5
IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM ENFOQUE EM ALUÍSIO AZEVEDO Révia Lima Herculano Acabara de ruir a ambiência subjetivista romântica, que alimen- tava o Eu interior e priorizava a sensação e a imaginação ora possi- bilitando vôos de transcendência ora telúricos conflitos quando,em meados do século XIX, novos princípios eclodem; sistematizam-se inúmeras correntes filosóficas:ouve-se o grito revoltado de Proudhon e seu socialismo utópico; vê-se o emergir do pensamento de Taine no qual meio, raça e momento determinam a atitude do homem. Neste entrecruzar de ideologias e tendências configura-se, na cultura ocidental, um estilo que, ao priorizar o não-Eu,abandona in- dagações teológicas, metafísicas e restringe-se à objetividade.Surge a Escola Realista, que pressupõe um comportamento científico, repu- blicano e socialista revestido de idéias antimonarquistas e anticlericais. Assim,com a publicação,na França, da revista Le Realisme nasce em 1857 esta nova Escola, consagrada com a publicação de Madame Bovary de Gustave Flaubert, obra que se contrapõe ao subjetivismo,já aludido, e ao exagero sentimental dos ultra- românticos. Forte é o traço determinista do Movimento, que associa, inti- mamente, universo, natureza e o homem, e os torna sujeitos, como organismos,aos mesmos princípios e finalidades.Até fatos sociais e de teor psicológico são submetidos a leis universais e são manifestações da matéria. Na verdade, o escritor realista deve se fundamentar no evolu- cionismo de Darwin, no positivismo de Comte,nas ciências médicas e suas áreas afins para dar um cunho científico à obra. Necessita tam- bém se apegar à lógica,priorizar a inteligência e a razão como verdade universal e submeter seus protagonistas a determinantes biológicos e sociais. Nenhum comportamento do personagem (realista)é gratuito. 177

IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM …€¦ · Aqui no Brasil, Aluísio Azevedo torna-se relevante naturalista com O Mulato,Casa de Pensão e O Cortiço, ao tempo em

  • Upload
    others

  • View
    9

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM …€¦ · Aqui no Brasil, Aluísio Azevedo torna-se relevante naturalista com O Mulato,Casa de Pensão e O Cortiço, ao tempo em

IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM

ENFOQUE EM ALUÍSIO AZEVEDO

Révia Lima Herculano

Acabara de ruir a ambiência subjetivista romântica, que alimen­tava o Eu interior e priorizava a sensação e a imaginação ora possi­bilitando vôos de transcendência ora telúricos conflitos quando,em

meados do século XIX, novos princípios eclodem; sistematizam-se inúmeras correntes filosóficas:ouve-se o grito revoltado de Proudhon e seu socialismo utópico; vê-se o emergir do pensamento de Taine no

qual meio, raça e momento determinam a atitude do homem. Neste entrecruzar de ideologias e tendências configura-se, na

cultura ocidental, um estilo que, ao priorizar o não-Eu,abandona in­

dagações teológicas, metafísicas e restringe-se à objetividade.Surge a Escola Realista, que pressupõe um comportamento científico, repu­blicano e socialista revestido de idéias antimonarquistas e anticlericais.

Assim,com a publicação,na França, da revista Le Realisme nasce em 1857 esta nova Escola, consagrada com a publicação de Madame Bovary de Gustave Flaubert, obra que se contrapõe ao subjetivismo,já aludido, e ao exagero sentimental dos ultra- românticos.

Forte é o traço determinista do Movimento, que associa, inti­mamente, universo, natureza e o homem, e os torna sujeitos, como

organismos,aos mesmos princípios e finalidades.Até fatos sociais e de teor psicológico são submetidos a leis universais e são manifestações da matéria.

Na verdade, o escritor realista deve se fundamentar no evolu­cionismo de Darwin, no positivismo de Comte,nas ciências médicas e suas áreas afins para dar um cunho científico à obra. Necessita tam­

bém se apegar à lógica,priorizar a inteligência e a razão como verdade universal e submeter seus protagonistas a determinantes biológicos e

sociais. Nenhum comportamento do personagem (realista)é gratuito.

