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JOÃO JOSÉ REIS Domingos Sodré, um sacerdote africano Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século X IX

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História da Bahia

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  • J O O J O S R E I S

    Domingos Sodr, um sacerdote africanoEscravido, liberdade e candombl na Bahia do sculo X IX

  • Feitiaria e escravido

    IE CRIME SER F E I T I C E I R O ?

    Semelhante pergunta foi feita, em 1846, no Recife, pelo advo- do de defesa de Agostinho Jos Pereira: um preto brasileiro, krolo portanto, que liderava um culto cristo prxim o do pro- stantismo em sua rejeio a imagens e em sua afeio leitura e ferpretao individual da Bblia. Por isso o h istoriador M arcus arvalho o chamou de pastor, m as na sua poca Agostinho foi Miheddo como Divino M estre, e te rm in o u preso, en tre outras legaes, por pregar a revolta escrava, am eaando fazer no Bra- lo que tinham feito os negros no Haiti. Seu defensor achava ptar-se de perseguio religiosa, e in terpelou o tribunal: Que neser cismtico?.1 O cism a religioso, afinal, no consti- Jb crime. A Constituio de 1824, logo no seu artigo 5, apesar feianter como oficial a Religio Catlica Apostlica Rom ana, nitia todas as outras, desde que se lim itassem ao culto do- tico, ou particular em casas para isso destinadas, sem form a ilguma exterior de Templo.2 O legislador, porm , no tinha em

  • m ente liberar cultos cismticos encabeados por negros como Agostinho Pereira, e m uito m enos o candom bl ou o Isl, religies tipicam ente de africanos no Brasil oitocentista. Se a letra da lei no definia que religio seria tolerada, o esprito da lei protegia apenas os europeus no-catlicos que aqui residissem. A liberdade religiosa fora concebida com eles em mente.

    No Brasil imperial, as prticas religiosas de m atriz africana existiam num a espcie de limbo jurdico. No eram consideradas religio pelas autoridades e portanto passveis de serem toleradas, conforme rezava a Constituio. O linguajar hegemnico das autoridades civis e eclesisticas, e da imprensa, por exemplo as tinha na conta de superstio ou feitiaria. Mas essas formas de ver e atuar no m undo tam pouco constituam crime segundo o Cdigo Crim inal do Im prio, ao contrrio do que ocorria na antiga colnia sob a legislao inquisitorial e outras leis eclesisticas e civis. T inha o cdigo imperial um captulo que punia ofensas religio e aos bons costum es (mas s sendo em lugar pblico) e outro que proibia ajuntam entos ilcitos, porm no explicitava que cerim nias religiosas de qualquer natureza fossem ofensivas ao catolicismo ou ilcitas, m enos ainda as consultas individuais de adivinhao e outros rituais privados. As penas variavam entre priso de at quarenta dias e m ulta .3 De fato no encontrei algum enquadrado no cdigo por reunir-se em can- j dom bl na Bahia. Assim, quando as autoridades rotulavam os sacerdotes africanos de feiticeiros e prom otores de supersties, isso no tinha efeito legal positivo, constitua discurso de desqualificao social, cultural e tnica, em bora com conseqncias para os assim desqualificados. Pois no faltavam meios de punir os negros que desviavam da religio oficial e dos costum es conven- ; cionais, sobretudo meios para perseguir a liderana de religies como o candombl.

    Em tem pos passados, ao longo da prim eira m etade do s I culo XIX, os batuques africanos tinham sido proibidos porque I

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  • muitas autoridades acreditavam que serviam de ante-sala para a revo lta escrava. Paralelamente a tais preocupaes, as posturas m unicipais, as resolues e os editais policiais justificavam a proibio pelo incm odo que os tam bores causavam aos m oradores de cidades e vilas, alm de supostamente promoverem com portam entos indecorosos, prom overem bebedeiras, desordens e desviarem escravos de seus afazeres. D urante a segunda m etade do sculo, cessado o m edo das revoltas escravas, esses outros m otivos ganhariam mais espao no raciocnio que orientava a represso ao candombl. Mas, conform e j indiquei no prim eiro captulo, um argumento de ordem mais geral seria usado contra o batuque africano, e o candom bl em particu lar, que seria ap o n t-lo com o poderoso obstculo ao processo civilizatrio ocidental no qual as elites educadas desejavam encaixar o Brasil. A represso nesses termos tam bm carecia de base legal ntida, mas se fazia, assim mesmo, atravs de leis locais. Em Salvador, proibiam -se lundus, batuques e quaisquer outros divertim entos no turnos capazes de perturbar a paz. Em 1860, data prxim a priso de D om ingos, a Postura M unicipal na 59 rezava: so proibidos os batuques, danas e ajuntam entos de escravos em qualquer lugar e a qualquer hora, sob pena de oito dias de priso. Essas leis foram insistentemente reeditadas, com variaes, at o incio da dcada de 1880 pelo menos. O candombl, em bora sem aparecer explicitamente, se encontrava nelas includo .4

    O raciocnio legal em butido nesses editais ficava am ide ao sabor da interpretao das autoridades, e assim abria brechas negociao da tolerncia. Isso claro num episdio acontecido 6,11 dezembro de 1860. frente de um a diligncia que investigava denncia feita ao chefe de polcia, o subdelegado Miguel de Sou-

    1 Requio, do prim eiro distrito da freguesia de Santo Antnio, um a casa na Cruz do Pascoal onde haviam danas proi-

    Alm da m oradora, a africana liberta M aria Benedita, ele

  • prendeu outra liberta e cinco escravas, e recolheu-as todas na cadeia da Casa de Correo, ali perto .5 No terreiro, Requio encontrou os objetos prprios das mesmas danas, que foram confiscados e enviados ao chefe de polcia Jos Pereira Moraes. Este, no despacho que anotou no mesmo dia sobre o ofcio do subdelegado, escreveu: diga-se que visto no haver fato algum que d lugar a processo, passadas vinte e quatro horas, m ande p-las em liberdade advertindo-as de que no devem continuar a perturbar o sossego pblico.6 Nem os oito dias de priso estabelecidos em lei seriam aqui cum pridos.

    Nos editais da polcia e nas posturas m unicipais sequer se distinguiam os batuques de ordem religiosa dos demais, como os lundus e sambas domsticos ou de rua. Dom ingos Sodr, porm, no se enquadrava na definio de perturbador do sossego pblico porque no prom ovia sesses de batuque de nenhum a ordem em sua casa, pelo que se sabe. Teria, ento, que ser investigado e punido por outro delito, e o foi por suspeita de receptao de objetos roubados, ou estelionato, que era crime em geral imputado aos pais-de-santo quando as autoridades daquele Brasil decidiam tir-los de circulao .7 Todavia, essas autoridades podiam discordar de com o agir. O chefe de polcia que h pouco despachou sobre o terreiro da Cruz do Pascoal pun iu as suas presas com apenas 24 horas de recluso, por perturbarem o tal sossego pblico. O chefe de polcia Henriques, com o j vimos, considerava os lderes de candom bl todos especuladores nocivos a econom ia do pblico. E foi sob essa alegao que, inicialmente, pretendeu abrir processo contra nosso Domingos.

    Cham aram a ateno da polcia, em particular, os dois rel- J gios de parede e as jias encontrados na casa da ladeira de Santa Tereza. Por que tanto gosto, da parte de um liberto africano, enl ver as horas? Em tese, ele no poderia ou no deveria possuir relgio de parede, pelo m enos honestam ente. Haveria algo erra1do

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    ejn estar o africano interessado em objeto to afim com a civilizao m oderna. Passo um a vez mais a palavras ao subdelegado pompio:

    consta-me que muitas africanas e africanos, aliciados levavam objetos furtados de seus senhores ao mesmo [Domingos], para a ttulo de ofertas, conseguirem sua liberdade, e mesmo com bebidas e mistos empregados, e que lhes dar [sic] a beber conseguirem amansar seus senhores, e outras frioleiras, que impressionam a tais pessoas estpidas; e assim vo tais especuladores se locupletando com a credibilidade dos incautos, e concorrendo para a perda de muitos africanos que hoje inutilizados vivem sem que seus senhores possam contar com seus servios.8

    Bajulador, o subdelegado apenas confirmava, com palavras quase idnticas, as suspeitas a ele comunicadas pelo chefe de po lcia Joo Antonio Henriques de que os freqentadores do papai seriam escravos que trocavam objetos roubados por alvio do cativeiro. Jos Egdio Nabuco, fncionrio da Alfndega, denunciara Domingos Sodr exatam ente porque um a de suas escravas, Theodolinda, nag como o adivinho, tinha levado para esse covil imensos [quer dizer, m uitos] objetos de valor alm de dinheiro , segundo relato do chefe de polcia. Nabuco m orava na rua da Lapa, tambm na freguesia de So Pedro Velho, mas a alguma distncia da residncia do papai. Ainda de acordo com aquela autoridade, Domingos e suas asseclas tinham outros clientes,

    da escrava Theodolinda. O grupo do adivinho vivia ali- clando os escravos que da casa de seus senhores furtam quanto Pdem pilhar, e lhes vo levar, a ttulo de por meio de feitiarias Aterem liberdade.9 Ao delito de contribuir para am ansar se-

    nhor e rnutilizar escravo para o trabalho, agora se somava o de P mover alforria revelia senhorial.

