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Inês Pedrosa - A Eternidade e o Desejo

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Inês Pedrosa - A Eternidade e o Desejo

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AETERNIDADEEODESEJO

InêsPedrosa

DOMQUIXOTE

TodasascitaçõesdaobradePadreAntónioVieirasãodovolumeSermões(organizaçãoeintroduçãoAlcirPécora),SãoPaulo,editoraHedra,2001(1°volume)e2.002.(2°volume)PUBLICAÇÕESDOMQUIXOTEEdifícioAreis,RuaIvoneSilva,n.°6,%.°1050-124Lisboa-Portugal

www.inespedrosa.comReservadostodososdireitosdeacordocomalegislaçãoemvigor©2007,InêsPedrosaePublicaçõesDomQuixoteCapaearranjográfico:Jorge

ColomboRevisão:SusanaBaetaImpressãoeacabamento:Guide-ArtesGráficas1ªedição:Novembrode

20073."edição:Dezembrode2007Depósitolegaln.°267583/07ISBN978-972-203-49-51

www.dquixote.pt

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A Eternidade e o desejo, são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma

figura.

ANTÓNIOVIEIRA,SERMÃODENOSSASENHORADOÓ

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ÀmemóriadeEduardoPradoCoelho

ParaMariaLúciaDalFarraePauloRobertoPires

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Nãovivemoscomomortais,porquetratamosdascoisasdestavidacomoseestavidaforaeterna.

Nãovivemoscomo imortais, porquenosesquecemos tantodavidaeterna, comosenãohouvera talvida.

ANTÓNIOVIEIRA,SERMÃODEQUARTA-FEIRADECINZA

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I

AnoitepassadasonheiquevoltavaàBahia.Osolatacavaapique,eeuandavadeigrejaemigrejaàprocuradealguémquenãoconseguiaencontrar.Na ruaa forçado sol impedia-medever,nas igrejasficavaatordoadacomoexcessodeturistasetalhadourada.Queriagritar,masnãoconseguia.Dizes-mequeéumasensaçãomuitocomum,nossonhos.Maseucreioquejánãopossovoltaraserumapessoamuitocomum.

Recordas-mequevouvoltar aSalvador.Equevoucontigo.Vouao teu lado, sim.Acreditaque teagradeçoagentilezadacompanhia.Mastunãopertencesali.Eeutenhoumbocadinhodemedodemeperder.Entãopeço-tequemecontestudo,Sebastião.

—Tudo?Masoqueé tudo?Tudooquevejo?—perguntas,numsussurro.Comose,desúbito, tesentissesesmagadopelaintraduzívelvastidãodoteuolhar.Oquesevênuncasepodenarrarcomrigor.Aspalavrassãocaleidoscópiosondeascoisassetransformamnoutrascoisas.Aspalavrasnãotêmcor—porissopermanecemquandoascoresdesmaiam.Percebooteuaturdimento:comosetraduzavisão?Como se emprestamos olhos? Impossível.Ainda por cima num aeroporto, onde tudo émovimento; omovimentoentorpeceoacontecerdascoisas.Conta-mesóaverdade,Sebastião.Oquesobradaquiloquevês.Dizes-mequevêsumacriançachorandoagarradaaosjoelhosdeumhomemqueparte.Umamulhertentasoltar-lheosdedosdascalçasdohomem,queseesforçaporconteraslágrimas.Peço-tequenãomecontes histórias de despedidas. Vejo-as à transparência das vozes, no recorte bruto das frasesinterrompidas,entrecortadasde tristeza.Peço-tequeolhesparaoque fazemaspessoas felizes—sãoessas que preciso de ver. Dizes-me que te peço demasiado, que a felicidade não se vê. Enganas-te,Sebastião.Tambémeujámeenganei,quandovia.Olhavamasnãovia.Fixava-menaslágrimas,comotu.Somos conduzidosparaaslágrimas, a civilização é provavelmente isso, umlongo trajecto de lágrimas.Comosetivéssemosmedodemerecerojúbilodaterra.Comoseoconhecimentodamortenostornassemortosantecipados.Lembro-medemimcriança.Recorromuitoàcriançaquefui,convocoasmemóriasdaprimeirainfância-,éesseomeuantidepressivo.Nãohaviaentremimeomundoqualquerconflito,etudooquesabiamebastava.Dizes-mequetenhosorte;nãoconseguisteguardarumamemórianítidadosteusprimeirosanos.Contam-tehistóriasquesepassaramcontigo,eécomosenãotivessesestadolá.Oquemais recordasda infância é o tédio: repetias incessantemente à tuamãequenão tinhasnadaparafazer.Elaretorquia-tequeaproveitassesasvantagensdevivernummundoonde jáestava tudofeito,edepoismandava-teescolherbrinquedosbonsparalevaraosmeninosquenãotinhamnada.Etunãoerascapazdeescolher—todososbrinquedoscomque te esquecerasdebrincar te faziam falta,de repente.Incapaz de te obrigar a escolher, escolhia ela os brinquedos, ia contigo a um orfanato qualquer. E tuvinhasdeláachorar,compenadetimesmoedosmeninosórfãos,sembrinquedos.

—Narealidade—dizesagora—tinhamaispenademimdoquedeles.Entãoatuamãeabraçava-teebeijava-te,extasiadacomoteubomcoração,dizia:«meuamor,tãosensível,omeuamorpequenino»—etusentias-teummentirosoegoísta.Rio-me,pensasquemeriode ti—jánãomeriodeninguém,Sebastião,rio-meporqueprecisodearrefeceraspalavras,precisodeasadequaràtemperaturadomeucorpo,rio-memuitomaisagoradoquequandovia,porquequandoviaaspalavraseramsómaisumsinal,umpianonumaorquestra.Rio-meatémaisdoquenunca,Sebastião,porqueaescaladossorrisossemetornouinacessível.

(Forrooespaçodepalavrasparaneutralizaroimpacto.Aconsciênciaemimplosão—nevecaindonasfrestasdamágoa,águaestagnadasobreestilhaçosdevidro,umespelhoquesedesmoronadentrodorosto que jamais tornará a ser aminha imagem. Habito um lugar desencontrado de qualquer estrada,estraçabraçadodesonsilêncio.Vês?Despalavram-se-meassequências.Precisodobarulhoaquáticoqueaspalavrasrecortamemtornodosfragmentosdetempo.Acarnedoscorpos,alimentando-sedepalavras

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para não morrer, matando as palavras para não chorar. Corpos. Pedaços de tempo que o tempo vaimatando.Desdequeseme tornaramopacosvejo-ospordentro,massasdeossos,nervosevísceras,eouço-os, espa-palaçados, na sua gramática descontínua.Palavras como soldados incautos, em sentido,perfiladasdiantedosabismosdoheroísmo,palavrasquesejulgaminvulneráveiseselançam,absolutasdeinfância,paraograndevazio.Restameaterradapalavra,otomeotoque,amodulaçãodasvozes,osdedos dentro dos sons, os dedos tornados sílabas, curvados como lágrimas, cravados na esfera dosolhos.)