177

Page 2: IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM …€¦ · Aqui no Brasil, Aluísio Azevedo torna-se relevante naturalista com O Mulato,Casa de Pensão e O Cortiço, ao tempo em

Em Portugal, o sucesso de Eça de Queiroz com as obras O Cri­

me do Padre Amaro e O Primo Basílio concorreu não só para consagrá-lo

mas para tornar vitoriosa a Escola a que se filiava.

No Brasil,Machado de Assis , no auge de seu ficcionismo,escreve

"Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", obras sinalizadoras

da nova fase do autor que passa, daí em diante, a criticar valores bur­

gueses. Valha acrescentar que a temática realista preocupa-se em con­

servar o aspecto ético- educativo,sendo seu sistema sintático subme­

tido à rigorosa ordenação, cultivando,assim, um claro estilo.O próprio

Eça torna-se romântico em suas formulações e, na aguçada ótica da

professora Noemi Elisa Aderaldo nele aflora o messianismo português

em inúmeras passagens de sua obra prenhes de nostalgia renovadora,

de esperança. "Os realistas,sim, chegam à utopia, ao buscarem aliança entre

arte, filosofia e ciência",diz Noemi Elisa .

Não nos parece pretencioso afirmar que Realismo e Naturalismo

brotam de um mesmo terreno, embora não sigam a mesma vertente.

Foi com o surgimento da obra Thérese Raquin do escritor fran­

cês Érnile Zola, que se acentuou o gosto em submeter persona­

gens literárias à análise científica.N a verdade, desde Balsac a ciência

impulsionava,de algum modo,o romance. O autor de A Mulher de Trinta

Anos afirmava ser obrigatório não sacrificar a verdade em detrimento

do artifício fantasioso. Flaubert,por exemplo,pesquisou em tomos médicos a síndrome

do envenenamento por arsênico com que detalhou a morte de Emma

Bovary,tendo, certamente, o reforço da inegável influência deTaine .

O Naturalismo é,por assim dizer, a literatura da continuidade, da

horizontalidade "metonímica",da arte voltada para o exterior,contendo

a verdade em si mesma.E o estilo que grafita mazelas sociais, fotografa

o fatalismo,a deformação cultural, trabalhando com exceções existentes

na sociedade.É a arte em natureza bruta.

Aqui no Brasil, Aluísio Azevedo torna-se relevante naturalista

com O Mulato,Casa de Pensão e O Cortiço, ao tempo em que Raul Pom­

péia projeta-se nacionalmente com O Ateneu e Artur Azevedo,irmão de

Aluísio,autor teatral e poeta, publica Contos Possíveis.

178

Page 3: IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM …€¦ · Aqui no Brasil, Aluísio Azevedo torna-se relevante naturalista com O Mulato,Casa de Pensão e O Cortiço, ao tempo em

Discípulo de Eça de Queiroz e principalmente de Zola,o jovem maranhense consagrou-se, muito moço, como um dos melhores ro­mancistas do Brasil e com certeza o mais audacioso.

Ao comprovar o realismo social com escritura considerada obs­cena Aluísio compreende que a função do artista deve ultrapassar à estética.Deste modo,com tintas fortes, negras até,denuncia a miséria da condição humana como forma de sintonizar, politicamente, com a grande massa, usando uma linguagem que a mesma entende.

O romance que lhe deu renome nacional e o levou de volta ao Rio de Janeiro foi o Mulato que concilia seus dois talentos:as letras e a pintura.

Numa confissão revelada a Coelho Neto, o próprio esteta reconhece:"Fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação que é a pin­tura. Quando escrevo, pinto mentalmente.Primeiro desenho os meus romances,depois redijo-os".

Vale informar que, na Casa de Balsac, em Paris, vê-se, ainda hoje,as figurinhas de massa ou de barro das quais o escritor fazia uso para se familiarizar com os personagens que ia colocando no papel.

Aluísio valia-se do desenho fotográfico,daí a clareza de seu texto literário.

A descrição dinâmica,quase pictórica de São Luís do Maranhão, em O Mulato, remete-nos a uma fotografia nua e imediata da realidade. O parágrafo de abertura coloca-nos sob sintomáticos elementos sen­soriais e numa seqüência de impressões comprobatórias,ao descrever um dia de calor na cidade brasileira:

"Era um dia abafadiço e aborrecido.A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças de água passavam ruidosamente a todo instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho."