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  • O chefe de polcia intua sobre econom ia poltica do eb, a oferenda devida aos deuses em troca dos benefcios desejados. Mas Henriques talvez precisasse saber um pouco mais disso, como, por exemplo, que consultas e oferendas podiam ser custosas, sob pena de fraco resultado, ou fracasso completo, na negociao com os deuses. O sacerdcio africano era, por consenso cultural, ocupao rem unerada de acordo com o servio individualmente prestado. Algo disso vinha da frica, onde a cultura da adivinhao e do eb era, na poca, am plam ente difundida. Do outro lado do Atlntico circulava, inclusive, mais dinheiro. J. D. Y. Peei observa que no sculo xix o pagam ento de sesses de adivinhao e de cura representava um a das mais im portantes fontes de dbito entre os iorubs .10

    Claro, havia na Bahia os papais que exageravam na conta de seus prstim os, ao exigir talvez somas bem maiores do que as sugeridas pelos deuses nos jogos de adivinhao. E denncias foram feitas nesse sentido prpria polcia, inclusive por africanos que se consideravam lesados. Em 1856, a liberta M aria Romana de Santa Rosa, de nao jeje, alegou ter perdido tudo o que tinha, inclusive um a casa, para um curandeiro africano que prometera sarar seu m arido e em vez disso o m atara .11 O chefe de polcia Henriques achava que s havia esse tipo de gente na comunidade religiosa africana. Ele estava convencido de que, em Salvador, pululavam especuladores com o Dom ingos e prom etia combat-los para garantir a propriedade alheia e prevenir tristes conseqncias. Q uando assim escreveu, tinha em m ente os interesses de senhores de escravos, como o alfandegueiro Jos Egidi Nabuco, ou de escravistas ainda maiores, e no de africanos libertos com o M aria Rom ana. A am eaa ao negcio da escravido explicava, em boa medida, a represso ao candombl, neste e noutros casos. Estas as tristes conseqncias que se deviam evi tar. O chefe de polcia foi taxativo ao com unicar ao subdelega^0

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  • seu em penho em extirpar semelhantes supersties, tanto mais n0civas num pas em que um a grande parte de sua fortuna est e m p re g a d a em escravos.12

    a a r t e d e a m a n s a r s e n h o r

    Era com um na Bahia da poca a opinio de que candom bl e escravido no faziam boa mistura. Acusaes dessa ordem abundam em docum entos policiais e na imprensa. O subdelegado que prendeu o africano Cipriano Jos Pinto em 1853 (caso que detalharei no captulo 6 ) o considerava perigoso porque a regio onde ele m ontara terreiro, o Recncavo, era, com seus m uitos engenhos, m orada de um grande nm ero de Africanos. Da se dever precaver o m au resultado que porventura possa aparecer de semelhantes Clubios [clubes].13 A preocupao dessa au toridade era que o candom bl do africano se transform asse num a organizao subversiva, num clubio que atuasse na prom oo da revolta escrava.

    Porm, a relao entre candombl e resistncia escrava seguia, sobretudo, outros caminhos, alis j trilhados desde o perodo colonial. A idia de lanar m o de recursos rituais para controlar o poder senhorial, para am ansar senhor, por exemplo, nha uma certa idade, como m ostram alguns estudos sobre o Perodo colonial. Um caso de 1646, na capital da Bahia, envolveu Um ut:ro Domingos, este, o liberto Domingos Um bata, de ori- 8em portanto Mbata, no antigo reino do Congo. Para proteger duas escravas suas clientes do m au hum o r das respectivas se- uhoras, ele recom endou banhos com infuso de certas folhas

    aceradas, um chocalho e dente de ona. Mais tarde, em 1702, lesuta noticiou que no Recncavo baiano escravos angolas

    avam de m isturas msticas para am olecer o corao de seus

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  • senhores. Em m eados do Setecentos, nas M inas Gerais, duas escravas chamadas Joana foram acusadas de usar feitio para abrandarem e fazerem m ansa a sua senhora para que no as castigassem, segundo registrado em devassa investigada por Andr Nogueira. Em todo o m undo luso-atlntico os escravos lanaram mo de diferentes meios com o mesmo objetivo. Uns usavam raiz de trigo, outros raspavam a sola do sapato do senhor para prepararem poes adequadas de am ansam ento, outros ainda usavam p de caveira de defunto. No mesmo ano em que Domingos Umbata encantava senhoras, um a m ulata baiana, Beatriz, encheu o travesseiro de sua dona com pequenos patus feitos com pedaos de penas e bicos de pssaros e conchas do mar para que ela a tratasse bem , a amasse. Alm de am ansar senhores para m elhor conviver com eles, os escravos no Brasil colonial cuidavam de se livrar deles atravs da alforria. Por t-lo ajudado na rota de fuga, o escravo M anoel de Barros deu ao escravo Joo da Silva um patu que o ajudaria a conseguir sua liberdade. Isso aconteceu em Jacobina, serto da Bahia, em 1742.14

    Laura de Mello e Souza m ostra que tanto os feitios para am ansar senhor quan to aqueles dirigidos a conseguir alforria no eram, ao contrrio do que prope James Sweet, sempre de origem africana. Eram, de fato, am ide confundidos ou refundidos com tradies mgicas europias usadas pelos mais fracos, e no apenas os escravos, para controlar a vontade dos mais fortes. Feitios coloniais como os acima m encionados continuavam a im perar no Brasil do sculo XIX e faziam parte do repertrio de servios oferecidos p o r D om ingos Sodr. Nesse caso, porm, em bora no tenham os detalhes, a parafernlia ritual encontrada pela polcia sugere um com ponente africano mais denso.

    O am ansam ento de senhores por seus escravos no perodo

    u

    uel de Macedo, Vtimas-algozes. Em Macedo, a m orte de um senhor por envenenam ento constitui o tem a central do episdio Pai Raiol o feiticeiro.15 O m edo no era destitudo de fundamento, como percebera o rom ancista no Rio de Janeiro. Fiel a seu projeto de alim entar o sentim ento de tem or ao escravo para melhor convencer seus leitores das vantagens da abolio, Macedo escreveu sobre os mais diversos efeitos dos preparos do negro herbolrio, o botnico prtico que conhece as propriedades e a ao infalvel de razes, folhas e frutas. Essas, entre outros resultados, abatem com as foras fsicas a fora m oral do hom em , e [alcanam] ao que eles cham am amansar o senhor.16 Q ue se registre o rom ancista a afirm ar que os prprios escravos batizaram a expresso am ansar senhor. O fenmeno e mesmo o vocabulrio da feitiaria de resistncia escrava estavam disseminados pelo Brasil afora, tinham dimenso verdadeiramente nacional, em bora nunca tivessem alcanado as propores epidmicas do Haiti pr-revolucionrio. Ali, alm de surtos de envenenam ento capital de escravos e senhores que antecederam a revoluo, na rotina da resistncia cotidiana escravos tentavam am ansar senhores com doses homeopticas de veneno, s vezes ao longo de meses. Se a crueldade senhorial persistisse, escreve Carolyn Fick, as doses podiam ser aum entadas e finalm ente induzir m orte.17 No Brasil, conhecido pelo m enos um caso em que am ansam ento senhorial esteve ligado a um a revolta escrava, em 1882, em C am pinas. Mtodos de am ansar senhores e feitores e torn-los fracos e doentios foram denunciados em inqurito formado para inves- hgar o episdio, um a vasta conspirao liderada por hom ens que Se diziam detentores do segredo ou do poder espiritual.18

    Na Salvador oitocentista, no era som ente Dom ingos quebrava no ram o de controle da ira dos senhores e de prom oo

    imperial chegou a fazer parte do que Flora Siissekind c h a m o u de alforria. Em 1848, por exemplo, um subdelegado da capitalimaginrio do m edo, em estudo sobre o livro de Joaquim Ma-

    denunciou africanos livres da naao nag que trabalhavam no

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  • Arsenal da M arinha de tentarem induzir outros africanos, estes escravizados, a fazerem feitio e tratarem de liberdade.19 O empregador, no caso a M arinha, devia por lei sustentar, curar, batizar e ensinar a dou trina crist a seus tutelados, que tinham sido apreendidos de contrabando aps a proibio do trfico, em 1831. No parecia cum prir pelo m enos essa ltim a obrigao. Os prprios africanos livres deviam ter interesse no feitio que recomendavam a seus pares escravos, pois eram sistematicamente tratados com o escravos. No Arsenal, eles estavam sujeitos a um feitor, que noite lhes passa revista, fecha-os, segundo o intendente da M arinha .20

    Cinco anos depois, na ilha de Itaparica, um a escrava africana acusada de ten tar envenenar toda a famlia senhorial declarou ter apenas m isturado ao caf por ela servido p de bzio ralado e limo, o que fizera por lhe ter[em ] ensinado que era bom para abrandar os senhores.21 Essa africana decerto sabia que bzios, alm de servirem de m oeda na Costa da frica, talvez at por isso m esm o, com o j disse, tinham im portan tes funes rituais adornavam emblemas de deuses e eram instrum entos de adivinhao, por exem plo e, portan to , deveriam servir para os

    objetivos declarados.Os casos de envenenam ento de senhores por escravos as

    sim como de escravos que envenenavam outros escravos e ate animais se repetem na docum entao policial, embora raram ente se inform e sobre qual o ingrediente m inistrado. Muitas vezes eram ervas e razes da m edicina africana, outras venenos com prados ou roubados a boticrios e taberneiros, sendo o ro- salgar o mais com um ente usado. O contedo da poo ofereci 3^ famlia senhorial pela escrava de Itaparica, por exemplo, f01 , examinado por mdicos da Faculdade de M edicina da Bahia, qu^ concluram tratar-se de cido branco de arsnico, ou rosalg31 1 segundo o chefe de polcia .22 Certam ente, vm itos e tonturas o

    que consum iram aquele caf no foram causados p o r p de b zio apenas, mas essa pode ter sido a inform ao passada escrava por quem lhe forneceu o rosalgar ou outro veneno qualquer. um caso em que um a nova base material o rosalgar se ajusta a um universo m gico-religioso conhecido, atravs de cujos princpios se explicaria a eficcia da m edicina anti-senhorial.