Conta-me,continuaacontar-meoquevês.Etu,paciente,amigo,começasaexplicar-mequeháumtipobaixinho,alourado,deóculosenarizempinado,quetentapassaràfrentedafiladaspessoasquevãoparaNovaIorqueequeumlatagãoatrásdeleoagarrapelalapelaDescrevesacenaeeucomeçoaouviravozagastadadohomemquetentavapassaràfrentedosoutros,umavozdeestopaquepergunta:

—Sabequemeusou?Sabequemeusou?Digo-teoqueouço,invejas-meoouvido,apiedadedaspessoasergue-seemuníssononesterefrão:

«ouvidoinvejável,ouvidoinvejável»,ondequerqueeuvá,gabam-meoouvido,comoàsraparigasfeiassegabaosorriso.Ouviaapenasmetadedasfrases,eraumadistraídadeliberada,sempaciênciaparaasconversasdecircunstânciaesemcapacidadeparadistinguirostimbres,osseusnóssecretosdesolidão,ternura ou desconsolo. Agora todas as vozes me inquietam e mesmo sozinha falo em voz alta, parapreencherestenevoeirodegessoemquehabito.Nãoseisercega,nãonascicega,nãopossoesqueceroqueperdi—tenhodesejodavisão,umdesejo físico,concreto, feitodesuoreseansiedade,umdesejosexual, maculado, absoluto. Nem imaginas como odeio as pessoas que me garantem, commúsica deelevador na voz, que é bom manter o desejo, a raiva, a vontade, que bom, a questão é canalizarpositivamente tudo isso. Odeio-os, a esses conselheiros bondosos e às suas teorias do positivo e àauréoladetolerânciaquelhesenvolveagargantaquandomeincitamaquedesabafe,quedesabafarfazbem.Queremquealémdecegasejasanta,eruditamentesanta,socialmentesanta,quemeportebem,queaceite o carinho empenado pela piedade que têm para me oferecer. Podem chamar-lhe compaixão,socorrer-sedaraizetimológicadepaixãopartilhada,odeio-os.Pelomenossouumaceguinhamá,duraderoer,imuneàsmaviosasvozesdaresignação.

Preferia não ser este ouvido em que me transformei, Sebastião, preferia continuar a ser umaobservadora.Gostavadeolharparaaspessoas—àsvezesatéasseguia,aoacaso,sóparaasverviver.Adestravam-meabenevolência,essespasseios,imaginava-meumanjoocasional,puramenteinútil,irmãdosanjosdeAsAsasdoDesejodeWimWenders,queacompanhavamaspessoascomoseandassemnuma escola nocturna, a aprender só por aprender, despidos de ambições. Andava muito a pé,comprometidaapenascomesseprazerdarealidadeinesperada.

Masespera,Sebastião—alguém,pertodenós,faladoPadreAntónioVieira.Dizes-mequevêsumaexcursão,umpoucoànossafrente,comumaetiquetacomum:«AoencontrodoPadreAntónioVieira.»Cerca de trinta pessoas. Mais mulheres do que homens. E que o pretexto da viagem é o itineráriobrasileiro do PadreAntónioVieira.Digo-te queVieira nunca é um pretexto, é sempre uma chamada.Digo-tequeVieiranoschama,pensarásqueenlouquecidevezetalvezestejascerto,poucomeimporta.Peço-te queme conduzas ao responsável do grupo, hesitas,mas a uma cega nada se recusa, é esse oreversodapiedade,oinebriantepoderqueapiedadedosoutrosnosconfere.

Comohesitasainda,Sebastião?Talveztenhasobrestimadoatuapiedadepormim.Esporo-te:—Oproblemada tuavidanãoerao tédio?Entãová;mexe-te,queeuajudo-teaacabarcomele.

Depressa.Dizesquesoumaluca.Eperversa.Possoseressatuafantasiaetudooquetuquiseres,desdequeme

faças a vontade, Sebastião. Preocupa-te que percamos o lugar— não percebes que eu já saí da fila,Sebastião,jánãovejoasfilas,esemequiseresseguiracabarásporteperdertambém,Sebastião,creioque émesmo esse desejo inconfessadode saltar para fora da fila o que te atrai emmim, precisas da

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minhamão de cega para isso, sozinho não tens coragem, olhas para o lado e vês o abismo.Mas nãoperderás o teu lugarzinho agora, Sebastião, as tuas malas cheias de camisas de algodão puro,impecavelmentedobradas,osteusguiasturísticos,nãoteperderásnesteinstante,Sebastião,põe-mesóàfrentedo responsável,deixa-mefalar, tornei-meboacomaspalavras,oburacodosmeusolhoséumrastilho de eloquência, comovo as pessoas mesmo antes de falar, extraordinário dom o meu, não teparece,Sebastião?

(Avançopelanoite tacteandopalavras.Lavrandoantros.Asesquinasdomundoconcreto tornaram-se-me abstractas. Os passos contados. O assinalar dos ruídos. Uso as palavras como semáforos.Palaluzes.Palalavras.Palalantros.Avozdeumhomemacelerandoafúriadosanjosbarrocos,abrindo-lhesfissurasnasbarrigas,revelandoopódequesãofeitos.Avozdeumhomemdespedaçandoochicotedoshomensqueescravizamoutroshomens,vértebraavértebra.Avozdeumhomemdesbravandoafénaspalavras,fazendodecadapalavraumacatapulta,umforno,umberço,umgestodereconstruçãodomundo. Um céu partido aomeio nomeio da tarde, um céu despenhado, pedra a pedra, da voz destehomem.)

APrimeirapedradafundadeDavidatirada(óRoma)àcabeçadoGigante,dizonossoPurpuradoIntérprete, que é o conhecimento de si mesmo. Cognitio sui. Grande pedra, e com razão a primeira;porquenestemundoracionaldohomem,oprimeiromóbildetodasasnossasacçõeséoconhecimentodenósmesmos.Asobrassãotodasdospensamentos;nopensamentoseconcebem,dopensamentonascem,com o pensamento se criam, se aumentam e se aperfeiçoam: e como os filhos recebem dos pais anatureza, o sangue e o apelido; assim se recebe do pensamento todo o bem grande e louvável, queresplandece nas obras. Daqui é, que querendo louvar David as obras maravilhosas de Deus, fez opanegíricoaosseuspensamentos:MultafecistituDomineDeusmeusmirabiliatua,etcogitationibustuisnon est que similis sit tibi. Sendo pois os pensamentos, e conceitos namente do homem tantos, e tãodiversos, justamente se pode duvidar de qual, ou quais dele sejam filhos as obras. Todos comumentecuidam,queasobrassãofilhasdopensamentoouideias,comqueseconcebemasmesmasobras:eudigoquesãofilhasdopensamentoedaideiacomquecadaumseconcebe,econheceasimesmo.

Aprimeiracoisaeamaiorquejamaisseobrou,nãonomundo,senãoantesdomundo,foiageraçãoeternadoVerbo:ecomofoi,nãofeita,masproduzida,umaobratãogrande,tãoimensa,tãoportentosaeincompreensível?Nãodeoutramaneiraquedoconhecimentodesimesmo.ConheceuDeusoseuser,asuagrandeza,asuainfinidade,asuaomnipotência;eopartoquesaiudesteimensoconceitodesimesmo,foioutroele,outromesmo;foieéoVerbotãogrande,tãoimenso,tãoinfinito,tãoomnipotente,tãoDeuscomoomesmopai.Aimagemmaisperfeita,aproporçãomaisajustada,emedidamaisigualdaobra,éoconhecimento de si mesmo em quem a faz. Quando Apeles pintava Alexandre, tinha na mente aAlexandre;quandoAlexandreconquistavaomundo,tinhanamenteasimesmo.NaideiadeApelescabiaAlexandreemumquadro;na ideiadesimesmonãocabiaAlexandrenomundo;por issooconquistoutodo.

