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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ (UFPI) Núcleo de Referência em Ciências Ambientais do Trópico Ecotonal do Nordeste (TROPEN) Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (MDMA) Imaginário social de semi-árido e o processo de construção de saberes ambientais: o caso do município de Coronel José Dias – Piauí MARIA SUELI RODRIGUES DE SOUSA Bolsista Fundação Ford - IFP TERESINA 2005

Imaginário social de semi-árido e o processo de construção de …504842/... · 2015. 9. 24. · 572i Sousa, Maria Sueli Rodrigues de Imaginário social de semi-árido e o processo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

(UFPI)

Núcleo de Referência em Ciências Ambientais do Trópico Ecotonal do Nordeste (TROPEN)

Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA)

Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente

(MDMA)

Imaginário social de semi-árido e o processo de construção de saberes ambientais: o caso do município de Coronel José Dias

– Piauí

MARIA SUELI RODRIGUES DE SOUSA

Bolsista Fundação Ford - IFP

TERESINA

2005

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ (UFPI)

Núcleo de Referência em Ciências Ambientais do Trópico Ecotonal do Nordeste (TROPEN)

Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (MDMA)

MARIA SUELI RODRIGUES DE SOUSA

Bolsista Fundação Ford - IFP

Imaginário social de semi-árido e o processo de construção de saberes ambientais: o caso do município de Coronel José Dias

– Piauí

Dissertação apresentada ao Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Piauí (PRODEMA/UFPI/TROPEN), como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Área de concentração: Desenvolvimento do Trópico Ecotonal do Nordeste. Linha de Pesquisa: Políticas de Desenvolvimento e Meio Ambiente Orientadora: Profª Drª Maria Dione Carvalho de Moraes

TERESINA 2005

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MARIA SUELI RODRIGUES DE SOUSA

Bolsista Fundação Ford - IFP

Imaginário social de semi-árido e o processo de construção de saberes

ambientais: o caso do município de Coronel José Dias – Piauí

Dissertação apresentada ao Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Piauí (PRODEMA/UFPI/TROPEN), como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Área de concentração: Desenvolvimento do Trópico Ecotonal do Nordeste. Linha de Pesquisa: Políticas de Desenvolvimento e Meio Ambiente

Teresina, 15 de maio de 2005.

__________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Dione Carvalho de Moraes

Universidade Federal do Piauí (PRODEMA/UFPI)

__________________________________________________________ Profa. Dra. Emília Pietrafesa de Godoi

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

__________________________________________________________

Profa. Dra. Cristina Arzabe Universidade Federal do Piauí (PRODEMA/UFPI)

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

572i Sousa, Maria Sueli Rodrigues de Imaginário social de semi-árido e o processo de construção

de saberes ambientais: o caso do município de Coronel José Dias – Piauí / Maria Sueli Rodrigues de Sousa. - Teresina, 2005.

193f. : il. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento e Meio

Ambiente) – Universidade Federal do Piauí. Orientadora: Profa. Dra. Maria Dione Carvalho de Moraes 1. Meio ambiente-Semi-árido 2. Serra da capivara. 3.

imaginário social-campesinato. I. Título.

CDD-577.5

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À Savina Priscila e Lorena (minhas filhas amadas), razão da minha existência e a minha avó Andrelina (in memorian) que fundou em mim o amor pela natureza e cultura em nome de quem dedico este trabalho a toda à minha família; Ao seu Ferreira (in memorian) e Dona Isabel em nome de quem dedico este trabalho a todas as populações camponesas do semi-árido brasileiro. Aos meus outros laços de afeto: amorosos (Jonas Moraes); de amizade (Antônio Bispo dos Santos, Hortência Mendes, Rosana Evangelista, Rommel, Socorro Soares, Antônia Magna, Auriana, Hildebrando, Zilton, Rosângela, Barbosa, Aires, Sérgio Sauer, Pereira, Prancácio, simbolizando às muitas pessoas com quem teço inestimáveis teias amorosas); feministas (Tânia, Norma Soely e todas as mulheres que se organizam na UMP - União das Mulheres Piauienses) e de convivência com o semi-árido (Harald Schistek, Carlos Humberto, homens e mulheres do IRPAA, Cáritas, CEPAC, Fórum Estadual de Convivência com o Semi-árido e ASA – Articulação do Semi-Árido Brasileiro) em nome de quem dedico este trabalho às lutadoras e aos lutadores socialistas, feministas e por convivência com o semi-árido.

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AGRADECIMENTOS

Às populações camponesas de Barreirinho, Barreiro Grande e São Pedro, no município de Coronel José Dias, por aceitarem o convite por mim feito para viajar na história de suas vidas e, com isso, forneceram a matéria-prima para este trabalho. Às minhas filhas Savina Priscila e Lorene pelo amor, compreensão, companheirismo e apoio fundamentais na realização deste trabalho. À Professora Doutora Maria Dione Carvalho de Moraes que me orientou nesta dissertação e por, especialmente, ser uma das semeadoras que fez fecundar em mim o amor sócio-antropológico pelas populações camponesas e que me permitiu revisitar o universo das minhas origens. À Professora Doutora Marta Celina Linhares Sales em nome agradeço as valiosas contribuições de todos professores e de todas professoras do mestrado. À Fundação Ford, pela bolsa de estudos concedida, que me possibilitou ser, pela primeira vez, estudante profissional. A Fundação Carlos Chagas pelas valorosas contribuições no processo de coordenação da Bolsa da Fundação Ford, especialmente, Profª Fúlvia Rosemberg, em nome de quem agradeço a toda a equipe IFP. Ao meu amigo Antônio Bispo dos Santos, meu estimado companheiro de tantos sonhos e tantas lutas na peleja para construir um mundo prazeroso, por ter sido meu parceiro incansável nestas viajadas que me permitiram tecer este trabalho: uma sistematização do encontro dos nossos sonhos, afetos, amores, saberes e lutas. A Harald Shistek por ter, com muito amor, sinalizado para mim quanto à existência de um imaginário de amor nas vidas semi-áridas. A Jonas Moraes por ter colorido com vivas tinturas de paixão e amor o universo que concluiu este trabalho. Aos meus familiares: pai: Sebastião; mãe: Maria, avós: Andrelina (in memorian) e Maria (in memorian); irmãs: Almerinda, Eva, Ivone, Érica; sobrinha: Luísa Neiliane; sobrinhos: Sebastião Neto, Ramon, Luís Alberto e Renato; tias: Enedina e Ceiça; tio: Balbino (in memorian); primos: Darlon, Raimundo Neto e Élson; primas: Liana, Regina e Rosa; aos meus cunhados: Firmino, Mário e Venvildi, que direta ou indiretamente me fortaleceram na construção deste trabalho. Às minhas amigas e aos meus amigos: Hortência Mendes, Rosana, Rosângela, Auriana, Hildebrando, Romel, Antônia Magna, Francisca Lisboa, Zilton, Barbosa, Sérgio Sauer, Pereira, Prancácio, Tânia, Norma Soely, Iones, Rakuel, Creuzimar, Sérgio, Maria Aires, Jeanete, Severino, Gilvan Santos, interlocução constante e interações que me permitiram instituir-me pesquisadora sem desvincular-me de todos os outros universos em que interajo.

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Às famílias de Dona Isabel e seu Gérson, de Gilvoneto, de seu Nigrinho, Raimundo Coelho pela calorosa acolhida e hospedagem, condição fundamental para a realização deste trabalho. À Filomena, suas crianças, Raimundo Filho, Pedro pelas interações afetivas que fortaleceram o processo pesquisante. A Francisco Prancácio, meu estimado amigo, conquistado na caminhada do mestrado que meu deu inestimável contribuição durante todo o processo de realização deste trabalho. Às minhas colegas e aos meus colegas de mestrado pelas valorosas interações que contribuíram neste processo pesquisante. Ao Sérgio e a equipe da Federal Cópias pelas valiosas contribuições nos serviçoes de diagramação e impressão desse trabalho. À coordenação do mestrado PRODEMA/TROPEN/UFPI que possibilitam a existência do curso. Especialmente, Maridete, em nome de quem agradeço a toda equipe. Aos meus novos companheiros de trabalho: Daniel Rech e Edu que sinalizaram a senha para me reconduzir ao mundo profissional.

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JUÁ

Do juá Vale do Fidalgo Evocarei líricas Ao saudosismo Das tribos acroás dizimadas Por um ódio português Continua Juá Xodó do Sertão Da figueira que sombreia Os feirantes Os transeuntes Os ociosos Os fofoqueiros E principalmente Os fiéis do santo operário Que não cabiam Na capela do glorioso Permanece ancorada Em pilares da memória Como única garantia contra a morte Que homens e mulheres Lutam contra a finitude da história. Jonas Moraes

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SUMÁRIO RESUMO.............................................................................................................................. 11 ABSTRACT ......................................................................................................................... 12 INTRODUÇÃO: SOBRE O ESTUDO REALIZADO E SUA METODOLOGIA......... 13 CAPÍTULO I – SOBRE IMAGINÁRIO SOCIAL E CONSTRUÇÃO DE SABERES AMBIENTAIS: DELINEAMENTOS TEÓRICOS .......................................................... 33 1.1 A instituição imaginária do social .................................................................................... 33 1.2 Campesinato, desenvolvimento e sustentabilidade .......................................................... 43 CAPÍTULO II - IMAGENS DE LUGAR: SEMI-ÁRIDO E VÁRZEA GRANDE: REINVENÇÕES DE ESPACIALIDADE? ........................................................................ 53 2.1 Prolegômenos: sobre a construção social do Nordeste .................................................... 53 2.2 Semi-árido – nova invenção ou reinvenção de identidade espacial? ............................... 62 2.3 O contexto semi-árido: aspectos físicos ........................................................................... 71 2.4 O semi-árido no Piauí, território Várzea Grande ............................................................. 73 2.4.1 Aspectos geomorfológicos e históricos ......................................................................... 73 2.4.2 Ordenação territorial...................................................................................................... 86 2.5 Território: ancestralidade e localismo na construção da identidade sertaneja ................. 91 2.5.1 As conquistas de Vitorino e a relação de parentesco na memória mítica .................... 91 CAPÍTULO III – O SISTEMA DO LUGAR E SUAS INTERLOCUÇÕES NOS LABIRINTOS SEMI-ÁRIDOS DA VIDA SERTANEJA ................................................ 98 3.1. Habitus e os princípios sistêmicos .................................................................................. 98 3.2 A instituição social da cultura camponesa no semi-árido piauiense: inícios ................... 100 3.3 De camponês a peão maniçobeiro .................................................................................... 105 3.4 A mundialização do território Várzea Grande – de camponês a preservador ambiental: a instituição do Parque Nacional da Serra da Capivara.......................................................... 115 CAPÍTULO IV – IMAGINÁRIO SOCIAL DE SEMI-ÁRIDO EM CONSTRUÇÃO: IDENTIDADES EM DIÁLOGO INTERCULTURAL – O SERTÃO E O NORDESTE .......................................................................................................................... 134 4.1 Imaginário social de sertanejo a nordestino: de secas e retiradas .................................... 134 4.2 O imaginário social de semi-árido: das retiradas à convivência ..................................... 143 4.3 Símbolos do processo instituinte do imaginário social de semi-árido: arquitetura de uma nova síntese?................................................................................................................... 146 4.3.1 Imagens gráficas e sua análise estrutural ..................................................................... 147 4.3.2 Análise de papéis e simbologias................................................................................... 154 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 164 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 168 ANEXOS ............................................................................................................................... 178

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

ILUSTRAÇÃO 01 - Nordeste e Semi-Árido.............................................................. pág. 65

ILUSTRAÇÃO 02 - Semi-árido no Mundo................................................................ pág. 67

ILUSTRAÇÃO 03 - Semi-árido piauiense e o município de coronel José Dias......... pág.73

ILUSTRAÇÃO 04 - Domínio morfoclimático antes do semi-árido........................... pág. 75

ILUSTRAÇÃO 05 - Populações do domínio morfoclimático antes do semi-árido.... pág. 76

ILUSTRAÇÃO 06 - Urna funerária............................................................................ pág. 77

ILUSTRAÇÃO 07 – Município de Coronel José Dias............................................... pág. 80

ILUSTRAÇÃO 08 - Planície – localização do sítio da pesquisa – camponês e sua

roça................................................................................................................................. pág. 85

ILUSTRAÇÃO 09 - Processo estrutural instituinte do imaginário social de semi-

árido............................................................................................................................. pág.154

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LISTA DE TABELAS

TABELA 01 - Canções............................................................................................... pág. 70

TABELA 02 - Balanço hídrico de S. J. Piauí.............................................................. pág. 83

TABELA 03 - Itinerário das práticas produtivas......................................................... pág. 114

TABELA 04 - AT-9 Representação, função e simbolismo......................................... pág. 163

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 01 - Documento....................................................................................... pág. 79

QUADRO 02 - Registro de imagens gráficas........................................................... pág. 147

QUADRO 03 - Sujeitos e regimes de imagens......................................................... pág. 148

QUADRO 04 - Relatos de regime diurno................................................................. pág. 150

QUADRO 05 - Sujeitos e estruturas do imaginário no regime diurno...................... pág.151

QUADRO 06 - Relatos e imagens do regime noturno.............................................. pág. 152

QUADRO 07 - Estruturas do imaginário no regime noturno.................................... pág.153

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RESUMO

Uma parte do território brasileiro é de clima semi-árido, marcado pela irregularidade no regime de chuvas. Característica esta tomada como referencial para a instituição de um imaginário social estruturante de uma identidade de vítimas das condições climáticas e de uma territorialização que delimitou um Brasil das secas, a que o Estado denominou polígono das secas, incluindo grande parte do Nordeste e o norte de Minas Gerais. Neste espaço, é esboçada uma cultura que se move numa perspectiva de combater as secas e que perdura até final dos anos 90. A partir daí, segmentos populares, movimentos sociais e organizações não governamentais instituem outra toponímia para o referido território, com base nas condições climáticas, denominando-o semi-árido e anunciando mudanças no padrão de relação entre cultura e natureza a que chamam de convivência com o semi-árido. O presente trabalho é o resultado da investigação sobre o imaginário social a partir de expressão oral e gráfica das populações camponesas do semi-árido piauiense, no município de Coronel José Dias, no entorno do Parque Nacional da Serra da Capivara, partindo do pressuposto de que a relação humanidade e natureza é instituída não só pelas práticas, mas também pelo imaginário social, sendo orientado por representações sociais, por sua vez produzidas nessa relação.O problema de pesquisa deu origem às seguintes questões: que imaginário social instituiu uma relação de desequilíbrio ambiental no semi-árido piauiense? Quais as representações sociais apontam para o restabelecimento de uma relação sustentável entre natureza/cultura no referido ecossistema? Em decorrência, o objetivo geral da investigação visava analisar o imaginário social que norteia as relações natureza/cultura, nas suas dimensões éticas, simbólicas e práticas. E para atingir esse objetivo geral, foram traçados os seguintes objetivos específicos: conhecer o modo de vida camponesa através de seus saberes e práticas culturais; identificar e classificar os saberes de relação predatória e os que apontam para um novo equilíbrio na relação cultura e natureza e, por fim, captar os elementos culturais locais relacionados com a possibilidade de estabelecimento de um novo equilíbrio. O pressuposto básico da metodologia foi a concepção de que o fenômeno social é passível de objetivação, mesmo não sendo guiada por perspectivas objetivistas. Desta forma, o estudo de caso foi conduzido por metodologias qualitativas, visando analisar referências empíricas do imaginário social na perspectiva de descrição densa. Para tanto, foram utilizadas técnicas da entrevista semi-estruturada, observação participante, registro em diário de campo e produção de imagens gráficas, acompanhadas de relatos. Os resultados apontam para um imaginário social em processo de ressignificação de suas representações sociais no contexto de uma crise eco-social. Nesse processo, há uma relação intercultural com duas intencionalidades: a construção ou reinvenção tanto de uma identidade espacial, o semi-árido, quanto de sujeito social, num diálogo que, ao mesmo tempo, nega e reafirma as identidades de nordestino e de sertanejo. A outra intencionalidade é a de agregação à identidade local, seja espacial, seja social, do Parque Nacional da Serra da Capivara, área de preservação arqueológica e ambiental. Os resultados desvelam, assim, um processo de instituição imaginária que poderá ser potencializada no processo de construção de uma proposta de educação ambiental intercultural para o semi-árido.

PALAVRAS-CHAVE: semi-árido; meio ambiente; imaginário social.

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ABSTRACT

Great part of the Brazilian territory is characterized by irregularity during raining seasons. This irregularity has been taken as a referential to institutionalize a structuring social imaginary concerning the identity of the victims of the weather conditions, as well as the setting of a territory which defined a kind of Brazil of droughts, the so-called "droughts polygon", including a great part of the Northeast region and the north of the state of “Minas Gerais”. The people who have lived there tried to fight droughts until the end of 1990’s. Since then, popular segments, social movements and non-governmental organizations have conceptionalized a different name to the region, based on weather conditions, naming it “semi-arid,” as well as announcing several changes concerning the relationship patterns between culture and nature, which are expressed in a sense of learning to live in harmony with the semi-arid. The present work is the result of an investigation about that social imaginary from graphical and oral expression of peasant population on the "piauiense" semi-arid, at the city of “Coronel José Dias”, located next to "Serra da Capivara". I began with the assumption that the relationship between humanity and nature is currently instituted not only by the practices, but also by the social imaginary which has been derived from social representations produced in that relationship. The research problem has brought about the following questions: what social imaginary has instituted a relationship of environmental imbalance within the "piauiense" semi-arid? What social representations point out towards reestablishing a sustainable relationship between culture and nature in the present ecosystem? As a consequence, the final objective of the investigation was intended to analyze the social imaginary which directs the culture-nature relationship concerning practical, symbolic and ethic dimensions. In order to get to that general objective, the following specific objectives were plotted: to know the peasant’s way of life through their knowledge and cultural activities; to identify and classify the knowledge of the predatory relationship as well as the ones which point out towards a new balance in the culture-nature relationship; and consequently, identify the local cultural elements which relate to the possibility of creating a new equilibrium. The basic methodological premise was the conception that the social phenomenon is capable of objectivity, even though it is not guided by objectivist perspectives. Thus, the study was conducted by qualitative methodologies, intending to analyze experienced references from the social imaginary expressed in the context of deep description. In order to get to that point, it was used semi-structured interview techniques, participative observation, register on a field diary and the production of graphical images, followed by reports. The results point out to a social imaginary in the process of creating new meaning concerning social representations on the context of an eco-social crisis. Within that process, there is an intercultural relationship characterized by two dimensions. First, there is the making of, or reinvention of a spatial identity , the semi-arid, as well as of the social subject in a dialogue, which at the same time , denies and reaffirms the identities of the people of the Brazilian Northeast and of the local cowboy. The other dimension is of joining the local identity, whether spatial or social, of the National Park of Serra of the Capivara, an environmental and archeological preservation area. In this sense, the results reveal a potential imaginary that can be institutionalized in the process of constructing a proposal of environmental and intercultural education for the semi-arid. Key-words: semi-arid; environment; social imaginary.

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INTRODUÇÃO: SOBRE O ESTUDO REALIZADO E SUA ABORDAGEM

METODOLÓGICA

O indivíduo, ao nascer, é apenas uma possibilidade. E, no processo de vir a ser do

indivíduo, emerge o imaginário social como força fundante e instituidora da cultura, através

da qual o ser humano dá significado ao mundo por suas experiências, ao fazer história,

tecnologia, arte e a si próprio, construir a sociedade, criando imagens e representações

(CASTORIADIS, 1982).

Dentre as representações construídas no referido processo de instituição e

fundação, estão as que o ser humano faz de si próprio, do outro, dos vínculos sociais, da

natureza, de si com a natureza, do outro com a natureza, da relação entre cultura1 e natureza e

das relações sociais no processo de apropriação da natureza, pela simbolização, o que faz com

que o mundo sócio-histórico-natural figure indissociavelmente entrelaçado com o simbólico,

numa rede de relações na qual não se esgota. Esta rede é tomada como indispensável e

fundamental para a existência e expressão do imaginário, através de suas imagens que atuam

como memória afetivo-social. Tais imagens possuem uma função simbólica e, inversamente,

esta mesma função pressupõe a capacidade imaginária de evocar uma imagem

(CASTORIADIS, 1982).

Nesse sentido, a capacidade de simbolizar se expressa pelo estabelecimento de

vínculos entre termos, seres, coisas, de forma que um representa o outro em um processo no

qual se estabelece um significante, um significado e o vínculo entre os dois, resultando numa

relação simbólica, que supõe a função imaginária (CASTORIADIS, 1982). Nesta, a

representação e a imagem são a semântica, ou seja, o significado, que reagrupado, condensa a

multiplicidade de sentidos que evoca (DURAND, 2002).

Desta forma, a capacidade de simbolizar favorece o estabelecimento dos vínculos

que permitem às pessoas o desenvolvimento do sentimento de pertença, numa espécie de

1 Cultura aqui é tomada como a forma própria de um povo viver (MORAIS, 1992) e como sistema simbólico formado pelas interações entre os indivíduos e destes com o conjunto social, considerando condições históricas de sua organização social, o envolvimento afetivo, o papel do indivíduo e suas necessidades básicas, não como o resultado de mecanismos cognitivos internos e sim como produto das relações sociais, por isso não é uma entidade abstrata ou superorgânica, mas algo concreto, dinâmico, mutante, processual, vivo (GEERTZ, 1989).

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continuum inatingível, num tipo de compulsão para tornar-se semelhante às demais e a cada

ser que compõe o ambiente2 em que se encontram: os móveis, os imóveis, as árvores, os

animais, num tipo de culturalização da natureza e naturalização da cultura (MAFESOLI,

2000).

No referido processo de pertencimento, dão-se as relações entre as pessoas, as

relações sociais e destas com a natureza. Essas relações se encontram em movimento,

transformam-se, numa espécie de continuum processo crísico, em que há mais ou menos

deslocamentos, cisões e conflitos, o que não se confunde com o binômio

equilíbrio/desequilíbrio. Nesse sentido, os momentos de menos conflitos e menos cisões não

são necessariamente de equilíbrio. Também uma situação de desequilíbrio não é

simplesmente superada pela construção de uma situação de equilíbrio, mas pode sê-lo por

uma espécie de estabelecimento de outros lugares sociais no tecido crísico, em que o processo

e os sujeitos parecem acomodar-se.

Nesse sentido, o processo crísico é permanente, havendo momentos em que os

deslocamentos são mais intensos, numa espécie de pico da crise, e momentos em que os

sujeitos sociais se acomodam, encontram ou definem seus lugares no referido processo,

revitalizando os laços da relação de pertencimento.

Em termos mais amplos, o tecido social produzido pelo conjunto de relações

urdidas no percurso da sociedade industrial e pós-industrial vivencia um desses momentos de

pico da crise ou policrise, em que muitas facetas do fenômeno se entrelaçam e se sobrepõem:

crise do desenvolvimento; crise da modernidade; crise de todas as sociedades; uma espécie de

agonia planetária, não apenas como a adição de conflitos tradicionais de todos contra todos,

mas como crises de diferentes tipos somadas ao surgimento de problemas novos, sem solução,

configurando-se num todo que se alimenta de ingredientes conflituosos, crísicos,

problemáticos e que os engloba, ultrapassa-os e torna a alimentá-los (MORIN, 2002).

Na atual situação crísica, ganham notoriedade as ameaças produzidas pelo

percurso da sociedade industrial, configurando-se a era pós-industrial como sociedade de

risco (BECK, 1997), em que se vivencia a possibilidade de perigo com conseqüência de alta 2 Ambiente aqui é tomado como o conjunto, a um momento dado, dos agentes físicos, químicos, biológicos e os fatores sociais suscetíveis de ter um efeito direto ou indireto, imediato ou a prazo, para os seres vivos e as atividades humanas, ou seja, a sociedade toda: instituições, cultura, natureza, cidades, habitat, economia, técnica e artes; resumidamente, qualquer coisa que o ser humano cria, de que se cerca, das quais se recorda, que deseja, o que forma a complexidade de suas relações e condições de vida (GROUPES..., 1991).

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gravidade para cultura e natureza. Tais perigos são gerados pelo desenvolvimento da ciência e

da técnica, produzindo os conflitos bads3, em que a destruição ecológica é provocada pelo

desenvolvimento industrial. Além disto, há os riscos NBC (nuclear [nuclear], biological

[biológico], chemical [químico]), as armas nucleares, biológicas e químicas e, especialmente,

os riscos relacionados à pobreza, que vinculam habitação, alimentação, perdas de espécies e

diversidade genética, energia, indústria e população.

O contexto macro é a sociedade moderna ou semi-moderna, ou seja, a sociedade

industrial impregnada com elementos de contramodernidade, como nazismo, comunismo,

opressão das mulheres, guerras, militarização. De fato, trata-se do autoconfronto da

sociedade, num processo de auto-destruição criativa e numa reinvenção da política, que não

mais prega revoluções, desintegrações ou conspirações. Nesse sentido, a política emerge

como se fosse uma renegociação, um redesenho, uma autotransformação, de modo que a

macropolítica dá lugar à subpolítica difusa, moldando a sociedade de baixo para cima, o que

resulta na perda de poder e de encolhimento da macropolítica, assim como substituição

clássica da oposição direita e esquerda por outras como seguro/inseguro, dentro/fora,

político/não político (Beck, 1997, apud GUIVANT, 2001).

Beck (1997), pela idéia de “sociedade de risco”, identifica o contexto em crise no

chamado capitalismo avançado ou sociedade industrial, embora reconheça que o processo

crísico é anterior ao referido contexto. Vale lembrar com Sauer (2002) que a idéia de

sociedade em crise está relacionada à dicotomia urbano/rural, com o urbano sendo associado à

modernidade e o rural a atraso ou tradicional, concepção que remonta a tempos antigos, desde

pensadores gregos, com os conceitos de cidadania. No entanto, a própria dicotomia vai sendo

forçada a diluir-se por processos que empurram o consumo do urbano pelo rural, na medida

em que avança a modernização da sociedade (SAUER, 2002). Nesse sentido, ao se instalar o

processo de crise, seus efeitos são estendidos ao rural não como outro espaço, mas como

continuidade do espaço urbano, a serviço deste, servindo-lhe de suporte, desconsiderando a

existência própria dos territórios rurais, com suas peculiaridades, suas populações, seu modo

de vida, suas experiências e seus saberes.

O objeto de estudo da presente pesquisa situa-se, no contexto crísico referido, na

especificidade da crise eco-social, que brota da relação entre culturas no processo de

3 Bad quer dizer o que é ruim, qualidade má. No contexto refere-se aos efeitos do buraco na camada de ozônio, efeito estufa e os riscos que traz a engenharia genética para plantas e seres humanos (GUIVANT, 2001).

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apropriação da natureza, em um espaço rural semi-árido. Neste espaço, há uma área de

preservação arqueológica e ambiental, o Parque Nacional da Serra da Capivara, instalado

como suporte da vida urbana, com base numa espécie de usurpação de direitos à terra de

populações locais, que lá viviam e onde viveram seus antepassados, em um modo de vida

distinto do urbano-industrial. De fato, preservar neomitos em áreas protegidas com a exclusão

total do ser humano volta-se para o deleite das populações urbanas, com o conseqüente

afastamento forçado das populações tradicionais, em benefício de uma conservação ambiental

que beneficia os visitantes urbanos, numa negação da tradição de saberes e fazeres

(DIEGUES, 1996). Não se nega, aqui, que os problemas ambientais existem e guardam

estreita relação com práticas, representações sociais e políticas que estruturam o universo

sócio-econômico-cultural e que isto requeira mudanças no padrão de relação entre cultura e

natureza, especialmente, no que diz respeito ao processo de apropriação da natureza pela

cultura. Mas isso não dispensa o cuidado com a pluralidade cultural, especificamente, a

relação entre as diferentes culturas, o que aponta, por sua vez, para as hierarquias sociais e as

relações de poder que aí se instituem.

Considerando a importância do caráter intercultural, foquei a crise relacionada ao

processo de apropriação da natureza, ou seja, o conflito entre culturas na disputa pela

apropriação da natureza, a partir do processo gerador da crise, numa temporalidade

cronológica, considerando, no entanto, que ela se funde numa temporalidade intemporal4 e

glacial, em que a relação entre ser humano e natureza é de longo prazo, projetando-se para

trás e para frente (CASTELLS, 2002), fazendo cruzar diversas temporalidades. Nesse

entrecruzamento, de fato, encontram-se o espaço-tempo mundial, cenário das relações

internacionais no emergir da questão ambiental5; o espaço-tempo doméstico, o das relações

familiares; o espaço-tempo da produção, o das relações sociais através das quais se produzem

bens e serviços que satisfazem as necessidades efetivas; o espaço-tempo da cidadania,

constituído pelas relações sociais entre Estado, cidadãos e cidadãs. Neste contexto,

configuram-se relações de poder, em que a dominação estabelece a desigualdade entre

cidadãos, cidadãs e Estado, e entre grupos de interesses contrastantes e conflitantes, no seio da

4 A referida temporalidade ocorre quando elementos de um determinado contexto, a saber, o paradigma informacional e a sociedade em rede, provocam uma perturbação sistêmica na ordem seqüencial dos fenômenos, acelerando processos (CASTELLS, 2000), por exemplo, a comunicação em rede, a internet, que acelera processos e isso reduz espaços temporais entre os fatos. 5 Por questão ambiental refiro o fenômeno associado aos desequilíbrios sistêmicos ocasionados pela persistência de padrões reducionistas de regulação da dimensão econômico-política da vida social e pela natureza exponencial das curvas globais de crescimento demográfico (FREIRE, 2001).

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comunidade, como conjunto de relações sociais por via das quais se criam identidades

coletivas de vizinhança, região, raça, etnia, religião, que vinculam indivíduos a territórios

físicos ou simbólicos e a temporalidades partilhadas, passadas, presentes ou futuras

(SANTOS, 2001).

Nessa direção, entendo que o processo gerador da crise, no caso em estudo, é

marcado pelo encontro entre culturas, nos marcos de uma dada relação entre cultura e

natureza já estabelecida. Intervenção esta que não acontece no sentido de potencializar a

relação já estabelecida, mas de substituí-la, o que marca o processo por um caráter de

violência.

Como estratégia analítica, privilegio determinados momentos históricos,

paradigmáticos do referido processo, apreendido em três temporalidades na região estudada: o

encontro entre as culturas indígena e colonizadora portuguesa; o encontro entre cultura

camponesa e a da exploração da maniçoba [Manihot piauhyensis]6 e o encontro entre cultura

camponesa e a de preservação ambiental. Referir-se a esses eventos usando a palavra

“encontro” é eufemizar a violência objetiva e simbólica envolvida no processo.

A primeira temporalidade resultante do encontro intercultural entre nativos e

colonizadores, no Brasil colonial, é guiado, dentre outras finalidades, pela de limpeza étnica,

de forma a permitir a instalação das fazendas de bovinos, no sertão, atividade empreendida

em primeira mão, como suporte para a economia canavieira, desenvolvida no litoral e, depois,

como centralidade econômica. A forma de conduzir o intento resultou num obstinado

processo de construção de hegemonia cultural, econômica e política, que redundou numa

colossal perda demográfica de populações nativas, denominadas indígenas e em uma situação

de anomia7 causada pela desorientação cultural produzida pelo deslocamento da cultura

tradicional e pela introdução da cultura colonizadora. O caldo cultural resultante fez-se com

muito sangue, numa vertiginosa agonia das populações dominadas, em que a cultura

colonizadora muda as regras e o jogo das relações entre cultura e natureza (GRUZINSKI,

2003).

6 Exploração da maniçoba aqui se refere ao contexto de extração e cultivo da maniçoba [Manihot piauhyensis]. 7 A idéia de anomia aqui é utilizada no sentido de indicar uma situação de desregramento social, em que os indivíduos deixam de seguir normas compartilhadas, em que as estruturas sociais locais não conseguem fazer valer sua força, seja por encontrar outras práticas mais fortes ou por incompatibilidade com o meio (DURKHEIM,1996).

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Às populações nativas que sobreviveram ao processo violento da colonização

restou adotar, em certa medida, a cultura hegemônica, até como forma de manter suas

identidades ameaçadas. Assim, formas de reinterpretação e ressignificação cultural podem ser

vistas, também, como resistência. Historicamente, no entanto, isto implicou, inclusive, em não

se reconhecerem como parte da cultura original, cujos vestígios, no entanto, vão ressurgindo,

na medida em que se vão consolidando novas identidades culturais, como a camponesa

(GRUZINSKI, 2003).

A segunda temporalidade refere o encontro entre cultura camponesa e da

exploração da maniçoba, no final do século XIX, com o início da referida exploração, que, no

Piauí, surgiu de maneira episódica (MARTINS et al, 2003), com a oportunidade de

exportação do produto. De fato, esta exploração teve o seu ponto alto no início do século XX,

fase esta que durou algo em torno de vinte a trinta anos, quando acontece a crise internacional

do látex de origem vegetal, em função de descoberta do látex sintético e de vários centros

fornecedores na Ásia. Mas a exploração no Piauí se estendeu até os anos 60, mesmo em

situação de crise.

Com efeito, o desempenho da exploração da maniçoba, no contexto da economia

piauiense, provocou uma corrida às regiões produtoras, o que fez ocorrer significativas

intervenções na conformação do tecido social, especialmente, na composição das populações

locais, que receberam grande número de migrantes, oriundos de Estados vizinhos como Bahia

e Pernambuco. De fato, esta dinâmica econômica transformou camponeses em extratores ou

comerciantes de látex da maniçoba e permitiu a “entrada de gente de fora” na estrutura de

parentesco local, através dos casamentos (OLIVEIRA, 1998) e de outras formas de parentesco

ritual. É um período marcado por violência e perturbação no habitus8 que norteava as relações

sociais locais e destas com a natureza, o que gerou uma situação de crise sócio-ecológica, com

grande elevação da exploração do ecossistema.

Passado o boom da maniçoba, a atividade permaneceu em pequena escala,

integrada ao modo de vida dos camponeses de forma que no período no qual estes não

estavam na roça, iam “furar maniçoba”. Assim, a atividade se integrou ao conjunto da cultura

8 Habitus aqui entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que integra as experiências passadas e funciona como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações, tornando possível a realização de tarefas diferenciadas pela transferência analógica de esquemas, produzindo, desta forma, práticas que tendem a reproduzir as regularidades (BOURDIEU, 1994).

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camponesa, como complemento de renda, até se exaurir totalmente nos anos sessenta por falta

de mercado consumidor, embora ainda faça parte da flora local.

O terceiro momento das temporalidades aqui referidas remete ao encontro entre

cultura camponesa e cultura de preservação ambiental9, nos anos 80 do século XX, com a

instituição do Parque Nacional da Serra da Capivara. O referido parque foi criado para

proteger a área considerada de interesse arqueológico, em razão da existência de um grande

número de sítios pré-históricos, que abrigaram assentamentos humanos, e para proteger flora,

fauna e belezas naturais (FUNDHAM, 1998).

Por se tratar de uma área de proteção integral, a criação do parque exigiu a

retirada das populações locais daquele espaço, vedando-lhes o acesso para qualquer tipo de

produção ou extração, resultando numa violação, de imediato, em caráter material e simbólico

de um modo de vida instituído naquele ambiente.

Nesta análise, o processo de intervenção na relação entre natureza e cultura, nas

três temporalidades referidas, relaciona-se com o processo histórico da profunda crise

ecológica (MORAES, 2000) de populações camponesas em determinados ambientes, no

presente. Crise, esta, marcada por conflitos sociais, problemas ecológicos, problemas

econômicos, num descompasso entre suporte natural e formas de apropriação de suas

potencialidades. Nesse contexto, impõe-se considerar o processo histórico que produziu e

mantém a cultura dos flagelados da seca, presente não apenas no local investigado, mas em

todo o semi-árido brasileiro, onde prevalece uma visão, historicamente construída, de seca

como a grande tragédia que castiga as populações locais do semi-árido, reduzindo-as à

condição de indigentes que dependem da cesta básica para minorar a fome e de carro-pipa

para o abastecimento de água. Sem dúvida, esta é uma imagem unificadora da diversidade

existente no território semi-árido no Brasil e naturalizadora do problema da cultura da seca,

mostrando-o como provocado por forças naturais às quais o ser humano não consegue

enfrentar. Efetivamente, tal concepção oculta processos provocadores da crise, sendo útil à

implementação de políticas assistencialistas que têm servido para manter a histórica

9 Cultura de preservação ambiental aqui se refere ao processo de educação ambiental introduzido com a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara.

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concentração de poder numa estrutura de Estado patrimonialista10 que agasalha os velhos e

novos coronéis do sertão11.

De fato, o sertão semi-árido nordestino, desde a colonização, foi tomado como

sinônimo de seca (FURTADO, 1998). Esta concepção, embora fundada em severas

experiências de longas estiagens, acaba por revelar-se parcial por não permitir que se perceba

o ecossistema em sua totalidade, com as estiagens, as cheias, o verde, o cinza, a escassez, a

abundância, a fauna e a flora. Além disto, confere uma falsa unidade ao que é rico em

diversidade, desconsiderando especificidades dentro do bioma. Esta lente distorcida tem

levado os fazedores de políticas públicas a defini-las em forma de receituário generalizado,

com a mesma estratégia e tecnologia para todo o semi-árido. E ainda culturaliza o fenômeno

da natureza por processos políticos através de discurso que cria uma imagem de natureza

impiedosa, com força e vida própria, retirando da órbita política a responsabilidade pelo

drama social da seca. Assim, nesse discurso, a irregularidades das chuvas no tempo e no

espaço saem da órbita da natureza12 para a da cultura, ou melhor, como conseqüência desta,

criando, assim, as secas como discurso sócio-político-cultural.

Vale lembrar um outro discurso, nesse processo imaginário, no sentido de que,

também por um mecanismo cultural, naturaliza-se a seca como força divina e por isso fora do

controle humano, demonizando-a, ou melhor, vendo-a como castigo de Deus13, idéia

originada da visão edênica do colonizador português sobre as terras colonizadas. Nesse

imaginário, o Brasil é o Jardim do Éden e o que altera as bases desta percepção é fruto do

pecado. Com efeito, a visão edênica pode ser percebida desde a Carta de Pero Vaz de

Caminha ao rei de Portugal, nas imagens do gentio inocente e da terra abundante:

10 Estado patrimonialista entendido como aquele que surge a partir da hipertrofia de um poder patriarcal original, que alarga a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extra-patrimoniais, passando a administrá-las como propriedade familiar ou patrimonial, gerando uma estrutura estatal que garante o acúmulo de fortunas privadas, graças aos privilégios auferidos pela elite com a proteção do Estado (WEBER, 1991) 11 Sobre coronelismo no Brasil ver Faoro (1991). 12 No debate sobre a participação humana na alteração dos climas, em se considerando uma temporalidade glacial, é corrente a concepção de que a ação humana interfere na alteração microclimática, mas não interfere na esfera macro. É, também, corrente a concepção de que o ser humano é, de fato, grande poluidor do meio ambiente e destruidor da natureza, mas não determinante das grandes alterações climáticas, que, por exemplo, resultem na constituição de ecossistemas (PÁDUA, 2002). 13 Embora Deus, a religião, enquanto crença, seja da esfera da cultura para a análise socioantropológica, aqui a idéia está calcada na concepção teocêntrica de um deus controlador das forças da natureza, fora da órbita humana, portanto não cultural.

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E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos [grifo meu], porque tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram”. (...) Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvesse vista, será tamanha que haverá nela vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Tem ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia palma, muito chã e muito fremosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, a entender olhos não podíamos ver sena terra com arvoredos, que nos parecia muito longo. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muitos bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho [grifo meu], porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas [grifo meu] E em tal maneira é grandiosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem (CAMINHA, 1994. p. 180-181).

Como se pode ver, especialmente no segundo grifo, o imaginário edênico nasce,

etnocentricamente, da comparação, por similitude, com as terras do colonizador, produzindo o

equívoco de caracterizar o clima da Bahia, onde primeiro chegaram os portugueses, como

temperado, o que redundou no fato de os colonizadores trazerem consigo animais, plantas,

sementes, formas de cultivo e de criar, próprias do clima temperado da Europa.

A ocorrência da irregularidade das chuvas no tempo e no espaço, transformada em

discurso das secas, nega o imaginário edênico de terra amena e, na ótica popular, aquelas são

tomadas como se fizessem parte do pecado original14, por isso necessitando serem combatidas

por meio de rezas, penitências, promessas, novenas. Já na ótica do Estado e de um corpo

técnico científico, o enfrentamento deve se dar com políticas de combate. A meta, em ambos

os casos, é extinguir a condição ambiental de seca.

De fato, a idéia de extinguir o fenômeno natural da seca é uma concepção que

moveu e move pesquisas tecnológicas como, por exemplo, a que recomenda o

14 A referência ao pecado original é feita em função do estabelecimento de uma relação por similitude com o pecado de Adão e Eva, como marca de nascença: todos os que estão nestas terras, o semi-árido, estão sob a mesma égide, portanto sob os desígnios do pecado original.

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bombardeamento das nuvens com cloreto de sódio para fazer chover, largamente divulgada

pelos meios de comunicação social, como estratégia para acabar com as secas no semi-árido.

Também foi esta meta que motivou a criação de órgãos de governo como o Departamento

Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) [grifo meu], ações governamentais, políticas

públicas e obras de grande porte, de alto custo, sem sustentabilidade e com pouco retorno

social, como as grandes barragens, os poços tubulares, os incontáveis açudes e, atualmente, a

proposta de transposição do Rio São Francisco. Essas obras, em grande medida, foram

construídas sem levar em conta as características de solo, a oferta de água subterrânea, a

população beneficiária, a adequabilidade do empreendimento às condições ambientais. Tal é o

caso dos poços tubulares perfurados, geralmente, em períodos eleitorais, a custos altíssimos,

em áreas de subsolo cristalino, em que a água existe em pequena quantidade, sendo salobra

devido ao longo tempo de contato com sais, resultando em poços que não fornecem água ou a

fornecem em qualidade não consumível.

Portanto, a lógica da relação entre humanidade e natureza, trazida para o Brasil

pela cultura européia, desdobra-se historicamente e intensifica a relação de exploração

intensiva entre natureza e cultura, na medida em que os sistemas de exploração agrícola se

foram modernizando. Desse caráter introduzido pelos colonizadores, é parte fundamental a

exploração com fins econômicos, o que, cada vez mais, exige a intensificação do processo de

exploração insustentada da natureza. Foi assim que o pau-brasil e tantas outras espécies

vegetais e animais desapareceram e continuam a desaparecer. Processo semelhante aconteceu

e ainda acontece com a cultura tradicional de populações indígenas, camponesas e com o

modo de vida dessas populações.

Embora o referido padrão hegemônico de relação entre cultura e natureza tenha

sido permeado por processos vários de contradições e conflitos, este é fortalecido na lógica do

capitalismo centralizado, que se estrutura numa espécie de constelação em que os países

colonizadores, e depois os industrializados, ficam no centro e os países colonizados, mais

tarde os não industrializados e, atualmente, os economicamente dependentes, ficam na

periferia (PRESBICH, 1981), com o favorecimento do centro, o que faz com que a inserção

da periferia tenha um passivo. O centro apresenta-se aí como produtor de manufaturas,

responsável pelo desenvolvimento industrial e tecnológico, e a periferia como fornecedora de

matérias-primas, em virtude de suas dotações de recursos naturais. Produziu-se, desta forma,

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tanto um desenvolvimento desequilibrado entre centro e periferia quanto entre o modo de

produção e o ambiente (YOUNG, LUSTOSA, 2003)15.

A chave para compreender este desenvolvimento desequilibrado está nos

processos de industrialização e o progresso tecnológico, que produzem excedentes, gerados

pelos ganhos de produtividade, que não são distribuídos igualmente e os danos ambientais

gerados não representam passivo para nenhuma das partes, nem para o centro nem para a

periferia, ou seja, nenhuma das partes da relação paga a conta e as conseqüências dos danos

compõem o cenário em que vivem as populações locais.

Sem dúvida, no que tange à questão ambiental, pode-se dizer que, já no século

XIX, o mundo ocidental experimentou os primeiros reflexos do modelo desenvolvimentista

da sociedade industrial (GIULIANI, 1998), assentado no pressuposto de dois infinitos: a

inesgotabilidade da matéria prima e da energia e a ilimitada capacidade da natureza de

absorção dos rejeitos (DUARTE, 1983). O referido modelo desconsidera a lógica de

existência da natureza e sua diversidade, que, por sua vez, garante a existência do

ecossistema.

Como dito por Diegues (2000), a percepção dos primeiros choques entre o modelo

industrial e os ecossistemas naturais fez o mundo das artes e das ciências rebuscarem os mitos

do bom selvagem e o da natureza intocada, que remetem a Jean Jacques Rousseau e que

serviram de base para o surgimento da idéia dos parques nacionais, como áreas de

preservação com a exclusão de assentamentos humanos e como representação simbólica que

sustenta a existência de áreas naturais intocadas e intocáveis pelo ser humano, pela suposição

da incompatibilidade entre ação humana e conservação da natureza.

Com efeito, as raízes desses mitos encontram seu substrato nas grandes religiões,

principalmente, a cristã. As marcas dessa concepção povoam obras de arte do estilo

denominado Romantismo, nascido na Europa e espalhado para as Américas, com os seus

heróis no modelo bom selvagem movendo-se num espaço de natureza idealizada, intocada

pela ação humana.

Sem dúvida, este ideário acompanha a crise provocada pelo processo de

industrialização que tornou a degradação ambiental muito mais célere e com conseqüências 15 A propósito, Santos (2001) desenvolve raciocínio semelhante, empregando em lugar de centro e periferia, as denominações norte e sul para referir-se às questões das hierarquias entre nações no mundo contemporâneo.

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cada vez mais fora do controle humano. Pode-se considerar com Ferry (1994) que o

acirramento da questão veio com a segunda guerra mundial, que serviu de alerta e alarme

voltados para os efeitos das chamadas sociedades urbano-industriais modernas, a partir do

reaproveitamento dos lixos de guerra na mecanização da agricultura, o que deu impulsão aos

movimentos e discursos ambientalistas, que começam a surgir a partir dos anos cinqüenta.

A propósito, vale lembrar que a proliferação desses movimentos e a difusão dos

discursos ambientalistas têm despertado a atenção de estudiosos que sobre eles se debruçam.

Nesse sentido, Castells (2002) identifica uma pluralidade de movimentos ambientais, em

grandes linhas, com os seguintes perfis: o movimento de preservação da natureza (grupo dos

dez, EUA), com a identidade de “amantes da natureza”, elegem, como adversário, o

desenvolvimento não-controlado, tendo como meta a vida selvagem. Um outro tipo de

movimento ambiental é o de defesa do próprio espaço (“não no meu quintal”), que adota a

identidade de comunidade local, enfrentando os agentes poluidores em defesa da qualidade de

vida e da saúde. Há ainda o movimento Save the planet (Greenpeace), com identidade

internacionalista, que luta pela causa ecológica contra o desenvolvimento global desenfreado

em busca de sustentabilidade. Por fim, o autor refere-se ao movimento da política verde (Die

Grünem), que assume a identidade de cidadãos preocupados com a proteção do meio

ambiente e que combate o status quo político, com vistas a fazer oposições ao poder.

Também para Diegues (2000), os movimentos ambientalistas têm como traço

característico um universo plural que conta com várias correntes, dentre elas: os

preservacionistas, que defendem a separação total entre cultura e natureza, com o fito de

preservar esta, dentre estes os adeptos da Ecologia Profunda16, cuja proposição principal se

materializa nos parques nacionais. Uma outra corrente é formada pelos conservacionistas,

cujas idéias serviram de base para o ideário da sustentabilidade, ou seja, conservar a natureza

junto com a vida humana. O conservacionismo surge como crítica ao preservacionismo por

seu profundo desinteresse pelos problemas sociais. O autor refere-se ainda a uma outra

corrente, a do novo ambientalismo, produto de forças internas e externas, cruzadas com

fatores sócio-políticos, cuja preocupação básica é com o que se convencionou chamar de

qualidade de vida.

16 Ecologia Profunda é uma vertente do movimento ambientalista norte americano que se espalhou pela Europa e prega a defesa do amor à terra, do crescimento zero; aversão ao cosmopolitismo, ao moderno, na luta contra o capitalismo e em defesa dos poderes locais. (FERRY, 1994).

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De fato, o que se observa é que, no caso em questão, entrecruzam-se diversos

discursos ambientais. A administração do Parque Nacional da Serra da Capivara, por

exemplo, anuncia um discurso mais próximo do preservacionismo.

