartigo 239.º do Código das Sociedades Comer-ciais mais não é que um reforço da conclusãoevidenciando que também à luz da lei nova asolução seria idêntica.

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307 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

O segundo apontamento respeita à alegaçãoda inconstitucionalidade.

Tal como já anotara o acórdão recorrido (afls. 688) também agora na revista, em nada, ab-solutamente em nada, concretizou a requerente asua afirmação e que se encontra no último pará-grafo de fls. 748.

O apontamento final refere-se à sua asserção,sem que tenha tido a preocupação em a funda-mentar, de que retirar-lhe, no caso concreto, odireito a requerer o inquérito judicial é esvaziarem absoluto as funções que lhe assistiam, quercomo meeira, co-titular, quer como fiel deposi-tária.

Além de que seria necessário demonstrar queessas funções lhe assistiam — o que não su-

cede — cumpre observar que não cabe aos tribu-nais imiscuir-se na esfera reservada à advocacia,sendo a esta que compete eleger qual o meio que,na sua óptica, melhor defende os interesses doconstituinte. Ao tribunal cabe apreciar apenas oque lhe é presente e não o indicar o caminho queentende deva ou possa ser desencadeado.

Termos em que se nega provimento ao agravo.

Custas pela requerente.

Lisboa, 28 de Novembro de 2000.

Lopes Pinto (Relator) — Ribeiro Coelho —Garcia Marques

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença da 1.ª Secção do 6.º Juízo Cível do Porto, processo n.º 763/97.

II — Acórdão da 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 129/2000.

Jurisprudência:

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 0008382; número conven-cional JTRL00024937; data do acórdão: 20 de Março de 1997, in Base de Dados do Ministério daJustiça.

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 00100366; número conven-cional JTRL00027610; data do acórdão: 13 de Dezembro de 2000, in Base de Dados do Ministério daJustiça.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 97A791; número conven-cional JSTJ00035543; data do acórdão: 31 de Março de 1998, in Base de Dados do Ministério daJustiça.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 087563; número conven-cional JSTJ00028005; data do acórdão: 28 de Setembro de 1995, in Base de Dados do Ministério daJustiça.

(A. S.)

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308Direito Comercial BMJ 501 (2000)

Cheque falsificado — Pagamento — Responsabilidade civil —Bancos

I — Em princípio, devem ser os bancos depositários a arcar com os prejuízos decor-rentes do pagamento de cheques com a assinatura falsificada do sacador, podendo aque-les, porém, subtrair-se a tal responsabilidade se conseguirem provar que agiram semculpa e que foi a conduta negligente do depositante que contribuiu, decisivamente, parao irregular pagamento verificado.

II — Se o prejuízo resultante do pagamento de cheques falsos foi devido exclusiva-mente a culpa do empregado do depositante, a quem este confiou a utilização do livro decheques, e a culpa se verificar no cumprimento da obrigação, tal bastará para que odepositante responda por esse prejuízo.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇAAcórdão de 9 de Novembro de 2000Processo n.º 2638/2000 — 2.ª Secção

ACORDAM no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Orlando & Almeida, L.da, com sede na Ruade Arroios, 179-A, Lisboa, propôs no 15.º JuízoCível da Comarca de Lisboa acção ordinária con-tra o Banco Totta & Açores, S. A., com sede naRua Áurea, 88, Lisboa, alegando resumidamenteque:

— O Banco réu, junto de cuja agência da Ala-meda a autora teve, até 1991, uma conta de de-pósitos à ordem, pagou indevidamente, entre Maiode 1986 e Julho de 1991, 326 cheques no valortotal de 15 528 940$00, sacados sobre aquelaconta mas assinados pelo punho de uma ex-em-pregada da autora (de nome Noémia Jacinto DiasVermelhudo), que neles apôs, imitando-a, emmuitos casos grosseiramente e nos demais porforma não perfeita, a assinatura do gerente daautora (Fernando Ventura de Almeida );

— Cheques esses que foram depois poraquela levantados, depositados ou endossados,a terceiros em pagamento de despesas próprias,assim utilizando em proveito próprio o corres-pondente numerário, apenas havendo entregue àautora a quantia de 600 000$00;

— Deve assim a entidade ré ser condenadaa pagar à autora a quantia de 14 928 940$00(15 528 940$00 — 600 000$00), acrescida dejuros de mora vincendos até integral pagamento.

2. Contestou a entidade bancária ré alegando,também por forma abreviada, o seguinte:

a) Que a assinatura aposta no saque dosaludidos 326 cheques confere rigorosa-mente, nos seus traços gerais e particula-res, com a do gerente da autora, cons-tante da respectiva ficha de assinaturas;

b) Que nas datas dos pagamentos dos mes-mos cheques não existia qualquer comu-nicação ou ordem da autora que impedisseo seu pagamento;

c) Que, não obstante o Banco réu haver sem-pre enviado para a sede da autora os ex-tractos da conta de depósitos à ordemsobre a qual foram sacados os referidos326 cheques, nunca a autora apresentouqualquer reclamação ou referiu não oster recebido, jamais tendo dado por qual-quer situação anómala durante cinco anos,apesar de os cheques em questão corres-ponderem a mais de 13 cadernetas oumódulos de cheques com 25 chequescada e atingirem um valor médio mensalde 250 000$00 e médio anual de cerca de3 000 000$00 e com referência a umaconta com saldos médios anuais da or-dem de 1 500 000$00.

3. Por sentença do M.mo Juiz daquele Juízodatada de 25 de Março de 1999 foi a acção julgada

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309 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

improcedente e, em consequência, a entidadebancária ré absolvida do pedido.

4. Inconformada com tal decisão dela veioapelar a autora mas o Tribunal da Relação deLisboa, por acórdão de 29 de Fevereiro de 2000,negou provimento ao recurso, assim confir-mando a sentença recorrida.

5. Ainda irresignada, desta feita com tal aresto,dele veio a autora recorrer de revista para esteSupremo Tribunal, em cuja alegação formulou asseguintes conclusões:

a) O Banco réu só poderia livrar-se da res-ponsabilidade pelo pagamento dos che-ques falsificados, que por presunção legallhe cabe, se provasse que houve culpa dodepositante e que não houve culpa dobanco;

b) Ora, o Banco réu pagou os cheques semestarem efectivamente assinados pelodepositante;

c) O Banco réu não conferiu cuidada e cau-telosamente as assinaturas, mormente nosseus traços especiais e particulares;

d) O dever imposto àquele na verificação daveracidade da assinatura do sacador emcheque apresentado a pagamento é co-mandado por princípios de ordem pú-blica, como se discorre do acórdão doSupremo Tribunal de Justiça de 2 de Fe-vereiro de 1980, bem como, no mesmosentido, o acórdão de 22 de Outubro de1979, Boletim do Ministério da Justiça,n.º 290, pág. 429;

e) O Banco réu não cumpriu o seu deverespecífico, ao conferir as assinaturas sónos seus traços gerais e essenciais ;

f) De modo que pagou os cheques que nãoestavam, efectivamente, assinados pelodepositante;

g) O Banco réu deve ter ao seu serviço, norespeitante ao exame das assinaturas, pes-soas competentes, por forma a que, dan-do-se satisfação ao que dispõe o artigo769.º do Código Civil, a prestação deveser feita ao credor ou ao seu represen-tante, como se discorre de um outro acór-dão do Supremo Tribunal de Justiça de9 de Janeiro de 1981;

h) Agindo, assim, o Banco réu agiu comculpa exclusiva;

i) Se é certo que a responsabilidade civil dosbancos pelo pagamento dos cheques fal-sificados não é uma responsabilidade ob-jectiva, não é menos certo que é como sefosse, pois só no caso de existência deculpa do depositante é que se livra daresponsabilidade do pagamento, videAdolfo Bravo, A Responsabilidade dosBanqueiros pelo Pagamento dos ChequesFalsos na Doutrina e na Jurisprudência;

j) E não se provou culpa do autor;k) Mesmo que se admitisse inexistência de

culpa de ambos, sempre o devedor Bancoestaria condenado pela presunção deculpa, vide acórdão do Supremo Tribunalde Justiça de 16 de Maio de 1969, Bole-tim do Ministério da Justiça, n.º 187,pág. 145;

l) O douto acórdão do Tribunal da Relaçãode Lisboa, ao não condenar o Banco réucomo poderia e devia, violou, entre ou-tros, os artigos 487.º, 769.º, 799.º, 1114.º,1205.º e 1206.º, todos do Código Civil eos artigos 363.º e 406.º, ambos do CódigoComercial.

6. Contra-alegou a entidade bancária ré sus-tentando a correcção do julgado, formulando, porseu turno, na respectiva contra-alegação, e noque concerne à decisão de direito, as seguintesconclusões:

......................................................................q) O pleito não se resolve no domínio do con-

trato de depósito, mas no do cheque, depoisporque não é relevante o risco mas a culpa;

r) Os riscos que podem resultar da utilizaçãodo cheque — nomeadamente a sua falsificaçãoou perda — nascem de uma actividade realizadano interesse do sacador/titular da conta e não dosacado;

s) As contas de depósitos à ordem não sãoremuneradas, nem o Banco sacado cobra qual-quer quantia ou importância pela sua movimen-tação por meio de cheques;

t) Sendo certo que é sempre o sacador quemestá nas melhores condições, pela posse do livrode módulos, de eliminar e de dominar o risco dafalsificação dos cheques;

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310Direito Comercial BMJ 501 (2000)

u) É, pois, no cheque — convenção e circula-ção — e na teoria da culpa, que se resolve opleito;

v) É unanimemente definido na lei nacional eestrangeira — e na jurisprudência e na doutrinanacional e estrangeira, a aplicação da responsabi-lidade subjectiva ao pagamento de cheques coma assinatura falsificada —, cfr. supra VII, alí-nea b), e, entre outros, acórdãos do SupremoTribunal de Justiça de 12 de Junho de 1974, de25 de Outubro de 1979, de 22 de Maio de 1980e de 16 de Junho de 1981, Boletim do Ministérioda Justiça, n.º 238, pág. 272, n.º 280, pág. 429,n.º 297, pág. 368, e n.º 308, pág. 255, respecti-vamente;

x) O contrato de cheque fica perfeito com arequisição do livro ou módulo de cheques e coma sua entrega. Desta convenção ou contrato re-sultam obrigações recíprocas de diligências ou,melhor, um especial dever de vigilância diligente,que constituem obrigações em sentido técnicoderivadas de um contrato;

z) Da convenção de cheque resulta para oBanco o dever de diligência na verificação da as-sinatura do sacador e para o depositante a obri-gação de, com diligência, vigiar a conta e conser-var, vigiar e guardar cuidadosamente o livro oumódulo de cheques;

a1) A obrigação do sacado consiste em com-parar por semelhança, embora com diligência, sea assinatura do sacado confere com a constanteda respectiva ficha e nada mais;

b1) O proprietário do livro de módulo de che-ques (depositante e titular da conta) é quem, porse encontrarem em seu poder os cheques, se en-contra na melhor posição para evitar a falsifica-ção dos cheques, o que deverá fazer:

— Mediante uma custódia atenta e vigilantedos cheques;

— Por uma vigilância atenta da movimenta-ção da conta para evitar a cobrança continuadade cheques furtados e falsificados;

c1) A comissão nomeada por portaria do Mi-nistério das Finanças de 21 de Fevereiro de 1953para estudar e propor ao Governo um novoregulamento jurídico do cheque, no seu relatório eanteprojecto, publicados em 1955, com o título«Fragilidade de liquidação e económica de meio depagamento pela difusão do cheque», veio acolher

o que o homem comum considerava e consideracomo importando culpa do sacador, a saber:

— Não guardar com segurança e cautelasusuais o cheque ou a caderneta de cheques;

— Confiar o cheque ou a caderneta ou móduloa empregados ou familiar, cuja culpa ou dolo tenhadeterminado ou concorrido para a falsificação;

— Não avisar, em caso de perda ou extravio,ou caso de suspeita de falsificação, o sacado logoque se aperceba destes casos.

E no que toca à matéria de facto:

d1) O Banco recorrido verificou com diligên-cia as assinaturas apostas nos cheques, tanto maisque se encontra provado que aquelas assinaturasconferem no seus traços gerais e essenciais como que consta da ficha de assinaturas da recor-rente, na conta aludida em 12 — resposta ao que-sito 30.º — e que sempre enviou os extractos daconta para a sede da autora/recorrente, sem queesta tenha apresentado qualquer reclamação —resposta ao quesito 31.º;

e1) A recorrente, para além de possuir umaestrutura orgânica inadequada e de atribuir à suaempregada funções incompatíveis, tais como asde pagar e receber, preencher cheques, realizara contabilidade, fiscalizar os movimentos daconta, receber os extractos da mesma, colocar ocarimbo, levantar cheques, etc., também:

— Não fiscalizava os movimentos da conta —resposta ao quesito 22.º;

— Nunca notou qualquer anomalia — res-posta ao quesito 20.º;

— Os gerentes da recorrente não controlavama entrada e a saída de numerário das contas —resposta ao quesito 3.º;

— Confiou os cheques ou módulos de che-ques a um seu empregado, cuja culpa ou dolodeterminaram ou concorreram decisivamente paraa falsificação — alíneas a) a h) da especificação erespostas aos quesitos 3.º; 17.º; 26.º; 29.º; 34.º,entre outros;

Finalmente, e ainda no respeitante à matériade direito:

f1) Foi, pois, a recorrente quem não cumpriuos deveres de diligência que sobre ela impendiame deu causa exclusiva e adequada ao pagamentodos cheques, já que culposamente assim proce-deu — artigo 798.º do Código Civil;

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311 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

g1) Os artigos 1205.º e 1206.º do Código Civilnão têm aplicação no caso vertente, porquantose limitam a regular o depósito irregular;

h1) Não tendo o Banco/recorrido concorridopara o pagamento dos cheques, não violou, nempodia ter violado, o disposto nos artigos 1144.º ,1205.º, n.º 1, e 1206.º do Código Civil, nem osnormativos ínsitos nos artigos 363.º e 406.º doCódigo Comercial;

i1) Ainda que se adopte a posição de que oBanco é sempre responsável, que só por merahipótese se refere, tal responsabilidade seria sem-pre ilidível nos termos do artigo 799.º, n.º 1, doCódigo Civil — cfr. acórdão da Relação de Lis-boa de 2 de Fevereiro de 1979 e de 17 de Marçode 1983, Colectânea de Jurisprudência, 1979,tomo I, pág. 129, e Boletim do Ministério daJustiça, n.º 332, pág. 505, e ainda o acórdão doSupremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de1995, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 450,pág. 416;

j1) O Banco/recorrido provou que o cumpri-mento defeituoso dos cheques não procede deculpa sua, mas da recorrente — cfr. o que melhorconsta dos autos e, sobretudo, da douta sentençae do douto acórdão recorrido;

k1) Além de que o artigo 799.º, n.º 1, não afas-ta o princípio da aquisição processual estabe-lecida no artigo 515.º do Código de Processo Civil;

l1) Sobretudo, está perfeitamente provada aculpa exclusiva da recorrente;

m1) Finalmente, a recorrente sempre respon-derá solidariamente com a Noémia Vermelhudopelo pagamento dos cheques, nos termos conju-gados dos artigos 500.º e 800.º do Código Civil;

n1) O douto acórdão recorrido não violouquaisquer normativos legais e, sobretudo, osínsitos nos artigos 487.º, 769.º, 799.º, 1114.º e1206.º do Código Civil e os dos artigos 363.º e406.º do Código Comercial.

7. Colhidos que foram os vistos legais e nadaobstando cumpre apreciar e decidir.

8. Em matéria de facto relevante deram asinstâncias como provados os seguintes factos:

1 — A firma ora autora teve como sua em-pregada, desde 22 de Janeiro de 1973, NoémiaJacinto Vermelhudo;

2 — A firma autora passou a confiar nela todoo seu serviço de contabilidade;

3 — A Noémia Vermelhudo era quem fazia,em exclusivo, o movimento da autora relativo atodo o serviço de escritório, mormente a conta-bilidade e o pagamento de salários;

4 — Era ela quem recebia e pagava facturas,era ela quem lançava as consequentes saídas eentradas de dinheiro nos talões de controlo dascontas bancárias;

5 — A Noémia Vermelhudo tinha em seu po-der, como responsável pela contabilidade dafirma, todo o expediente relativo ao seu mister —livros de cheques, talões de controlo, extractosde contas bancárias que recebia dos bancos, ca-rimbos da firma, etc.;

6 — A Noémia Vermelhudo era quem estavaencarregada de pedir novos livros de cheques aosbancos;

7 — A Noémia Vermelhudo era quem preen-chia e datava os cheques para pagamentos dafirma, os quais submetia ao gerente da autora,Fernando Ventura de Almeida para que este osassinasse;

8 — Era a Noémia Vermelhudo quem apunha,de seguida, nos cheques o respectivo carimbo dafirma;

9 — O gerente da autora só no momento emque apunha a sua assinatura nos cheques aludi-dos na alínea g) da especificação é que verificavaas quantias que os mesmos titulavam e os res-pectivos destinatários;

10 — Os gerentes da autora não controlavamas entradas e saídas de numerário nas contas ban-cárias de que a empresa era titular, sendo essecontrolo feito exclusivamente pela Noémia Ver-melhudo;

11 — A autora e os seus gerentes confiavamplenamente na sua empregada Noémia JacintoDias Vermelhudo;

12 — A autora foi titular, entre 1975 e 1991,da conta de depósitos à ordem com o n.º 1426151/001 na dependência da Alameda do réu;

13 — Esta conta tinha o n.º 01426151/001, naAgência da Alameda, em Lisboa;

14 — O saldo médio anual dessa conta dedepósitos era de cerca de 1 500 000$00;

15 — Entre Maio de 1986 e Julho de 1991, aempregada da autora Noémia Jacinto Dias Ver-melhudo preencheu e datou, para além dos che-

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312Direito Comercial BMJ 501 (2000)

ques destinados aos pagamentos dos credores daautora, outros 317 cheques cujos montantes vêmdiscriminados no n.º 15 do elenco da matéria defacto que aqui se dá por inteiramente reprodu-zido;

16 — A Noémia Vermelhudo extraiu tais che-ques dos livros de cheques da autora sem conhe-cimento dos gerentes desta;

17 — Tais cheques foram extraídos de váriascadernetas de cheques;

18 — A Noémia Vermelhudo preencheu taischeques e inseriu neles, sem o conhecimento domesmo, uma assinatura semelhante à do gerenteda autora Fernando Ventura de Almeida, decal-cando-a de um documento em seu poder no qualescrevera, pelo seu próprio punho, a respectivaassinatura;

19 — De seguida, a Noémia Vermelhudo apôsnos referidos cheques um carimbo, que tinha nasua posse, com os dizeres «Orlando & Almeida,L.da, O Gerente»;

20 — A Noémia Vermelhudo levantou direc-tamente no balcão da dependência da Alamedado réu três dos cheques referidos sob o n.º 15;

21 — Os restantes cheques foram utilizadospela Noémia Vermelhudo para fazer pagamentosvários, nomeadamente de bens por si adquiridosem diferentes estabelecimentos comerciais;

22 — À excepção dos três cheques aludidosem 20, os restantes vieram a ser depositados emdiversas instituições de crédito, que não o réu,para crédito das contas dos respectivos depo-sitantes nessas instituições;

23 — Em todos os casos mencionados sob osn.os 20, 21 e 22, a Noémia Vermelhudo utilizouem proveito próprio o numerário titulado pelosreferidos cheques;

24 — Através dos cheques referidos em 15, aNoémia Vermelhudo logrou levantar da conta dedepósitos referida sob o n.º 12 a quantia total de15 449 882$00;

25 — A Noémia Vermelhudo conhecia o factoreferido sob o n.º 14;

26 — Entre Maio de 1986 e Julho de 1991, aNoémia Vermelhudo logrou, pelo processo des-crito sob os n.os 15, 16, 17, 18 , 19, 20, 21 e 22,levantar, em média, 150 000$00 a 200 000$00por mês da conta referida sob o n.º 12, sem queos gerentes da autora se apercebessem de talfacto;

27 — O relatório de gestão (da sociedade oraautora) nunca notou qualquer anomalia;

28 — Era a Noémia Vermelhudo quem davatodas as explicações aos contabilistas (da socie-dade ora autora);

29 — Era a Noémia quem fiscalizava os mo-vimentos da conta referida sob o n.º 12;

30 — O réu pagou todos os cheques referidossob o n.º 15;

31 — A assinatura que figura nos chequesaludidos sob o n.º 15, com os dizeres «FernandoVentura de Almeida», confere, nos seus traçosgerais e essenciais, com a que consta da fichade assinaturas da autora na conta aludida em 12;

32 — Cento e vinte e dois (122) daquelescheques têm cruzamento geral vinte (20) cruza-mento especial e seis (6) são nominativos;

33 — O Banco réu sempre enviou os extrac-tos da conta D. O. em causa, com o n.º 1426151/001, para a sede da autora, sem que esta tenhaapresentado qualquer reclamação ou tenha refe-rido não os ter recebido;

34 — Entre Maio de 1986 e Julho de 1991, aautora nunca avisou o réu de qualquer situaçãoanómala, nem deu pela falta de algum dos che-ques referidos sob o n.º 15 e pela falta, na contade depósitos referida em 12, do numerário cor-respondente aos mesmos;

35 — A Noémia Vermelhudo emitiu a declara-ção escrita constante do documento junto a fls.68;

36 — O Banco Totta & Açores não se dispôs,extrajudicialmente, a repor na conta da firma au-tora a quantia que pagou, como se colhe da cartaque constitui o anexo XXIII à petição inicial;

37 — A Noémia Vermelhudo já entregou àautora a quantia de 600 000$00.

Passemos agora ao direito aplicável.

9. Como é sabido, o cheque é um documento— título cambiário — em regra normalizado, àordem ou ao portador, do qual consta uma or-dem dirigida por um cliente ao seu banqueiro,junto do qual é suposto o emitente possuir fun-dos disponíveis, de efectuar um determinadopagamento ao seu legítimo portador, a um ter-ceiro ou até ao próprio mandante; título esse quedeve satisfazer necessariamente os requisitoscontemplados no artigo 1.º da Lei Uniforme Re-

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313 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

lativa ao Cheque sob pena de não produzir efeitocomo cheque (artigo 2.º da mesma lei).

O cheque é sacado sobre um banqueiro quepossua fundos à disposição do sacador e em har-monia com uma convenção expressa ou tácita,segundo a qual o sacador tem o direito de dispordesses fundos por meio de cheque.

Pressupondo porém o cheque a existência,junto do banco, de fundos de que o sacador ouemitente possa dispor (provisão), o certo é queassume autonomia relativamente à relação jurí-dica subjacente à constituição da respectiva pro-visão, surpreendendo-se assim na base da emissãode um cheque duas relações jurídicas distintas: a«relação de provisão» e o «contrato ou conven-ção de cheque».

A relação de provisão pode radicar num de-pósito, numa abertura de crédito, numa contacorrente, num desconto, num depósito, num mú-tuo, etc., mediante o qual se constituirá entre ocliente e a instituição bancária uma relação jurí-dica obrigacional/creditícia. Mas para que se legi-time a emissão do título cambiário torna-se aindanecessário que entre o Banco e o titular da provi-são se celebre o denominado «contrato ou con-venção de cheque» (cfr. artigo 3.º da Lei UniformeRelativa ao Cheque) através do qual a entidadebancária acede a que o cliente/sacador mobilizeos fundos disponíveis com emissão de cheques.

A convenção de cheque pode ser expressa outácita (artigo 3.º do Lei Uniforme Relativa aoCheque), traduzindo-se, nessa segunda hipótese,no facto de o banqueiro pôr uma caderneta decheques à disposição do cliente ou de lhe facultarimpressos para operar a sua requisição, surgindoassim normal e intimamente ligada a um contratode abertura de conta.