Aumaceganadaserecusa,umacegafacilmenteentranacapeladoscoraçõesalheios,porpequenaqueseja,emaliluminada.EstegrupodeseguidoresdeAntónioVieiravaiparaSalvadordaBahia,comonós.Depoiscontinuam—Recife,Maranhão,Belém.Tinhamumquartoamais,esperavamumaescritoraquedeveriafazeracrónicadaviagemeque,àúltimahora,sedescartara.

—Escritoras—dizestu,paradizeresalgumacoisa,eavozestremece-tedefrio.Explico-tequeelessótêmumquarto,equelhesdissequeéramosumcasal.Pergunto-teseissoteincomoda,precipitas-tearesponder que não, que não, a voz de repente borbulhante. Recordo-te que os quartos de casalnormalmente têmduascamas.Eexplico-teque,senãoforocaso,pedimospara trocar.Equefaremoscom eles o resto do trajecto. Extraordinária coincidência, termos sido chamados pelo Padre AntónioVieira.Decertamaneira,foielequemelevouaoBrasilpelaprimeiravez.Omeuentusiasmomagoa-te,leio-teaofensanavozenquantomedizescoisasbanaisesensatas,quenãocriedemasiadasexpectativas,

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que ninguém consegue regressar ao lugar onde foi feliz. Conheço muito mais do Brasil do que afelicidade,Sebastião.Comosealguémpudesseregressaraolugarondefoiinfeliz.Nãoseéduasvezesinfelizdamesmamaneira,eninguéméfelizdemaneiranenhuma.Inventamosaquilodequenosqueremoslembrar,issosim.Digo-tequegostodepensarquefoiparaqueeumeinventassemelhorqueomeuamorpeloAntóniomedevorouosolhos.

—QueAntónio?Opadre?—Outro.Falar-te-eidelemaistarde.—Masoquetemessehomemavercomatuacegueira?Logotedirei,Sebastião.Masnãojulgues

quefoioamorquemecegou.Éverdadequeoamorcega,paralisa,entorpece—masapenasparatudooquenãoéo

amor.Etudooquenãoéoamoréomaldomundo.Nãovalenada.Ameiobastanteparajánãotemernada. O António foi a minha última visão. Zangas-te - voz e palavras em sintonia, pelo menos isso.Queres saber se foipara ir aoBrasil ter comoutroque te chamei.Relembro -tequenão te chamei—apenastedissequequeriairaoBrasil,etuofereceste-teparameacompanhares.Agradeço-tedenovoacompanhia.Quantasvezestereideagradecer?Digo-tequeopiordeserceguinhaéterdeestarsempreaagradecer.Respondesquenãosouceguinha.Entãocomoéquesediz,Sebastião?Invisual?Peço-tequemepoupesochádetília.—Eunãotenhopenadeti,Clara.Éimpossíveltermospenadeumamulherqueemmenosdecincominutosnosmudaarota,semsequerperguntar.Secalhartenhoépenademim.

—Vaidaraomesmo,apenaécontagiosa.Eturvamaisavistadoqueacegueira,vêsetenscuidado.Mas podes estar descansado, oAntónio já não pode incomodar-te.Estámorto,mas nãomeperguntesagoramaisnada,nãováelesaltardoburacodosmeusolhos.Vamostercomosoutros.

Dizesqueosmeusolhosnãosãoburacos,sãoapenaslisos.Comoquealheados.Sóoalheamentoostornaalarmantes,sim.Umtirononervoópticonãodesmanchaogloboocular,vêtuaminhasorte.Tãobomeraocirurgiãoquemeoperouquenemorastodeumligeirodesfiguramentonafacemedeixou.Aténisso tivesorte,oBrasiléocampeãodacirurgiaplástica.Fiqueiapenascomumacicatriznacabeça,pequena, escondida sob o cabelo. Resmungas que é difícil conseguir estar sozinho comigo. Desiste,amigo.Nãomequeirasdeumquerer tãoestreito.Para solidão,basta-meonegrumeconstanteemquevivo.Eomeuriso,orisoapavoradoemquechoroaslágrimasquenuncamaispodereiver.

Porque estou eu aqui contigo,Clara, comesta enferrujada esperançadeque talvezvenhas ainda aestarcomigo?Nãoperguntoporquetedesejotanto—nãoéqueodesejonãotenhaassuasrazões,massó poderiam cartografar-se no espaço inviável de um antes que nunca se detecta.Desejamos antes dedesejarmos;somosdesejadospelodesejo.Talvezestejascerta,talveztenhasidoatuacegueiraoquemeatraiupara ti—oportealtivoda tuacegueira,sim,mas,acimade tudo,odesejodemefazeramarporumamulherquenãopodever-me.Seiquesouumhomembonito,Clara,masnãogostodoqueabelezatemfeitodemim.Vouaoginásiocomooutrosvãoàmissa,paraaumentarasminhasbem-aventuranças.Aspotênciasdocorpo:músculos,bíceps,abdominais,nádegas,ámen.Tudonosítio,

emuita fibraaopequeno-almoço.Deslizosobrea superfíciedascoisaseoscorposdasmulheres,nadadedensooudifícilmeépedido—seráporissoqueprecisodeti?

Penseiqueficandodoladodeforadavidaconseguiriaagarraradorpelascostasematá-la.Équecerta vez fiz uma coisa terrível. Involuntária, mas nem por isso menos terrível. Foi sem querer,balbuciamos, depois da catástrofe.Mas sabemos que essa ausência do querer não existe no universohumano. Sabemos que é porque queremos isto em vez daquilo, ou porque queremos tudo ao mesmotempo,ouporquequeremosoquenos fazmal.Sabemos aqueponto aquiloquequeremosdesmanchaaquiloquepensamosquequeremos.Sabemos,sim—masovulcãodoquererémaisviolentodoquetudooquesabemosoupensamos.Eunãoqueriaquerer-tetanto,Clara.Repitoquenãoqueroquerer-teejátequeromaisquandoacabodeorepetir.Oesporãodainfelicidadeacirraestemeuquerer-,talvezeusaibaquenãotenhoodireitoateroquequero,talvezsejaessaaminhaformademepunir.

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Fizumacoisaquemedeveriatermatado.Umacoisaquedealgummodomematou.Masmorrerdealgum modo não é igual a morrer completamente— deixar de respirar, perder todas as delícias daexistência,incluindoadesofrer.Nessediaemquenãomorriviciei-menosofrimento,eusei.Seitudooque há para saber e nem assim desisto.Um dia contar-te-ei— quando conseguir que tume ames ouquandoconseguiraceitaremdefinitivoo teudesamor.Clara,eufizumacoisa irreversível, trágica,pelaqual ninguém me culpou. Sobrevivo com essa culpa, sozinho, até hoje. Sobrevivia com essa culpa,sozinho,atéqueteencontrei,e,comoumadolescente,empurreiasculpasparaomundo,subitamentenãomaisdoqueumamão-cheiadeterraepódebaixodosteuspés.