Por seu turno, organizações não governamentais e governamentais, que atuam na

área em projetos que enfrentam a situação de crise eco-social, demonstram, em seus

planejamentos, uma preocupação mais centrada no ser humano do que na natureza. Por

exemplo, num projeto empreendido numa parceria entre entes governamentais e não

governamentais, o “Projeto Fecundação”, as linhas de ação do planejamento são: gestão,

iniciativas produtivas, recursos hídricos, divulgação e educação. As linhas estão centradas nas

necessidades humanas, embora leve em conta o que a natureza pode ofertar e quais são os

seus limites. A meta é atingir melhor qualidade de vida para o ser humano, o que indica um

distanciamento entre políticas de desenvolvimento voltadas para as populações e para o meio

ambiente.

Com efeito, na análise sobre os movimentos ambientalistas, Castells (2002)

argumenta que a questão ambiental encontra dificuldade para se inserir no cotidiano das

populações, alegando que, por muito tempo, esteve esta restrita às elites dos países

dominantes, formadas por remanescentes de uma aristocracia esmagada pela industrialização

e por outros que adotavam como núcleo comunal e utópico a associação entre ecologia e

anarquismo, assumindo para si a tarefa de despertar a consciência de indivíduos poderosos,

que acabariam promovendo a criação de uma legislação conservacionista ou doando suas

fortunas em prol da causa da natureza. Embora havendo pioneiros como Raquel Carson, a

questão ambiental só vai chegar às massas nos anos 60.

Reconhece, ainda o autor, haver conflitos e desavenças no seio do movimento

ambientalista, mas atribui essas ocorrências à discordância quanto às estratégias, e não devido

à idéia básica. Isto significa que, apesar da diversidade dos movimentos ambientalistas, é

possível identificar linhas gerais de um “discurso ambientalista”, tais como: relação estreita e

ao mesmo tempo ambígua com a ciência e tecnologia – revolta com a ciência e movimento

com base na própria ciência – criticam a ciência e valem-se desta; conflitos sobre a

transformação estrutural como sinônimos da luta pela redefinição histórica das duas

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expressões fundamentais e materiais da sociedade: o tempo e o espaço17; a questão do

controle sobre o tempo em jogo na sociedade em rede: o movimento ambientalista é,

provavelmente, o protagonista do projeto de uma temporalidade nova e revolucionária, com

tempo cronológico, intemporal e glacial, que estende as preocupações das populações do

presente com as populações do futuro (CASTELLS, 2002).

Nesse sentido, é por meio das lutas por apropriação da ciência, do tempo e do

espaço, que os ecologistas inspiram a criação de uma nova identidade, uma identidade

biológica e social, que não implica em negação das culturas históricas, mas dificilmente

poderá conviver com a identidade do Estado nacional, visto que essa nova identidade estende-

se para além de suas fronteiras (CASTELLS, 2002).

Situar, nesse contexto, um estudo sobre imaginário social de semi-árido impõe a

necessidade de mergulhar nesta realidade para conhecer os seus processos instituidores, para

isso exigindo o descortinar deste território, sua gente, habitus e a ética que conduz a relação

dessa gente com a natureza.

Para isso, a pesquisa, realizada em 2004, no semi-árido piauiense, com área de

adensamento no município de Coronel José Dias, nas comunidades rurais Barreiro Grande,

Barreirinho e São Pedro, metodologicamente, adotou a concepção de que o fenômeno social é

passível de objetivação, sem deixar-se guiar, exclusivamente, por metodologias objetivistas

ou probabilísticas, por meio de hipóteses estatísticas. Assim, buscaram-se instrumentos de

análise compatíveis com o objeto de estudo. Nesse sentido, primou-se pelo contato direto com

os sujeitos investigados, com ênfase na observação participante e na produção de narrativas

orais, através de entrevistas semi-estruturadas, fundadas nos pressupostos teóricos da história

oral (THOMPSON, 1998, FERREIRA, AMADO, 1996, JUCÁ, 2003) e história de vida

(BOURDIEU, 1996), empregados num estudo de caso para compreender, descrever e

analisar, em termos de uma descrição densa, o imaginário social de semi-árido, na área

investigada, com destaque para o papel da memória (BOSI, 2003), com vistas a reconstituir,

no ato de relembrar, pela recriação apresentada do passado através da lembrança, o caminho

que conduz à representação desse passado. Nesse sentido, memória narrativa foi tomada como

17 O espaço de lugares privilegia a interação social e a organização institucional tendo por base a contigüidade física. O traço distintivo da nova estrutura social, a sociedade em rede, é que a maioria dos processos dominantes, concentrando poder, riqueza e informação, é articulado nos espaços locais (CASTELLS, 2002).

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dimensão cultural, composta de símbolos que demarcam a identidade de um grupo social, nele

comportando memória individual e coletiva (TEDESCO, 2002).

Os pressupostos da oralidade como instrumento socializador da memória

permitem aproximar num mesmo espaço histórico e cultural, a imagem lembrada do passado

e a do presente (BOSI, 2003). Para isso, busquei nos relatos orais, através das entrevistas, as

imagens que compõem o imaginário social investigado, por entender que o método da

oralidade possibilita um encadeamento de fatos e imagens que foram traduzidos pela memória

que os seleciona, interpreta e reinterpreta-os e, com isso, o narrador também interpreta a si

próprio pelas lentes do tempo presente, numa espécie de poética da vida social, que resulta em

quadros interpretativos da sociedade da qual emergem (LIMA, 2003).

A contribuição teórica do enfoque da história de vida, perspectiva que está na base

da análise das entrevistas, corresponde à construção de relatos de narradores e narradoras

sobre sua existência através do tempo, com vistas a reconstituir os acontecimentos

vivenciados e transmitir significados. Isto significa que, através desta experiência narrada,

delineiam-se as relações sociais com o grupo, profissão, camada social a que pertence na

sociedade global, assim como suas relações com o meio ambiente (SIMPSON, 1988).

Vale lembrar que, embora a técnica da história de vida esteja, teórica e

metodologicamente, orientando as entrevistas realizadas, não se trabalhou, até pela escassez

do tempo, no mestrado, com a construção de histórias de vida, propriamente, mas, sim, com

entrevistas semi-estruturadas. A referência à história de vida, portanto, deve-se aqui à ênfase

na narrativa e, nesta, ao mínimo direcionamento e imposição da problemática.

A condução das entrevistas baseou-se nos objetivos e hipótese geral da pesquisa,

numa situação de atenção flutuante, buscando evitar o questionamento forçado, o que

contribuiu para que entrevistados e entrevistadas permitissem deixar emergir o seu universo

cultural nas falas (THIOLLENT, 1987).

As entrevistas foram transcritas literalmente e seu conteúdo, posteriormente,

organizado nas categorias de análise, juntamente, com o produto da observação participante.

As categorias de análise surgiram do roteiro de pesquisa, composto de forma a captar os

aspectos do modo de vida camponês do sítio pesquisado, considerando: território, história da

ocupação, aspectos da economia, imagens de seca, relação com a política, lazer, relação com

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o parque, organização, relações entre cultura e natureza, saberes ambientais, problemas

principais. A pesquisa de campo foi, no seu conjunto, organizada em relatórios

sistematizadores de dados para análise e elaboração desta dissertação.

Numa perspectiva multidimensional do sujeito, o trabalho com as narrativas orais

foi associado ao trabalho com imagens gráficas tomadas em oficina, com sujeitos

selecionados pelo recorte de geração e gênero, num total de nove pessoas. No recorte de

geração participaram duas crianças, dois jovens, duas pessoas adultas e três pessoas idosas. E

no recorte de gênero, cinco mulheres e quatro homens. Com exceção das duas crianças, todos

já haviam participado do processo de entrevistas.

A referida oficina foi conduzida pela técnica AT – 9, teste arquetipal com nove

elementos, com base em Yves Durand (1988) e Pitta (1995). O teste consiste na produção de

um desenho com os arquétipos: personagem, animal, fogo, água, algo circular, uma queda,

refúgio, espada e monstro. A referida técnica é assim denominada por trabalhar os nove

arquétipos, compostos individualmente e acompanhados de um relato sobre o desenho e de

um questionário sobre o papel e significado de cada arquétipo na narrativa.

O referido método arquetipal foi aqui adotado para analisar os fatos simbólicos

materializados na expressão gráfica, o desenho, a organização dos referidos fatos, no relato,

bem como o procedimento de racionalização da simbolização através do questionário. O teste,

desta forma, é composto de um estímulo central, o personagem; de dois estímulos da

ansiedade, a queda e o monstro; de três estímulos de resolução da ansiedade, a espada, o

refúgio e o elemento cíclico e de três estímulos complementares, a água, o animal e o fogo. A

análise do desenho, história e respostas ao questionário foram classificadas de acordo com as

estruturas do imaginário: heróica, mística e sintética. Também foi realizada a análise das

simbologias atribuídas pelos sujeitos a cada elemento do seu relato, com vistas a perceber a

coesão do imaginário através da ação desenvolvida pelo personagem e da relação entre os

elementos (PITTA, 1995).

A associação dessas diferentes concepções metodológicas originárias de quadros

de referência (BRUYNE, 1991), como o da compreensão e do estruturalismo, foi assumida

nesta pesquisa com base na perspectiva da complexidade do sujeito que aqui se expressa nas

dimensões discursivas conscientes e inconscientes e na própria ciência do imaginário que

propõe pensar as coisas simultaneamente e não simplesmente por oposição. Nesse sentido,

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com a contribuição da antropologia do imaginário, busca-se a compreensão do objeto

pesquisado, a partir das narrativas, que não obedecem a uma linearidade na forma de dedução

lógica, mas, sim, através da estruturação simbólica do imaginário, pressupondo o caráter

pluridimensional do mundo simbólico, com base na concepção de que, se o mito fundamenta

a cultura, cada pessoa vive dentro de várias mitologias como a teoria e o método da pesquisa

do imaginário permitem compreender e explicar.

Os sujeitos da pesquisa foram selecionados, inicialmente, pela indicação de

técnicos de uma organização não governamental, a Cáritas Brasileira – Regional Piauí, que

atua na área, e por mim própria em função de conhecimento prévio da área como técnica da já

citada organização. A partir das primeiras indicações, a seleção foi feita espontaneamente ou

por auto-seleção. Os únicos critérios observados foram quanto à campesinidade

(WOORTMAMM, 1990 e MORAES, 2000) e quanto ao recorte de geração e gênero. O

recorte de geração foi adotado com o fim de ir além do universo social do presente e o recorte

de gênero, com o fim de chegar aos universos do mundo do trabalho produtivo e reprodutivo

já que, na tradição camponesa investigada, o imaginário social de mundo do trabalho aponta

para a presença masculina no trabalho produtivo e a feminina no trabalho reprodutivo, em

consonância com outros grupos camponeses estudados, como aponta a literatura

socioantropológica sobre o tema (MORAES, 2000).

O território de adensamento da pesquisa foi o município de Coronel José Dias no

Estado do Piauí, situado no semi-árido e onde se vive um visível conflito eco-social

relacionado à presença do Parque. Ali, nos anos de 2001 a 2003, atuei como extensionista

rural, o que me proporcionou uma certa intimidade com o lugar. No processo de pesquisa,

selecionei, como sítio de adensamento, o território em que se originou a já referida crise eco-

social, a antiga sede da Fazenda Várzea Grande, composto por três unidades: bairro São

Pedro, comunidade Barreiro Grande e comunidade Barreirinho. Foram entrevistadas vinte e

quatro pessoas, num universo de oitenta e duas famílias, sendo sessenta e nove no bairro São

Pedro, seis no Barreiro Grande e dezessete no Barreirinho. Do total de pessoas entrevistadas,

foram sete homens adultos, três no Bairro São Pedro; dois no Barreiro Grande e dois no

Barreirinho; cinco mulheres adultas, sendo três no São Pedro; uma no Barreiro Grande e uma

no Barreirinho; três homens idosos, sendo dois no São Pedro e um no Barreirinho; cinco

mulheres idosas, sendo quatro no São Pedro e uma no Barreirinho; duas mulheres jovens,

sendo uma no São Pedro e uma no Barreirinho; quatro homens jovens, sendo dois no São

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Pedro e dois no Barreirinho. Num recorte de gênero, foram entrevistados treze homens e onze

mulheres.

Para viabilizar o estudo sobre imaginário social de semi-árido, construí como

objeto de investigação o imaginário social que institui as representações sociais ambientais de

semi-árido concernentes às práticas e saberes de populações camponesas locais, orientando-

me pelas seguintes questões de pesquisa: qual o imaginário social que embasa a situação de

desequilíbrio ambiental no semi-árido piauiense e qual o imaginário social aponta para o

restabelecimento de uma relação sustentável entre natureza e cultura, naquele ambiente?

Como hipótese teórica ou pressuposto teórico mais amplo tem-se que a relação

entre cultura e natureza é instituída pelo imaginário social e orientada pelas representações

sociais, visto que o conhecimento sobre a natureza é empreendido socialmente, compreendido

e compartilhado pelas pessoas. A forma como chega aos grupos ganha o significado de sua

subjetividade, de sua realidade psicossociológica, afetiva e axiológica, sendo o imaginário

social um sistema de interpretações aberto e fechado para a realidade social (SILVA, 2002).

Ancoradas nesta pressuposição, as hipóteses operacionais que orientaram o

trabalho de campo podem ser assim anunciadas, embora abertas à reelaboração no ato da

pesquisa: as situações de desequilíbrio ecológico, econômico e social, vivenciadas no semi-

árido piauiense, contêm estruturas que permitem estabelecer um novo equilíbrio em função da

sobrevivência de elementos culturais e estruturais tradicionais, bem como pela mediação de

valores culturais de convivência com o semi-árido, via educação popular e de preservação

ambiental pela administração do parque. Levou-se em conta que os resíduos de relação

predatória com o meio ambiente semi-árido tanto se materializam nas práticas de queimadas,

caça, criatório e plantio não apropriado às condições climáticas, quanto subsistem nas formas

simbólicas (suave e invisível), que são representadas pelas vias da comunicação, do

conhecimento e do sentimento.

Num processo de elaboração e reelaboração, estabeleceu-se como objetivo geral

da pesquisa analisar as imagens de semi-árido que norteiam as relações entre natureza e

cultura neste ecossistema, em suas dimensões éticas, simbólicas e práticas, através de um

estudo de caso no semi-árido piauiense. Como objetivos específicos decorrentes, visou-se

conhecer o modo de vida camponesa no semi-árido piauiense a partir das práticas culturais;

identificar e classificar os saberes ambientais de relação predatória e os de um novo equilíbrio

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com o meio-ambiente, do ponto de vista do discurso ambientalista, do discurso de

desenvolvimento, dos mediadores que atuam na educação popular e do ponto de vista das

populações locais camponesas; captar os elementos culturais tradicionais que se relacionam

com a possibilidade de estabelecimento de um novo equilíbrio. Numa perspectiva não-

positivista do fazer científico, vale lembrar aqui que, assim como as hipóteses, os objetivos

traçados inicialmente estiveram abertos ao diálogo com a realidade observada e sujeitos a

sofrer modificações.

No que tange à sua estrutura, a presente dissertação está composta de quatro

capítulos. O primeiro capítulo analisa os delineamentos teóricos e metodológicos norteadores

da presente investigação. O segundo apresenta a discussão do semi-árido brasileiro, como

território macro em que está inserido o município pesquisado, com o foco nas comunidades

Barreiro Grande, Barreirinho e bairro São Pedro, ligadas por uma mesma tradição oral de

fundação (GODOI, 1999) e inseridas num mesmo ambiente natural no que tange a vegetação,

fauna e flora, regime de chuvas e clima. O terceiro capítulo apresenta o modo de vida das

populações camponesas e o quarto capítulo versa sobre o imaginário social de semi-árido, a

partir do diálogo intercultural das identidades sertaneja e nordestina e das imagens gráficas

acompanhadas de relatos. Na conclusão, há a retomada do objeto de pesquisa, através do

problema investigado, hipóteses e objetivos para relacioná-los ao processo de pesquisa,

permitindo aproximar realidade empírica observada e teorias, no processo de interpretação

socioantropológica que aponta para os resultados alcançados.

Vale lembrar, ainda, o esforço empreendido na tentativa de uma construção

analítica de caráter interdisciplinar, com o concurso de áreas científicas como a sociologia

(BECK, 97; CASTELLS, 2002; FOUCAULT, 1986; GIULIANI, 1998; GUIVANT, 2001;

ABRAMOVAY, 1992; DIEGUES, 1996 e 2000; BOURDIEU, 1994 e 1996; MENDRAS,

19976; SANTOS, 2001; MORAES, 2000 e 2003; VIEIRA, 2003; VEIGA, 2003; RIBEIRO;

1992; LEIS, 2001), a antropologia (WORTMANN, 1990; SHANIN, 1976; MAFFESOLI,

1984 e 2000; GEERTZ, 1989 e 2003; GODOI, 1998 e 1999; CASTORIADIS, 1982, 1987 e

1999), ecologia (VIOLA, 2001; TUAN, 1980; McCORMICK, 1992; LEFF, 2002), a história

(THOMPSON, 1998; BOSI, 2003; QUEIROZ, 1994), a geografia (PELLERIN, 1991;

AB’SABER, 2003; LIMA, 2000), direito ambiental (AGRELLI, 2003; SILVA, 2002), a física

(PRIGOGINE, 1996), a biologia (EMPERAIRE, 1991), a economia (SACHS, 1986 e 1995;

PRESBICH, 1981; FURTADO, 1998) e a psicologia social (MOSCOVICI, 1995; MINAYO,

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1995; ROQUETTE, 2000; SILVA, 2002). Ainda contando com o aporte da filosofia

(MORIN, 1998, 2001, 2002; CHAUÍ, 1994) e da arte (TAUNAY, 1986; ROSA, 1986;

PAIVA; 1981; IBIAPINA, 1998; DOBAL, 1998; MELO, 1997; ALENCAR, 1992; CUNHA,

1999; GONZAGA, 2004). Nesta perspectiva, a interdisciplinaridade atua como diálogo

profícuo, na tentativa da apreensão, compreensão explicação do objeto de estudo em sua

complexidade irredutível a uma abordagem monodisciplinar.

Enfim, todo o texto, bem como o trajeto de pesquisa ora apresentado, centrou-se

no enfoque do delineamento de imaginário social de semi-árido com vistas a compreender o

processo de crise eco-social estabelecido no referido ecossistema por força de dimensões

culturais e políticas que delineiam políticas públicas e comportamentos na relação entre

natureza e cultura e entre Estado, sociedade e natureza.

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CAPÍTULO I

SOBRE IMAGINÁRIO SOCIAL E CONSTRUÇÃO DE SABERES AMBIENTAIS:

DELINEAMENTOS TEÓRICOS

Este capítulo está organizado em duas seções, focalizando os delineamentos

teóricos utilizado na presente abordagem. A primeira seção apresenta os fundamentos teóricos

do imaginário social que orienta e dá sustentação à condução da pesquisa, em estreita

vinculação com a hipótese teórica que ela desenha. A segunda seção fundamenta teoricamente

as categorias campesinato, desenvolvimento e sustentabilidade como parte substantiva da

pesquisa.

1.1. A instituição imaginária do social

O mundo sócio-histórico está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico.

Isto significa que as instituições, suas ações, seus efeitos, os atos reais, individuais e coletivos,

assim como os produtos materiais estão dispostos num conjunto de relações simbólicas em

rede. O imaginário social faz parte da referida rede, exprimindo-se e existindo a partir do

simbólico, sendo composto de imagens e de relações entre estas, que atuam como memória

afetivo-social, portadora de significados. Como função que existe devido à capacidade

imaginária de evocar imagens, o simbolismo implica a capacidade de estabelecer vínculos de

modo a permitir a representação do que se mostra vinculado, numa relação que supõe a

função imaginária traduzida pela linguagem em suas múltiplas e variadas expressões

(CASTORIADIS, 1982).

Castoriadis (1982) chama de imaginário radical a parte fundamental, o âmago do

ser e do modo de ser da psique do ser humano tanto singular quanto social-histórico. Nesse

sentido, o imaginário radical, individual e social, cria o mundo em que se estabelecem.

Há uma vasta literatura sobre simbolismo e imaginário social, que emerge no

processo de maturação de estudos sobre estrutura, vista por Bobbio (1993) como o conjunto

simbólico de elementos, dotado de propriedades que lhes garantem coesão, com a

possibilidade de se converter em outro conjunto de elementos.

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A propósito, Marcel Mauss (1979) desenvolve a concepção de um princípio

estruturante de trocas que apresenta uma interdependência entre morfologia e fisiologia

social, que constrói um sistema orientado através de estruturas hierarquizadas. Para o autor,

trata-se de uma totalidade com um sentido aparente e um velado, cabendo ao princípio

estruturante revelar o sentido velado da totalidade. O sentido velado é o que aparece em forma

de símbolo, no qual há uma coincidência entre significante e significado, em que sua

definição acontece pelo gesto e sua eficácia reside na capacidade de fazer o fenômeno social

reproduzir-se.

Já para Lévi-Strauss (1970), a noção de estrutura refere-se aos modelos

construídos em conformidade com o empírico, visão que permite separar duas noções

parecidas e facilmente confundidas: o modelo construído e a estrutura social. O modelo é

dotado das condições de manifestar a estrutura em forma de sistema. Além disto, as

propriedades anteriores devem provar a reação do modelo em caso de alteração e sua

construção deve explicar os fatos observados. Sendo, assim, o modelo remete à estrutura, e

está na realidade que o estrutura, mas não corresponde a esta. E, portanto, em conseqüência da

observação, o modelo coincide com o fenômeno e é capaz de reduzir realidades diferentes a

algo comum. Nesse sentido, o referido modelo sistematiza as representações coletivas e

contém a totalidade da estrutura social. Esta estrutura não se encontra no comportamento, mas

no pensamento, sendo encontrável no modelo, como invenção puramente simbólica.

Nesse sentido, o imaginário visto como “o conjunto de imagens e de relações de

imagens que formam o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 2002, p. 18) é

instituído pelas práticas sociais, ao tempo em que institui práticas sociais, sendo, portanto,

uma norma fundamental, ainda que o pensamento ocidental, especialmente, a filosofia

francesa, tenha a tradição de desvalorizar ontologicamente a imagem e psicologicamente a

função da imaginação. Entretanto, é o imaginário um tipo de denominador comum a todas as

criações do pensamento humano, numa espécie de encruzilhada antropológica que permite

esclarecer um aspecto por um outro aspecto, tendo como força estruturante materiais

axiomáticos (DURAND, 2002).

Nesse contexto, a imagem é portadora de um sentido que não deve ser procurado

fora da significação imaginária por haver homogeneidade de significante e significado no seio

de seu dinamismo organizador. Este dinamismo faz a imaginação ser fonte de libertação para

além da formação de imagens. Como potência dinâmica, na verdade, a imaginação simbólica

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deforma e reforma as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção. Processo este em que as

leis da representação são homogêneas e metafóricas e provocam uma coerência entre o

sentido e o símbolo numa dialética, em que o símbolo situa-se no domínio de uma semântica

especial, com um essencial e espontâneo poder de repercussão (DURAND, 2002).

Gilbert Durand (2002) vê, como conseqüência dessa visão de símbolo, a

anterioridade tanto ontológica quanto cronológica do simbolismo, sendo o símbolo imaginário

o vínculo afetivo-representativo que liga um locutor a um alocutário num plano locutório, o

do símbolo, que assegura uma certa universalidade nas intenções de linguagem e que coloca a

estruturação simbólica na raiz de qualquer pensamento, produzindo um semantismo do

imaginário que é a matriz original, a partir da qual todo o pensamento racionalizado e o seu

cortejo semiológico se desenvolvem. Uma outra conseqüência da já referida visão de símbolo

é a quebra da linearidade significante, ou seja, da explicação linear na forma de dedução

lógica ou narrativa introspectiva, num determinismo do tipo causal, o que faz emergir a

necessidade de um método compreensivo das motivações e do caráter pluridimensional e

espacial do mundo simbólico.

Classificar pode ser um dos caminhos da busca dessa compreensão, porém a

classificação dos grandes símbolos da imaginação em categorias de forma a fugir da

linearidade e a cobrir o semantismo das imagens é um caminho tortuoso, segundo Durand

(2002). Nessa busca, é importante considerar que os dados sociológicos fornecem quadros

primordiais para os símbolos, situando o imaginário no trajeto antropológico, visto este como

“a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e

assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND,

2002. p. 41). É na emoção da criação das imagens que se vai construir o conhecimento.

Nesse sentido, o imaginário é visto como “esse trajeto no qual a representação do

objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito e no qual,

reciprocamente, as representações subjetivas se explicam pelas acomodações anteriores do

sujeito ao meio objetivo” (DURAND, 2002, p. 41). Nesse sentido, a relação que o ser humano

estabelece com a natureza pode ser apreendida através do simbolismo.

Na busca de compreender esse caráter pluridimensional e espacial do mundo

simbólico, Durand (2002) elege o método pragmático e relativista de convergência, que

agrupa constelações de imagens organizadas por um certo isomorfismo dos símbolos

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convergentes. Sendo convergência aqui diferenciada de analogia e aproximada de homologia,

visto que não se constelam grupos análogos (A é para B o que C é para D), mas grupos

homólogos (A é para B o que A’ é para B’), em que há um caráter semântico que se localiza

na base de todo o símbolo, fazendo com que a convergência se exerça, sobretudo, na

materialidade de elementos semelhantes, resultando numa equivalência estrutural, em que os

símbolos constelam por serem variações sobre um arquétipo18, desenvolvido a partir de um

mesmo tema arquetipal, o que permite classificar o método como microcomparativo. Isso

evidencia dois aspectos do método comparativo: o aspecto estático e o dinâmico, que resultam

numa organização de constelações ao mesmo tempo em torno de imagens de gestos, de

esquemas transitivos e em torno de pontos de condensação simbólica, em que se cristalizam

os símbolos.

A análise das constelações exige o uso do discurso, o que conduz o método ao

risco de cair numa linearidade evolucionista, visto que o discurso tem um fio condutor, que

pressupõe início, meio e fim. Durand (2002) anuncia esse risco e, para fugir dele, adota a

concepção de que, se é forçado a começar de um princípio, esse princípio será apenas

metodológico e não ontologicamente o primeiro. Para isso, vai buscar o princípio de sua

classificação no estudo dos reflexos ou reflexologia, que evidencia a trama metodológica

sobre a qual a experiência de vida, a adaptação positiva ou negativa ao meio virão inscrever

os seus motivos e especificar o polimorfismo pulsional e social da infância, a partir de duas

dominantes: a dominante de posição, que coordena e inibe todos os outros reflexos e a

dominante da nutrição, que se manifesta por reflexos de sucção labial e de orientação

correspondente à posição da cabeça, nas crianças, ao alimentar-se.

Durand (2002) acrescenta uma terceira dominante, supondo ser esta de origem

interna, desencadeada por secreções hormonais e só aparecendo em período de cio. É esta a

dominante cíclica e sexual. Enfim, Durand (2002) opta pelas três dominantes como matrizes

sensório-motoras nas quais as representações se integram, especialmente, se esquemas

(schémas) perceptivos enquadram-se e assimilam-se aos esquemas (schémas) motores

18 “Arquétipo é o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais, de forma universal e sem ambivalências. É a força da coesão compreensiva comum a vários símbolos, é a substantivação dos esquemas (schémas), que é a generalização dinâmica e afetiva da imagem, formando o esqueleto dinâmico e funcional da imaginação” (DURAND, 2002, p. 59-60). Convém lembrar que a noção de arquétipo foi trabalhado por Karl Jung e que Mircea Eliade (1995) a emprega em sua obra sobre a história das religiões, quando estuda imagens por tema e as agrupa. Para este autor, os arquétipos estão presentes nas mais diversas culturas o que não ocorre por difusionismo, o que é aprofundado por Gilbert Durand (2002) cujo método permite refletir sobre as imagens nas diversas culturas, numa perspectiva que abrange, simultaneamente, as dimensões universal/particular.

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primitivos, caso as três dominantes estejam em concordância com os dados de certas

experiências perceptivas. Importante destacar que os objetos simbólicos nunca estarão numa

dominante pura, mas constituem tecidos com a imbricação de várias dominantes e que estas

fornecem os três grandes gestos que desenrolam e orientam a representação simbólica e, com

isso, fornecem as três estruturas do imaginário. Uma tripartição que pode ser vista na

perspectiva de uma bipartição: dois universos de classificação, já que a segunda e a terceira

estrutura estão apenas em um dos universos da classificação, em função da proximidade entre

o alimentar-se e o reproduzir-se (DURAND, 2002).

E com base na reflexologia, Durand (2002) anuncia o princípio do seu plano de

análise do imaginário: ao mesmo tempo bipartida e tripartida. A bipartição se dá nos regimes

diurno e noturno e a tripartição, oriunda da reflexologia, resulta nas estruturas heróica, mística

e sintética.

Os regimes noturno e diurno são tomados em oposição. O regime diurno está

estruturado na dominante postural de elevação e estrutura heróica, com suas implicações

manuais e visuais de agressividade, tendo relação com os rituais da elevação e da purificação,

com a tecnologia das armas e a sociologia do soberano, mago e guerreiro. Este regime funda-

se na oposição: para ver o diferente necessita-se de luz. Já o regime noturno subdivide-se nas

dominantes digestiva e cíclica (sexual), respectivamente, relacionando-se com as estruturas

mística e sintética. A primeira, agrupando as técnicas do continente e do habitat, os valores

alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora. A segunda, por sua vez,

agrega as técnicas de ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais

ou artificiais do retorno, os mitos19 e os dramas astrobiológicos (DURAND, 2002). Neste

regime, diferentemente do que ocorre no diurno, vê-se o mundo por complementaridade.

As estruturas, vistas não como formas vazias, e sim como portadora de um rico

semantismo, além da tripartição em heróica, mística e sintética, subdividem-se em quatro

aspectos distintos, cada uma delas.

As estruturas heróicas ou esquizomorfas, pertencentes ao regime diurno de

imagens, são portadoras de constelações que se organizam em torno de dois grandes schémas:

19 Mito é um sistema dinâmico de arquétipos, símbolos e esquemas que sob o impulso de um esquema tende a compor-se em narrativa (DURAND, 2002. p 62-63). Antropologicamente, o mito é tido como fundamento da cultura, inclusive, das sociedades modernas.

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o ascensional, da dominante postural e o diairético que consiste em separar, discernir e impor

o poder, ligado às imagens da espada e do gládio (PITTA, 1995).

A subdivisão das estruturas heróicas consiste em quatro aspectos: a idealização ou

recuo autístico, que é uma espécie de distanciamento da realidade, em que o pensamento é

tomado como um significado restrito ao subjetivo pelo sujeito que se coloca fora do mundo; a

spaltung consiste na separação generalizada em que o eu está cindido do mundo e o mundo,

em si, também se encontra cindido; o geometrismo, espécie de esquematização do universo

numa geometria simétrica, o que provoca uma gigantização dos objetos e, finalmente, o

pensamento por antítese, que é a manifestação do conflito entre o sujeito e o mundo,

provocando uma lógica organizativa por antítese (DURAND, 2002). Nesse sentido, as

estruturas heróicas do imaginário falam do combate ao outro, ao diferente. Impõem a

competição, a perspectiva de vencer, de passar à frente.

Por seu turno, as estruturas místicas do imaginário têm como núcleo organizador

o schéma da fusão com a intenção de construir uma harmonia, em que se conjugam uma

vontade secreta de união e um certo gosto pela intimidade, distanciados do sentido religioso

da palavra e estando subdivididas em quatro aspectos: redobramento e perseverança, em que

os símbolos relacionam-se à inversão e à intimidade, com tendência à simetria no sentido de

similitude; viscosidade e adesividade, percebida no apego a certas imagens ou a determinadas

relações entre estas imagens; realismo sensorial, pela união de cor e movimento, baseada na

intuição e sensibilidade e, por último, a guliverização, pela miniaturização fundada na

concepção de quanto menor o objeto, mais concentrada a sua essência (DURAND, 1969 apud

PITTA, 1995).

Já a estrutura sintética busca reconciliar as antinomias, procurando dominar o

tempo através da repetição, por isso é cíclica e também sexual, ligada às concepções de tempo

e progresso, de modo a assegurar a continuidade da vida. Organiza-se nas seguintes

subestruturas: harmonização dos contrários, composição pelo diálogo harmônico entre

elementos opostos; dialética ou contraste, pela composição a partir de contrários em que estes

mantêm sua composição original; subestrutura historiadora, construída a partir de uma

sucessão de fases de tese e antítese, de forma dialética com um esforço de síntese e,

finalmente, a subestrutura progressista, que consiste em acelerar a história para aperfeiçoar a

história e o tempo (Durand, 1969 apud PITTA, 1995).

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Na verdade, Gilbert Durand (2002) fala de três formas de tratar o diferente:

destruir, fundir, dialogar. Essas três formas representam atitudes culturais a que o autor

denomina “trajeto antropológico”, ou seja, o percurso cultural que rodeia e envolve o

indivíduo. Nesse sentido, a teoria do imaginário permite apreender a dinâmica cultural, no

caso, as relações entre cultura e natureza.

Interessa reter, para fins da presente análise, que o imaginário social foi tomado

como uma produção coletiva, depositária da memória que os grupos sociais recolhem dos

seus contatos cotidianos. Por meio do imaginário, podem-se atingir as aspirações, os medos e

as esperanças de um povo. Efetivamente, tanto as criações dos indivíduos quanto eles

próprios, como criações sócio-históricas, compõem o conjunto das significações imaginárias e

da sua instituição na sociedade, que se desenvolvem sempre em duas dimensões, a lógica e a

propriamente imaginária. A primeira é a dimensão objetiva e a segunda é a da significação,

definição que pode ser demarcada, mas não determinada, visto que ambas as dimensões se

conectam uma a outra como uma cadeia infinita e não previsível, portanto fluida. Ressalte-se

então que tanto as criações quanto os indivíduos são elementos culturais, por que são criados

pelas significações imaginárias sociais e por que são instituídos socialmente

(CASTORIADIS, 1982).

Nesse sentido, tanto as representações sociais quanto o interfluxo entre as duas

dimensões referidas, a objetiva e a subjetiva, são parte do imaginário social. O fluxo

representativo (afetivo e intencional) não é um conjunto de elementos distintos, também não é

puro e simples caos, faz-se como alteração do sujeito por ele mesmo pela aposição de

imagens ou figuras. As representações são figuras, esquemas de imagens, de palavras, não

sendo acidental, nem exterior, nem apoio, mas o próprio do pensamento. Não há pensamento

sem representação. Como alude Cornelius Castoriadis:

A representação não é um quadro preso no interior do sujeito (...). A representação é a apresentação perpétua, o fluxo incessante no e pelo que quer que seja se dá. Ela não pertence ao sujeito, ela é, pra começar, o sujeito. (...) A representação não é decalque do espetáculo do mundo; ela é aquilo em que e porque se ergue, a partir de um momento, o mundo (CASTORIADIS, 1982, p. 375).

Em consonância com o exposto, as representações sociais são tomadas, nesta

pesquisa, como suporte para compreender as práticas e saberes técnicos, científicos,

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populares, tomando-as como modalidade de conhecimento que tem por função a elaboração

de comportamentos e a comunicação entre indivíduos (MOSCOVICI, 1995).

Vale lembrar que a teoria das representações sociais foi desenvolvida a partir da

crítica ao conceito de representações coletivas de Durkheim (MINAYO, 1995). Os elementos

fundantes da crítica assentam-se na consideração de caráter geral, abrangente e pouco

dinâmico da teoria durkheimiana das representações coletivas, o que dificulta a análise da

produção do pensamento, como forma de ação no tecido social. Para Moscovici (1995),

portanto, as representações sociais referem-se ao posicionamento individual nos espaços

sociais na formação do tecido social através do processo que se dá pelo encadeamento de

fenômenos interativos. O termo social assume uma dimensão dupla no conceito de

representação: a forma como o conhecimento é socialmente empreendido, constituído e

compartilhado pelas pessoas e a dimensão subjetiva, psicosociológica, afetiva e axiológica

relacionada com o conhecimento.

Consoante com este quadro teórico, a abordagem do imaginário social de semi-

árido, neste estudo, procura focar os elementos subjetivos, afetivos e axiológicos nas duas

dimensões acima referidas: dimensão subjetiva e objetiva. Sendo esta última, também,

referente à forma como o conhecimento é socialmente empreendido, numa perspectiva

sociológica, com base em Castoriadis (1982, 1999) e Durand (2002). Isto significa que os

elementos subjetivos, afetivos e axiológicos foram tomados como imaginário social na análise

da relação entre indivíduo e sociedade e, especialmente, entre indivíduo, sociedade e natureza,

ou seja, entre natureza e cultura. Isto equivale a considerar esta relação como portadora de

uma ética, inscrita num habitus (BOURDIEU, 1994), este, tomado como uma espécie de

matriz que transpõe a vivência social e integra as experiências passadas, informando ao

processo de instituição imaginária suas percepções, apreciações e ações, o que possibilita a

realização de tarefas diferentes pela transferência analógica de esquemas, produzindo, desta

forma, práticas que tendem a reproduzir as regularidades.

Vale lembrar que, nesse processo, os indivíduos ocupam no espaço social, uma

posição determinada pela sua origem de classe ou grupo social. É a partir da sua posição

social que elaboram suas representações e agem pelo habitus que permite aos seus portadores

operar um senso prático da vida, como um esquema de percepção e de apreciação. Com

efeito, o sujeito social se expõe e é exposto, num processo em que se encontram um habitus e

uma situação, circunstância ou campo social, que orienta as suas ações e representações.

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Campo social é aqui entendido como campo de forças e campo de lutas, que visa transformar

o campo de forças, que se particulariza como espaço em que se manifestam as relações de

poder e que se estrutura a partir de uma distribuição desigual de um quantum social

(BOURDIEU, 1994).

Nesse sentido, é importante destacar que Moscovici (1995) aponta para as

conversações dentro das quais se elaboram os saberes populares e o senso comum, como

fenômeno social que permite identificar de forma mais concreta as representações sociais e de

trabalhar sobre elas, embora não se limite a esta forma, pois, de fato, as representações sociais

também se manifestam nas ciências, nas religiões, nas ideologias e em circunstâncias

diversas.

A referida teoria apresenta duas faces interligadas para o fenômeno das

representações sociais: o figurativo (a imagem) e o simbólico, engendradas em processos da

comunicação e das práticas sociais: diálogo, discurso, rituais, padrões de produção, arte, a

cultura em geral (MOSCOVICI, 1995).

Convém lembrar, ainda, que as relações entre ser humano e natureza são mediadas

pelas representações sociais de meio ambiente, indicadoras das diferenças culturais entre

regiões e populações, nos diferentes espaços históricos, como uma imagem mental, composta

de elementos centrais e secundários que é referencial porque retorna a outras imagens

conotativas e que se organiza como um sistema de relações onde cada elemento tira o seu

significado do conjunto dos outros elementos (GROUPES..., 1991).

As representações sociais identificadas e analisadas, neste estudo, referem-se às

práticas e saberes relacionados ao modo de vida camponês, no ecossistema semi-árido. Nesse

sentido, saberes são concebidos como conjunto de conhecimentos adquiridos no

entrelaçamento dos elos sociais de seres humanos entre si e com a natureza não-humana, mais

ou menos sistematicamente organizados e suscetíveis de serem transmitidos de geração a

geração (JAPIASSU, 1997). Já as práticas são tomadas como fenômenos que abrangem dois

aspectos, quais sejam: a realização de uma ação (conduta efetiva) e a freqüência dessa

realização. Analiticamente, a prática pode ser decomposta em duas vertentes: a maneira de

fazer e as conseqüências percebidas desse fazer, o que faz emergir outros aspectos, tais como:

a prática como passagem ao ato, recorrência, maneira de fazer e como cálculo (ROQUETTE,

2000), a partir de um habitus (BOURDIEU, 1994), no caso, o modo de vida camponês.

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Acrescente-se a isto que a produção e reprodução da cultura se realizam através da

informação, sendo, portanto, as práticas sociais, também, práticas informacionais, em que

significados, símbolos e signos culturais são assimilados, rejeitados e transmitidos através das

representações e ações dos indivíduos, como sujeitos sociais, na construção de suas

identidades. Assim é que no dizer de Mendes (2002) os processos de construção das

identidades são relacionais e múltiplos, situacionais e históricos, baseados no reconhecimento

por outros atores sociais e, na diferença.

A construção da identidade, então, tem o suporte de que necessita para encontrar-

se na memória coletiva, que funciona como auxiliar na definição dos laços de identidade dos

sujeitos, ou seja, é na inter-relação entre presente e passado feita pela memória coletiva que a

identidade vai-se compondo. A memória coletiva compõe-se da memória individual, familiar,

linguagem, nome, moradia, território, posição social, aspirações, valores sociais, visões de

mundo, comportamentos, parentescos, que se expressam nas representações sociais, nas

imagens e discursos, no imaginário social. Envolve memórias individuais, porém não se

confunde com elas, visto que estas são reconstruções psíquica, intelectual e seletiva de um

indivíduo, inserido num contexto familiar e social, com dupla característica (TEDESCO,

2002): as lembranças/imagens e as representações.

No processo de construção identitária, dá-se também a construção e desconstrução

de saberes que orientam as práticas sociais. Construção do latim construere quer dizer dar

estrutura, e desconstrução tem o sentido de desestruturação (FERREIRA, 1986). Porém,

construção e desconstrução não são tomadas como processos diferentes ou etapas diversas de

um mesmo processo, mas como aspectos simultâneos deste, como percebido por Prigogine

(1996) na sua análise de sistemas dinâmicos instáveis, em que equilíbrio e desequilíbrio não

constituem exclusão, mas complementaridade entre fenômenos desordenados e fenômenos

organizadores. A situação de equilíbrio representa a nova organização, ou seja, a nova ordem

que se instaura após o desequilíbrio:

(...) equivalência entre o que se faz e o que se desfaz, entre uma planta que nasce, floresce e morre e uma planta que ressuscita, rejuvenesce e retorna para sua semente primitiva, entre um homem que amadurece e aprende e um homem que se torna progressivamente criança, depois embrião, depois célula (PRIGOGINE, 1996: 158).

Para Prigogine (1996), o fenômeno refere-se à existência de relações entre

estrutura e ordem, de um lado e, dissipação, do outro. As novas estruturas formadas são

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chamadas de estruturas dissipativas, sendo que, em sistemas abertos (os que interagem com o

meio), a dissipação torna-se uma fonte de ordem. Isso é o mesmo que dizer que estruturas

dissipativas representam sistemas, os quais, após passarem por desequilíbrios, são bem

sucedidos no estabelecimento de uma outra ordem ou, como diz Neves (1996), no

estabelecimento de relações de homeostase20.

A respeito da percepção de sociedade em equilíbrio, Neves (1996) chama atenção

para o fato de não ser apropriado investigar bases materiais de sustentação das sociedades

locais como sistema fechado, em equilíbrio com meio ambiente circunjacente, em função da

existência de relação de absorção das sociedades tradicionais pelas sociedades circundantes,

fazendo com que aquelas façam parte do cenário regional ou mesmo mundial.

Tudo isso implica em que as inferências empíricas foram analisadas como um

sistema, ao mesmo tempo aberto e fechado, em que as pessoas se situam em reciprocidade,

consideradas as situações de conflitos e crises, sendo que suas relações e interações guardam

obediência às instituições, às normas também fruto de tais relações e interações.

1.2. Campesinato, desenvolvimento e sustentabilidade

Como exposto na seção anterior, a teoria do imaginário é a ancoragem teórica que

permite tratar o conjunto da vida social camponesa, para efeitos desta investigação, tomado

como um sistema em rede simbólica. Esta rede remete à busca de compreensão da escolha dos

símbolos, das suas significações e à compreensão de como e por que consegue, como dito por

Castoriadis (1982), autonomizar-se, alienar-se da instituição do social, no indivíduo, numa

espécie de socialização da psique e psicologização do social, em que sociedade e psique são

inseparáveis e irredutíveis uma à outra, numa indissociação dos mundos social e privado.

Com isto, trazemos à tona mais uma dimensão do modo de vida camponês,

lembrando, ainda, que este ganha relevância analítica ante o fato de a categoria campesinato

não encontrar espaço nas teorias explicativas das sociedades capitalistas, não se enquadrando

na estrutura lógica dessas teorias. Isto se deve, em grande medida, ao fato de que a atividade

produtiva, que garante a reprodução do campesinato, não ter o estatuto de trabalho social,

como acontece na estrutura capitalista, não possuindo, portanto, a universalidade teórica das

classes sociais (ABRAMOVAY, 1992). 20 Homeostase foi utilizado no sentido de “manutenção de um estado por alguma capacidade de auto-regulação” (NEVES, 1996, p. 76).

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Essa temática remete a Alexander Chayanov (apud ABRAMOVAY, 1992), um

dos primeiros teóricos a buscar compreender o campesinato em sua lógica econômica interna,

e não a partir da lógica do sistema social, fundamentando sua concepção a partir de uma teoria

dos sistemas econômicos não capitalistas, que lhe permitiu analisar as leis de reprodução do

campesinato e o seu desenvolvimento, tomando o camponês como sujeito que cria sua própria

existência. Na perspectiva chayanoviana, os camponeses são vistos movendo-se pela lei

básica do balanço entre trabalho e consumo, com o trabalho tendo como meta fundamental a

satisfação das necessidades familiares que definem a intensidade com a qual a família tem que

trabalhar. Trabalho este que crescerá conforme o tamanho da família e de suas necessidades

de reprodução (ABRAMOVAY, 1992)21.

Vale lembrar com Martins (1981) que campesinato, como conceito, ganha força

sob influência da revolução russa, como forma de relacionar trabalhadores e trabalhadoras do

campo no contexto da luta de classes, expressando homogeneidade onde havia diversidade. O

referido conceito passou por uma espécie de exportação política, levando consigo as

dificuldades inerentes ao processo de homogeneização de diversidades e devido às

transformações culturais que alteraram as condições e características dos referidos sujeitos,

não se enquadrando, desta forma, nas concepções de nenhuma sociedade contemporânea em

função do seu caráter histórico, nem mesmo nas sociedades em que o conceito foi construído,

em função de sua heterogeneidade, forçosamente homogeneizada, o que justifica a utilização

da categoria como generalização combinada com especificação. Mas, embora correndo o risco

de extrapolação das semelhanças, é importante utilizá-la, especialmente, por permitir a

utilização de métodos de pesquisa já testados, como por exemplo, a possibilidade de desenhar

um campo de análise (SHANIN, 1976).

Nesse sentido, Shanin (1976) indica que há pelo menos seis categorias de

características identificadoras de camponês. Na primeira caracterização, campesinato é visto

como economia em formas de ocupação extensiva pelo trabalho familiar, com controle dos

próprios meios de produção, uma economia de subsistência com qualificação profissional

multidimensional e padrão de organização, incluindo, por exemplo, planejamento da produção

e cálculo do desempenho diverso da empresa capitalista. Uma segunda categoria consiste nos

21 Ainda nos marcos da compreensão da economia camponesa, porém distanciando-se de Chayanov no que concerne a auto-exploração como limite, autoras como Godoi (1999) e Moraes (2000) apóiam-se em Shalins para referir uma agricultura de aprovisionamento como atividade agrícola em que nem a produção doméstica se define exatamente como voltada estritamente para o consumo direto da família nem esta é auto-suficiente, sendo a troca um meio de conseguir aquilo de que a família necessita e não produz.

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padrões e tendências de organização política dos camponeses, incluindo os sistemas de

intermediação e apadrinhamento, a tendência à segmentação vertical e ao faccionismo como

lugar do banditismo e guerrilha.

A terceira categorização consiste nas normas e cognições típicas, em que se

destaca a racionalização tradicional e conformista22, o papel da tradição oral, mapas

cognitivos específicos, por exemplo. Em quarto lugar, há a organização social com suas

unidades básicas, em que se destaca a posição subserviente das populações camponesas, no

interior de rede mais ampla de dominação política, econômica e cultural e características da

organização social, o que aponta, como lembrado por Moraes (2000), para a idéia redfeldiana

de part-society [parte da sociedade]. A quinta categorização conta com a dinâmica social

específica da sociedade camponesa pelos padrões de produção em função das necessidades

materiais, de reprodução dos atores humanos e do sistema de relações sociais. Finalmente, a

categorização a partir das causas e padrões fundamentais de mudança estrutural, que pode ser

percebido, por exemplo, pelos padrões diferenciais de produção no espaço doméstico em

oposição à área coletiva e seu impacto sobre as demais dimensões sociais da agricultura

(SHANIN, 1976).

A análise conduz Teodor Shanin a indicar o campesinato como:

um processo e necessariamente parte de uma história social mais ampla, trata-se da questão da extensão da especificidade dos padrões de seu desenvolvimento, das épocas significativas e das rupturas estratégicas que dizem respeito aos camponeses (SHANIN, 1976, p. 75).