A exigência legal da celebração da convençãode cheque encontra a sua justificação no facto dea emissão do cheque constituir um modo formalcorrente, «particularmente rigido de executar umaprestação, cujo cumprimento é muitas vezes exi-gido por um terceiro desconhecido do Banco, eao qual andam ligados inegáveis riscos, tais comoa falsidade das assinaturas, a perda do título, asconsequentes contestações por parte do porta-dor e do detentor. Por isso, a convenção de che-que funda-se também na confiança recíproca daspartes (Banco e titular da provisão) e na serie-dade e correcção que o Banco pode esperar do

titular da conta e este daquele» (cfr., neste sen-tido, António Caeiro e Nogueira Serens, «Res-ponsabilidade do banco apresentante (ou cobra-dor e do banco sacado pelo pagamento de che-ques com endosso falsificado», Revista de Di-reito e Economia, ano IX, n.os 1 e 2, Janeiro/Dezembro de 1983, págs. 53 a 120).

Da convenção decorrem direitos e deveresrecíprocos: o depositante/sacador fica com o di-reito de mobilizar os fundos existentes à sua dis-posição no Banco, através da emissão de che-ques; o sacado obriga-se a pagar até ao limite daprovisão.

Antes pois de celebrada tal convenção, oBanco pode recusar o pagamento de qualquercheque sobre ele sacado, mesmo que o seja porum depositante, sem que dessa recusa advenhaqualquer responsabilidade.

Se o banqueiro/sacado se negar injustifica-damente a pagar um cheque à sua apresentação,nem por isso o portador terá contra ele qualquerdireito, apenas podendo accionar em via de re-gresso os signatários do título: o sacador e oseventuais endossantes e avalistas (artigo 40.º daLei Uniforme Relativa ao Cheque), mas porqueviolou a convenção ou contrato de cheque, o sa-cado deverá indemnizar o sacador por todos osprejuízos que a este advenham da recusa de pa-gamento.

Claro é que o cliente/depositante/sacador seobriga a verificar regularmente o estado da suaconta e a zelar pela boa ordem, conservação eescrituração da sua caderneta de cheques. O maisimportante dos deveres do cliente/depositante ésem dúvida o de guardar cuidadosamente o livroou caderneta de cheques, pondo-a a salvo de apro-priações ilegítimas e a coberto de falsificaçõesda assinatura do titular da conta, obrigando-seainda, no caso de perda ou extravio de qualquercheque, a avisar imediatamente o Banco. Tra-duz-se pois tal obrigação no cumprimento deum dever de diligência, de uma prestação defacto, que, em princípio, deve ser pontualmentesatisfeita pelo próprio devedor.

É contudo sabido que face à complexidadedas tarefas da vida económica hodierna normal-mente organizada em unidades do tipo empresaindividual ou colectiva, o devedor se serve de«auxiliares ou propostos seus no cumprimentodas obrigações correntes, pelo que é comum os

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314Direito Comercial BMJ 501 (2000)

clientes dos bancos em vez de guardarem elespróprios os livros de cheques, os confiarem aempregados de confiança seus subalternos. E emtal quadro é de equacionar também o problemada responsabilidade pelos factos praticados porauxiliares representantes ou subordinados.

Prescreve o Código Civil, no n.º 1 do seu ar-tigo 800.º, que o devedor é responsável perante ocredor pelos actos [...] das pessoas que utilizepara o cumprimento da obrigação, como se taisactos fossem praticados pelo próprio devedor. Aresponsabilidade lançada sobre o devedor abran-ge portanto os actos dos seus auxiliares (manda-tários, procuradores, comissários, depositários,etc.), contanto que o sejam no cumprimento daobrigação» ( cfr. Antunes Varela, Das Obriga-ções em Geral, vol. II , 7.ª ed., Coimbra, 1997,pág. 103). Trata-se de uma verdadeira responsa-bilidade objectiva, na medida em que para ela senão exige culpa do devedor (na escolha das pes-soas, nas instruções para a sua colaboração ou nafiscalização da sua actividade).

Entre os deveres do Banco perante o cliente/sacador avulta, como dever principal, o dever depagamento . Na sequência da celebração do con-trato de cheque, o Banco é obrigado a pagar oscheques apresentados, quando estes forem emi-tidos por clientes, quando para tanto forem uti-lizados os impressos próprios e quando hajaprovisão.

A par deste dever de pagamento, o Banco estávinculado a outros deveres colaterais em relaçãoàquela obrigação primária, como o dever de res-cindir o contrato de cheque em caso de utilizaçãoindevida, o dever de observar a revogação do che-que, o dever de esclarecer um terceiro que recla-me informações sobre essa revogação, o dever deverificar cuidadosamente os cheques que lhe sãoapresentados, o dever de não pagar em dinheiroo cheque para levar em conta, o dever de infor-mar o cliente/sacador sobre o destino e tratamen-to do cheque especialmente sobre a pessoa doapresentante.

Dentre estes deveres ditos colaterais ou aces-sórios destaca-se o de verificar cuidadosamenteos cheques apresentados a pagamento. O sacadodeve, antes de proceder ao pagamento do che-que, tomar as devidas precauções, respeitantesumas ao próprio cheque em si, outras à provisãoe outras ao portador.

Em relação ao cheque propriamente dito, osacado deve verificar a sua regularidade, mediante:

— O exame do impresso e de todos os requi-sitos do cheque;

— A averiguação da regular sucessão de en-dossos (não sendo porém obrigado a verificar aassinatura dos endossantes — artigo 35.º da LeiUniforme Relativa ao Cheque);

— A conferência da assinatura do sacador,comparando-a com o original constante de do-cumento arquivado no banco;

— O controlo da assinatura do sacador é feitomediante a comparação/confronto entre a assi-natura que figura sobre o cheque e o espécimefornecido pelo titular da conta e constante darespectiva «ficha». Na determinação do seu con-teúdo, porém, as exigências não podem ser exa-geradas — «o negócio de cheques é fundamen-talmente um negócio de massas».

Segundo Sofia Galvão (Contrato de Cheque,Lisboa, 1992, pág. 68, «a construção deve serpois fundada em indícios sólidos e significati-vos» como por exemplo:

a) O montante do cheque (se este se revelaexcepcionalmente elevado numa aprecia-ção relativa em função do saldo e da his-tória da conta) deve ver-se aí um motivode suspeita;

b) O balcão de apresentação do cheque (seeste for diferente daquele em que o cliente/sacador tem conta pode existir tambémum motivo de suspeita e deve, em regra,negar-se o pagamento em dinheiro).

Assim, de um modo geral, o Banco cumpre oseu dever de fiscalização quando se convence, demodo que corresponde às exigências do trânsitoem massa, que o cheque, pela sua aparênciaexterior, dá a impressão de ser verdadeiro —ob. cit., pág. 68.

Como o dever de conferência da assinaturaé verdadeiramente absoluto — cfr. ob. cit.,pág. 68 — o Banco só se libertará de responsa-bilidade se conseguir provar que, mesmo cum-prindo escrupulosamente tal dever, não podiater dado pela falsificação, prova essa cujo ónussobre si impende.

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315 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

Não pode ser censurado ao banqueiro não ter,por exemplo, detectado na assinatura do saca-dor, se esta estava bem imitada não integrandoilícito o pagamento de um cheque que tem a apa-rência de regularidade, assim sucedendo quandoa irregularidade e ou a falsificação ou a anomalianão possam evidenciar-se a um primeiro examedo título.

O pagamento será assim ilícito se a assinaturado cheque for muito diferente da entregue pelocliente, e, por maioria de razão, se a ortografia donome não é sequer respeitada, ou se existe adita-mento ou alteração aparente do título. Por outrolado, o exame da assinatura deve ser mais aturadaquando o cheque seja ao portador.

Seja como for, não pode recair sobre o clienteum eventual relaxamento na observância dos ci-tados deveres por parte do Banco, seja ele ditadopor meros objectivos de redução de custos oupor razões de celeridade do tráfico comercial.

Uma vez detectado qualquer indício de anor-malidade acerca da autenticidade do título, de-verá a entidade bancária sobrestar no pagamentoe pedir uma confirmação ao seu cliente. Isto por-que a aparência que justifica a liberação do ban-queiro desaparece em caso de anomalia.

Sustenta José Maria Pires, Direito Bancário,pág. 334, que mesmo na hipótese de a assinaturaaposta no documento e a que consta do espé-cime estarem aparentemente conformes embora,na realidade, tenha havido falsificação, será apli-cável a disciplina do artigo 770.º do Código Civil,que nega eficácia liberatória à prestação feita acredor aparente. Segundo este autor, apenas fa-zendo prova de culpa do cliente na falsificação éque o Banco se poderá exonerar da sua responsa-bilidade. É que — acrescenta o mesmo autor (inibidem) — «o banco depositário assume a res-ponsabilidade pelos danos resultantes de umlevantamento indevido derivado de documentofalsificado, a não ser que [...] possa provar que odepositante agiu com dolo ou negligência» .

Neste último caso (prova de dolo ou negligên-cia do depositante) a responsabilidade deve serrepartida entre o depositante e o banco segundoo grau de culpabilidade de cada um» (ibidem).

Segundo François Grua, Contrats Bancai-res, tome I, Contrats de Services, Paris, 1990,págs. 142 e segs., «deve-se considerar como umaanomalia qualquer indício de natureza a fazer

duvidar que a ordem de pagar que é apresentadaexprime a vontade do cliente do qual ela é su-posto emanar».

«O banqueiro que falta ao seu dever de verifi-cação comete um erro susceptível de desenca-dear a sua responsabilidade». «Se é uma falta deverificação que está na origem do pagamentoirregular, ela desencadeia sem dúvida nenhumaa responsabilidade do banqueiro» — cfr. JackVézian, La responsabilité du banquier en droitprive français, págs. 105 e seguintes.

Porém, «se o banqueiro é em princípio res-ponsável pelo mau pagamento, ele pode todaviadesonerar-se da sua responsabilidade provandouma falta do seu cliente».

Tudo tendo presente que a falta mais comum-mente reprovada ao cliente é a ausência de pre-cauções na vigilância da sua caderneta de cheques;o mais importante dos deveres emergentes (parao cliente/depositante) do contrato ou convençãode cheque é sem dúvida o de guardar cuidadosa-mente o livro ou caderneta de cheques de modo aevitar que alguém dele se apodere facilmente epossa falsificar a assinatura do titular da conta.

O problema da responsabilidade pelos danosdecorrentes do pagamento de cheques falsifica-dos vem sendo, desde há muito, objecto de con-trovérsia doutrinal e jurisprudencial.

Tal responsabilidade decorre, como é evi-dente, da violação, por parte do banqueiro ou dotitular da conta, das obrigações constantes docontrato ou convenção de cheque, devendo emprincípio aqueles ser suportados pelo contraenteque tenha procedido culposamente.

Em Itália, boa parte da doutrina e da jurispru-dência punha a cargo da banca tais prejuízos, àconta do chamado «risco profissional» contrao que se insurgia G. Molle, Contratti Bancari,pág. 461, com o argumento de que no direitoitaliano não existia responsabilidade objectiva,assim propugnando que o risco corresse porconta do cliente/depositante.

Mais recentemente, nesse país, vem grassandoa tendência para pôr o risco a cargo do titular daconta, da qual se fizeram eco António Caeiro eNogueira Serens, ob. cit., pág. 62 (nota), e SofiaGalvão, ob. cit., pág. 69, notas 260 e 261.

A Conferência de Genebra não resolveu exprofesso esta questão, assim relegando para asordens jurídicas nacionais a respectiva solução,

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pelo que não surpreende que a Lei UniformeRelativa ao Cheque seja omissa a tal respeito.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de3 de Março de 1998, Boletim do Ministério daJustiça, n.º 475, pág. 715, segue na peugada dajurisprudência dominante nos últimos anos emPortugal (a responsabilização pela integridade dodepósito impende, em princípio, sobre o depo-sitário/instituição bancária) desde que se não de-monstre a culpa do depositante no irregular levan-tamento — cfr. os arestos citados, quer no textodo acórdão quer na respectiva anotação.

Trata-se da consagração de uma verdadeiraresponsabilidade objectiva das entidades bancá-rias, para o caso de se não provar a culpa dotitular da conta ainda que com louvação em dis-tintos preceitos de lei.

Assim:

— O acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 21 de Maio de 1996, Colectânea de Jurispru-dência, ano IV, tomo III, pág. 82, coloca o risco acargo do depositário sob invocação do artigo 796.ºdo Código Civil, uma vez que o banco passou aser dono do dinheiro depositado;

— Os acórdãos do Supremo Tribunal deJustiça de 19 de Setembro de 1991, processon.º 80 633, e de 26 de Março de 1996, processon.º 87 953, põem também a cargo do depositárioo risco do prejuízo sofrido;

— O acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 23 de Julho de 1985, Boletim do Ministério daJustiça, n.º 349, pág. 533, vai na mesma senda,ainda que sob a invocação do preceituado non.º 2 do artigo 476.º do Código Civil (possibili-dade da repetição da prestação feita a terceiroquando não se tornar liberatória);

— O acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 16 de Junho de 1981, Boletim do Ministérioda Justiça, n.º 308, pág. 255, invoca a previsãodos artigos 769.º e 770.º do Código Civil combase em que o risco é do banqueiro que pagou aquem não devia.

Com a colocação do problema em sede da cul-pa seguiu o acórdão do Supremo Tribunal deJustiça de 10 de Novembro 1993, Colectânea deJurisprudência, ano I, tomo III, pág. 130.

Mas mesmo o pendor de alguma doutrina depôr o risco a cargo do titular da conta vai de parcom o acentuar da forte exigência nos cuidados

de fiscalização a cargo dos bancos, com o pôr aseu cargo o ónus da prova da culpa da outraparte e de não culpa pelo seu lado.

A jurisprudência dos nossos tribunais superi-ores, no que concerne ao dever de vigilância queincumbe ao sacador/depositante, segue no sen-tido acabado de expor.

Assim, por exemplo, no acórdão deste Su-premo Tribunal de Justiça de 18 de Março de1975 considerou-se que, «faltando o depositanteaos seus deveres e obrigações resultantes da con-venção de cheque, não conservando convenien-temente resguardados os respectivos livros epermitindo, portanto, que um seu empregadodeles se apropriasse e falsificasse as assinaturas,e provando-se ainda que não controlou a suaemissão nem examinou tempestivamente os ex-tractos de conta enviados pelo Banco, só ele éresponsável pelos prejuízos dessa violação».

Deve mesmo impender sobre o cliente o ónusde provar que tomou as providências adequadaspara a guarda dos cheques com segurança.

Pode pois — e deve — ser censurado aocliente ter concedido a sua confiança com evi-dente ligeireza a um proposto infiel ou ter sidomanifestamente negligente na vigilância deste.

No citado acórdão do Supremo Tribunal deJustiça de 3 de Março de 1998, Boletim do Mi-nistério da Justiça, n.º 475, pág. 710, acolhe-se aresponsabilidade do Banco pelo pagamento decheque falsificado, sempre que este não consigaprovar que o depositante agiu com culpa, ou seja,que terá de provar que, mesmo verificando cui-dadosamente a assinatura aposta no cheque, nãopodia ter dado pela sua falsificação, recaindosobre si o ónus da prova da culpa da outra partee de não culpa pelo seu lado.

No sentido de que, em princípio, desde quenão se verifique actuação irregular quer, do depo-sitante, quer do depositário, propiciadora dosurgimento de irregularidades, a responsabili-dade pela integridade do depósito impende so-bre o depositário, pelo que, não obstante a seme-lhança entre a assinatura aposta no cheque, noespaço reservado ao sacador e a assinatura dodepositante existente nos ficheiros do banco sa-cado, persiste a responsabilidade deste pela ma-nutenção do valor de conta do depositante, desdeque se não demonstre a culpa deste no irregularlevantamento da quantia depositada, vide o

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317 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21de Maio de 1996, Colectânea de Jurisprudência,1996, tomo II, pág. 82).

Tal como bem se obtempera na sentença de1.ª instância, é de seguir na esteira da jurispru-dência dominante , segundo a qual sobre o Bancodeve, por princípio, impender a presunção deculpa consagrada, no âmbito da responsabili-dade contratual, pelo artigo 799.º, n.º 1, do Có-digo Civil, pelo que uma tríplice situação po-derá ocorrer:

a) Ou o banco logra demonstrar que agiu, nocaso concreto, com a diligência que lheera exigível e, assim, afasta a citada pre-sunção legal;

b) Ou o banco faz apenas a prova da culpado cliente/lesado (sem conseguir, todavia,demonstrar que agiu com a prudência quelhe era exigível) e tanto basta para se exi-mir ao dever de indemnizar por força dodisposto no artigo 750.º, n.º 2, do CódigoCivil (porque a mencionada presunção deculpa a cargo do Banco é afastada pelamera prova da culpa do lesado);

c) Ou se prova a negligência do Banco paraalém da presunção de culpa que sobre estejá impende, mas faz-se igualmente provada negligência do cliente/depositante, de-monstrando-se, portanto, que ambos con-correram para a produção do resultado —caso em que a responsabilidade indemni-zatória pelos danos sofridos poderá serrepartida entre ambos, de harmonia como preceituado no citado n.º 1 do artigo570.º do Código Civil.

A regra será pois — repete-se — a de que, emprincípio, devem ser os bancos depositários aarcar com os prejuízos decorrentes do paga-mento de cheques com a assinatura falsificada dosacador, podendo porém aqueles subtrair-se atal responsabilidade se conseguirem provar queagiram sem culpa e que foi a conduta negligentedo depositante que contribuiu decisivamentepara o irregular pagamento verificado. Cfr., nestesentido, Pedro Fuzeta da Ponte, «Da problemá-tica da responsabilidade civil dos bancos decor-rente do pagamento de cheques com assinaturasfalsificadas», estudo publicado na Revista da

Banca, n.º 31, Julho/Setembro de 1994, págs. 65a 81.

Se, portanto, o prejuízo resultante do paga-mento de cheques falsos foi devido exclusiva-mente a culpa do empregado do depositante, aquem este confiou a utilização do livro de che-ques, e a culpa se verificar no cumprimento daobrigação, tal bastará para que o depositante res-ponda por esse prejuízo.

Ora, no caso dos autos, o Banco réu logroudemonstrar, por um lado, que os seus funcioná-rios não agiram imprudentemente ao procede-rem à verificação das assinaturas apostas nos326 cheques sacados sobre a conta de depósitosde que a autora era titular na agência do Bancoréu da Alameda mas assinados por outrem quenão pelo respectivo gerente — já que a assina-tura que figura nesses cheques com os dizeres«Fernando Ventura de Almeida (o gerente da au-tora)» confere, nos seus traços gerais e essen-ciais, com a que consta da ficha de assinaturas daautora naquela conta, sendo certo que em todosesses cheques estava igualmente aposto o ca-rimbo da firma da autora; e, por outro lado, quefoi a autora quem não cumpriu o dever que sobreela recaía de guardar com segurança os módulosde cheques que lhe foram entregues pelo réu —já que se provou que ela confiou as cadernetas decheques a uma sua empregada na qual os seusgerentes depositavam plena confiança, a qual foia autora material da falsificação das assinaturasapostas nos mencionados cheques, e que nãocontrolou diligentemente o uso dado pela refe-rida empregada aos mesmos cheques, nem os mo-vimentos da respectiva conta de depósitos,apesar de o Banco réu lhe haver sempre enviadopara a sua sede os correspondentes extractos.

Provado ficou, outrossim, que a recorrente —para além de possuir uma estrutura orgânica ina-dequada e de atribuir à sua empregada funçõesincompatíveis, tais como as de pagar e receber,preencher cheques, realizar a contabilidade, fis-calizar os movimentos da conta, receber os ex-tractos da mesma, colocar o carimbo, levantarcheques, etc. —, também não fiscalizava os mo-vimentos da conta, nunca notou qualquer ano-malia, os seus gerentes não controlavam a entradae a saída de numerário das contas e, finalmente,confiou os cheques ou módulos de cheques a umseu empregado, cuja culpa ou dolo determinaram

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318Direito Comercial BMJ 501 (2000)

ou concorreram decisivamente para a falsifi-cação.

Na realidade, durante o período de mais de5 anos que mediou entre Maio de 1986 e Julhode 1991, a autora nunca avisou o Banco réu dequalquer situação anómala, nem deu pela falta dealgum dos cheques referidos sob o n.º 15 e pelafalta, na conta de depósitos referida em 12, donumerário correspondente aos mesmos.

Temos pois de concluir — utilizando um cri-tério abstracto de apreciação da culpa, tomandopor padrão a diligência típica do bom pai de fa-mília ou do homem médio que é o suposto serquerido pela ordem jurídica — ter sido a recor-rente quem não cumpriu os deveres de diligênciaque sobre si impediam e deu causa exclusiva eadequada ao pagamento dos cheques, já queculposamente assim procedeu — artigo 798.º doCódigo Civil.

Não tendo o Banco/recorrido dado azo aopagamento dos cheques falsificados em apreço,não violou, nem podia ter violado, o dispostonos artigos 1144.º, 1205.º e 1206.º do CódigoCivil, nem os normativos insitos nos artigos 363.ºe 406.º do Código Comercial, contra o que pre-tende a recorrente.

Mas ainda que se adoptasse a posição de queo Banco seria sempre responsável, tal responsa-bilidade sempre ilidível tal como se considerouv. g., no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

de 3 de Outubro de 1995, Boletim do Ministériode Justiça, n.º 450, pág. 416.

E encontrando-se provado que o indevidopagamento dos aludidos 326 cheques se ficou adever exclusivamente à conduta negligente daautora, ora recorrente, e não a qualquer compor-tamento censurável por parte da ré, ora recor-rida, terá de ser aquela e não este a suportar noseu património as consequências do irregular pa-gamento verificado.

A culpa do lesado — porque a responsabili-dade do Banco se basearia numa simples presun-ção de culpa — exclui o dever de indemnizar —cfr. n.º 2 do citado artigo 570.º do Código Civil.

10. Assim havendo decidido neste pendor,não merece o acórdão recorrido — confirmativoda densamente fundamentada sentença de 1.ª ins-tância — qualquer censura.

11. Decisão

Em face do exposto, decidem negar a revistae confirmar, em consequência, o acórdão recor-rido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 9 de Novembro de 2000.

Ferreira de Almeida (Relator) — AzevedoMoura Cruz — Barata Figueira.

DECISÕES IMPUGNADAS:

I — Sentença de 25 de Março de 1999 da 2.ª Secção do 15.º Juízo Cível de Lisboa, processon.º 693/94.

II — Acórdão de 29 de Fevereiro de 2000 da 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,processo n.º 7040/99.

O problema da responsabilidade civil pelos danos decorrentes do pagamento de cheques falsifi-cados vem sendo, desde há muito, objecto de controvérsia doutrinal e jurisprudencial, como, de resto,dá conta o acórdão ora em anotação.

Tal responsabilidade decorre, como é sabido, da violação, por parte do banqueiro ou do titular daconta, das obrigações constantes do contrato ou convenção de cheque, devendo, em princípio, aquelesdanos ser suportados pelo contraente que tenha procedido culposamente.

A jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido do decidido nopresente aresto, ou seja, o de que a responsabilização pela integridade do depósito impende, emprincípio, sobre o depositário/instituição bancária desde que se não demonstre a culpa do depositanteno irregular levantamento. Trata-se de uma verdadeira responsabilidade objectiva das entidades ban-

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319 Direito ComercialBMJ 501 (2000)

cárias, para o caso de se não provar a culpa do titular da conta, ainda que com fundamento em diversospreceitos legais.

