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O melhor produto do Brasil é o brasileiro CÂMARA CASCUDO 20 21 Novembro 2012 www.almanaquebrasil.com.br Opção pela militância Na Baixa do Sapateiro, cenário de capoeira e futebol onde nasceu em 1911 na capital da Bahia, não havia jeito de segurar o menino em casa senão amarrando seu tornozelo em uma corda. Um dia a vizinha alertou dona Rita: “Menino que a gente prende assim acaba preso de verdade”. A mulher negra e o marido mecânico esforçavam-se para que os oito filhos se formassem com educa- ção, fossem respeitados e senhores do próprio destino. No colégio, Carlos era aluno excepcional. Resolvia provas de física e química em versos. Apaixonado por números, só não ter- minou a faculdade de Engenharia por outra prioridade. “O senti- mento profundo de revolta pela injustiça social não me permitia ir atrás de um diploma num país onde as crianças são obrigadas a trabalhar para comer”, explicou. A opção pelo Partido Comunista nos anos 1930 lhe custou caro. Foi preso e duramente torturado mais de uma vez, além de preci- sar se afastar da companheira e do filho, que só conheceu aos sete anos de idade. Em dois anos de legalidade do PCB, elegeu-se depu- uem via a foto de um mulato na capa da revista Veja com o título “Procura-se” ou os cartazes espalhados pela cidade com sua imagem e a legenda “Assaltou, roubou e matou pais de fa- mílias” não poderia imaginar a inteligência, o humor e a sensibilidade de Carlos Marighella. O inimigo nú- mero um da ditadura militar brasileira, dirigente comunista e fundador de grupo armado de oposição inventava histórias para os sobrinhos, gostava de “música sacudida”, escrevia poemas e sonhava com um país digno para seus habitantes. Filho de um operário italiano e de uma descendente de es- cravos, o baiano nasceu com o temperamento inconformado dos anarquistas e dos negros malês. Sua revolução não imitava modelos. Era “uma revolução com samba e futebol, em um co- lorido moreno, como ele mesmo”, definiu o intelectual Antonio Candido. Marighella queria que o comitê do Partido Comunista pulasse carnaval em fevereiro. Fazia poesia e olhava estrelas, mas sempre pensando nos homens e mulheres de cada dia. Q CARLOS MARIGHELLA financeiramente com a ANL intelectuais como o francês Godard e o espanhol Miró, sem falar nos brasileiros Glauber Rocha e Augusto Boal. O Manual do Guerrilheiro Urbano , escrito pelo baiano, foi impresso até em Cuba, em vários idiomas diferentes. “Guevara era um mito, mas, no Brasil, nós tínhamos Marighella”, assegura o antropólogo Antonio Risério. “Revolução no Brasil tem um nome”, garante um rap de Mano Brown para o idealista, ouvido mais de meio milhão de vezes alguns meses depois de lançado. “Marighella situa-se entre aqueles que, com seu sangue, escreveram as mais importantes páginas da história do Brasil”, conclui o escritor Frei Betto. Seu nome de baiano O líder da ANL sabia que sequestrar um embaixador ame- ricano para negociar liberdade de presos políticos era um tiro no pé. Mas, ao ouvir no rádio notícias do plano já exe- cutado por um colega, em 1969, assumiu a responsabilidade pela ação. O grupo mostrou seu poder e conseguiu os presos de volta, mas ficou insustentável resistir à repressão poli- cial. Em 4 de novembro de 1969, um domingo de Santos e Corinthians, uma operação com quase 50 policiais assassi- nou Marighella em uma rua paulistana. A vítima de um suposto tiroteio que não aconteceu foi en- terrada às pressas. Só 10 anos depois, com a anistia, a família pôde transferir os restos mortais para Salvador e realizar o ve- lório. Jorge Amado discursou: “Retiro da maldição e do silên- cio e inscrevo aqui seu nome de baiano: Carlos Marighella”. Na lápide do túmulo desenhado por Oscar Niemeyer, pode-se ler: “Não tive tempo para ter medo”. tado federal constituinte, em 1935. Escreveu artigos, editou revistas, ocupou a direção do partido, fez cursos, viajou para a China e para a Rússia. Nos momentos de ilegalidade, acostu- mou-se a sair só à noite, a usar peruca de gosto duvidoso e a ter sempre um comprimido de veneno cianureto no bolso. Tinha decidido que jamais seria capturado com vida novamente. Che Guevara brasileiro Uma aeromoça judia que levava e trazia recados comunistas encantou Marighella – e vice-versa. “Ele é cristão, comunista e preto!”, esbravejou o pai de Clara Charf. E rasgou todas as roupas da filha para prendê-la em casa. O amante deu um jeito de costurar um vestido, os dois fugiram e passaram o resto da vida juntos. Juntos também fugiram do apartamen- to carioca, pelas escadas do prédio, assim que souberam que o golpe militar vingara, em 1964. Eles nem sabiam, mas a polícia já subia pelo elevador. O cerco apertou tanto que, se- manas depois, Marighella foi baleado pela polícia no cinema, em plena matinê. Recusava-se a partir para o exílio: “Mesmo que seja para morrer, eu vou morrer em meu país, lutando”. Decepcionado com os descaminhos de Lenin na União Soviética e empolgado com a Revolução Cubana, decidiu que a oposição só funcionaria com a luta armada e fundou a Ação Nacional Libertadora (ANL). O grupo de jovens pre- tendia destituir a ditadura e tomar o poder pelo campo. Para isso roubava armamento policial, assaltava bancos e trens pagadores, fazia comícios e até conseguiu veicular mensa- gem em rede nacional de rádio. Quem conheceu Marighella dizia que ele ganhava as pessoas pela simplicidade, clareza de ideias e paixão. Sartre se impressionou com a concisão de seus textos e publicou-os em sua revista francesa Os Tempos Modernos. Contribuíam Sem tempo para ter medo Por Natália Pesciotta “Guevara era um mito, mas, no Brasil, nós tínhamos Marighella”, afirma o antropólogo Antonio Risério. “Revolução no Brasil tem um nome”, garante Mano Brown. Tão sábio quanto ágil, Marighella nunca pensou duas vezes. Pelos ideais, o militante político e guerrilheiro largou faculdade, viveu na ilegalidade, foi torturado sem jamais delatar os companheiros, não se exilou quando correu perigo. E tornou-se mito. Conhecido pela coragem e oratória, só pôde ter seu nome na história 10 anos depois de assassinado. SAIBA MAIS Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães (Companhia das Letras, 2012). Marighella, documentário de Isa Grinspum Ferraz (2012). REPRODUÇÃO

