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CISC CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA imagemeviolência EXTENSÃO, IMPLICAÇÃO E TRANSGRESSÃO. DA VIOLÊNCIA DAS IMAGENS À POÉTICA DO KAIROS Hans Ulrich Reck Tradução: Paulo Oliveira 1 1 NT: Mantive no original as citações em outras línguas, diversas do alemão, traduzindo-as parcialmente em notas de rodapé.

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CISC

CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA

imagemeviolência

EXTENSÃO, IMPLICAÇÃO E TRANSGRESSÃO.

DA VIOLÊNCIA DAS IMAGENS À POÉTICA DO KAIROS

Hans Ulrich ReckTradução: Paulo Oliveira1

1 NT: Mantive no original as citações em outras línguas, diversas do alemão, traduzindo-asparcialmente em notas de rodapé.

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Extensão

Allan Kaprow escreve em 1958, num texto com o título The Legacy of Jackson

Pollock:2

A meu ver, Pollock nos deixou no ponto em que precisamos nos confrontar com os

objetos de nosso cotidiano (nossos corpos, nossa vestimenta, lugares, ou também

grandezas imponentes como a 42nd Street), ou quando até mesmo nos deixamos

impressionar por eles. Descontentes com a impressão que a cor talvez possa

causar a nossos outros sentidos, trata-se então de se lançar mão dos materiais

específicos do ver, do ouvir, do movimento, das pessoas, do tato e do olfato.

Objetos de todos os tipos servem de material para a nova arte: tinta, cadeiras,

alimentos, lâmpadas incandescentes ou fluorescentes, fumaça, água, meias

velhas, um cachorro, filmes e milhares de outras coisas que ainda venham a ser

descobertas pelas novas gerações de artistas. Esses ousados criadores não nos

mostram apenas, como se fosse essa a primeira vez, um mundo que já nos

circunda, mas que não é percebido por nós; eles nos desvendarão também outros

fatos e acontecimentos completamente inauditos, que podem ser encontrados em

latas de lixo, registros policiais ou nas portarias de hotéis, que podem ser vistos

nas vitrines e nas ruas, e que fazem parte da experiência dos sonhos ou de

terríveis acidentes. O cheiro de morangos amassados, a carta de um amigo, ou

um cartaz de propaganda de Drano (um produto de limpeza para tubos), três

batidas na porta, um arranhão, um suspiro ou uma voz que não cessa de reprimir,

uma luz estroboscópica que ofusca, um melão – tudo isso será transformado em

material para essa nova arte concreta. O jovem artista de hoje não mais precisa

afirmar “sou um pintor”, ou “um poeta”, ou “um dançarino”. Ele é simplesmente um

“artista”. Toda a vida está aberta diante dele. Ele descobrirá o sentido da

cotidianidade nos objetos do cotidiano. Ele não procurará transformá-los em algo

especial, mas somente tornará reconhecível seu verdadeiro significado. Mas do

2 NT: O legado de Jackson Pollock.

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que nada ele inventará o incomum – e talvez também a nulidade. As pessoas

reagirão com alegria ou repulsa, os críticos ficarão confusos ou se divertirão, mas

isso será, tenho certeza, a alquimia dos anos 60.

Essa declaração é ao mesmo tempo somativa e programática. A extensão da

base material e a dispersão das artes, a poetisação das materialidades e a

mediatização das possibilidades expressivas: tudo isso descreve o território a ser

sempre de novo percorrido, redescrito, resimbolizado, remontado. O elogio de

Kaprow ao existente e comum invoca uma conclusão e faz uma exigência. A

ampliação do material tornou-se conhecida desde então como corriqueira,

multisensorial e natural ao mesmo tempo, exatamente no sentido descrito por

Kaprow. Pode-se generalizar, para abranger um traço fundamental da arte deste

século, com sua enorme significação: a arte moderna tentou com o maior dos

empenhos tornar visível o invisível. Em seu olhar está inscrita a violência da

mesma forma que a constante procura por novos materiais e suportes

expressivos. A arte moderna é um híbrido, tem caráter duplo: ela rejeita o

absoluto, ao mesmo tempo em que procura, senão nomeá-lo, pelo menos indicá-

lo. Na hoje forçosa despedida dos gestos de extensão, implicação e transgressão

aí inscritos, mostram-se as saídas para a crise da visibilidade, as quais, no

entanto, não se deixam separar do triunfo do visível, sendo antes um seu idêntico,

que dele origina, por ele é forçado. Essa é a história de um sucesso que

irremediavelmente culminará na ruína de seus próprios pressupostos, que ao

mesmo tempo impõe e possibilita uma afirmação radical. Entretanto, a descrição

histórica mais comum dos estilos artísticos reduz o problema a uma niveladora

atribuição de projetos aos três casos limites da já citada tipologia de uma arte

ilimitada da modernidade: construtivismo com extensão; arte minimalista como

implicação; dadaísmo, surrealismo, fluxus, arte contextual e intermedialidade

como figuras de transgressão. Isso apenas como exemplo incompleto. Outros

relacionamentos são concebíveis ou até mesmo palpáveis. Mas qual seria o

problema dessa atribuição tão eminentemente arbitrária?

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O saber e o mostrar

“L'art c'est dire ce qu'on ne sait pas, montrer ce qu'on ne voit pas”, descreve de

maneira precisa Jean Luc GODARD3 o que está em jogo: não o tornar visível,

como pensa Paul Klee (um dos mistificadores das modernas alegorias artísticas),

mas sim o “dizer” do não-sabido; não o ver, mas sim um mostrar. É no mostrar

que a estética da existência se revela como o essencial e imprescindível, não na

representação ou no ver. Não a visualização, mas o gesto; não a apresentação,

mas sim uma encenação retórica é aquilo que deve ser retido, de novo e de novo,

desta expressão de Samuel Beckett à qual Godard atribui tanta importância: “Mal

vu, mal dit”.4 O não-reconhecido não é o transcendental, mas sim o não-sabido.

Sua invisibilidade não é nenhum mistério. É possível evocá-lo: mostrando.