Nesse sentido, é importante considerar a caracterização que Mendras (1976) faz

de campesinato, como um grupo que possui autonomia, ainda que relativa, frente à sociedade

global; em que os grupos domésticos, as famílias têm importância estrutural; um sistema

econômico relativamente autosuficente; uma sociedade de interconhecimentos, com a função

decisiva de mediadores entre a sociedade local e a global. 22 Chauí (1994) utiliza as categorias conformismo e resistência no contexto da cultura popular para analisar os vínculos de dependência e submissão de grupos sociais populares no âmbito em que se processa a luta para quebrar tais vínculos. A autora vê a cultura popular “como um conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência que possuem lógica própria (o jogo interno do conformismo, do inconformismo e da resistência), distinguindo-se da cultura dominante exatamente por essa lógica de práticas, representações e formas de consciência.” (CHAUÍ, 1994, p. 25). Por essa ótica, as categorias conformismo e resistência são vistas como a marca da ambigüidade na cultura popular, não como falha, defeito, carência, mas como “forma de existência dos objetos da percepção e da cultura (...) também, ambíguas, constituídas não de elementos ou de partes separáveis, mas de dimensões simultâneas” (CHAUÍ, 1994, p. 123). É possível, portanto, uma mesma ação ser revestida do duplo caráter: uma resistência como manutenção do conformismo ou um conformismo para manter a resistência.

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O paradigma funcionalista da Antropologia analisa a construção da identidade

social do campesinato como um modo de vida, reproduzido material e culturalmente, sendo

que a lógica econômica se adequa a padrões culturais específicos, portanto uma sociedade

incrustada numa formação social, ou seja, uma sociedade parcial, atuando em mercados

incompletos, tendo as seguintes particularidades: os laços comunitários locais, o caráter extra-

econômico das relações de dependência social e vínculos de natureza personalizada

(ABRAMOVAY, 1992).

O camponês em que se centra o presente trabalho é o do semi-árido piauiense,

identificado como sertanejo, camponês do sertão, aqui tomado como um modo de vida,

analisado a partir do seu imaginário, apreendido pelas representações sociais nos saberes e

práticas cotidianas, considerando-as permeadas pelo universo simbólico, pelas categorias e

regras pelas quais pensam e vivem sua existência. É aqui, portanto, considerado,

teoricamente, como um modo vida que se orienta a partir de “um conjunto de normas e

obrigações recíprocas, idéias de justiça e bem estar social, enfim uma ética a orientar as

condutas, uma economia moral a orientar os direitos relativos à ocupação da terra” (GODOI,

1998, p. 120).

Nessa economia moral, no caso em estudo, há os imperativos de ordem ética

expressos na terra de comum, que encontram sua efetivação prática nas terras de conjunto,

terra de ausentes e terra do padroeiro, como estudado por Godoi (1998) nessa região. De fato,

o camponês não é dono das terras de conjunto, visto que a apropriação individual, pelas

famílias, se dá pela realização das roças e, desde que respeite os limites das roças dos demais,

pode fazer quantas roças quiser. Também fazem parte desta economia moral os direitos de

sucessão, ou seja, os serviços e benfeitorias, condição para a manutenção da condição

camponesa, que são transferidos aos herdeiros e podem ser vendidos, não as terras, mas o

direito aos serviços e benfeitorias. As terras de ausentes se localizam nas chapadas, a fonte

dos recursos naturais e nas terras do padroeiro, também se dá a apropriação comum:

Gérson: tinha boa parte, essa aqui pertencia a ele. Aqui existia as terras de ausentes e tinha as terras de conjunto, as pessoas era posseiro e quando queriam trabalhar tinham direito, tinha as posses, podiam localizar uma roça onde dava melhor, eles eram posseiros. Então as pessoas iam adquirindo aquelas posses e iam tirando daquelas terras de ausentes. (...), ainda existe também os posseiros, né, naquelas terras devolutas, de ausente, as pessoas

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tem a posse, aí faz a roça naquela posse garante aquela terra que ele tira, né. Todo mundo é dono de terra. Sueli: e quem era o ausente. Gérson: era justamente aquele foi embora, mas a família ficou... tem a fazenda então pertence a quem tem posse. Aquela terra não está sendo beneficiada, mas não tem posse eu vou tirar lá na fazenda. O posseiro só pode mandar naquele pedaço de terra se ele fosse demarcar. Ele demarca, aí ele pode mandar. A posse garante quem trabalha. Mas antes de demarcar não conta como dele (comunicação oral) 23.

A referida ordem ética indica campesinato como categoria construída socialmente,

o que remete à discussão de cultura dentro de uma análise interpretativa, como dito por Geertz

(1989):

O conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões enigmáticas na sua superfície (GEERTZ, 1989, p. 4)

Geertz (1989) compreende a cultura como uma teia de significados e suas

interpretações, na qual os símbolos e significados são partilhados pelos sujeitos sociais, parte

do sistema cultural. A cultura é concebida não como poder, mas como um contexto, dentro

do qual os sujeitos são inscritos, não sendo dado, posto, mas algo composto, investido de

novos significados na dinâmica de produção cultural, sendo, portanto, passível de mudanças

e transformações, devendo ser compreendida no seu contexto de significação e

ressignificação

O presente processo de investigação, ao realizar o estudo do imaginário social a

partir da cultura camponesa, procurou expressar o saber popular do campesinato, suas

representações, formas de pensar, agir e falar, ou seja, a construção e percepção de sua

própria realidade, seus saberes associados à sua prática social expressa nas relações de

trabalho, na prática política e na apropriação dos saberes através dos agentes educativos.

Essas práticas referidas incidem no modo de vida camponês e faz-se necessário

refletir a respeito da identidade camponesa, constituída a partir de suas relações sociais e

23 Comunicação oral com Gérson Dias dos Santos, realizada no Bairro São Pedro, em 28/05/2004.

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expressões culturais, num processo que consiste na maneira de recriar, combinar e utilizar

símbolos e valores de cultura, que resulta na instituição das representações analisadas pelo

ângulo da sustentabilidade, concepção que emergiu como qualificação de um tipo de

desenvolvimento e que ganha força no debate contemporâneo sobre meio ambiente. No caso

em questão, o tema da sustentabilidade é axial, visto que, nas regiões semi-áridas, questões

relacionadas à viabilidade econômica e à reprodução camponesa, estão na ordem do dia24.

De fato, o tema desenvolvimento em tempo algum se constituiu terreno firme, de

acepção única, para o cenário social, uma vez que são os interesses sócio-políticos que

delineiam os modelos de sociedade e suas dinâmicas. Com efeito, é na correlação de forças

desses interesses que se definem o interesse ou interesses hegemônicos e, com isso, o sistema

sócio-político hegemônico. Desenvolvimento, portanto, está associado a processo histórico, a

questões estruturais, institucionais e culturais.

Como dito por Ribeiro (1992), há dois aspectos macro integrativos da noção de

desenvolvimento: um como hierarquia funcional que alimenta a crença de que há um ponto

que pode ser alcançado por uma receita seguida e guardada pelos países que lideram a

corrida pelo desenvolvimento; outro como uma noção, universalmente, desejada, rotulada de

neutralidade para se referir ao processo de acumulação em escala global. Os dois aspectos

estão imbuídos da idéia de progresso fundada na crença de que o futuro será melhor do que o

presente e o passado, por melhoramentos, invenções e inovações dos seres humanos. Nesse

sentido, segundo o mesmo autor, desenvolvimento tem notável poder, como ideologia/utopia,

na organização das sociedades e o reflexo desse poder emerge do discurso das duas

importantes concepções de organização da sociedade: a capitalista liberal e a socialista.

24 Importante destacar que a acepção de viabilidade econômica baseia-se em Moraes e Vilela (2003, p. 118), que vêem a referida categoria como “dimensão relativa à constituição da renda da família, formada pelo conjunto das atividades agrícolas e não agrícolas, incluindo transferências, encargos públicos e produção para auto-consumo. (...) Com acúmulo suficiente de recursos num “ano bom” para as possíveis dificuldades num “ano ruim”, capacidade de manutenção do patrimônio (sem sofrer perdas irreparáveis); manutenção da capacidade produtiva; manutenção das condições de vida digna da família, com os resultados obtidos pela produção agropecuária e atividades complementares afins, como extração vegetal, artesanato, indústria rural, etc. (sem excluir a pluriatividade), que, como se sabe, contribui para a atividade agrícola”. A referida categoria faz parte do que Moraes e Vilela (2003, p. 117) categorizam como sustentabilidade, correspondendo à “reprodução ampla das diversas unidades de produção (família, terras e patrimônio), garantindo a integração econômica, social e cultural das novas gerações e a manutenção dos agroecossistemas, devendo ser encarada mediante quatro vertentes: viabilidade econômica, viabilidade social ou vivabilidade, transmissibilidade do patrimônio e reprodutibilidade ambiental ou agroecológica dos ecossistemas cultivados”, havendo entre estas categorias uma relação de interdependência entre os domínios econômico, social, cultural e político.

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No discurso capitalista, desenvolvimento está centrado nas forças de mercado,

que tem poderes corretivos e regularizadores, portanto é algo a ser atingido com menor

intervenção do Estado. No discurso socialista, o mercado é uma ilusão, visto que a sociedade

é dividida em classes com diferentes condições de acesso a ele, devendo, portanto, as forças

do mercado ser reguladas pelo Estado para atingir justiça social. As duas percepções

apresentam visão economicista de sociedade, em que desenvolvimento implica em

crescimento, inovação tecnológica, modernização e uma suposta relação com o bem-estar

humano (RIBEIRO, 1992, GIULIANNI, 1998). Em sua essência, nenhuma destas

concepções engloba preocupações ambientais. Ambas, como muito bem acentuou Giulianni

(1998), concretizam-se, historicamente, no modelo urbano-industrial.

Com efeito, o ambientalismo surge relacionado a modelos alternativos de

desenvolvimento e recentemente conquistou grande visibilidade entre os principais agentes

do campo do desenvolvimento face aos graves problemas ambientais que emergem de todos

os cantos do mundo.

De fato, no século dezenove, o mundo ocidental experimentou os primeiros

reflexos do modelo desenvolvimentista da sociedade industrial, assentado no pressuposto de

dois infinitos: a inesgotabilidade da matéria prima e da energia e a ilimitada capacidade da

natureza de absorção dos rejeitos (DUARTE, 1983). Um modelo antropocêntrico que

desconsiderava a lógica de existência da natureza, sua diversidade e suas exigências para

permanecer viva.

Convém lembrar que, nesse contexto, emerge a proposição de preservar

ecossistemas naturais para deleite das sociedades industriais, estressadas pelo caos urbano,

como forma de amenizar os graves problemas provocados pelo modelo industrial moderno,

fundado na perspectiva de ruptura entre cultura e natureza. No entanto, a instituição desses

espaços de preservação orientada por esta concepção e com este compromisso, na verdade,

tanto deixam intocadas as estruturas provocadoras dos desequilíbrios ambientais quanto

provocam outros desequilíbrios entre natureza e culturas locais. Embora as justificativas

preservacionistas sejam biocêntricas, de igualdade de direitos humanos e naturais, elas, de

fato, centram-se nos interesses humanos, essencialmente, nos urbanos, desconsiderando

outras formas de percepção e de relação com a natureza, inclusive aquelas desenvolvidas por

populações rurais locais.

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As conseqüências da perspectiva ocidental de desenvolvimento instituída,

historicamente, apresentam, portanto, suas seqüelas. Diante disto, as visões biocêntricas do

ambientalismo e a antropocêntrica do desenvolvimento convergem para uma nova proposta,

a de desenvolvimento sustentável, buscando conciliar o desenvolvimento econômico com a

preservação ambiental e o fim da pobreza no mundo, ou seja, procurando desenvolver-se em

harmonia com as limitações ecológicas do planeta, o que quer dizer, sem destruir o meio

ambiente, inclusive para que as gerações futuras alcancem melhoria da qualidade de vida e

das condições de sobrevivência (DUARTE, 1983).

Este ideário de desenvolvimento, portanto, pressupõe uma relação equilibrada

entre tecnologia e meio ambiente, em consideração e respeito às diversidades e a busca de

equidade e justiça social, sendo possível, com base em Sachs (1995) identificar pelo menos

seis aspectos prioritários na proposição: a satisfação das necessidades básicas da população

(educação, alimentação, saúde, lazer, etc); a solidariedade para com as gerações futuras

(preservar o ambiente de modo que elas tenham chance de viver); gestão participativa da

população envolvida (todos devem se conscientizar da necessidade de conservar o ambiente e

fazer cada um a parte que lhe cabe para tal); a preservação dos recursos naturais (água,

oxigênio, etc); a elaboração de um sistema social garantindo emprego, segurança social e

respeito a outras culturas (erradicação da miséria, do preconceito e do massacre de

populações oprimidas, como, por exemplo, os índios) e a efetivação dos programas

educativos. Importante destacar que as citadas proposições permanecem, em grande parte, no

campo do devir.

De fato, sustentabilidade e desenvolvimento sustentável surgiram como

preocupação mundial, na publicação do relatório Nosso Futuro Comum (CMMAD, 1991).

Na visão de Sachs (1995), são aspectos do discurso de desenvolvimento sustentável: a

dependência humana em relação ao ambiente natural; a preocupação com a existência de

limites naturais externos sobre a atividade econômica humana; a consideração dos efeitos

perniciosos de certas atividades industriais sobre ambientes locais e globais; a consideração

da fragilidade desses ambientes locais e globais frente à ação humana coletiva; o

reconhecimento de que iniciativas de desenvolvimento devem ser ligadas às suas próprias

precondições ambientais e a tentativa de considerar, nas decisões, sobre o desenvolvimento

as conseqüências para as gerações futuras e para aqueles que vivem em outras partes do

planeta.

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Como se pode notar, as definições de desenvolvimento sustentável tendem a

eliminar posições conflitivas dos processos econômicos, sociais e políticos, aproximando-se

de uma perspectiva harmônica, não conflitiva. Nesse sentido, a economia política em que se

assenta a discussão de desenvolvimento sustentável, é “muito pouco elaborada, para não

dizer ingênua e omissa” (Ribeiro, 1992, p. 28). Como exemplifica o autor em passagem sobre

o cenário provável de uma sociedade sustentável, em 2030:

Devido à extenuante pressão que exerce sobre os recursos, o materialismo simplesmente não conseguirá sobreviver à transição para um mundo sustentável. (...) À medida que o acúmulo de riquezas nacionais venha a se tornar um objetivo pessoal e menos importante, a lacuna entre ter e não ter gradualmente se fechará, eliminando muitas tensões sociais. Diferenças ideológicas também poderão desaparecer pouco a pouco, à medida que as nações forem adotando a sustentabilidade como uma causa comum (...). Com as tarefas cooperativas envolvidas na restauração da Terra, de tantos modos e tão amplamente, a idéia de travar uma guerra poderá se tornar um anacronismo (RIBEIRO, 1992: p. 28).

Para Ribeiro (1992), portanto, esta percepção além de revelar-se excessivamente

romântica, desconsidera as contradições do sistema capitalista e homogeneíza o que é diverso,

por desconsiderar as peculiaridades, as especificidades de cada povo, de cada cultura,

uniformizando as identidades e subjetividades culturais num mesmo anseio de padrão de

produção e de consumo e de acesso a determinados bens. De fato, considera desenvolvido,

sustentavelmente, o país que estiver num determinado padrão de Índice de Desenvolvimento

Humano (IDH), tiver renda per capita e crescimento equiparado aos países ricos,

desconsiderando que um povo pode desenvolver-se com padrão de produção e consumo

diferente do adotado pelos países ricos25.

Nesse rastro e ampliando o debate, a concepção de sustentabilidade, com base na

Declaração de Manila sobre Participação Popular e Desenvolvimento Sustentável (1990),

25 Redcliff (2002) faz uma abordagem sobre os novos discursos de sustentabilidade no contexto que o autor considera como pós-sustentabilidade. Identifica que a força do conceito está mais nos discursos os quais o cercam do que qualquer valor heurístico, destacando que o conceito foi se desgarrando do de meio ambiente e foi se confundindo com justiça social, eqüidade, governabilidade, como uma espécie de sufixo para todas as coisas julgadas boas e desejáveis, tornando as ligações entre meio ambiente, justiça social e governabilidade vagas no discurso de sustentabilidade O autor reconhece que os discursos de sustentabilidade atingiram o centro da política ambiental internacional. E aponta duas questões específicas como evidência dos novos discursos, em torno da sustentabilidade e da tentativa de incorporar nas preocupações ambientais as questões maiores da justiça social, da governabilidade e da equidade: a primeira questão está ligada ao mantra da globalização e a segunda questão se refere à maneira pela qual a ciência vem sendo utilizada para conferir legitimidade ao nosso conhecimento sobre o que está acontecendo com o meio ambiente.

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adota o modelo de desenvolvimento alternativo como forma de alcançar sustentabilidade.

Desenvolvimento entendido, então, como processo de mudança econômica, política e social,

não necessariamente envolvendo crescimento, estando centrado nas populações que

controlam os recursos, conforme as condições e possibilidades ambientais, para serem

utilizados na satisfação de suas próprias necessidades a partir do seu próprio padrão de

produção e consumo.

Tomando como base a concepção de Manila para pensar o semi-árido, o presente

delineamento teórico foi adotado como suporte de análise do modo de vida das populações

camponesas do semi-árido piauiense, apreendido pelo seu imaginário social, através das

representações sociais, com vistas a compreender a crise eco-social vivenciada no sítio de

pesquisa, o que será desenvolvido nos capítulos seguintes, iniciando-se pelo tema da

construção social da espacialidade, no capítulo II.

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CAPÍTULO II

IMAGENS DE LUGAR: SEMI-ÁRIDO E VÁRZEA GRANDE - REINVENÇÕES DE

ESPACIALIDADE?

Neste capítulo, serão abordados os processos de instituições territoriais, partindo

da construção social do Nordeste, passando pelo semi-árido e afunilando para o semi-árido

piauiense. Com isto, desnaturaliza-se o processo territorial, fazendo emergir o processo de

instituição social dos territórios e os símbolos que correspondem ao conjunto de imagens

presentes nessa construção.

2.1. Prolegômenos: sobre a construção social do nordeste

Medir tempo e delimitar espaço faz parte do processo instituidor e fundante do

ser humano, na busca de dar sentido ao universo construído (CASTORIADIS, 1982). Desta

forma, o ser humano inventa temporalidades e espacialidades, em diferentes contextos

históricos, produzindo uma dimensão multiforme, que permite vê-las econômica, política,

jurídica e culturalmente, num feixe de imagens e discursos, que formulam um arquivo de

uma dizibilidade e de uma visibilidade, que as sustentam como produto de uma rede de

relações entre agentes que se reproduzem e agem em diferentes dimensões

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).

A delimitação de um espaço ou criação de uma espacialidade, como concepções

e percepções que habitam o campo da linguagem e se relacionam diretamente com um

campo de forças que as institui, é o processo de construção de uma identidade espacial junto

com uma identidade temporal. O agrupamento de conceitos e experiências cotidianas

representa e, principalmente, institui realidades, dispostas em tramas, redes e falas tecidas

nas relações sociais (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).

A identidade espacial esboçada sobre uma área é vista por Stroh (2003) como

categoria analítica, definida pela presença do Estado, correspondendo a uma categorização

de lugar que define seus limites físicos a partir de uma deliberação externa pelo Estado,

como forma de intervenção política e econômica.

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Entretanto, apesar da intervenção oficial, a instituição de identidades espaciais

não se esgota no campo da oficialidade e as regiões são criadas como um legado que existe

em função das relações estabelecidas a partir da mediação do trabalho e das relações

sociais, com as marcas do afeto e do trabalho investido (STROH, 2003). Como um grupo de

enunciados, símbolos e imagens, as representações sociais, que, com certa regularidade,

repetem-se nos mais diversos discursos, nos seus diferentes estilos, em períodos diferentes,

ligados diretamente às relações de poder e sua espacialização, expõem uma política de

saber, que apresenta regiões não como uma homogeneidade contendo uma diversidade, mas

como produto de uma operação de homogeneização. Convém lembrar que a referida

operação se dá na luta com as forças que dominam outros espaços regionais, com fronteiras

móveis, atravessadas por diferentes relações de poder (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).

Com efeito, o regionalismo brasileiro que resultou na criação do Nordeste, como

região, é fruto da crise da espacialização norte e sul que dividiu o Brasil e que usava, como

critério de classificação regional, as diferenças como reflexo imediato da natureza, do meio

e da raça, num determinismo que atribuía as diferenças de hábitos, costumes, práticas

sociais e políticas, às variações de clima, vegetação e composição racial da população

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001). A crise da concepção naturalista se deu junto com a

crise da primeira guerra mundial, que provocou profundas alterações no tecido social

mundial e brasileiro. Especialmente, São Paulo recebeu migração em massa e teve

acelerado o processo de urbanização, complexificando-o, profundamente, a ponto de as

lentes deterministas do naturalismo não darem conta de explicar a nova história e geografia

surgidas.

O referido contexto desfocou o pólo de desenvolvimento do Nordeste, que era,

então, chamado de Norte. Esse tinha como centralidade um modelo econômico delineado

pela monocultura agro-exportadora, fornecedora de matérias-primas que alimentava um

mercado forjado pelas grandes navegações (FURTADO, 1998).

A perda de status de região pólo de desenvolvimento e a correspondente perda

de poder econômico dos coronéis do sertão, bem como as especificidades climáticas

diferenciadas da Amazônia, fizeram emergir a necessidade de diferenciação entre Norte e

Nordeste, especialmente, após a seca de 1877, uma hecatombe com meio milhão de mortos

que tratou, pela primeira vez, o referido fenômeno da natureza como provocador de

calamidades sociais (FURTADO, 1998). Tomou-se, com isto, a seca como tema central de

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mobilização, que provoca emoção e serve de alimento principal para o discurso de políticos

que exigem verbas, obras, cargos e criação de estruturas oficiais. Estava lançada, assim, a

base para a indústria da seca e a necessidade de um redesenho regional, de forma a

diferençar o Norte das secas do Norte da Amazônia.

Nesse itinerário, a seca de 1877 foi erigida como marco da derrota do Norte

diante do Sul, ou seja, da economia centrada na produção canavieira e do algodão do atual

Nordeste para o mercado emergente no Sul do país. Configurou-se assim, como o marco

zero da instituição do Nordeste, num momento de transferência de poder do Norte para o

Sul. O instrumento utilizado pela solidariedade escravista para enfrentar o seu desfalque

fatal de poder foi tomar a seca como lente de interpretação para todas as questões que

abalaram os poderes instituídos: as manifestações de descontentamento dos dominados

(banditismo e revoltas messiânicas) e o atraso econômico e social. Essa criação imagético-

discursiva delineou um quadro de horrores que mobilizou sentimentos de piedade e verbas,

transformando-se na atividade mais lucrativa do Norte/Nordeste, depois da decadência de

sua base econômica (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).

Com a referida demanda, somada à crise do naturalismo que norteava a antiga

geografia regional, à substituição da matriz de desenvolvimento da agropecuária para a

indústria e, especialmente, o antagonismo entre progresso do Sul (São Paulo) e atraso do

Norte (Nordeste), estavam dadas as tinturas para o redesenho da espacialidade no Brasil. Na

região das secas, é urdida uma identidade espacial, mais centrada nas relações sociais de

poder e saber do que naturais. Por isso, é que o redesenho, embora leve em conta a

existência das secas, não se limita à espacialidade destas. Por exemplo, inclui o Estado do

Maranhão, em que não há secas, e não inclui o norte do Estado de Minas Gerais, que é

acometido por freqüentes estiagens. Desta forma, nasceu o Nordeste como região.

Esta identidade espacial de Nordeste resulta do encontro de interesses,

constituindo muito mais uma zona de solidariedade de populações marginalizadas pelos

poderes públicos, do que propriamente uma zona sujeita ao fenômeno climático das secas.

Como se fosse uma espécie de aliança, ante a exigência de ser bem forte para pleitear

tratamento igual dado ao Sul pelo governo federal, adotando, como instrumento de pressão,

o discurso da seca.

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A nova identidade, o Nordeste, portanto, desponta como totalidade político-

cultural que reage à sensação de perda de poder na correlação de forças com outras

identidades espaciais, especialmente, o Sul, por parte dos agentes movedores do pólo

econômico centrado no açúcar e no algodão, bem como de intelectuais e comerciantes a eles

ligados, com vistas a dar visibilidade e dizibilidade como códigos de leitura, que

permitissem ordenar olhares, que demarcassem contornos, tonalidades e sombreados

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).

A exigência de visibilidade e dizibilidade da identidade espacial de Nordeste se

dá no sentido de construir um estereótipo que forjasse uma unidade, para isso, envolvendo,

nessa construção, os mais diversos segmentos: política, literatura, intelectualidade, música,

de forma a construir uma identidade una para o espaço e para a gente do Nordeste, como

retratada por Euclides da Cunha, no início do século XX, produzindo uma imagem que viria

a fazer parte desse repertório de símbolos identitários:

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo - de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável (CUNHA, 1999, p. 95 ).

De fato, a literatura, a música, a pintura, as artes em geral, os meios de

comunicação e a política evocam a caracterização euclidiana como estereótipo das pessoas

que vivem na espacialidade oeste do Norte do Brasil. A identidade da gente é o sertanejo e a

do lugar é o Nordeste, este descrito como sertão das secas.

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Nesse processo de construção identitária, o estereótipo mescla concepções de

identidade como fonte de significados para o próprio ator, construída por meio de processo de

individuação (CASTELLS, 2002), bem como a concepção de processualidade em que se

constrói a identidade, que, no dizer de Mendes (2002) é relacional e múltipla, situacional e

histórica, baseada no reconhecimento por outros atores sociais e na diferença. Nesse sentido,

o estereótipo se projeta no processo de autoprodução identitária, numa tentativa de reificação

e de fixação de identidades e numa produção constante de novas realidades, produzidas num

diálogo multivocal e na intersecção de forças centrípetas (de fora para dentro) e centrífugas

(de dentro para fora), marcadas por tensões e contradições tanto na auto-representação quanto

na ação social.

A análise do referido processo que constituiu/constitui este estereótipo aponta

para intencionalidades no sentido de uma construção política, social e econômica de

significados com base no atributo cultural ou conjunto de atributos culturais inter-

relacionados que prevalecem sobre outras fontes de significados (CASTELLS, 2002). Um

processo delineador da consciência ou alheamento de cada indivíduo quanto à sua

autoprodução identitária. Geralmente, mais consciente para segmentos hegemônicos e menos

para segmentos subalternos que, no entanto, sentem-se aí, também, representados e

identificados, muitas vezes, como disse Cuche (1976), até como estratégia identitária.

Os primeiros registros, no campo da literatura, de elementos que compõem o

referido estereótipo, foram feitos pelo grupo regionalista, formado por escritores românticos

como: Franklin Távora, Visconde Taunay e Bernardo Guimarães, no período literário

denominado Romantismo, na primeira metade do século dezenove, como contraposição ao

tipo sertanejo descrito no mesmo estilo de época pelo escritor cearense José de Alencar, que

se assemelhava ao modelo de herói europeu. Como, por exemplo, o romance “Inocência”,

escrito em 1872 por Visconde Taunay (1986), que sistematiza elementos, os quais serão

depois tomados como matriz para a constituição do estereótipo de identidade sertaneja, como

a definição do que seja o sertanejo:

O legítimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, família. Enquanto moço, seu fim único é devassar terras, pisar campos onde ninguém antes pusera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras e furar matas, que descobridor algum até então haja varado (TAUNAY, 1986, p.5).

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Constitui sua fala:

— Vassuncê não credita! protesta então com calor. Pois encilhe o seu bicho e caminhe como eu lhe disser. Mas assunte bem, que no terceiro dia de viagem ficará decidido quem é cavouqueiro e embromador. Uma coisa é mapiar à toa, outra andar com tento por estes mundos de Cristo (TAUNAY, 1986, p. 5).

A construção dessa identidade sertaneja prossegue no período literário seguinte,

identificado como Realismo-Naturalismo, na segunda metade do século dezenove, ou seja,

sob influência da simbologia da seca de 1877, pelo acréscimo do elemento ambiental das

secas. O início da construção do protótipo de identidade do sertanejo do semi-árido ganha,

assim, uma marca, que permanece, até os dias atuais, muito forte: o seu caráter migratório em

função das secas, tema recorrentemente trabalhado por muitos e diversos autores :

Entre os retirantes passou um da Serra do Martins, Rio Grande do Norte, com a mulher, seis filhos e dois cunhados, cada um destes com quatro filhos e mulher. Tipo acabralhado, alto, corpulento, de topete caído sobre a testa como crista de peru. Já vinha muito roto o seu chapéu de couro. A camisa e a ceroula já não tinham mais cor.

Ao cair da tarde, arranchado ele com a sua gente em uma casa abandonada, ao pé do alto, perto da trempe de pedras onde fervia o feijão com arroz, recortava de uns tampos de couro cru umas palmilhas para as alpercatas; pois, coitado, as suas estavam roídas e sem correias.

A apregata, aos sertanejos, lhes é tão indispensável como o cachimbo e a faca no quarto (PAIVA, 1981, p. 18).

Mas foi com a obra de Euclides da Cunha, “Os Sertões”, que a idéia de sertanejo

ganhou um formato mais nítido, servindo de fonte para tantos outros escritores, roteiristas e

dramaturgos do teatro e das telenovelas da atualidade, que focalizam o processo de criação

para além do sujeito: uma identidade sertaneja para uma identidade de lugar – o Nordeste.

Posterior a Euclides da Cunha, o movimento intitulado “Romance de 30” ou

regionalismo, a obra de Gilberto Freyre e a música de Luiz Gonzaga alçaram vôos para além

do espaço artístico e intervieram na política, fornecendo ao processo de instituição de

identidade, já referido, elementos necessários para o delineamento da regionalização do

Brasil, no caso, pela associação da região Nordeste à seca.

Sem dúvida, a idéia de Nordeste é recente e forjada no mundo político, intelectual

e das artes como forma de realçar a auto-estima e, especialmente, constituir identidade

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diferenciada da do Sul/Sudeste, embora mantendo a dominação das elites locais. Nesse

processo, a região é institucionalizada com a proposição do Conselho Nacional de Geografia,

em 1941, através do geógrafo Fábio de Macedo Soares de Guimarães (ANDRADE, 1998). Se

a proposição oficializou-se, porém nunca se consolidou consenso sobre sua delimitação,

inclusive no que toca a atuação de órgãos governamentais, como a Superintendência de

Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE, criada por pressão da conjunção de forças

formadas na zona de solidariedade, e que estendeu a sua área de atuação regional do

Maranhão a Minas Gerais, portanto, fora do desenho de Nordeste. O Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística - IBGE contribuiu fortemente para a consolidação da atual

conformação do Nordeste ao utilizá-la, a partir de 1968, como referência para suas pesquisas.

A zona de solidariedade não só conseguiu institucionalizar a região Nordeste,

como conseguiu fazer com que a “questão Nordeste” passasse a ser do Brasil. Teve

intervenção tão decisiva que emplacou política assistencialista de combate à seca até mesmo

na Constituição Federal de 1891 que, no artigo 5º, obrigava a União a destinar verbas

especiais para o socorro de áreas vítimas de flagelos naturais, incluindo, aí, as secas

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001).

O Departamento Nacional de Obras contra a seca – DNOCS e a SUDENE, dentre

outros, são frutos da atuação na zona de solidariedade. A SUDENE surgiu com uma proposta

reformista, não incorrendo no risco de mudanças estruturais, ameaçadas por governos

estaduais, como o de Pernambuco. Assim, com o ideário de reformar para não transformar, o

DNOCS, a SUDENE e assemelhados, na verdade, configuraram-se como um braço do

governo federal intervindo nas estruturas do poder estatal, o que foi profundamente

capitalizado pelo regime autoritário (BACELAR, 2003).

De fato, o regime autoritário, dos anos setenta até meados dos anos oitenta, sob o

comando do Estado, promoveu um processo de desconcentração produtiva, através do

movimento do capital produtivo dinâmico para outras áreas, atingindo o Nordeste,

principalmente, através das políticas da SUDENE. No entanto, nesse período, o Nordeste foi

atingido pela crise da dívida, o que interrompeu o processo e desacelerou o crescimento

econômico da região.

As políticas regionais de desenvolvimento dos anos sessenta, setenta e meados de

oitenta, centradas nos instrumentos financeiros e fiscais voltados para o desenvolvimento,

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produziram resultados positivos no quesito crescimento, especialmente, da renda, de forma a

reduzir a pobreza absoluta no país, principalmente, no Nordeste, possibilitando que a região

se atrelasse ao desenvolvimento do país, diminuindo a distância entre seus indicadores

econômicos e sociais das médias nacionais.

Nas três últimas décadas no século vinte, o Nordeste cresceu, em alguns aspectos,

a taxas, às vezes, superiores às nacionais, o que não eliminou a existência de vastos redutos de

pobreza e atraso econômico convivendo, na atualidade, com modernos pólos de

desenvolvimento, o que fortalece as desigualdades entre as regiões e intra-regional e torna

mais saliente a existência não de um, mas de vários nordestes (BACELAR, 2003).

Nos anos oitenta e noventa, a economia brasileira cresceu pouco. Primeiro, em

função do processo de hiper-inflação e depois devido às políticas de controle para a

estabilização. A crise também assola a SUDENE, acirrada pelo desvelamento de processos de

corrupção no interior do órgão, o que resulta na sua fragilização e esvaziamento da proposta

de planejamento regional e seu fechamento em década posterior, deixando a região à deriva,

ou melhor, a zona de solidariedade, que adotava a SUDENE como sua institucionalização, ou

seja, a institucionalização da indústria da seca.

Nesse contexto, os estados nordestinos, em concorrência entre si, passam a adotar

mecanismos de atração de grandes empresas, conseguindo alocar alguns empreendimentos

com comprometedoras isenções fiscais, que promovem a modernização da agricultura, a

fruticultura irrigada, a implantação de indústrias que exigem muita mão de obra, como

calçados, roupas e outras, aproveitando as isenções, a mão de obra barata, a fragilizada

organização de classe trabalhadora e o pouco controle por parte das autoridades ambientais

(ZAIDAN FILHO, 2001). Isso não implica o fim da referida zona de solidariedade, muito

menos da indústria da seca, mas uma crise numa de suas formas de institucionalização que,

aliás, começa a ser rearticulada, num indício de que persistem interesses em manter a

articulação, a invenção.

Teoricamente, interessa reter que o desenho das regiões brasileiras deu-se por

força de processo sociais, embora a questão natural tenha sido utilizada como instrumento de

pressão e como símbolo. Nesse processo, a preocupação em definir e reificar o que é o

Nordeste produziu uma imagem da região que nega sua diversidade, tanto natural quanto

social, substituindo-a por paisagens típicas, personagens como o sertanejo, que são vistos

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ambiguamente tanto pela beleza de sua peculiaridade quanto pelos problemas sociais. Com

isto, a reificação imaginária escamoteia que as identidades produzidas são dinâmicas,

relativamente estáveis, socialmente distribuídas, construídas e reconstruídas nas relações

sociais por forças internas e externas, num processo contínuo de atividade social (MENDES,

2002).

Efetivamente, a identidade una de Nordeste favorece interesses de controle por

parte dos indivíduos e grupos do espaço social e físico circundante, porquanto o imenso e

diverso espaço físico e as múltiplas identidades, nos nove estados nordestinos da federação

brasileira, dificultam o exercício do controle cuja necessidade é atendida com a construção da

identidade espacial de Nordeste e de uma identidade pessoal de nordestino. Ambas, na

verdade, contêm uma multiplicidade de identidades, originadas nos acidentes, fricções, erros,

caos, ou seja, no ruído social dos conflitos entre os diferentes agentes e lugares de

socialização e não na mera reprodução (MENDES, 2002).

Entretanto, o processo de criação desta identidade una para o Nordeste e sua gente

não é exercício de mera ficção. É uma invenção sim, mas parte de matéria-prima fornecida

por unidades espaciais que compõem o todo constituído, através de sua história, geografia,

biologia, instituições produtivas e reprodutivas e memória (BOSI, 2003) e por fantasias

pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso, adotando o suporte local,

capaz de dar a legitimidade de que necessita para o encontrar-se na memória coletiva. No caso

do Nordeste, esse suporte veio da cana-de-açúcar, das secas, do cangaço, dos aspectos rurais,

do falar de pronúncia demorada, arrastada, cantada. E, desta forma, inventam uma tradição

pela escolha de imagens, lembranças, experiências, que funcionam como auxiliares na

definição dos laços de identidade dos sujeitos, ou seja, é na inter-relação entre presente e

passado, feita pela memória coletiva, que essa identidade, em diálogo com teorizações de

Tedesco (2002), vai-se compondo através da memória individual, familiar, da linguagem, do

nome, da moradia, do território, da posição social, das aspirações, dos valores sociais, das

visões de mundo, dos comportamentos, dos parentescos, com suas lembranças/imagens e

representações.

Na análise da identidade nordestina, pode-se perceber que a referida construção é

fruto de uma tentativa de generalização das especificidades, ou seja, unificação dos diversos

nordestes e da diversidade de sujeitos que ali vivem. Enfim, trata-se de uma espécie de

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generalização com a intenção de firmar uma identidade regional26. A cultura nordestina é, de

fato, uma interseção entre os localismos e o universal, entre o Nordeste da cana-de-açúcar, do

cacau, do semi-árido, do litoral, da pecuária, da abundância e da fome, da miséria e da

riqueza, em jogo de opostos que se casam ou não. Nesse sentido, o sertanejo de Euclides da

Cunha pode até existir localmente, mas nem de longe consegue sintetizar a multiplicidade que

comportaria as identidades nordestinas ou das secas, ou do semi-árido, ou do cacau, ou da

cana-de-açúcar27.

2.2. Semi-árido – nova invenção ou reinvenção de identidade espacial?

Como exposto, o amplo acordo tácito que resultou na criação do Nordeste, como

região, incluiu interesses de diversos segmentos, muitas vezes antagônicos, como por

exemplo, os dos antigos coronéis da cana-de-açúcar e dos flagelados da seca, como se ambos

fossem vítimas, da mesma forma, do fenômeno da natureza e do descaso das políticas

públicas que beneficiavam o Sul em detrimento do Nordeste. De fato, enquanto as populações

subordinadas constituíam os flagelados, os coronéis instrumentalizavam a seca como força de

pressão para conseguir verbas federais, as quais, em grande parte, abasteciam os cofres desses

coronéis que haviam perdido a posição de cabeça do pólo econômico para o Sul. Eis a lógica

da chamada indústria da seca.

Esta, a indústria da seca, interfere, historicamente, em todas as esferas do cotidiano

do Nordeste e sempre se manifesta acompanhada dos mecanismos que lhes garantem a

permanência. Desta forma, a sua ação implementa a construção de meios de abastecimento de

água em terras privadas, quando grande parte da população não possui terra ou a possui em

pouca quantidade; faz grandes açudes na extensão e sem profundidade, que resultam em obras

que impressionam pelo tamanho, possibilitando a alteração dos seus verdadeiros custos e

mantendo populações na dependência do carro-pipa, uma das fontes garantidoras de votos.

Um outro exemplo de ação da indústria da seca tem-se dado na perfuração de poços onde não

há água subterrânea, encontrando-se com isto justificativas para desvios de verbas públicas

sem a solução do problema da escassez de água, e mantendo, desta forma, a fonte da

dependência política. Enfim, ao longo da história, a indústria da seca tem reinventado suas 26 A propósito ver com Albuquerque (2003) quando trata da identidade nordestina como um processo discursivo de construção do macho. 27 De fato, convém lembrar, com Moraes (2000) entre outros, que o Nordeste contemporâneo não se reduz a configurações tradicionais, visto que há áreas em franca expansão econômica que constituem os chamados pólos de desenvolvimento, como ocorre, por exemplo, com as regiões Sudoeste do Piauí, Oeste da Bahia e Sul do Maranhão, já identificados como o novo Nordeste dos cerrados.

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táticas para sugar verbas públicas federais e para a manutenção dos vínculos de patronagem-

dependência entre as populações locais e os velhos e novos coronéis do Nordeste que também

se reinventam, inclusive, com a combinação de poder acadêmico e político.

Esta situação perdurou até a segunda metade do século XX quando, a partir do

final dos anos oitenta e início dos anos 90, populações camponesas e movimentos sociais se

organizam e atuam contradizendo a indústria da seca. Nesse contexto de lutas e

enfrentamentos, emerge a concepção convivência com o semi-árido, como resistência a este

processo histórico no que tange ao fenômeno das secas.

A expressão “convivência com o semi-árido” surgiu, efetivamente, no âmbito das

organizações não governamentais – ONGs, que atuam no semi-árido, no enfrentamento aos

problemas sociais advindos da relação entre estiagens e indústria da seca neste ecossistema.

No caso em questão, materiais didáticos como cartilhas, cartazes, vídeos, produzidos por duas

destas organizações, a Cáritas Brasileira – Regional Piauí e o Instituto regional da Pequena

Agropecuária Apropriada - IRPAA, denotam o percurso da categoria convivência, que se

originou, nesse discurso, como convivência com a seca e, depois, ampliada para convivência

com o semi-árido. A propósito, o fundador do IRPAA, Harald Schistek, diz:

Eu atuava na cepetê [CPT], em Juazeiro – Bahia, no final da década de setenta e início de oitenta. Nos cursos de agropecuária que dávamos, percebíamos que o centro dos problemas não estava nas secas ou apenas na falta de terras. As famílias que já estavam assentadas continuavam a passar por muitas dificuldades, chovesse ou não, sua qualidade de vida não havia mudado. Então ter chuva e terra não era suficiente. Verificando o quanto chovia, percebíamos que havia um bom volume de precipitação. Começamos a dizer, nos cursos, que chovia muito no semi-árido e as pessoas reagiam, mas apresentávamos o quanto chovia em outros lugares, inclusive onde não faltava água, e elas se convenciam. E com isso começamos a descentralizar o foco do problema, do natural para o social, e mais precisamente para o cultural, ou seja, o jeito de fazer e o que fazer. O problema não era acabar com a seca, mas plantar e criar conforme as condições do clima. E desta forma, começamos falar em convivência com a seca. Depois percebemos que não se limitava a conviver com a seca, mas com a diversidade que era o ecossistema todo, por isso evoluímos para a proposta de convivência com o semi-árido e para isso nasceu o irpa [IRPAA] (comunicação oral)28

Pelo que se percebe, na intencionalidade da proposta, segundo a comunicação oral

acima, um dos mecanismos utilizados na idéia de convivência é o de romper com uma

28 Entrevista realizada em Teresina – Piauí, no dia 15 de janeiro de 2004.

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concepção naturalista dos problemas vividos na região das secas, para adotar uma concepção

fundada na natureza sociocultural dos problemas.

Seria então uma proposta de reterritorialização para a região das secas? Se o foco é

a natureza sociocultural dos problemas, por que chamar o novo território de semi-árido, uma

denominação que expressa um aspecto que se fecha no universo natural?

Se é uma proposta de reterritorialização, quais seriam suas identidades tanto

espaciais quanto de sujeitos? Sua identidade espacial seria toda a área de clima semi-árido?

Então o que faz o Maranhão dentro desta nova identidade? Quem seria o sujeito do semi-

árido?

Convém lembrar que a expressão semi-árido, como identidade ou proposta de

identidade espacial para a região sujeita às estiagens, surge com a intencionalidade de

problematizar a indústria da seca que marcava sua atuação com as macro-obras: grandes

barragens, grandes açudes, poços a altos custos, grandes projetos de irrigação, chuvas

artificiais com o bombardeamento das nuvens com cloreto de sódio, que resultaram, como já

referido, no beneficiamento dos latifúndios, daqueles que menos sofrem com as secas.

A denominação semi-árido surge, portanto, como diferenciação no âmbito da

identidade Nordeste, para designar o espaço em que ocorre a irregularidade, no tempo e no

espaço, de chuvas, ou seja, o espaço de clima semi-árido, e não em torno dos esquecidos pelas

políticas públicas federais, como os da zona de solidariedade, que constituiu o Nordeste,

embora seja, de fato, o semi-árido esquecido pelas políticas públicas federais. Agora, o outro

não é o Sul, como aconteceu no processo de construção do Nordeste. O outro a que se opõe a

identidade de semi-árido, embora dialogue diretamente com ela, é o próprio Nordeste, ou

melhor, o Nordeste da indústria da seca, cuja lógica de vitimização resultou na dependência

de verbas federais.. Trata-se, agora, então, de estabelecer as fronteiras de diferenças entre as

identidades, a começar pelos limites físicos, como indica ilustração 01.

Nesta área, fisicamente identificada como semi-árido, análises biogeoquímicas

sugerem a existência de ambiente seco, característico de climas semi-áridos, desde muito

cedo, provavelmente desde o terciário. Os índices de semi-aridez, de um ano para outro,

apresentam desvio de até 200% (ARRUDA, 1997). Análise climatológica sugere que a semi-

aridez é causada por mecanismos de circulação geral da atmosfera, conhecida como

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circulação de Hadley-Walker, sendo que a interação entre suas células é que seria responsável

pela variabilidade e a intensidade de aridez (SILVA, 1980).

Ilustração 01- Nordeste e semi-árido Fonte: (SCHISTEK; ARAÚJO, 2003. p.14)

Na definição do que seja o semi-árido brasileiro, delineiam-se as suas negações, ou

seja, os seus outros: é identificado como não sinônimo de Nordeste e não sinônimo de

polígono das secas, este, delimitado em 1936 pelo decreto-lei 175/36, abrangendo oito estados

do Nordeste e parte do norte de Minas Gerais, num total de 962.299,8 km², definidos pelo

critério de menor precipitação, compreendidas pela isoieta de 800 mm. Já o semi-árido

apresenta reservas insuficientes de água em seus mananciais, o que é produzido pelo balanço

hídrico negativo entre precipitação e evapotranspiração, o que não quer dizer,

necessariamente, que chova pouco. Assim, o semi-árido brasileiro abrange também oito

estados do Nordeste, num total de 803.328,9 km² e o norte de Minas Gerais, uma área de

54.670,4 km² (SCHISTEK; ARAÚJO, 2003). Como se pode ver, são muito semelhantes as

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delimitações do que se entende por semi-árido e por polígono das secas, porém o critério de

definição de ambos é diferente: um é instituído, socialmente, em um processo de construção

com a participação das populações subalternas, o outro se fez por decreto governamental, sem

a participação dessas populações e com a contribuição de peritos.

De fato, a delimitação do semi-árido não é consenso entre os que defendem a

proposta de convivência. A Articulação do Semi-Árido Brasileiro – ASA-Brasil, por exemplo,

amplia o recorte de semi-árido de forma a acrescer parte dos Estados do Maranhão e do

Espírito Santo. Já ONGs, como o IRPAA, por exemplo, não consideram os dois Estados

acrescidos pela ASA como semi-árido, como se pode conferir na ilustração 01. Num primeiro

olhar, no critério utilizado pela ASA, aparenta haver a repetição da constituição da zona de

solidariedade, que aconteceu com o Nordeste, formada pelos esquecidos pelas políticas

federais e com isso adotando um critério social e não natural, ao incluir o Maranhão e o

Espírito Santo dentro dos seus limites.

Porém, isso requer um olhar mais pormenorizado. Vejamos: a instituição do

Nordeste se deu com a crise mundial do paradigma naturalista, após este ter conduzido o

mundo aos desígnios do nazi-fascismo, por isso o foco deixa de ser o natural e passa a ser o

social, ou sócio-político, já a instituição do semi-árido dá-se num contexto não de ruptura de

paradigmas, mas de diálogo entre estes. Nem o natural nem o sociocultural são determinantes,

mas o conjunto delineia o social. Além de que, a partir de critérios naturais, é inegável a

existência de áreas com as especificidades de semi-árido para além do espaço em que o

referido ecossistema é hegemônico (KELLER, 1984).

Com efeito, o exercício de instituição da identidade semi-árido busca construir

uma visibilidade e uma dizibilidade para sua definição a partir do estabelecimento de

diferenças de outras identidades já instituídas, o que não quer dizer que não dialogue ou não

guarde semelhanças com aqueles a que se opõe. Nesse processo, buscam-se os semelhantes,

ou seja, outros semi-áridos do mundo, como fonte de referências naturais e socioculturais,

como se pode ver na ilustração 02.