Neste sentido podem consultar-se, para além do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18de Março de 1975, citado no texto, também os acórdãos do mesmo Supremo Tribunal de 16 de Junhode 1981, Boletim, n.º 308, pág. 255; de 23 de Julho de 1985, Boletim, n.º 349, pág. 533; de 19 deSetembro de 1991, no processo n.º 80 633; de 15 de Janeiro de 1992, Boletim, n.º 413, pág. 496; de 19de Outubro de 1993, Boletim, n.º 430, pág. 466; de 12 de Janeiro de 1994, Boletim, n.º 433, pág. 547;de 3 de Outubro de 1995, Boletim, n.º 450, pág. 416; de 26 de Março de 1996, processo n.º 87 953;de 21 de Maio de 1996, Colectânea de Jurisprudência, ano IV, tomo II, pág. 82, e Boletim, n.º 457,pág. 343, e de 3 de Março de 1998, Boletim, n.º 475, pág. 715.

Colocando o problema em sede da culpa, decidiu o Supremo no acórdão de 10 de Novembro de1993, Colectânea de Jurisprudência, ano I, tomo III, pág. 130.

De referir que mesmo a doutrina que se orienta no sentido de pôr o risco a cargo do titular daconta vai, de par com o acentuar da forte exigência nos cuidados de fiscalização a cargo dos bancos,com o pôr a seu cargo o ónus da prova da culpa da outra parte e de não culpa pelo seu lado.

Na doutrina, e com interesse para a temática tratada no acórdão em anotação, vejam-se:

António Caeiro e Nogueira Serens, «Responsabilidade do banco apresentante (oucobrador) e do banco sacado pelo pagamento de cheques com endosso falsificado»,Revista de Direito e Economia, ano IX, n.os 1 e 2, Janeiro/Dezembro de 1983, págs. 53a 120;

Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Coimbra, 1997, pág. 103;Sofia Galvão, Contrato de Cheque, 1992, págs. 68 e seguintes;José Maria Pires, Direito Bancário, págs. 334 e seguintes;Pedro Fuzeta da Ponte, «Da problemática da responsabilidade civil dos bancos

decorrente do pagamento de cheques com assinaturas falsificadas», estudo publicado naRevista da Banca, n.º 31, Julho/Setembro de 1994, págs. 65 a 81;

A. Ferrer Correia e António Caeiro, «Recusa do pagamento de cheque pelo bancosacado; responsabilidade do banco face ao portador», Revista de Direito e Economia,ano IV, n.º 2, págs. 457 e seguintes;

Moitinho de Almeida, Responsabilidade Civil dos Bancos pelo Pagamento de Che-ques Falsificados, Coimbra Editora, 1982;

Manuel Gonçalves, «Responsabilidade civil resultante do pagamento de chequesfalsificados», Revista do Ministério Público, ano 10.º, n.º 39, págs. 63 e seguintes;

Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 5.ª ed., págs. 197 e seguintes;A. H. Leal dos Santos, O Cheque e a Sua Utilização, edição da Imprensa Nacional-

-Casa da Moeda;Filinto Elísio, O Direito, págs. 110 e seguintes;François Grua, Contrats Bancaires, tomo I, Contrats de Services, Paris, 1990,

págs. 142 e seguintes;Jack Vézian, La Responsabilité du Banquier en Droit Privé Français, págs. 105 e

seguintes;G. Molle, Contratti Bancari, págs. 461 e seguintes;Antonio Cabanillas, «La Responsabilidad por infracción de los deberes profesionales

o de Lex Artis y la Carga de la Prueba: Comentario a la Sentencia del Tribunal Supremode 24 de Mayo de 1990», Annuario de Derecho Civil, XLIV, II, Madrid, 1991;

Fernando Pantaleón, «Las nuevas bases de la responsabilidad contractual», Annuariode Derecho Civil, XLIV, IV, Madrid, 1993.

(A. M. S. S)

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SUMÁRIOS

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323 Supremo Tribunal AdministrativoBMJ 501 (2000)

Direito de reversão de bem expro-priado — Princípio tempus regitactum — Indeferimento tácito —Recurso para o pleno da 1.ª Secção

I — O âmbito dos poderes de cognição dopleno da 1.ª Secção, quando decide em segundograu de jurisdição cinge-se à matéria de direito(artigo 21.º, n.º 3, do Estatuto dos Tribunais Ad-ministrativos e Fiscais).

II — O princípio tempus regit actum quemanda aferir, em regra, a legalidade do actoadministrativo pela situação de facto e de direitoexistente à data da sua prolação, no caso de actoexpresso, não pode deixar de valer também paraas hipóteses de indeferimento tácito, consideran-do-se relevante para o efeito, não o momento daformulação da pretensão mas, pelo menos, omomento em que legalmente se considera for-mado aquele indeferimento tácito.

III — Assim, não pode afirmar-se a legali-dade do indeferimento tácito de pedido de rever-são apenas com base na constatação da prema-turidade da apresentação desse pedido (formu-lado em 4 de Março de 1994, 3 dias antes de secompletar o período de 2 anos de que o bene-ficiário da expropriação dispunha para aplicaro bem expropriado a fim determinante da expro-priação) pois tal pedido foi mantido actuanteperante a Administração até ao momento em que,de acordo com a lei, se considerou tacitamenteindeferido e, nesse momento, já aquele períodose havia esgotado.

Acórdão de 24 de Novembro de 2000Recurso n.º 37 649

Isabel Jovita (Relatora) — Cruz Rodrigues —Fernando Samagaio — Simões Redinha — Gouveiae Melo — Adelino Lopes.

Recurso contencioso — Alegações —Obrigatoriedade da sua apresentaçãopelo recorrente — Inconstituciona-lidade do artigo 24.º, alínea b), da Leide Processo nos Tribunais Adminis-trativos (não)

I — O artigo 67.º do Regulamento do Supre-mo Tribunal Administrativo impõe em recursosde actos da administração estadual a apresenta-ção de alegações pelo recorrente depois da res-posta ou de transcorrido o prazo para o efeito.

II — A petição de recurso não pode desempe-nhar tal função — mesmo através do princípiodo aproveitamento dos actos processuais —,ainda que contenha conclusões.

III — É que tais peças situam-se em fasesbem distintas do recurso contencioso, com fun-ções muito diversas.

IV — Na petição de recurso desenha-se alide, com indicação dos sujeito, causa de pedir epedido, vinculando-se o juiz e propiciando-seum vero exercício do contraditório.

V — Através das alegações pretendeu olegislador que o recorrente tome posição expres-sa sobre o recurso, nos seus aspectos factuais ejurídicos, após o decurso das fases do contradi-tório e da instrução, podendo aí, inclusive, redu-zir e, em certos casos, ampliar o leque dos víciosdo acto.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

I

TRIBUNAL PLENO

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324 BMJ 501 (2000)Supremo Tribunal Administrativo

VI — Aliás, o silêncio do recorrente represen-taria nestas circunstâncias um gesto equívoco.

VII — O artigo 24.º, alínea b), da Lei deProcesso nos Tribunais Administrativos não fereo disposto no artigo 112.º, n.º 6, da Constituiçãoda República Portuguesa, ao remeter para oRegulamento do Supremo Tribunal Administra-tivo.

VIII — Na verdade, é a própria Lei de Pro-cesso nos Tribunais Administrativos que logoconsagra a força do preexistente Regulamentodo Supremo Tribunal Administrativo, que cons-titui lei em sentido formal ( Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho).

Acórdão de 24 de Novembro de 2000Recurso n.º 44 139

Ferreira Neto (Relator) — Cruz Rodrigues —Fernando Samagaio — Azevedo Moreira — SimõesRedinha — Rui Pinheiro — Anselmo Rodrigues.

II

1.ª SECÇÃO

Acto administrativo — Deliberaçãomunicipal de reversão — Recursocontencioso — Meio processualidóneo

I — Constitui acto administrativo a delibera-ção camarária que unilateral e autoritariamentedeterminou a reversão para o património muni-cipal de lote anteriormente alienado ao recor-rente.

II — Assim sendo, o meio processual idóneopara a sua impugnação pelo particular lesado éo recurso contencioso.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 142

Abel Atanásio (Relator) — Simões Oliveira —Anselmo Rodrigues.

Âmbito do recurso jurisdicional —Nulidade de sentença — Omissão depronúncia — Contrato de direitoprivado — Acto destacável

I — Deve improceder o recurso jurisdicionalinterposto de decisão do Tribunal Administra-tivo Central que rejeitou, por irrecorribilidade,o recurso contencioso de actos da Administra-ção, quando, nas conclusões da respectiva ale-gação, o recorrente volta a insistir nos vícios doacto impugnado, relativamente aos quais, porvirtude daquela rejeição liminar, não houve qual-quer pronúncia judicial.

II — Não se verifica omissão de pronúnciaprevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º doCódigo de Processo Civil se a sentença consi-dera procedente a questão prévia da irrecorribi1i-dade dos actos e rejeita o recurso e, por isso,não conhece dos vícios imputados aos referidosactos.

III — Uma deliberação camarária que cor-responde ao exercício pela Câmara Municipalde um direito contratual, não configurando oexercício de um autónomo poder administra-tivo, ainda que inserido na execução de um con-trato de direito privado, não reveste a naturezade acto administrativo destacável para efeitosde impugnação contenciosa.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 454

A. Macedo Almeida (Relator) — Nuno Sal-gado — Santos Botelho.

Apreciação do ruído de estabeleci-mento industrial — Delimitação doâmbito do recurso jurisdicional —Conclusões da alegação do recurso

I — É através das conclusões da alegação dorecorrente que é delimitado objectivamente oâmbito do recurso (artigos 684.º, n.º 3, e 690.º,n.º 1, do Código de Processo Civil, aqui aplicá-vel ex vi dos artigos 1.º e 102.º da Lei de Pro-cesso nos Tribunais Administrativos), visto que

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325 Supremo Tribunal AdministrativoBMJ 501 (2000)

aquelas se destinam a resumir para o tribunalad quem os fundamentos daquele, ou seja, asquestões a decidir e das razões porque devemser decididas em determinado sentido, pelo quetudo o que fique para aquém de tal objectivo édeficiente ou impertinente.

II — Os recursos jurisdicionais visam modi-ficar as decisões recorridas e não criar decisõessobre matéria nova (artigos 676.º, n.º 1, e 684.º,n.º 3, do Código de Processo Civil), não sendo,assim, lícito às partes suscitar questões que nãotenham sido objecto das decisões impugnadas,pelo que o tribunal de recurso não pode pronun-ciar-se sobre questões novas não decididas nosarestos recorridos, excepto nas situações em quea lei expressamente determine o contrário ou emque a matéria é de conhecimento oficioso.

III — De acordo com o preceituado nas dis-posições combinadas dos artigos 676.º, n.º 1,660.º, n.os 2, 2.ª parte, e 3, 684.º, n.º 2, 2.ª parte,e 690.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Civil,aqui aplicável ex vi do artigo 102.º da Lei deProcesso nos Tribunais Administrativos, o re-curso jurisdicional tem por objecto a sentençarecorrida e não o acto administrativo de cujorecurso contencioso aquela conheceu.

IV — Deste modo, improcede o recurso juris-dicional em cujas conclusões da alegação o re-corrente, ou se limitou a reproduzir o já alegadono recurso contencioso, ou a invocar novas ques-tões não alegadas na petição inicial daquele re-curso e que, por conseguinte, nem sequer foramapreciadas na sentença recorrida, e não arguiuqualquer vício ou erro de julgamento destadecisão.

Acórdão de 23 de Novembro de 2000Recurso n.º 43 299

Nuno Salgado (Relator) — Anselmo Rodri-gues — Isabel Jovita.

Cartas de condução de veículoautomóvel — Amnistia — Prazode caducidade

I — As cartas de condução de veículo auto-móvel, quando inicialmente emitidas a favor dequem não seja titular de habilitação legal de con-duzir, têm carácter provisório e só se convertem

em definitivas após o decurso de dos dois pri-meiros anos do seu período de validade sem queao seu titular haja sido aplicada sanção de inibi-ção de conduzir (artigo 125.º, n.º 3, do Códigoda Estrada, na sua versão antes do Decreto-Lein.º 2/98, de 3 de Janeiro, e actualmente artigo122.º, n.º 4).

II — A aplicação da sanção de inibição deconduzir ao titular de carta de condução comcarácter provisório implica caducidade da res-pectiva carta (ibidem, n.º 4).

III — A caducidade referida em II mantém--se mesmo que as infracções que determinarama inibição de conduzir venham a ser posterior-mente amnistiadas.

IV — As leis de amnistia, como providênciasde excepção que são, devem interpretar-se e apli-car-se nos seus precisos termos, sem amplia-ções nem restrições que nelas não venhamexpressas, ou seja, deve fazer-se sempre nos es-tritos limites da lei que a conceder.

V — O decurso do prazo, na caducidade,extingue prematuramente a eficácia do direito ea possibilidade de o realizar, ou seja, determinaa sua resolução, o morrer do direito, que seopera, ipso jure, de maneira directa e automática.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Recurso n.º 45 902

Nuno Salgado (Relator) — Vaz Rebordão —Gonçalves Loureiro.

Cemitérios — Transferência dejazigo — Reposição com alterações —Motivação posterior ao acto

I — A concessão de terreno em cemitério pa-roquial para a edificação e aproveitamento deum jazigo é uma das modalidades de utilizaçãodo domínio público pelos particulares.

II — As concessões deste género apresentamum carácter de perpetuidade, por forma a que autilização dos jazigos acompanhe a continui-dade das famílias e o sentimento de piedade, res-peito e veneração que nos seus membros suces-sivos se vão actualizando.

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326 BMJ 501 (2000)Supremo Tribunal Administrativo

III — As razões afectivas que explicam essavocação de perpetuidade fazem com que essasconcessões persistam no caso de mudança docemitério para um outro lugar, incumbindo àAdministração realizar a transferência dos res-tos mortais e dos elementos construtivos e orna-mentais existentes no antigo cemitério.

IV — Ao realizar a transferência desses ele-mentos, a Administração pode atender a quais-quer razões de interesse público, relacionadascom imperativos sanitários, estéticos, econó-micos ou de segurança, que imponham a intro-dução de modificações na integralidade originalde um jazigo, com vista a adaptá-lo minima-mente às novas circunstâncias.

V — Se um acto administrativo determinouque a reposição de um jazigo num novo cemité-rio respeitasse a traça exterior original, mas queo seu interior apresentasse a inovação de serreconstruído em betão e ferro, e na fundamen-tação do acto que se deverá discernir se a mu-dança a introduzir na estrutura e na configura-ção do jazigo é justificada à luz dos imperativosreferidos em IV.

VI — Carecendo o acto de fundamentação,cujo vício de forma não foi arguido, não éadmissível avaliar da justificação daquela mu-dança através do alegado pela Administraçãoao longo do recurso contencioso, pois isso equi-valeria a atender a uma fundamentação poste-rior ao acto, a qual é, por natureza, irrelevante.

VII — Ignorando-se as razões em que o actofundou a imposição de alterações no jazigo, eporque ao interessado na sua anulação incum-bia demonstrar que os motivos do acto eraminjustificáveis, tem de se concluir pela não veri-ficação de erro nos pressupostos de direito, de-rivado da ilegitimidade dessas razões.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 025

Madeira dos Santos (Relator) — Abel Ataná-sio— Cruz Rodrigues (vencido).

Competência do Supremo TribunalAdministrativo — Matéria relativa aofuncionalismo público — Coman-dante das Forças de Segurança deMacau

I — Cabe ao Supremo Tribunal Administra-tivo, pela Secção do Contencioso Administra-tivo, nos termos do artigo 26.º, n.º 1, alínea c),do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fis-cais, a competência para o conhecimento do re-curso contencioso interposto do despacho doSecretário de Estado da Presidência do Conse-lho de Ministros que indeferiu requerimento dorecorrente a pedir que lhe fosse processado epago o subsídio de reintegração dos titulares decargos políticos, previsto no artigo 31.º da Lein.º 4/85, de 9 de Abril, a que se julga com direito,em virtude de ter exercido as funções de coman-dante-geral das Forças de Segurança de Macau,cargo legalmente equiparado ao de secretário--adjunto do Governo.

II — Na pretensão do recorrente, tal como amesma se mostra configurada na petição de re-curso, está em causa o direito a uma remunera-ção devida aos titulares de cargos políticos, apósa cessação destes e por causa do exercício des-ses cargos, pelo que a apreciação da referidapretensão em nada interfere com a relação jurí-dica de emprego que ele detinha enquanto mili-tar de carreira, antes depende, exclusivamente,da verificação ou não de determinados pressu-postos de todo alheios à referida relação de em-prego ou ao estatuto jurídico da função pública.

III — Só é lesivo e contenciosamente recorrível(artigos 25.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tri-bunais Administrativos e 268.º, n.º 4, da Consti-tuição da República Portuguesa) o acto adminis-trativo que contenha uma decisão final da Admi-nistração, definindo a situação jurídica concretado interessado.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Recurso n.º 45 617

Pais Borges (Relator) — Macedo de Almeida —João Cordeiro.

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327 Supremo Tribunal AdministrativoBMJ 501 (2000)

Despejo administrativo (artigo 8.º doDecreto-Lei n.º 23 465, de 18 deJaneiro de 1934) — Ocupação nãotitulada de prédio do Estado — Usur-pação de poder

I — Não pode ser nulo, por usurpação depoder, o acto administrativo que, fundando-seem norma vigente e conforme à Constituição,exercite uma conduta cuja autoria seja atribuídaà Administração por esse mesmo preceito.

II — Assim, e ao abrigo do disposto no ar-tigo 8.º do Decreto-Lei n.º 23 465, a Administra-ção não necessita de recorrer aos tribunaiscomuns para exigir a devolução ao Estado deum seu prédio ocupado sem título, podendo im-por essa entrega autoritariamente, ainda que aocupação surgisse na sequência da caducidadede um contrato de arrendamento primitiva-mente celebrado entre particulares.

III — O direito a novo arrendamento, pre-visto nos artigos 90.º e seguintes do Regime doArrendamento Urbano, não se aplica aos arren-damentos de prédios do Estado, dado o dispostono artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do mesmo diploma.

IV — O artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 507-A/79, de 24 de Dezembro, estabelece que «são nu-los e de nenhum efeito» os contratos de arrenda-mento de bens imóveis do domínio privado doEstado que não sejam precedidos de autoriza-ção do director-geral do Património e que senão realizem mediante hasta pública, salvo oscasos especiais em que o Ministro das Finanças,dispensando a hasta pública, fixe a importânciada renda ou indique o critério do seu cálculo.

V — Ocorrida, por morte do locatário, a ca-ducidade do arrendamento de um prédio do Es-tado, a sua ocupação por quem com aquelehabitara não se mostra titulada, por via de ale-gados direitos ao arrendamento ou a um novoarrendamento, se a Administração, sabedoradaquele óbito, se limitou a aceitar da ocupanteas rendas relativas ao imóvel.

VI — Assim, a ordem de desocupação doprédio, dirigida a essa ocupante, não enfermoude erro num seu pressuposto de direito ao consi-derar que a detenção do prédio carecia de títuloque a legitimasse.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 098

Madeira dos Santos (Relator) — Cruz Rodri-gues — Abel Atanásio.

Empreitada de obras públicas —Recepção definitiva — Prazo degarantia — Auto de recepção provi-sória — Falsidade de documentos —Articulado superveniente — Com-pensação — Litigância de má fé

I — Os articulados supervenientes destinam--se à aquisição dos factos posteriores, ou de co-nhecimento posterior, ao encerramento da fasedos articulados que interessem aos fundamen-tos da acção ou da defesa, não à prova e con-traprova de factos anteriormente alegados.

II — As normas de contagem do período degarantia resultantes dos artigos 191.º, n.º 4, e193.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48 871, de 19 deFevereiro de 1969, tinham natureza supletiva,podendo ser afastadas pelo estipulado na escri-tura e nos elementos para que esta remeta, desig-nadamente o caderno de encargos.

III — O incidente de falsidade regulado noartigos 360.º e seguintes do Código de ProcessoCivil, na redacção anterior à reforma intro-duzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 deDezembro, e Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 deSetembro, só era admissível no âmbito da forçaprobatória plena do documento arguido defalso.

IV — A declaração contida no auto de recep-ção provisória de que as obras se encontramexecutadas em conformidade com as cláusulascontratuais encerra um mero juízo pessoal, su-jeito ao princípio da livre apreciação pelo juiz,nos termos do artigo 371.º, n.º 1, 2.ª parte, doCódigo Civil.

V — O decaimento em incidente de falsidade,cuja dedução ficou a dever-se a um erro de in-terpretação jurídica e não a propósitos dilatóriosou de alteração dos factos, não justifica a conde-nação do requerente em multa como litigante demá fé.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Processo n.º 45 713

Vítor Gomes (Relator) — Pais Borges — NunoSalgado.

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328 BMJ 501 (2000)Supremo Tribunal Administrativo

Execução de julgado — Recons-tituição de carreira

I — A execução dos julgados anulatórios con-siste na extracção das consequências da ilegali-dade detectada, repondo-se a ordem jurídicaferida pelo acto anulado de modo a reconstituir,com actualidade, a situação que hipoteticamenteexistiria se, na vez do acto ilegal, tivesse sidopraticado um acto legal.

II — Se o acto anulado afectou o normal de-senvolvimento da carreira de um funcionário,impõe-se reconstituí-la, reassumindo-se tudo oque nela seguramente ocorreria, na hipótese daordem jurídica nunca ter sido violada.

III — A reconstituição da carreira de umafuncionária que foi excluída de um concurso porentão carecer, devido ao acto anulado, da cate-goria indispensável para concorrer, não podeprescindir da consideração de que, não fora oacto ilegal, ela seria admitida ao dito concurso.

IV — Nesse género de casos, e como a sim-ples admissão a um concurso não garante quenele se logre êxito, pode a carreira dos funcioná-rios reconstituir-se através da sua candidaturaa um concurso similar futuro, atribuindo-se aoeventual provimento efeitos retrotraídos à datados provimentos resultantes do concurso ante-rior.

V — A solução dita em IV é impossível seentretanto a funcionária se aposentou, pelo quea situação de aposentação constitui, nessaparte, uma causa legítima de inexecução do jul-gado anulatório.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Processo n.º 28 127-A

J. A. Madeira dos Santos (Relator) — CruzRodrigues — Abel Atanásio.

Expropriação por utilidade pública —Competência — Urgência —Fundamentação — Audiência

I — Inscrevendo-se o procedimento comvista à declaração de utilidade pública da expro-priação de certos terrenos no âmbito das compe-tências e atribuições cometidas à DGOTDU,

integrada no Ministério do Planeamento e daAdministração do Território, que, por força don.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 23/96, de20 de Março, passou a estar integrado no Mi-nistério do Equipamento, do Planeamento e daAdministração do Território, compete ao res-pectivo ministro a apreciação final do processoexpropriativo (cfr. artigo 11.º do Código dasExpropriações).

II — Quando no artigo 11.º do Código dasExpropriações se alude a ministro, não se pre-tende tomar qualquer posição quanto à questãoda divisão de competências entre o ministro e osecretário de Estado, antes sim definir que é com-petente para a prática do acto em causa o órgãosuperior do «departamento competente para aapreciação final do processo», como o própriotexto do citado artigo 11.º logo o inculca, peloque tendo o Ministro do Equipamento, do Plane-amento e da Administração do Território dele-gado no Secretário de Estado da AdministraçãoLocal e do Ordenamento do Território compe-tência para despachar os assuntos relativos aoCódigo das Expropriações, deve concluir-se queo acto expropriativo praticado pelo Secretáriode Estado da Administração Local e do Ordena-mento do Território não se mostra inquinado dovício de incompetência.

III — Não é impeditivo da atribuição do ca-rácter de urgência à expropriação para obrasde interesse público, a que se refere o artigo 13.ºdo Código das Expropriações, o facto de o pro-jecto relativo às mesmas obras ter já alguns anos,desde que a urgência na execução da obra a queo terreno expropriado se destina e os respecti-vos fins de interesse público se mostrem expres-samente enunciados (e justificados) na infor-mação em que se baseou o acto, bem como nou-tros elementos procedimentais.