Ilustres Brasileiros – Carlos Marighella

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Almanaque Brasil - Edição 163

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Page 1: Ilustres Brasileiros – Carlos Marighella

O melhor produto do Brasil é o brasileiroCÂMARA CASCUDO

20 21

Novembro 2012www.almanaquebrasil.com.br

Opção pela militânciaNa Baixa do Sapateiro, cenário de capoeira e futebol onde nasceu em 1911 na capital da Bahia, não havia jeito de segurar o menino em casa senão amarrando seu tornozelo em uma corda. Um dia a vizinha alertou dona Rita: “Menino que a gente prende assim acaba preso de verdade”. A mulher negra e o marido mecânico esforçavam-se para que os oito filhos se formassem com educa-ção, fossem respeitados e senhores do próprio destino.

No colégio, Carlos era aluno excepcional. Resolvia provas de física e química em versos. Apaixonado por números, só não ter-minou a faculdade de Engenharia por outra prioridade. “O senti-mento profundo de revolta pela injustiça social não me permitia ir atrás de um diploma num país onde as crianças são obrigadas a trabalhar para comer”, explicou.

A opção pelo Partido Comunista nos anos 1930 lhe custou caro. Foi preso e duramente torturado mais de uma vez, além de preci-sar se afastar da companheira e do filho, que só conheceu aos sete anos de idade. Em dois anos de legalidade do PCB, elegeu-se depu-

uem via a foto de um mulato na capa da revista Veja com o título “Procura-se” ou os cartazes espalhados pela cidade com sua imagem e a legenda “Assaltou, roubou e matou pais de fa-mílias” não poderia imaginar a inteligência,

o humor e a sensibilidade de Carlos Marighella. O inimigo nú-mero um da ditadura militar brasileira, dirigente comunista e fundador de grupo armado de oposição inventava histórias para os sobrinhos, gostava de “música sacudida”, escrevia poemas e sonhava com um país digno para seus habitantes.

Filho de um operário italiano e de uma descendente de es-cravos, o baiano nasceu com o temperamento inconformado dos anarquistas e dos negros malês. Sua revolução não imitava modelos. Era “uma revolução com samba e futebol, em um co-lorido moreno, como ele mesmo”, definiu o intelectual Antonio Candido. Marighella queria que o comitê do Partido Comunista pulasse carnaval em fevereiro. Fazia poesia e olhava estrelas, mas sempre pensando nos homens e mulheres de cada dia.