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Na criação de fronteiras entre semi-árido e seus outros mais próximos com os

quais dialoga, o Nordeste e o polígono das secas, o processo de construção da dizibilidade

sobre o semi-árido busca escapar da armadilha da criação de estereótipo, ao reconhecer a

diversidade do semi-árido, dos seus problemas, de sua gente e de sua espacialidade:

Essa imensidão não é uniforme: trata-se de um verdadeiro mosaico de ambientes naturais e grupos humanos. Dentro desse quadro bastante diversificado, vamos encontrar problemáticas próprias à região (o acesso à água, por exemplo) e outras universais (a desigualdade entre homens e mulheres). Vamos ser confrontados com o esvaziamento de espaços rurais e à ocupação desordenada do espaço urbano nas cidades de médio porte. Encontraremos, ainda, agricultores familiares que plantam no sequeiro, colonos e grandes empresas de agricultura irrigada, famílias sem terra, famílias assentadas, muita gente com pouca terra e pouca gente com muita terra, assalariados, parceiros, meeiros, extrativistas, comunidades indígenas, remanescentes de quilombos, comerciantes, funcionários públicos, professores, agentes de saúde. O que pretendemos com essa longa lista, é deixar claro que a problemática é intrincada e que uma visão sistêmica, que leve em consideração os mais diversos aspectos e suas inter-relações, impõe-se mais do que nunca (ASA, 1999, p. 2).

Ilustração 02 - Semi-árido no mundo

Fonte: (SCHISTEK; ARAÚJO, 2003. p.17)

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Porém, no processo de instituição das novas imagens de semi-árido, de certa forma cai-se nas armadilhas do estereótipo. De fato, apresentam-se como imagens gráficas (cartazes, folders, folhetos, etc) de semi-árido: ruralidade, mulheres e crianças apanhado água suja em barreiros com pouca água e transportando-a na cabeça, animais de transportes carregando água, aguadas secando, cactos, cisternas em casas humildes, homens com enxadas no roçado, cabras, umbuzeiro, sol. Isso faz ver que a instituição da identidade semi-árido ainda está em processo e, especialmente, muito há de diálogo aproximativo com a identidade estereotipada de Nordeste. Assim, embora a intencionalidade seja construir uma identidade com base na crítica à identidade espacial Nordeste, especialmente, às políticas ali aplicadas, isto se mostra muito mais na dizibilidade, ou seja, no discurso, do que nas imagens selecionadas para referir a identidade.

Vale ainda considerar que a crítica enunciada no discurso de semi-árido não se

fecha em si, mas vai além, com proposição de políticas consideradas adequadas ao semi-

árido, o que permitiria às populações locais se libertarem das medidas emergenciais,

geradoras da dependência da cesta básica e do carro-pipa.

Com efeito, a carta política da ASA (2003), elenca a referida proposição em vários

segmentos: acesso à terra; acesso à água; fortalecimento da agricultura familiar; preservação e

uso sustentável dos recursos naturais; educação para convivência com o semi-árido; atenção à

criança e ao adolescente; segurança alimentar; democratização dos processos de comunicação

sobre o semi-árido. Cada um desses segmentos comporta diversas propostas, dentre as quais

se destacam:

- Programa de Formação e Mobilização Social para Convivência com o Semi-

Árido: um milhão de cisternas rurais – P1MC, em forma de política pública de

democratização e acesso à água de qualidade pelas famílias do semi-árido brasileiro;

- Demanda de incorporação, nas políticas públicas governamentais, das várias

propostas e experiências de captação, armazenamento, aproveitamento e manejo da água de

chuva, desenvolvidas pela sociedade civil no semi-árido brasileiro;

- Posicionamento contra a transposição de bacias e a favor da revitalização e da

gestão participativa das mesmas;

- Posicionamento contra a privatização das águas e a internacionalização da

Amazônia;

- Defesa de uma reforma agrária que leve em conta as especificidades e

diversidades regionais;

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- Posicionamento de reforço à desapropriação como principal instrumento para se

empreender uma reforma agrária que garanta a mais ampla inclusão social;

- Afirmação da posição contra a reforma agrária de mercado;

- Apoio ao imediato reconhecimento das terras das comunidades quilombolas;

- Apoio à demarcação e proteção das terras indígenas e das unidades de

conservação e à implantação de sistemas sustentáveis de assentamentos, garantindo o

reassentamento aos posseiros agricultores familiares;

- Reivindicação da implementação de uma política agrícola voltada para os

assentados da reforma agrária, que privilegie as ações com enfoque agroecológico e de

convivência com o semi-árido, com linhas de crédito adequadas, a partir de interesses e

aptidões das realidades locais (ASA, 2003).

O conjunto de propostas acima, se implementado, de fato, quebraria a espinha

dorsal da identidade de Nordeste fundada na indústria da seca, visto que transfere o foco da

dimensão natural para a social e política, o que, potencialmente, quebra a lógica da

vitimização do nordestino, fazendo emergir tanto uma consciência de que ele próprio é

partícipe da construção do drama social em que está imerso, quanto das novas relações

possíveis entre cultura e natureza e entre culturas, no processo de apropriação da natureza, no

âmbito de uma perspectiva de sustentabilidade em seu sentido amplo. Assim, numa outra

demarcação das diferenças, adota-se o princípio das pequenas obras, como estratégias para

enfrentar as estiagens, o que possibilita a cada família cuidar da solução do problema na sua

órbita familiar e, ao Estado, ganhar aliados na solução do abastecimento de água, por

exemplo. Vale lembrar que a quebra dos monopólios sobre terra e água alteraria

profundamente a distribuição de poder na espacialidade semi-árida ou nordestina, já que mais

da metade do nordeste é semi-árido, conforme indicadora figura 01.

De fato, há uma proposição de redesenho de espacialidade e de identidade, que se

materializa, não necessariamente contra a identidade de Nordeste, mas a partir de seleção de

discursos e de imagens, no caso, ainda mais de discursos do que de imagens, tendo como

referências as experiências, práticas sociais, histórias de vida, músicas, ritmos, danças,

simbologias condizentes com o propósito de gestar uma cultura de convivência com o semi-

árido, que negue a cultura de combate à seca e da indústria da seca. E esta visibilidade e

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dizibilidade do semi-árido partem de substratos comuns ao de Nordeste. Em muitos aspectos,

há convergência e não oposição. Por exemplo, evitam-se as músicas lamurientas gravadas por

Luiz Gonzaga, como “Triste Partida” e “Asa Branca”, mas adotam “A volta da Asa Branca” e

“O xote das meninas”, que dão um tom de esperança, de proposição e não de tragédia. No

entanto, continua sendo Luiz Gonzaga, o porta-voz dos sentimentos populares por excelência

e continua o sertanejo como vítima da natureza, a imagem por excelência, como se pode

constatar nas letras das duas canções, referidas, seja a que fala da retirada, seja a que fala do

retorno:

Asa branca - Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga

A Volta da Asa Branca - Zé Dantas – Luiz Gonzaga

Quando olhei a terra ardendo Qual fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, ai Porque tamanha judiação

Que braseiro, que fornalha Nenhum pé de plantação Por falta d’água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão Inté mesmo a asa branca bateu asas do sertão Entonce eu disse adeus, Rosinha Leva contigo, meu coração

Hoje longe muitas léguas Nesta triste solidão Espero a chuva cair de novo Pra mim voltar pro meu sertão

Quando o verde dos teus olhos Se espalhar na plantação Eu te asseguro, não chore não, viu. Que eu voltarei, viu, meu coração

Já faz três noites Que pro Norte relampeia A Asa Branca ouvindo O ronco do trovão Já bateu asas e voltou pro meu sertão Ai ai eu vou-me embora Vou cuidar da plantação A seca fez eu desertar da minha terra Mas felizmente Deus Agora se "alembrou" De mandar chuva Pra esse sertão sofredor Sertão das "muié séria" Dos "home trabaiadô"

Rios correndo As cachoeira tão zoando Terra molhada, Mato verde que riqueza E a Asa Branca Tarde canta que beleza Ai ai o povo alegre Mais alegre que a natureza Sentindo a chuva Me "arrecordo" de Rosinha A linda flor do meu sertão pernambucano E se a safra não Atrapalhar meus planos Que que há seu vigário Vou casar no fim do ano

Tabela 01 - Canções Fonte: www. luiz-gonzaga.letras.terra.com.br

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Com efeito, na letra “Asa Branca”, há uma paisagem de morte: nem mesmo “um pé

de plantação” nem mesmo a “asa branca” compõem o cenário. Na outra letra, “A volta da asa

branca”, há uma abundância de vida, porém nas duas há a vitimização humana pela natureza.

Portanto, é possível afirmar que se identifica, na proposta de instituição do semi-

árido, o delineamento de uma identidade cultural de espaço e de sujeito num substrato natural,

o bioma, com seu clima, sua vegetação, fauna, solos, regime de chuvas, reservatórios de água,

insolação, com seus limites e possibilidades para o processo de apropriação na relação entre

cultura e natureza, que embora dialogue com a identidade estereotipada de Nordeste, procura

abandonar o lugar construído pela indústria da seca, transcendendo a caracterização única do

bioma e dos problemas climáticos.

2.3 O contexto semi-árido: aspectos físicos

O semi-árido, marcado pelo fenômeno natural das secas, apresenta, como uma

de suas paisagens mais comumente retratadas, vegetação característica de cor cinza, em

períodos de estiagens, por isso chamada de caatinga, que significa mata branca ou cinzenta.

Assim denominada pelos primeiros habitantes destas terras, a caatinga tem como

característica a caducifolia, capacidade de perder as folhas, na estação seca, mecanismo de

que a planta se utiliza para economizar água.

Além da caducifolia, a caatinga apresenta outras características apropriadas às

condições climáticas como a retenção de água da chuva, seja no tronco, como a popular

barriguda [Chorisia glaziovii], nas raízes, como o umbuzeiro [Phytolacca dióica], no caule,

como as cactáceas [Cactus sp] ou como o popular juazeiro [Ziziphus joazeiro] capaz de

captar água no subsolo através de sua raiz profunda e pivotante. Caracterizam, também, a

vegetação de caatinga os troncos e galhos retorcidos e revestidos de espinhos (SCHISTEK,

2001).

Este tipo de vegetação, existente apenas no Brasil, foi tratado de forma

preconceituosa pelo eurocentrismo da colonização, que o tomou como vegetação marginal,

ou seja, não típica ou oriunda de outra espécie, como dito no jargão científico, produto da

degeneração de formações vegetais mais exuberantes, como a Mata Atlântica ou a Floresta

Amazônica. Isto se deu por que a caatinga fugia aos padrões até então conhecidos,

inclusive, sendo considerada como natureza morta no período de estiagens, em que

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apresenta a cor típica que lhe deu o nome, o cinza. Portanto, emerge daí uma idéia

preconceituosa sobre a vegetação caatinga, que apenas recentemente começa a ser

desconstruída por pesquisas científicas voltadas para a biodiversidade desse bioma.

Com efeito, atualmente, sabe-se que a caatinga é um bioma próprio, típico do

semi-árido brasileiro, rico em biodiversidade, endemismos e bastante heterogêneo. Ocupa

uma área de cerca de 800.000 km², englobando de forma contínua parte dos Estados do

Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas

Gerais, ou seja, o semi-árido brasileiro (SCHISTEK, 2001).

No que tange à fauna, a do semi-árido é marcada pela presença de animais de

pequeno e médio porte, compatíveis com as condições de vegetação e clima.

Com efeito, dentre as principais adversidades que enfrenta o semi-árido, destaca-

se a falta de conhecimentos sobre suas limitações e potencialidades, o que tem norteado a

ação antrópica de forma a provocar perdas irreparáveis de material genético insubstituível,

que deixam solos desprotegidos e, com isso, mais suscetíveis à erosão irreversível, a

assoreamento dos rios, a mudanças microclimáticas e à maior suscetibilidade à

desertificação.

Na maior parte do semi-árido, o subsolo é cristalino, com pouca água que, na

maioria das vezes, é salobra. Água de boa qualidade e quantidade se encontra somente

numa área restrita de subsolo sedimentar. Daí a inadequação à realidade das políticas

eleitoreiras de, cada vez mais, perfurar poços a custos altíssimos.

No semi-árido brasileiro, em relação a outras regiões semelhantes do mundo,

chove muito (PORTO, 2002). As chuvas ocorrem de maneira irregular e concentram-se em

poucos meses, tendo uma evapotranspiração superior às precipitações, o que resulta num

balanço hídrico negativo (chove uma média de 800 mm e evapora uma média de 2000 mm),

o que por si só não é problema. A forma como tem sido tratada, historicamente, a questão, é

que se constitui em problema. Desde o Império, há registro de ação política que se estrutura

no paradigma de combate à seca, como se fosse possível combater uma condição climática.

Embora se possa falar de semi-árido brasileiro, convém lembrar, ainda, que não se pode

pensá-lo de forma homogênea. Nesse sentido, é importante retratar o semi-árido no Piauí,

especialmente, na região estudada.

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73

2.4. O semi-árido no Piauí, território Várzea Grande

2.4.1. Aspectos geomorfológicos e históricos

O Estado do Piauí situa-se numa área de transição marcada pela passagem do

domínio morfoclimático da região, o semi-árido, como se pode ver na ilustração 03, para o da

Amazônia ocidental. Enquanto há características amazônicas a noroeste do rio Mearim, a

sudeste do Piauí, há superfície aplainada cristalina do sertão semi-árido e, a sudoeste, surgem

aspectos morfológicos do Brasil Central (FIBGE, 1977)29.

150118

40

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13

217

E s c ala : 1: 15 0.0 00

LE G E N DA

Tr an s iç ão S u b ú m id aD o m ín io S e m i- Á r id oM u n ic íp io d e C o r o n e l Jo s é D i as

LE G E N D A

E s c a la : 1 : 20 .00 0

A região sudeste do Piauí está embasada em cristalino pré-cambriano e segundo

classificação, apresentada por Moreira (1977 apud LIMA, 1987), enquadra-se na cuesta

29 A propósito da diversidade e riqueza ecossistêmica no Piauí conferir Vilela (1999).

Ilustração 03 - Semi-árido piauiense e o município de Coronel José Dias Fonte: CARVALHO, 2002.

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formada por um semicírculo, com destaque para dois grandes conjuntos de formas separados

pelo canyon do Poti: a Serra da Ibiapaba e a Serra Grande, escudo cristalino, com litologia

predominantemente formada por arenitos e conglomerados que compõem as formações Serra

Grande e Pimenteiras. A caracterização da referida área é semelhante para todo o semi-árido,

diferindo apenas na porção piauiense onde a estrutura geológica é, predominantemente, de

rochas sedimentares.

A área em estudo pertence ao compartimento regional de depressões periféricas

do conjunto do relevo piauiense, que se limita com a porção sul da cuesta da Ibiapaba,

conhecida como Serra Grande, ao norte; a leste com a Chapada do Araripe; a oeste com os

Chapadões do Médio-Baixo Parnaíba; a sudeste com a Serra Dois Irmãos e a sul com a Serra

da Tabatinga (Moreira, 1977 apud LIMA, 1987).

É a referida área, tipicamente, semi-árida, porém, nem sempre se constituiu como

se apresenta atualmente. Entre 50.000 e 60.000 anos, havia uma floresta úmida tropical que

cobria todo o Estado do Piauí, inclusive a área de São Raimundo Nonato, sudeste do Piauí.

Entre 10.000 a 12.000 anos, iniciou-se a formação da atual modelagem, que resultou num

clima semi-árido e a mudança morfo-climática, com o desaparecimento de espécies, como a

da ilustração 04, e fortalecimento de outras apropriadas ao novo clima e geomorfologia

(FUNDHAM, 1998).

Os primeiros habitantes foram povos caçadores e coletores, que chegaram à

região, por volta de 50 mil a 60 mil anos atrás, conforme material datado na Toca do

Boqueirão da Pedra Furada, em mais de 48.000 (FUNDHAM, 1998). Depois da mudança

climática, entre 10 e 12 mil anos do presente, diferentes culturas passaram a dividir o espaço,

com populações mais numerosas do que antes (FUNDHAM, 1998).

Durante o Pleistoceno, período que vai de há 2 milhões de anos até 12.000/10.000 atrás, na região do Parque Nacional reinava um clima tropical úmido. Portanto, no início da aventura humana, esta região era verde, com muitos rios e lagos. Na grande planície imperavam os campos, por onde corriam cavalos, mamutes e lhamas, com bosques de árvores e lagos cobertos de vegetação, onde comiam os tatus gigantes, capivaras e toxodontes (animais parecidos com rinocerontes). Na serra, a floresta tropical úmida, imponente com suas árvores altas e frondosas, escondia preguiças gigantescas e o temido tigre-de-dente-de-sabre (FUDHAM, 1998, p. 15).

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A questão da aparente descontinuidade de ocupação humana na região deve ser

vista com cautela, por ser mais provável que não haja uma descontinuidade, e sim uma falta

de vestígios culturais, especialmente, a presença física do ser humano, em função de serem

ainda muito recentes as pesquisas realizadas (MARTIN, 1999).

Ilustração 04 - Domínio morfo-climático anterior ao semi-árido Fonte: Museu do Homem Americano

As populações de 10 mil anos eram racialmente mongolóides, como retratados na

ilustração 05, fato comprovado com a presença física humana, como todos os habitantes das

Américas anteriores à colonização européia. Já as de 50 mil anos poderiam tratar-se de grupos

pré-mongolóides que evoluíram já nas Américas ou que se extinguiram (MARTIN, 1999). As

populações de 3.500 a 3 mil anos são as primeiras a se apresentarem com vestígios da cultura

agrícola, o que não quer dizer, necessariamente, que não tenham existido, antes, povos

agricultores. Na verdade, há carência de dados (FUNDHAM, 1998).

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Ilustração 05 - Populações do domínio morfo-climático anterior ao semi-árido Fonte: Museu do Homem Americano

Pesquisas arqueológicas indicam que as populações do intervalo 3 mil a 1.600

anos viviam em aldeias circulares, grandes, localizadas próximas às fontes de água, com

aproximadamente dez ou onze casas circulares em volta de uma praça central, ocupando vales

da planície da depressão periférica ou o alto da chapada, nas formações sedimentares,

utilizando utensílios como pilão, potes de cerâmica, machados lascados semi-polidos, discos

polidos perfurados. Adotavam, como costume funerário, o sepultamento secundário em cova

ou em urnas, em que a cabeça recebia um tratamento diferenciado, sendo separada das outras

partes do corpo e enterrada, coberta com vasilha de cerâmica ou metade da cabaça (a cuia),

sobre o arranjo feito com os outros ossos, em algumas situações, vinte ou trinta centímetros

acima dos ossos longos, como se ver na ilustração 06 (FUNDHAM, 1998) o que indica a

existência de uma cultura elaborada.

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Ilustração 06 - Urna Funerária Fonte: Museu do Homem Americano

Com relação às práticas culturais de sua base econômica, há poucas evidências de

práticas agrícolas, com vestígios de cultivo de milho [Zea mays], feijão [Vigna unguiculata],

cabaça [Lagenaria sericea] e amendoim [arachis hypogea], provavelmente, a irregularidade

das chuvas limitassem essas práticas e exigissem deslocamentos temporários nos períodos de

dificuldades de acesso à água (FUNDHAM, 1998).

Nessa região, há cerca de 300 anos, o violento encontro entre as culturas européia

e autóctone provocou quase um etnocídio, uma vez que esse se estabeleceu sob a hegemonia

cultural dos colonizadores. Isso provocou quase o desaparecimento da cultura local que, ao

que tudo indica, subsistiu como cultura ameaçada e assimilada à dominante para não

sucumbir totalmente.

De fato, a colonização do Piauí, como parte do sertão do gado, deu-se mais tarde

em relação a outras partes do país, por que o interesse imediato do colonizador focalizou-se

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na área litorânea, onde seria possível a exploração do cultivo da cana de açúcar. Só com a

Carta Régia de 1701, em que o rei de Portugal proibiu a criação de gado bovino na faixa de

dez léguas a partir do litoral e como a pecuária era atividade subsidiária da economia

canavieira, é que se iniciou a colonização do sertão e o Piauí foi uma das últimas áreas

procuradas pelos colonizadores. O sudeste do estado foi de ocupação posterior30 às outras

áreas (DIAS, 2001).

As populações existentes, na área em estudo, quando o colonizador lá aportou,

eram os índios Pimenteiras, que, juntos com os Acroás, Macoazes, Cherens, Gueguêz,

Kamakam e Jeicó, formavam a etnia Jê. Os índios Pimenteiras ocupavam grande extensão das

terras do Piauí, dominando toda a região do alto Piauí e alto Gurguéia, eram guerreiros e

lutaram muito em resistência à ocupação de suas terras (MOTT, 1979). Se tomado o critério

de classificação pela língua que falavam, eram provavelmente da família Caribe, visto que são

os Pimenteiras os únicos falantes desta língua (FUNDHAM, 1998).

Como parte do sertanismo de contratos, Victorino Paes Landim, como trata o

documento na ilustração 08 ou Vitorino Dias Paes Landim, como enunciam os entrevistados,

“tomou parte na conquista dos índios que habitavam essas caatingas” (Casa ..., 1855 apud

GODÓI, 1999). Na verdade, o tomar parte é eufemismo, pois ocorreu de fato um massacre.

Victorino Dias Paes Landim, o ancestral comum “no mais fundo da memória genealógica”

(GODOI, 1999) da área em estudo, integrou essa ação violenta, sendo recompensado com

terras, como atesta o documento reproduzido na ilustração 07.

De fato, do século XIII ao XIX, ocorreu a dizimação dos povos nativos e a

transformação das terras em lavouras e fazendas de gado, como a Fazenda Várzea Grande,

originada daquilo que o documento classifica como Sítio Serra Nova. Na verdade, essa grande

extensão de terra (mais tarde, também, chamada de Fazenda Serra Nova) foi considerada sítio

apenas como artifício para driblar a Resolução de nº 76 de 17/7/1822, que extinguiu o regime

de sesmarias e definiu a ocupação da terra pelo critério do tipo de trabalho empreendido:

fazenda destinava-se à criação de bovinos, o sítio destinava-se à agricultura e à criação de

miunças e posses eram as terras destinadas aos camponeses, mas, de fato, esse critério acabou

30 Há uma polêmica entre pesquisadores e historiadores quanto ao processo de ocupação do Piauí. A divergência está na lógica ou direção dessa: se do litoral para o sertão ou do sertão para o litoral. Essa polêmica não será objeto do presente estudo.

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servindo apenas para nomear de outra forma as antigas sesmarias. Assim, era possível

encontrar grandes extensões de terras classificadas como posses ou sítio (GODOI, 1999).

Quadro 01- Documento Fonte: (Apud GODOI, 1999)

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A Fazenda Várzea Grande originou o município de Coronel José Dias, sendo que a

sede resultou no bairro São Pedro, antiga Rua velha. O fundo de pasto da fazenda deu origem

às atuais comunidades Barreiro Grande e Barreirinho, formando um território contíguo, locus

da presente pesquisa, como se pode ver na ilustração 07.

Após a chegada do colonizador e até se tornar município, o processo gerador da crise

eco-social na área estudada contou, ainda, com um outro aspecto significativo, agregador de

outros elementos na sua composição atual, a extração da maniçoba. Esta atitude teve início no

final do século XIX, com apogeu no início do século XX.

Ilustração 07 – Município de Coronel Dias Fonte: Prefeitura Municipal de Coronel José Dias

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81

Seu declínio como atividade central ocorre no início da década de vinte do século

XX e como prática cultural, agregada ao modo de vida das populações camponesas locais, na

década de sessenta.

Quanto ao processo de sua emancipação, sua construção política como município

teve três momentos de definição: em 1916, a Fazenda Várzea Grande passou à condição de

povoado do município de São Raimundo Nonato, mantendo o nome. Em 1962, o povoado

passou a município com o nome de Coronel José Dias. Seis meses depois, foi cassada esta

condição, sob a justificativa de não ter havido plebiscito para a criação do município, motivo

alegado pelo então deputado estadual Edson Ferreira. Finalmente, em 29 de abril de 1992,

outra vez, o povoado foi desmembrado do município de São Raimundo Nonato pela Lei nº.

4.477, votada na Assembléia Legislativa e sancionada pelo, então, governador Antônio de

Almeida Freitas Neto. O processo de desmembramento foi movido pelos, então, deputados

Marcelo Castro e Valdemar Macedo, o primeiro tendo papel fundamental na decisão sobre o

nome do novo município que fica sendo Coronel José Dias (SECRETARIA ..., 2003).

Segundo Raimundo Coelho, morador do lugar, em comunicação oral31, teria

havido apenas uma reunião para decidir sobre o nome do novo município, em que foram

apresentadas três propostas. Uma delas defendia o nome de Coronel José Dias, em

homenagem a um filho do lugar, do tronco do véio Vitorino, que se tornou Coronel da Polícia

Militar, o qual viveu do final do século XIX ao início do século XX. Uma outra opção

apontava o nome Várzea Grande dos Oliveiras, aproveitando a primeira parte do antigo

topônimo Várzea Grande (que não podia ser mantido em função de já existir, no Piauí, um

município com este nome) e a outra parte em homenagem a uma das famílias locais. E uma

terceira opção propunha o nome Serra da Capivara, em homenagem à serra nas proximidades

do novo município e que deu nome ao Parque Nacional. Não houve consenso, naquela

reunião, e o deputado decidiu, por si, manter o antigo nome de Coronel José Dias, que era

também uma homenagem a um familiar seu. Conseqüentemente, quando aconteceu o

plebiscito, já foi com opção única de nome.

O referido nome tem gerado muitas controvérsias e críticas, visto ter havido no

sertanismo de contrato, que quase dizimou os nativos locais, um certo capitão José Dias

31 Comunicação em diálogo estabelecido, durante o percurso entre o município de Coronel José Dias e São Raimundo Nonato, entre pesquisadora e o então Secretário Municipal de Educação Raimundo Coelho de Oliveira Filho, em 01/07/2004.

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Soares, que viveu entre o final do século XVIII e século XIX, sendo de São Paulo e tendo

ação localizada na região do município de Caracol, Piauí (DIAS, 2001). Embora o

homenageado tenha sido o Coronel José Dias de Sousa, um personagem da história mais

recente do que o primeiro, o topônimo não deixa de confundir os personagens e, assim,

rememora a carnificina praticada contra as populações nativas locais, embora a memória

coletiva, como veremos adiante, elabore aproximações de José Dias de Souza com o grande

ancestral semi-mítico Vitorino Dias Paes Landim.

O novo município, que resultou do referido processo de desmembramento, está a

33 km de São Raimundo Nonato, no sopé da Serra da Capivara, a 548 Km de Teresina, capital

do Estado do Piauí, dispondo de uma área de 1.796,30 km². Limita-se ao norte com o

município de João Costa, ao sul com Dirceu Arcoverde, no Estado da Bahia, ao leste com

Dom Inocêncio e, a oeste, com São Raimundo Nonato e São Lourenço do Piauí (figura 9).

Pelo lado oeste, Coronel José Dias é ladeado por serras, com destaque para a Serra da

Capivara, onde está situado o Parque Nacional Serra da Capivara, Patrimônio Cultural da

Humanidade. Está localizado em 08º48'59" de latitude Sul e em 42º40'45" de longitude Oeste

de Greenwich e encravada no semi-árido, com um clima seco e quente e índices

pluviométricos numa média de 550 mm/ano (INMET, 1990).

A temperatura anual média compensada, no período de 1978 a 1989, foi de

26,8°C, considerada elevada. As médias mensais apresentaram uma reduzida amplitude de

oscilação no período observado. Variaram entre 25,6°C, em março e 29,1°C, em outubro, com

uma amplitude de 3,5°C. Nos meses de agosto e novembro, oscilaram entre 27,1°C (agosto) e

29,1°C (outubro). A temperatura máxima média foi de 33,9°C. Os valores apresentaram

oscilações entre 32,1°C (fevereiro) e 36,3°C (outubro). A temperatura mínima média foi de

20,9°C. A temperatura máxima absoluta registrada foi de 40,6°C em 21/12/82. Os valores da

temperatura máxima absoluta oscilaram entre 37,3°C, em 28/07/83 e 40,6°C em 21/12/82. A

temperatura mínima absoluta foi de 11,9°C em 08/01/92. As oscilações foram entre 11,9°C e

17,9°C em 20/04/78 (ARRUDA, 1997).

Já a temperatura média anual, no período de 1931 a 1990, ficou entre 24° e 27°; a

mínima entre 21° e 24° e a máxima, entre 30° e 33° (INMET, 1990). A análise deste mesmo

recorte apresenta dados pluviométricos numa média entre 900 e 600 mm/ano, o que mostra

que a média caiu, nos últimos anos, visto que atualmente a precipitação média é de 550

mm/ano.

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Os dados pluviométricos de São Raimundo Nonato, no período de 1978 a 1989

indicam que a precipitação média anual chegou a 757,7mm. As precipitações anuais

absolutas, entre 1978 a 1989, oscilaram entre 418,7mm (1983) e 1.096,2 mm (1988), o que

corresponde a uma amplitude de variação de 677,5mm, ocorrendo ciclos de anos secos, com

déficits; seguidos de anos chuvosos (ARRUDA, 1997).

A insolação no período de observação apresenta-se numa média de 2.738,3 horas

por ano, num regime em período de inverno seco (julho a setembro) a insolação média mensal

atinge a maior média, 281,5 horas, com a média mensal máxima em agosto, 287,8 horas.

Durante o período chuvoso (novembro a abril), ocorre uma notável redução na insolação

média mensal, que se limita a 119,9 horas, com a média mensal em fevereiro de 164,2 horas

(ARRUDA, 1997).

Nos meses de seca, a estação de São Raimundo Nonato registra umidade relativa

de até 35% em agosto. O balanço hídrico médio anual (1978-1989) observado na área de

estudo foi de 866 mm (ilustração 10). A evaporação registrada de abril a janeiro permaneceu

acima dos valores registrados para a precipitação, ou seja, o balanço hídrico é negativo

durante dez meses. Os déficits de água foram superiores a 100 mm de junho a outubro,

registrando 143 mm em setembro. Somente nos meses de fevereiro e março não houve déficit,

apenas reposição de água do solo (ARRUDA, 1997).

Tabela 02 – Balanço Hídrico de São João do Piauí (Thornthwaite – Mather, 1995) Fonte: (Apud ARRUDA, 1997)

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84

Os cursos de água nas áreas semi-áridas são intermitentes, sazonais, extensivas e

irregulares, dotados de fraquíssimo poder energético, relacionado ao ritmo desigual e pouco

freqüente das precipitações. Aí está localizada a área em estudo, na bacia do rio Piauí que

corre de oeste para nordeste e tem por afluentes os seguintes riachos: Umbuzeiro, Canário,

Veredão, São Lourenço, Cavaleiro, Santa Tereza, Tanque Novo, Bom Jesus, Angical, Lages,

Mulungu, Boqueirão e Pedra Branca. E situada na confluência da Bacia Sedimentar do

Maranhão com a Depressão Periférica do Médio São Francisco. A área em estudo pertence à

região do pedimento, ao sul e a leste da Serra da Capivara, uma vasta planície, em vales

suaves que correm para a calha do rio Piauí (AB’SABER, 2003).

Segundo Pellerin (1991), a referida área se estende por três conjuntos

geomorfológicos cujas redes hidrográficas apresentam fisionomias, diferenciadas:

1. Os planaltos areníticos (chapadas) do reverso da Cuesta, com rede hidrográfica larga, vales

paralelos orientados no sentido norte-sul (riachos da Serra Branca, Boqueirão e Bom Jesus).

2. A zona cuesta (Serra Nova, da Capivara, Talhada), situada no reverso arenítico duro,

apresenta uma rede de canions dendriformes, em forma de estreitos corredores, que terminam

em boqueirões, que são inundados com chuvas intensas.

3. A região do pedimento, ao sul e a leste da Serra da Capivara, uma vasta planície, vales

suaves que correm para a calha do rio Piauí, como apresentada na ilustração 11.

Essa última fisionomia, onde se localiza a área em estudo, dentre as três

apresentadas, é a melhor servida por águas superficiais, com várias lagoas, açudes, poços,

cacimbas não perenes e captação de água de chuva pelas cisternas.

Com efeito, o município de Coronel José Dias está localizado no contato de duas

grandes unidades morfo-estruturais: o escudo metamórfico sedimentar pré-cambriano e o

planalto sedimentar paleozóico do Piauí-Maranhão. Uma depressão de características semi-

áridas, com altitude média de 400/300m, denominada pelo Radambrasil (1973) de Depressão

Periférica do Médio São Francisco, com superfície em forma de pedimento regular, com fraca

declividade. Localizado a sul, o escudo está modelado em terrenos cristalinos. Próximo à sede

do município, encontram-se maciços calcários que são explorados para a produção de cal.

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Ilustração 08 - Planície – localização do sítio de pesquisa - camponês e a sua roça Fonte: SOUSA (2004)

Ao norte, está o Planalto da Bacia Sedimentar Piauí-Maranhão, uma superfície

monótona com estrutura predominantemente arenítica, altitude média de 500/600m e bordas

em forma de escarpas cuestiformes, representando o relevo mais importante da região

(RADAMBRASIL, 1973).

Os solos, em geral, são areno-argilosos, ácidos, pobres em matéria orgânica e de

baixa fertilidade. Nos vales cortados pelo rio e por caldeirões, os terrenos são arenosos. Estão

assim classificados: metade é de latossolos; 20% são podzólicos; 20% são litólicos e 7% são

bruno. Nos lugares, em que aflora o cristalino, encontram-se depósitos naturais de água de

chuva, escavados nas rochas pela erosão (RADAMBRASIL, 1973).

As formações de vegetação identificadas são: a Caatinga Arbustiva Densa do

Reverso da Cuesta; as Formações Arbóreas da Frente da Cuesta e das Ravinas: a Caatinga

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Arbustiva Aberta das Bordas da Chapada; as Caatingas Arbustivas Arbóreas dos Vales e a

Caatinga do Tabuleiro Estrutural (ARRUDA, 1997). A depressão periférica conta com as

formações: Caatingas das áreas de Micaxisto; Caatingas dos Batólitos Graníticos; Caatingas

Degradadas dos Gnaisses e Migmatitos e Caatinga Arbórea Aberta dos Maciços Calcários

(ARRUDA, 1997).

A fauna do município de Coronel José Dias é marcada pela presença de animais de

pequeno e médio porte, compatíveis com as condições de vegetação e clima, como tatu bola

[Tolypeutes tricinctus], preá [Galea spixii], cotia [Dasyprocta cf. prymnolopha], mocó

[Kerodon rupestris] e veado catingueiro [Mazama gouazoubira]. Nas áreas mais úmidas, são

encontradas: felinos como gato-macambira [Felis tigrina], onças [Felis concolor e panthera

onça], jaguatirica [Felis pardalis], também pacas [Cunniculus paca], jacarés [Caiman

crocodilus], cascavéis [Crotalus durissus cascavella], araras vermelhas [Ara chloroptera],

papagaios [Amazona aestiva] e outras. Na fauna de vertebrados do Pleistoceno, já foram

identificadas, aproximadamente, cinqüenta espécies, das quais trinta fazem parte da fauna

atual da América do Sul (GUÉRIN, 1996).

2.4.2. Ordenação territorial

O município de Coronel José Dias possui perfil rural, o que o situa dentre as

chamadas cidades imaginárias, fenômeno da dupla ficção estatística e histórica, segundo o

qual há uma crença de existência de um intenso processo de urbanização no Brasil, que

transforma a população rural em mera relíquia e por isso há a falsa concepção de que são

desnecessários estudos sobre estas populações, por que seria “gastar vela com mal defunto”

(VEIGA, 2003). De fato, o autor lembra a exigência de um olhar mais acurado sobre o que se

chama de cidade no Brasil, bem como sobre as fronteiras entre o rural e o urbano.

Nos marcos da definição de cidade do Decreto-Lei 311, de 1938, como sendo a

sede dos municípios (BRASIL, 1938), a política piauiense de retalhamento do estado em

micro-municípios, conforme os interesses circunstanciais deste ou daquele grupo político,

como forma de distribuição do poder político, transformou grande parte da população rural

em urbana, a toque dos decretos-lei. Assim se pode considerar o município de Coronel José

Dias, com 4.416 habitantes, sendo que 1.012 moram na sede do município e 3.404 fora da

sede, com densidade demográfica de 2,15 hab/km, que tem sua principal fonte de renda na

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agricultura e pecuária. De fato, só a força de um decreto-lei para chamar a sua sede de cidade,

pois não há ali vestígios de traços estruturais e funcionais que façam lembrar urbanização.

Já quanto à estrutura fundiária, esta não mantém as feições do início da

colonização, com estrutura latifundiária. Atualmente, é formada, em sua maioria, por micro e

pequenos imóveis, sendo que cerca de 80% destes possuem área de até 100 hectares. Somente

um proprietário tem área superior a 2 mil hectares, totalizando a estrutura agrária do

município em 37.724 hectares (SECRETARIA..., 2003).

Efetivamente, quanto à economia local, esta se alicerça na tradição agrícola e

pecuária, mais de médios e pequenos animais do que de grande e com produção agrícola de

sequeiro. O gado vacum é criado de forma extensiva.

De fato, as características rurais e agrícolas do município contribuíram na

definição da população e área de adensamento da pesquisa: as comunidades rurais de Barreiro

Grande, Barreirinho e a antiga Rua Velha, sendo que esta última, atualmente, faz parte da

sede do município, embora se mantenha com aspectos rurais. O critério para a escolha se

funda no fato de as três unidades territoriais partilharem uma mesma origem, a fazenda

Várzea Grande, uma mesma tradição oral explicativa da história do grupo, um mesmo

ancestral, conforme atesta Godoi (1999). Especialmente, a escolha se deu por a população se

caracterizar como camponeses do sertão do semi-árido, tema central deste trabalho.

A sede do município é composta por duas comunidades Barragem e Bairro São

Pedro, embora a população se refira sempre à sede como sendo só a Barragem.

A denominação da comunidade do centro se dá em função de uma barragem que

há na entrada da comunidade, na direção do acesso a São Raimundo Nonato. A comunidade

Barragem possui em torno de duzentas residências de alvenaria, cobertas de telhas, a maioria

ligada uma à outra, com cores amenas, em tom envelhecido, embora denuncie uma idade

recente. Com efeito, são cores desbotadas pela força do sol ou pela qualidade inferior da tinta.

Essas casas estão distribuídas ao longo da BR 020, em que fica a avenida central, muito larga,

que nem aparenta ser uma avenida só, mas duas ruas, cada uma limitando-se com a BR, com

um jardim de plantas, algumas da caatinga e um chafariz entre a fileira de casas e o limite

com a BR. O referido jardim é fruto de um projeto financiado pelo poder público para

arborização da avenida, movido pelas concepções de convivência com o semi-árido,

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trabalhadas no Projeto Fecundação32. É recente e já conta com dificuldade de manutenção

pela escassez de água no período sem chuvas. Nos festejos do padroeiro (São Pedro), que

acontece no mês de junho, esta área serve para acolher as barracas dos diversos comércios que

ali se instalam.

No festejo de 2004, havia dez barracas, duas com paredes de varas e oito com

paredes de palhas ou rodeadas por cercas de arame. Tetos recobertos por uma fina camada de

palha, de forma que não vedava, apenas dava uma proteção parcial, permitindo ver lua e

estrela, no horário mais freqüentadas. Todas com venda de bebidas alcoólicas, refrigerantes e

comidas típicas: carne de sol, galinha, carne de bode refogada, beijus, dentre outras. A

freqüência era grande. Muitas pessoas – homens, mulheres, jovens, crianças, sentavam-se ao

redor de pequenas mesas, consumindo bebidas alcoólicas, refrigerantes e comidas ou

trafegavam entre as barracas e a fileira de casas da avenida, num movimento contínuo nos

clubes dançantes, cada um deles com uma banda tocando ritmos baianos e forrós, numa

mistura de sons que se somava à música mecânica das barracas (forrós e ritmos baianos). Esse

desconforto auditivo era multiplicado pelo barulho de motos, que circulam pelo local.

De um lado da avenida central, além das residências, há o Sindicato de

Trabalhadores Rurais, dois clubes dançantes, uma pensão, Igreja, casa paroquial, centro de

formação, escola e estabelecimentos comerciais, entre estes, bares, mercearias e outros. Do

outro lado, também há residências, pensão, estabelecimentos comerciais, um posto de

gasolina em construção, roças e currais. Atrás de cada um dos lados da avenida, há

residências, uma pequena praça, a prefeitura, um outro clube dançante e estabelecimentos

comerciais. A praça é muito pequena, murada com uma grade acima do muro, com bastantes

plantas e algumas flores vermelhas e amarelas.

As residências são modestas, de adobe cru e algumas de tijolos de cerâmica,

cobertura de telhas, tamanho mediano, com dois ou três quartos, pisos de cimento grosso e

algumas com piso de cimento liso. Os tetos das casas, nesta comunidade, revelam uma

adaptação às condições climáticas: são construídos com os dois lados confluindo para uma

bica central, que serve para escoamento da água e sua devida captação para uso doméstico.

Justificam que, assim, economizam com as bicas para colher água da chuva, sendo que em 32 O Projeto Fecundação é uma atuação de ONGs: Cáritas Brasileira – Regional Piauí e Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA em parceria com o poder público municipal e financiado pela Cáritas Alemã, que está sendo desenvolvido no município desde 2001. O projeto é composto de três linhas de ação: iniciativas produtivas, recursos hídricos e educação para convivência com o semi-árido.

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vez de duas, fazem apenas uma. Algumas poucas casas demonstram nível social diferenciado,

sendo maiores e construídas com material de custo alto.

No sentido norte-sul, à direita, há um acesso à Cerâmica Serra da Capivara e ao

percurso boqueirão da pedra furada do Parque Nacional da Serra da Capivara. O referido

acesso é feito em estrada de terra, que se encontra em estado crítico de conservação, com

muita poeira, disposta num beco entre duas roças com cercas de arame, passando por uma

baixada, na verdade, um leito seco por onde corre um riacho em períodos chuvosos. Há

relatos de que, quando as chuvas são intensas, a passagem fica impedida.

Este é o acesso de ligação entre a comunidade Barragem e a comunidade bairro

São Pedro, antiga Rua Velha, que compõe a sede do município, embora haja uma nítida

separação física e social entre ambas, sendo o segundo considerado de origem popular.

O bairro São Pedro começa a partir do beco do acesso já referido, que se bifurca

em dois, após três casas, confluindo ambos para a área central da comunidade. Esta é uma

área retangular com uma igreja no centro, um grande espaço vazio, onde, segundo contam,

havia uma feira em tempos antigos. Esta área é ladeada por residências, um clube dançante e

uma escola desativada, a primeira escola da comunidade. O lado esquerdo do retângulo (sul-

norte) segue rumo norte, com diversas casas e roças, sendo que, numa destas roças, há as

marcas da antiga sede da Fazenda Várzea Grande.

Ao todo, a comunidade possui setenta e cinco casas, dentre estas seis desabitadas,

um delas em ruínas, num total de sessenta e nove famílias. Além da referida escola

desativada, há dois chafarizes e um “tanque” (açude).

Do lado esquerdo da comunidade, ladeando o açude, há uma via de acesso ao

parque e a outras comunidades do município. É uma estrada de chão, em bom estado de

conservação, disposta num beco entre roças. No percurso, há um pequeno barreiro, que seca

logo no primeiro mês de sol, vários pés de juazeiros, de um verde mais intenso ainda ao

contrastar com o cinza da caatinga mais herbácea e arbustiva no início do percurso e mais

arbustiva e arbórea nas proximidades do Parque Nacional da Serra da Capivara.

O tipo herbáceo da área pesquisada, segundo pesquisa da FUNDHAM (1998), é

pouco desenvolvido, mede de 0 a 0,5 metro, cobertura inferior a 10%; o tipo arbustivo baixo é

uma espécie que mede de 2 a 4 metros, com cobertura de cerca de 30%; o tipo arbustivo alto é

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composto de arbusto e muitas trepadeiras, medindo de 2 a 4 metros, com taxa de cobertura da

área em torno de 75% e o estrato arbóreo baixo tem cobertura menor, em torno de 10%,

composto por árvores de 6 a 8 metros. Consiste numa formação vegetal característica de

caatinga arbustiva densa, em que se podem encontrar, nos terrenos planos, manchas de

caatinga arbustiva e arbórea, nas vegetações das proximidades dos vales. A cobertura do solo

pela vegetação e folhas secas e outros detritos é de 5%, já a cobertura por seixos é

significativa entre 15 a 25%. Todos os estratos herbáceos perdem as folhas na estação das

secas pelo processo de caducifolia, dando-lhe um aspecto de mata seca, garranchenta e

espinhosa. Tais espécies têm aproximadamente de 10 mil a 12 mil anos de história de

adaptação ao calor e a muitas horas de insolação durante o ano.

Depois de aproximadamente 2,5 km de percurso, encontra-se a primeira residência

da comunidade Barreiro Grande. Ao todo, são dez residências conjugadas com roçados, todas

de tijolos e telhas. Três delas estão desabitadas, uma habitada parcialmente (a família mora na

sede do município, só a figura masculina do casal vem diariamente cuidar da roça e dos

animais), totalizando seis famílias residentes. As casas estão distantes uma das outras, ao

longo do vale, encaixadas nos micaxistos sobre os solos mais férteis.

Há ainda um total de dezesseis roças a partir do acesso, incluindo a comunidade,

além das roças vizinhas às residências; dois apriscos; uma casa de mel desativada; um

“tanque” (açude), dois “caldeirões” (cisternas).

Na seqüência, encontra-se a comunidade Barreirinho, disposta na mesma

conformação física da comunidade anterior: um corredor, uma espécie de zona intermediária33

entre o “baixão” e a “chapada”34. A estrada passa muito próximo das casas, ficando pouco

espaço para os quintais, já que no fundo estão as roças e, mais adiante, a Serra da Capivara.

São dezenove residências conjugadas com roças, sendo que duas estão

desocupadas e uma delas em ruínas. Há ainda três casas com currais e uma cerâmica onde se

trabalham os motivos baseados nas inscrições rupestres do Parque.

33 O que chamo aqui de zona intermediária é uma espécie de transição entre as chapadas e os baixões, contendo características de ambos, ou seja, contém focos de umidade, típica dos baixões, mas também de terras mais secas, características das chapadas. As práticas também se mesclam: plantam e criam. 34 Para Godoi (1999) a espacialidade referida organiza-se claramente num par de oposição – baixão/chapada – que assim se estabelece devido à forma diferenciada de ocupação. No baixão, há mais umidade, o que favorece a agricultura e as chapadas são utilizadas como fonte de recursos naturais. No trabalho de pesquisa, também constatei o par de oposição e entre os dois opostos há o que chamo de zona intermediária, referida na nota acima.

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A terra está loteada em parcelas entre vinte e quarenta hectares, todas compostas

das três especificidades: área de baixão, zona intermediária e chapada. As roças são feitas,

preferencialmente, nos baixões, mas também nas chapadas.

Sueli: o senhor tem terra?

Manoel Lourenço: tenho, tenho dez hectares de terra.

Sueli: Já tá toda explorada?

Manoel Lourenço: tá não, tem muita caatinga ainda. Só trabalha aqui onde você tá vendo aí. Nesse trecho que você tá vendo aí.

Sueli: é de chapada ou de baixão?

Manoel Lourenço: tem chapada e tem baixão. Planta mais no baixão, mas planta também na chapada, faz uma rocinha e planta milho, feijão, melancia, mandioca. No baixão, também planto feijão, milho, melancia, mandioca, abóbora. Tudo dá bastante, mas no baixão dá melhor. (comunicação oral)35

Como se pode notar, a ordenação territorial do sítio apresenta um modo de vida

amplamente permeado por aspectos tipicamente rurais. Seja nas moradias conjugadas com as

roças, nas práticas culturais no processo de apropriação da natureza, seja nas imagens,

discursos e representações sociais, o que fundamenta a escolha para o adensamento da

pesquisa.

2.5. Território: ancestralidade e localismo na construção da identidade sertaneja

2.5.1. As conquistas de Vitorino e a relação de parentesco na memória semi-mítica

Todo esse conjunto forma um território único, que tem origem no povoamento da

região. A comunidade bairro São Pedro foi a sede da fazenda, o primeiro povoamento da área,

a partir da ação colonizadora. As duas comunidades Barreiro Grande e Barreirinho formavam

o fundo de pasto da fazenda, área de pastagem dos animais, como já referido, embora haja

quem diga que a sede da fazenda era mais próxima da serra que era para espantar os índios:

“E aí se estabeleceu por aí. Ele ficou onde é hoje a sede, onde fica hoje o sítio do Mocó36,

ficou pra lá com a esposa. E nesse tempo que ele chegou, os habitantes ainda eram os índios”

35 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes. 36 A comunidade Sítio do Mocó fica muito próximo da serra, no reverso da cuesta.

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(comunicação oral).37 Ficando a sede da fazenda na barragem, no barreirinho ou no sítio do

mocó, tratava-se de apenas um território, o do processo de colonização do lugar.

Há na memória do lugar, a dizibilidade de que o seu ancestral comum, o véio

Vitorino, ganhou as terras por ter matado os índios, sendo agraciado com três fazendas: Serra

Nova, Boqueirãozinho e Serra Talhada. A Fazenda Serra Nova passou a chamar-se Fazenda

Várzea Grande, em 1º de abril de 1855, conforme documento (figura 8), estando encravada no

Distrito Eclesiástico de São Raimundo Nonato.