IV — Não deve proceder a violação do prin-cípio da proporcionalidade se na informação emque se baseou o A. C. I., a Administração põe emevidência a necessidade e utilidade da expro-priação em causa para a prossecução do inte-resse público visado com a realização da obrarespectiva, e se o recorrente não demonstrarque relativamente à solução corporizada no acto(a qual está em consonância com o previsto noPROT — Algarve e PDM de Faro), aquele inte-resse público seria igualmente satisfeito com o

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329 Supremo Tribunal AdministrativoBMJ 501 (2000)

mesmo grau de eficácia e adequação com a rea-lização da obra noutro local.

V — Tendo em vista as disposições conju-gadas da alínea h) do n.º 2 do artigo 12.º, n.º 4do artigo 13.º e do artigo 14.º, e o que decorredo n.º 1 do artigo 2.º, todos do Código das Ex-propriações, e dado que como justificação dopedido de declaração de utilidade pública ur-gente da expropriação do terreno em causa fo-ram invocadas circunstâncias (nomeadamentea necessidade imperiosa da execução da obra aque o prédio expropriando se destinava) demons-trativas do carácter urgente da expropriação,tendo em vista o disposto na alínea a) do n.º 1 doartigo 103.º do Código do Procedimento Admi-nistrativo, fica a Administração habilitada a pra-ticar o aludido acto sem audiência prévia dointeressado.

VI — O acto mostra-se fundamentado defacto e de direito se na informação em que sebaseou foram enunciados de forma clara econgruente os motivos e finalidades da expro-priação e a necessidade da mesma, bem como oquadro normativo ao abrigo do qual foi levadaa efeito.

Acórdão de 28 de Novembro de 2000Recurso n.º 44 600

João Belchior (Relator) — Simões Redinha —Rosendo José.

Fundamentação do acto administrativo

Está fundamentado o despacho de vereadorde câmara municipal que, no uso de poderesdelegados, ordena a demolição de uma paredepor ter sido construída sem licença e tapar oacesso às traseiras de uma moradia confinante,independentemente de se entrar a conhecer se foiou não bem exercida a faculdade conferida peloartigo 167.º do Regulamento Geral das Edi-ficações Urbanas, de apreciar se a construçãoseria susceptível de satisfazer as regras do ur-banismo e da construção (matéria de fundo).

Acórdão de 28 de Novembro de 2000Processo n.º 46 452

Rosendo José (Relator) — Marques Borges —Simões Redinha.

Subsídio de desemprego — Inter-pretação do acto — Exercício deactividade profissional — Acto revo-gatório da atribuição da prestação —Direito de audiência

I — Não tem direito à protecção social resul-tante de uma situação de desemprego quem exer-cer uma actividade profissional, seja por contaprópria, seja por conta de outrem, independen-temente da exacta qualidade formal que sirva desuporte a esse exercício.

II — O acto administrativo que revogou umaanterior atribuição de um subsídio de desem-prego por se haver constatado que a beneficiáriatrabalhava numa empresa, de que até era sóciae gerente, teve por básico fundamento a convic-ção de que ela exercia uma actividade profis-sional.

III — Se esse acto foi atacado porque a liga-ção da beneficiária à empresa não seria de umcerto tipo, mas de um outro, esse ataque apenascriticou o que acessoriamente fortalecia a con-vicção de que o acto partiu, sem pôr verdadeira-mente em causa o fundamental dessa convicção.

IV — Não há que reabrir a instrução, parainquirição de testemunhas oferecidas pela inte-ressada aquando do exercício do seu direito deaudiência, se ela, nessa ocasião, apenas susci-tou questões de direito.

V — O artigo 15.º, n.º 1, do Decreto-Lein.º 133/88, de 20 de Abril, prevê que os actosadministrativos de atribuição de prestações noâmbito dos regimes de segurança social sejamsusceptíveis de revogação nos termos gerais.

Acórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 285

Madeira dos Santos (Relator) — Cruz Rodri-gues — Abel Atanásio.

Invocação de vícios — Errada qua-lificação — Questões que cumpre aotribunal conhecer — Nulidade desentença

I — O tribunal deve, em regra, conhecer detodas as questões submetidas à sua apreciação,

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330 BMJ 501 (2000)Supremo Tribunal Administrativo

nos termos do n.º 2 do artigo 660.º do Código deProcesso Civil.

II — Tais questões são as que se apresentamexpostas na petição mediante a invocação de fac-tos e de razões de direito que fundamentam orecurso e que constituem os concretos motivosde ilegalidade que preenchem a respectivacausa de pedir.

III — A actividade de caracterização de taismotivos, de ilegalidade, isto é, a qualificação dovício imputado ao acto objecto do recurso, inte-gra-se na área de liberdade de julgamento que éreconhecida ao tribunal por força do dispostono artigo 664.º do Código de Processo Civil.

IV — O tribunal deve conhecer dos motivosde ilegalidade alegados pelo recorrente comofundamento do recurso ainda que aqueles seapresentem incorrectamente qualificados comointegradores de determinado vício.

V — Padece de nulidade por omissão de pro-núncia a sentença que, aderindo embora à qua-lificação jurídica de determinado vício formuladapelo recorrente, se haja efectivamente desviadoda análise que lhe competia fazer quanto a de-terminado motivo de ilegalidade expressamenteinvocado.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 665

Pamplona de Oliveira (Relator) — Madeira dosSantos — Anselmo Rodrigues.

Licenciamento de unidade indus-trial — Nulidade da sentença —Pedido de viabilidade de construção —Plano Director Municipal — Regula-mento — Princípio tempus regit ac-tum — Condição suspensiva legal —Fundamentação

I — Nos termos do disposto no artigo 668.º,n.º 1, alínea d), em conjugação com o n.º 2 doartigo 660.º, ambos do Código de Processo Ci-vil, aqui aplicável ex vi do artigo 102.º da Lei deProcesso nos Tribunais Administrativos, o juiznão pode ocupar-se senão das «questões» sus-

citadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitirou impuser o conhecimento oficioso de outras e,embora deva resolver todas essas questões, ouseja, as que suscitam a apreciação quer a causade pedir apresentada quer o pedido formulado,todavia, não é obrigado, em relação a cada umadelas, a apreciar todos os argumentos ou ra-zões aduzidas pelos litigantes na defesa dos seuspontos de vista.

II — A falta de motivação a que alude a alí-nea b) do n.º 1 do artigo 668.º do Código deProcesso Civil é a total omissão dos fundamen-tos de facto ou dos fundamentos de direito emque assenta a decisão; uma especificação dessamatéria apenas incompleta ou deficiente não afec-ta o valor legal da sentença.

III — O licenciamento de unidade industrialpela Câmara Municipal é precedida de um outrolicenciamento industrial referido nos artigos 8.ºe 9.º do citado Decreto-Lei n.º 109/91, de 15 deMarço, e 22.º do Decreto-Lei n.º 166/70, de 15de Abril, ao tempo em vigor.

IV — O deferimento do pedido de viabilidadede construção de unidade industrial feito por umacâmara municipal, no âmbito da vigência doDecreto-Lei n.º 166/70, apenas assumirá a na-tureza de acto opinativo, insusceptível nessaqualidade de impugnação contenciosa e de cria-dor de direitos subjectivos na esfera jurídica dointeressado.

V — As disposições normativas de um planodirector municipal assumem a natureza de umregulamento administrativo e não de um actoadministrativo geral, já que se apresentam comas notas características das normas jurídicas,que são a generalidade e a abstracção.

VI — Não havendo direitos adquiridos a sal-vaguardar, não existe o limite imposto ao exercí-cio do poder regulamentar pelo princípio geraldo respeito pelos direitos adquiridos, situado namesma posição hierárquica das leis, que impõemque os regulamentos não podem, em princípio,dispor retroactivamente e assim regular inova-toriamente determinada matéria e aplicar-se aosprocessos de licenciamento pendentes.

VII — A legalidade dos pressupostos dosactos administrativos deve ser apreciada comreferência à situação factual e jurídica existenteà data da sua prática de acordo com o princípiotempus repit actum.

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331 Supremo Tribunal AdministrativoBMJ 501 (2000)

VIII — Sendo adicionadas pela autoridaderecorrida condições suspensivas legais ao actoadministrativo, tais condições não funcionamcomo cláusulas acessórias do acto, mas antescomo elementos integrantes da sua validade.

IX — A fundamentação é um conceito rela-tivo, sendo em face das circunstâncias concretase com apelo ao tipo legal do acto que se há-deapurar da sua clareza, congruência e suficiên-cia, mediante a indagação sobre se um destina-tário normal, colocado na posição do real des-tinatário do acto, em face da fundamentaçãoaduzida, ou seja, perante o itinerário cognoscitivoe valorativo constante daquele acto, se poderiaaperceber das razões do decidido em ordem aficar habilitado a defender conscientemente osseus direitos e interesses legítimos, isto é, a aca-tar a decisão se a considerar justa e legal, ou asua defesa cabal, lançando mão dos meios con-tenciosos ao seu alcance, no caso contrário.

X — A lei admite (n.º 2, in fine, do artigo 1.ºdo citado Decreto-Lei n.º 256-A/77 e n.º 2, infine, do artigo 125.º do Código do ProcedimentoAdministrativo), além da fundamentação no pró-prio acto, a chamada fundamentação por refe-rência ou remissão (per relationem), que, paraser válida, tem de consistir numa declaraçãoexpressa e inequívoca de concordância com an-terior parecer, informação ou proposta, queconstituirão, neste caso, parte integrante do res-pectivo acto.

Acórdão de 28 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 396

Nuno Salgado (Relator) — Vaz Rebordão —Gonçalves Loureiro.

Magistrados judiciais — Venci-mentos — Lei n.º 63/90, de 26 deDezembro — Inconstitucionalidade

A norma constante do artigo 1.º, n.º 2, da Lein.º 63/90, de 26 de Dezembro, em conjugaçãocom a norma do n.º 1 do mesmo artigo, é incons-titucional, na medida em que elimina as diferen-ciações de vencimentos entre categorias demagistrados judiciais por violação das normas

conjugadas dos artigos 13.º, 59.º, n.º 1, e 210.º,n.os 1, 3 e 4, da Constituição.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Recurso n.º 32 415

Santos Botelho (Relator) — Alves Barata —Pais Borges.

Nulidade da sentença por falta defundamentação — Responsabilidadecivil extracontratual — Critériospara fixação da indemnização — Ónusde alegação

I — Para que se verifique a nulidade previstano artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do Código deProcesso Civil «não basta que a justificação dadecisão seja deficiente, incompleta, não convin-cente, é preciso que haja falta absoluta, emboraeste se possa referir só aos fundamentos de factoou só aos fundamentos de direito», sendo que,no que tange aos fundamentos de direito, apenasse torna essencial que se mencionem os princí-pios, as regras, as normas em que a sentença seapoia, não sendo necessária a especificação dasdisposições legais que fundamentam a decisão,só constituindo tal nulidade a omissão de funda-mentos de facto ou de direito susceptíveis de jus-tificar racionalmente a decisão e não incom-preensão ou mediocridade da fundamentação.

II — Tendo a sentença, com invocação dosprincípios e preceitos legais aplicáveis, operadoa quantificação dos danos devidos a título deindemnização, cabe aos recorrentes, em cum-primento do ónus de alegação, indicar os fun-damentos por que pede a alteração da decisão(n.º 1 do artigo 690.º do Código de ProcessoCivil), concretamente aduzindo elementos quepossam suportar decisão diferente.

III — Por outro lado, não tendo os autoresna petição inicial ao proceder à quantificaçãodos danos e fixação das indemnizações devidasoperado qualquer individualização dos mesmosdanos e indemnizações correspondentes (sendoque em sede de contestação o réu não curou dese preocupar com tal modus petendi, limitando--se a afirmar serem as indemnizações pedidasmanifestamente exageradas), e não demons-

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332 BMJ 501 (2000)Supremo Tribunal Administrativo

trando o réu o infundado do quantum indemni-zatório apurado, não pode censurar-se a sen-tença por não haver procedido a tal individua-lização.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 046

João Belchior (Relator) — Simões Redinha —Rosendo José.

Responsabilidade civil extracontra-tual da Administração — Direito deindemnização — Interrupção daprescrição — Notificação pararesposta no recurso contencioso —Princípio do contraditório

I — A defesa do contraditório não passa pelaexplanação obrigatória da motivação e criticaaduzida pelas partes, bastando que a estas sejadada oportunidade para defenderem os seus pon-tos de vista e contrariarem os da outra parte.

Garantida essa possibilidade, não tem ojulgador que relatar as posições das partes e arespectiva argumentação, mas apenas tomar umadecisão sobre as questões enunciadas que sejamobjecto de controvérsia, optando por uma dasposições em confronto, com a devida e necessá-ria fundamentação.

II — A notificação da entidade recorrida pararesponder no recurso contencioso de anulaçãode acto administrativo interrompe a prescriçãodo direito de indemnização que se baseie nesseacto (artigo 323.º, n.º 1, do Código Civil), prazoque voltará a correr com o trânsito em julgadoda decisão proferida nesse recurso contencioso(artigos 326.º e 327.º, n.º 1, do Código Civil).

III — É irrelevante, para o efeito, a sorte dorecurso contencioso interposto, exigindo-se, tão--só, para efeitos de interrupção da prescrição,que o autor baseie o pedido de indemnização noacto que impugnou contenciosamente, dele fa-zendo decorrer os prejuízos cujo ressarcimentopeticiona na acção.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Recurso n.º 45 235

Pais Borges (Relator) — Macedo de Almeida —João Cordeiro.

III

2.ª SECÇÃO

Imposto sobre o rendimento daspessoas colectivas — Liquidação —Métodos indiciários — Fundamen-tação e sua notificação — «Actosmassa»

I — A fundamentação de um acto tributário,que visa esclarecer o seu destinatário das ra-zões que levaram a administração fiscal à suaprática, não se confunde com a sua notificação,sendo que esta, ainda que irregular, não contendecom a legalidade daquele.

II — A liquidação em IRC, porque feita cente-nas de milhares de vezes em cada ano, constitui«um acto massa» e, porque assim é, tudo acon-selha a que não se exija de tais actos o mesmorigor formal que se deve exigir dos outros actosadministrativos que se destinam a situações es-pecíficas individualizadas.

III — Deste modo, e desde que seja clara aidentificação da entidade que praticou o acto eque o modo como essa prática ocorreu não setraduz em qualquer diminuição de garantias docontribuinte deve concluir-se pela sua legali-dade.

Acórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 25 389

Costa Reis (Relator) — Brandão de Pinho —Vítor Meira.

Imposto sobre o rendimento das pes-soas colectivas — Isenção — Pessoacolectiva de utilidade pública — Finspredominantemente científicos —Sindicabilidade contenciosa dos actosadministrativos — Exercício de pode-res vinculados

I — Podem beneficiar da isenção de IRC pre-vista na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRCas pessoas colectivas de utilidade pública quetenham fins predominantemente científicos.

II — Podem beneficiar desta isenção pessoascolectivas de utilidade pública que tenham porfins primaciais actividades científicas de qual-quer natureza, incluindo de divulgação científica,

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333 Supremo Tribunal AdministrativoBMJ 501 (2000)

não se restringindo a isenção às que tenhamactividades próprias de investigação científica.

III — O que é relevante para que se concluaque as pessoas colectivas de utilidade públicavisam predominantemente fins científicos, paraefeitos da norma em apreço, é que as activida-des de natureza comercial ou industrial a querespeita a isenção de IRC sejam meramente aces-sórias dos fins científicos, designadamente queos proventos obtidos no seu exercício se desti-nem a ser utilizados na satisfação desses finscientíficos.

IV — O direito ao recurso contencioso dequaisquer actos administrativos lesivos, asse-gurado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição,só pode ser restringido relativamente a actosque, por sua natureza, não permitam controlojurisdicional, designadamente aqueles em queesteja em causa a gestão de interesses públicosconflituantes que caiba à Administração ponde-rar, o que não é o caso dos actos do Governo emmatéria de reconhecimento das isenções referi-das, que tem pressupostos integralmente fixadosna lei.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Processo n.º 25 580

Jorge de Sousa (Relator) — Ernâni Figuei-redo — Almeida Lopes.

Imposto sobre o rendimento daspessoas singulares — Liquidação —Actos susceptíveis de alterarem asituação tributária do contribuinte —N.º 1 dos artigos 64.º e 65.º do Códigode Processo Tributário — Notificação

Deve considerar-se acto susceptível de alte-rar a situação tributária do contribuinte, peloque deve ser notificado por carta registada, comaviso de recepção, uma liquidação adicional deIRS, não obstante aquele já ter sido notificado,por igual modo, da alteração da respectiva ma-téria colectável — n.º 1 dos artigos 64.º e 65.º doCódigo de Processo Tributário.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 25 233

Brandão de Pinho (Relator) — Lúcio Barbosa —António Pimpão.

Imposto sobre o rendimento daspessoas singulares — Deficiência —Benefício fiscal — Disfunção resi-dual — Princípio da legalidade

I — O Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outu-bro, introduziu um novo regime na avaliação daincapacidade para efeito de acesso a benefíciosfiscais.

II — Este diploma passou a dar relevância àdisfunção funcional, ou seja, a uma disfunçãoresidual após a aplicação dos respectivos meiosde correcção.

III — Assim, a partir da sua entrada em vi-gor, o coeficiente de incapacidade deve corres-ponder a essa disfunção.

IV — A actividade da administração fiscalestá subordinada ao princípio da legalidade, peloque deve ela pautar a sua actividade de acordocom as leis contemporâneas da decisão.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 25 485

Lúcio Barbosa (Relator) — Fonseca Limão —Baeta Queiroz.

Recurso jurisdicional — Ampliaçãoda matéria de facto — Artigos 729.º e730.º do Código de Processo Civil —Direito local — Matéria de facto —Artigo 348.º do Código Civil

I — Se a decisão de facto não constituir basesuficiente para a decisão de direito, deve aquelaser ampliada de modo a permitir esta.

II — A existência e conhecimento do direitolocal — no caso, regulamento aprovado emassembleia municipal e publicitado editalmente,conforme alegação do recorrente — constituimatéria de facto — artigo 348.º do Código Ci-vil —, cuja fixação está vedada ao Supremo Tri-bunal Administrativo, nos termos do artigo 21.º,n.º 4, do Estatuto dos Tribunais Administrativose Fiscais.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 25 385

Brandão de Pinho (Relator) — Lúcio Barbosa —António Pimpão.

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334Relação de Lisboa BMJ 501 (2000)

Acusação — Notificação — Pro-cedimentos — Prosseguimento doprocesso — Falta de notificação —Irregularidade

I — Da conjugação dos artigos 283.º, n.os 5 e6, e 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal de1998, decorre que a acusação do MinistérioPúblico é comunicada ao arguido mediante con-tacto pessoal ou via postal, devendo no entantoprosseguir o processo quando os procedimen-tos de notificação se tenham revelado ineficazes.

II — Da simples leitura dos apontados pre-ceitos resulta claro que o processo só deve pros-seguir sem a comunicação da acusação aoarguido quando os procedimentos de notifica-ção (no plural) se tenham revelado ineficazes,sendo que tais procedimentos são dois: o con-tacto pessoal ou a via postal.

III — Assim, muito embora a lei faculte, emalternativa, dois métodos possíveis de comuni-cação, só o esgotamento de ambos, sem sucesso,pode fazer prosseguir o processo nos termos daparte final do artigo 283.º, n.º 5, do Código deProcesso Penal de 1998.

IV — A omissão de notificação ao arguido daacusação do Ministério Público, ou porque senão fez essa diligência, ou porque não se esgota-ram os meios legais previstos para a obter, nãoé uma nulidade relativa, constituindo antes umamera irregularidade do processo, consoante adisciplina do artigo 123.º do Código de Pro-cesso Penal, a qual pode ser mandada repararoficiosamente no momento em que da mesma se

tomar conhecimento, por ser susceptível de afec-tar o valor do acto praticado.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 8242/2000 — 3.ª Secção

José Vaz dos Santos Carvalho (Relator) — JoãoManuel Villaverde e Silva Cotrim Mendes —António Rodrigues Simão.

Alimentos — Ónus da prova

Decorrendo do artigo 2004.º, n.º1, do CódigoCivil ser a possibilidade de o obrigado prestaralimentos, a par da necessidade do alimen-tando, facto constitutivo do direito do autor, ésobre ele que impende o ónus de o provar, nostermos do artigo 342.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Acórdão de 30 de Novembro de 2000Recurso n.º 6936/2000 — 2.ª Secção

João Cordeiro Dias (Relator) — Lino AugustoPinto — António Proença Fouto.

Amnistia — Lei n.º 29/99, de 12 deMaio

Há que aplicar o perdão da Lei n.º 29/99, de12 de Agosto «[...] quanto às penas de prisão emque o arguido foi condenado pelo crime de sub-tracção de documento, dois crimes de falsifica-ção de selo e cinco crimes de falsificação de

TRIBUNAIS DE SEGUNDA INSTÂNCIA

I

RELAÇÃO DE LISBOA

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335 Relação de LisboaBMJ 401 (2000)

cheques, porque com tais normas criminais nãose tutelam direitos, liberdades e garantias pes-soais de cidadãos, mas sim a titularidade dosdocumentos, a genuinidade e autenticidade dosselos de modo a garantir a origem e o seu uso noacto ou acção que autenticam, bem como confe-rir e preservar fidelidade à circulação dos che-ques como títulos de crédito e meio de paga-mento».

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso n.º 7938/2000 — 5.ª Secção

Manuel Cabral Amaral (Relator) — ArmindoMarques Leitão — Isabel Celeste Alves Pais Mar-tins.

Articulado superveniente — Prazode dedução

Nos termos do n.º 3, alínea a), do Código deProcesso Civil, resultante da reforma introduzidapelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezem-bro, a dedução de articulado superveniente refe-rente a factos ocorridos ou conhecidos dorequerente até ao encerramento da audiênciapreliminar pode ocorrer até ao mesmo encerra-mento.

Acórdão de 23 de Novembro de 2000Recurso n.º 9015/2000 — 8.ª Secção

João Moreira Camilo (Relator) — Maria RuthPereira Garcez — Jorge Paixão Pires.

Caixa Geral de Aposentações —Constituição de assistente — Taxade justiça

A Caixa Geral de Aposentações quando re-quer a sua constituição como assistente não estáisenta de pagamento de taxa de justiça, por-quanto:

— O artigo 156.º, n.º 1, do Decreto-Lein.º 694/ 70, de 31 de Dezembro, que lhe concediaessa isenção, foi revogada pelo artigo 5.º doDecreto-Lei n.º 118/85, de 19 de Abril;

— O artigo 75.º do Código das Custas Judi-ciais que enumera as entidades isentas do paga-mento de custas criminais não inclui a recor-rente; e

— O artigo 2.º, n.º 1, alínea g), do Código dasCustas Judiciais apenas isenta aquela entidadenos processos de natureza cível.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Recurso n.º 2713/2000 — 9.ª Secção

Cid Orlando Melo Pinto Geraldo (Relator) —António Alexandre Trigo Mesquita — Maria daLuz Neto da Silva Baptista.

Causa de pedir — Esbulho — Acçãode restituição de posse — Prazo decaducidade

I — A causa de pedir consubstancia-se nosfactos concretos produtores dos efeitos jurídicosprevistos nas pertinentes normas de direito subs-tantivo atinentes à tutela jurídica pretendida peloautor ou pelo réu reconvinte.

II — No âmbito das acções de posse, as ex-pressões possui «publicamente», «pacifica-mente» e «de boa fé» consubstanciam-se em con-ceitos de direito e, consequentemente, não cons-tituem a pertinente vertente fáctica da causa depedir.