Ocoração,ospés,asmãos,asasas,tudovemdacabeça,queéomoldedaprópriafantasia.Seestafordehomem,asacçõesserãoracionais;sedeáguia,altivas;sedeleão,generosas;sedeboi,vis.

Pedes-meque teconteagoraoquevejo.Que teconte,pelomenos,acausadomeuamorporessepadre,queafinalconhecespouco.Oamornãotemcausa,queridoamigo.Maspossodizer-tequeAntónioVieiraeraumbelohomem.

—Belo?—Sim;belo,atédessamaneiraimediataquesetemcomoofensa:alto,espadaúdo,deolhosamplos,

vestido comuma túnica grosseira,mais parda do que preta.Dormia pouco, comia farinha de pau, liaSantaTeresadeÁvilae,sobretudo,tinhaopoderdetransformaromundoatravésdapalavra.Teveessepodercomomaisninguém,atéhoje.

Ninguém?NemSócrates?NemCristo?NemBuda?Nemosprofetas?—perguntas.Queresdizerquesouumaexagerada,eéverdade.Temosdecarregarnoscontornosdomundosepretendemossacudi-lo—Vieiracompreendeu-ocomoninguém.

Sócratesprocuravaorigordoconhecimento,nãoatransfiguraçãodouniverso.Oslíderesespirituaiseosprofetasfazemdapalavraumatrincheiraouumjardim,nãoumengenhoparacaminharnoescuro,comofezVieira.ECristo,meuquerido,queeusaiba,nãodeixounadaescrito,deixouqueescrevessemporeleoshomens,quesempre têmtrintaversõesparaamesmahistória.Deixouapalavraescritaaoshomens— talvezpor amor, até acreditoque sim, comoprovado amor extremo,que actua atravésdosilêncioparanãoserconfundidocomumademandadegratidão.Cristodeixouaoshomensoarbítrioeotriunfodapalavraescrita.Paraqueoentendessem,eentendessemaarbitrariedadedascoisasdomundo,usouaparafernáliadosmilagres.Atéosseusdiscípulosprecisaramdosmilagresparaoseguirem.

Vieiranãoprecisavadenadanemdeninguém.Nofundo,achoquelhebastavaaconsciênciadequetinhaDeusdentrodesi—ouaeternidade,ouoconhecimento,comopreferires.Eraumprecursor;fervia-lhenopeitoumaverdadeesócomelatinhaligação.Essaverdadelibertava-odadorcomum-,sentiaasinjustiças e ofensas—e não foram poucas as que lhe fizeram. Vingava-se, convertendo empalavrasescritas a experiência da mesquinhez humana. Vingava-se, gritando do púlpito esses sermões irados,conscientedequenãoconseguiriareformaroscostumesdoseutempo,masaindamaisconscientedequeessestextos,ateadosporumaraivaíntimaeincendiadospelalucidezgenéricaqueconsagraaspaixõesparticulares,lhesobreviveriam.Trabalhavacomosevivessenofuturo—eporissoescreveucoisasqueainda hoje são arrumadas no altar dos prodígios, e adoradas pelo exterior do seu entendimento. Euprópriaoadoravaassim,pelapinturadotextoepelamúsicadasintaxe,aqueleamorreverente,escolar,cheio de presunção e desconhecimento, que se vota às ruínas do passado.Até queme apareceuoutroAntónio, o António que trouxe Vieira para dentro da minha vida — mas ainda é cedo para essaconfidência.Comopodereifalar-te,ati,meninosolene,mimadopeloaborrecimentodouniverso,desseolharimpermeávelàofus-caçãodaslágrimas,oolhardeumacriançasemtédio?

Ocírculodotempopáranumanovaidadebarroca,trabalhamososupérfluo,aideiadeartevalemaisdoqueaarte,aideiadeculturasepara-sedaculturapossíveleparticulardecadaum,emrendilhadosinfinitos, citação da citação da citação, fragmento do fragmento do fragmento, intermitências de luzcosidasembrocadosde sombra, a religiãoda ironia substituindoperfeitamentea religiãodosdeuses.

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Tornasadizerqueexagero,queháumadiferençaessencialentreo livrearbítrioeasujeiçãoa livrossagrados,entreoritualdairrisãoeoritualdaoração—mas,talvezporqueestoucega,ouçoummesmorasgardesedas,ummesmouivardeandrajos,ummesmopavoranimalgemendosobaaparênciahumana.Pois não sentes a irracionalidade que grita no desejo de dominação humano? Não sentes a sede dedomínioatrofiandotodasaspossibilidadesdeprazer?Nãosentesquetemosacabeçaaprémio?

Nãomeentendes,caríssimoSebastião;dizesquemisturotudo.Dizesqueéincomparávelaliberdadedequehojedispomosparaimaginar,escolher,criar,viver.Pelomenosnanossacivilização,dizes.Eeurio-me do que tu dizes, e tu zangas-te com omeu riso, cuidando, como tanto se cuida naquilo a quechamasanossacivilização,quemeriodeti.QueridoSebastião,rio-meporqueaquiloaquechamasanossacivilizaçãoaindanemsequercomeçou.Importa-mealiberdade,sim,masvejoqueausamosaindaeapenascomoumaoutraespéciedegrilhão.Vestimosaliberdadecomooutroravestíamosasubmissão;elanãoémaisdoqueumtrajedebaile,comumcarnetemqueapontamososnomesdaquelescomquemdançaremosparabrilhardiantedosoutros.Democratizou-seoanseiodeestatuto,masnãoconseguimosaindasairdele.Éissoquevejo,Sebastião.

Som e sentido, continente e conteúdo dilacerando-se, hoje como sempre, até que nada reste sob asuperfíciehiperbólicadarealidade.Dizesqueaquiloaqueeuchamoestatutopode tambémchamar-seânsiadeeternidade.Maseuvejotãopoucaeternidadenossonhosdaspessoas,Sebastião.Aeternidadeque somos conduzidos a aspirar é a da juventude — o lugar mais rápido, inseguro e variável daexistênciahumana.O lugardoquererser.Nãovêsocontra-sensoque isto representa?Aviolência?Aprisão?

Não,nãovês,comoeunãovia.Pertenceraumpaísquedeantigosetornouvelhotambémnãoajudaaver.SóatravésdosolhosdesseAntónioqueveiodoBrasileucomeceiaver.Nosolhosdeleaprendialer Vieira, como no seu corpo aprendi a saborear o desejo infinito, o desejo como experiência daeternidade.Paraessaexperiêncianãotenhopalavras.Nemsequersilêncio.Dessaexperiência,sobrou-meoquesou.

AtudooquetevoudizendosobreasuperfícielisadoBarrocoeasuperfíciebarrocadonossotempoaparentemente liso respondes-me com o discurso contemporâneo do progresso relativo, a músicaelectrónicadohumanismodesalão.Tolerância,dizes,tudopassapelaeducaçãoparaatolerância.Sim,Sebastião, és um homem de bem, de esquerda, um guardador de valores perdidos e de amanhãsdesvirtuados.Lindomenino.AntesatolerânciadoqueasfogueirasdaInquisição,dizestu.Bemseiqueascomparaçõesacalmam—tambémparaissomefazemfaltaosolhos.Massereparares,bomSebastião,ocadáverdaInquisiçãoaindarevolveaterraemquepretendemostê-loenterrado.