Sim, era o bisavó de minha mãe. Isso aqui era uma mata, só tinha caboco brabo, ele morava na lagoinha ali embaixo. Aí depois que ele correu com os cabocos, tinha muito aqui na Serra Nova, depois que ele foi na Teresina, o governo deu essa fazenda pra ele da Barragem até o Sítio [grifo meu]. Era o que eu ouvi falar. Os mais velhos. Aqui era só uma matona, ele queria situar, como assituou, esse baixão era um rio de água, tinha todo bicho aí. No tempo dos cabocos, antoce era essa mata aqui, aí disse que mataram um filho dele e foi brigando mais os cabocos, aí ele botou pra correr, que diz que aqui era uma aldeia (comunicação oral)38.

A fala acima enuncia a história de ocupação do lugar, o conflito no processo de

apropriação, “correu com os cabocos” (os índios), e a representação das populações locais (os

índios) como extensão da natureza. De fato, como já apontado por Godoi (1999), há uma

memória semi-mítica que une as pessoas do lugar: a história da ocupação original, a do

Vitorino Dias Paes Landim, que cada um conta à sua maneira, mas sem deixar de registrar as

marcas da violência em que se deu o processo e sem deixar de se incluir na relação de

parentesco com este ancestral:

Geraldina: o Vitorino chegou aqui, ele foi que desabitou os índios daqui, foi, foi. Desabitou. Quando ele chegou aqui, só tinha índio. Aí ele chamou a família dele toda aí começou. Tem muito parente dele aqui (comunicação oral)39.

O relato acima aponta para um tempo da natureza (presença de índios) e outro da

cultura (chegada de Vitorino), naturalizando o processo de ocupação, sem o reconhecimento

de apropriação do que já estava apropriado pelo ato de “desabitar” os índios.

Nesse processo, as falas enunciam uma ancestralidade latifundiária através de uma

posse tomada, nos marcos do sertanismo de contrato: 37 Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 31/05/2004, com Marciano de Sousa Lima. 38 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes. 39 Entrevista realizada na comunidade Bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Geraldina Dias da Costa.

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Naíldes: tinha três fazendas aqui quando o Vitorino tomou posse, era três fazendas: fazenda boqueirãozinho, fazenda serra talhada e fazenda serra nova. Essa fazenda serra nova passou a fazenda várzea grande, quando foi criado o povoado, aqui ainda era a fazenda (comunicação oral)40.

A memória legitimadora traz à tona a “posse tomada” com a desabitação dos

índios. Justifica-se, com a força do documento escrito, o prêmio por heroísmo: o ancestral

venceu batalhas por isso ganhou grande extensão de terra.

Beloniza: esse Vitorino, por que ele foi um dos vencedores da batalha do jenipapo, ele foi chamado e ele foi se representar lá com o batalhão dele e lá venceu e aí o governo falou pra ele que escolhesse uma dessas três fazendas (comunicação oral)41

Naíldes: foi no dia primeiro de abril de mil setecentos e cinqüenta e cinco, tá lá em casa escrito, quando ele recebeu essas terras, tá tudo escrito (...) do tio Sancho, tá escrito a data que ele recebeu essas terras e fala na batalha que ele venceu. Fala que ele expulsou os índios (comunicação oral)42

Com efeito, a representação de uma ancestralidade heróica é confirmada na

dizibilidade comum, o que se confirma no trecho abaixo:

Dona Alta: era. O Marciano, meu marido, era parente do Durão.

Sueli: quem era o durão?

Dona Alta: era o Vitorino. Dizem que era valentão. Eu conheci uma boa parte do povo dele, mas não foram os velhos de primeiro não. Já foram os novatos. Ainda conheci (comunicação oral)43

O depoimento abaixo enuncia elementos que modificam a história, mas confirmam

as representações da ancestralidade heróica, violenta, astuta, com fortes laços familiares, com

o acréscimo de legitimação por defesa (“os índios mataram um filho dele”), pelo Estado e

pela religião. Alude também o não extermínio cabal dos índios “quando vieram dar conta que

estava era acabando com eles (...) aí desapareceram”. Nesse sentido, os índios não teriam

morrido todos, mas sim ido embora para se salvar44:

40 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes. 41 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Beloniza dos Santos Paes. 42 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes. 43 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Alta Maria dos Santos. 44 Como observação adicional, esta fala pode ser tomada, metaforicamente, como significativa no âmbito da questão piauiense em torno da existência ou não de remanescentes indígenas no Estado.

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A árvore genealógica da gente é muita coisa. O certo é que de acordo com o que eu investiguei eu sou descendente dele. Eu já ouvi muito falar muita coisa, uma delas contada pelo Durval, que tá muito doente, não dá mais conta de contar. Eu vi uma vez ele contando que o Vitorino veio de São Paulo, segundo o Durval. Diz que ele mexeu com uma moça, que diz que era até freira, aí ele não queria casar com a moça e ela era de uma família boa de condição. Naquele tempo não existia nem transporte ainda. Aí arrumaram umas pessoas e jogaram ele de lá pro Nordeste. Aí ele chegou na Bahia, em Casa Nova, lá casou com uma moça, de uma família política forte lá da cidade, e aí com o tempo se envolveu numa revolução, numa guerra aí, foi quando ele veio pro Piauí, lutando pra defender. E aí quando concluiu, combateu os adversários, o governo procurou o que ele queria em troca do trabalho dele, aí ele preferiu essa fazenda aqui, a Fazenda Várzea Grande. E aí chegou por aqui já acompanhado pela esposa, com os filhos, uma irmã com o esposo também. E aí se estabeleceu por aí. Ele ficou onde é hoje a sede, onde fica hoje o sítio do Mocó, ficou pra lá com a esposa. E nesse tempo que ele chegou, os habitantes ainda eram os índios. A história que eu ouvi falar é que de início ele não mexeu com eles, foi cuidando em trabalhar sem bulir com eles. E aí, não sei o que aconteceu, os índios mataram um filho dele, aí, a partir desse acontecido, ele procurou matar os índios, por que eles tinham matado primeiro o filho dele, enquanto não acabou com eles não parou. Até conta essa historinha que ele fazia era pegar um bacamarte e entrava pra essa margem aí de serra, a serra nova, a procura mesmo como o caçador procura as caças no mato. E aconteceu, um dia, que andava procurando eles quando se encontrou puxou o gatilho e não funcionou aí, pra se defender, ele correu, mas sabia de uma árvore que cabia uma pessoa dentro, tinha uma fenda muito grande, ele entrou lá, conseguiu entrar, aí tava tudo molhado, os índios saíram atrás dele, quando um chegou pra pegar ele, aí ele matou um, entrou outro, ele matou também, aí eles desistiram, correram e ele correu pra morada dele, foi se preparar pra combater com mais afinco. E ele fez foi uma coisa forte, contratou músico pra tocar, chamaram os índios, o padre, o padre era pra ir consagrando os índios pra morrer e outros era pra ir degolando. Aí era morrendo índio, os índios admirados com os preparos da festa e morrendo tudo. E aí quando eles vieram dar conta que estava era acabando com eles, já tava um número muito pequeno, aí esses desapareceram, aí o Vitorino ficou a vontade, não teve mais com quem combater, foi viver sua vida tranqüilo, construindo até morrer, que nem sei o final como ele morreu. Contam que ele era um homem muito forte, que ele matava um boi com um murro (comunicação oral)45.

Nas estratégias de reprodução social do grupo que se constitui a parte dessa

ancestralidade heróica, a relação de parentesco é uma forma de inclusão social, pela

genealogia, naquele território. Quem não se vê como parente sanguíneo põe-se numa posição

de parente por afinidade, através, por exemplo, da aliança matrimonial:

Silvera: foi nesse tempo mesmo. No tempo daquelas maniçobas apareceu muita gente de fora pra trabalhar, os que apareceram, um bando deles ficou por aqui mesmo.

Sueli: casaram com as moças daqui?

45 Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 31/05/2004, com Marciano de Sousa Lima.

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Silvera: é, casaram com as moças daqui e aqui mesmo ficaram.

Sueli: as moças daqui naquele tempo casaram tudo?

Silvera: casaram, muitas casaram. Vinha gente de fora, casava aqui mesmo ficava, mas agora vem muita gente de fora, se ilude com um com outro e quase nada dá certo. De primeiro dava tudo certo, agora é que não tá sendo (comunicação oral)46

Sueli: na época da maniçoba veio muita gente de fora pra cá?

Dona Isabel: a época da maniçoba foi em dezesseis, dezesseis pra vinte, até trinta ainda tiravam maniçoba. Veio muita gente de fora, da Bahia, do Pernambuco e se casaram tudo aqui. Mas era pobreza, pobreza, as pessoas que vinham de fora passavam muita fome, uma fome terrível (comunicação oral)47

O passado comum serve de matriz (habitus) para os atuais laços de uma família só,

um pertencimento comum, a comunidade nessa lógica camponesa:

Dona Isabel: tem. O Vitorino era Paes Landim e Dias. Os mais velhos tudo têm Dias pelo meio. Aqui é uma irmandade muito grande. Uma família só. O Vitorino era tataravô nosso, o compadre Sancho é que dizia (comunicação oral)48.

Sueli: vocês têm parentesco com o Vitorino?

Gérson: sim, meio longe, mas sim. Aqui todo mundo é parente dele de qualquer maneira. É parente mesmo, eu falei longe, mas não é tão longe assim não, meu bisavó já vem ser primo dele, por longe, mas de certa forma é da família (comunicação oral)49

A este passado semi-mítico comum, a memória coletiva procura agregar uma

imagem mais recente, mas devidamente ligada à primeira: o Coronel José Dias, como parente

do Vitorino Dias Paes Landim:

Sueli: e o Coronel José Dias?

Dona Isabel: era daqui também. Era parente do Vitorino, da mesma família. O pai dele chamava-se Mariano. O Coronel José Dias era um velho muito bom, esse eu conhecia. Era amigo da gente, era muito meu amigo. Era amigo desse povo todo. Era amigo dos parentes. Esse povo quando ia lá na casa, ele recebia tudo muito bem. No começo da vida dele, ele vivia de roça. Depois

46 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 30/05/2004, com Silveira Pereira Paes. 47 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 48 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 49 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.

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ele virou promotor, advogado. Era grandão. Casou a família tudo com gente rica e aí foi levantando.

Sueli: e ainda tem parente dele por aqui?

Naíldes: sim, por que ele foi uma pessoa, um desbravador, lutou muito por essa terra aqui, como advogado, como promotor, foi promotor de justiça e advogado, chegava o pessoal daqui, dos familiares deles, qualquer coisa que queriam, ele é que resolvia tudo pelo pessoal daqui, pros familiares do coronel e foi quem arrumou pra que aqui passasse a povoado com esse nome Várzea Grande, foi ele, foi quem criou a primeira escola pública, foi ele, no antigo povoado foi ele. Ele tinha as raízes dele aqui plantadas, foi quem trouxe o desenvolvimento pra cá, o desenvolvimento pra que passasse, primeiramente passou, aqui num era nem....(comunicação oral)50

Sueli: e do Coronel José Dias?

Gérson: mais próximo, meu avó era primo dele (comunicação oral)51

Nesta associação, ressalta-se, no entanto, uma diferença entre as duas imagens: a

de Vitorino associado à violência e a de Coronel José Dias, a de liderança, como se a imagem

de um fosse a correção da imagem do outro:

Naíldes: Até que a Niede Guidon botou aí nos jornais que tinham colocado o nome da cidade o de um matador de índios, a família do Coronel José Dias até já colocou advogado. O Zé Dias não tem nada a ver com isso, quando ele nasceu, não existia mais índio aqui não. Quem achou índio foi o Vitorino. O Zé Dias era da época de papai, da era de 1800, papai era de 28 de dezembro de 1879. Então o Zé Dias era mais velho do que o papai, mas era pouco. Era dessa época também. E essa história do Vitorino era do outro século, então quando o Zé Dias nasceu, que ele não foi nem criado aqui, saiu daqui menino, não tinha mais índio aqui não. Os índios já tinham sido expulsos, ele não tem nada a ver com os índios. Agora o velho, que foi o primeiro que chegou aqui, esse sim, foi quem expulsou e tomou conta das terras aí (comunicação oral)52

Pode-se inferir, então, que, de fato, nos níveis local e regional, há uma identidade

espacial construída e em processo de construção contínuo, com passado, presente e

perspectiva de futuro, em imagens, simbologias e discursos, representações no sistema de

imaginário social, por ser este, como dito por Morin (2001) um sistema fechado e aberto. Por

um lado, fecha-se, reagindo às intervenções violentas, sendo a estas ora mais, ora menos

vulneráveis. Por outro lado, essa vulnerabilidade é, também, sua capacidade de abertura para

dialogar com outras identidades, o que lhe dá o caráter, permanentemente, processual.

50 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes. 51 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos. 52 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.

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A espacialidade referida entrecruza-se com as temporalidades num processo

intercultural que enuncia as identidades. No caso, as imagens e suas simbologias indicam

representações sociais que delineiam uma territorialidade mais ampla, o semi-árido, a

comunidade, o território Várzea Grande, um código de pertencimento, o passado comum a

partir do tronco véio Vitorino, que deu origem à grande família. Aprofundando os sentidos da

construção da espacialidade, a partir dos significados atribuídos localmente, abordarei, no

próximo capítulo, o sistema do lugar.

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CAPÍTULO III

O SISTEMA DO LUGAR E SUAS INTERLOCUÇÕES NOS LABIRINTOS SEMI-ÁRIDOS DA VIDA SERTANEJA

Neste capítulo, aborda-se o sistema do lugar como algo que possui um eixo

norteador e, ao mesmo tempo, não é estático no tempo e no espaço. Para tanto, analisa-se um

itinerário histórico que se pode denominar cultura camponesa local e sua ancoragem, o

sistema do lugar, em suas relações interculturais em temporalidades diversas.

3.1. Habitus e os princípios sistêmicos

O lugar existe não apenas por sua materialidade, mas também pelo que é dito e

visto, ou seja, pelos discursos e pelas imagens tradutoras das representações sociais que

emergem do conjunto de relações sociais, inclusive, com a natureza. Assim, constituem-se

campos de memória, que se entrelaçam formando o tecido sócio-espacial do sistema do lugar

(GODOI, 1999), ao sabor das relações de poder, práticas culturais, experiências de vida,

costumes, imagens dos indivíduos, da natureza e da apropriação da natureza pela cultura.

Enfim uma multiplicidade dinâmica e histórica, em que cada contexto acomoda, em seus

campos de memória, produzidos também pela mesma dinâmica, as estruturas do sistema do

lugar.

A concepção de sistema do lugar, no caso, vincula-se estreitamente à relação entre

cultura e natureza e dialoga, teoricamente, com a categoria habitus (BOURDIEU 1994)53 e

com a visão sistêmica de autores como Morin (1982, 1999 e 2001) e Prigogine (1996).

Para Morin (2001), em sua teoria da complexidade, numa perspectiva não-

reducionista e pós-cartesiana, ainda em gestação, a visão sistêmica parte da concepção sobre

sistema de idéias, definido como:

Uma constelação de conceitos associados de maneira solidária, cujo agenciamento é estabelecido por vínculos lógicos (ou com tal aparência), em virtude de axiomas, postulados e princípios de organização subjacentes. (...) As idéias reunidas em sistemas (...) podem ser consideradas como unidades informacionais/simbólicas que se atraem em função de afinidades próprias ou de princípios organizacionais (MORIN, 2001: 158)

53 Como referida na introdução e no capítulo I desta dissertação.

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Os sistemas de idéias são dotados de um núcleo com axiomas, regras fundamentais

que o legitimam e de subsistemas dependentes e interdependentes que lhes dão segurança,

comportando assim auto-organização e autodefesa. No corpo da idéia de sistema, constam as

noções de ordem, desordem e organização, intrínsecas a todos os sistemas, de modo que

ordem-desordem é uma relação de dimensões inseparáveis que tende a estabelecer a

organização. Nesse sentido, o movimento entre equilíbrio e desequilíbrio é, de fato, uma

espécie de desordem organizadora, visto que a perturbação, o desvio, a dissipação (fora de

equilíbrio) podem produzir uma estrutura, ou seja, uma nova organização e equilíbrio

(MORIN, 1982).

Este autor considera o referido processo como sendo fundamental à evolução do

universo, na medida em que é norteador da relação dialógica e ao mesmo tempo una,

complementar, concorrente e antagônica. Tudo isto aponta para a idéia de sistemas abertos e

fechados ao mesmo tempo: fechados para se proteger e abertos para se alimentar, o que, por

sua vez, indica os três princípios sistêmicos que se inter-relacionam: o dialógico, o recorrente

e o hologramático.

O princípio dialógico consiste em manter a unidade de noções antagônicas, ou

seja, unir o que aparentemente deveria estar separado, o que é indissociável, com o objetivo

de criar processos organizadores e, portanto, complexos. Nesse sentido, retoma-se, como

referido por Morais (1992), a questão da relação entre natureza e cultura, separadas, no

mundo ocidental, por um abismo ontológico. Trata-se, portanto, de repor esses dois termos em

sua indissociabilidade e aprofundar a natureza dos seus diálogos, no caso em questão,

envolvendo populações humanas e o ambiente semi-árido.

O princípio recorrente é o que nega a determinação linear, que promove a criação

de novos sistemas, podendo ser esta criação entendida como processos em circuitos, de modo

que os efeitos retroagem sobre as causas desencadeadoras. É mais que um circuito e que uma

retroação reguladora, presentes na cibernética. É um processo organizador necessário e

múltiplo que envolve tanto a percepção como o pensamento. Nesta dimensão, tem-se o

próprio objeto de estudo aqui apresentado, tratando-se, portanto, da recorrência entre

imaginário social, habitus e práticas socioculturais no referido ambiente.

O princípio hologramático apresenta o paradoxo dos sistemas em que a parte está

no todo assim como o todo está na parte, como supõe a dialética. É como a totalidade do

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patrimônio genético que está presente em cada célula. Concebe a imagem física do

holograma, que concentra em si todos os pontos e é projetada no espaço em três dimensões.

Sua projeção remete à imagem do objeto hologramático com sensações de relevo e de cor. O

rompimento de uma imagem hologramática não apresenta imagens mutiladas ou

fragmentadas, mas imagens completas multiplicadas. Nesse sentido, por exemplo, pode-se

tomar o estudo de caso localizado, em suas especificidades, numa determinada região do

semi-árido piauiense, para compreendê-lo em si e em seus diálogos com totalidades mais

abrangentes, desconstruindo e reconstruindo os diversos níveis de totalização que se

encontram imbricadas na análise: Brasil, Nordeste, Piauí, Coronel José Dias e comunidades

de adensamento da pesquisa: bairro São Pedro, Barreiro Grande e Barreirinho.

Essas concepções contribuem na fundamentação do que estamos considerando

sistema do lugar. Algo que não é fixo, embora tenha suas estruturas de auto-produção e

reprodução, o seu eixo norteador, o seu habitus. E foi sobre esse sistema do lugar que nos

debruçamos na pesquisa, focando-o na sua peculiaridade relacional entre cultura e natureza,

ou melhor, sobre os processos culturais de apropriação da natureza, com o fito de examinar

mais de perto o imaginário social que se encontra presente no processo de condução do

território investigado, numa situação de crise eco-social, assim como de imaginários outros

que apontam para a busca de solução dessa crise.

Para tanto, a pesquisa de campo permitiu focar o objeto sistema do lugar, na sua

especificidade relacional entre natureza e cultura, vivenciando uma crise eco-social com

origem em relações de um passado, que encontrou estruturas no presente para se revitalizar. O

conjunto crísico do presente foi analisado em diálogo com dois outros momentos do passado,

como parte de um mesmo processo violento de intervenção no referido sistema do lugar.

Os discursos e as imagens são trabalhados com base nas três conjunturas: a

intervenção da cultura colonizadora, a intervenção da exploração da maniçoba e a intervenção

da cultura de preservação ambiental, no ambiente semi-árido do sudeste piauiense, mas

precisamente, no território Várzea Grande.

3.2 A instituição social da cultura camponesa no semi-árido piauiense: inícios

Não há muitos registros de pesquisa sobre cultura camponesa na região

investigada. Obra importante e referencial é a de Godoi (1999) que aborda trajetórias e modo

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de vida dos camponeses daquele sertão, como referido no Capítulo I desta dissertação. Como

se infere desse estudo, a cultura camponesa local nasce do assimétrico encontro entre cultura

européia colonizadora e o sistema do lugar dos povos nativos, dando origem à tradição do

véio Vitorino (GODOI, 1999) e com ela a tradição camponesa. Assim, com base na referida

autora e retomando a memória local camponesa sobre seus mitos de fundação, foi explorado,

nesta pesquisa, o processo de instituição da cultura camponesa local e seu imaginário da

relação entre natureza e cultura, pensando, então, o sistema do lugar, em sentido amplo,

supondo a cultura material e imaterial.

Como ocorreu em outras partes do território brasileiro, também no sudeste

piauiense, através da violenta intervenção colonizadora, as populações locais, chamadas de

índios, foram mortas ou expulsas, tiveram suas terras usurpadas e, em grande parte, seus

saberes ignorados, sendo tomadas como extensão da natureza e expulsas para espaços

selvagens e para um tempo fora da história. Em lugar das relações entre natureza e cultura

pelas quais as populações nativas exerciam baixa predação antrópica no ambiente natural,

estabeleceu-se a espécie de contrato socionatural e político, que vigorou até o final do século

XIX, na região, e que está na origem da territorialização fundada em grandes fazendas de

gado vacum.

De fato, esse processo deu-se por confrontos tanto entre natureza e cultura quanto

entre culturas. No primeiro momento, num dos pólos, estão os índios, tidos como natureza, e

quase exterminados. No outro, os colonizadores que impõem um padrão determinado no

âmbito do qual os vestígios culturais dos dominados ganharam o contorno de cultura

ameaçada (GRUZINSKI, 2003), por isso assimilada à cultura do vencedor, em cujo processo

de implantação foi sendo estabelecido um outro habitus, que possibilitou o surgimento da

cultura camponesa, uma síntese das culturas originais em confronto.

A quase dizimação das populações locais originais, das quais restam apenas

vestígios culturais de forma submersa, levou consigo, em grande parte, o habitus que permitia

criar outras estratégias de convivência com as condições ambientais. Ao longo de dois ou três

séculos, esse processo acabou por gerar uma cultura de flagelados da seca, fruto do

descompasso entre condições ambientais, ações humanas, quer individuais, quer em forma de

políticas públicas, que provocam situações de crise ecológica e social, como referida na fala

transcrita a seguir:

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Olha, lá tinha uma velha, eu alcancei, tinha uma velha Beduína, ela contou que a seca de setenta e sete [1877], ela era menina, a mãe tinha morrido, lá era fazenda, não tinha cidade não. Aí ela disse que quando ficou com os meninos aí a seca escanchou. Aí ela disse que ia na casa da iaiá, vou já na casa da iaiá, a iaiá dava uma coisinha, dava um jerimum. Quando foi um dia tava tudo acamado com fome, tudo cum fome, deitado. Aí ela disse, oh, meus filhos, eu vou caçar o que vocês comerem aí pegou uma faca e uma cuia, uma cuia grande e foi no rumo do Canto do Buriti. Lá no pé daquela serra, lá morria muito gado, morria muito gado, chegou lá. Gado gordo morria de sede, na beira da lagoa não tinha mais água, só tinha lama. Eles chupavam ali, depois caiam. Aí ela disse que achou uma vaca morta, o urubu ainda não tinha bulido. Foi com uma faquinha, tirou o couro, tirou o couro, eu gostava de conversar mais ela por que ela me contava tudo. Aí ela encheu a cuia de carne e correu pra casa, quando chegou: oh, meus filhos, vocês comem nesse instante. Aí botou no fogo, só fez aferventar, os meninos tudo comendo, doido de fome. Aí foi na casa da iaiá pra arrumar um sal pra salgar o resto. Aí acabou a fome” (comunicação oral)54.

Sem dúvida, o referido contrato socionatural e político que se torna hegemônico, a

partir da colonização, estabelece relações entre cultura e natureza em descompasso com a

capacidade do suporte natural local. Isto se revela, por exemplo, na criação de animais pouco

resistentes às condições climáticas de semi-árido, caso do gado vacum referido, que morre de

sede durante as longas estiagens e da plantação de espécies pouco resistentes às estiagens,

como o milho [Zea mays]. A questão tem sido lida, desde 1877, ano de grande decadência da

economia do Norte (no caso o Nordeste atual), quando a seca foi transformada em grave

problema social como um processo de vitimização da cultura pela natureza. Isto significa

dizer que, nesta ótica, a natureza expulsa a população, fechando-lhe todas as possibilidades de

subsistência. Assim, restaria, apenas, a alternativa da migração. Com isto, de fato, procede-se

a uma espécie de naturalização da cultura: a natureza é o outro da cultura, do humano; é hostil

e expulsa os humanos do ambiente55. Tal situação é explorada à exaustão na literatura oral e

escrita, na imprensa e no cinema, sobre o Nordeste, pensando em termos da circularidade

(GINZBURG, 1989)56 dessas imagens, vamos encontrá-las também nas falas das pessoas que

vivem na região semi-árida:

Sueli: e nos anos de seca, você se lembra como é? Como que é a vida?

Gérson: lembro, a dificuldade é grande. Quando pesa, que não tem pra onde, procuram sair, trabalhar fora. Trabalhar fora [grifo meu].

54 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 55 Sem dúvida, vale considerar as explicações de caráter biológico para as estratégias de reprodução social da vida nas regiões semi-áridas das quais fazem parte a migração tanto de outras espécies (os sapos, por exemplo) quanto da humana. 56 Ginzburg (1989) argumenta que não há uma contraposição entre códigos culturais provenientes de grupos sociais distintos, mas uma circularidade cultural filtrada pelos axiomas e condições de vida.

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Sueli: o senhor passou por isso?

Gérson: passei, na época do denoques [DNOCS], só tinha uma estrada de rodagem, foi no tempo que fizeram a estrada Fortaleza-Brasília, tem uns trechos que ainda não tá feito, mas o que feito foi na época de seca. E eu trabalhei lá, não tinha como trabalhar na roça e o jeito era trabalhar lá.

Sueli: e os bichos que criavam, o que faziam?

Gérson: a maioria, o que não servia pra vender, morria mesmo, porque não tem pra onde [grifo meu], além do pasto a falta de água (comunicação oral)57.

Dona Alta: foi a de trinta e dois [1932], eu já era moça. O povo tudo nu. Esquentando fogo no munturo. Morreu muita gente de fome. Morreu de fome e enterrado nu. Bem aqui nessa Várzea Grande foi enterrado um nu, numa esteira. Não tinha rede, num tinha roupa. Quem tinha uma camisa dava pro outro. Aí deus foi ajudando, ajudando, uns pegavam um tatu, outros num pegavam nada. Quando achavam um lapicho num buraco, cadê a mistura pra comer, aí iam beber um caldinho.

Sueli: e o que é lapicho?

Dona Alta: lapicho é um bicho que tem no mato. Matavam pra beber um caldinho. Tem lapicho, tem gambá, tem raposa, tem mucura, tem bandeira, tem viado. Tudo isso tinha, mas não tem mais não. Os bichos morreram tudo.

Sueli: e os bichos morriam também?

Dona Alta: morriam de fome. Pau do mato, que a gente arrancava a raiz. Tu lembra do croatá [para Rosina – vizinha presente no ato da entrevista]. Tinha a macambira, aquele redondo, como é que chama? Mucunã. Isso tudo a gente usava pra comer. E a mucunã é bicho infeliz. Se não soubesse tratar fazia era inchar. Tinha que lavar em nove água pra fazer aquele cuscuz pra comer. Às vezes pra misturar num caldinho do preá. Pra poder comer, pra poder escapar. Aí desabaram o povo no mundo. Foram em riba, foram embaixo, desabaram tudo. Ainda eu tenho gente no mundo que eu nem sei dizer que é vivo ou se já morreu. Irmão meu. Nunca mais tive notícia [grifo meu] (comunicação oral)58

Nas falas acima, dois pontos merecem destaque: por um lado, a vitimização pela

seca, que, sem dúvida conforma todo o discurso. Por outro, o anúncio de que saberes da

cultura ameaçada dos nativos não haviam desaparecido completamente, estando, de fato, em

situação submersa. Nesta condição, quando se desenha a configuração de crise eco-social, por

ter aumentado o adensamento populacional e as novas formas de apropriação da natureza

semi-árida da cultura colonizadora não garantirem sustentabilidade a todos os membros do

57 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos. 58 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Alta Maria dos Santos.

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ecossistema, os referidos saberes submersos começam a emergir, como, por exemplo, a busca

de animais, plantas, raízes, ervas e frutos não-domesticados para a alimentação, inclusive, nas

formas de tratar plantas tóxicas, de modo que pudessem ser consumidas por humanos:

José Belisário: nos anos de seca, acontecia tudo que era ruim, o pessoal era muito pobre, os que tinham as coisas, criação, gado, não resistiam por que não tinha pasto pra aqueles bichos. Morriam de fome e sede. E gente morria era muito e as chuvas não tinha, quando dava uma chuva era muito pouco não dava pra nada, criava umas frutinhas pelo mato, mas só fruta braba, não era de comer, mas o povo comia. Tem uns paus que tinha raiz, ainda hoje tem, daí o pessoal mais velho, que fosse pai, parente que criasse, fazia daquelas batatas de pau, fazer o tipo de uma mistura de qualquer maneira pro pessoal comer. Tinha uma raiz de pau que chamavam de sipipira, ainda hoje tem ela, e outros mais que eles faziam, davam um jeito de fazer uma farinha (comunicação oral)59

Nesse sentido, ganha importância o tema da constituição dos saberes e práticas

camponesas locais, caudatários de universos culturais distintos: dos colonizadores e dos

nativos. No entanto, no âmbito das hierarquias sociais, a cultura dominante hegemoniza sua

racionalidade na relação estabelecida entre cultura e natureza.

Assim, visto, em termos de longa duração, o processo de redescoberta de saberes

das populações nativas não constituiu hegemonia até uma outra intervenção marcante, já no

século XX, também, violenta. Efetivamente, esta nova intervenção vinha violar códigos já

estabelecidos, na relação entre cultura e natureza que, no entanto, já se encontrava em

situação de crise eco-social gerada pela implementação de formas não sustentáveis de

apropriação da natureza semi-árida. Desta feita, a intervenção se deu em dois vetores: a

indústria da seca, em caráter mais amplo e a extração da maniçoba em termos mais restritos.

Sueli: aconteceu de em alguma seca a senhora não ter o que comer?

Silvera: aconteceu, ave-maria! Aconteceu demais! Em cinqüenta e três [1953] mesmo, em cinqüenta e três, foi ruim aqui, foi ruim, foi a primeira filha que eu ganhei foi em cinqüenta e três. Meu marido saía daqui, eu fiquei de resguardo. Vou lhe contar a vida do meu resguardo da minha filha mais velha. Oh, eu ganhei ela quase que morro, passei três dias sentindo, nunca fui em doutor não, médico nunca olhou pra mim. Aí quando foi pra ganhar ela, no dia de ganhar quase que morro, mas Deus ajudou que eu não morri não. Mas quando disse assim acabou de ganhar, ele botou o saquinho nas costas e entrou pra essa serra, pro Zabelê, pra essa serra aí. Foi furar maniçoba, furar uma maniçobinha pra trazer um quilinho assim [fazendo gesto com as mãos para mostrar tamanho pequeno], pra quando fosse no final de semana vender pro mode comprar o açúcar, uma farinhazinha, um

59 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com José Belisário de Miranda.

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pedacinho de carne pra eu comer no resguardo e eu cá, a coisa que eu tinha ganhado da roça nesse ano, era um pote de feijão. Panhei da roça, disbuei, uma mulher disse “o fulana, guarda pra tu comer de resguardo, que não faz mal, que é fejão ligeiro”. Eu guardei esse feijão, mas que o feijão eu não comia, ele furando a maniçoba, comprava uma carninha, eu comprava um litro de leite, botava pra coalhar, a mulher dizia “pode comer coalhada, que não faz mal”. Depois, esse litro de leite eu almoçava, quebrava o jejum e jantava, que eu nunca fui comedeira não, nunca fui de gostar muito de carne não. Na verdade, eu não gostava de carne não, minha comida de carne é muito pouco, eu não gosto de carne não. Aí passava. Ele ia, eu passei o resguardo, minha sogra, eu sozinha dentro de casa, mais essa criança e minha sogra morava assim perto. Com sete dias, quando ela saía, pegava uns pauzinhos de lenha, esta lenha, ela acendia um foguinho, botava ali a carne ali, ele pegava os pauzinhos de lenha, quando era de noite quando acordava acendia o fogo, podia precisar fazer um chá. Aí acendia uma velinha. Quando o menino acordava, eu acendia o fogo, e fazia o chá e dava o menino pra tomar (comunicação oral)60.

Com efeito, pela circularidade referida, o imaginário que dá sustentação à indústria

da seca ganha guarida nesta visualização do ecossistema, pelo prisma das secas como

instituidoras do mal, da fome, da sede, da miséria, castigo de Deus, em oposição ao

imaginário edênico, de muito verde e muita água e clima temperado, instituído desde a carta

de Pero Vaz de Caminha. Nesse processo, ocorre a naturalização dos efeitos das secas, a

culpabilização da natureza, a isenção da cultura e culturalização da natureza. Mas tudo isso é

produção cultural, ou seja, ver os efeitos das secas como causados pela natureza é uma visão

produzida pela cultura, de modo que o clima é manuseado pela fé, como instrumento punitivo

a quem desobedece às normatizações culturais.

Com efeito, o processo instituinte da cultura desenrola-se em um contexto

sociocultural entrecruzado por imaginários sociais diversos. Dentre estes, o processo de

pesquisa permitiu perceber um habitus eivado de representações sociais que dialogam com

duas matrizes: a das populações locais originais e a externa, a européia. Diálogo esse

estabelecido com base em uma relação violenta, que submeteu a cultura local à condição de

cultura ameaçada.

3.3. De camponês a peão maniçobeiro

No final do século XIX, após o marco zero da indústria da seca, o ano de 1877,

surgiu a exploração da maniçoba [manihot piauhyensis], em larga escala. E, nas primeiras

duas décadas do século XX, como referido, deu-se o boom da borracha da maniçoba no Piauí,

60 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 30/05/2004, com Silveira Pereira Paes.

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com maior concentração na região da Serra da Capivara, inclusive no território em estudo

(OLIVEIRA, 1998).

A maniçoba pertence ao gênero manihot, da família das euforbiáceas, que são

resistentes às condições climáticas de semi-árido, acumulando água no caule e nas raízes e

perdendo as folhas no período das secas. Sendo nativa na região, a maniçoba era conhecida

antes mesmo de sua entrada triunfal no mercado, mas sua exploração em larga escala se deu

com a descoberta de sua utilidade como fornecedora de látex para a indústria de borracha,

bem como pelo conhecimento do método de extração pela incisão na raiz para a extração

(OLIVEIRA, 1998).

Dona Isabel: não, a maniçoba era assim uma lapa assim [fazendo gesto com as mãos para apresentar o tamanho da fatia], eles furam o pé, um buraquinho no pé, sabe, aquele buraquinho e bota areia naquele buraco e dão uns gulepes na madeira aí ela corre naqueles gulepes. No outro dia é que o miserável vai apanhar pra botar num saquinho, eles tinham uns saquinhos, uns saquinhos pretos. Uns saquinhos pra botar maniçoba. Aí eles vendiam pra fazer a feira pra comer (comunicação oral)61

Sueli: e o que é lega?

Naíldes: Era um arame, num pau, que usavam pra furar o pé de maniçoba.

Sueli: e quem ensinou fazer isso aqui?

Naíldes: foi a necessidade de fazer. Papai dizia que apareceu alguém de fora pra comprar e pra furar e os daqui aprenderam. Eles pegavam esse arco, amarravam, botavam assim, sobrando um pedaço pra cima. Aqui eles colocavam dois anéis nessa parte que descia, um aqui, mais embaixo prendia aqui e outro que prendia aqui. Um anel fechado. O pau era curto e aqui em baixo era o cavador e lá quando eles chegavam no pé de maniçoba, cavavam, fazia um buraco redondo, pra chegar na batata, por que o pé dá leite, mas não é como na batata não. Aí eles cavavam um buraco bem fundo até dá na batata e quando dava na batata, fazia aquele buraco, tirava aquela terra e cobria com um barrinho vermelho (comunicação oral)62

A produção da maniçoba em larga escala, no entanto, na região, durou poucos

anos. O ponto alto não durou três décadas, mas foi tão intenso que conseguiu abalar

definitivamente as práticas produtivas camponesas já estabelecidas. Esse abalo teve suas

marcas de violência tanto simbólica quanto materializada.

José Belisário: teve o tempo da maniçoba, naquele tempo, dizem que era mais o pessoal revoltoso. Uns matavam os outros pra tomar o dinheiro da

61 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 62 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.

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maniçoba [grifo meu]. Matavam os revoltosos. Passavam a semana toda trabalhando quando era domingo se ajuntavam nas feiras pra tomar uns goles, e aí brigavam muito, se matavam pra tomar o dinheiro uns dos outros [grifo meu].63

Com efeito, a introdução da economia maniçobeira, na área em estudo, provocou

alterações que foram incorporadas pelo tecido socionatural já estabelecido, com a marca da

campesinidade64. Entre tais alterações, registra-se a entrada massiva de migrantes de

Pernambuco, Bahia, Ceará e até Alagoas. As cidades de Bodocó e Caruaru, ambas no Estado

de Pernambuco, eram os centros de migração (OLIVEIRA, 1998). As alterações ocorreram

num processo brusco, no âmbito do interesse em extrair o látex que a região produzia de

forma nativa ou por cultivo. Isto trouxe para a região problemas trabalhistas no âmbito das

relações de patronagem-dependência (FORMAN, 1979) e, até mesmo, com características do

que se considera, hoje, trabalho escravo, nos moldes ocorridos na região amazônica brasileira.

Nesse processo, a principal forma de exploração se dava através da relação

barraquista-maniçobeiro. O barraquista era, em geral, um comerciante que, em terras

devolutas, demarcava uma área e arregimentava trabalhadores. Estes mantinham com seu

contratante uma relação de hipossuficiência, na qual eles próprios eram hipossuficientes não

só por serem subordinados, mas por que sempre estavam em dívida com seu contratante, visto

que este sempre lhes fornecia os suprimentos para a exploração da maniçoba e para sua

subsistência pelo já referido sistema do barracão (OLIVEIRA, 1998).

Também os fazendeiros cultivavam a maniçoba em suas propriedades nos moldes

da relação barracão-maniçobeiro, em que o barracão era do fazendeiro e a relação de

hipossuficiência do maniçobeiro se repetia (OLIVEIRA, 1998).

Havia ainda os independentes tidos como os que viviam em situação pior que os

demais por que tinham que assumir todos os custos da produção sozinhos e nunca dispunham

de dinheiro. Por isso, era comum que estes buscassem um barraquista ao qual se submetiam

“voluntariamente” (OLIVEIRA, 1998).

63 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com José Belisário de Miranda. 64 Ao utilizar a categoria campesinidade, refiro-me à concepção trabalhada por Woortmann (1987) como uma qualidade presente em maior ou menor grau em grupos diversos e específicos, consistindo numa espécie de valor fundado na família e no parentesco, a partir de uma ética constitutiva de uma ordem moral, tomada como a forma de percepção das pessoas entre si, e destas com as coisas, dentre elas a terra.

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A maniçoba produzida na região era escoada para Remanso (Bahia) e de lá para

Juazeiro, (Bahia) e Petrolina, (Pernambuco) onde era comercializada. No início era

transportada por tropas de animais e, mais tarde, por caminhões.

Foi uma época de grande efervescência na Fazenda Várzea Grande, com muitos

conflitos e mudanças no modo de vida das populações locais. A população com condições de

enfrentar o trabalho pesado largou a roça e o criatório para a peonagem na maniçoba. Nesse

processo, ocorreu a ampliação da população, pelos casamentos, que aconteceram em larga

escala entre membros das populações locais e migrantes maniçobeiros empobrecidos, que já

não tinham condições de retornar à sua terra natal por sempre estarem em dívida com o

barraquista, fosse este comerciante ou fazendeiro.

Sueli: na época da maniçoba veio muita gente de fora pra cá?

Dona Isabel: a época da maniçoba foi em dezesseis [1916], dezesseis [1916] pra vinte [1920], até trinta [1930], ainda tiravam maniçoba. Veio muita gente de fora, da Bahia, do Pernambuco e se casaram tudo aqui. Mas era pobreza, pobreza, as pessoas que vinham de fora passavam muita fome [grifo meu], uma fome terrível (comunicação oral)65.

Naquele contexto, as populações locais, através do parentesco ritual, ampliavam-se

pelas alianças matrimoniais na medida em que os “de fora” se adaptavam ao sistema do lugar,

o que lhes dava identidade local. Nesse sentido, os casamentos possibilitavam a ligação dos

“de fora” com a tradição do sistema do lugar referida ao tronco do véio Vitorino Dias Paes

Landim:

‘Sueli: ah, então teu avó veio pra cá na maniçoba?

Beloniza: veio, ele era pernambucano, veio acompanhado de outros companheiros de lá, era solteiro, rapazinho novo, veio acompanhado de um tio e aí chegou nessa maniçoba, terminou de se criar e aqui se casou, casou até com uma Dias, pertenciam aos Dias. E aí ele casou e criou a família. Chegou e subiu pro Zabelê [grifo meu], ele foi morador de lá. Era proprietário de lá.

Beloniza: meu avô materno era da Bahia e o paterno de Pernambuco. (comunicação oral)66

Naíldes: ei, Sueli, meus dois avós, tanto materno quanto paterno eram tudo da Bahia e vieram de lá pra cá por causa da maniçoba [grifo meu]. E casaram aqui todos os dois. As moças nessa época arranjaram tudo

65 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 66 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Beloniza dos Santos Paes.

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marido, desencalhou todo mundo. Aqui tem muita gente que casou com esse povo, vindo da Bahia ou de Pernambuco (comunicação oral)67.

Sem dúvida, a atividade de extração da maniçoba também interveio nos códigos da

relação entre cultura e natureza, dentre estes, a ocupação de um lugar mantido até então sob

os desígnios da natureza, o “centre” (GODOI, 1999), área onde posteriormente foi instalado o

parque.

Com efeito, as terras disponíveis se tornaram insuficientes para suportar a

exploração da força de um boom econômico que chegou a representar 51,54% das receitas de

exportação do Estado e 23,28% da receita total, chegando, em 1910, a atingir a cifra de 62%

do valor total das exportações (QUEIROZ, 1994). A necessidade de ampliar as terras para a

extração e exploração da maniçoba fez camponeses de dentro e de fora do sistema do lugar

romperem uma espécie de contrato socionatural e simbólico, em que a área da serra estava

sob regramento da natureza, enquanto o seu sopé era do domínio da cultura. Sobre as áreas

tidas como reservadas aos desígnios da natureza, estas eram:

(...) o espaço selvagem, o centre situado além das serras: morada de bicho e de seres sobrenaturais como o gritador e a dona do mato, o encantado, onde habitavam os índios no tempo da história do começo da vida aqui. O centre compreende os espaços que não são e nunca foram cultivados pelo homem, mas se constituem ocasionalmente um lugar de caça e de coleta de plantas medicinais. Nele, os seres estão subordinados à boa vontade dos seres do lugar (GODOI, 1998, p. 102).

Nesse sentido, o imaginário local traduzia, simbolicamente, a ordenação do espaço

natural efetivado socialmente num contrato que sucumbiu à expansão da exploração da

maniçoba que se efetivou com a subida da serra para “furar maniçoba”, processo pelo qual

fundaram a comunidade Zabelê.

Só compreenderemos a subida da serra pelos ancestrais do povo do Zabelê ultrapassando os limites da própria fazenda, se a relacionarmos com o contexto histórico bastante precioso da atividade extrativa da maniçoba (GODOI, 1999).

Esse rompimento de fronteiras está vivo na memória, como se pode constatar na narrativa abaixo:

Silvera: (...) ele botou o saquinho nas costas e entrou pra essa serra, pro Zabelê, pra essa serra aí. Foi furar maniçoba (comunicação oral)68

67 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes. 68 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 30/05/2004, com Silveira Pereira Paes.

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Efetivamente, o referido processo deu suporte para uma extração e exploração

predatórias, que provocaram grande desmatamento da área e a quase extinção da espécie

nativa, visto que tanto eram exploradas as nativas quanto eram cultivadas grandes roças de

maniçoba. Caracterizaram-se ali relações predatórias tanto em aspectos naturais quanto

sociais, sendo perversas as relações com a natureza e as sociais, especialmente, as trabalhistas

estabelecidas pelo vínculo barracão-maniçobeiro69.

A crise da maniçoba, pelo surgimento de fonte de látex em outras regiões do

mundo, especialmente, na Ásia, e o surgimento da borracha sintética, fez os maniçobeiros

enfrentarem a brusca diminuição da demanda pelo produto. Diante disto, vão-se

estabelecendo estratégias de resistência e sobrevivência à crise como o retorno ao cultivo de

roças e até mesmo a inclusão de pedras na maniçoba, a chamada “maniterra”, para aumentar

seu peso e, com isso, compensar a queda de preço:

Sueli: e a maniterra?

Naíldes: ah, teve esse negócio mesmo, que tinha gente que botava terra e até pedra, por que tinha um negócio de dobrar, depois por conta de tanta sabotagem que tavam fazendo, os compradores não compravam mais a maniçoba dobrada. Por que eles dobravam a maniçoba que era pra ficar mais grossa. Eles furavam como hoje, amanhã num vinha, depois de amanhã eles vinham de novo. Aí chegavam, tiravam aquela massa que estava espalhada, cavava mais um pouquinho se precisasse, tornava botar outro barro e aí furava de novo e botava lá pra aquele leite que vinha coalhava em cima daquele que já estava coalhado. Aí o que faziam botavam barro ali, botavam até pedra pra pesar mais e o leite vinha e cobria. A maniçoba era vendida pelo quilo, já no final das contas os compradores já não compravam mais maniçoba dobrada, tinha que furar só uma vez (comunicação oral)70.

Passada a fase áurea da maniçoba, a sua exploração não se exauriu por completo,

permanecendo agonizante até a década de sessenta. Na fase agonizante, atendendo ao mesmo

mercado, agora com pouca demanda, integrou-se ao sistema do lugar, como complemento nos

períodos de entressafra e nos períodos das estiagens. O período de extração foi estabelecido

em época não concorrente com a roça (março a setembro), como indicam as falas abaixo:

69 Como observado pela Profª Dione Moraes, do DCS/CCHL/UFPI, em comunicação oral, observa-se que a nova racionalidade que passa a conduzir as relações entre natureza e cultura na região, em certa medida, destrona uma representação mítico-social do “centre”, e inaugura uma nova prática produtiva pela qual o espaço do “centre” é, em parte, dessacralizado. Esse processo guarda importância simbólica na instituição do imaginário, com conseqüências significativas para um outro processo que será analisado adiante: a instituição do Parque Nacional da Serra da Capivara, cujos fundamentos, em um outro universo mitológico – como diria Diegues, pelo mito moderno da natureza intocada – apontam para uma re-sacralização da natureza. Isto traz novos desafios às populações locais: re-sacralizar um espaço dessacralizado pela prática econômico-extrativista da maniçoba. Isto aponta para o próprio desafio da sociedade moderna: como reencantar um mundo desencantado? 70 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.

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Sueli: e a maniçoba?

Manoel Lourenço: ah, a maniçoba a gente ia furar ela. Eu trabalhei muito com a maniçoba.

Sueli: e não atrapalhava o serviço da roça não?

Manoel Lourenço: num deixava de atrapalhar, mas a gente tirava o tempo, por que a maniçoba tinha tempo pra gente furar, no inverno quando tava chovendo, ninguém ia pra maniçoba, era só desse tempo pra frente, furava no inverno, só quando faltava a chuva [grifo meu]. Furava na semana, mas quando chovia o cabra ia pra roça. Começava em maio.

Sueli: então a maniçoba era no intervalo da roça.

Manoel Lourenço: era (comunicação oral)71

Dona Isabel: aqui todo mundo vivia de roça, de maniçoba. Tinha a maniçoba. Nesse tempo, todo mundo ia furar as maniçoba pra puder fazer a feirinha pra puder comer. Isso aqui já foi muito pobre. Era uma pobreza grande. Muita pobreza (comunicação oral)72.

É interessante observar que a dinâmica cultural é, ao mesmo tempo, um sistema

fechado e aberto como diria Edgar Morin. De fato, as experiências forasteiras vão, no

processo intercultural, sendo assimiladas e adicionadas, pelo crivo do habitus local, ao

repertório das práticas do sistema do lugar. Assim, a extração da maniçoba se incorpora, nas

proporções permitidas por um mercado mais ou menos efusivo, ao calendário agro-

extrativista das populações locais.