III — O conceito de esbulho tem o sentidojurídico de acto em virtude do qual uma pessoaé despojada, contra a sua vontade, de uma coisaque está na sua posse.

IV — Como o prazo de caducidade do direitode acção de restituição de posse começa na datado esbulho ou do seu conhecimento, se o réunegar veementemente o esbulho e, não obstante,afirmar que, de qualquer modo, caducara o di-reito de acção, a conclusão é a de que a defesapor excepção foi formulada a título subsidiário.

V — Se os factos do esbulho não estão assen-tes na altura da fase da condensação, não podeo juiz conhecer do mérito da excepção peremp-tória.

Acórdão de 23 de Novembro de 2000Recurso n.º 9389/2000 — 6.ª Secção

Salvador Pereira Nunes da Costa (Relator) —Urbano Aquiles Lopes Dias — António FernandoSilva Sousa Grandão.

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336Relação de Lisboa BMJ 501 (2000)

Condução em estado de embriaguez —Amnistia (Lei n.º 29/99) — Atenuaçãoespecial da pena — Sanção acessó-ria — Dispensa

I — O crime de condução em estado de em-briaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º doCódigo Penal, não foi abrangido pela amnistiadecretada pelo artigo 7.º da Lei n.º 29/99, de 12de Maio, atento o disposto no seu artigo 2.º,n.º 1, alínea c).

II — Por não ocorrerem, manifestamente,quaisquer circunstâncias excepcionais que, deforma acentuada, diminuam a ilicitude do facto,a culpa do agente ou a necessidade da penamostram-se de todo afastados os pressupostosde que depende a aplicação ao caso do institutoda atenuação especial da pena a que se reportao artigo 72.º do Código Penal.

III — O agente do aludido crime de conduçãoem estado de embriaguez deve também ser san-cionado com a pena acessória de proibição deconduzir, nos termos do artigo 69.º do CódigoPenal, pena esta da qual não poderá, em casoalgum, ser dispensado.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 6679/2000 — 3.ª Secção

Mário Armando Correia Miranda Jones (Rela-tor) — Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida —Adelino da Silva Salvado.

Denúncia do contrato de arrenda-mento — Artigo 108.º do Regime doArrendamento Urbano

I — A necessidade de denúncia de contrato dearrendamento por parte do senhorio envolveuma situação de carência motivada por con-dicionalismo relevante segundo a experiênciacomum.

II — Ocorre a referida situação de carênciado casal de emigrantes económicos no estran-geiro, ele desempregado e ela doméstica, que

pretendem regressar à casa locada em Portu-gal, logo que livre fique de pessoas e bens, paranela passarem o resto da vida, o que é mais quedesejo porque se traduz em decisão de retorno.

III — A exigência prevista no artigo 108.º doRegime do Arrendamento Urbano de anterio-ridade da posição de proprietário em relação àde senhorio visa obstar à aquisição do direito depropriedade do prédio arrendado sob motiva-ção do exercício de denúncia.

IV — A excepção às limitações do direito dedenúncia a que se reporta o artigo 108.º do Re-gime do Arrendamento Urbano não obsta ofacto de o senhorio haver celebrado o contratode arrendamento em causa com base na traditiodecorrente de contrato-promessa a que se se-guiu, oito meses depois, o contrato de compra evenda.

Acórdão de 30 de Novembro de 2000Recurso n.º 9710/2000 — 6.ª Secção

Salvador Pereira Nunes da Costa (Relator) —Urbano Aquiles Lopes Dias — António FernandoSilva Sousa Grandão.

Extradição — Tribunal da Relaçãoterritorialmente competente

I — É competente para o processo judicial deextradição o tribunal da Relação em cujo distritojudicial residir ou se encontrar a pessoa recla-mada ao tempo do pedido, entendendo-se aquipor «pedido» o acto pelo qual o país requerentefaz saber às autoridades portuguesas o seu inte-resse pela extradição, designadamente pela emis-são e posterior cumprimento de mandados decaptura internacionais e não o tribunal da Rela-ção em que o Ministério Público apresenta opedido formal de extradição, uma vez finda afase administrativa.

II — Tal interpretação do artigo 49.º, n.º 1,da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, flui do enten-dimento correcto a dar à palavra «pedido» nãosó nesse preceito como nos artigos 48.º e 50.ºdesta lei, sendo certo que violaria o princípio daestabilidade da instância e do juiz natural ainterpretação segundo a qual, mudando o extra-

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337 Relação de LisboaBMJ 401 (2000)

ditando de residência entre a fase administra-tiva e a judicial, seria esta a levar em conta paracompetência territorial.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Processo n.º 7921/2000 — 3.ª Secção

José Vaz dos Santos Carvalho (Relator) — JoãoManuel Villaverde e Silva Cotrim Mendes —António Rodrigues Simão.

Faltas — Justificação — Comu-nicação — Prazo — Impossibilidadede comparência

I — O regime legal de justificação de faltasenunciado no artigo 117.º, n.os 2 e 3, do Códigode Processo Penal não abrange todo o leque desituações possíveis que aparentemente preten-deu regular.

II — Não está designadamente previsto o casode impossibilidade de comparecimento impre-visível que ocorra numa situação em que ofaltoso não disponha de meios ou não esteja emcondições de proceder sequer àquela comunica-ção até ao dia e hora designados para a práticado acto.

III — Em tais situações tem de se aceitar quequer a comunicação, quer a justificação sejamapresentadas depois do dia e hora designadospara a prática do acto.

IV — Assim, é de dar por justificada a falta àaudiência de julgamento se o faltoso, meia horadepois do momento designado para a práticado acto para que foi notificado, fez juntar aoprocesso um requerimento a pedir essa justifi-cação, no qual explicava que não tinha podidochegar a horas dado que um pneu do carro ondese fazia transportar para o tribunal rebentara,devido a um furo.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 6408/2000 — 3.ª Secção

João Manuel Villaverde e Silva Cotrim Mendes(Relator) — António Rodrigues Simão — CarlosAugusto Santos Sousa.

Herança indivisa — Ilegitimidade deum dos herdeiros a título singular

I — No quadro da herança indivisa, fora dassituações de legitimidade ad causam do cabeça--de-casal e de cada um dos herdeiros no queconcerne à petição da herança, os direitos rela-tivos à herança só podem ser exercidos conjun-tamente por todos os herdeiros.

II — No caso de pluralidade de herdeiros, oherdeiro, a título singular, não tem legitimidadead causam para intentar acção tendente à decla-ração de caducidade do contrato de arrenda-mento celebrado pelo de cujus e, a títulosubsi-diário, à sua resolução.

Acórdão de 23 de Novembro de 2000Recurso n.º 9624/2000 — 6.ª Secção

Salvador Pereira Nunes da Costa (Relator) —Urbano Aquiles Lopes Dias — António FernandoSilva Sousa Grandão.

Herança jacente — Personalidadejudiciária

I — Os sucessíveis só podem ser considera-dos sucessores do de cujus se, na sequência dorespectivo chamamento, aceitarem a herança porele deixada.

II — Há herança jacente quando os sucesso-res do seu autor ainda a não tenham aceitado,tácita ou expressamente, e não houver sido de-clarada vaga para o Estado.

III — A herança jacente tem personalidadejudiciária enquanto não for aceite ou repudiadapor todos os sucessíveis do seu autor ou decla-rada vaga para o Estado.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Recurso n.º 8843/2000 — 6.ª Secção

Salvador Pereira Nunes da Costa (Relator) —Urbano Aquiles Lopes Dias — António FernandoSilva Sousa Grandão.

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338Relação de Lisboa BMJ 501 (2000)

Homicídio privilegiado — Emoçãoviolenta compreensível

No homicídio privilegiado não basta que severifique um estado de emoção violenta, é pre-ciso ainda que esta seja compreensível.

O que se provou foi que o arguido e a vítimase desentenderam, certamente por razões rela-cionadas com a prática de actos homossexuais,e que na sequência desse desentendimento o ar-guido começou a agredir a vítima, provocando--lhe lesões descritas que lhe causaram a morte.

Não se vislumbra aqui qualquer proporçãoentre a conduta do agente e o factor determinanteda emoção deste, traduzida na razoabilidade hu-mana do seu descontrolo face à violência exercidasobre a vítima.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso n.º 6482/2000 — 9.ª Secção

Alberto Manuel Gonçalves Mendes (Relator) —Maria Margarida Andrade Vieira de Almeida —Nuno Melo Gomes da Silva.

Nulidades insanáveis — Regime dearguição

De acordo com o disposto no artigo 119.º doCódigo de Processo Penal, o conhecimento dasnulidades insanáveis não pode ter lugar a todo otempo, mas apenas enquanto durar o procedi-mento, isto é, enquanto permanecer a relaçãoprocessual, não podendo pois, e ao contrário doque defende o recorrente, serem declaradas umavez transitada em julgado a decisão final.

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso n.º 8567/2000 — 5.ª Secção

Armindo Marques Leitão (Relator) — IsabelCeleste Alves Pais Martins — Martinho Martinsde Almeida Cruz.

Obras na casa arrendada — Localconvencionado para pagamento darenda

I — Não alteram substancialmente a disposi-ção interna da casa arrendada as obras que nãoimpliquem modificação profunda da sua fisio-nomia em termos de ficar desfigurada, desca-racterizada ou com nova distribuição ou planifi-cação.

II — Não são deteriorações consideráveis dacasa arrendada as que são inerentes a uma pru-dente utilização, nem envolvam nível despropor-cionado, face à sua extensão ou custo de repa-ração, no confronto com o valor e ou dimensãodo locado.

III — Não é liberatório o depósito da rendana Caixa Geral de Depósitos a pretexto de oarrendatário fazer cessar a mora resultante doseu pagamento no dia contratualmente estipu-lado.

IV — Convencionado o pagamento da rendaem estabelecimento bancário e tendo o arrenda-tário lá procedido ao pagamento da renda emrelação a determinado mês, não obstante lá nãoestar disponível o respectivo recibo, não é libe-ratório o depósito na Caixa Geral de Depósitosda renda relativa ao mês seguinte com funda-mento na recusa da entrega do recibo, se o ar-rendatário, antes disso, não ofereceu a renda nolocal convencionado.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Recurso n.º 9195/2000 — 6.ª Secção

Salvador Pereira Nunes da Costa (Relator) —Urbano Aquiles Lopes Dias — António FernandoSilva Sousa Grandão.

Pena de prisão efectiva — Perdão —Suspensão da execução — Penaperdoada — Regime mais favorável

I — Tendo o arguido sido condenado na penade 9 meses de prisão suspensa na sua execução,é de desatender a sua pretensão no sentido dever antes aplicada a pena de prisão efectiva,embora perdoada nos termos da Lei n.º 29/99,de 12 de Maio.

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339 Relação de LisboaBMJ 401 (2000)

II — É que entre a pena de prisão efectivaperdoada e a de prisão suspensa na sua exe-cução, esta última é a mais favorável ao agente,sendo que a pretendida aplicação da primeiraredundaria, clara, inequívoca e frontalmentenuma situação de reformatio in pejus, proibidapelo disposto no artigo 409.º do Código de Pro-cesso Penal.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 8059/99 — 3.ª Secção

Álvaro Dias dos Santos (Relator) — José Vazdos Santos Carvalho — João Manuel Villaverde eSilva Cotrim Mendes.

Prisão preventiva — Prazo — Crimede tráfico de estupefacientes

Nos processos por crime de tráfico de estupe-facientes, os prazos de prisão preventiva sãoope legis os fixados no artigo 215.º do Código deProcesso Penal, não havendo necessidade dodespacho judicial a fixá-los e sem dependênciada declaração da excepcional complexidade doprocesso.

Acórdão de 28 de Novembro de 2000Recurso n.º 9774/2000 — 5.ª Secção

Maria Margarida Blasco Telles de Abreu (Rela-tora) — Paulo Gaspar de Almeida — José MarcelinoFranco de Sá.

Procedimento cautelar — Competên-cia territorial

A providência cautelar não especificada emque se pretende acautelar um direito decorrentede um contrato no qual foi fixada a cláusula doforo da comarca de Lisboa para as questõesemergentes do mesmo contrato deve ser instau-rada no tribunal da mesma comarca, sob penade incompetência territorial, nos termos das dis-

posições combinadas dos artigos 83.º, n.º 1, alí-nea c), e 100.º, n.os 1 e 3, do Código de ProcessoCivil.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso n.º 8356/2000 — 8.ª Secção

João Moreira Camilo (Relator) — Maria RuthPereira Garcez — Jorge Paixão Pires.

Recurso — Demandante cível —Ofendido não assistente — Legiti-midade

I — O demandante civil não assistente noprocesso crime carece de legitimidade para re-correr da sentença proferida na sua parte penal,mesmo que esta porventura afecte a sua preten-são cível.

II — É de rejeitar, pois, o recurso quanto aoaspecto penal da causa se o recorrente, sendoembora demandante civil, se não tiver consti-tuído assistente.

Acórdão de 30 de Novembro de 2000Recurso n.º 6988/2000 — 3.ª Secção

Mário Armando Correia Miranda Jones (Rela-tor) — Armindo dos Santos Monteiro — MariaTeresa Féria Gonçalves de Almeida.

Regime especial para jovens —Legítima defesa

A legislação especial aplicável aos maioresde 16 anos e menores de 21, referida no artigo9.º do Código Penal, consta do Decreto-Lein.º 401/82, de 23 de Setembro, e assenta na ideiade que o jovem delinquente é merecedor de umtratamento penal especializado, não só porque asua capacidade de ressocialização é mais fácil,por se encontrar no limiar da maturidade, comoainda porque se deve evitar, em princípio, umtratamento estigmatizante.

É hoje pacífico o entendimento de que esteregime especial não tem carácter de obrigatorie-dade e de que o tribunal não está dispensado de

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340Relação de Lisboa BMJ 501 (2000)

considerar a pertinência ou inconveniência dasua aplicação.

Por isso a decisão deve justificar a posiçãoadaptada, ainda que esta seja no sentido da suanão aplicação.

Porém, se o juiz concluir pela aplicação emconcreto de uma pena ou medida não estigma-tizante, esta justificação expressa é dispensável.Com efeito, sempre que o juiz encontre dentro doCódigo Penal uma pena ou medida ajustada,mais reeducadora do que sancionadora, mos-tra-se desnecessário justificar a aplicabilidadeou não do referido regime.

Os requisitos da legítima defesa do Códigoactual não são substancialmente diferentes dosexigidos pelo velho diploma.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso n.º 6488/2000 — 9.ª Secção

Cid Orlando Melo Pinto Geraldo (Relator) —António Alexandre Trigo Mesquita — Maria daLuz Neto da Silva Baptista.

Remissão para os articulados —Nulidade de sentença

Fora do quadro previsto no artigo 784.º doCódigo de Processo Civil, é nula, por falta deespecificação dos fundamentos de facto, nos ter-mos do artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do mesmodiploma, a sentença que se limita a remeter paraos artigos da petição.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Recurso n.º 6659/2000 — 2.ª Secção

João Cordeiro Dias (Relator) — Lino AugustoPinto — António Proença Fouto.

Seguro — Caução — Garantia autó-noma

I — Constando das condições particularesque a apólice respeitava a «seguro de cauçãodirecta», que o capital seguro correspondia àsrendas trimestrais fixadas em contrato de loca-ção financeira e de carta posteriormente en-

viada pela seguradora à beneficiária, que o paga-mento lhe seria efectuado à primeira interpela-ção sem qualquer formalidade, em prazo deter-minado, assumida foi uma obrigação autónoma,on first demand, à primeira interpelação.

II — Assim, interpelada para pagar, não po-dia a seguradora opor à beneficiária quaisquermeios de defesa baseados na relação fundamen-tal (o contrato de locação financeira) estabelecidaentre a beneficiária e o tomador, salvo ocorrên-cia de abuso ou fraude manifestos, de que a se-guradora tivesse prova inequívoca no momentoda interpelação.

Acórdão de 12 de Novembro de 2000Recurso n.º 3819/2000 — 2.ª Secção

João Cordeiro Dias (Relator) — Lino AugustoPinto — António Proença Fouto.

Sentença — Nulidade — Excesso depronúncia

I — A acusação limita o objecto do julga-mento, constituindo a vinculação temática dojulgador e assegurando que o arguido condena-do pelos factos dela constantes jamais o poderáser, de novo, por eles.

II — É nula a sentença, por excesso de pro-núncia e nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alí-nea c), do Código de Processo Penal, no seg-mento em que nela se condenou o arguido pelaprática de um crime de injúrias pelo qual ele nãofora acusado, nem o poderia ter sido porquanto,tratando-se de um crime de natureza particular,o queixoso nem sequer se constituiu assistente.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 4022/2000 — 3.ª Secção

Armindo dos Santos Monteiro (Relator) —Mário Armando Correia Miranda Jones — JoséVaz dos Santos Carvalho.

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341 Relação de LisboaBMJ 401 (2000)

Subida de recurso — Retenção irre-parável

I — Não cabe na previsão do n.º 2 do artigo407.º do Código de Processo Penal — subidaimediata por a sua retenção o tornar absoluta-mente inútil — o recurso de despacho que, antesdo julgamento, ordenou a junção de gravações esuas transcrições de entrevistas efectuadas pelaarguida.

II — A fixação daquele regime pressupõe queda retenção resulte a inoperância total, ou seja,que com a demora da subida se esgote o efeitoútil que através do recurso se procurava obter.

III — No caso, o que pode vir a suceder coma eventual procedência do recurso é que a ad-missão dos documentos e gravações venha aser julgada nula, como pretendem os recorren-tes, não podendo, por conseguinte, ser utiliza-dos como meio de prova, não se verificando,assim, uma situação de perda irreparável com aretenção do recurso.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Recurso n.º 7104/2000 — 9.ª Secção

Cid Orlando Melo Pinto Geraldo (Relator) —António Alexandre Trigo Mesquita — Maria daLuz Neto da Silva Baptista.

Tráfico de estupefacientes — Crimesexauridos ou crimes excutidos

O crime de tráfico de estupefacientes é umcrime exaurido (ou, noutra terminologia, «cri-me excutido»), designação que significa ilícitoscriminais que ficam consumados através de um

só acto de execução, ainda que sem chegar àrealização completa e integral do tipo legal cor-respondente.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso n.º 2909/2000 — 9.ª Secção

António Manuel Almeida Semedo (Relator) —João Manuel Crespo Goes Pinheiro — José AbelSilveira Ventura.

Validade da queixa — Procuração —Mandatário não judicial

I — Ao mandato que confere poderes ao man-datário não judicial, para apresentar queixas--crime, por crimes de furto que ocorram nosestabelecimentos de hipermercado de que a quei-xosa seja proprietária, não são exigíveis pode-res especificados.

II — A queixa apresentada nesses termosacautela suficientemente a vontade do lesado e éválida á luz do disposto no artigo 49.º n.º 3, doCódigo de Processo Penal.

III — Sendo válida a queixa, o MinistérioPúblico tem legitimidade para deduzir a acusa-ção, termos em que se revoga o despacho recor-rido, o qual deve substituir-se por outro quereconheça ao Ministério Público a referida legi-timidade.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso n.º 2924/2000 — 5.ª Secção

Celestino Augusto de Sousa Nogueira (Rela-tor) — Paula Gaspar de Almeida — José MarcelinoFranco de Sá.

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342 BMJ 501 (2000)Relação do Porto

II

RELAÇÃO DO PORTO

Acção de preferência — Registo

Não sendo a acção de preferência uma acçãode anulação, mas uma mera acção de substitui-ção, não resulta da respectiva procedência o can-celamento do registo ou registos, podendo oautor obter registo a seu favor por meio deaverbamento.

Acórdão de 27 de Novembro de 2000Recurso n.º 0051242

Paiva Gonçalves (Relator) — Marques Pei-xoto — Lázaro de Faria.

Acidente de trabalho — Remição depensões — Cálculo do capital

As tabelas da Portaria n.º 11/2000, de 13 deJaneiro, são aplicáveis ao cálculo do capital daremição das pensões efectuado após a entradaem vigor daquele diploma, ainda que o acidentede trabalho seja anterior.

Acórdão de 13 de Novembro de 2000Recurso n.º 0011100

Sousa Peixoto (Relator) — Carlos Travessa —Cipriano Silva (vencido).

Acidente de viação — Danos nãopatrimoniais — Bens da herança

É transmissível mortis causa, integrando aherança a partilhar, a da indemnização pordanos não patrimoniais decorrentes das doressofridas pela vítima em resultado do acidente deviação, mas já não o montante respeitante àperda do direito à vida, que surge com o própriodecesso, sendo adquirido originariamente pelosfamiliares.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso n.º 0031257

Viriato Bernardo (Relator) — João Bernardo —Pires Condesso (vencido, por considerar que aindemnização pelo dano da morte integra igual-mente herança da vítima).

Arrendamento rural — Denúncia —Reocupação do prédio

I — Quando o senhorio denuncie o contratode arrendamento rural com fundamento em quepretende o prédio para o poder explorar direc-tamente, não é admissível a oposição do arren-datário.

II — O arrendatário tem direito a reocupar oprédio e a obter indemnização pelos danos quesofreu com aquela denúncia, se, no decurso doscinco anos subsequentes, o senhorio o não vier

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343 Relação do PortoBMJ 501 (2000)

a cultivar directamente ou lhe vier a dar outrodestino que não esse.

Acórdão de 27 de Novembro de 2000Recurso n.º 0050509

Pinto Ferreira (Relator) — Caimôto Jâcome —Macedo Domingues.

Arrendamento — Resolução — Alte-ração da estrutura externa do prédio

É ilícita e legitima o despejo, a construçãonão autorizada dum anexo com a área de 100 m2

e altura de 3 a 4 m, levada a efeito com tijolosargamassados com cimento e telhado comlusalite, o qual é visível da rua e incompatívelcom a linha arquitectónica do conjunto locado,que compreende uma varanda, sobranceira àrua, enquadrada por jardim e uma piscina.

Acórdão de 27 de Novembro de 2000Recurso n.º 0050791

Amélia Ribeiro (Relatora) — Brazão Car-valho — Ribeiro Almeida.

Auto-estradas — Obrigações doconcessionário — Acidente provo-cado por areia — Culpa presumida

I — O concessionário duma auto-estradaconstitui-se na obrigação de assegurar aosutentes boas condições de segurança e comodi-dade, o que o obriga a remover todos os objec-tos que, pelas suas características, ponham emcausa as condições de circulação.

II — Presume-se a culpa do concessionáriose este não alegar, nem provar, que diligencioupela retirada da faixa de circulação de areia quedeu causa a um acidente de viação.

Acórdão de 27 de Novembro de 2000Recurso n.º 0051060

Macedo Domingues (Relator) — JoaquimEvangelista — Amélia Ribeiro.

Cheque post datado — Gerente desociedade — Indemnização civil

O arguido que, como gerente duma socie-dade comercial, em representação e no interessedesta, emitiu um cheque sem provisão pós da-tado, conduta que foi discriminalizada, deve serabsolvido do pedido civil contra si formulado,pois só o património social responde pelas dívi-das da sociedade.

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso n.º 0050777

Antas de Barros (Relator) — Cândido Lemos —Armindo Costa.

Cheque visado — Âmbito

A aposição dum visto no cheque tem por ob-jectivo certificar que o sacador tem fundos dis-poníveis para o respectivo pagamento e que aquantia visada fica bloqueada com vista a essefim, não assegurando que, posteriormente, o che-que não possa vir a ser falsificado.

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso n.º 0021235

Lemos Jorge (Relator) — Pelayo Gonçalves —Rapazote Fernandes.