    A venda de droga venenosa a escravos era estritam ente proibida, como estabelecia um a postura municipal de Cachoeira em 1847. Em 1859, um a postura de Salvador proibia a venda nas boticas e casas comerciais de substncias venenosas, e suspeitas a quem no se apresentasse com receita ou guia de Professor com petentem ente au torizado, na qual se declare a qualidade e quantidade, o nom e das pessoas que as pretende com prar e para que fim, sob pena de 30 mil-ris e oito dias de priso .23 Mas o uso de plantas no podia ser controlado. H indcios de que foi por esse mtodo que, em 1860, no distrito de Brotas, periferia de Salvador, o escravo M anuel, crioulo, pedreiro, envenenou seu senhor, Constantino Nunes M ucug e duas de suas escravas, Felizarda e M aria, provveis baixas colaterais que provaram talvez restos da com ida senhorial. M ucug e Felizarda sobreviveram, Maria morreu. M anuel foi enquadrado no artigo do cdigo criminal que punia com a m orte escravos que atentassem contra a yida do senhor.24 M ais perto de Dom ingos, na vizinha rua do Areal de Cima, em 1879, um a dona Senhorinha de tal, natural da vila de Valena, m orreu envenenada por seu escravo Elias, que mtrduziu certas folhas no vinho que ela costumava beber.25

    Passou por m inha cabea que Domingos pudesse ser o forne- Cedor das ervas usadas por Elias, mas, se no, sua atuao envol-

    nurn sentido mais amplo, prticas e crenas com o as descri- acima, sobretudo as da escrava de Itaparica. O papai prom etia

    p j catlvos trabalhar no sentido de lhes conseguir a liberdade, ou menos de alivi-los dos rigores da escravido, am ansando

  • seus senhores com frm ulas m edicinais. A farm acopia nag- iorub, po r exemplo, riqussim a em folhas tan to para ataque quanto para proteo, para beneficiar e prejudicar, cujo uso deve, em tese, vir acom panhado de encantaes pronunciadas pelo ba- bala. Dela faz p arte a erva-da-guin ou sim plesm ente guin (.Petiveria alliacea), por exemplo, tam bm conhecida precisam ente como am ansa-senhor. Tem propriedades antiespasm- dicas, ideal para relaxar msculos senhoriais, portanto. Cristina W issenbach observa que a erva-da-guin, usada pelos escravos contra senhores, caracterizava-se por um a ao insidiosa e lenta, causando estados de letargia que precediam a m orte.26 O botnico R oberto M artins Rodrigues d mais detalhes sobre os efeitos da erva: o p de sua raiz fracionada provoca superexcita- o, insnia e alucinaes, aps o que sobrevm a indiferena e at a im becilidade, seguindo-se o am olecim ento cerebral, convulses tetaniform es, paralisia da laringe e em seguida a morte, no prazo de, aproxim adam ente, um ano, dependendo das doses ingeridas.27

    Aqui tem os a guin com o poderoso instrum ento de ataque. No sistema medicinal-religioso iorub, a erva serve, segundo Pier- re Verger, para evitar a agresso de algum , do senhor por exemplo. Para esse fim, o babala ensina como prepar-la, em combinao com o m entrasto (Ageratum conyzoides): Q ueim ar. Desenhar o odu na preparao. Fazer um a inciso na cabea e esfregar nela a preparao.28 Nada garante, claro, que os escravos se utilizassem dessa receita especfica na Bahia, que, segundo Verger, foi coletada na frica, portan to fora do contexto brasileiro. Mas ela pode ter sido criada aqui e levada para l, por nagos retornados, como alis o prprio vegetal foi levado para a Nig' ria iorubana, ainda conform e Verger. Afinal, como diz uma cano religiosa colhida na Bahia por N ina Rodrigues no final do sculo xix, todas as folhas so de orix.29

    r O utras espcies vegetais tinham a finalidade de defender 0 escravo da violncia senhorial, da serem tam bm conhecidas como amansa-senhor. o caso do m ulungu (Erythrina speciosa) que, bem a propsito, possui propriedades sonferas.30 Wissenbach cjta o diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Joo Baptista Lacerda, que em publicao de 1909 escreveu a respeito de negros herbolrios a quem entrevistou: Por mais que inquirisse, nunca me souberam dizer com preciso de que plantas tiravam os escravos o veneno que propinavam aos senhores: apontavam - me a raiz do pipi, da esponjeira, o estram nio, a herva-m oira, a taioba ou taj selvagem plantas narcotizantes, irritantes e pa- ralysantes.31 As ervas usadas para amansar senhor provavelmente, ento, faziam parte de um complexo medicinal que no se restringia a um ou dois tipos e que produziam efeitos variados.

    No sei se Dom ingos usou de alguma dessas ervas ou de o u tras, e, se as usou, onde teria aprendido sobre suas propriedades, no Brasil ou na frica. O term o erva-da-guin sugere um a presena antiga no Brasil do tem po em que os africanos eram todos referidos como negros ou gentios da Guin. Refiro-me, quanto Bahia, ao sculo xvi at m eados do xvni, principalm ente .32 Por isso, fica prejudicado determ inar sua origem especfica na frica. J o term o m ulungu tem bvia origem banto , e, alm de se referir a um conjunto variado de plantas do gnero Erythrina, denomina um tipo de tam bor com prido e estreito, de som retumbante, segundo Yeda Castro .33 Se o m ulungu foi usado por curandeiros nags na Bahia, eles estariam a lanar m o de recur- S0S formacopaicos aqui assimilados de africanos de outras o rigens provavelmente. Como observou Lacerda, alm do m ulungu e da erva-de-guin, m uitas outras plantas serviam resistncia escrava e alimentavam a tecnologia de am ansar senhor. Alm do rein Vegetal, outros elementos da natureza decerto se incorpo- ariam a esse conjunto medicinal, a exemplo de certos minerais anirnais, como caracis, lagartos e sapos, animais de sangue frio,

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  • peonhentos m uitos, am ide confiscados pela polcia baiana nas casas dos curandeiros que vasculhava. O arsenal para amansar senhor seria, enfim , vasto e complexo, provavelm ente varivel segundo a qualidade do inimigo, seu poder social, a cor de sua pele, se brasileiro ou africano, se hom em ou m ulher e dependente, alm disso, quanto sua eficcia, da com petncia e criatividade (da honestidade?) do feiticeiro, curandeiro, sacerdote ou que nom e se d ao dom ador de senhor.

    A escravido por natureza um sistema violento de dominao, mas m uitos senhores excediam e careciam de ser devidam ente controlados em sua clera, como o coronel Joo Alves Pi- tom bo. Em 1857, suas escravas Gabriela e Ignez foram remetidas pela polcia ao Hospital de Caridade da Santa Casa porque se achavam bastante m altratadas. O espancam ento de escravos parecia um hbito da famlia Pitom bo. Cinco anos depois, a mesma Gabriela foi esbofeteada at sangrar pela m ulher do coronel, dona M aria Rosa Alves Pitom bo. A escrava queixou-se polcia, que a devolveu senhora por achar a agresso dentro dos limites permitidos pela lei. Mas a escrava revoltou-se contra a lei e recusou-se a perm anecer em com panhia de dona Pitombo, pelo que foi presa. Sua senhora ficaria sem us-la e abus-la durante o tem po em que permanecesse atrs das grades.34

    M uitas vezes a polcia tinha de intervir em favor do escravo seviciado. O italiano Jos Macina era senhor da mesma laia do casal Pitombo. Recebida a denncia de que ele espancava sua escrava, o subdelegado M iguel de Souza Requio se dirigiu casa dele, onde o encontraria bbado na sala de jantar, enquanto no quintal jazia a escrava bastante m altratada por ele. Ela teve que ser internada no hospital da Santa Casa para se curar. O italian era casado, sua m ulher e filhos ainda pequenos tinham conseg^ do fugir de sua fria para um a casa vizinha, e sobrou v io lncl

    para a escrava.

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  • Como esta, m uitas outras cativas sofreram sevcias. Em setembro de 1857, o chefe de polcia recolhia a africana Emilia, escrava de Mathias de tal, contra quem se queixa de m altratos, e devolvia a escrava M aria Antonia a seu senhor, M anoel de Andrade Bastos, mas o advertia que s pode castigar sua escrava moderadamente. Trs meses depois, Verssimo Joaquim da Silva foi obrigado pelo chefe de polcia a assinar term o de responsabilidade em que se obrigava a tratar d ora em diante bem a sua escrava M aximiana, crioula, no castigando-a pela form a por que costuma.35 Havia at senhor especializado em am ansar escravo pela violncia. N um inqurito de 1887 para investigar a morte de um cativo brutalm ente seviciado pelo senhor, um a testemunha afirmou que este era sobremodo desum ano e carrasco com os escravos, tanto que quem tem escravos valentes e ruins manda para ele ensinar e am ansar.36

    Senhores brasileiros, italianos, mas africanos tam bm podiam ser de uma brutalidade extrema. Joclio Teles dos Santos escreveu sobre episdio envolvendo a liberta Maria Joaquina de Santana, jeje, e sua escrava Rosa, nag, em 1832. A senhora, sob alegao de que a escrava fugia com freqncia, castigava-a brutalm ente. Numa das surras, cortou-lhe fora, com um a faca, um bom pedao do lbio superior. A vizinhana do povoado pesqueiro do Rio Vermelho, nos arrabaldes de Salvador, onde viviam as duas m ua r e s , acompanhava horrorizada as sesses de sevcia. Num a oca- Sla, a escrava foi acorrentada a um cepo e levada (com o cepo sbre a cabea) a um lugar fora da povoao para ser castigada distante da censura pblica. No cam inho, por um descuido de ^ aria Joaquina, Rosa escapou, refugiou-se na igreja de Santana,

    0nde a senhora tentaria retir-la fora, no que foi im pedida ^ Um sldado que a levou para o juiz de paz. Submetida a exa-

    COrPo de delito, encontraram na escrava cicatrizes velhas nvas npor todo o corpo ndegas, costas, braos, pernas fei-

  • 29. O pacato povoado do Rio Vermelho (c. 1860), onde aconteceram os episdios de sevcia protagonizados pela

    liberta Maria Joaquina e sua escrava Rosa.

    tas a chicote, e, alm disso, tem o grande defeito da perda da m etade do lbio superior ao lado esquerdo, que deixa aparecer quatro dentes, o que faz aparecer um a feio horrenda. A senhora ficou 25 dias presa e foi obrigada a vender a escrava. Em mais de trs dcadas de pesquisa nos arquivos baianos, no encontrei caso de processo e m uito menos punio de senhor por maltratar seus escravos, exceto inquritos, que deram em nada, quando resultou m orrerem . Como sugeriu Teles dos Santos, fosse Maria Joaquina senhora branca provavelmente no teria sido punida.1'

    Todos esses casos de violncia senhorial aconteceram na Bahia de Dom ingos e, exceo do ltim o, a m aioria em anos prxim os ao da priso do papai. Numerosos na documentaa0 policial, eles explicam por que os escravos precisavam da atuao dos especialistas em am ansar senhores, sobretudo q u a n d o nem a polcia conseguia esse feito. De alguma maneira, DomingoS

    156

  • S o d r com petia com o chefe de polcia quanto a quem m elhor desempenharia essa misso, se este com a ajuda de seus agentes e a fora da lei, ou aquele com a ajuda dos deuses e a fora dos ebs, amuletos e beberagens. Os escravos podiam escolher um e o u tro , ou ambos, para controlar a violncia senhorial.