Vale considerar que, além da extração da maniçoba, combinada com a roça, outras

extrações foram retomadas, como a da resina de jatobá [Hymenaea courbaril]:

Dona Maria: (...) ele trabalhou só na maniçoba. Quando chovia trabalhava na roça e quando não chovia era na maniçoba. E no jatobá, tirava a resina e vendia. Apanhava a resina do jatobá e vendia. Era de que ele vivia aqui. Quando não tava chovendo, pra trabalhar na roça, tinha esse refrigério. A maniçoba, depois tinha esse trapucá, eles tratavam trapucá, ainda alcancei, eles traziam aquela resina de jatobá, eles exportavam, não sei pra servia ela. Eu acho que era, eles diziam que era pra fazer aqueles discos. Eu ainda hoje tenho uma radiola que usa esses discos. Minha família não tinha muita dificuldade não, o povo pra aí tinha, mas aqui em casa não (comunicação oral)73

71 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes. 72 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 73 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Maria Alves Dias.

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Com a crise da maniçoba, foram retomadas outras práticas produtivas, que haviam

sido abandonadas. Aproveitando o interregno das secas, a atividade da agricultura retomou

posição de centralidade na vida das famílias camponesas, especialmente, pelo cultivo da

mamona [Ricinus communis L.], do algodão [Gossypium hirsutum] e do fumo [Nicotiana

tabacum], como produtos destinados à comercialização:

No Zabelê, pra acolá, os meus parentes era lá, eu ia instalar fumo. As mulheres daqui só iam se eu fosse. A gente ia instalar fumo.

Sueli: e o que é instalar fumo?

Dona Isabel: o fumo é um pezão, com uma folhona, a gente tem que instalar ela pra fazer o fumo. Dava muito dinheiro. O fumo e o algodão.

Sueli: vocês vendiam onde?

Dona Isabel: vendia até no Maranhão. Aqui tinha gente que ia vender no Maranhão. Os brotenses, aqueles brotense ia vender lá. Iam vender em Aparecida, em Uruçuí, vendiam em Teresina. Em Teresina é que vendia muito (comunicação oral)74.

Beloniza: Mas o que dava dinheiro mesmo era mamona, algodão e fumo (comunicação oral)75.

Se a crise da maniçoba, por um lado, fechou uma das alternativas de sobrevivência

da população local, por outro lado, permitiu a maturação do sistema do lugar após a

incorporação das populações migrantes pelo casamento, pela retomada dos laços sociais com

o lugar, no sentido de que quem não veio para ficar foi embora e quem quis ficar já estava

alocado num espaço familiar, ampliando a tradição do Vitorino.

Sueli: e depois que acabou a maniçoba, de que passaram a viver?

Naíldes: a maniçoba veio acabar, deixa eu ver se me lembro: na década de sessenta, até cinqüenta e nove tinha maniçoba, aí em sessenta acabou. Só que quando me entendi, já não tinha mais essa gente de fora não, era só o pessoal daqui, ou os de fora que tinha casado com gente daqui, já era daqui [grifo meu], já tinha vindo há muitos anos (comunicação oral)76

Vale lembrar ainda que, se o processo de peonagem foi abandonado com a o fim

da extração da maniçoba, ele deixou marcas na cultura local, tanto na ampliação da relação de

parentesco quanto no seu habitus. A matriz em que se configurou o universo cultural do

maniçobeiro deixou, como uma de suas marcas, as práticas extrativistas intensivas através de 74 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 75 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Beloniza dos Santos Paes. 76 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Naíldes Dias Paes.

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relação predatória com a natureza, além de relações trabalhistas, em condições análogas às

escravas, como as que aconteceram com a extração da cal nos anos oitenta e noventa e da

madeira, na atualidade, para abastecer as fornalhas de uma cerâmica77, situada no município78.

Porém, depois da crise da maniçoba e dos bons anos de inverno, a atividade que se

destacou mesmo foi a retomada da tradição camponesa da agricultura e da pecuária, como

centralidade da economia local, embora a extração da cal tenha substituído a extração da

maniçoba para algumas famílias.

Sueli: e passada a maniçoba?

Beloniza: aí na década de sessenta [1960] começou um inverno que choveu por dez anos, aí a agricultura deu muito dinheiro, era muita fartura [grifo meu] (comunicação oral)79.

Como se pode deduzir da fala transcrita, acima, o itinerário das práticas

produtivas das famílias camponesas locais [ilustração 12] foi retomado. Esse itinerário cíclico

se encontra, no presente, percebido como representado no quadro abaixo:

77 No município, há duas cerâmicas: uma que funciona à lenha e a outra a gás. A que funciona a lenha, segundo Arruda (1997), extrai seu abastecimento do entorno, tendo consumo anual estimado em 1.120 st e teve 112 ha desmatadas ao ano, em 1991. As espécies mais usadas são: favela [Cnidoscolus phyllacanthus], angico de bezerro [Piptadenia oblíqua], pau-de-rato [Caesalpinia bracteora], marmeleiro [Croton sonderianus], pau-de-casca [Tabebuia spongiosa]. Outro dano causado é a destruição do solo. 78 A extração da cal, segundo Arruda (1997), constituiu-se num dos principais problemas das populações locais. O início da extração começou em fins da exploração da maniçoba, em 1958, mas foi intensificada entre os anos 80 e 90. Os maciços calcários mais importantes foram: o Boqueirão da Pedra Furada, Morro do Garrincho (onde já se produziu cimento) e os Serrotes do Antonião e do Artur, em que se localizavam as caieiras. O processo de extração da cal se dava nas seguintes fases: extração de calcário, amarração, enchimento, queima e carregamento. A fase de extração, a mais longa, demandava maior trabalho, consistindo em quebrar blocos no alto do maciço calcário e empurrá-los para a base. A quebra era facilitada com dilatação dos blocos em fogueiras no interior das galerias, que os rompiam e estes eram deslocados por alavancas. Na base do maciço, os blocos eram fragmentados em pedaços menores, com uso de marretas. A amarração era a construção e manutenção de muro no entorno da caeira. O enchimento era o preenchimento do espaço entre o muro e o teto da caieira, pedra sobre pedra, até a caieira tomar a sua configuração cônica. A queima se dava com a introdução de lenha pelas três janelas da caeira, até o ponto de a caeira ser golpeada em seu teto e, com isso, ocorrer o desprendimento da cal para o fundo, finalizando o processo, deixando o produto pronto para carregamento para os centros consumidores. Arruda (1997) identificou, em 1991, no atual município de Coronel José Dias, 90 pessoas empregadas e estimou que 350 dependessem economicamente das caieiras que produziram 1.814m³ de cal. Dos caieireiros, 90% eram arrendatários dos serrotes calcários e pagavam uma renda ao proprietário referente ao calcário extraído para cada fornalha, sendo que alguns proprietários de serrotes também produziam cal, cerca de 10%. O grupo que trabalhava numa caieira geralmente era familiar. O caieiro mantinha uma relação de meeiro com o madeireiro pelo serviço de carregamento e os madeireiros também eram proprietários de mercearias e vendiam víveres e outros produtos aos caieiros tendo como moeda a cal. A exploração da cal se intensificava nos períodos de estiagens. 79 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Beloniza dos Santos Paes.

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Mes

es

Meses: mai/jun80

Meses: jul/ago

Meses: ago/set.

Meses: set/out

Meses: out/nov

Meses: dez/jan/fev Mês mar

Meses: abr/ma

i

Prát

icas

Colheita do milho, desmancha (mandioca), armazenamento e venda. Escolha de área e broca81 da nova roça

Colheita do milho, desmancha (mandioca) Broca, derruba82 da nova roça

Colheita do milho, desmancha (mandioca) Aceiros e queima da nova roça. Extração do caju e castanha e venda das castanhas.

cerca da nova

Destoca e início de plantios: milho, feijão e mandioca.

Plantio e limpa. Colheita e venda de mel. Extração do umbu e comercialização.

Últimos plantios, limpas e início de colheita verde83. Colheita e venda do mel. Extração do umbu e comercialização

Colheita de feijão, armazenamento e venda.

Tabela 03 - Itinerário anual das práticas produtivas camponesas

O referido itinerário é também constituído de práticas com a criação de animais:

bovinos, caprinos, ovinos, suínos e aves. As aves e os suínos são criados nos quintais das

moradias e os demais são tratados em dois regimes com base no período das chuvas e os

meses de seca. No período das chuvas, os animais são soltos na chapada para se alimentarem

de pasto nativo e, nos meses de seca, são postos nas roças com os restos da cultura colhida84.

Em ambos os regimes, todos os finais de dia, os animais: gado vacum, ovelha e bode são

tocados ou vêm espontaneamente para os chiqueiros ou currais, para dormirem em área

protegida. Nos períodos de estiagens, os animais são conduzidos até as aguadas para lhes dar

de beber. Essa atividade se repete até duas vezes por dia, nos casos em que não há aguada na

roça que acolhe os animais.

A comercialização também faz parte das práticas tanto agrícolas quanto pecuárias,

sendo que o pico da venda dos produtos agrícolas e de extração se dá na colheita, mas

prossegue durante todo o ano, a cada feira semanal, no processo de abastecimento da família

naquilo que não é produzido na roça e na criação de animais. E quanto mais distante do tempo

de colheita, mais a comercialização, nas feiras, restringe-se à venda de animais. 80 Considerei o início do ciclo pelo início da nova roça que se dá com o processo de escolha da área e broca, entre os meses de junho e julho. 81 Broca na linguagem local refere ao processo de derrubada das árvores mais finas. 82 Derruba ou “derriba”na linguagem local quer dizer derrubada das árvores mais grossas. 83 Colheita verde na linguagem local refere ao processo de colheita de feijão e milho verdes. 84 Essa forma de articulação entre baixões e chapadas e áreas cultivadas lembra, como já referido, a relação entre baixões e chapadas analisada por Moraes (2000) na vizinha região dos cerrados e por Godoi (1999) na região semi-árida, especificamente, no território aqui estudado.

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Segundo a trajetória histórica dos processos aqui analisados, foi na retomada da centralidade

de tradição camponesa, pós-boom da maniçoba, que foi instituído o Parque Nacional da Serra

da Capivara, trazendo uma outra racionalidade de apreensão, compreensão e relação entre

natureza e cultura.

3.4. A mundialização do território Várzea Grande – de camponês a preservador

ambiental: a instituição do Parque Nacional da Serra da Capivara

No início da década de 70, a área em estudo foi palco de mais uma intervenção na

cultura camponesa local e na natureza semi-árida, intervenção orientada agora, por um

paradigma de preservação ambiental amparado pela ciência e pela legislação ambiental pátria.

Sem dúvida, esse ideário de preservação ambiental traz as marcas da ambigüidade provocada

pelo divórcio entre natureza e cultura, que marcou o surgimento da sociedade moderna. Com

efeito, na legislação brasileira, a relação entre natureza e cultura se traduz por um processo de

apropriação da natureza, monetarizando esta, transformando-a em recursos, ou seja, em bens

patrimoniais, com usos e relações de propriedade normatizados pela via jurídica.

Por outro lado, no âmbito dessa mesma legislação, o resultado da depredação

provocada por essa relação deve ser enfrentado com a constituição de espaços privilegiados,

verdadeiras ilhas da fantasia que permitam respirar os pulmões urbanos inflados pela poluição

e prejudicados pelos dejetos provocados pela vida moderna, em que, definitivamente, cultura

e natureza aparecem divorciadas. Nesse sentido, a legislação prevê que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem [grifo meu] de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1996, p. 100-101).

Artigo 1º - Constitui o patrimônio [grifo meu] histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (AGRELLI, 2003, p. 462).

§ 1º - Os bens [grifo meu] a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional depois de inscritos separada agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o Art. 4º desta lei. § 2º - Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que

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tenham sido dotados pela Natureza ou agenciados pela indústria humana (AGRELLI, 2003, p. 462).

Definido o meio ambiente como bem público, estão configuradas as competências

administrativas, legislativas e judiciárias que responsabilizam o Estado quanto à proteção,

fiscalização, tipo e forma de punição para quem burlar as regras de proteção ambiental. Esta é

a base que fundamenta a política nacional de criação de áreas de proteção ou unidades de

conservação. Essas são definidas pela União Internacional para Conservação de Natureza e

seus Recursos “como áreas definidas pelo Poder Público, com o objetivo de proteger e

preservar ecossistemas, em que os recursos naturais são passíveis de um uso indireto sem

consumo” (AGRELLI, 2003, p. 10).

Nesse contexto, para a legislação brasileira, na lei que instituiu o sistema nacional

de unidades de conservação, unidade de conservação é:

Art. 2º, I - espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção (AGRELLI, 2003, p. 695 ).

O conceito adotado pela legislação brasileira define a relação entre cultura e

natureza nas unidades de conservação como “sem consumo” e de “proteção”, o que pode ser

lido como exclusão da possibilidade de consumo nas unidades de conservação, embora

conste, dentre os objetivos do sistema nacional de unidades de conservação, a disposição de

Art. 4º, I - Proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente [grifo meu] (AGRELLI, 2003, p. 697).

De fato, essa não possibilidade de consumo tem-se traduzido, na prática, pela total

desvinculação das populações locais, contrariando as próprias diretrizes previstas para o

sistema: “assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e

gestão das unidades de conservação” (AGRELLI, 2003, p. 697).

Com efeito, a referida lei diz respeito a dois tipos de unidades de conservação:

unidades de proteção integral e unidades de uso sustentável. As de proteção integral são as

que admitem apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, não permitindo a permanência

das populações locais. E as unidades de uso sustentável são as que visam compatibilizar a

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conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais, ou seja,

admitem a permanência das populações locais, sob condições de educá-las para uso

sustentável.

São unidades de proteção integral: estação ecológica, que tem como objetivo a

preservação da natureza e a realização de pesquisas científicas; reserva biológica, que tem por

objetivo a preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites,

sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de

recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e

preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais;

parque nacional, que tem por objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de

grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas

científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, na

recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico; monumento natural, que tem

como objetivo básico preservar sítios naturais raros, singulares ou de grande beleza cênica;

refúgio de vida silvestre, que objetiva proteger ambientes naturais onde se asseguram

condições para a existência ou reprodução de espécies ou comunidades da flora local e da

fauna residente ou migratória (AGRELLI, 2003).

São unidades de uso sustentável: área de proteção ambiental, em geral, extensa,

com um certo grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou

culturais, especialmente, importantes para a qualidade de vida e o bem das populações

humanas, que tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o

processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais; área de

relevante interesse ecológico, em geral, de pequena extensão, com pouco ou nenhuma

ocupação humana, com características naturais extraordinárias ou que abriga exemplares raros

da biota regional, que tem por objetivo manter os ecossistemas naturais de importância

regional ou local e regular o uso admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-lo com os

objetivos de conservação da natureza; floresta nacional, uma área com cobertura florestal de

espécies predominantemente nativas, que objetiva disciplinar o uso múltiplo sustentável dos

recursos florestais e a pesquisa científica, especialmente, a pesquisa de métodos para a

exploração sustentável de florestas nativas; reserva extrativista, área utilizada por populações

extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente,

na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, objetivando proteger

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os meios de vida e a cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos

naturais da unidade; reserva de fauna, área natural com populações animais de espécies

nativas, terrestre ou aquáticas, residentes ou migratórias adequadas para estudos técnico-

científicos sobre o manejo econômico sustentável de recursos faunísticos; reserva de

desenvolvimento sustentável, área natural que abriga populações tradicionais cuja existência

tem base em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao

longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais, que desempenham um papel

fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica; reserva

particular do patrimônio natural, área privada, gravada com perpetuidade, que objetiva

conservar a diversidade biológica (AGRELLI, 2003).

A referida legislação expressa diferentes concepções quanto à relação entre

natureza e cultura. A concepção que está na base da unidade de proteção integral é a dos

preservacionistas que consideram a natureza selvagem como intocada e intocável e que uma

unidade de conservação não pode proteger a diversidade ecológica junto com a diversidade

cultural. As populações tradicionais que foram desapropriadas são consideradas, então, caso

de polícia, após serem expulsas da terra para criação de parques e reservas (DIEGUES, 1996).

Já as unidades de uso sustentável assentam-se na concepção do conservacionismo

oposta à do preservacionismo e propõem a proteção da diversidade da natureza junto com a

diversidade cultural, ou seja, conservar a natureza junto com a vida humana. De fato, o

conservacionismo surge como crítica ao preservacionismo diante do profundo desinteresse

deste pelos problemas sociais (DIEGUES, 1996).

A intervenção ocorrida, na área em estudo, no início da década de 70, fundou-se

nos marcos legais das áreas de proteção integral, ou seja, na concepção preservacionista que

regula a instituição dos parques. O Parque Nacional da Serra da Capivara foi criado através do

Decreto nº. 83.548 de 5 de junho de 1979 que, em seu artigo 2º, determina sua finalidade:

Art. 2° - O Parque Nacional da Serra da Capivara tem por finalidade precípua, proteger flora e fauna e as belezas naturais, e os monumentos arqueológicos, no local existentes e fica sujeito ao regime especial do Código Florestal, instituído pela Lei n° 4.771, de 15 de setembro de 1965 (FUNDHAM, 1998, p. 58).

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Esse Parque foi inscrito no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e

Paisagístico, em 1993, sendo elevado a Patrimônio Mundial pela UNESCO, em 13 de

dezembro de 1991 (FUNDHAM, 1998).

A razão central para a criação da referida unidade de conservação era a existência

de vários sítios arqueológicos, entendidos como locais ricos em evidências de vida e cultura

de populações antigas, propícios para a realização de pesquisas e coletas, num total de 462

sítios, dispostos em área de quatro municípios piauienses: Coronel José Dias, abrigando 218

sítios arqueológicos (47,19%); São Raimundo Nonato, 156 sítios arqueológicos (33,77%);

João Costa, 47 (10,17%) e Brejo do Piauí, 41 (8,87%) (FUNDHAM, 1998).

Em consonância com a legislação referida, por se tratar de uma área de proteção

integral, a criação do parque exigiu a retirada das populações que ali trabalhavam ou residiam

e trabalhavam. Essas populações passaram a viver em São Raimundo Nonato ou permanecem

no entorno do parque com acesso vedado à área protegida, incluindo-se aí a área onde se

realizou esta pesquisa, o município de Coronel José Dias.

Na pesquisa de campo, todas as pessoas entrevistadas têm alguma relação com o

parque, numa amostra de uma população que passou pela experiência da interdição de uma

área concebida pelo sistema do lugar como região de caça e coleta, o “centre”, como referido

por Godoi (1999). Além disto, há também aqueles que passaram pela experiência da perda da

terra de moradia e trabalho ou só de trabalho. Para alguns, estas perdas prejudicaram suas

vidas e de seus familiares, embora já reconheçam a importância do parque:

Sueli: nunca mais voltou lá?

Dolores: não, só fui na festa da despedida.

Sueli: quem fez a festa?

Dolores: o pessoal lá do zabelê, até minha mãe, tiraram foto dela, em cima do carro, ela discursou. Ela foi professora também, a primeira professora. Ela era daqui e o marido era de lá. Aí depois que ela foi pra lá não queria mais sair de lá, gostou de lá.

Sueli: mas quem fez a festa?

Dolores: o povo de lá e muita gente de São Raimundo Nonato, tinha uma mulher que morava lá, que era professora, convidou o pessoal (...).

Sueli: como foi a festa?

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Dolores: foi alegre, mas foi muito triste, muita gente chorava.

Sueli: todos saíram nesse dia?

Dolores: teve uns que ficaram lá ainda, não tinha sido indenizados ainda, mas depois saíram85.

De fato, a comunidade Zabelê mantinha relações de moradia e trabalho na área que

se tornou parque. A forma como foi desapropriada e desalojada traz a força da injustiça social

e da violência, forçando a quebra daquela relação de pertencimento, sem a compensação por

outras formas de pertencer:

Sueli: aí as casas foram derrubadas?

Dolores: foram, a Niède [arqueóloga, que coordena os trabalhos de pesquisa no parque] mandou passar até o trator, acho que era pro povo não voltar lá, ela não indenizou todo mundo de uma só vez, tinha uns que diziam que se ela não pagasse iam voltar pra lá. Tinha um tanque, um açude muito grande, aí vinha o pessoal, as meninas tomavam banho, passavam o dia lá, gostavam de lá. Final de semana, faziam festa lá, ia muita gente daqui.

Sueli: e a senhora nunca mais andou lá?

Dolores: não, nunca mais fui não.

Sueli: e sua mãe?

Dolores: morreu e nunca mais voltou lá. Voltou não, ela já tava velhinha, se impressionou com o prejuízo que teve [grifo meu], com o lugar dela, lá criava muita fruta, criava muita galinha, tinha criação, tinha tudo, o dinheiro que deram só deu pra comprar uma casinha lá em São Raimundo Nonato, aí faltava tudo pra ela, aí impressionou, quando faltava uma coisa ela ficava com as mãos na cabeça, pensando como era que ia conseguir, aí ela teve amnésia, depois atacou o derrame, aí faleceu. O pessoal xingaram muito, pressionaram muito a Niède Guidon (...) (comunicação oral)86

A instituição de uma outra forma de pertencimento para as populações camponesas

expulsas do Parque deu-se através da política de assentamentos da reforma agrária, numa

espécie de reparação dos prejuízos. Por um lado, essa ação não fez parte da política de

administração do Parque nem por esta é apoiada, sendo as entidades representativas de

trabalhadores rurais, sindicato e federação, as que buscaram formas compensatórias para os

prejuízos sofridos.

85 Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 30/05/2004, com Maria Dolores Dias Santos. 86Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 30/05/2004, com Maria Dolores Dias Santos.

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Por outro lado, a administração do Parque também não implementa nenhuma ação

de educação ambiental na área de reassentamento, o que tem contribuído para a intensificação

de uma relação predatória com a natureza. E aqui, é necessário compreender que essa mesma

natureza que já fora “centre”, depois lugar de extração de maniçoba, agora volta a ser espaço

de interdição. Nesse processo, a própria natureza é simbolizada, entre os desalojados, como

razão maior do desalojamento e desapropriação das terras com as quais tinham vínculos

afetivos, culturais e identitários:

o pessoal daqui gosta muito de caçar, tem a mania de caçar tatu e agora com esse parque aqui, o pessoal não pode mais caçar, por que se pegar vai pra cadeia, por que às vezes muitos caçam com fome. E tão judiando com o pessoal. E outra, o Zabelê era um povo com quase 70 pessoas morando e esse pessoal era todo lavrador, trabalhador, esse pessoal ficou nas periferias das cidades, passando fome, aí depois com muito sacrifício é que nós conseguimo, o sindicato conseguiu com o incra, não foi nem o parque, foi o sindicato, o sindicato com a federação do sindicato, que é a fetagui, conseguimos uma fazenda pra eles trabalharem lá, que é a lagoa, hoje o assentamento Novo Zabelê. O pessoal de lá passou cinco anos passando fome na periferia de São Raimundo Nonato, eles só sabiam trabalhar de roça, viviam morrendo de fome, não tinha emprego e não tinha roça, então nessa parte não foi bom. E outra, a indenização também, eles era despreparados naquela época e aí quando eles pegaram esse dinheiro, aí mudou a moeda mudou imediatamente, eles não tinham conhecimento, aí eles perderam, eles botaram foi em poupança. E ainda tem gente sem indenização. Daqui muita gente e de João Costa quase ninguém recebeu, continuam morando na área, mas não podem cortar nem um cipó, que o guarda tá em cima, nunca foram indenizados e o ibama [IBAMA] não deixa eles cortarem um pau, nada. E fica num empurra pra lá, empurra pra cá. Não deixa nada de raiz, só mandioca, feijão e milho. Já chamei a fetague [FETAG] umas três vezes pra reunião lá, trazendo gente do governo e eles prometeram que vão pagar, aqui também têm muitos, tem uns vinte e tanto, pra aqui pra baixo, pra barra, lá eles cercaram sem pagar, só por que tinha umas pedras de cal lá dentro, eles cercaram sem autorização do dono, tá lá cercado, sem indenizar o pessoal, isso é errado, eles tinha que pagar o que eles cercaram. Pagando é dono, mas enquanto não pagar não é dono, aqui ninguém pode caçar, ninguém pode tirar madeira, não pode fazer nada (comunicação oral)87.

Como indica a narrativa, as populações camponesas que viviam na área, agora de

proteção integral, viraram, de fato caso de polícia: tiveram suas terras desapropriadas, muitos

não foram indenizados ou o foram de forma injusta, além de serem impedidos de plantar,

criar, coletar e caçar. Esta situação tem gerado graves problemas sociais, como conflitos que

resultam em prisões; agravamento da pobreza, devido à perda de postos de trabalho, da terra,

de moradia e de raízes. Com efeito, ocorre um processo de profundas alterações em função de

87 Entrevista realizada na comunidade Barreiro Grande, em 01/06/2004, com José Rodrigues do Nascimento.

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extinção de culturas tradicionais – que já haviam desenvolvido formas de relacionar-se com a

natureza local, ou seja, perdas de saberes sobre a relação entre cultura e natureza local que,

embora já profundamente marcadas pelos encontros interculturais referidos, ainda guardavam

elementos de uma relação de certo equilíbrio, até pelo fato de a exploração da natureza pelas

populações locais não ser maciça, em função da baixa densidade populacional e, por isso, de

um menor raio de ação antrópica.

De fato, os saberes locais foram ignorados, na profunda cisão entre natureza e

cultura, operada pela instalação do parque, justificando, com isso, a ausência humana nos

espaços de preservação, em relação aos quais, efetivamente, as populações locais referidas são

tidas como predatórias pela administração do Parque:

E a gente viu que é uma sociedade completamente destrutiva, por que, por exemplo, eles caçam, caçam na época da reprodução, caçam fêmeas, eles não tem aquilo que um verdadeiro caçador tem, de preservar as fêmeas, por que sabe que se não preservar vai acabar com elas. Eles cortaram toda a madeira e venderam, então o que acontece, eles (...) florestas inteiras de pau d’arco, aroeira foram devastadas, venderam tudo pras fazendas do sul. Aí eles pegam aquele dinheiro e não trabalham, eles não aplicam o dinheiro, enquanto eles têm dinheiro, é a farra e a bebida. Isso nós verificamos muitas vezes, raras são as pessoas que a gente conheceu se dedicou ao trabalho e conseguiu fazer um capital e viver decentemente (comunicação oral)88.

Esse discurso talvez homogeneíze, sob o rótulo de sociedade, numa referência à

sociedade local, seus vários e distintos segmentos, numa operação que não permite perceber a

peculiaridade das práticas camponesas locais nem os processos de hegemonia social e cultural

nos quais estas populações são subalternas. Nesse sentido, trava-se uma guerra santa entre os

defensores do ambientalismo e a “sociedade local” reificada. Nesse contexto, o drama social

(POMPA, 1997) do qual fazem parte as populações camponesas locais pela forma como o

parque foi instituído, aprofunda as fraturas do tecido social comunitário, chegando a ponto de

os seus próprios membros se porem uns contra os outros, em graves cisões:

Ferreira: Eu tenho um sobrinho meu que matou a irmã dele e ela [Niède Guidon] tá com ele na prisão, diz que num solta mais.

Rosina: será que ela não solta?

Ferreira: me diz um sobrinho meu, que é delegado de polícia, o Salvador, me disse bem aqui na noite passada que o Paulo num tá solto porque a família é muito pobre. Num tem dinheiro, se tivesse já tava solto. Já tá com três anos.

88 Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação.

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E a pobre da mulherzinha dele aí lutando, trabalhando pra criar a filhinha. E ele lá pra Bom Jesus, tá preso pra lá. Ele matou ela aí dentro do parco, mas a prisão do Paulo mais é porque ele matou ela dentro do parco, ele matou a mulher dentro do parco, uma vigia do parco. Se ele queria matar, eu ia ensinar a ele como fazer, sair fora do parco, mas no parco, ave-maria, dentro da propriedade do governo, como é que pode ser solto [grifo meu]? A mulherzinha dele passou aqui, eu perguntei pra ela “como é, tu tá com fé de ver o Paulo ainda?” ela “tou, se não morrer”. Ele era dono dessa casa, saiu por causa do acontecido, me vendeu, eu comprei. Fiz um puxado, também aqui é perto do sítio (comunicação oral)89

De fato, a cisão ou conflito entre as duas culturas dá-se pelo choque entre a cultura

urbana industrial moderna, que aparece sob a forma de cultura de preservação ambiental e

cultura local. A cisão se concretiza pela substituição, com força de lei, do paradigma de

relação das populações locais com a natureza não-humana, pelos paradigmas

preservacionistas, orientados pelos interesses da cultura urbano-industrial.

A crítica a esse paradigma não significa desconsiderar os graves problemas de

degradação ambiental frutos da relação antropocêntrica entre cultura e natureza. Entretanto,

não se pode desconsiderar a pluralidade cultural e, assim, as formas próprias, específicas de os

grupos sociais conceberem a natureza e de estabelecerem relações com ela. Nesse sentido, ao

enfrentar os problemas produzidos na relação entre cultura e natureza, a partir de outra

racionalidade e universo simbólico, sem considerar as culturas locais, corre-se o risco de

violentá-las e, com isso, tornar mais profundos, ainda, os problemas relativos à relação destas

com a natureza.

Com efeito, no âmbito do paradigma referido, as cisões entre natureza e natureza

são também notórias: retiram o caráter de natureza do ser humano de tal modo que o ser

humano deixa de ser visto como natureza, não fazendo parte do grande ecossistema da vida.

De fato, essa ruptura provoca a impossibilidade de buscar a integração entre natureza humana

e não humana, com vistas a atingir a convivência entre as duas partes do ecossistema. Isso

fortalece a imagem das populações locais como degradadoras, destruidoras do meio ambiente,

representação que merece ser analisada mais detidamente e mais largamente, tomando-se,

inclusive, elementos de antes da criação do parque, no âmbito do próprio discurso de

representantes da proposta preservacionista, quando aí se fala de um meio ambiente

conservado:

89 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Norberto Pinto do Nascimento.

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A cidade de São Raimundo Nonato tinha dez lagoas, aquela barragem que tá lá, em Coronel José Dias, que na época chamavam de Várzea Grande, aquela barragem enchia que a água ficava por cima. E o parque era completamente conservado, tinha uma vegetação de florestas [grifo meu], então foi isso que nos levou em setenta e oito a apresentar ao governo federal a proposta de criar um parque. Primeiro por causa dos sítios arqueológicos e segundo por conta dessa riqueza da vegetação. Então nós chamamos atenção do governo federal da importância de preservar esta floresta dentro do que era então o parque, em que tinha muitas nascentes de águas. A situação era bem diferente do que é hoje. Havia pobreza, mas não como hoje, era sempre aquilo que continua até hoje, umas famílias muitas ricas e depois a mão de obra que trabalhava para estas famílias, na verdade, como é a organização social do nordeste até hoje. Então nós fizemos este pedido e o parque foi criado em setenta e nove (comunicação oral)90.

Como indica a fala acima, antes da criação do parque a relação entre natureza e

cultura local não era tão predatória, o que pode ser testemunhado pelo estado de conservação

da área que não era habitada ou o era em pequena escala, pois “havia um povoado só dentro

do parque” (comunicação oral)91. Como referido ali, era o espaço sagrado, a morada dos seres

protetores da natureza.

Aquele espaço, enquanto fez parte da tradição do véio Vitorino, permaneceu

sagrado, ou seja, até a criação do Parque, vigoravam regras do contrato socionatural, que

fundou o sistema do lugar, determinando a relação com aquele espaço sagrado que fazia parte

do patrimônio simbólico desses camponeses do sertão (GODOI, 1998). No território

conquistado, a Fazenda Várzea Grande, os humanos dominavam, enquanto que no “centre”,

os humanos eram subordinados, mantendo uma espécie de contrato de convivência. Então, se

a exploração da maniçoba exigiu mais terras para ampliação do cultivo, o que resultou na

criação da comunidade Zabelê, dentro da área sob os desígnios da natureza, esta foi uma

iniciativa que não se ampliou. Assim, houve um avanço sobre o regramento do contrato, mas

este não teve continuidade, prevalecendo o acordo tácito anterior.

Com efeito, se a extração da maniçoba abrira brechas no referido contrato, as

interdições com a criação do parque parecem rompê-lo mais ampla e profundamente e, com a

ruptura, vão-se as regras que garantiam à área um bom estado de conservação, pois o “centre”

fora definitivamente dessacralizado, agora, pelo governo:

90 Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação. 91Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação.

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E aí o parque foi criado e foi passando um ano, dois anos, três anos e nenhum funcionário era nomeado, não acontecia nada e a população, a reação deles foi a seguinte “ah o parque é do governo, a gente pode matar, pode queimar” [grifo meu]. Daí começou todo um processo de desmatamento muito grande no parque. Em oitenta e seis, houve um incêndio muito grande, por que eles iam caçar e faziam fogo para achar as caças, faziam fogueira e o vento espalhava o fogo. Houve um incêndio que durou mais de três meses, só parou por que choveu. Então houve uma degradação muito grande tanto na flora quanto na fauna, por que quando ocorre um incêndio assim os seres bióticos tudo morre (comunicação oral)92.

Na análise aqui empreendida, a criação do parque se configura como terceira

ruptura na relação entre natureza e cultura ou, no caso em apreço, no meio ambiente como um

todo, se tomarmos ambiente como a sociedade toda: instituições, cultura, natureza, cidades,

habitat, economia, técnica e artes, resumidamente, qualquer coisa que o ser humano crie, de

que se cerque, das quais se recorde, pelas quais sofra e deseje.

Essa terceira ruptura se faz com uma tradição de saberes que permitiam a

existência de relações que manteve esse ambiente, até o final da década de 70, em bom estado

de conservação. Isto leva a pensar que a relação estreita das populações locais com as

condições ambientais por longos anos, desde a colonização, no âmbito das sucessivas fricções

interculturais, permitiu, em certa medida, o restabelecimento de códigos dialogais ancestrais

entre cultura e natureza (CASTELLS, 2002), de forma que, na instituição do parque, a região

foi percebida em bom estado de conservação e as pessoas que ali habitavam, numa melhorada

situação de pobreza, como referido (comunicação oral)93.

Mas, uma vez mais, após mais uma situação de crise sócio-ecológica local, com a

criação do parque no final dos anos 70, quando se entrelaçam e sobrepõem várias crises

locais, somadas a uma situação de policrise mais ampla, houve ruptura dos códigos e

emergência de sinais que enunciam, pelo menos, três processos: uma nova racionalidade,

cujos sinais são perceptíveis nas imagens típicas da cultura urbana que passaram a fazer parte

do discurso das populações locais; a assimilação do discurso ambiental e a assimilação da

proposta intermediada de convivência com o semi-árido.

92 Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação. 93 Entrevista realizada na cidade de São Raimundo Nonato, em 01/07/2004, com Niède Guidon, arqueóloga que coordena as pesquisas no Parque e que solicitou sua implantação.

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A nova racionalidade referida é indicada nas narrativas pela enunciação de

imagens tais como: emprego, dinheiro, arruados, escolas e fama, como compensações pelas

perdas sofridas:

Dona Isabel: comprou isso aí, desarrranchou o povo de lá, mas deu dinheiro [grifo meu] pro povo, tão tudo em São Raimundo [São Raimundo Nonato].

Sueli: e esse povo hoje tá vivendo bem?

Dona Isabel: viviam de roça, plantavam algodão, mandioca, tinha muita batata, muita fartura.

Sueli: e agora?

Dona Isabel: tão tudo bem. Disse que lá no caminho da serra, quando desce a serra, num tem? Eles moram lá. Fizeram um arruado, um arruado que é uma beleza [grifo meu]. Eu passo lá só quando vou no ônibus. Aí eu enxergo [uma referência ao assentamento Novo Zabelê] (comunicação oral)94

Sueli: o parque melhorou a vida por aqui?

Marilu: por umas partes sim, por outras não.

Sueli: em que melhorou?

Marilu: na parte de trabalho[grifo meu], ajudou muito as pessoas, não falo minha família. Todos aqui, agora mesmo com esse problema da crise da fundã [FUNDHAM] ficou muita gente desempregada. E acho ruim por causa dessa questão lá do olho d’água, por que de lá papai tirava tudo, dava pra gente comer e vender pra comprar outras coisas.

Sueli: vocês viviam melhor antes?

Marilu: é, com certeza (comunicação oral)95

Genival: O nosso município ficou famoso no mundo todo, vive aparecendo na televisão e a gente fica orgulhoso disso [grifo meu] (comunicação oral)96.

Por sua vez, o processo de assimilação do discurso ambiental é percebido na

enunciação, pelas populações locais, de imagens de interdição na gestão do parque: não

desmatar, não caçar, não queimar:

94 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 95 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Marilu Sanches Antes. 96 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Genival Nascimento Pereira.

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Ferreira: a doutora Niède é uma mulher sabida e malvada, mas ela fez uns benefício aqui bom, como a caça mesmo se ela não tem proibido a caçada aqui [grifo meu], já era uma fome terrível e hoje, não, tá cheio de tudo quanto é coisa boa [grifo meu], nesse parco dela. Mas vejo dizer que o Lula quer diminuir esse parco, mas tem um chefe aí que não aceitou diminuir o parco. Diz que é por que é muito grande. Mode a indenização, mas ele disse que vai pagar todas as custas do parco, ela gasta muito, a doutora Niède, gasta demais, o parco é grande. Mas ela, se ela não tivesse feito isso, aqui tava uma pobreza horrível de grande. Justamente que tinha muita caça. Agora ela não deixa matar de jeito nenhum (comunicação oral)97

Sueli: você gosta do parque?

Genival: eu gosto por que é coisa que preserva a nossa história e a nossa fauna. Acho que se não existisse esse parque hoje já não existia mais nenhum desses animais que existe hoje aqui. É uma boa forma de preservar o que já teve no nosso município [grifo meu] (comunicação oral)98.

Por seu turno, o discurso de convivência com o semi-árido é enunciado através das

seguintes imagens: o sol como positivo, a captação de água da chuva, a criação de animais e

tecnologias apropriadas às condições climáticas:

Gérson: o sol é nossa riqueza [grifo meu]. No semi-árido, o sol por umas partes pode até atrapalhar, mas por outras não atrapalha muita coisa não. Quando tem chuva, tem que ter o sol pra controlar, mas o sol às vezes mata as plantas, mas por outro lado é bom também. Por que onde tem só inverno sem sol não produz e a gente tem que aprender a conviver com isso [grifo meu]. Uma hora quebra, outra se recupera.

Sueli: vocês fazem aproveitamento do sol pra alguma coisa?

Gérson: sim, aqui, por exemplo, a gente cria o bode [grifo meu]. A criação do bode não se dá com muita chuva, se não tiver o sol, não produz nada, não cria. Adoece, não dá. Então como a criação é criar bode mesmo, então o sol não atrapalha não. Desde que tenha controle, com a chuva criar o pasto [grifo meu] e ter o sol também. A criação de bode se dá bem com o sol (comunicação oral)99

É importante perceber que os referidos processos mediam o restabelecimento de

códigos das populações camponesas com o suporte natural, num contexto complexificado.

Com efeito, podem-se vislumbrar, aí, indícios de relações que permitem vida à natureza e à

cultura, na configuração de um sistema auto-organizador ou auto-eco-organizador, isto é,

autônomo/dependente em relação aos seus ecossistemas (MORIN, 2002), que pode ser

97 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Norberto Pinto do Nascimento. 98 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Genival Nascimento Pereira. 99 Comunicação oral com Gérson Dias dos Santos, realizada no Bairro São Pedro, em 28/05/2004.

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percebido na forma como falam da importância do parque, inclusive já moderando problemas

havidos durante o pico da crise.

Dos três processos em análise, dois tratam da relação entre natureza e cultura e

surgem, aparentemente, sem dialogar entre si: preservação ambiental e convivência com o

semi-árido. O terceiro surge a partir dos outros dois, visto que ambas as mediações são

conduzidas por sujeitos e projetos da cultura urbana.

Entretanto, vale salientar que uma diferença básica entre o processo de assimilação

do discurso ambiental e o da proposta de convivência com o semi-árido reside nas

metodologias adotadas nos dois processos: o primeiro não partiu dos saberes locais:

Sueli: o senhor acha que com a vinda do parque melhorou a vida das pessoas?

José Belisário: bom, eu acho que melhorou, não melhorou pra mim, por que eu nunca trabalhei lá, também ninguém me ofereceu nada. Num fiz parte, nem ninguém [grifo meu], nem nunca me deram parte.100

Quanto ao segundo processo, este abordou as populações locais em interlocução

permanente em todas as suas etapas, o que resulta numa assimilação mais rápida do discurso

mediado. De fato, a mediação pelas ONG’s, especialmente, a Cáritas Brasileira e o IRPAA

teve início em 2001. Como se pode ler, abaixo, conteúdos da proposta já se mostram

integrados ao discurso local, especialmente, a desmistificação da natureza semi-árida, no que

tange à culpabilidade humana pelas secas:

Sueli: por que você acha que tem seca?

Gérson: acho que a seca tem os fenômenos que trazem, não sei se é isso mesmo. Não sei porque nuns lugares chove, noutros não. É fenômeno da natureza [grifo meu]. Nele girar, naquelas áreas a que pertence o fenômeno acontece a seca.

Sueli: pode ser castigo de Deus?

Gérson: não, não é não. Deus não vai castigar assim todo tempo não. Pode dar um castigozinho, mas não é assim todo tempo não. É mesmo a natureza, sei que é Deus que manobra a natureza, mas a seca não é castigo de Deus não. É um fenômeno que acontece. Aqui o semi-árido vem de muitos

100 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com José Belisário de Miranda.

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anos, não foi criado por a gente aqui não [grifo meu] (comunicação oral)101

Nesse processo, a metodologia de trabalho consiste em tomar decisões, realizar

atividades e prestar contas da gestão do processo, em conjunto com as populações locais. Em

alguns momentos com representantes, noutros, direto com as comunidades102.

Com efeito, essas idéias se concretizam, na prática, com experiências de

recuperação da valoração de plantas e animais típicos do semi-árido, como o umbu [Spondias

tuberosa Arruda Câm] e o bode [Capra hircus]. De fato, havia preconceito com os dois

espécimes: a carne de bode era tida como de qualidade inferior, comparada à carne bovina e a

de ovelha, sendo, às vezes, vendida como carne de ovelha pela semelhança com esta e pelo

preço melhor. Atualmente, ocorre exatamente o inverso: carne de ovelha é vendida como

sendo de bode, por esta encontrar-se mais valorada na região.

O umbu era tido como alimento só para os porcos. Atualmente, o fruto é colhido e

processado em doces, geléias e sucos, vendidos como produto exótico em eventos de feiras e

negócios na capital do Estado e noutras, como produto apropriado às condições de semi-árido.

A árvore foi simbolizada como ícone da convivência com o semi-árido e nos cursos, agentes

das referidas ONG’s apresentam o umbuzeiro como exemplo a ser seguido pelas populações

do semi-árido, por ser uma árvore que muda seu comportamento conforme a oferta de água:

perde as folhas, quando há escassez, ganha cor cinzenta para reduzir a perda de água e capta

água de chuva em suas raízes.

Sem dúvida, esses processos instituintes de uma nova convivência com o semi-

árido constroem imagens atenuantes para os problemas existentes na relação das populações

locais com o Parque. Entretanto, não se pode desconsiderar que essa relação é facilitada pelos

empregos que a administração do Parque possibilita para membros de muitas famílias. De

101 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos. 102Os momentos de decisão são realizados com representantes das comunidades, por suas associações, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, da Igreja Católica e do poder público municipal. A execução do projeto é feita diretamente com as populações locais em forma de cursos, palestras, seminários, encontros, visitas às roças, mutirões, intercâmbio com outros municípios e outros Estados, com base nas concepções freireanas de educação popular. O processo de capacitação apresenta dentre seus resultados: escolas municipais e estaduais, no município, executando o plano decenal de educação, que foi elaborado em oficinas pedagógicas de capacitação do corpo docente e técnico em contextualização do ensino no ecossistema semi-árido. O produto das oficinas, ao todo 08 oficinas, realizadas ao longo de três anos, materializou-se na primeira lei municipal de educação para convivência com o semi-árido, constante no anexo V.

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fato, uma pessoa empregada no parque provoca mudança na forma de representá-lo no

conjunto da família:

Sueli: você pensa trabalhar em que?

Marilu: aqui mesmo em Coronel, o único ponto da gente trabalhar com essas coisas é o Parque.

Sueli: você tem vontade de trabalhar no parque?

Marilu: eu tenho (comunicação oral)103.

José Belisário: mas eu vejo muitas e muitas partes de gente que fizeram parte. Quando ela [Niède Guidon] chegou aqui todo mundo acompanhou ela, iam mostrar as tocas, os carreiros, as caatingas, ela foi tomando pé, foi tomando conhecimento, e foi se melhorando a vida de muita gente. Tem muitos que tão é rico, ela dá emprego, outros são empregados de guarda, de escola, de hotel, tudo ela tem (comunicação oral)104.

Além da geração de empregos, outras formas de atenuação vinculam-se ao

processo educativo das crianças, quando funcionava uma escola dentro do Parque, e ao fato

de a região se tornar famosa mundialmente:

Sueli: você acha que o parque melhorou ou piorou sua vida?

Genival: bem, a minha vida, ele ajudou em algumas partes e piorou em outras. Ajudou na seguinte forma, por que eu tive, minha educação básica foi com a vinda desse parque, por que a doutora Niède, assim que chegou, ela educou muitas pessoas aqui. Agora, a parte que prejudicou foi, além da gente viver da agricultura, ela neutralizou o nosso forte, aí, neutralizou o nosso forte e não deu outra maneira de sobreviver para os que tavam lá dentro do parque, isso foi o que prejudicou (comunicação oral)105.

Nesse processo de harmonização, até mesmo a interdição das práticas de caça,

extração e queimadas, motivo central dos conflitos, é atenuada e vista como positiva. O

mesmo se pode dizer da extração da cal de forma predatória, uma das alternativas econômicas

também interditada, mas essa interdição também é vista de forma atenuada:

Sueli: e na exploração da cal, matava, prejudicava a natureza?

Manoel Lourenço: aí acabou com a caatinga. Foi a coisa melhor que Niède fez foi acabar com isso. Proibir isso. Esse mundo era desmatado, tiraram as madeiras tudo, queimaram tudo, você andava umas cinco

103 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Marilu Sanches Antes. 104 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com José Belisário de Miranda. 105 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 02/07/2004, com Genival Nascimento Pereira.

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léguas, era tudo desmatado, pra queimar o cal [grifo nosso] (comunicação oral).106.

Efetivamente, percebe-se que o parque começa a fazer parte da vida das pessoas

do lugar, que, por sua vez, enunciam saberes ambientais de preservação da natureza. Assim,

embora reconheçam os prejuízos provocados em suas vidas com a criação do parque,

conseguem perceber a importância de preservar a caatinga, não caçar, numa espécie de

reconhecimento dos direitos da natureza (REDCLIFF, 2002), no âmbito de uma nova

condição ético-comunicativa, capaz de orientar ações de forma convergente em contextos

diversos e com atores de interesses divergentes. Anuncia-se, talvez, uma ação comunicativa

que orienta os membros da comunidade em direção ao entendimento e à integração (LEIS,

2001). Inclusive, no que diz respeito à relação com as condições ambientais específicas de

semi-árido, demonstram conhecer melhor as possibilidades e limitações do ecossistema, sinais

de desmistificação das secas e uso apropriado de estratégias de convivência com o ambiente

semi-árido:

Sueli: vocês aproveitavam o umbu?

Silvera: aproveitava sim, antigamente, era um refrigério do pobre pra comer. Tirava pra comer, pra fazer a umbuzada pra dar pros filhos, que tinha o leite, quem não tinha chupava mesmo.

Sueli: como é que faz a umbuzada?

Silvera: se for do umbu verde, você tira ele, cozinha, depois de cozinhado você espalha bem espalhadinho numa corda, peneira o que você quiser se não quiser pode fazer sem peneirar. Cozinha bem cozinhado, você pode bater bem batidinho ele e botar o leite e bota o doce. E se for maduro, você espreme e faz daquela água, bota o leite e o doce.

Sueli: e esse leite pode ser de cabra?

Silvera: pode ser leite de cabra, do leite que for que você quiser.

Sueli: a senhora já tomou com leite de cabra?

Silvera: já, aqui pra nós aqui, a gente já labutou muito com leite de cabra, agora não labuto mais não. Quando os meninos eram pequenos, eu labutei muito com criação, eu era vaqueira. De gado é que eu não tenho costume, nunca criei. Leite de gado eu tou labutando agora por que eu compro.