Na página 43 de seus Caprichos, publicados em 1799, Francisco de Goya coloca

sob o título El sueño de la razon produce monstros sua procura por uma resposta

à angustiante pergunta acerca do que, de fato, se passa na cabeça de um artista

ou, de modo mais geral, de um fantasiador. Do artista e do fantasiante como

alguém em permanente sonho, entenda-se bem. Sua resposta – traçada de modo

tão contundente na alucinação dos fantasmas, das energias imaginativas que não

precisam tornar-se necessariamente, em primeira linha, imagens da arte – mostra

a conformação dupla, a ambivalência, aquilo que L. Binswanger mais tarde

chamaria de “modo da vida desencontrada” e Karl Jaspers de “o emergir do

significado a partir do vivido”, a saber, a irritação da constante mutação do mal em

razão, e vice-versa. É o sonho, e não o sono que torna ativa esse tipo de

influência, com a qual o real extrapola do modo desmedido, tomando a aparência

do irreal. O mal se revela como encontro a si mesmo da razão e, inversamente, a

razão como encontro a sim mesmo do mal. É sabido que tal a-moralização

fundamenta, no mais tardar a partir de Baudelaire, a estética especificamente

moderna que, indo além dos valores morais, reporta-se às categorias

3 Jean Luc-Godard par Jean Luc-Godard, tome 2. 1984-1998. Paris. 1998, p.410. NT: “A arte édizer o que não se sabe, é mostrar o que não se vê”.4 NT: “Mal visto, mal dito”.

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desenvolvidas por ela própria: capacidade de correspondência, insistência,

radicalismo, choque, intensificação do efeito.

O belo no tecido onírico do mundo transforma-se no desejo do excesso.

Característica desse movimento é a estética das artes que fundamenta tal passo,

através da internalização do quimérico e da intensificação de seu caráter

ameaçador. A ela corresponde, naturalmente com tônica inversa no tocante a

valores e interesses, a estética burguesa desde Kant, marcada pela rejeição dos

monstros. É precisamente aqui que fica demonstrada a eficácia do dispositivo do

desejo, posto que a partir do romantismo o mundo passa a ser percebido como

tecido dos sonhos por excelência (Novalis). A arte transforma-se em auto-

percepção da excentricidade do mundo. Ela é um movimento das transformações:

o estar-fora-de-si do mundo é por ela percebido como sua oportunidade e surge

como incorporação das desregulamentações, como sistema de regras do

desregrado e desenfreado. Como isso garante-se, no plano conceitual, que a arte

não esteja sujeita a nenhum tipo de restrição, nem na mensagem, nem no

material, nem tampouco no efeito almejado ou em seu dimensionamento.

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Henri Michaux e a estética da turbulência

O anseio da arte articula-se como superação, não somente dos seus próprios

limites, mas também das energias do mundo. A arte pensa a si própria e se

projeta como transgressividade do mundo: desejo como força e poder da

natureza. O campo sombrio do limite provoca não mais a arte da representação,

mas sim a arte do impossível. É aí que atualmente investe uma “competência da

arte para o caos”, a qual não se esgota no esquema da representação. Tal

“competência para o caos” impõe a monstruosidade como ação e enredo. Os

desenhos de mescalina de Henri Michaux são um modelo privilegiado de como

esse processo se articula enquanto construção de um mundo interior do desejo

artístico. Neles já não se distinguem a extensão, a implicação e a transgressão,

pois suas intensidades têm por base a auto-observação experimental de uma

percepção/representação neuronicamente estimulada. Trata-se aqui da

interiorização como coisificação e ao mesmo tempo eliminação da subjetividade,

de “sondagens intrapsíquicas” (Norval Baitello Jr.), da “dança neuronial” (Jean-

Jacques Lebel). A mente é, como o sujeito, um corte através do mundo, não seu

limite ou mesmo sua conformação monádica.

Os desenhos de mescalina de Henri Michaux, elaborados num período que vai

dos anos 40 aos anos 60 do século XX, giram em torno daqueles fenômenos que

não são epifenômenos da alucinação, mas sim suas bases e pressupostos. Trata-

se especialmente das categorias ponto/limite/sujeito. O interesse de Michaux não

está voltado para uma ampliação da consciência, mas sim para aquilo que ele

insistentemente chama de “preparação para o abstrato”, tal qual se manifesta o

mundo na organização epistêmica dos esquemas de percepção. As experiências

de Michaux com a mescalina mantêm, naturalmente, uma relação de analogia

com sua concepção nômade de literatura. No entanto, o crucial é que se trata de

decisão singular, de início arbitrária, ainda que pessoalmente bem fundamentada,

de investigar a mente pela via introspectiva, ou seja, fazer com que a mente seja

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descritível a partir de si mesma, o que pressupõe a disposição resoluta para a

deformação e desregulamentação. A auto-observação como experiência

perfeitamente passível de generalização: uma análise neuronial que exige uma

atitude precisa por parte de quem a realiza. O que interessa a Michaux são a

cognição e os esquemas mentais, são conjuntos psicológicos e sensações, ou

seja, as subrotinas que acompanham o processamento de signos, através das

quais surgem os valores psíquicos da significação. Mas não lhe interessa o

espírito, ou a consciência, nem tampouco a afirmação da identidade.

Deve-se lembrar que o pano de fundo para as psicoses auto-induzidas e os

deslocamentos da percepção de Michaux continua a ser o surgimento estético do

romantismo europeu: a irrealização do mundo como realidade do imaginário. Na

arte – aqui naturalmente compreendida como arte “de verdade”, não simplesmente

quaisquer imagens – e pela arte é que se supera o mundo, cujo projeto só vem a

se esboçar nessa mesma transgressão. É na arte que o sonho chega a uma

imagem de si mesmo. A arte é – no método, na prática – uma superação de

limites, não os meios para isso. O mesmo se coloca para as drogas e os

alucinógenos. É exatamente por esse motivo que as drogas e os alucinógenos

não tem uma relação íntima com a criação poética ou com o processo artístico.

Talvez possam até, como Baudelaire anotou de modo inequívoco em Os paraísos

artificiais, servir para aprofundar e alargar o material perceptivo. Mas também

dificultam na mesma medida a formação/o adensamento artístico desse mesmo

material.