    O escravo que procurava D om ingos no m nim o potencializava um a vontade pessoal para desobedecer ao senhor e relaxar no trabalho, e assim se inutilizar para o cativeiro. A fuga estava implcita nisso. M uitas vezes, a fuga do escravo se relacionava com o cum prim ento de obrigaes religiosas especficas. Aqui talvez resida um a im portante diferena entre o calundu colonial e o candombl oitocentista. Os escravos do Oitocentos, e em particular as escravas, escapavam com freqncia para participar de celebraes ligadas ao calendrio litrgico que se fixou ao longo daquele sculo nos terreiros baianos; ou, ainda, para nestes se in ternar durante dias, s vezes semanas e meses, enfim, enquanto durassem obrigaes iniciticas e outras, os preceitos, com o j se dizia ento, que tinham de observar sob pena de punio por sacerdotes e deuses, personagens que tam bm careciam de ser amansados.38 Os escravos, afinal, no eram nada estpidos como quiseram crer o subdelegado Pomplio e seu chefe Henriques. Entre servir a senhores e servir aos deuses, m uitos optavam por estes, que afinal prom etiam proteg-los contra os m aus-tratos daqueles e contra outros males da vida sob cativeiro.

    Os escravos podiam ser desencam inhados do bom servio Por ingerirem eles prprios substncias preparadas por curandeiros africanos. Por essa razo, dona Carlota Leopoldina de Mello, 111 1858, pediu ao chefe de polcia que castigasse Guilherm ina,

    SUa escrava ganhadeira. D ona Carlota explicou:

    Tendo sado ontem para vender po, cujo servio cotidiano, sua escrava Guilhermina de nao nag, ficou-se na rua at o mo-

  • mento de ser hoje presa, e se acha no Aljube [...]. Nenhum motivo houve para semelhante procedimento seno a vadiao da negra que mal aconselhada por negros malvados toma remdios aplicados por esses mesmos negros fazendo com que a Suplicante tenha despesas extraordinrias como h poucos dias encomendou ao Dr. Cabral para tratar desta mesma escrava, que a traz quase perdida por ter tomado remdios (no sei para que) de forma tal que inchou desfiguradamente, e a no ser o cuidado do dito Dr. Cabral certamente a perderia.39

    Em seguida, pedia que o chefe de polcia mandasse castigar a escrava. Conflito entre senhora e escrava, concorrncia entre a medicina do branco e a do negro. Dona Carlota no tinha idia do por que a ganhadeira Guilherm ina tomava aqueles remdios africanos, mas eles decerto a deixavam imprestvel para o trabalho. A senhora, com o a maioria dos de sua classe, no podia reconhecer, sem desm oralizar seu m undo, os aspectos infinitos de reaes hum anas s formas de dom inao, como escreveu Michel-Rolph Truillot sobre perplexidade semelhante entre os senhores haitianos .40 Pode-se imaginar, no caso em pauta, que a escrava tom asse remdios com o fim de sim ular sintomas de doenas, como a inchao, um a desculpa para no trabalhar, uma m aneira de depreciar seu valor num a negociao de alforria ou de venda para um senhor qui mais brando. Ou, ainda, talvez Guilherm ina submeteu-se a algum procedim ento inicitico que envolvesse a ingesto de beberagem que produziu aqueles sintomas colaterais. Em todo caso, no se tratava de drogas destinadas a amansar senhores. As possibilidades eram muitas. A conseqn

    cia, porm , sabemos.Dois dias depois, num a outra petio ao chefe de polda>

    mesma senhora alegava ser esta escrava bastante atrevida, a Pn to de ter por algumas vezes desatendido queixosa, deixand0

    158

  • J e c u m p r ir com os deveres de sua obrigao.41 A escrava Gui- j j ie rm in a tinha inchado de raiva e rebeldia. D ona Carlota pediu n o v a m e n te que ela fosse punida e em seguida solta para retornar, com srte reformada, ao trabalho. O chefe de polcia despachou sobre ambas as peties no m esm o dia. No despacho prim eira, estabeleceu o castigo em duas dzias de palmatoadas; na segunda, d ian te das palavras mais aflitas da senhora, resolveu aum entar o castigo para trs dzias. a histria da polcia brasileira .42

    Domingos Sodr foi acusado de am ansar senhores, no de ouriar escravos. Mas um a coisa leva ou tra . Ele tam bm foi acusado de trabalhar em prol da alforria de seus clientes, e esta seria uma das possveis razes para o incham ento de Guilherm i- na, como sugeri. Difcil im aginar que Dom ingos no preparasse garrafadas para serem ingeridas por seus clientes escravos com a finalidade de ajud-los a se libertar por vias pacficas ou de aumentar neles a vontade de resistir ao dom nio senhorial m ediante outras vias, o corpo mole e a fuga, por exemplo.

    CRIME E CASTIGO

    Para proteger a escravido, cabia punio exemplar a can- domblezeiros como Domingos Sodr e seu squito. Em prim eiro lugar, era im portante destruir os smbolos materiais da religio desses africanos. Os objetos sagrados confiscados a Domingos foram em parte queim ados pelo subdelegado, que obedecia a o rdens do chefe de polcia para assim agir. Joo Henriques, porm , justruiu que lhe fossem enviados todos os objetos de feitiaria

    1 os de metal. Assim que os recebeu, no dia 26 de julho, ele os ^cam inhou ao coronel d iretor do Arsenal de Guerra, para dar-

    conveniente destino, e os listou: trs espadas curtas e seis Jjr Ca m etaf 28 aros de lato e sete de chum bo, um dia-

    e de ferro, alm de quinze diversos objetos insignificantes.43

    159

  • interessante que as peas tivessem como destino o Arsenal de Guerra, onde deveriam receber tratam ento semelhante quele dado pelo subdelegado a outros objetos rituais: foram derretidas nas fornalhas do Arsenal, talvez para se transform arem em outras armas brancas, essas com corte. No fundo, isso fazia sentido: aquela luta contra o candom bl no deixava de ser um a guerra.

    Aos prisioneiros dessa guerra foi reservado um tratamento humilhante. Da casa da ladeira de Santa Tereza, Domingos e os demais presos foram levados Casa de Correo no fmal da tarde do dia 25 de julho de 1862. Uma cam inhada de cerca de quarenta m inutos a subir e descer ladeiras, atravessar o movimentado centro da cidade, passando diante do Hotel Paris que pertencia a seu senhor-moo , do teatro So Joo, do palcio do governo provincial e da cmara municipal, das igrejas da Santa Casa, da S, do Colgio dos Jesutas, do Rosrio dos Pretos das Portas do Carm o (Pelourinho), do convento dos carmelitas, de Nossa Senhora dos Pardos do Boqueiro e, finalmente, da m atriz de Santo Antnio, localizada no m esm o largo onde se erguia a Casa de Correo. Em substituio priso do Aljube, ali eram agora recolhidos os detidos pelas rondas policiais cotidianas na cidade.

    No dia seguinte, o escravo Elesbo, de quase cinqenta anos, foi castigado com doze palm atoadas a pedido de seu senhor, o mdico Felipe da Silva Barana, m orador no beco dos Barbeiros, freguesia de So Pedro. Barana era um escravista urbano ligado a bares do Recncavo. Em 1854, serviu como procurador do senhor do engenho Caboto, A ntonio Felix da C unha Brito, na venda do escravo Jorge, de nao nag, do servio da lavoura. O comprador do escravo era o p rprio pai do mdico, Joo da Silva Barana, contador da tesouraria provincial da Bahia. Seu irmao, Elpidio, tinha sido subdelegado de So Pedro no incio da dca da de 1850, e em 1840 assinara como testem unha o document0 de com pra da escrava Francisca pela primeira m ulher de Dorm11 gos.44 O papai im portunava gente im portante.

    160

  • 30. esquerda da foto, entrada da Rua de Baixo de So Bento (c. 1880). Seguindo os trilhos acima, logo se chega esquina da ladeira de Santa Tereza, onde moravcTDomingos Sodr.

    Por trs do Caf Suisso, o convento de Santa Tereza.

    31. Palcio do governo provincial (c. 1860), em frente ao qual Domingos Sodr passou a caminho da priso.

    Jg*-.

  • 32. Casa de Correo onde Domingos Sodr ficou preso. Hoje reformado, o prdio abriga grupos de capoeira.

    Dois dias depois das palmatoadas sofridas por Elesbo, igual castigo recebeu o jovem crioulo Joo, quinze anos. O castigo, ao contrrio do que recebeu Elesbo, fora adm inistrado revelia de seu senhor, o africano liberto M anoel Joaquim Ricardo, um amigo de Domingos que o leitor conhecer m elhor no captulo 6. Ricardo no teria razo para castigar o escravo, que decerto se encontrava na casa de Santa Tereza com seu consentimento, talvez para ser curado de um a doena de peito que tinha. Elesbo e Joo foram libertados im ediatam ente depois das surras.

    No sei com certeza o que aconteceu a Tereza, mas deve ter sofrido a mesma pena aplicada aos demais escravos do grupo. Delfina, escrava africana do ferreiro Dom ingos Jos Alves, foi castigada tam bm com doze palm atoadas no dia 26. O ferreiro morava na Rua da Preguia, bem prxim o casa de Domingos Sodr descendo a ladeira de Santa Tereza, virando direita, e logo em seguida esquerda, se chega Preguia, onde um movim entado m ercado a cu aberto existia beira-m ar. J Ignez, com o disse, pode ter sido um a escrava de Domingos. Para proteg-l e proteger-se, ela se declarou a liberta Ignez, e como tal foi tratada pela polcia. No foi espancada, em bora tivesse que am argarselS noites na cadeia. A escrava pode ter com binado com o senhoj j um jogo de identidades que a safou da hum ilhante palmatria- i

    162

  • 33. Mercado da Preguia, prximo de onde morava o senhor de Delfina.