Sueli: a senhora acha que a seca é castigo de Deus?

106 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes.

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Silvera: eu não sei não, eu nunca pensei que fosse castigo, pode até ser mais eu não sei não. Por que eu vejo tanta coisa aí, que o povo faz e não é castigo, é por moda (comunicação oral)107

Com efeito, as relações ambientais, no presente, com a natureza semi-árida são

vistas, comparadas com as do passado, como melhores, com mais possibilidades de acesso à

água:

Dona Isabel: lá bebiam água de caldeirão, desciam no pé de pau, o jatobá, desciam pra encher o barril, enchiam o barril, enchiam as cabaças e eu recebia na corda. Eu passava tempo lá mais eles. Ainda tem um vivo, ele acha muita graça que eu ando de moto, na garupa de moto, ele mora no Paraná, ele fala no telefone, acha graça de eu andar em garupa de moto. Ele morava lá, ele descia para panhar água e puxava na corda. Lá mais adiante tinha outro, eu não descia não que eu tinha medo, eu só fazia ajudar. Lá mais adiante tinha outro caldeirão, que descia na pedra. Esse de cá era no pé de pau e o de lá era na pedra. Da pedra tinha escada. Tinha a Zefa que subia a escada. A Zefa do Cancador subia com o barril na mão na carreira, ligeiro. A água lá é caldeirão fundo.

Sueli: ainda tem esses caldeirões lá?

Dona Isabel: agora hoje tem muita água, depois fizeram um açude, não sei se foi o Neuton ou o Bitoso que fez açude lá, aí não faltou mais água (comunicação oral)108.

Sueli: e sua água vem de onde?

Manoel Lourenço: agora eu tou pegando na cacimba que eu tenho ali. Quando chove é muita água. E quando não chove, a gente cava no chão e sempre consegue água. Acho que esse rio que passava aí, que secou, mas secou e ficou água embaixo. Quando a gente não tem água é só cavar dez palmos que dá água. Agora é salgada, não serve pra beber não. Pra beber a gente tem o caldeirão que a gente pega a água da chuva. Tem pra ali cacimba, poço, os caldeirão [grifo meu] [cisterna de captação de água da chuva]. No outro tempo bebia salgada mesmo, no tinha outro meio, agora não (comunicação oral)109.

Sem dúvida, podem-se perceber, nos novos discursos, indícios de estabelecimento

de um novo diálogo entre cultura e natureza, como base para uma nova relação entre formas

de vida humana e condições sócio-ambientais. Um diálogo que engloba e considera as

relações entre ciência e saberes tradicionais locais, entre tradição e modernidade, que implica

num processo de hibridação cultural, produzido por diferentes culturas, possibilitando

ressignificar as identidades individuais e as sociais (LEFF, 2001). A propósito desse

107 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 30/05/2004, com Silveira Pereira Paes. 108 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 109 Entrevista realizada na comunidade Barreirinho, em 29/05/2004, com Manoel Lourenço Paes.

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imaginário, como processo em construção, o capítulo 4 aborda o imaginário sertanejo com

ênfase nas populações locais da área estudada.

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CAPÍTULO IV

IMAGINÁRIO SOCIAL DE SEMI-ÁRIDO EM CONSTRUÇÃO: NOVOS DIÁLOGOS

ENTRE NATUREZA E CULTURA?

Neste capítulo, o imaginário social de semi-árido é abordado como em processo

de instituição, a partir do habitus das culturas sertaneja e nordestina, considerando-se que a

própria cultura nordestina se institui a partir da cultura sertaneja. De fato, trata-se de como

conjunto de artefatos (linguagens, palavras, conceitos, técnicas e regras), originalmente,

construído por sujeitos diversos no contexto crísico da colonização e que segue em sua

dinâmica histórica, na produção e reprodução da vida material e simbólica pelas relações e

práticas sociais.

4.1. Imaginário social de sertanejo a nordestino: de secas e retiradas

No imaginário social, processo e produto funcionam como uma memória,

transmitida de geração em geração, na qual se encontram conservados e reproduzíveis todos

os artefatos simbólicos e materiais que mantêm a complexidade e a originalidade da

sociedade, depositária da informação social, em que pesem as atualizações decorrentes da

dinâmica do processo cultural. Trata-se, assim, de um processo que alimenta as maneiras

próprias de ser, representar e estar em sociedade (GEERTZ, 1978).

Nesse sentido, o que se entende por cultura sertaneja, como cultura, em geral,

funciona pela engrenagem sócio-histórica que permite a produção e a reprodução cultural pela

sua institucionalização na sociedade. Esse processo conta com sujeitos do universo político,

assim como do sócio-artístico-cultural, em contexto amplo e local. A primeira delimitação

contextualiza-se, em termos amplos, no cenário da colonização, uma espécie de aventura da

conquista e ocupação do sertão, as terras americanas, que, para os colonizadores portugueses,

significavam um imenso vazio a ser preenchido com seus interesses, concepções e valores.

Em diálogo com Ricardo (1959 apud MORAES, 2000), um grande deserto, um desertão,

como era representado110, que tanto exercia atração quanto gerava medos quer de seres reais,

quer de imaginados, de animais e plantas, dos índios considerados bárbaros e selvagens, dos

110 Como apontado por Moraes (2000), o termo sertão seria, de fato, uma corruptela do termo “desertão”.

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caminhos e grotões. A ocupação gradativa daquele espaço faz emergir duas imagens: a do

lugar, como uma espécie de fronteira em movimento e a do sujeito social, que adentrava o

sertão, como pessoas rudes e fortes.

No contexto regional do que hoje se conhece como Nordeste, a concepção de

sertão se forja nas dimensões econômica e política, mediante o estabelecimento de fronteiras

entre a área de cultivo da cana-de-açúcar, o litoral, e a de criação de bovino, o sertão. Dessa

bipartição territorial resultou a base conceitual, profundamente enraizada nos discursos

relativos à construção da nacionalidade brasileira: o sertão é o que não se configura como

litoral (MORAES, 2000). Esta representação, de fato, ultrapassa as dimensões espaciais e

ganha contornos políticos e culturais no imaginário do Brasil como nação.

Esta construção original desdobra-se em outras que apontam para o universo

artístico-sócio-cultural que, por sua vez, conta com adesão, apoio, consenso, legitimidade e

crença. Dessa forma, os artefatos culturais e os próprios indivíduos são criações culturais e

históricas que, uma vez instituídas, dão coesão e unidade interna à “instituição total da

sociedade”, como visto por Castoriadis (1987, p. 230), funcionando como um tecido imenso e

complexo de significações que “impregnam, orientam e dirigem toda a vida de ‘uma dada’

sociedade e todos os indivíduos que, corporalmente, a constituem”.

Obras literárias como, por exemplo, “Grande Sertão Veredas” (ROSA, 1986), “O

Sertanejo” (ALENCAR, 1992) e os “Os Sertões” (CUNHA, 1999), pertencem a esse universo

de criações culturais que contribuem com a instituição do imaginário social de sertão. Essas

criações são, como dito por Castoriadis (1987), imaginárias, porque introduzidas na sociedade

por um processo criativo e por não corresponderem nem se esgotarem nos elementos racionais

ou reais. São sociais, porque só têm existência enquanto instituídas e compartilhadas por um

coletivo impessoal e anônimo.

Nesse sentido, as criações sócio-históricas, dentre elas as identidades dos

indivíduos e dos territórios, formam o conjunto das significações imaginárias que, juntamente,

com o processo de sua instituição, constituem o imaginário social. Este se desenvolve sempre

em duas dimensões, que não podem ser dissociadas: a dimensão lógica e a dimensão

propriamente imaginária.

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Pela primeira dimensão, a sociedade opera, age e representa, por meio de

elementos, categorias, propriedades e relações tidas como distintas e definidas. Neste aspecto,

para a instituição do imaginário sertanejo, foram-se mesclando a localização geográfica –

distante do litoral, atividades rurais - agricultura, pecuária, o aspecto físico das pessoas, suas

vestimentas, a forma de plantar e criar, as relações sociais estabelecidas, o modo de vida,

enfim.

Na dimensão propriamente imaginária, o esquema dominante é o da significação,

que se conecta uma a outra como uma cadeia infinita e não previsível, funcionando a partir do

remetimento-renvoi (CASTORIADIS, 1987). Nesse sentido, o imaginário sertanejo inclui

crendices, modo de vestir, de agir, de falar. A instituição básica desse imaginário é a língua,

transformada em linguagem pelos seus usos instituídos e narrativos em contextos e situações

diversificadas. Os sujeitos são emoldurados como indivíduos com direitos e deveres, ou seja,

como sujeitos formados e informados por um processo constante de aprendizagem social.

A informação, instituída pela memória, gestão, distribuição e recepção de cultura,

liga as dimensões lógica e imaginária, garantindo a produção e reprodução da cultura. Isto

dimensiona a prática social informacional pelos mecanismos através dos quais os

significados, símbolos e signos culturais são transmitidos, assimilados ou rejeitados pelas

ações e representações dos sujeitos sociais, em suas formas de participações nos espaços

instituídos (GEERTZ, 1978).

A referida participação dos sujeitos efetiva-se em determinados campos111 e

depende do habitus de cada agente social que, por sua vez, representa o esquema de

percepção e de ação de cada indivíduo, esquema esse adquirido e formado pela história social

de cada um deles e resultante de um longo processo de aprendizagem formal e informal. O

habitus, funcionando no estado prático da vida social, permite aos seus portadores operar um

senso prático da vida, como um esquema de percepção, de apreciação e de ação que é

acionado em determinadas situações sociais (BOURDIEU, 1980).

111 O conceito de campo está relacionado à forma de estruturação do espaço social e associado às subdivisões do contexto cultural mais amplo. Os diferentes campos existem em uma dada formação cultural e gozam de relativa autonomia na sua maneira de funcionar e existir. É uma situação institucionalizada em que os agentes desenvolvem suas ações como atividades regidas por regras válidas para cada campo, especificamente. Os campos exigem investimentos que implicam a posse e utilização de um capital cultural adquirido na família e reforçado pela experiência escolar e pelas práticas sociais (BOURDIEU, 1980).

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Nesse sentido, é importante reconhecer que os agentes ocupam no espaço social

uma posição determinada pela sua origem de classe ou grupo social. E, a partir da sua posição

neste espaço, esses agentes elaboram representações e executam ações estruturadas pelas

diferenciações entre eles próprios. Portanto, trata-se de um campo de forças onde os agentes

se enfrentam com meios e fins diferenciados, de acordo com sua posição numa estrutura de

posições, contribuindo desse modo para conservá-la ou transformá-la (BOURDIEU, 1989 e

1994).

Nessas condições, o agente social se expõe e é exposto num encontro entre habitus

e campo social de modo que, numa dimensão inconsciente112, através de suas práticas sociais,

aciona o seu esquema perceptivo, o que orienta as suas ações e representações sobre as

estruturas objetivas e sobre a sua posição e dos outros agentes, no sistema de posições sociais

constituído pelos diversos campos sociais.

Bourdieu (1982) identifica dois traços básicos comuns aos diferentes campos

sociais: o primeiro deles refere à geração da cultura como matéria de trabalho ou de uma

prática colocada sob a esfera da produção; o segundo, à sua organização em campos sociais

que classificam os sujeitos como produtores e receptores dos bens culturais, dentre a camada

social dotada de meios sociais (origem e pertencimento de classe) e instrucionais (cognitivos),

para manejar os códigos de deciframento das mensagens contidas nos bens culturais.

Nesse sentido, a geração da cultura pelas práticas sociais e sua organização, nos

campos sociais, constituem o universo simbólico sertanejo que, subdivido em campos de

produção cultural, transforma o capital cultural em privilégios e distinções, criando bens

culturais, dispostos num mercado simbólico, em que o valor de uma produção cultural é

determinado no funcionamento dos campos sociais, sendo os bens culturais o objeto da

informação/comunicação. Importante salientar, em diálogo com Bourdieu (1996), que os bens

culturais não são compartilhados socialmente, mas distribuídos conforme as instâncias de

produção, reprodução, transmissão e aquisição, compondo o modo de funcionamento dos

112 Por ser forjado no interior de relações sociais exteriores, necessárias e independentes das vontades individuais, o habitus possui uma dimensão inconsciente para os sujeitos, uma vez que estes não detêm a significação da pluralidade de seus comportamentos e nem dos princípios que estão na gênese da produção dos seus esquemas de pensamentos, percepções e ações: “...o habitus tende a assegurar sua própria constância e a sua própria defesa contra a mudança através da seleção que ele opera entre as informações novas, rejeitando, em caso de exposição fortuita ou forçada, as informações capazes de colocar em questão a informação acumulada e sobretudo desfavorecendo a exposição a tais informações...” (BOURDIEU, 1980:102)

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campos sociais, que funcionam pela informação/comunicação e pelas condições de produção

transmissão e aquisição dos próprios bens.

O processo informativo/comunicativo em que se situam os campos sociais e as

condições de produção transmissão e aquisição dos bens culturais dão dinamicidade ao

imaginário social, permitindo novas configurações simbólicas a partir de matriz imaginária,

ou imaginário radical, como considera Castoriadis (1982). Nesse sentido, pode-se considerar

que o universo simbólico sertanejo comporta-se como matriz instituidora de outros

imaginários sociais, como os de Nordeste e semi-árido.

Desse imaginário sertanejo faz parte um cenário no qual as categorias são imagens

sociais que acompanham os indivíduos para além de seus vínculos orgânicos nos seus campos

sociais. De fato, estas deixam de ser apenas referência distante para se caracterizarem como

interlocutor privilegiado no estabelecimento das identidades sociais a partir dos vínculos dos

indivíduos aos campos sociais bem definidos e permanentes - família, vizinhança, etnia,

trabalho – associados a grupos sociais categoriais, menos constantes, mais claramente

submetidos à ação do tempo, da história, das circunstâncias, resultado da expansão da

quantidade de referentes sociais produzidas pelas sociedades. Tais referentes trazem, como

conseqüência, o surgimento, cada vez mais novas, de categorias que, se produzem um

aparente esvaziamento do imaginário, são, de fato, o processo de reconfiguração e

ressignificação de outros universos simbólicos imaginários pela consolidação das novas

categorias (CASTORIADIS, 1982).

O referido cenário conta com imagens representativas das identidades sociais e do

território, encontráveis na literatura, nas artes plásticas, na música popular, nos discursos

locais e amplos, como se pode perceber no fragmento abaixo de um dos clássicos da literatura

sobre o sertão:

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. (...). Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... o sertão está em toda a parte (ROSA, 1986 : 1).

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João Guimarães Rosa fala dos sertões de Minas Gerais, Bahia e Goiás,

apresentando o território sertanejo como lugar distante, interiorizado, pouco povoado, com

muitas terras, onde predomina a natureza e onde há terras sem proprietários “onde os pastos

carecem de fechos”, fora dos raios do poder coercitivo do aparato estatal e com fronteiras não

delimitadas.

A forma pela qual o autor descreve o sertão denuncia o que Tuan (1980) chama de

topofilia, ou seja, “o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico” (TUAN, 1980,

p.106), com a memória cultural sendo construída pelas relações entre cultura e natureza. Esse

elo afetivo referido remete a relações que podem ser estéticas, prazerosas, táteis - sentir a

água, o ar, a terra, enfim, através dos sentidos, pelas formas, cores, sons, odores, movimentos

corporais, sabores do comer e beber e nos sentidos de reflexão e reação, num “trivium” de

sensação, percepção e representação, em que as sensações recebidas e percebidas se

comunicam para a construção das imagens que se agregarão ao imaginário social. Tais

imagens proporcionam o enraizamento humano no lugar e os valores do espaço habitado

constituem a concha protetora e criadora de imagens que permanecem guardadas escondidas

na base do imaginário social, o que atribui um valor simbólico ao meio ambiente vivido. A

topofilia dialoga com o que Castoriadis (1982) considera valor do lugar, como espaço de

posse, espaço proibido, forças adversas, espaços amados.

Nessa direção, o ambiente construído pela narrativa de João Guimarães Rosa é um

nicho, um abrigo no qual o laço se torna lugar, como visto por Maffesoli (1987), ao tratar

imaginário territorial, como lugar em que os objetos naturais ou construídos, diretamente

relacionados com a existência humana, estão guardados na memória. E a memória, por sua

vez, alimenta-se de uma materialidade, uma espécie de coleção de imagens em relação ao

lugar, aos elementos da natureza como rios, montanhas, campos, florestas. Estas, por sua vez,

emergem na linguagem de Rosa (1986) através do personagem Riobaldo, ao descrever o seu

modo de ser, o das outras pessoas, no falar da terra. Nesse sentido, a terra, a vida e o ser

humano formam complexo físico, biológico e antropológico (MORIN, 2002), como se pode

perceber no trecho abaixo:

Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. (...) Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas (...) eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor

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concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! (ROSA, 1986, p. 7-8).

O universo simbólico do imaginário sertanejo acima representado conta com

imagens de uma identidade social portadora de autonomia, força, consciência, o que a

diferencia das demais identidades, especialmente, as da cultura urbana.

O imaginário de sertão na obra referida não se refere exclusivamente ao Nordeste,

mas engloba parte deste território. E é em diálogo com este imaginário que se esboça o

imaginário de sertanejo nordestino, especificamente, no que diz respeito ao caráter de

fortaleza e autonomia. Nesse sentido, num estreito diálogo com Euclides da Cunha,

incorporam-se imagens trágicas das secas, fruto da natureza e da história, lembrando,

inclusive, que este autor contribui para pensar o sertanejo, em si, como sujeito social e

histórico.

A reunião desses elementos: a força do sertanejo e o drama das secas são a fonte

do que se materializa tanto em linguagem quanto em imagem, na composição do imaginário

que por sua vez, dialogam no processo de ressiginificação e redefinição das identidades,

fazendo coexistirem três universos, como dito por Castoriadis (1982), um linguageiro, outro

imagético e um terceiro, o qual se apresenta no entrelaçamento dos dois primeiros, submetido

à história. De fato, historicamente, a produção do imaginário nordestino tem como um de seus

motores a mistificação das secas como geradoras de todos os males sócio-econômicos, num

processo de culturalização da natureza e naturalização da cultura, em que as imagens e

linguagens de humanos se entrelaçam com o mundo natural:

Chape-chape. Os três pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balançava.

A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado, procurando na catinga a novilha raposa.

Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.

Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.

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- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era um homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:

- Você é um bicho, Fabiano.

Isto para ele era motivo de orgulho.sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.

(...)

- Um bicho, Fabiano.

Era. (...) não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã.

(...) Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. (...).

(...)

Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela sêca.

(...). A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se:

- Você é um bicho, Baleia.

Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem.Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na verdade, falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram difíceis e talvez perigosas (RAMOS, 1977, p. 18-21).

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No texto de Ramos (1977), a identidade social do personagem Fabiano

experimenta uma relação de aproximação e distanciamento com o mundo animal. Homem e

cadela são tomados um pelo outro e, ambos, são produtos das condições climáticas, na

especificidade das secas. A relação topofílica apresenta-se carregada de sentimentos que

denotam uma identidade cuja força vem da natureza – ser bicho, árvore, mas numa condição

subalterna marcada fortemente pelas secas. Estas representadas como a tragédia que faz do

sertanejo nordestino um errante, que migra massivamente a cada período de seca, portador da

carga simbólica trágica, como expressa o trecho abaixo.

Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história da minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra (MELO NETO, 1977, p. 21-25)

Severino busca identificar-se, inicialmente, pela forma primeira e mais explícita de

ser, pelo nome, no que falha por haver tantos outros com o mesmo nome e iguais não apenas

no nome, mas “em tudo na vida”. Apresenta-se, então, como um ser inscrito num universo

lingüístico, situado em primeira pessoa, quem fala, e agente da ação social – migrar -

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presenciada pela segunda pessoa do discurso, com quem ele fala. Assim, o que é acrescido à

falta de contorno, adquire caráter de identidade, isto é, afirmar-se a si mesmo para um outro

que o escuta é absolutamente necessário para a afirmação de um eu com desvalia evidente.

Desvalia esta, de fato, provocada por relações de poder, configuradas na espacialidade social

das condições climáticas que provocam a irregularidade das chuvas, instituídas como as secas,

as quais condicionaram a anulação do indivíduo humano como ser individual e coletivo que,

pela ação de migrar, busca reverter a situação, reinventando e ressignificando a si próprio.

Esta imagem e linguagem de tragédia se agregam ao imaginário sertanejo e,

depois, ao nordestino na segunda metade do século XIX, como fruto da crise econômica por

que passava a região que, a partir de então, tem as condições naturais tomadas como principal

causa dos seus problemas. Isto seria amplamente utilizado no discurso das elites regionais

para obtenção de maiores benefícios, na forma de recursos públicos, resultando no

estabelecimento de uma imagem do Nordeste pela qual a região e seu povo são condenados à

pobreza e ao sofrimento por uma natureza difícil de ser domada.

Daí fazerem parte do imaginário nordestino as imagens de sertanejo bravo, forte,

que não declina, que sonda o céu freqüentemente, amedrontando-se quando este se mostra

limpo de nuvens e cheio de esperanças ao enxergar as nuvens cinzentas (CUNHA, 1999)113.

Há ainda as imagens de moribundos, esfaimados, analfabetos e rudes; imagens de sofrimento,

resignação e desespero frente a um multiplicado poder da natureza; imagens de retirante, que

deixa o lugar dos seus afetos, imagens de roceiros simples e visceralmente ligados a terra;

imagens de uma linguagem fortemente ritmada; imagens místicas e religiosas nas inúmeras

promessas e crendices para fazer chover e, especialmente, a imagem de vítima, percebidas nas

representações sociais, na forma de inscrição, marca, traço, significante, face material, visível,

palpável, que os próprios grupos sociais externos e os próprios nordestinos utilizam para

forjar a sua identidade e as identidades dos outros grupos sociais (ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 2003).

4.2. O imaginário social de semi-árido: das retiradas à convivência

A imagem de vítima atribuída/assumida pelo sertanejo nordestino se, por um lado,

alimenta a instituição de uma identidade social marcada pela passividade, servindo de 113 A propósito, é comum encontrar na literatura sobre sertão, inclusive na piauiense, a presença constante do movimento cíclico da natureza, águas e secas, descrevendo a vida social (DOBAL, 1998; IBIAPINA, 1998 e CASTELO BRANCO, 1988).

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combustão para piedade e compaixão, por outro, também serve de base para a delimitação e

instituição de outras imagens, porquanto o imaginário social é dinâmico, movimenta-se,

dialoga. Com efeito, como dito por Castoriadis (1982), o imaginário corresponde à existência

de uma sociedade instituída. E como há sociedades e sociedades na composição do tecido

social, ele, o imaginário, está submetido às modulações sociais, ao movimento determinado

pelas relações sujeitas à história e à presença de outros imaginários.

Nesse sentido, o processo de instituição imaginária dialoga com a teoria da

identidade, esta, a identidade, considerada como “celebração móvel: formada e transformada

continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos

sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 1998, p. 13), comportando, inclusive,

identidades contraditórias, externadas conforme o contexto sócio-histórico-cultural.

Com efeito, o imaginário social de semi-árido é um conjunto imagético de relações

composto, inclusive, pelas imagens referentes ao território114 assim identificadas pelos grupos

sociais115 que se organizam em torno da proposta denominada “Convivência com o Semi-

Árido”, referido no capítulo III. Esta tem como proposição instituir um paradigma de relações

entre cultura e natureza de modo que as ações antrópicas considerem as condições naturais

nos seus limites e possibilidades, na região acometida pelas secas típicas de clima semi-árido.

Assim, é, na esteira do encontro de diversos símbolos, que os discursos do conjunto

imagético de semi-árido, em construção, trazem imagens de solidariedade, pobreza, fome,

miséria, ou seja, são mantidas as imagens trágicas atribuídas às secas, ao lado de imagens

indicativas de sujeitos ativos, que compreendem as limitações naturais e desenvolvem

estratégias apropriadas às condições ambientais, como referido no capítulo III. Emergem,

então, novos discursos camponeses sobre o parque e sobre a “convivência com o semi-árido”,

como se pode ler abaixo:

Dona Isabel: aqui todo mundo vivia de roça e de maniçoba. Tinha a maniçoba. Nesse tempo, todo mundo ia furar as maniçoba pra puder fazer a feirinha pra puder comer. Esse aqui já foi muito pobre. Era uma pobreza grande. Muita pobreza. Eu cheguei aqui, o meu marido tinha o ordenado, me chamavam era de grande. Eu servi a muita gente. Tinha uma pessoa passando precisão, eu mandava chamar. E quem não tinha morada, eu

114 Segundo Raffestin (1993), o território se forma a partir do espaço em que é alocada uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível, que se apropria do referido espaço concreta ou abstratamente, territorializando-o, ou seja, é um locus para onde se projeta um trabalho, orquestrado em relações de poder. 115 Chamo de grupos sociais as organizações não governamentais (ONG’s), movimentos sociais e sindicais.

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pegava e botava dentro de casa, pra dar de comer. Essas meninas sabem [apontando as netas] que eu gosto de dar de comer o povo. Gosto de dar de comer a quem tem fome. Teve outra seca em quinze, outra em trinta e dois. Ah, em trinta e dois morreu foi gente. Morreu gente de fome. Pra escapar comiam maniçoba, croatá116, arrancavam raízes, cascas pra pisar pra tirar os farelos pra comer. A mucunã117, botavam de molho, no outro dia pisavam, tiravam a casca, aquela casca grossa aí pisavam, torravam e ia pisar no pilão pra fazer o cuscuz (comunicação oral)118

Gérson: aqui antes de aparecer todo esse pessoal [grifo meu] pra cá, a gente era quase ... que não tinha noção do que podia acontecer. As pessoas não tinham assim ... o método de trabalho era muito difícil, num procurava fazer no sistema que a gente tá fazendo hoje. Antigamente a gente achava que só em derrubar a mata e queimar já tava suficiente e hoje não com os conhecimentos que a gente já tá tendo já, depois dessas reunião, desses projetos [grifo meu] que têm aparecido. Melhorou muito. A gente teve um entendimento, um conhecimento do que era antes. Hoje a gente já tá com uma instruçãozinha de saber como levar a vida no semi-árido [grifo meu] (comunicação oral)119

Os discursos estão pontuados de imagens do universo simbólico do imaginário

nordestino: roça, extrativismo como complemento de renda, as feiras como fonte de

abastecimento do que não é produzido na roça, imagens de seca, fome, pobreza, estratégias de

sobrevivência pela extração de raízes, cascas de pau, frutos silvestres, como a mucunã, junto

com imagens avaliativas de relação equivocada com a natureza, estas, embora, aparecendo em

menor freqüência. Tudo isto aponta para um processo instituinte de imaginário que, como dito

por Castoriadis (1982), interfere no jogo que produz e mantém o imaginário social através dos

grupos que têm participação de fato na dinâmica das sociedades, funcionando como

elementos que marcam a continuidade do cenário social.

A presença de mediadores no processo instituinte de imaginário emerge nas

narrativas acima, referidos como “todo esse pessoal” e “projetos” indicados como

responsáveis por trazer novos conhecimentos sobre a relação entre natureza e cultura,

especialmente, no que diz respeito à natureza em sentido mais amplo120, bem como à

especificidade semi-árida121, o que aponta para um processo instituinte, reconhecido pelas

populações locais, inclusive, com identificação de alterações provocadas pela mediação, em

relação ao como era antes “Antigamente a gente achava que só em derrubar a mata e queimar

116 [Bromelia sp] 117 [Mucuna pruriens] 118 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 27/05/2004, com Isabel Neres de Oliveira. 119 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos. 120 Os projetos que tratam a relação entre natureza e cultura, tomando a natureza no sentido mais amplo referem-se à intervenção da FUNDHAM – Fundação Museu do Homem Americano. 121 A mediação que diz respeito a semi-árido é realizada por ONG’s que desenvolvem a proposta de convivência com o semi-árido, especialmente, a Cáritas Brasileira.

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já tava suficiente”122 e como se encontra atualmente “e hoje não, com os conhecimentos que a

gente já tá tendo (...) Melhorou muito. A gente teve um entendimento, um conhecimento (...)

Hoje a gente já tá com uma instruçãozinha de saber como levar a vida no semi-árido”123.

Nessa direção, pode-se dizer que o imaginário social de semi-árido se institui

em estreita relação com saberes ambientais124, no sentido atribuído por Leff (2002). Nesta

perspectiva, o ambiente semi-árido não é apenas um mero circundante, mas uma categoria

sociológica referente a uma racionalidade social que se configura por comportamentos,

valores, saberes e novos potenciais produtivos. Isto equivale a dizer esse ambiente sociológico

institui potenciais e limites às formas e ritmos de exploração das potencialidades.

4.3. Símbolos do processo instituinte do imaginário social de semi-árido: arquitetura de

uma nova síntese?

O processo instituinte do imaginário social de semi-árido que emerge das falas

dos entrevistados foi também apreendido a partir das imagens gráficas produzidas por nove

sujeitos, pela técnica do AT-9, com base em Yves Durand (Apud PITTA, 1995), com recortes

de gênero e geração. Dentre estes sujeitos, sete haviam sido entrevistados125.

Esta análise de cunho estruturalista busca apreender a simbologia que, junto com

os elementos narrativos apreendidos pela análise de conteúdo das entrevistas, numa

perspectiva compreensivista, compõem o processo instituinte de imaginário social de semi-

árido. Nesse sentido, assim como feito com as falas conscientes, podem-se analisar o que

Bourdieu (1980) denomina dimensão inconsciente subjacente ao encontro do habitus e o

campo social, aqui apreendida através da técnica AT-9. Nesse sentido, como referido no

capítulo I desta dissertação, as estruturas são tomadas como portadoras de um rico

semantismo, corroborando, a riqueza e a complexidade dos sujeitos e do imaginário social e a

análise estrutural fica, então, circunscrita a uma perspectiva hermenêutica.

122 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos. 123 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos. 124 Saberes ambientais aqui são tomados como os próprios das populações camponesas locais, considerando que a relação entre natureza e cultura em que se alocam as referidas populações é mediada por um imaginário social que dialoga com um habitus que eiva a ética que orienta a referida relação. E a proposta de convivência com o semi-árido busca dialogar com estes saberes enquanto faz a mediação dos novos conhecimentos sobre a natureza semi-árida. 125 Os referidos sujeitos serão identificados apenas pelo número. A relação com os nomes consta no anexo II.

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4.3.1. Imagens gráficas e sua análise estrutural

Como se sabe, através da técnica do AT-9, trabalha-se a produção de imagens - o

desenho, com base em nove elementos arquetipais: queda, espada, refúgio, monstro,

personagem, água, animal e fogo, bem como com o relato do desenho e sua análise estrutural.

No que tange às imagens gráficas arquetipais produzidas pelos sujeitos interpelados na

pesquisa, estas podem ser descritas126conforme registro no quadro 02.

Quadro 02 - Registro de imagens gráficas

A análise estrutural permite identificar imagens nos regimes diurno e noturno e, no

caso, com predominância da quantidade de sujeitos no regime diurno127, conforme quadro 03.

Os relatos de número 1, 2, 3, 5, 6, 7 e 8 são do regime diurno, o regime das

antíteses, em que os opostos se enfrentam e encontram-se separados, enquanto os de número 4

e 9 são do regime noturno, conciliador dos opostos. Os relatos do regime diurno, exceto o de

número 3, mesmo se classificando como tal, mostram-se numa estrutura não-consolidada, o 126 Reprodução das imagens no anexo III. 127 As imagens gráficas dos relatos um, dois, três, cinco, seis, sete, oito e nove são imagens que apresentam estruturas defeituosas, na subcategoria pseudo-desestruturado, visto que as imagens são apresentadas em seqüência, sem relação entre si, o que se deu em função de dificuldade de compreensão da senha da técnica, em primeiro tempo. Porém, a narração mostra-se coerente e integra os nove elementos ou quase todos eles, havendo a recuperação posterior, o que permitiu a análise estrutural dos casos.

Queda: três casas caindo; três quedas d’água, uma pessoa caindo de bicicleta, um prato caindo da mesa e uma pessoa triste. Espada: quatro espadas em tamanho médio, em relação aos outros desenhos; três pequenas e duas grandes. Sendo quatro para cima; quatro para baixo e uma deitada. Apenas uma espada está associada a outro desenho, enfiada na árvore. Refúgio: três tocas, lugar de esconderijo perdido na mata; um esconderijo em casa; uma casinha para o pinto; uma oca de índio; uma casa velha no mato; uma árvore; uma moita. Monstro: Um animal de forma não identificada de tamanho pequeno, com traços humanos – o bob esponja; um morcego de tamanho pequeno; um animal de forma não identificada em forma circular de tamanho pequeno; um fantasma com características humanas de tamanho mediano; um gato de tamanho mediano e formas circulares; um animal de tamanho mediano, e formas arredondadas e assemelhadas a humanos; uma pessoa com caracteres deformados de tamanho pequeno; uma pessoa de tamanho pequeno; uma onça em traços retilíneos de tamanho pequeno. Personagem: Uma mulher jovem de tamanho pequeno; uma criança masculina de tamanho pequeno – o próprio autor; um homem adulto – de tamanho pequeno; um homem jovem de tamanho grande – próprio autor; uma menina pequena; um homem de tamanho pequeno; um homem de tamanho pequeno em forma de rabisco; um caçador; um homem em forma de rabisco – pequeno. Água: Água numa vasilha para apagar o fogo; um copo de água; 04 lagos de tamanho pequeno; uma vasilha de água; uma queda d’água; um poço. Animal: Um cachorro – em tamanho pequeno; um hipopótamo em miniatura; um cavalo – em tamanho pequeno; um cachorro – em tamanho pequeno; um pinto – em miniatura; um cavalo em tamanho grande; um pato em tamanho mediano; um gato em tamanho mediano; um jumento em tamanho mediano. Fogo: Cinco fogueiras em tamanho pequeno e arredondado; um sol tamanho grande; três fogos que se alastram.

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que aponta para a existência de processo instituinte de imaginário, ou seja, para uma transição

entre os regimes, melhor dizendo, o regime diurno em transição para uma estrutura de regime

noturno, o que, no contexto da pesquisa, configura o estar em crise, na qual se opõem

natureza e cultura, mas, em transição para uma situação em que os pólos conflitantes deixam

de se enfrentar e passam a se relacionar, ou seja, a conviver, conforme transcrição dos relatos

no quadro 04.

Quadro 03 - Sujeitos e regimes de imagens

Os sete relatos apresentam imagens no regime diurno dispostas em oposição e

centradas na luta, num maniqueísmo de imagens que opõem o bem ao mal, a ordem à

desordem, o ser ao não ser, ausência à presença. Os relatos falam do enfrentamento vencido

por um dos pólos e com a eliminação do outro, num gesto diairético e ascensional, que se

esforça para separar, discriminar, dissociar, num constante estado de vigília, sempre de armas

prontas. No entanto, nos relatos de números 6, 5 e 2, as imagens transitam entre os regimes

diurno e noturno. Com efeito, nos relatos de números 5 e 6, a luta é anunciada, mas sempre

protelada e no de número 2, a luta é anunciada, o personagem toma a espada, mas não faz uso

desta e usa a água para espantar o monstro, ou seja, procura evitar a luta e, depois, tenta

enganar o monstro também para que a luta não aconteça.

Vale destacar ainda a oposição entre água e fogo que acontece nos relatos de

números 1, 5 e 6, que também anuncia o regime diurno, em que os opostos se enfrentam e um

vence o outro. No entanto, nos relatos 2, 3 e 8, os elementos água e fogo não figuram com

simbologias opostas, não se enfrentam, aparecem justapostos, o que confirma o caráter

transitório para o regime noturno que, na empiria, configura-se na simbologia de estar numa

crise, a crise entre natureza e cultura, mas em regime de transição para uma estrutura

imaginária em que os opostos deixam de se opor.

Regimes Sujeitos

Diurno Um (criança feminina), sete (mulher idosa) e oito (mulher

idosa)

Dois (criança masculina) e cinco (mulher adulta)

Três (mulher jovem)

Seis (homem adulto)

Noturno Nove (homem idoso)

Quatro (jovem masculino)

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Com efeito, a centralidade de cada relato é a defesa da vida humana, em

detrimento de outras espécies, o que significa uma elevação do ser humano com vistas a

dominar, com um poder teocêntrico de separar o bem do mal e dominar a natureza, embora

haja em três relatos, os de números 6, 7 e 8, um monstro com semelhança humana, ou seja,

um monstro compósito, uma espécie de fusão entre natureza e cultura.

As imagens dos sete relatos indicam, como concebido por Durand (apud PITTA,

1995), a estrutura heróica, subdividida nas subcategorias super heróica, heróica integrada,

heróica impura e heróica descontraída o que, mais vez, indica a presença de uma estrutura

imaginária não-consolidada, seja por que ainda não se estruturou, caso da estrutura super

heróica, seja por apresentar já simbologias do regime noturno, que é a superação da situação

conflitual entre os opostos.

Os relatos de números 1, 7 e 8, caracterizados como estrutura super heróica, são

assim classificados por apresentarem o monstro hiperbolizado, o que leva o personagem a

estar sempre a postos com a espada na mão para enfrentá-lo, vencendo-o em dois casos e,

num deles, sendo vencido. A estrutura super heróica difere das demais por apresentar

elementos não coesos, até mesmo disfuncionais para a heroicidade (Durand apud PITTA,

1995) o que significa, no contexto da pesquisa, que há um imaginário social ainda não

estruturado, com elementos não coesos, em que a realidade resume-se a dois arquétipos, um

da cultura outro da natureza, respectivamente, monstro e personagem, e que não há espaço no

mesmo universo para os dois, um tendo que ser eliminado. Não há também espaço para os

demais arquétipos, isto simbolizando que o imaginário social da relação entre cultura e

natureza, ali, encontra-se desestruturado, mantendo a oposição entre cultura e natureza, como

pólos situados numa relação pouco coesa. Nesse sentido, a estrutura imaginária que se

encontra em processo de ressignificação não está ainda estruturada nesses relatos.

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150

Quadro 04 - Relatos de regime diurno

Relato 1 Um homem achou uma espada e queria, com ela, matar um monstro. Um índio estava com o homem e eles estavam procurando o monstro. Eles eram muito valentes. Apareceu um cachorro. Eles encontraram o monstro, o cachorro mordeu o monstro, mas o monstro venceu o cachorro e o homem e o índio. Eles saíram correndo e botaram fogo na floresta para espantar o monstro, mas o monstro veio e comeu eles e a floresta pegou fogo, mas o riacho apagou (relato do sujeito um, criança feminina).

Relato 2

Era uma vez, eu me assustei com o mostro. Eu vi e corri pra o esconderijo e peguei minha espada. O monstro estava no esconderijo e peguei um copo de água para jogar no monstro. Tive uma idéia de chamar o monstro para o fogo e chamei o bob esponja para ver o monstro. Fui ver as horas no meu relógio, que estava em cima da mesa e fui pegar o prato no armário e quebrei, fui dar água ao hipopótamo (relato do sujeito dois, criança masculina)

Relato 3 Um certo dia, um homem foi passear numa cachoeira, chegando lá, ele ouviu um barulho diferente, correu e se escondeu entre as árvores e de longe viu que era um monstro, um bicho muito feio. Ele teve a idéia de desenhar um círculo pra ver se isso chamava a atenção do monstro, mas não funcionou. Então ele saiu correndo e o monstro atrás, chegou num lago d’água, pulou dentro dele, pensando que o monstro tinha medo de água, mas não tinha, então continuou a correr, quando ele chegou mais na frente, tinha um cavalo, montou no cavalo pra continuar a fugir do monstro, pois já estava muito cansado de correr e o monstro não cansava. Quando o homem já não sabia mais o que fazer, encontrou uma espada encravada numa árvore, ele pegou ela e matou o monstro, fez uma fogueira e jogou o monstro dentro dela e foi embora cansado, mas feliz por sair vivo e não ter virado comida para aquele bicho feio (relato do sujeito três, jovem feminina).

Relato 5

Um dia ela saiu para ir ao circo, na estrada encontrou um gato que estava querendo pegar um pintinho, que estava escondido numa casinha. A menina saiu correndo e pegou a espada para matar o gato, mas viu uma casa caindo. A mesma parou e ficou admirada com aquela ocorrência que estava acontecendo. No dia seguinte, ela lembrou do pintinho e foi atrás, mas quando chegou perto, viu o fogo queimando a mata. Saiu apressada, foi até um lago que havia ali e apagou o fogo e salvou a mata. Mas ainda não esqueceu o pintinho. Foi até lá e encontrou o pintinho escondido em sua casinha, pois o gato não conseguiu pegar o pintinho. O gato ficava olhando, mas não conseguia pegá-lo (relato do sujeito cinco, mulher adulta).

Relato 6

Eu ia numa viagem e me perdi na mata. Não tinha o que comer, matei uma águia e comi, segui adiante e encontrei com o monstro. Em luta, Deus me ajudou que venci o monstro. Quando dei por mim, estava dentro de um círculo. De repente, o círculo pegou fogo, veio uma pessoa montada no cavalo, trazendo água e apagou o fogo. Depois fui com ele para o seu refúgio e me livrei desta batalha (relato do sujeito seis, homem adulto)

Relato 7 Era uma vez um monstro que se escondia numa casa velha, um dia, passando por perto do esconderijo, um homem com sua espada mata o monstro. O homem se chamava João e, quando voltou para sua casa, que caía aos pedaços, na última reserva de água que tinha, lá estava o pato, banhando e bebendo. Vendo aquilo João, muito zangado, matou o pato e assou no fogo. O pato deu prato delicioso (relato do sujeito sete, mulher idosa).

Relato 8 Um caçador estava no mato, caçando e encontrou o monstro. Ele pegou a espada e deu uns golpes no mostro, aí eu fiquei com medo. Aí eu me escondi no esconderijo. Eu estava muito cansada, aí veio uma pessoa que me deu um copo com água, aí veio um vento forte, aí pegou fogo no círculo, que tinha perto e dentro do círculo estava o gato que morreu queimado (relato do sujeito oito, mulher idosa)

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Quadro 05 - Sujeitos e estruturas do imaginário no regime diurno

No relato de número 3, há uma estrutura do tipo heróico integrada, em que o

monstro é hiperbolizado, persegue o personagem que, no entanto, foge, encontra a espada e

mata o monstro. A ação acontece num cenário que integra todos os elementos de forma

pertinente (Durand apud PITTA, 1995), o que significa que o imaginário da relação entre

cultura e natureza estrutura-se numa oposição perfeita: mantém o jogo de oposição na referida

relação, e todos os arquétipos integram-se no referido binômio, numa estrutura rígida,

portanto mais difícil de se modificar. Este é um indicador de presença forte da simbologia

conflitual consolidada entre natureza e cultura, o que não inviabiliza a simbologia processual

de instituição de um imaginário em que ambas deixem de figurar como pólos que se

enfrentam, já que a estrutura diurna consolidada se mostra apenas num dos relatos.

No relato de número 6, há uma estrutura heróica impura, a luta predomina, mas

não há a espada, o herói vence o monstro sem a espada e o refúgio ganha funcionalidade, é o

anúncio da estrutura mística (Durand apud PITTA, 1995), o que significa, no contexto

pesquisado, um processo instituinte de imaginário, em que a cultura domina a natureza sem

com ela lutar, em que cada arquétipo ganha sua funcionalidade no processo de simbolização,

ou seja, o aspecto conflitual está em processo de ressignificação.

No relato de número 2, há uma estrutura heróica descontraída, visto que a luta é

anunciada, mas não acontece de fato. Há o monstro, há o personagem com a espada, mas ele

não a usa, estando anunciada uma estrutura não heróica, como também se encontra no relato

do sujeito referido pelo número cinco. Nesta há uma estrutura heróica descontraída em função

de a luta estar anunciada, mas sempre protelada (Durand apud PITTA, 1995) o que, na

realidade empírica, simboliza que o processo instituinte de imaginário aparece mais

consolidado pela presença mais intensa de uma estrutura imaginária em que cultura e natureza

Estruturas imaginárias Sujeitos

Super heróica Um (criança feminina), sete (mulher idosa) e

oito (mulher idosa)

Heróica descontraída Dois (criança masculina) e cinco (mulher

adulta)

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não se opõem, convivem, mesmo havendo sempre uma luta anunciada, mas que nunca

acontece.

Os dois relatos do quadro 06 se caracterizam como regime noturno. O relato de

número nove, a princípio, mostra-se desestruturado, sendo, na verdade, não um relato, mas

vários. Porém, é possível perceber, em cada um deles, coesão e coerência, o que leva à

presença de uma estruturação.

O regime noturno é percebido em função de os relatos apresentarem imagens que

consideram a condição mortal dos humanos, ou seja, o ser humano não é sempre fortaleza e

sua existência está dotada de circularidade, em que tudo é passageiro e a espécie humana é

apenas uma das espécies. Nos referidos relatos, há uma eufemização do monstro, que aparece

como um belo animal, como mostra o relato de número 9. Aqui se evidencia a perspectiva de

construir um todo e não a de discernir, de separar, como no regime diurno. A luta é

metaforizada. Aliás, em um dos casos, não há uma luta de fato, mas a busca humana de

reparar o excesso de antropocentrismo. No outro caso, a luta ganha um caráter lúdico: o

personagem e o monstro não se enfrentam em luta, não há perigo, e o monstro simboliza

beleza.

Quadro 06 - Relatos e imagens do regime noturno128

128 Nestes dois casos, tanto o desenho quanto o relato apresentam coesão, portanto a análise foi feita a partir da imagem gráfica e do seu respectivo relato.

Relato 4

O círculo simboliza tudo o que não tem fim, por isso representei com o sol, que brilha, um lago com muitas águas onde as pessoas e os animais saciam sua sede, depois se refugiam em uma toca com a primeira invenção do homem, o fogo, que, ao passar do tempo, tudo que ele mesmo criou, passa a destruir. Esse é o monstro, o fantasma do tempo, que todo mundo tem medo de enfrentar. Mas com muita fé o homem pode se levantar e erguer sua espada e tentar começar tudo de novo (relato do sujeito quatro, jovem masculino).

Relato 9

O jumento saltou na roça e comeu o milho todo, a pessoa botou ele pra fora e ficou no prejuízo. O cabra foi pegar água e caiu, mas conseguiu se salvar por que tinha as raízes de pau e ele pegou e subiu. O cabra ia na estrada de bicicleta e caiu dentro da areia, mas não se machucou, só se emburralhou. O cabra foi tocar fogo na roça e queimou a cerca toda e ficou só a terra e ele sapecou o cabelo, as pernas. Quanto mais jogava água, o fogo subia. O tempo tava muito quente O cabra ia correndo, o outro ia atrás para tomar um pedaço de beiju, aí ele se escondeu dentro da moita (ele pediu o pedaço de beiju e o outro não quis dar, por isso correu atrás dele). O cabra caçou o outro, mas não encontrou. Ainda maginou em tocar fogo na moita, mas fez foi passar. E o outro ficou escondido comendo o beiju. O cabra tava tirando umas mangas no pé de manga alheio. Aí o dono do pé chegou e futucou ele com a espada. Ele desceu do pé de manga e correu e o dono ficou só olhando. A onça tava pegando as criações, o cabra chegou e a onça ficou só rosnando pra ele. Ele ficou com medo. Ele voltou e chamou os companheiros, quando voltou, ela tinha matado cinco criações, levado uma e deixado quatro lá, sangradas. Ele e os companheiros aproveitaram as quatro e comeram (relato do sujeito nove, homem idoso).

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As estruturas do regime noturno dividem-se em mística lúdica e sintética

simbólica, o que indica a existência de um processo em vias de consolidação da estrutura

imaginária nesse regime. Aí, os opostos perdem sua força opositora e passam a conviver fora

da situação de conflito.

Quadro 07 - Estruturas do imaginário no regime noturno

No relato de número 9 que, de fato, como já referido, não se reduz a um só relato,

é possível perceber uma estrutura, visto que, nos vários relatos que o compõem, há o

envolvimento dos nove elementos. A estrutura aí percebida caracteriza-se como mística

lúdica, porquanto a espada ganha uma função apenas alegórica e o monstro é transformado

num objeto desejado para animal de estimação, o que significa, na realidade empírica, que o

que figurava como inimigo, como pólo oposto, deixa de o sê-lo, ganhando novo sentido,

deixando, assim, de existir razão para a luta.

O relato e imagem gráfica de número 4 apresentam imagens que se enquadram na

estrutura sintética simbólica por tratar-se de uma reflexão a respeito do universo em forma

diacrônica de eterno retorno. É desenhado um homem com sua espada tentando vencer o

monstro devorador, representado por um fantasma, que é a própria ação humana de destruição

da natureza, ou seja, a luta é a tentativa do homem de retornar e corrigir os seus próprios

erros, personificado no monstro devorador.