As vezes cansa-me falar contigo, Sebastião, tens as ideias demasiado arrumadinhas, como numavitrine, proibido tocar. Portugal está cheio de gente assim, parece um museu de frases consensuaispronunciadas por gente de olhar escorregadio. Porque será assim inclinado o olhar dos portugueses?Víciodeguerreiros, ardil de resistência aos cercos, excessoda imaginação?Tuqueainda tensolhos,Sebastião,repararásqueosbrasileiros,emgeral,teolhamnosolhosquandofalamcontigo.Esseolharfranco poupamuitas palavras, para omelhor e para o pior. Existe uma empatia imediata, que até daantipatia faz uma questão de lealdade. António Vieira olhava assim, com uma frontalidade bruta, deprecipício.Olhavaparaofuturoenãotremia,lançavaopensamentosobreasmuralhasdomundo,fixadonoazuldocéu.Eraumpensamentoirrequieto,incessante,incontrolável,oseu.Masfoiaartequeosafou.

—Safou-odequê?—Doesquecimento.A Inquisiçãobem tentou—e adada altura conseguiu amordaçá-lo,masnão

conseguiu queimar -lhe os escritos. Aí estão, até hoje, encandeando-nos com o seu esplendor aindaindecifrado.

—Exageras;oPadreAntónioVieiraéestudadonasescolas.— Meia dúzia de textos, sim— sempre os mesmos, e os mais circunstanciais. Essa é a forma

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contemporâneadeagrilhoarumautor: interpretar-lheumpedaçodaobraatéàúltimaletra,sugar-lheamatéria temporal,estendê-laemcátedrasaté lheesgotarosopro.Compará-lo,medi-lo,debitá-lo—eesquecê-lo.

—Tunãooesqueceste.Não,Sebastião,nãooesqueci,e tambémporissonãoseidizer-tequemeleé-,digo-tequeébelo,

esperandoqueissoteperturbeeteirriteeteconduzaatéele,seforesseoteucaminho.Seiquelhedevoaraiva,aconstância,e,acimadetudo,oprivilégiodaalegria.Maisumavez,respondesquemeinvejas.Estoucansadada tua invejadecartolina,Sebastião;peço-tequenãoestraguescomgraçaspequenasaGraçadoquepartilhocontigo.

—NãosabesaGraçaquehánasgraçaspequenas.Nãosonhascomoprecisodela.—Dá-meatuamão,eguardanelaagoraomeusilêncio.Há de servir o corpo ao próprio conhecimento, comoo aço no espelho serve avista: o aço serve

avista;porquerebateelançadesiasespéciesdequemsevêaoespelho;demaneiraqueomesmoqueimpedeoconhecimentodirecto,serveaoconhecimentoreflexo.Assiménohomemoconhecimentodesimesmo;sepáranocorpo,ignora-se;sereflectesobreaalma,conhece-se;saialogodocorpo,esacuda-sedopó,sequerconhecer-se:Siignorasteegredere.

E se alguémme perguntar a razão desta filosofia, porque o homem visto pela parte do corpo seignora, evistoouconsideradopelapartedaalma se conhece; a razãoclara e fácil (postoquepareçainjuriosa)é,porquequemvêocorpo,vêumanimal;quemvêaalma,vêaohomem.

Estamosjánoavião,noaviãoondemelevasparaummundoqueterecusasadesvendar-me.Osteusdedosagitam-secomonosdeluzsobreoteuoutropulso.Folheioumarevista,paraconteratentaçãodeagarrar cada umdesses teus dedos pequenos, irrequietos, irresistivelmente pragmáticos. Pergunto-te oquefazes,respondes-mequevêsashoras.Explicas-mequelevantasapatilhadorelógioelêsashorascomaspontasdosdedos.Perguntas-mesenuncatinhavistoumrelógioparainvisuais.Ris-tesemprequedizes a palavra invisuais. O teu riso é a minha música favorita, Clara, mas não posso dizer-te isto,deixavas logode rir.Estásnervosa.Respiras fundo.Pergunto-te se tensmedodevoar, respondescomumafrasedoPadreAntónioVieira,«nãoháquetemerondenãohátemor»,dizesquenãohátranquilidademaiordoqueadeviajarcomfantasmas,eque,seoaviãocair,esperasqueoteuanjoAntónioVieirateconduzaaoParaíso,apesardosteusmilpecados.Seoaviãocair,Claríssima,pelomenosmorrocontigo,eunemsequertenhomedodemorrer,masnãoéissoquetedigo,pergunto-teseachasqueostiposabremasportasaateus,maspergunto-teestaparvoícesóparanãoficarcalado,sóparatunãoperceberesomeupavor,omeuamor,acomoçãodeestarassimcontigoavoarparanãoseionde,paraosbraçosdoteuamantemorto,paraocolodoteuPadreEterno,paradentroeforadetiaomesmotempo,euseiquetunãoésateia,Clara,acreditasemtudo,sónãoacreditasemmim.

—Eunãomedefinocomoateia,seriaumaenormearrogância.ComtudooquedesconheçosobreocéueaTerra,comopossodeclararainexistênciadosdeuses?AreligiãodeVieiranãomepareceboacompanhia,comoaliásnãofoiparaele—masestoucertadeque,nocéudeVieira,podementrarmesmoosquenãosejamdasuafé,desdequetenhamprocuradoserjustos.

Proponho-te que adiemos essa entrada no céu, aproveitas parameter conversa com a senhora dogrupoqueestásentadadoteuoutrolado;nãoseiondevaisbuscaressatranquilidadeolímpica,aindanãoacredito que tenhas conseguido introduzir-nos na excursão com tanta facilidade, sinto-me um intruso,Clara.Perguntas-me:

—ComonofilmedoVisconti?QuefilmedoVisconti,Clara,parecequevistetodososfilmesdomundo,estousempreemfalta,sei

sempremenos,não,Clara,nãoviOIntruso,conta-me.Etucontasqueofilmeésobreumcasalquetemumfilhoeomaridofaztudoparaselivrardacriança,sente-seintimidadoeroubadopelofilho.Digo-tequetudoissomeparecemuitodramático,enquantodramaticamentepensoquenãomeimportariadeter

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umfilhoteu,Clara,euquenuncapenseiemterfilhos,e,vêlátu,sintoocontráriodohomemdessefilme,nemqueamassesessacriançamaisdoqueatuaprópriavidaeuficavafeliz,Clara,pelomenoseraumapartedemimqueamavas,pelomenosteriassuspiradodeprazernomeucorpo,pelomenosnãoseriasóoteucão-guia,Clara.

—Sinto-meumintruso,sim,masdeumaespéciemaisligeira.Menosmal.—Omenosmalépartedobem,Sebastião.E voltas a dizer que a oportunidade é perfeita, que andavas há anos a congeminar nesta ideia de

refazeropercursodeAntónioVieiraequeagoraencontrámososguiasadequados.Depoispedes-mequeteajudeaseguirofilmequecomeçaapassarnosecrãsdoavião.Eeudescrevo-teasimagensdofilme,inventomaisdoqueconto,perdidonodesejodosteusdedos.