    Quanto a D om ingos Sodr, no dia seguinte sua priso foi chamado repartio da polcia, que funcionava no centro da cidade, em sobrado nobre Rua do Bispo, alugado pelo governo a Antnio Pereira Rebouas, o jurista, deputado na Assemblia Geral, conselheiro imperial, pequeno escravista e pai do grande abolicionista Andr Rebouas.46 Ali o liberto se entrevistaria com o chefe de polcia Joo Antonio Henriques, mas no houve registro do teor do interrogatrio. Em seguida Dom ingos foi devolvido cadeia. Durante os trs dias seguintes, a polcia teve tem po suficiente para investigar se ele realmente recebera de escravos fiue freqentavam sua casa objetos roubados a seus senhores. No encontrei registro desse inqurito, porm tudo indica que nada se conseguiu provar contra o papai, ou ento ele conseguiu convencer a polcia de que ignorava a origem ilcita dos objetos e di- nheiros trazidos por seus clientes escravos. No dia 30 de julho, I passar cinco noites na Casa de Correo, pai Dom ingos es-

    novo diante de Henriques, no sobrado do conselheiro uas. Agora, sabemos exatam ente do que se tratava, pois no

    163

  • final do encontro o africano teve de se com prom eter a abandonar a vida de candom bl e feitiaria, segundo docum ento que lhe foi lido:

    Termo de obrigao

    Aos 30 de julho de mil oitocentos e sessenta e dois, nesta Reparti

    o da Polcia da Bahia, foi vindo da Casa e Cadeia da Correo onde se achava recolhido o Africano liberto Domingos Sudr,

    morador na ladeira de Santa Tereza, onde fora preso, encontrando-se na casa muitos objetos de candombl, e feitiaria, e perante o Sr. Dr. Chefe de Polcia da Provncia se obrigou pelo presente a tomar um meio de vida honesto, deixando de aliciar escravos, e a ttulo de adivinhador fazer-lhes amplas promessas de liberdade,

    insinuar-lhes coisas nocivas a seus semelhantes. E de como se obrigou e pelo que obteve ser solto com a condio de no caso de quebrar o presente termo espontaneamente sair para a Costa dfrica, assinou a seu rogo Manoel de Abreu Contreiras com o Sr. Chefe

    de Polcia. Eu Cndido Silveira de Faria o escrevi

    M. Abreu Contreiras.47

    Com isso, Dom ingos foi liberado. O papai aparentemente

    era ru prim rio, o que deve t-lo ajudado. No encontrei evidncia de que tivesse sido anteriorm ente processado ou investigado por meio de inqurito formal. H, porm , registro de sua priso no final de m aio de 1853, quando correram boatos insistentes de conspirao africana em Salvador, assunto detalhado

    no captulo 6 . Dom ingos fora ento detido por um a patrulh3 para averiguaes policiais, segundo um ofcio do chefe de P lcia. O utros cinco africanos foram presos no mesmo dia, eaM

    no parece que essas prises tivessem relao com a dele. N indcio de que o liberto tivesse ficado m uito tem po atrs das g

    164

  • jes. O fato de no ter sido deportado, com o outros o foram nesse

    ano, sugere que escapou de ser enquadrado como suspeito, em bora sua priso indique que a polcia, de incio, o tinha com o tal,

    e isso provavelmente devido liderana que exercia entre outros africanos. Era, pois, nessa poca, conform e veremos adiante, che

    fe de um a jun ta de alforria e talvez j afamado dador de fortuna. Mesmo assim, a polcia no m anchou seu nom e na ocasio, decerto porque procuravam suspeitos de conspirar contra a ordem es

    cravista, no contra costum es cristos.48Um outro encontro de Domingos com a polcia se verifica

    ria alguns meses antes de ser preso. Em torno das nove horas da noite de 13 de abril de 1862, aconteceu sria bulha em sua rua, quando um a casa foi cercada por patrulha da polcia com andada pelo irm o de um inspetor de quarteiro. Estavam atrs de um crioulo de nom e Brulio, por motivos que desconheo, que m orava na loja daquela casa e cuja dona tentaria em vo im pedir a ao policial para proteg-lo. Ao tentar fugir pelos fimdos da moradia, Brulio despencou de um a ribanceira, fraturou a perna, foi preso e arrastado por seus perseguidores, vindo a falecer de ttano po u cos dias depois no hospital da Santa Casa devido aos ferimentos sofridos na queda e ao delicado tratam ento policial recebido. D omingos foi arrolado para depor como testem unha na investigao Sue o chefe de polcia m andaria fazer sobre o incidente testemunha de como se tratava preto na capital da Bahia, mesmo se cnoulo e protegido por brancos. Esse inqurito eu no consegui encntrar para verificar o depoim ento de Domingos.49 y Q uando preso quatro meses depois por prtica de candom-

    ^ n g o s tinha ficha policial limpa, e isso o teria ajudado.

    tamk^m ajudado a idade, pois mesmo um linha-duraao Henriques talvez achasse m uita crueldade subm eter a

    mais vexam^ ^ s Um senhor de cerca de 65 anos. Suspeito ainda de

    mao branca lhe tivesse sido estendida. Desconfio que

    165

  • a proteo viesse do dr. Antonio Jos Pereira de Albuquerque ningum m enos que o subdelegado titular da freguesia de So Pedro (lem brando que Dom ingos fora preso pelo subdelegado suplente, Pomplio M anoel de Castro). Penso assim porque, naquele ano de 1862, A lbuquerque atuava como advogado do liberto, num caso que j se arrastava havia quase dois anos e que ser examinado no prxim o captulo. Albuquerque, solteiro de 55 anos, m orador na Rua de So Pedro, n2 7, era cidado de prestgio, juiz de paz mais votado e presidente da Junta de Qualificao de votantes da sua freguesia, a mesma de Domingos. Se ele de fato intercedeu em favor do liberto, tudo se fez por debaixo do pano, sem que sua ao ficasse registrada nos anais da polcia. No se tratava, porm , de um clssico caso de clientelismo em que o liberto representasse o dependente desprovido. O subdelegado, afinal, era na poca seu advogado e, em bora no fosse contratado para defend-lo da acusao de feiticeiro e receptador de objetos roubados, um a causa podia ter levado a outra inform alm ente .50

    H tam bm M anoel de Abreu Contreiras a ser considerado. Ele assinou o Termo de Obrigao de Dom ingos Sodr talvez apenas por estar ao alcance da m o do chefe de polcia e de seu indigitado naquele dia, mas quem sabe ali se encontrasse a pedido de Albuquerque. Contreiras tinha ligaes com essa famlia. Em 1871, o irmo do subdelegado, Francisco Pereira de Albuquerque, escreveu o testam ento de C ontreiras, por im pedim ento deste, que se encontrava enfermo. Contreiras era funcionrio pblico escrivo parece, 62 anos em 1862, hom em casado, sem filhos e de poucas posses ao m orrer em 1873, quando tinha apenas urrwca sa m uito estragada na Barra, de dois quartos e telha-v, onde m rava, e um a escrava, Benedita. Era mais prspero quando assin0 a obrigao de Domingos, em vista das escravas que possui*- . parda Laura, alforriada em 1868 g ratu itam ente, ainda recein

    i66

  • nasc ida ; sua me Sisislanda, alforriada em data e sob condioes ig n o ra d a s ; e a crioula Isidora, vinte anos, alforriada em 1870 por

    300 mil-ris.51

    A p O L T I C A D E D E P O R T A O D E A F R I C A N O S

    Na obrigao im posta a Dom ingos, o adivinho foi am eaado de deportao. No era incom um que africanos envolvidos com candombl fossem deportados. Era tam bm freqente que fossem protegidos por gente influente e conseguissem permanecer no pas. Temos o caso de Rufo, africano liberto que atuava na freguesia da S, centro do poder civil e eclesistico da capital. Em novembro 1855, o subdelegado da S, Joaquim Antonio M outi- nho, queixou-se ao chefe de polcia de que Rufo seria um dos principais nomes do candom bl em sua jurisdio, e por isso j tinha sido certa vez preso para ser deportado, e no foi por grandes empenhos que houve.52 Em penho de quem, especificamente, no informou, mas fora decerto de gente com poder de presso junto ao governo. Talvez por se sentir im une aos ataques da polcia, Rufo subiu de tom . Devido a um a operao policial provocada por novos rum ores de sublevao escrava, m uitos africanos de candombl tiveram suas casas invadidas e vasculhadas. D urante as buscas no se encontraram indcios de ameaa ordem Pblica, mas foram presas algumas pessoas e apreendidos vrios bjetos de suas crenas religiosas, como figuras, smbolos, sapos mrtos e secos, chocalhos, pandeiros e algumas vestimentas, as 4uais cousas pretendo m andar queim ar, escreveu o subdelegado ,Vlutinho .53

    Rufo teria nessa ocasio incitado outros africanos a resistir ^ Priso e a protestar contra o baculejo, que considerava abuso

    Utridade. Por essa ousadia, estava a ser novam ente p rocura

    167

  • do pela polcia. Sob presso, Rufo decidiu sumir, e por isso dormia um dia aqui, ou tro acol, em casas de pessoas, na maioria africanas, que constituam sua rede de amizades e clientes. O liberto parecia ter perdido a proteo dos de cima, por ter ido longe demais, mas continuava protegido pelos de baixo na hierarquia social baiana.

    Tal como Dom ingos, Rufo tinha um a clientela de escravos, o que preocupava o chefe de polcia de ento, tanto quanto Joo Henriques em 1862. Francisco Liberato de Matos, o chefe de polcia em 1855, despachou assim o ofcio do subdelegado: Tome nota do Africano Rufo para me ser presente com os nomes dos servis que a ele procuram .54 Essa histria ilustra que, apesar do apoio que pudessem receber, os lderes do candom bl estavam sempre na corda bam ba. Um dia protegido, outro corrido da polcia. Domingos sabia que a ameaa de deportao era sria, vira desde 1835 outros africanos serem deportados aos magotes, talvez, afinal, o prprio Rufo. A ameaa de deportao a ele feita por Joo Henriques no era poltica nova .55

    Conheceria Dom ingos o africano liberto Grato? Grato, cerca de cinqenta anos de idade, se m udara do Resgate, no Cabula, para fugir da perseguio de Joo de Azevedo Piapitinga, o subdelegado do segundo distrito de Santo Antnio a quem apresentei no captulo 1. Piapitinga, como j vimos, apregoava que tinha acabado com os candombls existentes no distrito sob sua jurisdio, mas tam bm constava ser ele suspeito de acobertar alguns deles. M elhor seria dizer que protegia uns e perseguia outros de votos do candombl. Protegia os de sua clientela. Grato no se inclua nela. O africano continuou no exerccio da antiga ocupa o, na sua nova m orada, rua Direita de Santo Antnio, ou da Conceio do Boqueiro, devido igreja da irmandade pardos com o m esm o nom e que dom ina o stio, perto do centr ^da cidade. Para isso tinha conseguido abrigo em um aposent0

    i68

  • quintal da casa da parda Carlota. Foi ali preso a dar ventura para duas crioulinhas, segundo relato de Piapitinga. De fato, duas m ulheres e um a m enina, provveis consulentes, foram ali encontradas: as crioulas M aria dos Passos, vinte anos, e Luiza da Frana, trinta, alm da cabrinha M aria Eufemia, de apenas onze anos de idade. A diligncia, acontecida no dia 31 de maio de 1859, foi levada a term o por Miguel de Souza Requio, subdelegado do primeiro distrito de Santo Antnio, que cum pria ordens do che

    fe de polcia.56Uma notcia aparecida no Jornal da Bahia dizia que Grato

    fora preso no meio de seu laboratrio para prever a sorte. Im agem interessante e talvez justa. O chefe de polcia Agostinho Luis de Fiqueiredo Rocha fez relato circunstanciado do m aterial encontrado naquele local e, ainda melhor, inform ou sobre as experincias laboratoriais ali havidas e para que serviam: Nesse esconderijo tam bm se encontraram diversas drogas, panelas com cozimento de razes, folhas, rpteis etc. Lagartos de grande tam anho criados e acostum ados entre as roupas de um ba; e outros mortos, cozidos, e reduzidos a beberagens, que se diz vendia ele a escravos para abrandarem os senhores, e aos nscios para terem felicidade nos negcios e nos amores, tirando de uns e ou tros o maior lucro que podia arrancar-lhes.57 Poucas palavras, mformao abundante. Grato trabalhava no m esm o ram o de atividades exercidas por Dom ingos, que inclua a adivinhao e0 amansamento de senhores, mas tam bm favorecia aventuras fl

    anceiras e consertava desventuras amorosas de um a clientela mais ampla. Infelizmente, no encontrei sobre as prticas de Do-