No prefácio de Misérable Miracle (La Mescaline),5 Henri MICHAUX se manifesta

em 1957 sobre a empreita da mescalina e faz o seguinte resumo:

Esta é uma expedição científica. Com a ajuda de palavras, signos e desenhos. O

objeto de pesquisa é a mescalina. A própria imagem gráfica das páginas aqui

reproduzidas, vinte e cinco das quinhentos e cinqüenta que foram anotadas, será

capaz de fornecer mais dados aos que sabem ler uma caligrafia do qualquer outra

5 NT: O milagre mal-aventurado (a mescalina).

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descrição. Em relação aos desenhos, que começaram a ser feitos logo após a

terceira experiência, deve ser posto que eles devem seu surgimento a uma

vibração que, por assim dizer, manteve-se de forma cega e automática por vários

dias, mas que como tal, no entanto, espelha de forma acurada tais visões que

ressurgem por esse meio. Diante da impossibilidade de reproduzir por completo o

manuscrito, o qual representa de forma direta tanto seu objeto quanto os ritmos,

as formas e caos, e também a resistência interna com todas suas rupturas,

surgiram grandes dificuldades em relação à tipografia. O texto original, antes

sensível do que legível, ao mesmo tempo desenho e escrita, não se revelou

necessariamente satisfatório. Atirado de volta com vigor, zigzagueando pela

página, zuniam em fuga as frases cortadas com suas sílabas voantes, distorcidas,

atingindo a queda e chegando à morte. Seus trapos tornaram-se novamente vivos,

levantaram-se de novo, saindo em disparada para em seguida de novo se

espatifar. Suas letras evadiam-se fugazes ou se dissolviam em formas de

zigzague. As seguintes, também desconexas, davam de símile forma

prosseguimento ao relato, pássaros dramáticos cujo vôo invisíveis tesouras de

súbito cortavam.

Às vezes surgiam de pronto palavras atrofiadas. Surgiu-me por exemplo

“martyryssiblement”, martelando-me repetidamente os sentidos, o que muito me

dizia e não se me escapava. De outra feita repetia incansavelmente “Krakatoa!

Krakatoa! Krakatoa”, ou algo bem banal como “cristal” surgia vinte vezes seguidas

e fazia-me um grande discurso por incumbência de um mundo todo outro, sem

que eu fosse capaz de ao menos acrescer-lhe algo, completando-o com uma

palavra sequer. Solitário como um náufrago numa ilha, era meu tudo e qualquer

coisa, mas também o oceano selvagem e agitado do qual acabara de emergir, e

que evocava na memória, resistindo no fracasso, o náufrago que eu também era,

diante dele.6

6 Henri MICHAUX, prefácio de Misérable Miracle (La mescaline), apud Peter WEIBEL (ed.): HenriMichaux, Meskalin-Zeichunungen. Kat. Linz, 1998, p.53.

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Um dos fundamentos dos desenhos de Michaux é constituído certamente pelos

efeitos e conhecimentos da “visão pareidólica”, sobre cujos resultados artísticos

Leonardo da Vinci já se manifestara. Inúmeros outros pontos de referência podem

ser agregados: palimpsestos/texturas entre a caligrafia, escrita hermética e

imagem turbulenta; hieróglifo, a linha pantomínica da natureza oculta, procriadora,

geradora, desenvolvida do maneirismo até as paisagens de Ferdinand Hodler; as

utopias da arte como uma “língua franca” visual, em que as idéias do mundo e da

natureza deixam-se compreender em sua medida universal, de forma direta e

sensata, sem passar pelo registro das línguas dialetais; códigos secretos como

alquimia e cabala; imagens dissimuladas e ocultas como nas anamorfoses;

partituras de um tornar-se imagem de uma escrita cosmologicamente geradora;

visualização da natura naturans, não da natura naturata, ou seja, incorporação do

sentido lógico criador, e não representação dos fenômenos oriundos dessa

geração: genealogia do movimento criador.

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Tempo e visão sob a ótica das experiências com mescalina de Henri Michaux

O futuro – enquanto experiência neuronial de todos esses fenômenos, categorias

e aspectos que se condensam e se sobrepõem numa sincronia inimaginável –

nada mais é do que a intensidade da presencialidade de tudo aquilo que já

começou ou cessou de forma significativa, mas que, como futuro passado ou

presente, sempre mantém-se como relação ao atual, ao presente, ao momento da

presença. Esse momento, por sua vez, naturalmente nunca é apreensível, sendo

antes sempre transitório – parte do tempo enquanto mudança dos porvires

passados e futuros com relação à presencialidade. Até mesmo a irreversibilidade

do processo cosmológico continua a ser uma especulação e depende da não

comprovável hipótese de consistência que, desde Descartes, menos descreve a

realidade do que evidencia o problema físico, de como a “instância geradora do

sonho” é capaz de possibilitar a coerência do real. Não é possível definir

realmente o tempo, como evidencia a dolorosa experiência tantas vezes repetida

desde Santo Agostinho. Mas parece plausível pensar o tempo no plural. Apesar da

referencialidade paradoxal em relação ao momento do transitório, o “tempo”

revela-se como estratificação de todas as formas de movimento na

simultaneidade, como intensidade. O tempo faz com que haja diferenças/divisas.

Se não houvesse o tempo, tudo existiria de modo concomitante. Isso seria tanto

intolerável quanto impossível. Por isso é típico que, nos mitos de tantas e

diferentes culturas, o esquartejamento dos deuses é ao concomitantemente ponto

de partida da cosmogonia e genealogia do tempo. O assassínio dos deuses que

condiciona e possibilita sua mortalidade, nada mais é do que a condição de

possibilidade do tempo e reprodução de sua gênese real. O futuro é por isso

sempre o modus do diferente, aquilo que resta como diferença,

independentemente da modalidade do tempo. É esse o pano de fundo das

repetidas narrações acerca dos alongamentos do tempo possibilitados pelos

alucinógenos, eternidades do momento, seqüências de transitórias eternidades

isoladas entre si no espaço. Segundo Michaux, tudo aqui flui para pontos. O

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sujeito nada é além de uma permanente passagem de dentro para fora num limite

que é pontilhado, e por isso mesmo a qualquer momento e lugar permeável.