Pinta-seoAmorsempremenino,porqueaindaquepassedosseteanos,comoodeJacob,nuncachegaàidadedeusoderazão.Usarderazão,eamar,sãoduascoisasquenãosejuntam.Aalmadeummenino,quevemaser?Umavontadecomafectos,eumentendimentosemuso.

Taléoamorvulgar.Tudoconquistaoamor,quandoconquistaumaalma;porémoprimeirorendidoéoentendimento.Ninguémteveavontadefebricitante,quenãotivesseoentendimentofrenético.Oamordeixarádevariar,seforfirme,masnãodeixarádetresvariar,seéamor.Nuncaofogoabrasouavontade,que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração, que não houvessefraqueza no juízo. Por isso osmesmos Pintores doAmor lhe vendaram os olhos. E como o primeiroefeito,ouaúltimadisposiçãodoamor,écegaroentendimento,daquivem,queistoquevulgarmentesechamaamor,temmaispartesdeignorância:equantaspartestemdeignorância,tantaslhefaltamdeamor.Quemama,porqueconhece,éamante;quemama,porqueignora,énéscio.Assimcomoaignorâncianaofensadiminuiodelito,assimnoamordiminuiomerecimento.Quem,ignorando,ofendeu,emrigornãoédelinquente;quem,ignorando,amou,emrigornãoéamante.

SeguimosdirectamentedoaeroportoparaoMuseudaBahia,nãohátempoparairaohotelporqueadirectoraestájáànossaespera.OMuseuestáfechadopararemodelação,masvãoabri-lodepropósitoparaonossogrupo.Aportadoautocarroaguarda-nosumjovemmulato,alto,espadaúdo,queseapresentacomoMarcos,nossoguia,esclarecendoimediatamentequeétambémprofessordeinglêseprofessordeculturas afro-brasileiras. Acima de tudo, orgulha-se de ser descendente do rei deOyó, um reino quecorrespondehojeaoLestedaNigéria,umreiquefoitrazidoparaoBrasilcomoescravoefundouumdosquilombos mais antigos da cidade. Perguntas o que é um quilombo; um dos membros do grupo,especialistanosincretismoreligiosodaBahia,explica-tequesetratadeumbairrodenegroslibertados.AvozcantadadeMarcosdesenrolaumcompactohistóricoemversãoturística-subversiva:

—Oi,gente,peçoaatençãodevocês,porgentileza.OatrasodoBrasil,minhassenhorasemeussenhores,consideradoentreospaísesditossubdesenvolvidos,sedeveaopoucotempotranscorridodesdeoterminusdaescravatura,nofinaldoséculoXIX.Emeperdoem,maspercebiquecêsestavamseguindopelajanelaaquiloaquechamavamfavela.OrafavelaéumtermodoRiodeJaneiro,porqueosnegrosconstruíamsuascasasnosmorros,ondehaviaaárvoredasfavas,assimdenominadadefavela.Aquiessetermonãoseaplica.Nesseinstante,vospeçoqueobservemessesedifíciosdeluxo,cujastraseirasdãoacessoapraiasprivativas,àsquaisapenasosmoradores,gentemuitorica,podeaceder.Aquitêmosduroscontrastessociaisexistentesnessanossatãobelacidade.

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Nosbancosdoautocarrocadaumtemasuainterpretação:—A fragilidade doBrasil é essa.Olha-se para estes fantásticos condomínios fechados ou para os

helicópteros particulares que sobrevoam a miséria de São Paulo e tem-se um tratado de sociologiapolíticapronto.OBrasiléumverdadeiroparaísoparaofundamentalismosociológico—dizumhomemdemeia-idade.

—Emúltimainstância,fazendocontasàpobrezaextremaeaoluxoostensivo,oqueseestranhaéqueacriminalidadenãosejaatémuitomaisgalopante—porqueemverdadevosdigoque,aocontráriodoquemuitoseestremeceapartirdo fanaditosofáeuropeu,podeperfeitamentepassear-seàvontadeemmuitaszonasdopaís,incluindooRioeSãoPaulo,comumasensaçãodeperfeitasegurança—dizumamulherjovem.

—Sejaláissooquefor—respondeumamulhermenosjovem,encolhendoosombros.—Sim,sejaláissooquefor—tornaajovem,agoramaiscomplacente.—Oproblemadasanálises

ésempreesse:oserhumanoinsisteemescaparaogrilhãodoestereótipo.OsdespojadosdaTerranãosãovingativosemuníssono,comoconfortavelmentenosimaginamos,nolugardeles.

Eumaoutrafigurafeminina,deidadeindefinida,integralmentevestidadebranco,acrescenta:—Sebemqueamatilhaéoprincípiodavingança.Mesmoovingadorsolitáriotrazumamatilhauivantedentrodesi.Escutas estes comentários com um sorriso sereno, dizes que te agrada a música das vozes

sobrepostas,amelodiadasconversasdecircunstância.Quedantesnãoouvias,nãodavasvalor.Porissogostastantodeviajaremgrupo.Compõescomasomadasvozesumatelacubista—provavelmenteatémaisgrosseira,porquecadagrupocriaumapersonalidadeprópria,umacoisaestranha.Comosecadapessoa batesse o tacãodos seusmelhores sapatos. Sim,Clara, às vezes nem se ouveninguémporquetodosbatemotacãoaomesmotempo.Repontasqueomaisinteressanteacontecequandoalguématiraossapatosaoar,porquesenteospésaarder...Ou,digo-teeu,porquesedeixaembriagarcomosapateadogeral sobre o palco.Mas não creio que isto aconteça com este grupo. É tudo gente que já temmuitocaminhoandado,eapreciaadifícilharmoniadascoisas.TornaMarcos,sobreoburburinho:

—Senhorasesenhores,semepermitemmonopolizarduranteunsbrevessegundososfavoresdasuaatenção,querialhesdizerqueduranteoséculoXIXestamagníficacidadedeSãoSalvadordaBahiafoiassoladaporumaepidemiadecólera,duranteaqualvinteetrêsporcentodapopulaçãoveioaóbito.

—Veioaóbito—repetes.—Deliciosaexpressãoparaumarealidade terrível.Épor issoqueeugostodoBrasil:aqui,aspessoas,mesmomortas,aindavêmaalgumacoisa.