    0S descrio detalhada como essa, que, apesar do preconcei- ttttro policial, abre um a brecha para perceber o que se pas-savq 1

    vez trabalh Grato. Ficamos, porm , mais um ar - saber os significados especficos desse universo cultural

    0 Por bichos peonhentos e repulsivos, conform e a sensi-

  • bilidade civilizada do policial, e que vamos encontrar repetidam ente nas panelas de outros acusados de feitiaria. E, por se repetirem, imagino que fossem, em combinao com razes e folhas, elemento consolidado de um a cultura do feitio africano na

    Bahia de ento .58Como aconteceria com o nag Domingos mais tarde, na ca

    sa de Grato tam bm foram encontrados objetos de culto, que seguem listados tal qual o docum ento original no quadro abaixo. Entre esses objetos, destacam -se os enfeitados com bzios da costa, ou cauris, e contas, que tam bm foram achados soltos ou adornavam roupas e dem ais aparatos rituais de Domingos. As quartinhas de Grato cheias de m sticos bem podiam ser parte de assentos de divindades. E os penachos de cabelo seriam tufos de cabelo de pessoa para quem ou contra quem Grato preparava algum trabalho? O u se tratava de espcie de espanador, feito com plo de rabo de cavalo e outros animais, emblema de divindades da caa, com o Oxssi? Uma casa que Grato possua no Cabula de onde fugira de Piapitinga foi tam bm varejada e ali apreendidos outros objetos de feitiarias, segundo o chefe de polcia, cuja lista, porm , no encontrei.59

    O chefe de polcia Figueiredo Rocha, em correspondncia para o presidente interino da provncia, o desembargador Messias de Leo, alegou que a poltica mais branda de controle do candom bl, de detenes curtas e admoestaes verbais, no surtia efeito como m todo de extirpao de certa superstio que ha progredido em grande escala e cujos resultados no fcil de antever. Ao m odo de H enriques trs anos depois, ele acusava gellte com o Grato de se locupletar s custas alheias, alm de cevar pal xes libidinosas. E acrescentava: este negcio bastanternente srio, e era tempo de usar d outros meios, que no os de brandu ra at aqui debalde em pregados. Conclua sua missiva sug^r11^ do soluo enrgica: Acha-se pois preso esse Africano lihe tornando-se m uito perniciosa sua conservao entre a pP

    o desta cidade que conta m uitos escravos, e m uita gente p ro pensa a acreditar estas cousas, peo a V. Exa., como m edida necessria, sua deportao pelos meios com petentes.60

    Objetos encontrados na casa do africano Grato em 1859

    Relao dos objetos que foram encontrados em o quarto do Africano Liberto de nome Grato por ocasio da busca, os quais vo conduzidos para a Polcia com cousas de feitiaria em dois grandes cestos5 Cinco barrotes [barretes?] de palha 3 Trs cabaas enfeitadas de bzios da Costa

    1 Uma cinta de pauzinhos como oleado [?] enfeitada de bzios e corais

    1 Uma saca grande enfeitado [sic] com diversas cousas dentro 1 Uma folha de flandres coberta de bexiga de boi, enfeitada de

    bzios

    1 Um leno com diversos pedaos de cacos de panelas, e pratos2 Dois pequenos sacos com diversas cousas1 Uma [sic] varo de ferro enfeitado a laia [de] chapu de sol 1 Uma cabaa maior coberta com bzios

    Diversas quartinhas com certos msticos dentro de algumas 1 Um aucareiro com lagartos grandes dentro do mesmo Uma poro de conquilherias [quinquilharias] pequenas enfeitadas com bzios e contas,

    Diversos penachos de cabelos, e outras muitas cousas midas Um ba com roupa pertencente ao mesmo preto Grato ahia, Ia Distrito da subdelegacia da Freguesia de Santo Antnio

    Atm do Carmo, l2 de Junho de 1859. Miguel de Souza RequioSubdelegado

    1

    APEBa' Pol'ia, mao 6232.

    170 171

  • A idia do chefe de polcia foi bem recebida pelo vice-presidente Messias de Leo, que em dois dias autorizou a deportao. O procedim ento foi sum rio. Cinco dias aps sua priso, a sorte de Grato tinha sido decidida. A 11 de julho de 1859, pouco mais de

    um ms depois de ter sua casa invadida e sido preso pela polcia, o curandeiro seria deportado para a Costa da frica a bordo do navio D. Francisca, de bandeira portuguesa como era tpico em embarcaes de fato brasileiras empregadas no trfico ilegal de

    escravos. A notcia ganhou as pginas do Jornal da Bahia, talvez o mais im portante peridico em circulao na poca. O consignatrio do D. Francisca era o conhecido traficante de escravos

    talvez aposentado da atividade nessa altura Joaquim Pereira M arinho. A ele o governo pagou 50 mil-ris pelo transporte do liberto africano atravs do Atlntico. Ter sido num navio de Marinho que Grato veio dar na Bahia como escravo?61

    Q uando tudo parecia decidido a favor do endurecimento, eis que se ouve no palcio da presidncia um a voz dissonante. Se o vice-presidente Messias de Leo tinha concordado prontamente com a expulso de Grato, um ano depois a m esm a m edida no seria bem recebida pelo novo presidente da provncia, o comen

    dador m ineiro A ntonio da Costa Pinto, num outro caso recom endado por seu chefe de polcia, Agostinho Luis da Gama. Este quis deportar, sob argum entos semelhantes aos usados contra Grato, o africano liberto Gonalo Paraso, com mais de quaren

    ta anos, preso na freguesia do Pao na vspera do Natal de 1859.

    Com o africano, segundo o chefe de polcia,

    foram encontrados diversos ingredientes e beberagens que aplicava s pessoas ignorantes que o procuravam como curandeiro, e ^aS

    quais abusava, fazendo sofrer aquelas que no se prestavam ssuaS exigncias libidinosas, e no havendo base segura, e provas p313

    172

    1

  • rin s tau rao de um processo regular co n tra to perigoso africano,

    que a voz pb lica tam b m acusa de te r com tais rem d ios levado

    sep u ltu ra a lgum as pessoas, vou solic itar V. Exa. a co m p e ten te

    au to rizao para ser ele d e p o rta d o para um dos p o rto s da C osta

    d ffica.62

    Para surpresa de Agostinho Luis da Gama, o presidente An-

    tonio da Costa Pinto hom em de slida formao jurdica, que chegara a desem bargador no Tribunal da Relao do Rio de Ja

    neiro assim despachou o ofcio, alis com alguma im pacin

    cia: j se determ inou verbalm ente que se respondesse que em vista do art. I2 da Lei n2 9 [de 13 de maio de 1835] a deportao s pode ter lugar em caso de insurreio.63 Costa Pinto se referia lei passada no tem po do levante dos mals que previa a expul

    so do pas de africanos libertos considerados suspeitos de insurreio. Pelo m enos trs africanos, entre eles um amigo de D omingos que conheceremos adiante no captulo 6 , tinham sido

    deportados com base nessa lei em 1854. O liberto Gonalo Paraso no era rebelde social, como no o era Grato, que tinha, ento, sido expulso em procedim ento coberto de ilegalidade, seguindo o raciocnio do ex-desembargador. Como vimos ao tratar do caso de Rufo, outros africanos de candom bl j tinham sido expulsos antes de Grato, os quais ainda no pude identificar.64

    O chefe de polcia Agostinho Luis da Gama renunciou ao cargo cinco dias aps o presidente em itir seu parecer. A razo

    ^ g a d a para a renncia foi doena grave, que o im pedia de se^Por ao sol, ao sereno e um idade, exigindo completo repou

    so65 c r iclaro que passa pela cabea do crente que Gonalo Para-

    Pudesse ter lanado feitio contra o chefe de polcia. Porm, u Substituto, Jos Pereira da Silva Moraes, pensava com m aior Pnho ainda na idia de banir feiticeiros africanos. Parece ter

    173

  • sido ele a descobrir um a frm ula para con to rnar a lei lem brada pelo presidente. M oraes fez com que a deciso quanto deportao de Paraso sasse da jurisdio provincial para a do

    governo im perial, especificam ente o M inistrio dos Negcios da Justia. Ocupava a pasta nessa altura Joo Lustosa da Cunha

    Paranagu piauiense que m ais tarde governaria a provncia da Bahia (1881-82) , a quem o chefe de polcia baiano escreveu expondo o caso Gonalo Paraso um ms aps assum ir a chefatura da polcia.

    Boa parte da missiva de Moraes a Paranagu tinha sido copiada daquela escrita por seu antecessor ao presidente da provncia solicitando licena para expulsar Grato. O liberto Gonalo Paraso foi acusado de especulador da boa-f de seus clientes, que em troca de polpudas recompensas a ele confiavam sade, brios, razo e a prpria vida. Contava que Paraso tinha sido preso com objetos esquisitos e suspeitos [...], vrios lquidos e medicamentos, que por seu estado de ferm entao tornavam -se venenosos, segundo declararam os m dicos, e que era voz pblica ser o africano um feiticeiro, tendo j imolado algumas vtimas sua ambio, e concupiscncia etc. O chefe de polcia preocupava-se com a imagem da Bahia, pois a atuao de gente como esse dador de fortuna, segundo ele, depe con tra nossa civilizao bem representada pelos mdicos que examinaram a medicina de Paraso e sugeria meios mais severos de punio do que os at aqui em pregados. Terminava pedindo a expulso do curandeiro para algum porto da costa da frica.66

    O m inistro Paranagu gostou da sugesto do chefe de poli' cia Moraes e assinou a ordem para deportar Paraso em outubro de 1860. Em 23 de fevereiro do ano seguinte, encontram os Mo . raes a escrever ao capito do porto para que providenciasse um eS caler para conduzir Gonalo Paraso a bordo do patacho porto gus Paquete Africano, que o levaria de volta frica, confor111

    174

  • autorizao do Governo Im peria l, escreveu triun fan te aquela autoridade. O governo desembolsou 80 mil-ris pelo transporte do curandeiro, 60% a mais do que custara a viagem de G rato .67 O presidente da provncia no conseguiu valer sua objeo ao banim ento de Gonalo Paraso.