Competência material — Alteração daincriminação

I — Para efeitos de atribuição de competên-cia ao tribunal singular ou ao colectivo, a opçãopelo regime mais favorável ao arguido apenaspode ser feita em sede de julgamento, uma vezque cada um dos regimes em confronto há-deser avaliado na sua globalidade e não apenasna vertente da pena em si mesma.

II — A competência para o julgamento deinfracção punível à data da sua prática com pri-são até 10 anos e actualmente punível com pri-

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344 BMJ 501 (2000)Relação do Porto

são até cinco anos deve, apesar da alteração dalei, ser atribuída ao tribunal colectivo.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 0010403

Marques Salgueiro (Relator) — Costa Mortá-gua — Matos Manso.

Condução sob o efeito de álcool —Pena acessória — Inibição da facul-dade de conduzir

I — Ao arguido punido pelo crime do artigo292.º do Código Penal (condução em estado deembriaguez), deverá ser aplicada a pena aces-sória de proibição de condução de veículosmotorizados, estabelecida no artigo 69.º do Có-digo Penal.

II — O facto do arguido não ser possuidor delicença de condenação não constitui óbice a umatal condenação.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 0040692

Manso Raínho (Relator) — Pedro Antunes —Neves Magalhães.

Contrato de trabalho — Privilégioscreditórios

O artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 17/86, de 14 deJunho, que estabelece privilégios creditórios(mobiliário geral e imobiliário geral), para oscréditos emergentes de contrato de trabalho, com-preende não apenas os créditos resultantes defalta de pagamento dos salários, mas tambémos provenientes das indemnizações determina-das pela rescisão do contrato de trabalho.

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso n.º 0020943

Marques de Castilho (Relator) — Teresa Mon-tenegro — Fernando Beça.

Crime de dano — Comproprietário

Tendo o comproprietário direito sobre umaquota ideal não determinada de um objecto, des-truindo esse objecto destrói algo que, sendo par-cialmente próprio, é também alheio, o que ésuficiente para integrar o elemento «coisa alheia»do crime de dano, previsto no artigo 212.º doCódigo Penal.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 0010891

Esteves Marques (Relator) — Clemente Lima —Baião Papão.

Crime de fraude sobre mercadoria

A existência nas respectivas caixas de baca-lhau com peso por unidade inferior ao da quali-dade «graúdo» e «especial», como tal referidonos letreiros com afixação dos preços, integra,não o crime de especulação, mas o crime defraude sobre mercadoria, uma vez que nãoexiste limitação relativa ao preço da sua comer-cialização.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 0010473

Nazaré Saraiva (Relatora) — Esteves Mar-ques — Clemente Lima.

Direito de remição — Depósito dopreço

O titular do direito de remição de bens vendi-dos ou adjudicados em processo de execuçãoque quiser exercer o seu direito tem de procederao imediato depósito do preço, solicitando asguias para o respectivo depósito, bem como parao das custas prováveis.

Acórdão de 27 de Novembro de 2000Recurso n.º 0051063

António Gonçalves (Relator) — Fonseca Ra-mos — Cunha Barbosa.

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345 Relação do PortoBMJ 501 (2000)

Direito de retenção — Registo deacção

A acção que visa o reconhecimento do direitode retenção sobre uma fracção de prédio ur-bano não está sujeita a registo.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso n.º 0020879

Antas de Barros (Relator) — Cândido Lemos —Armindo Costa.

Indemnização por acidente de viação —Direito de regresso da seguradora —Tribunal competente

O tribunal do domicílio do réu é o territorial-mente competente para a acção com vista aoexercício do direito de regresso, nos termos doartigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 522/85,de 31 de Dezembro, proposta pela seguradoracontra o condutor do veículo causador do aci-dente.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso n.º 0031210

João Vaz (Relator) — Teles de Meneses — MárioFernandes.

Inibição da faculdade de conduzir —Pena acessória — Início do cumpri-mento

Entregue pelo condenado, na secretaria dotribunal, para cumprimento da pena acessóriade proibição de condução de veículos motoriza-dos, a licença de condução, antes do trânsito emjulgado da sentença, e aceite pela secretaria talentrega, é nessa data que se inicia o cumpri-mento de tal pena.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 0011238

Francisco Marcolino (Relator) — Nazaré Sa-raiva — Esteves Marques.

Letra de câmbio — Desconto — Devo-lução da letra ao sacador — Portadorlegítimo

Descontada uma letra e não paga peloaceitante na data do vencimento, o que originoua devolução ao sacador, cobrando-lhe o que foidescontado, é este último portador legítimo daletra para efeitos da respectiva execução.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso n.º 0031283

Telles de Meneses (Relator) — Mário Fernan-des — Leonel Serôdio.

Obrigação em moeda estrangeira —Pagamento em moeda nacional

Nas obrigações em moeda estrangeira, a fa-culdade prevista no artigo 558.º, n.º 1, do Có-digo Civil é própria do devedor, não podendo ocredor exigir pagamento da dívida em moedanacional.

Acórdão de 6 de Novembro de 2000Recurso n.º 005999

Pinto Ferreira (Relator) — Caimôto Jâcome —Macedo Domingues.

Processo executivo — Fundo deGarantia Automóvel — Subrogação

O Fundo de Garantia Automóvel, ao pagar aindemnização por falta de seguro obrigatório,fica subrogado nos direitos do lesado, podendodemandar o lesante em processo executivo, ocor-rendo um desvio à regra de legitimidade a quese refere o artigo 56.º, n.º 1, do Código de Pro-cesso Civil.

Acórdão de 6 de Novembro de 2000Recurso n.º 0051067

Pinto Ferreira (Relator) — Caimôto Jâcome —Macedo Domingues.

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346 BMJ 501 (2000)Relação do Porto

Processo Penal — Prova — Depoi-mento de co-arguido

Não estabelecendo a lei regras especiais devaloração para o depoimento do co-arguido,pode o mesmo, se apreciado pelo tribunal se-gundo as regras da experiência e livre convic-ção, servir de fundamento para se considerardemonstrada determinada factualidade pratica-da por outro dos arguidos.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 0011006

Clemente Lima (Relator) — Baião Papão —Correia de Paiva.

Recurso penal — Subida do recurso

O recurso interposto do despacho que nãojulgou prescrito o crime sobe nos próprios au-tos, com aquele que venha a ser interposto dadecisão que ponha termo à causa.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 0040978

Dias Cabral (Relator) — Pinto Monteiro —Agostinho Freitas.

Responsabilidade pelo risco — Jurosmoratórios

A fixação, no limite máximo legal, da indem-nização resultante de acidente de viação, noscasos em que não haja culpa do responsável,não obsta a que sejam devidos juros legaismoratórios a partir da citação.

Acórdão de 27 de Novembro de 2000Recurso n.º 0051160

Couto Pereira (Relator) — Santos Carvalho —Ferreira de Sousa.

Revogação da suspensão da execuçãoda pena — Pressupostos

De harmonia com o preceituado no artigo56.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal de 1995, arevogação da suspensão de execução da penapor cometimento de novo crime pode ocorrerquer o crime seja doloso, quer negligente,centrando-se a questão apenas no especial im-pacto da infracção na obtenção das finalidadesque estavam na base da suspensão.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 0010762

Nazaré Saraiva (Relator) — Esteves Marques —Clemente Lima.

Título executivo — Garantia bancáriaautónoma

Uma garantia bancária autónoma é título exe-cutivo, não sendo lícito ao Banco opor aobeneficiário as excepções resultantes do con-trato-base.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso n.º 0031148

Leonel Serôdio (Relator) — Norberto Bran-dão — Manuel Ramalho.

Tribunais Administrativos — Com-petência — Junta Autónoma de Estra-das — Acção de indemnização

São os tribunais administrativos — e não ostribunais comuns — os materialmente compe-tentes para conhecer da acção proposta contraa Junta Autónoma de Estradas por indemniza-ção por acidente de viação decorrente da faltade sinalização dum buraco no pavimento dumaestrada nacional, em virtude de a conservaçãodas estradas e sua sinalização se inscrever nosfins públicos que àquele organismo, por lei, lhecompete prosseguir.

Acórdão de 6 de Novembro de 2000Recurso n.º 0051168

Aníbal Jerónimo (Relator) — António Gonçal-ves — Fonseca Ramos.

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347 Relação do PortoBMJ 501 (2000)

Tribunal comum — Competência —Câmara municipal — Junta de fre-guesia

É da competência dos tribunais comuns aacção proposta contra uma Câmara e umaJunta de Freguesia, na qual os autores pedem oreconhecimento do seu direito de propriedadesobre um prédio rústico, a reposição deste noestado anterior às obras que os réus nele reali-zaram para alargamento dum caminho públicoe a condenação destes ao pagamento duma in-demnização.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso n.º 0021410

Afonso Correia (Relator) — Lemos Jorge —Pelayo Gonçalves.

Tribunal de comércio — Competên-cia — Procedimentos cautelares

O tribunal de comércio é competente paraconhecer dos procedimentos cautelares préviosàs acções que sejam da sua competência.

Acórdão de 20 de Novembro de 2000Recurso n.º 0050889

Joaquim Evangelista (Relator) — Brazão deCarvalho — Ribeiro de Almeida.

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348 BMJ 501 (2000)Relação de Coimbra

III

RELAÇÃO DE COIMBRA

Acidente de trabalho — Trabalho atempo parcial

Atenta a noção de contrato de trabalho plas-mada no artigo 1.º da lei do contrato de trabalho(Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de1969) não é o quantum da remuneração nem ofacto de a prestação de trabalho ser a tempoparcial e de a trabalhadora prestar também ser-viço para outras pessoas em outros momentosque descaracteriza como sendo acidente de tra-balho aquele que ocorre quando a sinistradatrabalhava, remuneradamente, para um dospatrões e sob as ordens, direcção e fiscalizaçãodeste.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Processo n.º 191/2000

Fernandes da Silva (Relator) — BordaloLema — Serra Leitão.

Acidente de trabalho — Conduçãosem carta

A condução sem carta por parte do trabalha-dor, só por si, não constitui elemento descarac-terizador do acidente como reparável à luz dodisposto na alínea b) do n.º 1 da base VI da Lein.º 2127.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Processo n.º 1620/2000

Bordalo Lema (Relator) — Fernandes daSilva — Serra Leitão.

Cheque — Informação errónea dafalta de provisão — Obrigação deindemnizar — Danos não patrimo-niais

I — A falta de cumprimento, por parte de umbanco, do seu dever de informar os Serviços deCompensação do bastante provisionamento daconta de um seu depositante e de efectuar o pa-gamento do cheque por este emitido faz presu-mir a culpa daquele por falta da activação dotítulo e que originou a sua devolução, com ofundamento erróneo de falta de provisão.

II — Provando-se que o autor ficou afectadona sua credibilidade junto das alfândegas e queuma sua delegação, a partir da data da devolu-ção do cheque, deixou de lhe facultar o paga-mento de quaisquer quantias, através de chequesnão visados, o que tudo redundou em prejuízoda sua reputação, justifica-se a tutela do seu di-reito e, por consequência, a obrigação de in-demnizar, por parte do Banco réu.

III — Considerando a exclusividade da culpado Banco depositário e a mediana antijuri-dicidade dos factos cometidos, em sede de pru-dente arbítrio e de criteriosa ponderação dasrealidades da vida, entende-se como ajustadofixar a extensão desses danos em 650 000$00,nos termos do artigo 496.º, n.os 1 e 3, do CódigoCivil.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso n.º 2234/2000

Hélder Roque (Relator) — Távora Vítor —Nunes Ribeiro.

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349 Relação de CoimbraBMJ 501 (2000)

Contestação extemporânea —Nulidade processual

Não constitui nulidade processual e antes, sim,mera irregularidade a apresentação de contes-tação que, embora extemporâneo, observou umaexpressa notificação do Tribunal, no cumpri-mento de um despacho que transitou em julgado.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso n.º 435/2000

Coelho de Matos (Relator) — Custódio Costa —Ferreira de Barros.

Contratos de provisão de cheques —Recusa de pagamento — Respon-sabilidade da instituição bancária

I — Face ao disposto no artigo 32.º da LeiUniforme sobre o Cheque, o Banco sacado nãopode recusar, com fundamento na sua revoga-ção pelo sacador, o pagamento de um chequeapresentado no prazo legal de oito dias.

II — Se o fizer, a instituição bancária torna--se responsável perante o portador do dito che-que dos danos ou prejuízos que lhe cause, à luzda responsabilidade civil por factos lícitos, combase no estatuído na 2.ª parte do artigo14.º doDecreto-Lei n.º 13 004, de 12 de Janeiro de 1927.

Acórdão de 28 de Novembro de 2000Recurso nº 2181/2000

Garcia Calejo (Relator) — Gil Roque — TomásBarateiro.

Crime de desobediência — Entregade licença de condução — Concessãode prazo inferior ao legalmente esta-belecido

A concessão pela autoridade ordenante de umprazo inferior ao legalmente estabelecido para aentrega de licença de condução na Delegação

Distrital de Viação com vista ao cumprimentoda medida de inibição de conduzir consubstanciauma ilegalidade substancial da ordem, não lhesendo devida obediência.

Acórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 2952/2000

Maria do Rosário (Relatora) — Rosa MariaCoelho — Almeida Ribeiro.

Crime de desobediência previsto epunido no artigo 158.º, n.º 3, doCódigo da Estrada — (In)aplicabi-lidade da sanção acessória do artigo69.º do Código Penal

O crime de desobediência previsto e punidono artigo 158.º, n.º 3, do Código da Estrada nãoé subsumível à previsão do artigo 69.º, n.º 1, doCódigo Penal, não lhe sendo por isso aplicável asanção acessória de proibição de conduzir.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 2379/2000

Rosa Maria Coelho (Relatora) — Almeida Ri-beiro — Maio Macário — Renato de Sousa.

Embargos de terceiro — Venda judi-cial do bem embargado —Indefe-rimento liminar

São intempestivos e, por isso, devem serliminarmente indeferidos, nos termos do artigo354.º do Código de Processo Civil, os embargosde terceiro que hajam sido deduzidos após avenda judicial do bem, ainda que corra termos opedido de anulação dessa mesma venda.

Acórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 2310/2000

Maria Regina Rosa (Relatora) — Hélder Al-meida — Soares Ramos.

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350 BMJ 501 (2000)Relação de Coimbra

Embargos de terceiro — Depositáriojudicial — Falta de legitimidade

I — O depositário judicial de equipamentofabril (em virtude de penhoras executadas emexecuções fiscais) não tem legitimidade paraembargar de terceiro diligência que ordena aentrega do prédio onde se encontra o equipa-mento fabril.

II — Efectivamente, o depositário judicial nãoé possuidor e, na hipótese referida, nem há in-compatibilidade entre a sua condição (de depo-sitário de móveis) e a diligência de entregaordenada.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso n.º 1463/2000

Nuno Cameira (Relator) — Ernesto Calejo —Gil Roque.

Fauna cinegética — Pombos daespécie doméstica que perderam talqualidade

Os pombos que se encontrem em estado deliberdade natural constituem fauna cinegética e,por isso, tutelada pela lei da caça.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 2365/2000

João Trindade (Relator) — António Marinho —Barreto do Carmo — Renato de Sousa.

Indemnização — Juros não pedidos

Por estarmos nesse capítulo no domínio dosdireitos disponíveis, se os não pediu o autor, nãopode o tribunal, com fundamento no artigo 69.ºdo Código de Processo do Trabalho, arbitraroficiosamente juros de mora relativamente aovalor da indemnização.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Processo n.º 478/2000

Bordalo Lema (Relator) — Fernandes daSilva — Serra Leitão.

Instrução indevida por inexistência deacusação

A admissão e realização de instrução inde-vida, por inexistência de acusação não supre aomissão desta, pelo que, carecendo assim deobjecto, só poderá levar a decisão de não pro-núncia.

Acórdão de 20 de Novembro de 2000Recurso n.º 2868/2000

Serafim Alexandre (Relator) — Félix de Al-meida— Germano da Fonseca.

Livrança em branco — Irrevoga-bilidade do aval — Abuso do preen-chimento

I — O aval torna-se irrevogável a partir domomento em que o título entre na posse do legí-timo portador.

II — É irrelevante que o Banco, tomador dalivrança em branco, a tenha preenchido quandoo avalista já não era sócio da sociedade subs-critora.

III — Não constitui abuso de direito o factode o Banco continuar a conceder crédito à subs-critora da livrança quando eram visíveis as suasdificuldades e preencher depois a livrançaquando o avalista já não era sócio da subscritora.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso nº 595/2000

Nunes Ribeiro (Relator) — Maria ReginaRosa — Hélder Almeida.

Notificação postal do mandatário —Assinatura apenas num dos talões

A entrega de carta registada para notifica-ção, juntamente com um pacote de 6 registos,estando a assinatura do mandatário aposta numdos talões, com referência ao número total deregistos entregues nessa data, constitui sufi-

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351 Relação de CoimbraBMJ 501 (2000)

ciente garantia da certeza da entrega da cartaao seu destinatário.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso n.º 1187/2000

Cardoso de Albuquerque (Relator) — EduardoAntunes — Nuno Cameira.

Omissão de documentação dasdeclarações oralmente prestadas emaudiência — Mera irregularidade

A falta ou omissão de documentação das de-clarações prestadas oralmente em audiênciaconstitui mera irregularidade que só determinaa invalidade do acto a que se refere (audiênciade discussão e julgamento) se tempestivamentearguida. E na medida em que o valor desse actotambém não é por ela afectado, vedada está igual-mente a sua reparação oficiosa nos termos doartigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 2860/2000

Oliveira Mendes (Relator) — João Trindade —António Marinho.

Pena de demissão — Fundamento(artigo 66.º, n.º 1, do Código Penal)

A pena de demissão só tem lugar nos termosdo artigo 66.º, n.º 1, do Código Penal relativa-mente a crime cuja pena concretamente aplicada(e não abstractamente considerada) seja supe-rior a 3 anos de prisão.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 1613/2000

Ferreira Dinis (Relator) — Santos Cabral —Oliveira Mendes.

Pena de prisão e pena acessória deproibição de conduzir — Suspensão

A pena acessória de proibição de conduzir— artigo 69.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal —terá, tal como a pena principal de prisão, de sersuspensa na sua execução.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 2265/2000

Ferreira Dinis (Relator) — Santos Cabral —Oliveira Mendes — Renato de Sousa.

Princípio do contraditório — Acçãode divórcio — Regime provisório doartigo 1407.º, n.º 7, do Código deProcesso Civil

O procedimento processual previsto no ar-tigo 1407.º, n.º 7, do Código de Processo Civilpara a fixação do regime provisório de alimen-tos, de regulação do poder paternal e de utiliza-ção da casa de morada de família, admitindoembora a oficiosidade do Tribunal, não dis-pensa, em obediência ao princípio geral do ar-tigo 3.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o pré-vio cumprimento do princípio do contraditório.

Acórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 2221/2000

Quintela Proença (Relator) — Serra Baptista —Soares Ramos.

Processo de falência — Acção deseparação e restituição dos bens damassa falida — Prazo de propositura

I — A disciplina contida no n.º 2 do artigo205.º do Código dos Processos Especiais de Re-cuperação da Empresa e de Falência é aplicávelà acção de restituição e separação de bens damassa falida a que se alude no n.º 1 daquelecitado normativo legal.

II — Nesses termos, tal acção terá que serproposta, sob pena de caducidade do respectivo

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352 BMJ 501 (2000)Relação de Coimbra

direito que se pretenda com ela fazer valer, noprazo de um ano subsequente ao trânsito emjulgado da sentença de declaração de falência.

Acórdão de 28 de Novembro de 2000Recurso nº 1640/2000

Hélder Almeida (Relator) — Araújo Ferreira —Coelho de Matos.

Propriedade horizontal — Omissãodo título quanto à propriedade de umazona do prédio — Regime aplicável

I — Sendo o título constitutivo da proprie-dade horizontal omisso sobre a propriedade dedeterminada zona do prédio, haverá que recor-rer às regras definidas na lei (artigo 1421.º doCódigo Civil) para determinar tal propriedade,nomeadamente se ela é parte comum do prédio(e, como tal, de todos os condóminos) ou pri-vada de algum deles.

II — Desde que as entradas, vestíbulos, es-cadas e corredores de um prédio constituído emregime de propriedade horizontal sejam de usoou passagem de dois ou mais condóminos, taisespaços terão que ser, necessariamente, consi-derados comuns a todos os restantes condó-minos.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso nº 2534/2000

Garcia Calejo (Relator) — Gil Roque — TomásBarateiro.

Providência cautelar comum — Apli-cação da regra do contraditório —Citação do requerido, sendo a pro-vidência indeferida

I — No procedimento cautelar comum, valecomo regra a audição da requerida e como ex-cepção a sua falta.

II — Quando entenda que deve funcionar aexcepção, o juiz deve fazê-lo mediante decisãoexpressa e fundamentada.

III — O requerido deve ser citado para ostermos do recurso contra o despacho que nãodecretou a providência e em que não foi previa-mente ouvido.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso nº 1765/2000

Silva Freitas (Relator) — Pires da Rosa —Quintela Proença (vencido).

Recurso — Concurso de infrac-ções — Decisões transitadas

O concurso de infracções a que faz referênciaa alínea f) do artigo 400.º do Código de Pro-cesso Penal prende-se apenas e tão-só com deci-sões não transitadas, referentes ao mesmo pro-cesso.

Acórdão de 15 de Novembro de 2000Recurso n.º 1258/2000

João Trindade (Relator) — António Marinho —Barreto do Carmo.

Sanção acessória prevista no artigo69.º do Código Penal — Forma decumprimento

Por respeito ao referido princípio de unidadedo sistema, a sanção acessória prevista no ar-tigo 69.º do Código Penal deve também ser cum-prida em dias seguidos e não interpolados ouaos fins-de-semana.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 2383/2000

Serafim Alexandre (Relator) — Félix Al-meida — Germano Fonseca — Renato de Sousa.

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353 Relação de CoimbraBMJ 501 (2000)

Tiro de arma de fogo ou emprego dearma de arremesso contra algumapessoa — Descriminalização

Com a revisão operada pelo Decreto-Lein.º 48/95, de 15 de Março (que suprimiu a re-dacção originária do artigo 152.º, n.º 1, sem queoutra com o mesmo sentido, conteúdo e âmbitohaja sido incluída na lei substantiva penal), per-deram pois dignidade e protecção penal, isto é,

deixaram de constituir facto típico, o simples oumero tiro de arma de fogo contra alguma pes-soa e o simples ou mero emprego de arma dearremesso contra alguma pessoa.

Acórdão de 29 de Novembro de 2000Recurso n.º 2945/2000

Oliveira Mendes (Relator) — João Trindade —António Marinho.

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354 BMJ 501 (2000)Relação de Évora

IV

RELAÇÃO DE ÉVORA

Acidente de trabalho — Remição depensões — Regime transitório

I — No âmbito do regime transitório deremição de pensões, foi intenção do legisladorinstituir um regime faseado de remições, torna-das obrigatórias por força do artigo 41.º, n.º 2,alínea a), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro,fazendo-o com referência aos valores máximosanuais fixados no quadro do artigo 74.º do De-creto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, na redacçãoque lhe foi dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lein.º 382-A/99, de 22 de Setembro; se assim nãofosse, ficaria carecido de sentido prático essemesmo quadro e os períodos anuais nele inscri-tos, cada um deles referido a um montante máxi-mo de pensão anual.

II — Estando em causa uma pensão anual de137 424$00, a mesma apenas será remível apósDezembro de 2001 e sê-lo-á obrigatoriamente,devendo ser concretizada, de forma oficiosa, atéDezembro do ano seguinte.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso social n.º 1408/2000

Alexandre Baptista Coelho (Relator) — AcácioAndré Proença — António Gonçalves da Rocha.