Segundo Michaux, a função da mescalina não está na evocação do imaginário ou

na tonificação das imagens perceptivas, mas sim na preparação para o abstrato.

Isso condiciona uma disposição para a loucura (psicoses auto-induzidas) que não

se deixa nivelar por nenhuma epifania de idéias ou visões. Tal assimetria é o

problema ético fundamental da imaginação induzida via alucinação. Em princípio,

ela não conhece nenhum equilíbrio e nenhuma imparcialidade conciliadora. Aqui

não se pode esperar por uma recompensa.

Escreve ainda Michaux, sobre o poder da imaginação e o domínio por visões

geradas naturalmente por via neuronial, estabelecendo uma relação entre a

alucinação extasiada do branco e a epifania do visionário:

Branco absoluto. Branco mais puro que qualquer outro branco. Branco da subida

ao trono do branco. Branco radical decorrente da exclusão, da absoluta eliminação

do não-branco. Branco exasperado e delirante, branco berrantemente branco.

Fantástico, irado. Vertedor da pele da teia. Branco terrivelmente elétrico,

implacável, irresistível. Branco com chamas de branco. Deus do “branco”. Não,

Deus não, macaco ululante. (Sob a condição de que não estourem minhas

células.) Cessar do branco. Noto que por um bom tempo o branco terá para mim

algo de histérico. À margem de um oceano tropical, num sem número de

espelhamentos provocados pela luz prateada de uma lua invisível, por dentre as

ondas das água agitada, num incessante crescendo... Por entre arrebentações

silenciosas, no estremecer da superfície brilhante, no ir e vir veloz e lancinante de

manchas de luz, no rasgar de cachos e arcos e linhas de luz, nos escurecimentos,

no reaparecer, nos dançantes reflexos de luz que se dissolvem e voltam

novamente a se formar, recolhendo-se e expandindo-se, distribuindo-se outra vez

diante de mim, comigo, em mim, náufrago, num amarfanhar insuportável, meu

sossego mil vezes violentado pelas línguas do infinito oscilante, subjugado

senoidalticamente pela montante de linhas fluidas, imensamente com mil

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borboletas, fui e não fui, fui tomado e estava perdido, minha presença era

extrema. O farfalhar inumerável rasgou-me mil vezes.7

7 Opus cit., p.56.

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O limite e o indizível

Os comentários de Michaux referem-se, aqui e em outros textos, ao fluir. Não está

em foco a experiência do infinito, mas sim o fato de que ele não pode ser

compreendido nem se manifestar a partir de si mesmo. A experiência – e aqui

deve ser dito que trata-se daquela experiência obtida a partir do uso experimental

da mescalina – refere-se a um infinito que constitui o individual e transforma o

indivíduo em diviso, lugar da constante geração de pressão. O diverso individual é

constituído através do infinito. Na alucinação vivenciam-se numerosos infinitos

superpostos uns aos outros. É dessa forma que surge a turbulência do infinito

enquanto infinito no individualizado. O constructo “sujeito” dissolve-se numa

multidão de pontos em permanente fluir. O limite está aquém e além das

pontuações. No campo turbulento do limite, o infinito corresponde ao puro desejo.

Em seu glorioso livro Le non-dit des émotions,8 Claude Olievenstein analisou esse

desejo menos como pura intensidade, decifrando-o muito antes como figura da

angústia, a saber, de uma angústia profunda, absoluta, uma inamovível

perhorrecência.9 É possível enumerar conceitos, fenômenos e enunciado: fluir,

cobiçar, desejo/angústia – figura oscilante, pavor; existenciais da exploração do

mundo, situações limite, androginia, S/M, droga/vício.10 Para o vício que se prende

à droga, vale a obstinação em passar pela abstinência e a indissolubilidade com a

qual se vai de uma droga para a outra, de caso a caso, mas sempre de modo

ultimativo e incondicional. Em primeira linha, não é a alucinação ou embriaguez

que torna a droga interessante, mas antes a constituição de uma aversão ao

mundo postergada, num desejo irrealizável estabilizado enquanto vício que,

justamente em sua condição de não realizável, torna-se irrenunciável e se renova

8 NT: O não-dito das emoções.9 NT: termo não dicionarizado em alemão (Perhorreszenz). Traduzi por neologismo de construçãoanáloga, com o prefixo per-, o radical horror e o sufixo -cência, com base na hipótese de que aquiestá em jogo um processo de “vivenciar grande horror”.10 NT: mantive no original a abreviação S/M, na ausência de elementos que possibilitassem ainferência de seu correspondente em português.

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naquele cold turkey (não se acredita, portanto, que as crises fisiológicas da

abstinência conteriam alguma sensação psíquica de sofrimento – como demonstra

claramente o fracasso de tentativas de terapia). Prefere-se a experiência dolorosa

da limitação e do isolamento na abstinência à cisão do desejo por uma identidade

infinita e infinitamente fluida na pura intensidade do non-dit, do indizível,

impronunciável, não dito, do que não deve ser dito. É, portanto, o cold turkey que

constitui a identidade do viciado. O que ele caracteriza não é precisamente a fase

do querer-sair do vício, pretensamente motivada pelo sofrimento. A cisão, na qual

o preenchimento do todo só então vem a se realizar enquanto diferença, é a

realização de fato da condição de vício ou do projeto de vida do viciado. O viciado

deve ser abordado como pessoa do vício, porque em todas as formas de vício

trata-se sempre do mesmo, e um vício pode ser trocado por outro. O que importa

de fato é, ainda que tendo de pagar como preço o maior dos horrores, o inatingível

e o indizível, aquilo que continua a trabalhar contra qualquer estilização e

ritualização, e que não por nada se deixa saciar. Os desenhos e escritos de Henri

Michaux colocam-se num lugar único face a essa descoberta do inatingível,

situando-se eles mesmos num ponto inatingível para qualquer teoria do “sujeito”,

sem que seu significado para a discussão filosófica tivesse sido até hoje levado de

algum modo em consideração. Uma conseqüência essencial das considerações

de Michaux diz respeito à rejeição do órgão do olho e da hierarquia de dominância

do visual. O ver dissolve-se na alucinação extasiada da mescalina em estímulos

neuroniais, intensidade intra-mental, ser subjugado por visões da embriaguez

branca ou sua conversão em negritude, uma negritude que ultrapassa qualquer

medida.