    O episdio criaria jurisprudncia. Com o envolvimento do governo imperial, um a nova estratgia tinha sido concebida pelas autoridades locais adeptas da linha dura para com bater a chamada feitiaria africana na Bahia. A m quina de poder m ontada para deportar Gonalo Paraso seria doravante usada contra ou tros africanos libertos acusados de feitiaria. O trm ite era mais prolongado, porm poltica e juridicam ente eficaz, pois a pun io dos feiticeiros ganharia um a dim enso nacional. No caso de Paraso, entre sua priso no Natal de 1859 e sua deportao no incio de 1861, mais de um ano havia corrido. Nesse nterim , afastado de seu ganha-po na priso do Aljube, o liberto precisou vender a liberdade de um a sua escrava, Isabel, nao nag, pela quantia de 500 m il-ris, sem esquecer de alegar que seu gesto tam bm respondia a ter ela prestado com bons desejos aos meus servios.68 O u teria sido com bons servios aos seus desejos?

    Antonio da Costa Pinto, do Partido Liberal, governou a p ro vncia entre o final de abril de 1860 e o incio de junho de 1861, e deixou o cargo em conseqncia da formao de um gabinete conservador na Corte que modificaria a distribuio do poder Provincial no pas. Nos seus ltim os meses de governo, o liberal

    Vlu as voltas com um outro pedido de deportao que ele en- ^ rou corn m uito desconforto. A vtima dessa vez seria um a m u-

    er> a liberta C onstana do N ascim ento, de nao nag, cujo Pdido de deportao se orig inara de um poderoso senhor de

    Benho no Recncavo, Joo de Arajo Argollo Gomes Ferro.Cri T f *

    ca enviada do seu Engenho de Baixo para o novo chefe de

    175

  • polcia, Jos Pereira da Silva Moraes, ele alegou que Constana, usando de candombls e de todos esses meios de que lana mo essa gente idlatra, j tinha causado a m orte de diversas pessoas na localidade, inclusive a de um seu mestre de acar e escravo de subido preo e m erecim ento. O utros escravos seus de menor valor e estima tinham sido m ortos, ou inutilizados no juzo e na sade, por provar dos feitios de Constana. A m ulher foi acusada de envenenar o prprio marido, tam bm escravo de Argollo Ferro, para exercer mais livremente sua excessiva lascvia. Em sua casa foram encontrados sapos enormes, por ela tratados e seus com panheiros inseparveis, objetos de feitiaria, lquidos, que bem denotavam sua origem de ervas venenosas. De novo, ao lado do m ortal arsenal de feitiaria, a narrativa policial em purra a curandeira para o reino animal, no destaque dado sua intimidade com rpteis, o que constituiria um a espcie de hbito do ofcio de curandeiro africano. Terminava Argollo Ferro exigindo contra ela um a m edida eficaz como a deportao, pois sua presena, alm de um a desm oralizao para essas escravaturas, [era] um perigo constante para aqueles sobre quem recasse seu dio e instintos perigosos.69 Palavras que transpiram certa preocupao desse senhor com a prpria sade, no apenas com suas perdas materiais e com a corrupo de seus escravos. Claro, no havia como provar nada daquilo. Constana tam pouco era rebelde social para ser enquadrada na lei antiinsurrecional de 1835.

    Costa Pinto parece ter sido posto contra a parede diante da queixa feita por um Argollo Ferro, que no apenas escreveu ao chefe de polcia da provncia como procurou-o p esso a lm en te para reforar a denncia contra Constana e pedir talvez exigir sua deportao. O presidente foi inform ado disso e solid' tou explicaes mais detalhadas ao chefe de polcia. Jos Pereira M oraes respondeu em ofcio cujo prem bulo tinha sido p ra tica m ente copiado da justificativa de seu antecessor para expubar

    176

  • Grato. Em seguida, Moraes dava a verso do caso a ele apresentada por Argollo Ferro, a quem assim definia: cidado abastado, probo, bem conceituado, e que j serviu por m uitos anos de Delegado do 2 Distrito desta Capital. O chefe de polcia baiano qu is esclarecer o presidente m ineiro sobre hierarquias sociais locais que ele parecia desconhecer. Anexou a seu ofcio a correspondncia que recebeu sobre a liberta do senhor de engenho. No satisfeito, talvez at ofendido pela presso, trs dias depois Costa Pinto retrucou ao chefe de polcia que investigasse mais a fundo a denncia, em busca de provas contra Constana. Recebeu como resposta que, exatam ente por no se poder provar as acusaes e assim form ar um processo, ele recomendava o meio extraordinrio da deportao. Apesar de contrariado, no dia 21 de fevereiro, Costa Pinto encam inhou ao m inistro da Justia no Rio de Janeiro o pedido de deportao da africana. Lavadas as mos, apenas com unicou ao m inistro: tom ando em considerao a referida correspondncia [do chefe de polcia], se digne de [resolver] o que julgar mais acertado.70

    Mais alguns dias e o chefe de polcia precisou dar contas do assunto ao hom em que deportara Grato, Messias de Leo, agora presidente do Tribunal da Relao da Bahia. que Constana havia im petrado junto ao tribunal um pedido de habeas corpus. Moraes repetiu mais um a vez, agora para Leo, a histria contada por Argollo Ferro e aproveitava para dizer que a im punidade dessa gente de candombl resultava de mal entendida prote-

    ao que em seu favor se levanta. Parecia referir-se a seu su b o rdinado, o subdelegado da Conceio da Praia, que teria enca- minhado Relao o pedido de habeas corpus da africana. Mas tambm podia ter em m ente o p rp rio presidente Costa Pinto,seu superior.71

    Diante da barreira form ada na Bahia contra ela, a brava nstana decidiu apelar para o m inistro da Justia, que pediu a

  • Costa Pinto um parecer sobre sua alegada inocncia. Ainda no encontrei a petio da liberta, mas h indcios de que ela acusou o senhor Argollo Ferro de m entir e parece ter recebido alguma ajuda do subdelegado da Conceio da Praia para instru-la em sua defesa. Isso fica claro em mais um ofcio do chefe de polcia ao presidente, que tinha encam inhado a ele a correspondncia do m inistro. M oraes respondeu que o alegado pela Africana Constana um complexo de falsidades e calnias irrogadas ao carter sisudo e circunspecto do referido D outor [Argollo Ferro], do qual se quer ela fazer vtima, no intuito de iludir a polcia, e conseguir a im punidade de seus crimes, cujas provas so sempre difceis pelo m odo por que ela, e os de sua classe, quase sempre os com ete. O chefe de polcia tam bm dizia j ter reduzido a seu devido lugar o subdelegado que a havia ajudado e assim exorbitado de suas atribuies num negcio que se achava afeto m inha jurisdio. O liberal Costa Pinto finalm ente desistiu de insistir num a alternativa legal o rd inria e encam inhou ao Rio de Janeiro, como resposta petio de Constana, a verdade dos fatos segundo a verso do chefe de polcia. De l veio a ordem final de deportao, assinada pelo m inistro da Justia Francisco Sayo Lobato, em 25 de maio de 1861.72

    A doutrina do endurecim ento contra o candom bl no teve um a vigncia tranqila nas altas esferas do poder da provncia, mas, tanto no caso de Gonalo Paraso quanto no de Constana N ascim ento, ela te rm inou p o r prevalecer. s vezes, a postura diante do candombl no variava somente entre um a autoridade e outra, mas se manifestava nas aes contraditrias de um a mesm a autoridade. O prprio chefe de polcia Jos Pereira Moraes endurecera de uns tem pos pra c. Se o leitor ainda se lembra, fQl ele quem , no incio deste captulo, m andara soltar duas libertas africanas e cinco escravas presas em candombl, apenas instrui j do o subdelegado a adverti-las para que no continuassem

    178

  • Il

    34. Vice-presidente Manoel Messias de Leo

    ( 1799-1878), que deportou Grato.

    35. Presidente Antonio da Costa Pinto (1802-80), que tentou

    impedir a deportao de Gonalo Paraso e Constana Pereira.

    /

    perturbar o sossego pblico. Sua atitude diante de Gonalo e

    Constana j seria outra.No dia 26 de junho de 1861, Constana Nascimento foi em

    barcada no navio de bandeira portuguesa Novo Elizeo, que seguiria para a Costa da frica. Nessa ocasio, ela foi assim descrita pelo chefe de polcia: Nag, m aior de cinqenta anos, estatura e corpo regulares, cor preta, com sinais de sua terra no rosto, e no brao esquerdo, dentes perfeitos, e com o cabelo j bastante pintado , isto , grisalho.73 As marcas faciais representavam sua afiliao etnica original, as do brao provavelmente designavam identidade rellgiosa. Pagaram -se 80 m il-ris pelo transporte da curandeira nag, o mesmo valor pago para carregar Gonalo Paraso. O pagamento da despesa foi ordenado por um outro Leo, o novo premente Joaquim Anto Fernandes Leo, e saiu de um a verba secre-

    179

  • ta do M inistrio da Justia destinada represso ao trfico transatlntico de escravos. Ironia no m enor do que ser transportado por um negreiro como o fora G rato .74

    Em sua justificativa para expulsar Constana, o chefe de polcia Jos Pereira da Silva Moraes argum entou junto ao presidente Antnio da Costa Pinto que era preciso ser mais freqente, para exemplo, a deportao de semelhantes feiticeiros e dad o res4 , ventura sublinhando ele prprio os alvos de sua ira .75 Tais palavras foram escritas um ano e meio antes da priso de Domingos, e decerto o chefe de polcia que o m andara prender, Joo Henri- ques, ao assum ir o cargo lera esse e outros ofcios de antecessores que tratavam de deportao de feiticeiros. Da a idia de obrigar D om ingos Sodr a p rom eter a abandonar o candom bl se

    no quisesse abandonar o pas.Para evitar a deportao, teria o papai cum prido risca

    aquela obrigao a ele im posta pelo chefe de polcia? Gosto de pensar que no. E nesse sentido h aqueles indcios j apontados nas pginas de O Alabama de suas atividades no ram o da crena africana em data posterior. Talvez Domingos tivesse se tornado ainda mais discreto, isto sim, e deixasse de reunir em sua prpria casa escravos e libertos africanos para sesses de a d iv in h ao e outros rituais, at evitando ali m anter m uito da parafernlia do culto. Mas podem os im aginar que ele d ificilm ente resistiria a tentao de participar e at contribuir para celebraes africanas que aconteciam na cidade, inclusive em sua vizinhana.