Acidente de trabalho — Remição depensões — Regime transitório

I — O regime transitório de remição de pen-sões face ao novo regime jurídico dos acidentesde trabalho instituído pela Lei n.º 100/97, de 13

de Setembro, apenas se aplica às pensões que jáestavam em pagamento em 1 de Janeiro de 2000,que são aquelas que nesta data já estavam fixa-das por decisão judicial transitada em julgado.

II — E às pensões por acidentes anteriores a1 de Janeiro de 2000, mas que nesta data aindanão estavam em pagamento, por ainda não seencontrarem fixadas por decisão já transitadaem julgado, aplica-se o regime geral da nova lei,ou seja, são remíveis face aos princípios queagora enformam o novo regime de remição depensões.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso social n.º 1410/2000

António Gonçalves da Rocha (Relator) — Ale-xandre Baptista Coelho — Acácio André Proença.

Arrrendamento urbano — Resoluçãopelo senhorio — Residência perma-nente — Comissão de serviço

I — Residência permanente é a residênciahabitual, estável e duradoura e não acidental,transitória ou temporária, aquela onde estácentrada a vida doméstica e familiar.

II — A renovação de comissão de serviçonão integra a excepção prevista no artigo 64.º,n.º 2, alinea b), do Regime do ArrendamentoUrbano.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso cível n.º 630/2000

Artur Mota Miranda (Relator) — José Rodriguesdos Santos — António de Almeida Simões.

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355 Relação de ÉvoraBMJ 501 (2000)

Conflito negativo de competência —Acção de investigação de paternidadenão contestada

I — Com a redacção dada ao artigo 646.ºdo Código de Processo Civil pelo Decreto-Lein.º 375-A/99, de 20 de Setembro, não se preten-deu modificar a competência do juiz presidentedo colectivo, retirando-lhe a que lhe era atri-buída para as hipóteses previstas no n.º 2 da-quele artigo e limitando-a aos casos de falta derequerimento das partes, antes se ampliou a suacompetência — aos casos de inadmissibilidadelegal de intervenção de colectivo aditaram-se oscasos de falta de requerimento das partes —reduzindo-se apenas a intervenção do colectivo.

II — Assim, em acção de investigação de pa-ternidade não contestada, compete ao juiz de cír-culo o julgamento da matéria de facto e a prolaçãoda sentença final.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Processo n.º 906/2000

Artur Mota Miranda (Relator) — José Rodriguesdos Santos — António de Almeida Simões.

Crime de detenção de arma proibida —Arma branca com disfarce

I — A natureza proibida de uma arma estána perigosidade inerente à própria arma, tendoesta de estar incluída nas elencadas como proi-bidas pela lei.

II — No que respeita às armas brancas, sóas armas brancas com disfarce cabem na previ-são de armas proibidas elencadas no artigo 3.º,n.º 1 , alínea f), do Decreto-Lei n.º 207-A/75, de17 de Abril.

III — Arma branca com disfarce é aquelaque oculta a sua verdadeira natureza e finalida-de, dissimulando o seu real poder vulnerante,sob a forma de um objecto distinto e com dife-rente utilização (por exemplo, uma caneta ou umisqueiro que têm inserida uma lâmina) ou queapresenta um artifício ou mecanismo que a dis-simula de modo a não se mostrar como tal, ocul-tando as suas dimensões e características (por

exemplo, uma navalha não vulgar, original, depunho articulado, não rapidamente identificadacomo navalha quando fechada sob o seu punhoarticulado).

IV — Uma navalha designada normalmentecomo navalha de ponta e mola não é, assim,uma arma branca com disfarce, nem pode serqualificada como instrumento sem aplicaçãodefinida, pelo que não cabe na previsão do ar-tigo 275.º, n.º 3, do Código Penal, referido aoartigo 3.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lein.º 207-A/75, de 17 de Abril.

V — Mas ainda que se considere ser umanavalha de ponta e mola um instrumento semaplicação definida (pois que confere ao seuutilizador uma multiplicidade de funções), sendosusceptível de ser utilizada como arma letal deagressão, será apenas arma proibida desde queo portador não apresente uma explicação quefuncione como justificação da posse, a qual nãopode atentar contra o interesse protegido pelanorma incriminadora.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso penal n.º 788/2000

Ana Fernandes Grácio (Relatora) — MariaFilomena Lima — Maria Margarida Martins —António Ferreira Neto.

Crime de homicídio por negligên-cia — Negligência grosseira

I — A negligência grosseira que qualifica ocrime de homicídio por negligência existe, emcasos de acidente de viação, quando o condutornão põe na condução uma actuação prudente eantes se esquece dos mais elementares deveresde precaução e prudência, revelando ligeireza etemeridade.

II — O arguido agiu com negligência gros-seira ao conduzir com velocidade excessiva numaestrada aberta ao tráfico de veículos lentos, no-meadamente de tracção animal, que aquele co-nhecia, a uma hora do dia (17.30 horas) e nummês do ano (Fevereiro) em que a altura do solpode, de forma mais ou menos prolongada, cau-sar encandeamentos, fenômeno natural previ-

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356 BMJ 501 (2000)Relação de Évora

sível e conhecido do arguido, que todos os diasde trabalho percorria a estrada, pelo que o mes-mo, não reduzindo a marcha ao limite da pru-dência imposta pela lei, aderiu aos efeitos desseencandeamento, sem se preocupar com o quepudesse acontecer, tendo a sua conduta a marcamanifesta da negligência grosseira.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso penal n.º 275/2000

Orlando Martins Afonso (Relator) — José deSousa Magalhães — Fernando de Carvalho Go-mes — António Ferreira Neto.

Crime de ofensa à integridade físicagrave por negligência — Produtocorrosivo

I — Havendo o arguido, proprietário e res-ponsável pela exploração de um estabeleci-mento de restaurante, colocado um líquido for-temente alcalino e corrosivo, destinado a má-quinas de lavar louça, em garrafa de vidrotransparente, sem qualquer indicação do seuconteúdo e em local próximo de outras garrafascontendo produtos consumíveis no referido res-taurante, não obstante tal líquido ser incolor eter, por isso, semelhança com a água, o que omesmo bem sabia, actuou com manifesta faltade cuidado e atenção à gestão normal de umestabelecimento, pondo em perigo a vida dosseus utentes.

II — Tal factualídade integra o conceito deomissão de um dever objectivo de cuidado e,porque previsível e possível o resultado — in-gestão daquele líquido pelo ofendido a quem foifornecido como água, com ofensa grave à suaintegridade física — a adequação causal da con-duta imputável ao arguido ao acontecer do eventolesivo que veio a ocorrer.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso penal n.º 933/2000

Pires da Graça — Manuel Cipriano Nabais —António Ferreira Neto.

Crime de poluição — Provocação depoluição sonora

I — Tendo a autoridade administrativa com-petente prescrito e definido o limite do valor acús-tico a partir do qual, de acordo com o Decreto-Lein.º 251/87, de 24 de Junho, se verificaria o crimede poluição por produção de poluição sonora,com a inerente lesão do respectivo componenteambiental, advertindo a arguida da susceptibili-dade de, com a sua conduta, incorrer no refe-rido crime, mostram-se preenchidos todos oselementos objectivos constitutivos do tipo, bemcomo a condição objectiva de punibilidade refe-rida na parte final do n.º 3 do artigo 279.º doCódigo Penal.

II — Não sendo exigível que a autoridadeadministrativa houvesse determinado a suspen-são da emissão poluente ou da actividade que aproduzia para que se preenchesse a referidacondição objectiva de punibilidade, nem sendoexigível a indicação expressa das penas emcausa, antes sendo bastante a advertência efec-tuada — cominação de que a violação do supra-mencionado limite implicaria a consequênciapenal de incorrer na prática do crime de polui-ção, previsto e punido pelo artigo 279.º do Có-digo Penal.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso penal n.º 1100/2000

Maria Filomena Lima (Relatora) — MariaMargarida Martins — Luís Mendonça Freitas —António Ferreira Neto.

Defesa por excepção — Admissibili-dade de réplica

I — Em acção fundada em incumprimentode contrato-promessa, peticionando o autor— promitente-comprador — a condenação doréu — promitente-vendedor — no cumprimentodesse contrato, este defende-se por excepção pe-remptória se invoca a sua superveniente ilegi-timidade substantiva para a respectiva cele-bração.

II — De igual modo, defende-se por excep-ção, também peremptória, se alega que a eficá-

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357 Relação de ÉvoraBMJ 501 (2000)

cia desse contrato-promessa ficou dependentede qualquer condição convencionada entre aspartes, ainda que a verificação dessa condiçãodependesse apenas de uma delas.

III — Como tal, poderia o autor replicar aessas excepções.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Recurso cível n.º 893/2000

Femando da Conceição Bento (Relator) —Maria Alexandra Santos — João Gonçalves Mar-ques.

Execução para entrega de coisacerta — Embargos de terceiro —Tempestividade

I — A entrega judicial feita ao abrigo do ar-tigo 930.º do Código de Processo Civil con-substancia o acto de entrega previsto no n.º 1 doartigo 351.º do mesmo Código (ou a diligênciaofensiva de que fala o n.º 2 do seu artigo 353.º)e, pelo menos para efeitos deste último preceito,não pode ser equiparada à venda judicial ou àadjudicação de que aí se fala.

II — Assim, não há impedimento à deduçãode embargos após a entrega judicial alegada-mente ofensiva da posse ou de outro direito pas-sível de defesa por embargos, não sendo essasituação, só por si, geradora da intempestivi-dade dos mesmos.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Recurso cível n.º 1803/2000

Mário Manuel Pereira (Relator) — José BorgesSoeiro — Maria Laura Leonardo.

Ilícito de mera ordenação social —Tribunal competente — Constitu-cionalidade

I — Nunca esteve no pensamento do legisla-dor, mesmo constitucional, integrar na expres-são «julgamento das acções e recursos conten-ciosos que tenham por objecto dirimir os litígiosemergentes das relações jurídicas administra-

tivas» as infracções contra-ordenacionais, umavez que tal expressão se encontra direccionadaactividade de gestão pública dos órgãos da Ad-ministração, nas suas relações entre si e com osparticulares e não aplicação de um direito puni-tivo do Estado em função de uma violação deinteresses de ordem social.

II — A Constituição da República Portu-guesa, ao estabelecer uma ordem de tribunaisadministrativos e fiscais com as competênciasdefinidas no seu artigo 212.º, n.º 3, não afastoudos tribunais comuns a possibilidade de apre-ciação de matérias de natureza administrativa,sobretudo quando está em causa a actividadepunitiva do Estado, por violação de valores ouinteresses de criação ou manutenção de uma dadaordem social, ou seja, pela existência de ilícitosde mera ordenação social.

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso penal n.º 1147/2000

Orlando Martins Afonso (Relator) — José deSousa Magalhães — Fernando de Carvalho Go-mes — António Ferreira Neto.

Processo comum laboral — Sançãopor falta injustificada à audiência departes

Em processo declarativo comum laboral(Código de Processo do Trabalho de 1999), fal-tando uma das partes injustificadamente à au-diência de partes, mas tendo da diligênciaresultado a solução amigável do litígio — acor-do total sobre o objecto do litígio homologadonos seus precisos termos — através da inter-venção de mandatário judicial munido dos ne-cessários poderes, não é razoável, nem tal terásido pretendido pelo legislador, tratar a partefaltosa como litigante de má fé para efeitos desancionamento daquela falta com multa (artigo54.º, n.º 5, do Código de Processo do Trabalho).

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso social n.º 1409/2000

Acácio André Proença (Relator) — AntónioGonçalves Rocha — Alexandre Baptista Coelho.

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358 BMJ 501 (2000)Relação de Évora

Processo de suprimento — Supri-mento de consentimento de pessoacujo paradeiro se desconhece

I — Sendo requerido o suprimento judicialdo consentimento de pessoa ausente em parteincerta e não estando a ausência judicialmenteverificada, há lugar à citação edital do reque-rido, nos termos das disposições combinadasdos artigos 1426.º, n.º 2, e 1425.º, n.º 1, do Có-digo de Processo Civil.

II — Não sendo indicados, por alegado des-conhecimento, procurador, curador, cônjuge ouparentes do ausente, nem sendo estes oficiosa-mente localizados, os autos podem prosseguir,citando-se unicamente o Ministério Público.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Recurso cível n.º 737/2000

Luís Fernando Garcia (Relator) — José de Oli-veira Lobo — Mário Manuel Pereira.

Processo laboral — Arguição denulidades de sentença — Declaraçãode rescisão do contrato de trabalhoemitida pelo trabalhador com a mençãode que a entidade patronal nada lhedeve — Coacção e dolo — Prova documprimento da obrigação retributiva

I — Em processo laboral a arguição de nuli-dades de sentença apenas na alegação de re-curso e não no requerimento de interposição derecurso acarreta que não se conheça de tal ar-guição, por extemporânea.

II — A simples sugestão ao trabalhador pelaentidade patronal para que se demita e se res-ponsabilize pelo pagamento de quantias de quese tinha apropriado não envolve coacção moralou dolo na emissão pelo trabalhador de umadeclaração escrita de rescisão do contrato queemitiu após aquela sugestão, não podendo taldeclaração ser interpretada como constituindo

uma decisão da própria entidade patronal nosentido de pôr termo ao contrato.

III — No que respeita à obrigação retribu-tiva, ao trabalhador compete demonstrar o seudireito e, caso tenha havido pagamento, à enti-dade patronal cabe alegá-lo e prová-lo.

IV — A declaração do trabalhador insertano documento rescisório do contrato de que aentidade patronal não lhe deve qualquer valornão vale como renúncia ou remissão de qual-quer crédito; pode, eventualmente, valer comoquitação, mas para o efeito tem a entidade pa-tronal que alegar o pagamento, de que aqueledocumento serviria de prova.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso social n.º 1304/2000

Acácio André Proença (Relator) — AntónioGonçalves da Rocha — Alexandre Ferreira BaptistaCoelho.

Recurso em processo penal — Com-petência

I — Sendo a decisão recorrida um acórdãofinal proferido pelo tribunal colectivo e visandoo recurso exclusivamente o reexame de matériade direito, carece o Tribunal da Relação de com-petência para o conhecimento do objecto do re-curso, não estando na disponibilidade das partesa possibilidade de recorrer para a Relação oupara o Supremo Tribunal de Justiça, consoantemelhor lhes aprouver.

II — Assim, há que declarar a incompetênciado Tribunal da Relação e ordenar a consequenteremessa dos autos ao Supremo Tribunal deJustíça, por ser o competente [artigos 33.º, n.º 1,e 432.º, alínea d), ambos do Código de ProcessoPenal].

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso penal n.º 1149/2000

Ana Fernandes Grácio (Relatora) — MariaFilomena Lima — Maria Margarida Martins.

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359 Tribunal Central AdministrativoBMJ 501 (2000)

Adjunto de conservador — Substi-tuição do conservador — Princípio daboa fé; reposição de remunerações —Direito de audiência — Princípio doaproveitamento dos actos adminis-trativos

I — Os adjuntos de conservador auferem90% da parte fixa (ordenado) e da parte variá-vel (participação no rendimento emolumentar)da remuneração mínima a que os conservado-res ou notários de 3.ª classe têm direito, nostermos do artigo 30.º do Decreto-Lei n.º 92/90,de 17 de Março.

Essa remuneração mínima é a que corres-ponde ao escalão de ingresso na 3.ª classe depessoal conservador e notário, de acordo com oartigo 10.º do Decreto-Lei n.º 131/91, de 2 deAbril.

II — A filosofia da participação emolumentarconsiste na participação no rendimento. Logo,para que o funcionário possa receber uma partedo rendimento terá que ter contribuído para ele.

A participação emolumentar representa, pois,um vencimento de exercício e, portanto, carecede exercício efectivo do cargo de uma determi-nada categoria para ser percebido.

III— Sempre que o adjunto do conservadorsubstituir o conservador exercendo exclusiva-mente as funções que ao substituído caberiam,terá direito a receber a parte fixa da remunera-

ção referida em I e a participação emolumentarpor inteiro que ao conservador coubesse, faceao disposto no artigo 56.º, n.º 1, alínea b), doDecreto-Lei n.º 519-F2/79, na redacção do De-creto-Lei n.º 256/95, de 30 de Setembro.

IV — Para se apurar da tempestividade doacto revogatório, o que conta é a data da activi-dade, isto é, da prática do acto, e não a data emque se verificou a sua notificação.

V — O princípio da boa fé, relacionado queestá sobretudo com actividade discricionária daAdministração, implica que se aja conforme aprevisão normativa (significação objectiva) e queo comportamento assente numa convicção ouconsciência de acção conforme o direito (signifi-cação subjectiva).

VI — A reposição de vencimento só não seráde determinar se, além da boa fé, o funcionáriotiver realmente prestado o serviço pelo qual foipago.

VII — O direito de audiência previsto no ar-tigo l00.º do Código do Procedimento Adminis-trativo consubstancia um direito de participaçãonas decisões que ao interessado digam respeitono âmbito de um procedimento administrativode 1.º grau e não também no quadro da impug-nação administrativa.

VIII — Apurado que um certo acto é o únicolegalmente possível, não se justifica a sua anula-ção por vício de forma em obediência a regrasde economia, utilidade, celeridade, eficácia e se-gurança das relações jurídico-administrativas,

V

TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO

I

SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO

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360 BMJ 501 (2000)Tribunal Central Administrativo

razões em que se sustenta o princípio do apro-veitamento dos actos administrativos.

Acórdão de 30 de Novembro de 2000Recurso n.º 256/97

José Cândido de Pinho (Relator) — José Eduardode Oliveira Gonçalves Lopes — Carlos EvêncioFigueiredo Rodrigues de Almada Araújo.

Aquisição do grau de mestre pordocente — Concessão da bonificaçãoa que alude o artigo 54.º do ECD —Princípios da justiça e da imparcia-lidade

I — Tendo o recorrente fundamentado a suapretensão — concessão da bonificação de qua-tro anos no tempo de serviço, ao abrigo do ar-tigo 54.º, n.º 1, do ECD — no facto de ter adquiridoo grau de mestre em Arquitectura e Urbanismopelo Instituto de Arquitectura e Planeamento daUniversidade Técnica de Poznam, Polónia, masnão tendo este demonstrado que lhe foi concedi-da equivalência ou sequer reconhecida atitularidade do grau de mestre, ao abrigo doDecreto-Lei n.º 283/83, de 21 de Junho (cfr. ar-tigos 1.º e 2.º, n.º 1, 7.º a 10.º e 14.º, n.º 2), nãopoderá aquele grau ser atendível para efeitos dodisposto no artigo 54.º, n.º 1, do ECD.

II — Os princípios da justiça e da imparcia-lidade têm autonomia e relevam juridicamenteno domínio da actividade discricionária, con-fundindo-se com o princípio da legalidade noscomportamentos vinculados.

III — Daí que, situando-se a matéria em ques-tão no âmbito do poder estritamente vinculadoda Administração, não se possam considerarviolados os princípios da justiça e da imparcia-lidade.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Processo n.º 2039/98

Helena Maria Ferreira Lopes (Relatora) — AnaPaula Soares Leite Martins Portela — AntónioFerreira Xavier Forte.

Concurso interno condicionado —Discricionariedade técnica do júri —Poder da entidade homologante

I — A avaliação curricular, incluindo o esta-belecimento dos factores de ponderação, é umaactividade do júri que se insere na sua margemde livre apreciação ou prerrogativa de avalia-ção, chamada de discricionariedade técnica.

II — Nesta actividade também se inclui a clas-sificação das funções exercidas pelos candida-tos, por forma a integrá-las, ou não, na área emque se situa o lugar a concurso.

III — O poder da entidade homologante res-tringe-se a aspectos vinculados, a erro mani-festo, grosseiro ou à adopção de critérios osten-sivamente desajustados.

IV — Mesmo quando use tal poder, não podea entidade homologante impor um novo critério,mas simplesmente determinar a alteração doexistente, cabendo sempre ao júri, nesse caso, afixação de um novo critério apenas expurgadoda ilegalidade concreta de que padecesse o an-terior.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Recurso n.º 388/97

Ana Paula Soares Leite Martins Portela (Rela-tora) — José Cândido de Pinho — António deAlmeida Coelho da Cunha.

Contrato administrativo — Rescisãoconvencional — Acto destacável —Sua não formação

I — A rescisão convencional de um contratoadministrativo, efectuada ao abrigo dos artigos405.º e 406.º do EMFAR (na redacção dada peloDecreto-Lei n.º 157/92, de 31 de Julho) não cons-titui acto administrativo.

II — No âmbito de tal rescisão não se formaacto destacável se a Administração procede aocálculo unilateral da indemnização devida pelacessação antecipada do contrato, ao abrigo doDecreto-Lei n.º 34-A/90, de 24 de Janeiro.

III — Se o contraente particular discorda domontante de indemnização calculado, deve, para

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361 Tribunal Central AdministrativoBMJ 501 (2000)

obter os efeitos jurídicos pretendidos, socorrer--se da via da acção administrativa.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Processo n.º 1820/98

António de Almeida Coelho da Cunha (Rela-tor) — Carlos Evêncio Figueiredo Rodrigues deAlmada Araújo — José Cândido de Pinho.

Contrato de empreitada de obrafinanciada por entidade pública —Âmbito de aplicação do Decreto-Lein.º 59/99, de 2 de Março — Tribunalcompetente para apreciação de pedidode medida cautelar no procedimentode formação de tal contrato

I — O regime do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2de Março (REOP), aplica-se aos contratos deempreitada que sejam financiados directamenteem mais de 50% por qualquer das entidadesreferidas no artigo 3.º daquele diploma, queelenca os donos de obras públicas (artigo 2.º,n.º 5, do Decreto-Lei n.º 59/99).

II — Está neste caso a empreitada de pavi-mentação com relva sintética de um campo defutebol, que é financiada directamente, e na suatotalidade, pelo Instituto do Desporto da RegiãoAutónoma da Madeira (instituto público),mesmo sendo dono da obra o Clube Desportivo1.º de Maio, pessoa colectiva de direito privado.

III — Tal previsão normativa deve-se à ten-dência que se vem desenvolvendo no nosso sis-tema jurídico, para equiparar nalguns aspectosos regimes de utilização de dinheiros de prove-niência pública, seja quem for que os apliquedirectamente, aos regimes de utilização dessesdinheiros pelos próprios entes públicos que osconcedem.

IV — Pertence à jurisdição administrativa(TAFA do Funchal) o conhecimento do pedido demedida cautelar destinada a suspender o proce-dimento de formação de um contrato de em-preitada como o referido em II supra, ao abrigodo disposto no artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lein.º 134/98, de 15 de Maio, visto tratar-se de umcontrato de empreitada de obra pública, face ao

disposto nos artigos 3.º, 9.º e 51.º, alínea q), doEstatuto dos Tribunais Administrativos e Fis-cais e artigos 4.º e 5.º, n.º 4, do Decreto-Lein.º 134/98, de 15 de Maio.

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Recurso jurisdicional n.º 5088/2000

Magda Espinho Geraldes (Relatora) — MárioFrederico Gonçalves Pereira — Carlos ManuelMaia Rodrigues.

Despejo administrativo (artigo 8.º doDecreto-Lei n.º 23 465, de 18 deJaneiro de 1934) — Ocupação nãotitulada de prédio do Estado — Usur-pação de poder

I — Não pode ser nulo, por usurpação depoder, o acto administrativo que, fundando-seem norma vigente e conforme à Constituição,exercite uma conduta cuja autoria seja atribuídaà Administração por esse mesmo preceito.

II — Assim, e ao abrigo do disposto no artigo8.º do Decreto-Lei n.º 23 465, a Administraçãonão necessita de recorrer aos tribunais comunspara exigir a devolução ao Estado de um seuprédio ocupado sem título, podendo impor essaentrega autoritariamente, ainda que a ocupaçãosurgisse na sequência da caducidade de umcontrato de arrendamento primitivamente cele-brado entre particulares.