Da violência do ver

A arte visual – e seja aqui insistentemente repetido, aquela que não se percebe

como redução ilegítima – geralmente idolatra o ver, transfigurando o ato de um ver

pretensamente inocente num ver apegado à ação e à verdade, conformação

violenta do ver/da identificação visual. É por isso que, para a arte, acirra-se de

forma decisiva a problemática do ver. Contra a insolência das imagens e a

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autonomia da arte, pode-se recorrer ao problema da imaginação e seu

envolvimento num “ver como traição”.

As artes não conseguem executar as imagens dentro da linha geral ocidental sem

se trair. Elas são a interrupção do olhar do anacoreta. Elas estão na função de

heresia sem ortodoxia. Elas são a múltipla tomada de partido pela materialidade

das coisas, contra o aspecto imaterial das imagens (...). No cômputo geral, as

próprias grandes obras da arte européia foram manifestações do terreno, e

permaneceram tão atentas quanto perspicazes diante das armadilhas da

transformação em espírito. Ao mesmo tempo, elas resguardaram o tempo e o

espaço. Elas eram localizáveis e datáveis, e dessa forma constituíam uma

exortação ao efêmero e ao toque de corpos mortais. (...) Trata-se da preocupação

do olhar a partir das coisas, trata-se de uma objeção consolidada contra a clareza,

contra o mortífero das imagens. “Troubler le regard, c‘est l‘art” (Marc le Bot).11

Isso permite uma compreensão profunda e baseada numa perspectiva bem outra

de um dispositivo não só da perturbação, mas sim do ferimento ou até mesmo da

destruição do olho, dispositivo esse que passou por um recorte praticamente

obsessivo, em particular na cultura francesa do século XX. Menciono aqui apenas

aquela mutilação que, demonstrada simbolicamente, chega mesmo à destruição

do olho, desse sentido violentamente dominante dos tempos modernos, e que

passou a ter um significado canônico. O ano de 1928 marcou o citado recorte de

dupla maneira. Primeiramente, como corte através do olho, no filme Un chien

andalu,12 de Luis Buñuel e Salvador Dali. Além disso, como arrancar do olho, em A

história do olho, de Georges Bataille. Essa auto-mutilação submissa do órgão

ótico significa, para o discurso do sujeito, uma aceitação radical do obsceno.

Bataille escreve a esse respeito nas anotações sobre o já canônico texto Madame

Edwarda: Sobre a forma análoga de testículos de touro e globos oculares:

Desta vez fui até o ponto de tentar explicar a mim mesmo essas estranhas

relações, imaginando para isso em meu espírito uma região mais profunda, onde

se encontrassem as imagens elementares, todas obscenas, ou seja, as imagens

11 Dietmar KAMPER. von wegen. München. 1998, p.55-56. NT: citação em francês: “Perturbar oolhar, isso é que é arte”.12 NT: Um cão andaluz.

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mais indecentes, ao largo das quais sempre passa a consciência, incapaz de

enfrentá-las sem fuga, sem perplexidade.13

O insuportável como suspensão e realização do erótico ao mesmo tempo, figura

de intensidade, linha de fuga do inimaginável, daquele infinito que constitui o

individual na turbulência: esse erotismo é o terror, mas também a única

possibilidade de reconhecê-lo: “O erotismo sério, o erotismo compreendido de

forma trágica, significa assim uma completa reviravolta de nosso sistema de

representação (ibid., prefácio a Madame Edwarda, p.57). A dor como desejo,

desejo da dor como condição de possibilidade da percepção, rastro transcendente

do real, o próprio real nesse rastro, nada mais abrindo que o real do insuportável.

“E eu não conseguia perceber aquilo que estava acontecendo, nada sabia eu da

volúpia extrema, nada sabia eu da dor extrema” (ibid., p.58). A experiência própria

do limite, aquilo que Michaux chama de infinito turbulento e Olivenstein de non-dit,

que representa em Battaile o terror como limite absoluto e limite do absoluto,

significa: surgimento do real em função de tal transcendência.

Para ir até o fim do êxtase, onde nos perdemos no deleite dos sentidos,

precisamos sempre estabelecer-lhe um limite: esse limite é o terror. (...) É bem

verdade que o terror nunca se associa à atração: mas se não é capaz de detê-la,

destruí-la, o terror reforça a atração. Esse perigo paralisa, mas, se for menos

ameaçador, pode também excitar a volúpia.14 Não atingimos tal êxtase, a não ser

que vejamos a morte, a destruição diante de nós – ainda que apenas de longe.

(...) Existe uma esfera em que a morte não significa apenas desaparecimento,

mas sim aquela comoção insuportável na qual desaparecemos à revelia de nosso

desejo, quando não poderíamos por preço algum desaparecer. É exatamente esse

13 Georges BATAILLE. Das obszöne Werk. Editora Rowohlt (das neue Buch), p.233.14 NT: traduzo aqui Lust por “volúpia”, enquanto expressão de desejo/vontade, de natureza sexualou não (poder-se-ia também pensar em “apetite”). No original, são citados ainda os termosBegehren (desejo), Sehnsucht (aspiração) e Verlangen (exigência). Cumpre notar que o camposemântico formado por tais termos estabelece limites entre um termo e outro que diferem doslimites entre os diversos termos existentes no campo semântico correspondente em português. Poresse motivo, não é improvável que os termos aqui utilizados tenham outras traduções no contextoda obra de autores diferentes, ou na percepção de diferentes tradutores.