179

Page 4: IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM …€¦ · Aqui no Brasil, Aluísio Azevedo torna-se relevante naturalista com O Mulato,Casa de Pensão e O Cortiço, ao tempo em

Rico em elementos realistas, o trecho descreve um mundo ás­pero, cru,pleno de personagens típicas. E o que é interessante,não in­dividualizadas.

Faz-se oportuno observar a grande semelhança de significantes

no parágrafo de abertura com o do livro Germina4 de Émile Zola, o qual anuncia,além das características acima citadas, uma descritiva obediente à

rigorosa ordenação lógica e a um latente processo coordenativo. Tanto quanto no texto acima, é visível a preocupação do autor

em lapidar a verdade com minúcias, em apontar a miséria de maneira

impiedosa. (Vejamos.) "Na planície lisa, numa noite sombria, sob um céu sem estrelas,

um homem caminhava, sozinho, pela estrada que vai de Marchiennes

a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterrabas. Nem mesmo o chão negro ele percebia, e a sensação do vasto horizonte plano apenas lhe chegava quando o vento de março soprava em gélidas lufadas, como em alto-mar, depois de terem batido léguas e mais léguas de paludes e terras escalvadas. Nem uma sombra de árvore manchava o espaço; a estrada se alongava numa planura de

quebra-mar, em meio à escuridão que cegava." Segundo Coelho Neto, Aluísio Azevedo era um entusiasta dos

romances de Zola e, sendo homem de poucos assomos,chegava a tracejar, com o cachimbo entre os dedos, a marcha dos mineiros em Montsou do famoso Germinal,obra documentada que influenciou, sobremaneira, a elaboração de O Cortiço.

Eça de Queiroz com O Crime do Padre Amaro renovou de algum

modo a escrita de Aluísio,mas, foram as lições do mestre francês que o ensinaram a ser,ao invés de escritor de uma trama, romancista de multidão.

Diz-se também de um Eça com sabor naturalista, que teria in­fluenciado, no fulcro da ação criminosa de Padre Amaro, Adolfo Ca­minha, em A Normalista, quando o mesmo alcança o ultra-realismo já em sua fase final.Em ambos não há ônus para o crime por sedução. Grávidas, as duas personagens Amélia do autor português e Maria do

Carmo do autor cearense são escondidas em locais distantes e têm seus filhos assassinados.

Nesse painel de sirnilitudes estão os desfechos de O .Cortiço, e de Nana, de Zola.São duas das mais patéticas cenas da novelística na-

180

Page 5: IDENTIDADE E DIFERENÇA REALISTA-NATURALISTA COM …€¦ · Aqui no Brasil, Aluísio Azevedo torna-se relevante naturalista com O Mulato,Casa de Pensão e O Cortiço, ao tempo em

ruralista, sobrecarregadas do elemento irónico que lhes caracteriza a trágica densidade.

Diz o primeiro: " ... Bertoleza então,erguendo-se com ímpeto de anta bravia, re­

cuou de um salto e,antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.

E depois emborcou para a frente,rugindo e esfocinhando mori­bunda numa lameira de sangue.

João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapan­do o rosto com as mãos.

Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha,de casaca,trazer-lhe respeitosa­mente o diploma de sócio benemérito.

Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas." No mesmo tema de patologia social, amoralismo e sublinhada

indiferença Zola recria Nana, a prostituta de alto preço que arruína ho­mens ricos e cuja morte coincide com os primeiros estouros da guer­ra. O cadáver da protagonista, descrito com detalhes do horrendo, é abandonado pelos amigos,apontando o autor para a falsidade e para a enganadora riqueza do império.

" ... A Vênus decompunha-se.Parecia que o vírus por ela contra­ído nas valetas, nas podridões toleradas,acabava de lhe subir ao rosto, apodrecendo-o.

O quarto estava vazio.Um grande sopro desesperado subia do bulevar e inflava a cortina:

A Berlim! A Berlim!A Berlim!" Para encerrar, em contraponto a tanta crueza, gostaria de men­

cionar o gênio do romance, Marcel Proust, quando divisa o amor e mede espaço e tempo com o coração. Depois, lembrar o apósto­lo Paulo em sua primeira carta aos Coríntios, no versículo XX do capítulo VI,fazendo a seguinte exortação:

"Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai a Deus no vosso corpo".

181