III — O direito a novo arrendamento, pre-visto nos artigos 90.º e seguintes do Regime doArrendamento Urbano, não se aplica aos ar-rendamentos de prédios do Estado, dado o dis-posto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do mesmodiploma.

IV — O artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 507-A/79, de 24 de Dezembro, estabelece que «são nu-los e de nenhum efeito» os contratos de arrenda-mento de bens imóveis do domínio privado doEstado que não sejam precedidos de autoriza-ção do director-geral do Património e que senão realizem mediante hasta pública, salvo oscasos especiais em que o Ministro das Finanças,dispensando a hasta pública, fixe a importânciada renda ou indique o critério do seu cálculo.

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362 BMJ 501 (2000)Tribunal Central Administrativo

V — Ocorrida, por morte do locacário, acaducidade do arrendamento de um prédio doEstado, a sua ocupação por quem com aquelehabitara não se mostra titulada, por via de ale-gados direitos ao arrendamento ou a um novoarrendamento, se a Administração, sabedoradaquele óbito, se limitou a aceitar da ocupanteas rendas relativas ao imóvel.

VI — Assim, a ordem de desocupação doprédio, dirigida a essa ocupante, não enfermoude erro num seu pressuposto de direito ao consi-derar que a detenção do prédio carecia de títuloque a legitimasse.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 46 098

Madeira dos Santos (Relator) — Cruz Rodri-gues — Abel Atanásio.

Pessoal dirigente — Cessação decomissão de serviço — Carreira deinvestigação científica — Artigo 18.º,n.os 1, alínea a), e 3, do Decreto-Lein.º 323/89, na redacção resultante doDecreto-Lei n.º 34/93

I — Do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 34/93,de 13 de Fevereiro, ao prescrever que o n.º 3 doartigo 18.º do Decreto-Lei n.º 323/89, de 26 deSetembro, tinha natureza interpretativa, resultaque, desde a entrada em vigor deste último di-ploma, o regime consagrado no n.º 1, alínea a),do citado artigo 18.º, em relação aos funcioná-rios oriundos de carreiras ou corpos especiaisdependia da verificação dos requisitos especiaisde acesso previstos nas respectivas leis regula-doras, bem como das habilitações literáriasexigidas.

II — Não tem direito de ser provido na cate-goria de investigador principal do quadro doInstituto Português de Investigação Marítima oinvestigador auxiliar que, embora tenha presta-do serviço em cargo dirigente e em comissão deserviço desde 6 de Março de 1990 a 26 de Se-

tembro de 1993, não reunia os requisitos espe-ciais de acesso àquela categoria estabelecidospelo artigo 8.º do Estatuto da Carreira de In-vestigação Científica, aprovado pelo Decreto--Lei n.º 219/92, de 15 de Outubro.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Processo n.º 3094/99

José Francisco Fonseca da Paz (Relator) —António Bento São Pedro — Magda EspinhoGeraldes.

Processo disciplinar — Guarda Na-cional Republicana — Princípio nebis in idem — «Desgraduação noposto» [artigos 241.º, 247.º, n.º 1,alínea c), e 243.º, n.º 1, alínea a), doDecreto-Lei n.º 265/93, de 31 deJulho (Estatuto dos Militares daGuarda Nacional Republicana)] —Dispensa de serviço [artigo 75. º doDecreto-Lei n.º 265/93 e artigo 94.º,n.os 2 e 4, do Decreto-Lei n.º 231/93,de 26 de Junho (Lei Orgânica daGuarda Nacional Republicana)]

I — Da conjugação dos artigos 241.º, 247.º,n.º 1, alínea c), e 243.º, n.º 1, alínea a), do Esta-tuto dos Militares da Guarda Nacional Republi-cana resulta que a desgraduação a que se refereo primeiro daqueles preceitos é uma conse-quência necessária da exclusão dos instruendosdo curso de formação de sargentos, sendo acausa a constatação de que aqueles afinal nãopossuíam — para efeitos de admissão ao refe-rido curso — um comportamento cívico ade-quado (v. g.).

II — Em todo este procedimento o que estáem causa é o comportamento cívico dos ins-truendos (v. g.) para efeitos de se aquilatar daverificação, ou não, de uma das condições deadmissão ao curso de formação de sargentos.Constatada a não verificação daquela condição,o instruendo é excluído do concurso, nos termosda alínea c) do artigo 247.º do Estatuto dos Mi-litares da Guarda Nacional Republicana, vol-tando ao posto que detinha antes de ter com-

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363 Tribunal Central AdministrativoBMJ 501 (2000)

pletado, com aprovação, a primeira parte docurso de formação de sargentos (artigo 241.º doEstatuto dos Militares da Guarda NacionalRepublicana).

III — No procedimento relativo à aplicaçãoda medida de dispensa de serviço (artigos 75.ºdo Estatuto dos Militares da Guarda NacionalRepublicana e 94.º da Lei Orgânica da GuardaNacional Republicana) pode também estar emcausa o comportamento cívico do militar, ou seja,podem estar em causa factos idênticos aos apre-ciados no procedimento a que se reportam ospontos I e II deste sumário.

IV — Há, contudo, um diferença: enquanto,no procedimento relativo à aplicação da medidade dispensa de serviço, os factos são apreciadospara efeitos de aplicação, ou não, de uma medi-da sancionatória — a dispensa de serviço — jáno procedimento de que poderá resultar a des-graduação do militar, o que está em causa é aapreciação desses factos para efeitos de se sa-ber se se venfica, ou não, uma das condições deadmissão ao curso de formação de sargentos(artigos 241.º, 243.º e 247.º do Estatuto dos Mili-tares da Guarda Nacional Republicana). E sendoassim não se verifica a violação do princípio nebis in idem.

V — Tendo o recorrente sido objecto de am-bos os procedimentos, por ter apresentado nasua unidade um certificado de habilitações «for-jado», e tendo este sido excluído do curso deformação de sargentos com a inerente desgra-duação [alínea c) do n.º 1 do artigo 247.º doEstatuto dos Militares da Guarda Nacional Re-publicana e artigos 241.º e 243.º, n.º 1, alínea a),do mesmo diploma], bem como sido-lhe apli-cada a medida sancionatória de dispensa de ser-viço (artigo 75.º do Estatuto dos Militares daGuarda Nacional Republicana e artigo 94.º,n.os 2 e 4, da Lei Orgânica da Guarda NacionalRepublicana), não se verifica, pelas razões cons-tantes no ponto III deste sumário, a violação doprincípio ne bis in idem.

Acórdão de 23 de Novembro de 2000Processo n.º 1190/98

Helena Maria Ferreira Lopes (Relatora) — AnaPaula Soares Leite Martins Portela — AntónioFerreira Xavier Forte.

Promoção de militares ao abrigo doartigo 10.º do Decreto-Lei n.º 236/99,de 25 de Junho (diploma que aprovouo Estatuto dos Militares das ForçasArmadas)

I — Da interpretação conjugada dos n.os 1 e2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 236/99 com oartigo 175.º do Estatuto dos Militares das For-ças Armadas (cfr. também os artigos 191.º e54.º do referido Estatuto) é de concluir que, daprevisão do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lein.º 236/99, estão excluídos todos os militaresque não estejam no activo.

II — Estando o recorrente — capitão-tenente(SE) — na situação de reserva desde momentoanterior à entrada em vigor do Decreto-Lein.º 236/99, não pode este ser promovido aoposto de capitão-de-fragata, nos termos do n.º 1do citado artigo 10.º

Acórdão de 16 de Novembro de 2000Processo n.º 3800/99

Helena Maria Ferreira Lopes (Relatora) — AnaPaula Soares Leite Martins Portela — AntónioFerreira Xavier Forte.

Regulamentos autónomos — Admis-sibilidade — Estatuto Político-Admi-nistrativo da Região Autónoma daMadeira

I — Em face do disposto no anterior artigo115.º, n.º 7 (e actual 112.º, n.º 8), da Constitui-ção só são admissíveis regulamentos autónomosquando baseados numa lei anterior expressa-mente habilitante em termos objectivos e subjec-tivos.

II — A alínea d) do artigo 49.º da Lei n.º 13/91, de 5 de Junho (Estatuto Político-Administra-tivo da Região Autónoma da Madeira), não con-tém os requisitos mínimos de lei habilitante daPortaria n.º 107/96, de 19 de Julho, na medidaem que não prevê a regulamentação da matérianela concretamente regulada.

Acórdão de 2 de Novembro de 2000Processo n.º 210/97

António de Almeida Coelho da Cunha (Rela-tor) — Carlos Evêncio Figueiredo Rodrigues deAlmada Araújo — José Cândido de Pinho.

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364 BMJ 501 (2000)Tribunal Central Administrativo

Nulidade da sentença [artigo 668.º,n.º 1, alínea b), do Código de ProcessoCivil] — (In)constitucionalidade don.º 2 do artigo 69.º da Lei de Processonos Tribunais Administrativos —Acção para reconhecimento de direitoou interesse legítimo — Idoneidadedo meio processual usado; Decreto--Lei n.º 81-A/96, de 21 de Junho —Resolução do Conselho de Ministrosn.º 23-A/97, de 14 de Fevereiro —Carácter oficioso e obrigatório dosprocedimentos administrativos aíprevistos

I — Não enferma da nulidade prevista noartigo 668.º, n.º 1, alínea b), do Código de Pro-cesso Civil a decisão que, embora sem obedecerao esquema do artigo 659.º, n.º 2, do mesmoCódigo, não deixou de apontar factos que en-quadram os fundamentos da decisão.

II — Sempre que a tutela do direito a que ointeressado se arroga possa ser efectivamenteassegurada pela interposição do recurso con-tencioso, a acção para reconhecimento de direitoou interesse legítimo não é o meio processualidóneo para atingir aquele fim.

III — A norma constante do n.º 2 do artigo69.º da Lei de Processo nos Tribunais Adminis-trativos, desde que interpretada no sentido pro-posto (n.º II deste sumário), não viola o dispostonos artigos 268.º, n.º 3, 268.º, n.º 4, e 268.º,n.º 5, todos da Constituição (versões de 1982,1989 e 1997, respectivamente).

IV — O Decreto-Lei n.º 81-A/96, de 21 deJunho, e a Resolução do Conselho de Ministrosn.º 23-A/97, de 14 de Fevereiro, vieram estabe-lecer um regime excepcional para regularizar asituação jurídica do pessoal que, em situaçãoirregular, satisfazia necessidades permanentesdos serviços da Administração Pública.

V — A finalidade dos procedimentos estabe-lecidos nestas medidas legislativas é a de «repora legalidade num Estado de direito democráticoe de tornar mais saudável a política de pessoalda função pública» (vide preâmbulo do Decreto--Lei n.º 81-A/96). Daí que, por imperativo legalos procedimentos administrativos aí previstostenham carácter oficioso e obrigatório.

VI — E tratando-se de procedimentos oficio-sos em que, naturalmente, impera o interessepúblico, a lei não prevê expressamente, naque-les procedimentos, a intervenção dos agentes acontratar.

VII — O n.º 5 da Resolução do Conselho deMinistros n.º 23-A/97, de 14 de Fevereiro, pre-vê, no entanto, a possibilidade de o pessoal quenão tenha sido objecto de pedido de celebraçãode contrato «recorrer dessa situação para oSecretário de Estado da Administração Pública,no prazo de 10 dias a contar da data da afixaçãodas listas nominativas em cada local de traba-lho, a ter lugar, obrigatoriamente, até 31 de Marçode 1997».

VIII — Este «recurso» para o Secretário deEstado da Administração Pública não confi-gura, no entanto, um «recurso administrativo»,nos termos dos artigos 158.º e seguintes do Có-digo do Procedimento Administrativo nem um«requerimento» que implique a prática de umacto administrativo por parte da entidade paraquem se «recorre».

IX — Na verdade, a resolução do Conselhode Ministros, sendo um mero diploma regula-mentar, não cria, nem pretendeu criar, uma novainstância de decisão. Do «recurso» previsto non.º 5 da resolução, o interessado apenas poderáesperar que o Secretário de Estado da Adminis-tração Pública desencadeie oficiosamente dili-gências no sentido de conseguir a resolução dasua «situação». E isto porque sempre teria quehaver um pedido dos serviços e do ministro datutela para a autorização da sua contrataçãopor despacho conjunto do Ministro das Finan-ças e do ministro que tiver a seu cargo a funçãopública.

X — Em todo este procedimento, podemos,pois, concluir que o acto administrativo princi-pal é a autorização ministerial conjunta para acelebração do contrato.

XI — Há, contudo, um outro acto adminis-trativo que define a situação jurídica do interes-sado em termos de autoridade. É esse acto odespacho do dirigente máximo do serviço (ar-tigo 6.º do Decreto-Lei n.º 81-A/96, de 21 deJunho) pelo qual se reconhece que o pessoal emserviço não desempenha funções que corres-pondem a necessidades permanentes dos servi-ços. Trata-se de um acto final do procedimento

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365 Tribunal Central AdministrativoBMJ 501 (2000)

para o pessoal em causa, na medida em quedefine em termos de autoridade a sua não inclu-são na lista nominativa a afixar no local de tra-balho (cfr. n.º 5 da Resolução do Conselho deMinistros n.º 23-A/97). Estaríamos, aqui, peran-te uma verificação ou avaliação constitutiva, ouseja, perante um verdadeiro acto administrativo.

XII — Tendo a recorrente (autora) lançadomão da acção para reconhecimento de direitoou interesse legítimo, a fim de ver reconhecido odireito de que se arroga em ser readmitida aoserviço da recorrida (ré) com a categoria quepossuía em 10 de Janeiro de 1996, ao abrigo

Custos de exercício — IRC — Fac-tura

Nos termos do artigo 23.º do CIRC, só seconsideram custos do exercício, os que compro-vadamente foram indispensáveis para a rea-lização dos proveitos ou ganhos ou para amanutenção da fonte produtora.

Embora não observando todos os requisitosdo artigo 35.º do CIVA, a factura pode, aindaassim, relevar para efeitos de IRC, nomeada-mente quando a realização efectiva do custo fi-cou provada por outro meio de prova legalmenteadmissível.

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso n.º 3360/2000

Joaquim Casimiro Gonçalves (Relator) — Joséda Ascensão Nunes Lopes — José Gomes Correia.

Embargos de terceiro — Posse —Direito de retenção

I — Quando o promitente-comprador obtéma entrega da coisa prometida comprar à dataem que efectua o contrato-promessa de comprae venda, ou em data anterior à da escritura pú-blica, apenas adquire o corpus possessório, pas-sando a ser um mero detentor, não dispondo de

posse nem de outra situação merecedora de tu-tela possessória.

II — Os embargos de terceiro, intentados pelopromitente-comprador, neste caso, estão conde-nados ao fracasso.

III — O direito de retenção incidente sobrefracção autónoma em que houve tradição parao promitente-comprador confere a este o direitodo seu crédito, resultante de incumprimento im-putável à outra parte, ser pago, com preferênciasobre os demais credores, mesmo que o registoda hipoteca seja mais antigo.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso n.º 3863/2000

Eugênio Martinho Sequeira (Relator) — MariaCristina Gallego dos Santos — José Carlos deAlmeida Lucas Martins.

IRC — Liquidação — Métodos indi-ciários — Fundamentação e sua noti-ficação — «Actos massa»

I — A fundamentação de um acto tributário,que visa esclarecer o seu destinatário das ra-zões que levaram a administração fiscal à suaprática, não se confunde com a sua notificação,sendo que esta, ainda que irregular, não contendecom a legalidade daquele.

do Decreto-Lei n.º 81-A/96, de 21 de Junho, enão resultando do processo instrutor qualqueracto administrativo (cfr. ponto II do sumário) deque a autora pudesse interpor recurso conten-cioso, terá forçosamente que se concluir que omeio processual usado é o meio adequado à de-fesa dos seus direitos.

Acórdão de 9 de Novembro de 2000Processo n.º 3882/2000

Helena Maria Ferreira Lopes (Relatora) — AnaPaula Soares Leite Martins Portela —AntónioFerreira Xavier Forte.

I I

SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO

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366 BMJ 501 (2000)Tribunal Central Administrativo

II — A liquidação em IRC, porque feita cente-nas de milhares de vezes em cada ano, constitui«um acto massa» e, porque assim é, tudo acon-selha a que não se exija de tais actos o mesmorigor formal que se deve exigir dos outros actosadministrativos que se destinam a situações es-pecíficas individualizadas.

III — Deste modo, e desde que seja clara aidentificação da entidade que praticou o acto eque o modo como essa prática ocorreu não setraduz em qualquer diminuição de garantias docontribuinte deve concluir-se pela sua legali-dade.

Acórdão de 22 de Novembro de 2000Recurso n.º 25 389

Costa Reis (Relator) — Brandão de Pinho —Vítor Meira.

IRC — Rendimentos de capitais —Substituição tributária — Responsa-bilidade

I — A entidade substituta que não tenha pro-cedido a legal retenção do IRC é responsável atítulo subsidiário pelo imposto devido — con-forme se alcança da redacção dada pelo De-creto-Lei n.º 267/91, de 6 de Agosto, ao n.º 2 doartigo 96.º do Código do IRS (aplicável ao IRC,por remissão do n.º 6 do artigo 75.º do Códigodo IRC).

II — Nesta hipótese, o devedor origináriosubstituído, titular do rendimento tributável, é oresponsável principal.

III — A liquidação de IRC, na medida em quenão se conforme com estes ditames, padece deilegalidade, determinante da sua anulação.

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso n.º 295/97

Jorge Lino Ribeiro Alves de Sousa (Relator) —Eugénio Martinho Sequeira — José Carlos deAlmeida Lucas Martins.

Impugnação judicial — Contribuiçãoautárquica — Sujeição — Caravana/Roullote

I — O conceito de prédio para efeitos de inci-dência da contribuição autárquica é mais vastoque face ao Código Civil, abrangendo os móveispor natureza, quando afectos a fins não transi-tórios.

II — Uma caravana/roullote instalada numparque de campismo durante mais de dez anos,sempre no mesmo local e sempre destinada aomesmo fim — de habitação durante o Verão parao gozo do período de férias do seu proprietá-rio — não se pode considerar afecta a um fimtransitório, preenchendo todos os requisitos desujeição a contribuição autárquica.

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso n.º 2685/99

Eugênio Martinho Sequeira (Relator) — Antó-nio Francisco de Almeida Calhau — José Maria daFonseca Carvalho.

Métodos indiciários para apuramentoda matéria tributável em sede deIVA — Amostragem

I — A utilização da amostragem para efeitosde determinação da matéria tributável para efei-tos de IVA, por métodos indiciários, implica queas amostras utilizadas sejam reflexo da popula-ção donde são retiradas, devendo ser justificadaa razão da escolha das amostras.

II — Não pode aceitar-se como válida umaamostragem que pretende determinar a margemde lucro, utilizando amostras aleatoriamenteescolhidas e sem que elas reflictam o preço e asquantidades dos produtos que constituem o vo-lume de negócios do contribuinte, e se limita asomar o lucro obtido em cada uma dessas amos-tras, dividindo o total pelo número de amostras.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso n.º 3395/2000

João António Valente Torrão (Relator) — JoséCarlos de Almeida Lucas Martins — Joaquim Pe-reira Gameiro.

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367 Tribunal Central AdministrativoBMJ 501 (2000)

Oposição — Tribunal de revista —Artigo 13.º do Código de ProcessoTributário — Responsabilidade sub-sidiária — Gerência de direito —Gerência de facto — Presunções

I — O Supremo Tribunal Administrativo,como tribunal de revista, nos processos inicial-mente julgados pelos tribunais tributários de1.ª instância e relativamente à fixação da maté-ria factual, tem unicamente os poderes que lhesão conferidos pelo artigo 722.º, n.º 2, do Có-digo de Processo Civil.

II — Não há qualquer disposição legal queconfira ao julgador a possibilidade de presumiro exercício da gerência de facto fundado apenasna prova da gerência de direito e, sendo assim,não se pode concluir que o revertido é gerente defacto só porque se considerou que este não lo-grou provar esse não exercício.

III — Deste modo, e sendo obrigatório umjuízo claro acerca daquela gerência, este só sepode fundar na prova efectivamente produzida edeve resultar do conjunto dos factos que foramdemonstrados.

Acórdão de 8 de Novembro de 2000Recurso n.º 24 890

Costa Reis (Relator) — Brandão de Pinho —Vítor Meira.

Recurso de contra-ordenação — Faltade consciência da ilicitude na nãodeclaração das gorjetas auferidaspelos empregados dos casinos comorendimentos do trabalho dependente

I — Do artigo 17.º do Código Penal, ao textuarque «age sem culpa quem actuar sem consciên-cia da ilicitude do facto, se o erro lhe não forcensurável», decorre a possibilidade de uma faltade consciência da ilicitude não censurável que severificará sempre que o engano ou erro da cons-ciência ética, que se exprime no facto, não sefundamente em qualidade desvaliosa e juridica-mente censurável da personalidade do agente.

II — Sobre a rectitude da conduta e ou dadesculpabilidade do erro quanto à obrigato-

riedade da declaração das gorjetas dos empre-gados dos casinos como rendimentos do traba-lho aponta o arguido e é aceitável à luz dosprincípios expostos, o apoio da doutrina expres-sa pelos juristas universitários, bem como dealguma jurisprudência tirada sobre tal matéria,que manifestamente afasta a culpa do arguido(mesmo na forma de negligência cuja presunçãoé ilidida pelo valor científico dos juristas que sepronunciaram já pela inconstitucionalidade).

Acórdão de 7 de Novembro de 2000Recurso n.º 2254/99

José Gomes Correia (Relator) — JoaquimCasimiro Gonçalves — José da Ascensão NunesLopes.

Trabalhador residente na Alemanhapor mais de 183 dias no ano de 1996 —IRS do ano de 1996 — Convençãocelebrada entre Portugal e Alemanhadestinada a evitar a dupla tributação(Lei n.º 12/82, de 3 de Junho)

I — De acordo com a Convenção celebradaentre o Estado Português e a República Federalda Alemanha e aprovada, para ratificação, pelaLei n.º 12/82, de 3 de Junho, os rendimentosobtidos de um emprego por um residente de umdos Estados contratantes, emprego esse exer-cido nesse Estado, são tributados nesse Estado.

II — Sendo o recorrido residente na Alema-nha por mais de 183 dias no ano de 1996, alitendo a sua habitação permanente e ali tendosido tributado pelos rendimentos de emprego aliexercido, não pode o Estado Português tributaros mesmos rendimentos em sede de IRS desseano, mesmo tendo o recorrente em Portugal oseu agregado familiar que aqui auferiu rendi-mentos sujeitos a IRS.

Acórdão de 14 de Novembro de 2000Recurso n.º 3991/2000

João António Valente Torrão (Relator) — JoséCarlos de Almeida Lucas Martins — Joaquim Pe-reira Gameiro.

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368 BMJ 501 (2000)Tribunal Central Administrativo

Transmissão de imóvel — Tributaçãoem IRS — Acto isolado de naturezacomercial

I — Há lugar a tributação em IRS, na catego-ria G sobre mais-valias, se o bem imóvel trans-mitido não foi adquirido para revenda, pois seassim for, o ganho assume a configuração delucro imputável a um acto isolado de comércio,sendo então tributado em IRS pela categoria C.

II — A configuração do acto isolado de natu-reza comercial exige que o particular actue se-gundo o regime de empresa, por associação de

dois ou mais factores de produção, em ordem àobtenção de um rendimento que, isoladamente,nenhum dos factores poderia produzir e à seme-lhança da actividade comercial de mediação en-tre a oferta e a procura e de acrescentamento devalores às coisas adquiridas para tal fim.

Acórdão de 21 de Novembro de 2000Recurso n.º 2695/99

Maria Cristina Gallego dos Santos (Relatora) —João António Valente Torrão — Joaquim CasimiroGonçalves.

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