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por preço algum, esse contra nosso desejo, o que marca o momento da volúpia

mais extrema e da êxtase inominável, porém maravilhosa. Se nada houvesse que

nos supera, que não pudesse ocorrer por preço algum, nunca atingiríamos o ponto

do “fora de si”, aquele momento que ao mesmo tempo procuramos e evitamos

com todas nossas forças. (...) Um superar extenuante (...). O Ser nos é dado num

insuportável superar do Ser que não é menos insuportável que a morte. E como o

Ser nos é novamente tomado de volta na morte, no mesmo momento em que nos

é dado, precisamos procurá-lo no vivenciar da morte, naquele momento

insuportável em que acreditamos estar morrendo, porque o Ser em nós é só

excesso, quando a abundância do terror e da alegria coincidem. Até mesmo o

pensar (a reflexão) realiza-se em nós apenas no excesso. O que significa verdade

fora da representação do excesso, se não formos capazes de ver aquilo que vai

além da possibilidade do ver, que é insuportável de se ver, como o deleite é

insuportável no êxtase? Se não formos capazes de pensar aquilo que extrapola a

possibilidade de pensar...? (ibid., p.59-60)

A essa destruição, a essa na ausência de limites apavorante e drástica

conseqüência da destruição do sentido, em nome de uma rejeição radical (de tudo

o que for visto, visível, observável, plástico, visual), e com isso de uma

rememorada ressonância da cosmogonia, que desde sempre surgiu do corpo

dilacerado de Deus – para pelo menos sugerir mais uma camada de

correspondência necessária – respondem as mitologias de uma criação

dilacerada, que pode ser descrita, nos termos de Herbert Silberer, como um

movimento pendular entre colocações “titânica” e “anagógicas”, entre por um lado

forma fechada monoteísta e por outro heterodoxema e sincretismo

heterotopológico.15

15 Cf. Herbert SILBERER, Probleme der Mystik und ihrer Symbolik, Viena, 1914. p.164, p.170 eseguintes, p.206 e seguintes, p.232 e seguintes).

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O aniquilamento do olho

Tal despedaçamento surge naturalmente também em numerosos textos e

imagens alquimistas – até nos dias de hoje. “Do ponto de vista mitológico, há uma

ligação íntima entre a luta com o dragão, o despedaçamento, o incesto, a

separação dos ancestrais e vários outros temas e motivos” (SILBERER, ibid.). A

essa série pertence, na cosmogonia babilônica, a cisão do monstro Tiamat através

de Marduk. A divisão dicotômica no mito da criação é conhecida em várias

culturas. O mito de Ísis e Osiris na mitologia egípcia é um dos modelos mais

exemplares do cosmologicamente inevitável despedaçamento que é considerado

ao mesmo tempo irrevogável e pré-condição para o renascimento da vida. Entre

Horus, o filho de Isis, e Set, seu irmão, tem início uma luta em cujo desenrolar Set

arranca um olho de seu adversário, engolindo-o em seguida, mas acaba perdendo

sua genitália. Depois de ter sido finalmente derrotado, é obrigado a devolver o

olho de Horus, que este usa para reanimar Osiris, que pode então entrar como

soberano no reino dos mortos. A retirado dos olhos representa naturalmente a

emasculação – um gesto que na auto-punição no final da tragédia de Édipo

deveria compensar o incesto fatal, evocando com isso a lembrança constante da

cegueira do mundo humano, na mais dolorosa das formas. A explicação do

dividido heterogeneamente como condição da dinâmica real e verdadeira da vida

– isso explica o cerne sincrético de todas essas mitologias.

Em todas essas histórias individuais, a retirada do olho não é certamente um pars-

pro-todo (mesmo que seguramente o seja no caso de Bataille e Buñuel/Dali), mas

não deixa entrementes de apontar para o despedaçamento que realmente conta e

se situa num nível mais alto – o do corpo todo. A lembrança de tais mitos – o mito

iraniano remete nesse aspecto ao touro primordial “Abudad” – sugere que a

saliente predominância do olho enquanto sentido dominante não deve ser vista

apenas como uma figura destinada à auto-regulamentação e disciplina da

modernidade européia. Todas as partes do corpo podem ser instrumento para a

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execução do necessário despedaçamento, da dicotomia, a qual vem a ser

inaugurada pelo sincretismo, em sua condição de experiência concomitante da

necessária multiplicação de todas as formas de vida. Todas as partes do corpo

podem representar todas as outras partes do corpo, mas também o próprio

acontecimento cósmico. No curso real da violenta destruição, tanto o processo de

despedaçamento quanto as partes do corpo transformam-se em atributos desse

acontecimento. É precisamente esse ato de atribuição o que explica como as

imagens podem tornar-se ao mesmo tempo epifenômenos, corpos de ressonância

e mídia para a multiplicação sincrética: o hermetismo da forma possibilita atributos

que colidem com a associação infinita de significados individualizados.

Georges Bataille resume sua visão do problema do ver da seguinte maneira:

Se quiséssemos imaginar o universo sem o homem, um universo no qual diante

das coisas se abrisse apenas o olhar do animal, poderíamos, porque o animal não

é homem nem coisa, apenas nos representar um ver no qual nada vemos, posto

que o objeto desse ver é um deslizar, o qual passa das coisas que não têm

sentido nenhum enquanto estiverem isoladas, chegando a um mundo pleno de

sentido, sentido esse trazido pelo homem, que é quem confere a cada coisa seu

sentido. (...) Em um mundo no qual o olho que se abre nada compreende do que

vê, no qual, tomando como medida os nossos parâmetros, os olhos não vissem de

verdade, não haveria nenhuma paisagem. (...) Tudo o que posso por fim

apreender é que uma tal visão que me imerge na escuridão da noite e me cega,

traz-me ao mesmo tempo para mais perto do momento no qual, e disso já não

posso duvidar, a nítida clareza da consciência me leva para o ponto mais distante

dessa verdade imperscrutável, que se descerra entre mim e o mundo com o intuito

de ocultar-se.16

16 Georges BATAILLE. Theorie der Religion. Munique, Matthes & Seitz. 1977, p.22-24.

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A poética do kairos a exemplo de Gordon Matta-Clark

Forças da experiência enquanto limite, ao mesmo tempo experiência das forças,

que isso é o real enquanto ruptura, cesura, corte... dialética do limite. Corte no

olho, corte através do real. O real enquanto embebido por inteiro do olhar violento.