    E O C A N D O M B L R E S I S T E

    Os candombls continuavam a bater com fora e a re c ru t Renovos adeptos, enquanto a cam panha repressiva prosseguia-nos de um ms aps a priso de Domingos, foram presas,candom bl na freguesia de Santana, M aria Francisca da

    crioula, lavadeira, solteira, 26 anos; Luiza M arques de Ara- cabra, costureira, solteira e livre, vinte anos; e Anna M aria de Jesus cabra, costureira, tam bm solteira e livre, 29 anos. N enhuma delas africana, nenhum a delas sem ocupao definida, apenas uma preta. Em toda parte o candom bl se expandia para alm das fronteiras africanas. Mais alguns dias e Joo JJenriques mandava pomplio de Castro investigar denncia de que, num beco da Rua de Baixo de So Bento, e para o qual d entrada um a pequena porta, se renem escravos e pessoas de cor, e form am Candom bl e outras imoralidades.76 A Rua de Baixo, como j disse, fazia esquina com a ladeira de Santa Tereza, onde morava Domingos. No outro extremo, a ladeira form ava esquina com a Rua do Sodr.

    Naquele mesmo artigo de 1869, em que denunciava os cortios africanos da Rua do Sodr e os definia como quilom bos, O Alabama dizia que neles fervem constantem ente os tabaques, as danas e as gritarias que se p ro longam at alta no ite. O jo rna l chamava a ateno para o nauseabundo cheiro dos anim ais nessas casas sacrificados em h o n ra a deuses e a ancestrais. O m otivo para as festas variava: ora se celebrava ritual fnebre p ara um a filha do candombl; ora se batucava para a realizao de um ser- V1 grande; ora batia-se atabaque a pretexto, segundo dizem e"es [os africanos], do Santo te r ido guerra, ora porque voltou da guerra , referncia, provavelmente, ao olorogun, um ritual que simula conflito entre devotos de Xang e de Oxal e que estabe-

    CCe 0 l^m d calendrio ritual, aps a quaresm a. (Porm, nesse tempo estava tam bm em cu rso a guerra bem real no Paraguai,

    aonde milhares de soldados negros foram enviados da Bahia.) guns dias mais tarde, O A labam a alardeava: Os candom bls

    neStes dias esto no seu auge.77

    ^Ca*S m ovirnentados da cidade negra, cham ados de bru S em m a s^ um a ocasio por O Alabama, eram tam

    pos de candombl o que corrobora a conotao en-

  • to vigente em m eios oficiais e senhoriais de religio africana en

    quanto instrum ento da resistncia escrava .78A oposio escravido, a propsito , rondava outros ende

    reos daquela vizinhana, na m esm a Rua do Sodr, alis. Essas festas africanas foram contem porneas dos saraus literrios que, a p a rtir do final daquele m esm o ano de 1869, aps re to rnar de So Paulo, Castro Alves passou a organizar no solar do Sodr, a casa de sua famlia que tinha um dia sido a casa da famlia do senhor de D om ingos .79 As reunies do poeta abolicionista teriam com o fundo musical os tam bores africanos acusados de bater du ran te at oito dias seguidos. Por algum tem po, pelo m enos, os cidados m oradores das redondezas, inclusive a famlia Alves, pareceram tolerar bem os batuques, o que explicaria terem eles prosperado a pon to de ofender os ouvidos e p ru ridos da im

    prensa.Mas o candom bl no era s instrum ento de resistncia es

    crava ou, mais am plam ente, africana. Em sua circular de abril aos subdelegados de Salvador que com entei no captulo 1 , o chefe de polcia Joo H enriques disse ter cincia de que at pessoas de certa ordem vo s reunies de candom bl .80 Como j vimos, outros chefes de polcia anteriores j tinham chegado m esm a concluso, com o que concordava a im prensa calorosamente. Aquelas pessoas de certa ordem no s toleravam a desordem do candom bl com o dela participavam . Era o que acontecia na casa de venturas de Dom ingos Sodr. No relatrio que escreveu para Joo Henriques, o subdelegado Pomplio Manoel de Castro concentrou-se em atacar o adivinho p o r suas conexes suspeitas no m undo dos pretos escravos, m as om itiu que ele tinha boas relaes no m undo dos livres e brancos. Disso se encarregou o Dirio da Bahia ao denunciar, com exclamaes de surpresa, que freqentavam as sesses naquela casa no apenas escravos africanos, mas diz-se que compareciam a elas pessoas

    gravata e lavadas (!!).81 N o preciso dizer que o jornal se referia a pessoas brancas, definidas em suas pginas preconceituosas com o as nicas bem vestidas e limpas da Cidade da Bahia. Ho sei se en tre essas pessoas estaria o advogado de Domingos, o dr. A lbuquerque, mas era com um que gente branca respeitvel se utilizasse dos servios de sacerdotes africanos para num erosos misteres, principalm ente trabalhos relacionados a carncias h u manas clssicas sade, am or, dinheiro , com o tam bm , j na segunda m etade do sculo xix, investigao policial e poltica eleitoral.

    A circulao ou participao de brancos no candombl, pela prim eira vez descrito na literatura acadmica po r N ina Rodrigues e na literatura ficcional por Xavier M arques na dcada de 1890, j tinha um longo percurso na provncia da Bahia.82 O Ala- bama e outros jornais falavam disso com insistncia nas dcadas de 1860 e 1870. At a im prensa catlica m ilitante j havia percebido o fenmeno desde pelo m enos 1850. Nesse ano, O Noticiador Catholico, em artigo escrito por certo padre M ariano, clamava por um a ao poderosa e no interrom pida da polcia para extirpar a feitiaria entre ns e detalhava do que se tratava:

    aqui mesmo, no meio da nossa Cidade, onde ningum dir que as luzes e conhecimentos se no tenham espalhado, se vem homens correndo casa de feiticeiros, para que eles lhe digam se a doena que padecem coisa feita, com que remdio se curaro, se os filhos que esto para ter sero machos ou fmeas, e outras semelhantes inpcias, cuja relao at aborrecem: no admira quando aqui mesmo, se vem mulheres, que s escondidas de seus maridos vo consultar aos feiticeiros, e inquirir deles se seus esposos tem outros amores, conservam i tas ' _ . . u.a outras ligaes, prestando-se muitas vezes a prticas escandalosas, e em todos os casos, abrindo a bolsa disposio dos tais.

  • Acham-se pessoas, alis pertencentes no classe nfima
  • de tipos Que freqentavam um candombl na freguesia onde Do- in in g os m ra v a > inclusive senhoras casadas, que vo procurar [in g red ie n te s ] especficos que faam com que seus m aridos no

    esqueam dos deveres conjugais; escravos que vo pedir ingredientes para abrandar o nim o de seus senhores; m ulheres que vo buscar meios de fazer felicidade e at negociantes para terem bom andam ento em seus negcios!.87

    O candombl constitua um territrio negro, nessa poca ainda densamente africano, por onde circulavam e at se cruzavam diversas classes sociais, do senhor ao escravo, sobretudo nas casas dos num erosos adivinhos-curandeiros que viviam na rea mais urbanizada de Salvador. O candom bl podia, inclusive, ser usado por senhores na guerra dom stica contra escravos. Repito o trecho daquele jornal que j reproduzi anteriorm ente, sobre uma mulher que caiu doente e, consultado um adivinho, ele deitou seus bzios e dedurou que a senhora sofria de feitio, que a [sua] escrava era quem o deitava, e que seria m ortal se no fosse sem demora atalhado ....88 O adivinho, desse m odo, complicava consideravelmente a vida da escrava. Semelhante enredo cercou a acusao de feitiaria lanada no captulo 1 contra Libnio Ig- ncio de Almeida, que tam bm teria acusado um a escrava de atacar a senhora com feitiaria.

    Na Bahia dessa poca, alguns brancos chegaram a integrar terreiros como protetores, m diuns e lderes. Em gua de M eninos, um portugus, Dom ingos Miguel, foi preso um a semana depois de Grato, junto com sua amsia, a parda M aria Umbelina, Pr reunir gente com danas e objetos de feitiaria. Em bora estrangeiro, como era europeu, no ocorreu ao chefe de polcia JNdir sua expulso do pas. Existia tam bm m e-de-santo branca,

    ^ 13 d Couto, nascida no Brasil, acusada em 1873 de dona ou ra de um grande Candom bl no Saboeiro, bem distante

    Centro da cidade, ao contrrio do candom bl do portugus .89

    \ i 85

  • No surpreende, ento, que brancos freqentassem a casa de Domingos Sodr. Se seus servios eram predominantemente oferecidos a escra/os s turras com senhores, ele pode ter atuado como adivinho e curandeiro de brancos. A gente engravatada e lavada, que se disse freqentava sua casa, devia colocar diante dele dificuldades de viria natureza, talvez at lhe levasse problemas de enfrentam ente com escravos para ele solucionar. Pois muitas vezes, como vimos, os senhores tam bm demandavam ajuda para am ansar escravas insolentes que nem a polcia conseguia corrigir. Talvez o papai no fosse insensvel s tribulaes dessa natureza, s por ser africano e solidrio a seus clientes escravos, na m aioria africanos com o ele. Possivelmente, sua atuao seguia um a lgica tpica do curandeiro, segundo a qual cada caso um caso. Afinal ele prprio era senhor de escravos, assim como o eram alguns de seus colaboradores e amigos. Contarei essa parte de sua histria adiante. Seu envolvimento com a gente engravatada, no entanto, deve ser visto como um a conquista naquela sociedade que marginalizava sua crena. Ao assistir os civilizados na resoluo de seus problem as, Domingos, de algum modo, escravizava suas mentes aos valores africanos.

    Contudo, no seria por ser senhor de escravo, nem colaborador de senhores, que Dom ingos Sodr acabou preso em julho de 1862. Sua atuao foi vista como favorvel resistncia escrava, daninha economia escravista e hegem onia senhorial, estorvo ordem civilizada que a elite educada desejava cultivar em terras baianas.

    186