Sim,pelomenosnodizer turístico, ressalvo,numdizersarcásticodeaspiranteà tuaconsideração.Retorquesdeimediato:

—Quetudotenhaummodoturísticodeserdito,toma-nosavidamaisleve.Pelomenosenquantoformosturistas,frisoeu,tentandoaguentaratuavelocidade.—Que somos, senão turistas?— perguntas.—Presumimos tanto, e não somosmais do que isso:

turistasflanandoàsuperfíciedaterraduranteumasdécadas.Marcos exorta-nos a que nos preparemos para sair do onibus para o Museu, cuja diretora nos

aguarda. Já caiu anoite, numminuto, nemdemospelaqueda.Anaturezapoupa este ladodomundoàmortequotidianadocrepúsculo.Anoitedesabasobreodiacomosefosseapenasoseuforrodesedaescura,oseulençolfrio,asualibido.Clara,seaomenostuentendessesaangústiadosmeuscrepúsculos.Sorris,trocista,replicas,muitodepressa:

—Nessaangústiajáninguémmeapanha-,tudotemassuasvantagens.Comopossopedir-tequesaiasdoteudesesperoparaentraresnomeu?Sejamos,pois,completamente

turistas, como queres; um bando de gente condenada à mortalidade, em busca de motivos deatordoamento.Osmuseus sãoanestesias inócuas,poupam-nosamágoadoesquecimento, iludem-nosocaminhoparaofim.Pelomenoscansam-nos,acrescentastu.Afirmasqueumadasvantagensdacegueira

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éadeaprendermosaapreciarocansaçofísico—essasensaçãodecombatecomopesodocorpoqueaspessoasemgeraldesdenham.QueridaClara,pareces-mederepentetãoadolescente,comoteucatálogodas vantagens da cegueira. Mas claro que não te digo isto. As listas acalmam, ou, pelo menos,entorpecemossentidos,calamoinexorávelavançodosrelógios.Comoosmuseus.

Começamos a ser pastoreadospor salas recheadasdequadros emobílias, a diretoravai narrandocomo se foi constituindo o acervo doMuseu, a partir de várias coleções particulares do século XVprogressivamenteadquiridaspeloEstado.Explica-nosqueentreelasavultaumaimportantecoleçãoquereúneosprincipaisrepresentantesdaEscolaBahianadePintura,dosséculosXVIIIeXIX.Procuro-te,afastaste-te do grupo, vagueias com os braços ligeiramente erguidos em torno do corpo, olho para ti,Clara, para os teus olhos vagos nomeiodaprofusãodas telas, sugiro-te que te aproximesmais, paraouvires,respondes-mequeouvesmelhordoqueocomumdosmortaisequepreferesafastar-teefarejaraatmosfera.Dizesqueasenhoraéumaóptimaexplicadora,masnãoconseguesmemorizartudo—e,que,dequalquerforma,agora,infelizmente,apinturatepassaaolado.AdiretoradoMuseufaladasestatuetasdesantoscatólicosquerevelamomaravilhosodomdeinterpretaçãoescultóricadeanónimossanteirosbaianos.Asenhoradebrancoafirmaqueoanonimatoéoverdadeiroesplendordaarte.Comove-apensarnosartistasquedespendiammeses,àsvezesanos,acriarestaspeçasbelíssimassópelaalegriadeasconceberem,semasutilizaremcomoespelhosdeampliaçãodesimesmos.Tuaproximas-te,edizes:

—Utilizavamaartecomoumaescadadeacessoaocéu.Osucessoeraentãoumamedidaceleste.Oque facilitariamuito a vida naTerra, comento,mais umavez só para dizer alguma coisa a que

possasachargraça.Estaconversasobreasnobresmotivaçõesdeoutraserasfaceaosvisobjectivosdopresentetemocondãodemeenervar—nãosentirãooodordosangueedaslágrimasdosescravos,oruídodochicoteedabarbáriepordetrásdestasmaravilhas?Alguémacrescentaqueaarteseriaentãoaexpressãomáximadoamor,enistoumavozpotentedeclara:«Definir-seearder,issoéamar.»Nãoseideonde veio esta voz, a diretora fala agora da remodelação em curso das instalações e dos modernosconceitosdemuseogranaquevãoadotar.Murmurasqueosmuseus sãouma invençãoestranha,que sevêemeesquecem,comoosmortosdosoutros.Anãoserqueseleccionesmeiadúziadeobjectosparavisitar,contraponhoeu,nestejogodepositivo-negativoqueentretenhocomaarmaduradoteucoração.Osnossosmortosparticulares,acrescentastu,mortosquedemorammaisaconhecerqueosnossosvivos.Alegasquejátensosteus,eporissonãochegasaterumasaudadesinceradavista.

—Dequetensentãosaudades?—pergunto-te.Respondesquedocorpodeumhomemquejánãopoderiasver,mesmoquevisses.Quatroignorânciaspodemconcorreremumamante,quediminuammuitoaperfeiçãoemerecimento

deseuamor.Ouporquenãoseconhecesseasi:ouporquenãoconhecesseaquemamava:ouporquenãoconhecesseoamor:ouporquenãoconhecesseofimondehá-deparar,amando.Senãoseconhecesseasi,talvezempregariaoseupensamentoondeonãohaviadepôr,seseconhecera.Senãoconhecesseaquemamava,talvezquereriacomgrandesfinezasaquemhaviadeaborrecer,seonãoignorara.Senãoconhecesseoamor, talvezseempenhariacegamentenoquenãohaviadeempreender,seosoubera.Senãoconhecesseofimemquehaviadeparar,amando,talvezchegariaapadecerosdanosaquenãohaviadechegarseosprevira.

—Ummuseudebelas-artes,quebom.Estoufartademuseusdeartesplásticas.A praga das pessoas rotulantes agrava-se com o crescimento do turismo. A voz esganiçada desta

mulherzinha, combinada como toc-tocdos seus saltos altos, arranca-medemimmesma.Eouço-meacontrapor—quepenanãopoderveraflordoteuescândalo,Sebastião:

—Nãoconcordo.Aliberdadeémaisimportantedoqueabeleza,easartesplásticassãoumaquestãodeliberdade.

Penseumbocadinhonisto,senãoacansarmuito.Emboahorafalei;abre-sediantedemimumpoçodesilênciocelestial.Comumaceganãosediscute

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estética,Sebastião.Todooinfortúnioreservaassuasdelícias.Informas-medequeestamosdiantedeumapianola-costureira,umdoisemumdepianoecaixadecostura,doséculoXIX,equepossopassar-lheamão.Umageringonçaquepermitiatocarpianoecosermeias,umverdadeiroconcentradodaexistênciafeminina. NumMuseu de Arte Contemporânea um objecto destes seria exposto como uma instalaçãoassinada, uma obra irónica. Aqui é apenas histórico, ou seja, presente. Profundamente melancólico.Avisam-nosdequeànossadireitaseencontraumaescrivaninhasingular,comgavetadesegredo,paraguardarnotas.Oucartasdeamor,talvez.

Meu amor imperturbável como o riso das estrelas, asseveraste-me que o tempo tudo cansa edescansa,masashoras

rolamdevagarsobreosdias,osdiassobreosanosesóoespelhomeprova,nasuacrueldadedemasculinoaço,queotempopassousobreosilêncioaparentedenósdois.Nemseicomosobrevivoaesteapartamentodosteusbraços;seisóquedeliroemredordatuaimagemnomeucérebro.

Dizem que é no coração que o amor se crava e oculta, com punhais de corsário, mas destemeucoraçãodepedranãocorrefiodesanguenemháescaradetempoqueodesmanche.Emvezdecoração,tenhoaestátuado teurostocintilando,comojóianoaltodocorpo.Essesbrevíssimoseantiquíssimosdiasemqueoteurostotinhaomoldedasminhasmãoseatuapelebebianaminhaoprazerdaeternidadeconsumadarefluemnaminhacabeçacomoaspáginasdeumlivrocircular.Aslágrimasqueemsegredovouchorandoresultamapenasdessecontínuoatritoentreasesferasdosmeusolhoseaesferadolivrodosdiasdonossoamor.