A tal proposta pode-se contrapor a obra de Gordon Matta-Clark, como modelo

marcante de uma economia do desperdício e do esbanjamento, no espírito da

poética do kairos.

Gordon Matta-Clarck apodera-se do mundo através de transformações, as quais

vieram naturalmente a provocar associações – umas mais, outras menos lícitas –

face ao processo do hermético. Em foco está basicamente o cortar/separar e o

ligar/fundir. O título da exposição sobre Gordon Matta-Clark da Generali

Foundation (Viena, 1999/2000) expressa, de modo adequado: Reorganizing

structure by drawing through.17

Alguns apontamentos sobre a pessoa e a obra de Gordon Matta-Clark (1943-

1978): “O artista da serra elétrica”. O pai, pintor famoso, surrealista: Roberto Matta

Erschaurren. A mãe: Anne Clark (depois Albert). Ambiente boêmio (Duchamp,

meta-ironia), conceitos, estratégias artísticas: referências à arte conceitual e à arte

minimalista. Estudo de arquitetura iniciado em 1962, na célebre Cornell School of

Architecture. Criação do grupo e do programa anarchitecture (integrado por

Gordon Matta-Clark, Denise Green, Jim Bishop, Joel Shapiro, Jeremy Gilbert-

Rolfe, Marcia Hafif). Como marca registrada, tem-se a integração de “novas”

mídias, i.e., mídias não pictóricas, tais como performance, dança, música (Laurie

Anderson). O grupo mantém – bem dentro do espírito da já citada pretensão a

expandir os materiais e transformar a arte, não mais reduzindo-a a obra e

representação, nos termos de Allan Kaprow – uma cooperativa que administra um

17 NT: Uma possível leitura do título em inglês seria “A reorganização da estrutura pelotrespassamento em desenho”.

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restaurante de nome Food (inauguração no dia 25 de setembro de 1971),

compreendido como empreendimento social, mas também como local de

performances: teatro-comida. Ao ato de cozinhar é atribuído grande valor.

Transformação na permanência: longa duração no lugar de erupções culinárias de

curto prazo. É possível, com o tempo suficiente, cozinhar tudo. Matta-Clark parece

ter como objetivo uma unidade in(di)ferenciável, uma espécie de matéria prima

alquimística. Para Matta-Clark, o cozinhar não funciona como um cortar e rejuntar.

Os ingredientes não são utilizados tendo em vista sua diferenciação. Quando se

agrega lixo àquilo que se cozinha, já se conta de antemão com seu processo de

dissolução. Os projetos sociais se agregam em torno do cozinhar, como, por

exemplo, uma cozinha pública de sopas. O moto é “sempre ter algo cozinhando”.

Como campo de trabalho podem ser considerados a ecologia urbana e a

reciclagem, a cidade e o lixo. O método tem por objetivo a percepção do urbano e

se compreende como “morada de um exercício para a vida na sarjeta”. A afinidade

com a concepção de Robert Smithson (site vs. non-site) é evidente. Como

fomentadores atuam, com permanente paciência e convicção, os marchands

Horace e Holly Solomon, com galeria em Greene Street, 112. Os trabalhos

esculturais de Gordon Matta-Clark têm acompanhamento fílmico permanente.

Assim define Gordon Matta-Clark alguns estímulos essenciais e um fio condutor:

Nossa reflexão sobre a “anarquitetura” era fugaz e nunca se propôs a desenvolver

trabalhos que fossem uma postura alternativa diante de edificações ou antes

diante da compartimentalização do espaço útil, ela demonstrava que tais posturas

tinham raízes muito profundas. A arquitetura é também meio ambiente. Quando se

vive em uma cidade, a estruturação do espaço como um todo torna-se de algum

modo arquitetônica. Nós pensávamos mais em espaços vazios metafóricos,

lacunas, lugares que sobraram e áreas não edificáveis.18

As expansões dos materiais supracitadas têm por base, no século XX, uma

oposição que funciona de forma complementar: destruição da forma e/ou culto do

18 Gordon Matta-Clark em Splitting, entrevista concedida a Liza Béan e publicada em Avalanche,21/05/1974. Apud Katalog Gordon-Matta-Clark, Kunstverein Münster. 1999, p.40.

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material. Os trabalhos de Matta-Clark servem a essa tipologia como uma espécie

de arqueologia, por meio do cortar e da encenação efêmera da destruição da

forma. Trata-se de uma inversão da estética do objet-trouvé,19 a qual estabelece o

sincretismo do mundo, uma anomalia selvagem, através de associações. Ela

constrói uma decomposição disjuntiva das associações não mais legíveis, quando

o objet-trouvé não é estabelecido através de declarações, mas sim aceito e visto

como realidade implícita, de modo que o objet-trouvé se coloca então sob o signo

de uma outra prática, tornando-se com isso passível de mutação.

A concretude flutuante solapa a hierarquia dos valores tradicional. A fantasia

construída é sempre redução da fantasia e, portanto, insuficiente. O efetivo como

resultado do conceito efetivado não alcança o real, mas reforça seu terror. Toda

identidade do pensamento no mundo com sua materialidade constrange a gênese

apagada de forma violenta, elimina a diferença e prescreve seu apagamento.

De forma inversa a sujeira, a contaminação, a desconstrução, possibilitam juízos

essenciais sobre a categoria residual dos valores. O deixar decair dos valores, o

estabelecimento de rupturas, a demonstração das obsolescências, descrevem a

lógica funcional do processo estético por baixo da fixação do duradouro e da

estilização do significativo. O aí implícito reconhecimento do monstruoso é um

modelo útil para correções na asserção de identidade do existente.

A esquematização dos valores através de uma teoria do lixo como a de Michael

Thompson mostra que o invisível e desprezado, como domínio residual do sistema

como um todo, está na base dos valores duradouros e transitórios. Tal modelo

descreve de modo adequado o inevitável fracasso de todas as tentativas de

excluir arte da vida social comum.