Q

carlos marighella

financeiramente com a ANL intelectuais como o francês Godard e o espanhol Miró, sem falar nos brasileiros Glauber Rocha e Augusto Boal. O Manual do Guerrilheiro Urbano, escrito pelo baiano, foi impresso até em Cuba, em vários idiomas diferentes.

“Guevara era um mito, mas, no Brasil, nós tínhamos Marighella”, assegura o antropólogo Antonio Risério. “Revolução no Brasil tem um nome”, garante um rap de Mano Brown para o idealista, ouvido mais de meio milhão de vezes alguns meses depois de lançado. “Marighella situa-se entre aqueles que, com seu sangue, escreveram as mais importantes páginas da história do Brasil”, conclui o escritor Frei Betto.

Seu nome de baianoO líder da ANL sabia que sequestrar um embaixador ame-ricano para negociar liberdade de presos políticos era um tiro no pé. Mas, ao ouvir no rádio notícias do plano já exe-cutado por um colega, em 1969, assumiu a responsabilidade pela ação. O grupo mostrou seu poder e conseguiu os presos de volta, mas ficou insustentável resistir à repressão poli-cial. Em 4 de novembro de 1969, um domingo de Santos e Corinthians, uma operação com quase 50 policiais assassi-nou Marighella em uma rua paulistana.

A vítima de um suposto tiroteio que não aconteceu foi en-terrada às pressas. Só 10 anos depois, com a anistia, a família pôde transferir os restos mortais para Salvador e realizar o ve-lório. Jorge Amado discursou: “Retiro da maldição e do silên-cio e inscrevo aqui seu nome de baiano: Carlos Marighella”. Na lápide do túmulo desenhado por Oscar Niemeyer, pode-se ler: “Não tive tempo para ter medo”.

tado federal constituinte, em 1935. Escreveu artigos, editou revistas, ocupou a direção do partido, fez cursos, viajou para a China e para a Rússia. Nos momentos de ilegalidade, acostu-mou-se a sair só à noite, a usar peruca de gosto duvidoso e a ter sempre um comprimido de veneno cianureto no bolso. Tinha decidido que jamais seria capturado com vida novamente.

Che Guevara brasileiroUma aeromoça judia que levava e trazia recados comunistas encantou Marighella – e vice-versa. “Ele é cristão, comunista e preto!”, esbravejou o pai de Clara Charf. E rasgou todas as roupas da filha para prendê-la em casa. O amante deu um jeito de costurar um vestido, os dois fugiram e passaram o resto da vida juntos. Juntos também fugiram do apartamen-to carioca, pelas escadas do prédio, assim que souberam que o golpe militar vingara, em 1964. Eles nem sabiam, mas a polícia já subia pelo elevador. O cerco apertou tanto que, se-manas depois, Marighella foi baleado pela polícia no cinema, em plena matinê. Recusava-se a partir para o exílio: “Mesmo que seja para morrer, eu vou morrer em meu país, lutando”.

Decepcionado com os descaminhos de Lenin na União Soviética e empolgado com a Revolução Cubana, decidiu que a oposição só funcionaria com a luta armada e fundou a Ação Nacional Libertadora (ANL). O grupo de jovens pre-tendia destituir a ditadura e tomar o poder pelo campo. Para isso roubava armamento policial, assaltava bancos e trens pagadores, fazia comícios e até conseguiu veicular mensa-gem em rede nacional de rádio.

Quem conheceu Marighella dizia que ele ganhava as pessoas pela simplicidade, clareza de ideias e paixão. Sartre se impressionou com a concisão de seus textos e publicou-os em sua revista francesa Os Tempos Modernos. Contribuíam

Sem tempo para ter medo

Por Natália Pesciotta

“Guevara era um mito, mas, no Brasil, nós tínhamos

Marighella”, afirma o antropólogo Antonio

Risério. “Revolução no Brasil tem um nome”, garante Mano Brown.Tão sábio quanto ágil, Marighella

nunca pensou duas vezes. Pelos ideais,

o militante político e guerrilheiro

largou faculdade, viveu na ilegalidade,

foi torturado sem jamais delatar os

companheiros, não se exilou quando

correu perigo. E tornou-se mito.

Conhecido pela coragem e oratória, só

pôde ter seu nome na história 10 anos

depois de assassinado.

SAIBA MAIS Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães (Companhia das Letras, 2012).Marighella, documentário de Isa Grinspum Ferraz (2012).

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