O conjunto pesquisado, no seu todo, apresenta uma estrutura de imaginário social,

que pode ser visualizada no gráfico abaixo:

Estruturas imaginárias Sujeitos

Mística lúdica Nove (homem idoso)

Sintética simbólica Quatro (jovem masculino)

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super heróico

heróicodescontraídoheróicointegradoheróico impuro

místicointegradosintéticosimbólico

Ilustração 09 - Processo estrutural instituinte do imaginário social de semi-árido

No seu conjunto, a estrutura imaginária pesquisada mostra-se não-consolidada, em

duas direções: uma se dá rumo à consolidação de uma estrutura heróica no regime diurno, é o

super heróico, em que não há coesão na situação conflitual nem funcionalidade para todos os

arquétipos. A outra direção é de superação da estrutura heróica, rumo às estruturas do regime

diurno, de superação da situação conflitual. Havendo estrutura consolidada em amostragem

equivalente: heróico integrado, consolidação da situação de crise, e sintético, processo em que

os elementos crísicos encontram-se ressignificados.

Fazendo dialogar este imaginário com a realidade empírica referente, pode-se

aduzir que a estrutura imaginária – regime diurno, estruturas: super heróico, heróico

descontraído, heróico integrado e heróico impuro - que alimenta a situação de pico da crise

eco-social, vive, embora conviva com outras estruturas imaginárias que prenunciam a

transição para situação de acomodação crísica ou, como diz Neves (1996), trata-se do

estabelecimento de relações de homeostase, em que a crise não foi substituída por uma

situação de equilíbrio, mas os elementos crísicos continuam a viver numa situação de

ressignificação com a perda da força opositora entre estes.

4.3.2. análise de papéis e simbologias

Os papéis e simbologias aqui analisados referem-se aos nove arquétipos

desenhados e, por escrito, relatados por seus autores e autoras, conforme tabela 04, a partir da

própria compreensão dessas pessoas, o que estabelece um vínculo hermenêutico desta análise

com a escrita e interpretação dos sujeitos através das entrevistas cujos conteúdos foram

apresentados em capítulos anteriores.

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No processo de análise, os nove arquétipos foram organizados conforme

entrevistas com os autores, em: estímulo central (o personagem) como foco antropocêntrico

da análise; estímulos da ansiedade (a queda e o monstro) como o que conflita com a cultura,

ou seja, com o ser humano, que lhe provoca medo e instabilidade; estímulos de resolução da

ansiedade (espada, refúgio e elementos cíclico) como as opções de superar a situação de pico

da crise, e estímulos complementares (água, animal e fogo) como elementos que definem a

categorização da estrutura imaginária.

a) estímulo central

O estímulo central, o personagem, é simbolizado de forma positiva, no pólo do

bem e como vencedor, exceto, no caso do sujeito referido pelo número um, que o simboliza

como perdedor, por não ter vencido o monstro nem protegido a natureza. O personagem

recebe as simbologias da esperteza, da coragem, da proteção aos indefesos, da valentia. Em

todas as simbologias, com exceção dos sujeitos quatro e nove, há a confirmação do regime

diurno da imagem, a estrutura heróica e o antropocentrismo anunciado pela estrutura. Isto se

aplica até mesmo para aquele que não o vê como vencedor, visto que, até mesmo aí, o

personagem é posto no centro da luta.

Por seu turno, os sujeitos referidos pelos números nove e quatro apresentam o

estímulo central com importância relativizada. Num caso, o do sujeito identificado pelo

número quatro, o ser humano é simbolizado com parte da vida e, no outro, o do sujeito

referido pelo número nove, o ser humano é simbolizado como esperto, por aproveitar o que

sobrou da luta, da qual ele não participou, ficando o relato apenas no reino animal,

confirmando, desta forma, o regime noturno da imagem.

b) estímulos da ansiedade: a queda e o monstro

A queda é simbolizada como negativa pelos sujeitos identificados pelos números

um, dois, quatro e sete, por não garantir proteção, por representar prejuízo. A queda é, assim,

um símbolo catamórfico, que simboliza o tempo vivido, resume e condensa os aspectos

temíveis do tempo, imagem inibidora de toda e qualquer ascensão, relembrando

constantemente a condição humana terrestre. A imagem da queda, com esta simbologia,

indica o regime diurno da imagem (DURAND, 2002).

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Por seu turno, os sujeitos referidos pelos números três, cinco, seis, oito e nove

eufemizam a simbologia da queda, que aparece como: “bonita, mas perigosa” (sujeito três);

“positiva, por evitar a morte do gato” (sujeito cinco); “positiva por evitar o incêndio da

floresta” (sujeito seis); “positiva” (sujeito oito) “não negativa, por que a queda não machuca”

(sujeito nove). A eufemização é uma espécie de enfraquecimento de uma representação

através de sua banalização, como, por exemplo, o faz o sujeito identificado pelo número nove;

ou pela atribuição do seu sentido contrário, como ocorre com os sujeitos referidos pelos

números cinco, seis e oito. Ou ainda pela atribuição de aspectos positivos ao lado dos

negativos, como expressado pelo sujeito referido pelo número três. O processo de

eufemização anuncia a transitoriedade do regime diurno para o noturno (DURAND, 2002).

Isto significa que, empiricamente, a transitoriedade na situação de pico da crise entre cultura e

natureza para uma situação de acomodação dos arquétipos na situação crísica, em que os

mesmos perdem a sua força de oposição, indica o processo instituinte de imaginário social.

Outro elemento da ansiedade é o monstro, simbologia teriomórfica, se

representada por animal que, por sua vez, é constituído pelo esquema do animado, ou seja, do

movimento, que se manifesta sob diferentes formas. Uma das formas mais primitivas do

animado é a do formigamento, a imagem fugidia no esquema da agitação, do fervilhar, que dá

aura pejorativa à multiplicidade que se agita, provocando a repugnância primitiva anunciada

no esquema da animação que o arquétipo do caos constitui. A projeção assimiladora da

angústia diante da mudança é a primeira experiência do tempo expressando sua passagem que

conduz à morte, por isso valorada de forma negativa, por ser o medo diante da fuga do tempo,

que, na verdade, é o medo da morte, simbolizado pela mudança e pelo ruído. Uma outra

forma é o movimento agressivo que dá à animalidade o caráter da crueldade, de algo

devorador, devastador (DURAND, 2002).

Os sujeitos representados pelos números um, dois, três e nove simbolizam o

monstro em formas de animais não domesticados, mais próximos do esquema de animação

acima referido, portanto mais próximo da simbologia da angústia pela passagem do tempo e

condução à morte129 e, conseqüentemente, do regime diurno da imagem. Os sujeitos referidos

pelos números quatro, cinco, seis, sete e oito simbolizam o monstro, respectivamente, como

fantasma (aspecto humano), um gato (animal doméstico), animal com formas humanas,

pessoa deformada, numa espécie de eufemização da representação, imprimindo um caráter 129 A morte aqui, diferentemente, do regime noturno, não é tomada como condição da circularidade das espécies, mas como o inimigo que abate, a ameaça constante ao antropocentrismo, por isso sempre motivo de angústia.

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dialogal entre regimes de imagens diurno e noturno, ou seja, há mais sujeitos no imaginário de

regime noturno do que diurno, o que remete para uma presença mais forte de realidade

processual de instituição do imaginário, em que natureza e cultura se opõem para uma

situação de convivência entre ambas.

c) os três estímulos de resolução da ansiedade: a espada, o refúgio e o elemento cíclico:

Os três estímulos de resolução da ansiedade indicam os seguintes regimes de

imagem: a espada, o regime diurno; o refúgio, o regime noturno, na estrutura mística; e o

elemento cíclico, o regime noturno, na estrutura sintética (DURAND, 2002).

Nos relatos de números 1, 2, 5, 6 e 8, confirma-se o regime diurno das imagens e a

estrutura heróica, embora esta se apresente com representação enfraquecida. No relato do

sujeito referido pelo número um, o personagem usa a espada, mas esta não resolve o

problema, ou seja, há a espada, o personagem faz uso desta, mas a mesma não é capaz de

resolver o que provoca a angústia do personagem; já, no relato do sujeito identificado pelo

número dois, o personagem pega a espada, mas não faz uso desta, e sim procura distrair a

atenção do monstro para não enfrentá-lo. Também no relato do sujeito representado pelo

número cinco, o personagem pega a espada, mas não a usa para lutar, sendo a luta sempre

protelada. Ainda no relato do sujeito representado pelo número seis, o personagem enfrenta o

monstro, vence-o, mas não faz uso da espada. E no relato do sujeito identificado pelo número

oito, o personagem toma a espada enfrenta com ela o monstro, mas não o mata.

Por seu turno, nos casos três e sete, confirma-se o regime diurno e a estrutura

heróica, visto que o personagem, nos dois casos, usa a espada com sucesso, tomando dela e

matando o monstro.

Já no caso quatro, a espada aparece metaforizada e desfuncionalizada do seu papel

de solucionador da ansiedade. E, no caso nove, também, a espada aparece desfuncionalizada,

visto que aparece fora do cenário da luta, sendo usada apenas para alertar uma pessoa de algo

que ela não deve fazer, o que leva a concluir que a luta tende a desaparecer, ou seja, há a

transitoriedade de uma visão polarizada de mundo para uma posição dialogal.

No que tange ao refúgio, nos casos dois e três, este foi a primeira procura para a

resolução do conflito, embora não se tenha conseguido solucioná-lo. No caso cinco, o refúgio

é que protege o animal e evita a luta. No caso seis, o esconderijo protege o personagem no

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segundo desafio que encontra. No caso sete, o personagem, ao buscar o refúgio, encontra um

outro desafio: a falta de água para beber. No caso oito, o personagem busca o refúgio por estar

com medo do monstro, mas, neste, pega fogo. O refúgio não aparece no caso um e, no caso

quatro, ele é metaforizado como algo que protege e proporciona descanso. No caso nove, o

refúgio é uma moita que esconde o personagem, não havendo luta, mas, apenas, uma

brincadeira.

Como se constata, apenas em um dos casos, o refúgio não aparece. Nos demais,

ele é de fundamental importância. Na maioria dos casos, secunda a espada e, noutros,

substitui-a, confirmando a transitoriedade entre os regimes noturno e diurno, sendo que, no

regime diurno, há uma estrutura atenuada enquanto no regime noturno é a estrutura mística

que se destaca.

No que concerne ao elemento cíclico, este é representado por imagens de circo,

relógio, círculo desenhado no chão, sol, a mata em círculo, um prato, a mata em roda. No caso

um, o elemento cíclico não entra no relato; nos casos dois, cinco, seis, sete e oito, esse

elemento entra apenas na composição, uma indicação de ausência da estrutura sintética do

regime noturno. Apenas, no caso quatro, há a presença da estrutura sintética.

Analisando o conjunto dos estímulos de resolução da ansiedade, confirma-se a

presença de uma circularidade imaginária, ou seja, um processo em instituição transitando de

uma estrutura polarizada entre extremos para uma ressignificação dos elementos antitéticos

(heróico descontraído e impuro), possibilitando diálogos entre estes (místico integrado) e já

indicando a direção do itinerário imaginário: a síntese dos opostos.

d) os três estímulos complementares, a água, o animal e o fogo:

Dos elementos complementares, a água e o fogo fazem parte das técnicas

simbólicas da purificação, uma espécie de purificação da ascensão, desde que com os

aspectos, respectivamente, limpidez da água e fogo como luz. Porém, os dois possuem

simbologia dual: o fogo tanto pode ser luz, vida, ligado ao ciclo agrário, quanto destruição. E

a água, se limpa, purifica; se escura, é um símbolo nictomórfico da impureza e, se corrente, é

o que não tem fim, por isso cíclica, mas é a que anuncia o fim, por seu movimento rápido

(DURAND, 2002).

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A água é representada, nas imagens produzidas, como: água numa vasilha, copo

d’água, lago. Em nenhum caso, há água corrente e não há referência à qualidade da água, o

que pode ser atribuído ao fato de não haver espaço para este tipo de preocupação no universo

pesquisado e representado, em virtude da grande escassez. Assim, a água é representada

sempre como algo bom, sem ambivalência, com as valorações de bondade, pureza, salvação,

o que se confirma pela simbologia dada à água por todos os sujeitos: proteção, arma para se

proteger do monstro, vida, salvação e satisfação.

Com efeito, a água não é só um elemento complementar de purificação, mas ganha

o destaque do elemento de resolução da ansiedade, como a espada, por exemplo.

Já o fogo é representado como fogueira, feita intencionalmente por humanos ou

como fogo que se alastra queimando a mata, sem origem especificada. Em três casos, o fogo

representa salvação, purificação, luz, respectivamente, nos relatos dos sujeitos referidos pelos

números dois, três e quatro. No relato do sujeito identificado pelo número sete, o fogo é usado

no cozimento de alimentos, o que remete para a análise de Lévi-Straus (2204) sobre o cru e o

cozido, mais propriamente para a relação entre natureza e cultura, sendo o fogo o elemento

que transforma natureza em cultura. Nos demais, a simbologia traz valoração negativa, como

destruição, morte, perigo, o que leva a pensar no diálogo intercultural entre cultura local e a

de preservação ambiental130, esta que, por sua vez, demoniza o fogo.

Outro estímulo complementar, o animal, pertence ao universo da simbologia

teriomórfica sendo representado por figuras de cachorro, hipopótamo, cavalo, pintinho, pato,

gato e jumento, todos domesticados, exceto o hipopótamo. As figuras falam do processo de

domesticação que eufemiza a valoração teriomórfica, numa espécie de domesticação do

elemento da ansiedade, movida pelo temor à morte.

Em seu conjunto, os relatos analisados confirmam a hipótese de um imaginário

social em processo de instituição através de um universo simbólico com elementos estruturais

que dialogam com regimes que se opõem, isto é, um regime antitético, do enfrentamento entre

pólos oponentes, e um regime que ressignifica os elementos de conflito e o processo

130 Importante destacar que a mediação das ONG’s na proposta de convivência também vêem o fogo como negativo, diferindo da posição da administração do parque na forma como aborda a questão junto aos camponeses: não apresenta de imediato a exigência de acabar com o fogo nas roças, mas adota uma metodologia processual para abordar a questão: primeiro, trata de controlar o fogo nas roças, depois, em cursos, apresenta alternativas de produzir sem o fogo para que, gradativamente, haja convencimento e abandono da referida prática.

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conflitual, fazendo-os perder o caráter antitético. No entanto, aí, a resolução não se dá pelo

estabelecimento de uma situação de equilíbrio, mas pela convivência entre os arquétipos. Isto

significa dizer que uma estrutura que se organiza de forma antitética vê o mundo divido em

bem e mal e encontra-se eivada por muitas atenuações, seja pela eufemização de imagens

negativas, pela desfuncionalização de estímulos que reforçariam a estrutura dual, pela

banalização de elementos que deveriam assumir importância numa estrutura bipolar ou pela

transformação de elementos centrais de conflitos em imagens lúdicas.

Empiricamente, tem-se uma situação também transitória: um imaginário que

transita de uma situação conflitual de separação entre natureza e cultura, para uma relação

dialogal entre ambas. Melhor dizendo, a instituição do imaginário semi-árido emerge pelo

processo de ressignificação dos elementos da natureza e da cultura, pela interface dos

processos locais com a mediação exercida por processos externos da cultura de preservação

ambiental a saber: numa linha mais geral, a do Parque e, ainda, a da proposta de convivência

com o semi-árido, focada especificamente nas relações humanas com o ecossistema local.

Elementos Representação Papel/função Simbolismo Queda Sujeito um Sujeito dois Sujeito três Sujeito quatro Sujeito cinco Sujeito seis Sujeito sete Sujeito oito Sujeito nove

casa caindo um prato caindo da mesa cachoeira uma pessoa triste casa caindo queda d’água casa caindo queda de água uma pessoa caindo de bicicleta

Lugar de morar; Não tem função Lugar de passeio castigo Desviou a atenção da menina que ia matar o gato Apagou o fogo Moradia Não entrou no relato Mostra que é forte, caiu e não se machucou

Negativo – não protegeu Negativo bonito, mas perigoso negativo - perda positivo – evitou a morte do gato positivo – evitou o incêndio da floresta. Negativo – não protege a água positivo não é negativo – cai e não machuca.

Espada Sujeito nove Sujeito oito Sujeito sete

espada pequena – apontada para cima espada média – apontada para baixo. espada pequena – inclinada

Alertar o ladrão de mangas Golpear o monstro Mata o monstro

Não negativo – apenas alerta e não fere. Protege o caçador do monstro. positivo – mata o monstro.

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Sujeito seis Sujeito cinco Sujeito quatro Sujeito três Sujeito dois Sujeito um

espada média – em posição deitada. espada grande – apontada para baixo. espada média – apontada para cima. espada grande – encravada numa árvore. espada pequena – apontada para cima. espada pequena – apontada para baixo

Enfrentou e matou o monstro. Tentou matar o gato, mas não foi preciso, o pinto já estava protegido. Instrumento para reinício. Matar o monstro. Não serve de defesa para o personagem. Não tem função.

Salva o personagem. Não necessária, há outros meios de defesa. Começar de novo. Proteção – salvação do personagem. Sem utilidade. -

Refúgio Sujeito um Sujeito dois Sujeito três Sujeito quatro Sujeito cinco Sujeito seis Sujeito sete Sujeito oito Sujeito nove

Uma toca casinha. Uma árvore. Uma toca. casinha. oca de índio. casa velha. toca. moita.

Não entrou na história. Esconder o monstro. Esconder o homem. Lugar de reflexão. Escondeu o pintinho. Moradia de um protetor da natureza. Esconderijo do monstro. Esconderijo dos caçadores. Escondeu o homem com o beiju.

- negativo – não protege o personagem. Não dar conta de proteger o personagem. Proteção. Proteção. Acolhida do personagem. Não protegeu o monstro. Acolhida do personagem. Proteção.

Monstro Sujeito um Sujeito dois Sujeito três Sujeito quatro Sujeito cinco Sujeito seis Sujeito sete

animal pequeno e arredondado morcego pequeno e com formas arredondadas animal pequeno e arredondado fantasma gato animal com formas humanas. pessoa deformada.

Come o personagem. Ataca o personagem. Perseguiu o homem. Provoca medo. Tenta matar o pintinho. Ataca o personagem. Ataca o personagem.

Morte. Não venceu nem foi vencido. Perigo. Medo. Perigo. Perigo. Mal

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Sujeito oito Sujeito nove

pessoa deformada onça

O caçador ataca o monstro Matou as cabras e não comeu tudo.

Mal. Beleza.

Cíclico Sujeito um Sujeito dois Sujeito três Sujeito quatro Sujeito cinco Sujeito seis Sujeito sete Sujeito oito Sujeito nove

circo relógio 01 círculo desenhado no chão Sol 01 circo a mata em círculo 01 prato a mata em roda 01 roça

Lugar de diversão. Mostra as horas. Usado para distrair a atenção do monstro. Começo sem fim. Diversão. Lugar em que o personagem se perde. para comer o pato. Pega fogo. Pegou fogo.

Lazer. Desfoca o conflito. Não funcionou. Luz Objetivo não alcançado. Perigo. Vingança e saciar a fome. Perigo. Perigo relativizado.

Personagem Sujeito um Sujeito dois Sujeito três Sujeito quatro Sujeito cinco Sujeito seis Sujeito sete Sujeito oito Sujeito nove

O homem homem – o autor homem homem menina homem homem caçador homem

Enfrentar o monstro Foge do monstro. É perseguido pelo monstro e mata o monstro. Reflete sobre a vida. Protege o pinto. Salva o autor do fogo. Mata o monstro e o pato Caça e fere o monstro. Comeu as cabras que a onça (monstro) matou.

Negativo – não se salvou nem protegeu a natureza. esperteza. Coragem. Faz parte da vida. Protetora dos indefesos. Proteção. Valentia. Valentia. Esperteza.

Água Sujeito um Sujeito dois Sujeito três Sujeito quatro Sujeito cinco

Água numa vasilha copo de água lago lago um lago

Usada pra apagar o fogo na floresta Foi jogada no monstro. Buscado como proteção Sacia a sede do homem e dos animais. Apagou o fogo na mata.

Proteção. Arma pra se proteger do monstro. Não protegeu o homem do monstro. Vida salvação.

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Sujeito seis Sujeito sete oito nove

água numa vasilha água numa vasilha copo com água água numa vasilha

Apagou o fogo. O pato se banha nela. O personagem bebeu a água. Apagou o fogo na mata.

salvação Vida, mata a sede. Satisfação. Salvação.

Animal Sujeito um Sujeito dois Sujeito três Sujeito quatro Sujeito cinco Sujeito seis Sujeito sete Sujeito oito Sujeito nove

cachorro hipopótamo cavalo cachorro pintinho cavalo pato gato jumento

Morde o monstro e é vencido pelo monstro. Bebe a água dada pelo personagem. Serviu para a fuga do homem Bebe água no rio Era perseguido do gato Serve para trazer o homem com a água para apagar o fogo. Se banhou na água e foi morto pelo homem. Morreu queimado no círculo. Saltou na roça e comeu o milho.

Coragem e pouca resistência. Distrai o personagem da luta com o monstro. Ajuda. Amigo do homem. Indefeso. Auxílio. Vítima do homem. Vítima do fogo. Ajuda o homem.

Fogo Sujeito um Sujeito dois Sujeito três Sujeito quatro Sujeito cinco Sujeito seis Sujeito sete Sujeito oito Sujeito nove

fogueira fogueira fogueira fogueira fogo fogo fogo fogo fogo

Incendiou a floresta O monstro foi jogado no fogo. O homem jogou o monstro dentro do fogo. A 1ª invenção do homem. Queima a mata Pegou fogo na mata. Assou o pato Queimou a mata Queimou a roça

Mal, morte. Salva o homem. Salva o homem. Luz, positivo. Negativo, morte Perigo. Auxílio para preparar alimento. Perigo. Perigo relativo, queima pouco.

Tabela 04 – AT-9 – Representação, função e simbolismo

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CONCLUSÃO

Um trabalho com vistas a apreender, compreender e explicar o universo das

relações objetivas e subjetivas entre população e meio ambiente, especialmente, referindo ao

imaginário social, ou seja, às construções do imaginário humano sobre o real, através das

quais os indivíduos elaboram a compreensão do seu universo e nele agem, como dito por

Ruscheinsky (2000) exige repensar o caráter atribuído à relação entre mundo material e

simbólico, entre dimensão objetiva e subjetiva, entre os fatos e a respectiva compreensão

destes, para compreender as construções imaginárias a partir do material, do objetivo e dos

fatos.

Com efeito, o trabalho de tentar ver o mundo a partir do imaginário, faz emergir

aspectos subterrâneos que, por sua vez, levam à compreensão da instituição do social, sua

normatização, os processos de construção do tecido social ou dos tecidos sociais e,

especialmente, as rugosidades do tecido social para ajustar-se às demandas do cotidiano.

Enfim, contribui para a compreensão das práticas sociais.

Com esse intuito, o presente trabalho de pesquisa buscou traçar um itinerário que

possibilitou enxergar trajetos na instituição de identidades espaciais, temporais, subjetivas e

coletivas. Trajetos estes que percorreram temporalidades não apenas cronológicas, buscando

fundindo o espaço-tempo cronológico, com o espaço-tempo mundial (na questão ambiental

que enfrenta) com o espaço-tempo doméstico (as demandas familiares ante o redesenho de

preservação ambiental), com o espaço-tempo da produção (como ser camponês numa área de

proteção integral?) e com o espaço-tempo da cidadania (no âmbito de uma relação conduzida

pelo poder estatal que tira o acesso à produção sem se responsabilizar pelos efeitos da sua

normatização).

O cruzar e o entrecruzar destes diversos trajetos permitiram enxergar um modo de

vida cuja relação com o suporte natural se encontra em situação de crise. Crise particular que,

no entanto, entrelaça-se nos meandros do contexto crísico mais amplo.

O problema investigado permitiu perceber que o imaginário social que se imbrica

em uma relação de desequilíbrio ambiental no semi-árido piauiense deve ser compreendido

como fruto de relações interculturais assimétricas, instituídas historicamente, no próprio

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processo de expansão da civilização moderna ocidental européia, pelo qual culturas externas

violentam o habitus de culturas locais. Um imaginário que, em seus itinerários históricos de

instituição e reelaboração, na atualidade, conta, a partir de novos diálogos interculturais, com

representações sociais que apontam para a busca de instituir relações sustentáveis entre

natureza cultura. Pode-se afirmar isto, devido às imagens e significados que transitam de uma

estrutura dual, de separação para uma estrutura de diálogo com traços de atenuação do

antropocentrismo, da valorização da natureza e de reconhecimento dos limites e

potencialidades das condições naturais para a vida humana e, conseqüentemente, da

importância do estabelecimento de novas relações de convivência entre natureza e cultura.

O processo instituinte, no entanto, é lento, especialmente, porque a administração

do Parque Nacional da Serra da Capivara mantém e difunde a representação que faz das

populações locais como predadoras e assim continua a tratá-las. Nesse sentido, ao invés de

ação educativa, ações policiais. Com efeito, como a pesquisa traz à tona, torna-se necessária a

compreensão antropológica dos sentidos subjacentes às condutas das populações locais

camponesas em relação à área do parque, a partir da própria trajetória da relação dessas

populações com a referida área, em diversos contextos históricos nos quais o “centre”, ou

parte dele é ressignificado, seja pelo extrativismo da maniçoba, seja pela instituição do

parque, seja pela mediação da proposta de convivência com o semi-árido.

Nessa direção, o objetivo geral da investigação levou a perceber o imaginário

norteador das relações entre natureza e cultura nas suas dimensões éticas, simbólicas e

práticas, pela análise dos elementos simbólicos subjacentes ao modo de vida com seus saberes

e práticas culturais. Nesse sentido, emerge o modo de vida da população investigada eivado

por representações sociais indicadoras de campesinidade: atividades agrícolas, criação de

pequenos animais, laços familiares fortalecidos, comunidade como a grande família do tronco

do Véio Vitorino, relações de solidariedade e reciprocidade, marcando a sociabilidade de uma

sociedade de interconhecimento, o que não se confunde com ausência de conflitos.

Nesse modo de vida, tanto há saberes pautados pelas práticas predatórias, quanto

os que indicam o estabelecimento de novas relações entre cultura e natureza. Dentre os

primeiros, estão, por exemplo, as práticas tradicionais de desmatamento e queima:

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Sueli: e com ele, como o senhor aprendeu a lidar com a terra?

Gérson: como eu falei, era só derrubar, queimar, que ele [o pai] também não tinha o conhecimento, ele já tinha mais um sistema de trabalhar que ele zelava a terra, a roça (comunicação oral)131.

Por seu turno, dentre os saberes de uma relação entre cultura e natureza

ressiginificada, com um caráter integrador, emergem imagens, como as transcritas abaixo:

Gérson: foi, no tempo que ainda era rua velha. E aí hoje a gente já tem um certo conhecimento, já procura fazer dentro da lógica, do que pode dar, e a gente já tá vendo um pouco de resultado. Antigamente a gente trabalhava só na força bruta. Não tinha meio de nada, hoje já tem. Já aparece os meios, as tecnologias como tratar a terra, trabalhar menos, como evitar a erosão, os estragos que a erosão faz na terra. Essas coisas assim que antes não existia (Comunicação oral)132

Como resultados da investigação, delineia-se a identificação de um processo

instituidor de identidades, em curso, com a agregação da matriz de preservação ambiental e de

convivência com o semi-árido. Na perspectiva da análise estrutural do imaginário, isto

significa que está em processo a saída de um regime diurno do imaginário, na direção da

busca de estruturas místicas e sintéticas, ou seja, o movimento crísico caminha para um

processo de acomodação dos elementos interventores. A esse processo instituidor de novas

estruturas no imaginário social, soma-se uma outra matriz, com menor visibilidade, mas já

aparente, a de vida e convivência com o semi-árido, em lugar da tradicional identidade de

vítima das secas.

Finalmente, no que diz respeito à temática camponeses sertanejos do semi-árido

piauiense, creio oportunizar, com este trabalho, lentes para que sejam visualizados em

profícua atividade cultural de elaboração e reelaboração do seu universo objetivo e simbólico

na busca de assimilar as diversas dinâmicas do tecido sócio-cultural em que estão inseridos e

de nelas intervir. Carecendo ainda pesquisar aspectos fundamentais dos sujeitos referidos, de

seus territórios e, especialmente, das relações entre natureza e cultura ali empreendidas, tais

como: estudo sobre os sistemas de produção do lugar, balanço sócio-ambiental provocado

pela maneira de instituir o Parque Nacional da Serra da Capivara, estudo sobre a

sustentabilidade e viabilidade da agricultura familiar no semi-árido piauiense, estudo sobre a

diversidade do semi-árido no Piauí, mapeamento das perdas sofridas pelas populações

131 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos. 132 Entrevista realizada na comunidade bairro São Pedro, em 28/05/2004, com Gérson Dias dos Santos.

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camponesas do entorno do Parque e análise das questões sócio-jurídicas provocadas pela

instituição da referida área de preservação integral.

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ANEXOS

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Anexo A - Relação de Entrevistados

Nome Comunidade/localidade Data da entrevista Alta Maria dos Santos Bairro São Pedro 28.05.04 Genival Nascimento Pereira Bairro São Pedro 02.07.04 Geraldina Bairro São Pedro 27.05.04 Gérson Dias dos Santos Bairro São Pedro 28.05.04 Harald Schistek Juazeiro – Bahia 15.01.04 Isabel Neres de Oliveira Bairro São Pedro 27.05.04 José Belisário de Miranda Barreirinho 29.05.04 José Rodrigues do Nascimento Barreiro Grande 01.06.04 Marciano de Sousa Lima Barreiro Grande 31.05.04 Manoel Lourenço Paes Barreirinho 29.05.04 Maria Alves Dias Bairro São Pedro 28.05.04 Maria Dolores Barreiro Grande 28.05.04 Marilu de França Antunes Gomes Bairro São Pedro 02.07.04 Naílde Martins Dias Bairro São Pedro 28.05.04 Norberto Pinto do Nascimento Bairro São Pedro 28.05.04 Niède Guidon São Raimundo Nonato 01.07.04 Raimundo Coelho de Oliveira Filho Sede de Coronel José Dias 01.07.04 Silveira Pereira Paes Barreirinho 27.05.04

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Anexo B - Relação dos participantes da oficina de desenhos – 01.12.04

sujeito Nome Comunidade/localidade Classificação

etária e gênero

Um Nataline dos Santos Pereira Bairro São Pedro Criança feminina

Dois Pedro Henrique Oliveira Paes da Mata Barreirinho Criança masculina

Três Marilu de França Antunes Gomes Bairro São Pedro Jovem mulher Quatro Gilvonete Paes da Mata Barreirinho Jovem

masculino Cinco Naílde Martins Dias Bairro São Pedro Mulher adulta Seis Gérson Dias dos Santos Bairro São Pedro Homem adultoSete Isabel Neres de Oliveira Bairro São Pedro Mulher idosa Oito Maria Alves Dias Bairro São Pedro Mulher idosa Nove Manuel Lourenço Paes Barreirinho Homem idoso

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Anexo C - Plano Decenal de Educação do Município de Coronel José Dias

LEI Nº 078/2003

Coronel José Dias (PI), 02 de dezembro de 2003.

Institui o Plano Municipal de Educação do Município de Coronel José Dias, Estado do Piauí.

O Prefeito Municipal de Coronel José Dias, Estado do Piauí:

Faço saber que a Câmara Municipal de Coronel José Dias aprova e eu sanciono o seguinte Projeto de Lei:

Art. 1º - Em cumprimento ao determinado na Lei Orgânica Municipal artigo xxx, com consonância com a Constituição Federal de 1988, artigo 214 e com a Constituição do Estado do Piauí, artigo 226, fica instituído o Plano Municipal Decenal de Educação do município de Coronel José Dias, Estado do Piauí, que será regido, precipuamente, pelos princípios da democracia e da autonomia, buscando sempre atingir os objetivos e princípios educacionais estabelecidos na Constituição da República e na do Estado do Piauí, bem como aqueles definidos na Lei Orgânica do Município de Coronel José Dias.

Capítulo I Dos Objetivos, Diretrizes/princípios e Metas

Art. 2º - O Plano Municipal Decenal de Educação do Município de Coronel José Dias, Estado do Piauí, atenderá aos seguintes objetivos determinados no Plano nacional de Educação:

I - Erradicação do analfabetismo; II - Universalização do atendimento escolar; III - Melhoria da qualidade de ensino; IV - Formação para o trabalho; V - Formação humanística, científica e tecnológica do País; VI - Melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis; VII - Elevação global de escolaridade da população; VIII - Redução das desigualdades sociais e regionais quanto ao acesso e a permanência, com sucesso na educação pública; VIII - Democratização da gestão do ensino público; IX - Prioridades do plano, segundo o dever constitucional e as necessidades sociais: a) Garantia de ensino fundamental obrigatório de oito anos; b) Garantia de ensino fundamental a todas as pessoas que não concluíram na idade

própria; c) Ampliação do atendimento nos demais níveis de ensino; d) Valorização dos profissionais da educação;

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e) Desenvolvimento de sistemas de informação e avaliação em todos os níveis.

Art. 3º - O PME com o Plano Nacional de Educação atenderá aos seguintes objetivos específicos do município:

I - Erradicar o analfabetismo no município; II - Universalizar o atendimento escolar; III - Melhorar a qualidade de ensino na Rede Municipal de Ensino; IV - Qualificar todo o corpo docente em nível superior; V - Disponibilizar ao corpo docente capacitação continuada; VI - Elaborar um novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério Público; VII - Viabilizar a criação do ensino médio na zona rural; VIII - Instalar uma Biblioteca pública na sede do município; IX - Organizar Biblioteca em todas as escolas, que oferecem o Ensino Fundamental completo; X - Melhorar a infra-estrutura das escolas e equipá-las melhor; XI - Adquirir material pedagógico para trabalhar a convivência com o semi – árido com especial atenção ao Ensino Infantil e Educação Especial; XII - Ampliar a Educação de Pessoas Jovens e Adultas – EJA (Supletivo), para a zona rural; XIII - Viabilizar mecanismos que possam reduzir ao mínimo possível, a evasão e repetência escolar; XIV - Oferecer um Currículo contextualizado de Educação para Convivência com o Semi-árido em todos os níveis e modalidades de ensino; XV - Criar na forma de Lei o Sistema Municipal de Ensino, tendo o Estado como parceiro; XVI - Sensibilizar e estimular a comunidade para a participação na vida do estudante e na gestão da escola; XVII - Organizar práticas esportivas e culturais nas escolas da rede municipal de ensino; XIX - Ampliar e melhorar a qualidade do transporte escolar na zona rural; XX - Informatizar as escolas que oferecem o Ensino Fundamental completo; XXI - Promover a educação ambiental, na lógica da convivência com o semi-árido, em todos os níveis e modalidades de ensino; XXII - Atender os estudantes portadores de necessidade especiais, incluindo-os no ensino regular; XXIII - Estimular o conhecimento e intervenção da realidade, através de pesquisas.

Art. 5º - O PME norteará adotará, além dos princípios gerais, os princípios e diretrizes específicas:

PARÁGRAFO PRIMEIRO - O PME adotará como Diretrizes Gerais: I - a concepção básica de Educação para Convivência com o Semi-Árido, enquanto diretriz geral de sua transversalidade; II – Transversalidade, nos seguintes eixos: a) Convivência com o semi-árido; b) Meio ambiente; c) Ética d) Pluralidade cultural; e) Orientação sexual; f) Saúde; g) Ecoturismo; h) Trabalho e Consumo. III – Interdisciplinaridade.

PARÁGRAFO SEGUNDO – São Fundamentos Norteadores da Educação Infantil:

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I - Princípios éticos culturais e ambientais da Autonomia, da responsabilidade, da Solidariedade e do respeito ao Bem Comum;

II - Princípios políticos dos Direitos e Deveres de Cidadania, do Exercício da Criticidade e do Regime à Ordem Democrática. III - Princípios Estéticos da Sensibilidade, da Criatividade, da Ludicidade, da Qualidade e da Diversidade de Manifestações Artísticas e Culturais;

IV - Princípio da Convivência com o Semi-Árido.

PARÁGRAFO TERCEIRO - São Diretrizes para a Educação Fundamental no Município: I - O desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II - A compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III- O desenvolvimento de capacidade e habilidades de convivência com a realidade semi-árida; IV - O desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; V - O fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em se assenta a vida social. VI - O desenvolvimento da capacidade de conhecer melhor e valorizar a sua realidade, através da educação contextualizada para a convivência com o semi-árido; VII - Formar cidadãos para conviver em sociedade, desenvolvendo a solidariedade, a tolerância, com formação ética cultural e ambiental, valorizando as suas potencialidades e respeitando as diversidades.

PARÁGRAFO QUARTO – São diretrizes para a Educação de Jovens e Adultos no Município: I - O Poder Público Municipal viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do trabalhador e da trabalhadora na escola, mediante ações integradas e complementares entre si; II - O Poder Público Municipal manterá este nível de ensino no período regular, podendo adequá-lo de acordo com as demandas; III - O desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; IV - A compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; V - O desenvolvimento de capacidade e habilidades de convivência com o semi-árido; VI - O desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; VII - O desenvolvimento da capacidade de conhecer melhor e valorizar a sua realidade, através da educação contextualizada para a convivência com o semi-árido; VII - Formar cidadãos para conviver em sociedade, desenvolvendo a solidariedade, a tolerância, com formação ética e cultural, valorizando as suas potencialidades e respeitando as diversidades; VIII - Formar cidadãos que tenha a capacidade de aprender a conviver em sociedade, com solidariedade, tolerância, com formação ética cultural e ambiental e valorizando as suas potencialidades e respeitando as diversidades do outro.

PARÁGRAFO QUINTO – São diretrizes para a Educação Especial no município: I - O Município, para garantir a oferta de educação especial no nível de ensino fundamental, atuará em regime de colaboração com Sistema Estadual de Ensino e em cooperação com os demais Municípios da região; II - O Município poderá complementar o atendimento a educandos com necessidade especiais, por meio de convênios com instituições privadas sem fins lucrativos,

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especializada e com atuação exclusiva em educação especial e que atendam aos critérios estabelecidos pelo Sistema Municipal de Ensino; III - Haverá, quando necessário, serviço de apoio especializados na escola regular para atender as peculiaridades da clientela de educação especial; IV - O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições especificas do educando, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular.

PARÁGRAFO SEXTO – O PME de Coronel José Dias recomenda para o Ensino Médio, sob responsabilidade do Estado em parceria com o município:

I - A consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos possibilitando o prosseguimento de estudos em nível mais avançado; II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, numa visão prospectiva da sociedade contemporânea que exigirá dos indivíduos a capacidade de adaptar-se a um mundo em constante mudança; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética cultural e ambiental e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV - formação integral do cidadão para a sociedade contemporânea; V – capacitação para compreender os fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, por meio da união da teoria com a prática, desenvolvendo competências cognitivas, intelectuais e de convivência sócio-cultural e ambiental que se constituem elementos de habilitação profissional e capacitem o individuo para o mundo do trabalho.

PARÁGRAFO SÉTIMO – O PME recomenda para a Educação Superior, desenvolvida no município e para o município pela União e Estado, com quem o Poder Executivo fará convênio para qualificação e capacitação continuadas para o corpo docente e técnico da Rede Municipal de Ensino, que atenda as seguintes finalidades:

I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito cientifico e do pensamento reflexivo; II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira e colaborar na sua formação contínua; III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação cientifica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do meio em que vive; IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação; V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração; VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta relação de reciprocidade; VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa e tecnológica gerada na instituição.

Art. 6º - O PME de Coronel José Dias cumprirá as seguintes metas:

I – Meta 1: Assegurar o atendimento das necessidades do processo educativo, conforme os

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padrões mínimos de infraestrutura, nas 28 escolas da Rede Municipal de Educação, dando prioridade àquelas com maior demanda, no prazo de cinco (05) anos;

II – meta 2: Organizar o Sistema Municipal de Ensino e criar e implantar o Conselho Municipal de Educação, em dois (02) anos;

III – meta 3: Reduzir em 80% as taxas de evasão e repetência, em cinco (05) anos;

IV – meta 4: Instituir Conselhos Escolares nas escolas com mais de 100 alunos e naquelas com menos de 100, fazê-lo através de nucleação, 04 anos;

V – meta 5: Implantar uma biblioteca municipal na sede do município e organizar bibliotecas nas escolas de ensino fundamental completo, em 05 anos;

VI – meta 6: Implantar um programa municipal de monitoramento e avaliação do ensino – aprendizagem e incluir o município no SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica - Governo Federal, em dois (02) anos;

VII - meta 7: Viabilizar o atendimento escolar às pessoas que necessitam de educação especial, em um (01) ano;

VIII – meta 8: Eleger 01 diretor (a) regional para cada pólo, em caráter provisório, admitir supervisores escolares para as escolas com mais de 100 alunos, e naquelas com menos de 100, fazê-lo através de nucleação e disponibilizar um carro para a Secretaria Municipal de Educação, em dois (02) anos;

IX – meta 9: Reorientar os currículos escolares, numa perspectiva multidisciplinar da educação para a convivência com o semi-árido, em um (01) ano;

X - meta 10: Instalar o KIT TV ESCOLA em todas as escolas com mais de 25 alunos, em três (03) anos;

XI – meta 11: Informatizar todas as escolas que oferecem Ensino Fundamental Completo e instalar um laboratório central de informática, em cinco (05) anos; XII – meta 12: Todas as escolas elaborar a sua proposta política pedagógica, conforme sua realidade, envolvendo os diversos atores educacionais, em dois (02) anos; XIII – meta 13: Instalar e operacionalizar o ensino médio no primeiro e segundo distrito e demais localidades, cuja demanda escolar seja evidenciada conforme o público atendido, - em um (01) ano no primeiro distrito, em dois (02) anos no segundo distrito e em dez (10) anos nas demais localidades; XIV – meta 14: Qualificar com Ensino Superior todo o corpo docente da Rede Municipal, atendendo às demandas e exigências legais:

a) assegurar, que em cinco (05) anos, todos os professores que ministram aula nas quatro últimas séries (5ª à 8ª) do ensino fundamental, já tenham a formação completa em nível superior e

b) assegurar que em oito (08) anos, todos os professores já tenham a formação completa em nível superior;

XV – meta 15: Oferecer Educação de Jovens e Adultos (EJA) equivalente às primeiras séries iniciais do Ensino Fundamental, para 70% da população nestas condições para 100% em dez (10) anos e oferecer EJA equivalente às quatro séries finais do Ensino Fundamental, a partir de 2005, conforme a demanda; XVI – meta 16: Realizar avaliação, anualmente, das experiências de EJA no município;

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XVII - Manter programa de formação e capacitação continuada do corpo docente e demais profissional da educação em educação para a convivência com o semi-árido, a partir de 2004; XVIII - Construir Plano de Carreira e Remuneração do magistério para o município, em dois (02).

Capítulo II Das Estratégias

Art. 7º - Para a consecução de seus objetivos e metas serão postas em prática e implementadas as seguintes estratégias:

I - Realização do censo educacional, identificando a demanda para a educação especial, mediante diagnóstico e prognóstico.

II - Adaptação dos prédios escolares para atendimento de alunos e alunas do ensino infantil e educação especial;

II - Aprovação na forma da lei pela Câmara Municipal do Sistema Municipal de Ensino;

III - Parceria com os Sistemas Estadual e Federal e instituições não governamentais;

IV - Programas de aceleração da aprendizagem; recuperação paralela; ensino contextualizado.

V - Discussão com alunos, professores/ as, demais funcionários, pais, mães e toda a comunidade escolar e através de reuniões permanentes de pais e mestres, visitas domiciliares e eventos cultural.

VI - Aquisição de obras literárias e outros subsídios de educação para a convivência com o semi-árido.

VII - Composição paritária de um Grupo de Trabalho (GT) de Avaliação, enquanto não for aprovado o Conselho Municipal de Educação, cuja atribuição dada ao GT lhe será conferida.

VIII - Eleição direta envolvendo o corpo docente de cada pólo. IX - Concurso Público, na forma da lei.

X - Compra de 01 (um) carro para a Secretaria Municipal de Educação;

XI - Promoção de uma prática educativa integrada, contínua e permanente, em conformidade com a lei nº 9.394/96 (Arts. 26,27 e 28) de 20 de dezembro de 1996.

XII - Aquisição dos aparelhos através dos governos estadual e federal e/ou instituições, e com recursos do município.

XIII - Firmar convênios e parcerias para aquisição de instrumental de informática e também com recursos do próprio município.

XIV – Capacitação e Treinamentos;

XV - Discussão nos fóruns e demais espaços democráticos da comunidade escolar.

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XVI - Manter Convênio com a Universidade Estadual do Piauí e outras Instituições de Ensino Superior.

XVII - Ampliação da oferta de vagas, inclusive para a zona rural.

XVIII - Consulta popular; XIX - Avaliação ensino aprendizagem;

XX - Ampla divulgação dos resultados da avaliação;

XXI - Parcerias com instituições ou órgãos governamentais e não - governamentais, mediante acompanhamento de assessoria capacitada em áreas específicas.

XXII - Discussão envolvendo profissionais da educação e entidades afins.

Capítulo III Dos Recursos

Art. 8º - O PME de Coronel José Dias, em cumprimento à determinação da Lei Orgânica do Município, em consonância com a Constituição Federal de 1988 e a Constituição do Estado do Piauí empregará não menos do que 25% (vinte e cinco por cento) de sua arrecadação na Educação Municipal. Art. 9º - O PME disporá de verbas oriundas do FUNDEF, ICMS, FPM, Convênio e parcerias. Art. 10º - O PME está orçado em R$ 2.431.000,00 (dois milhões, quatrocentos e trinta e um mil reais), distribuídos da seguinte forma: I – meta 1 – R$ 300.000,00 (trezentos mil reais); II – meta 2 – R$ 3.000,00 (três mil reais); III – meta 3 – R$ 180.000,00 (cento e oitenta mil reais); IV – meta 4 – R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais); V – meta 5 – R$ 187.500,00 (cento e oitenta e sete mil, quinhentos reais); VI – meta 6 – R$ 3.000,00 (três mil reais); VII – meta 7 – R$ 2.500,00 (dois mil, quinhentos reais); VIII – meta 8 – R$ 112.000,00 (cento e doze mil reais); IX – meta 9 – R$ - 1.500,00 (um mil e quinhentos reais); X – meta 10 – R$ - 35.000,00 (trinta e cinco mil reais); XI – meta 11 – R$ - 30.000,00 (trinta mil reais); XII – meta 12 – R$ - 5.000,00 (cinco mil reais); XIII – meta 13 – R$ - 4.000,00 (quatro mil reais); XIV – meta 14 – R$ - 379.500,00 (trezentos e setenta e nove mil, quinhentos reais); XV – meta 15 – R$ - 1.100.000,00 (um milhão, cem mil reais); XVI – meta 16 – R$ - 6.000,00 (seis mil reais); XVII – meta 17 – R$ - 30.000,00 (trinta mil reais); XVIII – meta 18 – R$ - 2.000,00 (dois mil reais).

Capítulo IV Da Conferência Municipal de Educação

Art. 11 - A conferência Municipal de Educação será realizada a cada 2 (dois) anos.

Capítulo V Da Estrutura da Secretaria Municipal de Educação

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Art. 12 - Oportunamente, deverá ser analisada a reestruturação da Secretaria Municipal de educação do Município de Coronel José Dias, tendo em vista um atendimento de qualidade às escolas, contemplando o princípio de descentralização dos serviços e das verbas.

Parágrafo Único - A reestruturação da Secretaria Municipal de Educação deverá ser objeto de ampla discussão, devendo ser ouvidas, em audiências públicas, todas as entidades representativas do município e da população em geral.

Capítulo VI Do Controle e Fiscalização das Verbas da Educação

Art. 13 - Respeitando-se os limites estabelecidos no Lei Orgânica do Município e na conformidade do que dispõe a Lei federal nº 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a aplicação das verbas destinadas à Educação e ao ensino, inclusive as do Fundo de Desenvolvimento do Ensino e Valorização do Magistério - FUNDEF, deverá ser demonstrada à Câmara Municipal de Coronel José Dias através do encaminhamento mensal, dos recursos aplicados a esse título e, bimestralmente, demonstrando-se onde foram esses recursos aplicados, de forma discriminada por ítem de despesa.

Parágrafo Único - Todo recurso e verba destinados à Educação e para a manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e médio, educação infantil e valorização do magistério deverão ser consignados e constituir conta exclusiva da Secretaria Municipal de educação, não podendo, a qualquer título, ser aplicados em despesas que não se configurem como de ensino, segundo a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9394/96).

Capítulo VII Das Disposições Finais

Art. 14. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Coronel José Dias, 03 de dezembro de 2003.

Ramiro da Silva Costa

Prefeito

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Anexo D - Imagens Gráficas

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