Matta-Clark preenche os requisitos básicos para a transformação do pensamento

histórico em formal-analítico, da discursividade para o cálculo. Isso pode ser

19 NT: “objeto encontrado”.

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expresso pela distância de Matta-Clark face a fragmentos de edificações como

“esculturas anarquitetônicas”. O esculpir da arquitetura, o isolamento dos

fragmentos esculturais tem continuidade através de recortes de imagens na

fotografia: montagem de cortes que mantêm o corte. O caráter público das obras

transforma o monumental do histórico, enquanto algo dado no agora (forma de

surgimento do histórico), numa qualidade “non-u-mental”, na formulação de Matta-

Clark. Sua intenção: pôr a descoberto as feridas do recalcado, e ao mesmo tempo

restringir ou mesmo quebrar com os automatismos instituídos. A lógica dual da

vontade e da matéria dá lugar, em Matta-Clark, a uma lógica triádica: vontade-

projeto-deslocamento.

A insistência do efetivo que vem à tona através de seus cortes fomenta e articula a

resistência do real. Trata-se de construir resistências. Os cortes de Matta-Clark

devem ser valorados como encenação dessa resistência. Os cortes se articulam

numa rede. Henri LEFEBVRE, em La production de l‘espace (1974),20 imaginou

para esse espaço uma aranha que marca uma teoria especial como insistência de

um conhecimento específico. Essa teoria de uma orientação serve como termo de

comparação para que não se considere a prática incisiva de Matta-Clark como

uma forma alcançada pela via da marcação, cujo significado residiria na sucessão

de momentos diferenciadores, qual seja, escultura moldada, mas antes como

fusão poética de dois momentos. O espaço não se constitui através de marcações

lógicas sucessivas, mas antes se transforma num processo temporal, o qual se

prescreve sob o signo do kairos, tendo por finalidade o desenvolvimento de

paradoxias de momentos felizes.

Já mesmo a aranha, enquanto forma de vida mais baixa, marca o espaço e se

orienta em ângulos como nós... Já ela se estende para além de seu corpo animal

numa segunda natureza de propriedades construídas por ela mesma, em seu

fazer produtivo e reprodutivo. Para a aranha, há esquerda e direita, em cima e em

baixo... Seu aqui e agora deixa o âmbito do simplemente objetivo, porque engloba

20 NT: A produção do espaço. In H. FABRE. Maravillas en los insectos. Madrid/Barcelona. Anos 20.

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em si relações e movimentos. – Decorre daí que as leis fundamentais da

orientação espacial estão dadas antes de tudo no próprio corpo. O Outro está

presente enquanto oposto do Eu. Um corpo diante do outro corpo, impenetráveis,

salvo por violência – ou amor. Objeto de forças que se expandem, agressão ou

desejo. Aqui, o fora também é dentro, assim como o Outro também é corpo, carne

suscetível de ferida, simetria receptível... (Assim encontram-se, estreitamente

vizinhas, secreção e segredo).21

Dois modelos ou metodologias do cortar e também duas diferentes avaliações da

dinâmica das ações de Matta-Clark podem ser mencionados:

• punctum, recortar, fragmento, partida, destruição;

• liberar, desconstrução, unidade, conservação dos recortes para um olhar

purificado; levar as coisas à perfeição; o ser-efetivo ou efetividade ou ser-assim

das coisas ainda não é o suficiente.

No corte, o punctum parece dominar: pontualização, descontextualização,

renúncia a grandes gestos. A questão permanentemente investigada é: misturar

ou cortar, abrir ou concentrar? Ou, nos termos de Matta-Clark, splitting and cutting.

Em termos vitalistas, os modelos do cozinhar e do cortar podem ser descritos

desta forma:

• modelo discreto: hierarquia, seleção, fragmento, diferença, aquecer, separar,

aguçar, reorganização das diferenças, análise, transformação do transitório,

tempo histórico ou irreversível;

• modelo constante: ênfase, empatia, correspondência cósmica, deixar ferver,

mexer, coesão situativa, sincretismo, endurecimento da unidade, cozimento

dos recursos temporais necessários para a transformação; tempo de trânsito,

dissolução.

A construtividade da destruição reabilita a ruína e o arruinamento enquanto

procedimento. O arruinar emerge como única ação estética justificada contra os

21 LEFEBVRE (1974), opus cit.. Tradução desse trecho para o alemão: Tom Fecht.

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mitos da criação e as reivindicações da arte (Bazon Brock): desvendamento da

mecânica das normalizações, da insistência no concreto, individual. Um dos

últimos projetos de Matta-Clark, não mais realizado, tinha o sugestivo título

Twentieth Century Ruins.22

22 NT: Ruínas do século XX.

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O lugar da arte

Disso é possível tirar algumas conclusões, no tocante a perspectivas futuras,

sobre o lugar da arte: o que é decisivo trata hoje de gestos, seu espaço e seu

tempo, e não mais da expressão. É por isso que, atualmente, os esforços

estéticos e as práticas artísticas desenvolvidas deslocam-se de maneira decidida

da representação para a atividade, da mimese para a ação experimental. Os

lugares da arte não se originam nas imagens, as imagens obtêm seu lugar através

da ação. Procurar lugares para a mensagem artística e um elemento essencial do

processo de encontrar imagens de uma arte que não mais se esgota na obra, mas

antes procura formas abertas de ação. Atualmente crescem – não somente nas

gerações mais jovens – a consciência, a curiosidade e também a competência

para achar e criar inúmeros lugares para a arte. Com isso muda-se também o

material sígnico, o arranjo e, dito de forma um tanto patética, a linguagem da arte.

Ela torna-se capaz de presença na medida em que mediatiza a si própria

enquanto experimento e ação. Ela se liberta do quadro estático dos significados

atribuíveis e fixos. Ela abandona a nature morte do sentido e sua allegorese. Seu

tableau vivante já não é uma superfície. Da imagem-espaço de até agora emerge

necessariamente a imagem-tempo: topografia de ações, não de referências. Se

não soasse tão pretensioso, e se não soubéssemos que os tempos interessantes

são aqueles que não têm uma ordem fixa, e que por isso não se pode propor

novos paradigmas, porque falta uma medida para a padronização – poder-se-ia

dizer que a mudança da imagem-espaço topográfica para a imagem-tempo

dinâmica seria uma virada paradigmática da maior importância.