Étudocérebro,extremosdopensamentoconcentrado,porquenãonotoemmimnenhumamágoa,nematristezaoficiosadasmulherescorrompidaspelaculpa,neminstintosderevoltaouvingança,desmaiossúbitos,profundosais,nadadenada.Vivodoteuamorquenãotenhocomooutrosvivemdoarquetêm,semdarporele.»

Osolhosouvem-se—asretinasturísticasrodam,atordoadas,detelaemtela,devitrineemvitrine.Nosilênciodessesolhosmúltiplos,sobrecarregadosdeinformação,ouçoumrodardegonzos,minimal,um rrrrrrr de indigestão visual, um zzzz de circuitos em alarme de curto-circuito.Muito para ver emmuito pouco tempo—eis umproblema existencial que já não tenho.Mas os olhos dos outros pesamsobreaausênciadosmeusolhos.Elesolhamparaosquadroseeusinto-meolhadapornãosaberolhar.Explicam-nosqueapinturaeuropeiapoderáserapreciadaaolongodestepercurso,destacando-seobrasdegrandebelezaplásticacomoaVistadoPortodeSalvador,noséc.XV,doartistaJ.LeonRighini,alémdeváriasobrasdaEscolaItaliana,aexemplodeDavideacabeçadeGolias,deCaravaggioeBeatrizCenci,deGuidiReni.Perguntas-mesenãoestoucansada.Sim,estoucansada,masgostodasensação.Ouço «Caravaggio» e sinto a sua luz brutal percorrer-me o corpo. Com o sotaque brasileiro ainda émelhor,Sebastião;aformacomoasenhoradisse«Caravaggio»étodoumprogramadeluxúria.

Nuncatinhaestadonestemuseu,masocheirodacidadeé-medilacerantementefamiliar.Opesodosolhosdosoutroscomeçaadeslaçar-se,sintoumoutroolhar,comosedasparedesquenãovejoalguémmeabraçassecomosolhos,lentamente.Nãoteesqueçasdequejáaquiestive,Sebastião.Queresquetecontetudo.Digo-tequetecontareilogoànoite,agorahádemasiadaconfusão.Estoucansada,estoirada,enoentantosintooafagodeumolharpoderoso,alguresnestacasa.Dizes-mequeestamosdiantedoretratodomeuPadre.Eusabiaqueeleestavanestacasa;eramosseusolhosoquesentia.

—Selançarmososolhosportodoomundo,acharemosquetodoouquasetodoéhabitadodegentecega.

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II

—Quedizes?—Eunãodissenada,Clara.—Entãoéele.—Ele?Divagas.Temosqueirandando,aexcursãojávailáadiante.—Eunãoqueroexcursionar.Deixa-mefalarcomele.—Éextraordinário.EstásmesmoaolharparaoretratodoteuPadre.—Não;extraordinário seriaquenãoolhasse.Eunãovejo,Sebastião,masnão sou tãocegacomo

pensas.Vaituveroqueháparavernomundodascoisasexpostas,depoisconta-me.Deixa-nosestar.Destediscursosesegueumaconclusãotãocerta,comoignorada;eé,queoshomensnãoamamaquilo

que cuidamque amam.Por quê?Ouporqueoque amamnão é o que cuidam;ouporque amamoqueverdadeiramente não há. Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima e nãovidros; quem ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições ama, e não defeitos.Cuidais queamaisdiamantesde firmeza, e amaisvidrosde fragilidade: cuidaisqueamaisperfeiçõesAngélicas, eamais imperfeições humanas. Logo os homens não amam o que cuidam que amam.Donde também sesegue,queamamoqueverdadeiramentenãohá;porqueamamascoisas,nãocomosão,senãocomoasimaginam,eoqueseimagina,enãoé,nãoohánomundo.

Peço-tequememostresonossoquarto,Sebastião.Onossoquarto,sim,repetes.Oroupeiroaoladodireitodaporta,acasadebanhoaoladoesquerdo.Assimnão,Sebastião.Aspalavrasnãoservem,nestecaso.Leva-mepelamãoacadacoisa,deixa-meenumerarospassos, situar-me.Nãoprecisasdedizernada,mostra-mesócomamão.Devagar.Paraqueeuaprendaareconheceroscantoseamobília.

Perguntas-mequecamaprefiro.Sugeresaqueficamaisdistantedavaranda,porcausadobarulho.Mastantomefaz,Sebastião.Perguntassequeroquemedesfaçasamala.Zango-me.Estásdoido?Nãosouumacriança.Livra-tedemexeresnasminhas coisas.Nunca suportei isso, e agoramenos ainda, ainvasãodopaternalismodosoutroscresceàmedidaquenósdiminuímosaosolhosdeles.Afirmasquevivoobcecadacomofantasmadopaternalismo.Equenãoháninguémmenosdiminuídodoqueeu,aosteus olhos. Respondo que o teu... carinho por mim é uma forma de te agigantares a ti mesmo. Umexercíciodemagnanimidade.Alegasqueeuéquetediminuo,edeumaformaquenãomereces.Jurasquenãoéporeusercegaquetugostasdemim.Sustentoqueaíestáumacoisaquenuncapoderemossabernaverdade.Umacoisaque,aliás,ésemprementira.

Pergunto-te se alguma vez leste Belle du Seigneur? Respondes-me que não, digo-te que devias,porqueéumtratadocientíficoemformaderomancesobreacruaimpiedadedoamor.Umdenteamenos—equemdizumdentedizumbraço,umamama,ouumolho—eládesapareceofascínio.Ouvice-versa. Indago se pelomenos leste oCouples, do JohnUpdike, respondes-me que sim, que esse leste.Sublinhas:«Pelomenosesse,comotudizes.»Estásirritadocomigo.

Recordar-te-ásentãodequenesselivroexisteumhomemqueseapaixonapelamulherdeumvizinho,queconhecejágrávida,eapáginastantascomeçaatemerqueaqueleamorseesfumequandoeladeixarde estar grávida. Sublinhas que recordas também que o bebé nasce emesmo assim ela acaba por seseparar domarido e ficar com esse homem, que, por conseguinte, continua a gostar dela. Pela forçaafrodisíacadointerdito,contraponho,muitodepressa,sabendoqueestouadizerumabalela.Depoisdamulherseseparardomaridocaiuofamosointerdito,masofundamentalagoraénãoperderestabatalhaintelectualcontigo,nuncaperder,nãopossoperdermaisnada.Repitoqueaatracçãoentreaspessoas—sejaelaamorouamizade—estápresapordetalhesfísicosmuitoespecíficos.Faço-tenotarqueaquiloqueteaproximoudemimfoiaminhacegueira.Existeaatracçãopeladeficiência,enãoédiferentedaatracçãoporumcorpoescultural.

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Paratefazeresengraçado(enãoimaginascomoodeioissoemti,Sebastião,aprovaçãoqueégostardetiapesardessespormenoresodiosos),argumentasquepelomenosadeficiênciapermanece.Peço-tequenãosejasbruto.Edeclaroqueumdiadestespossoatéficarentrevadinha.Respondesmuitodepressaque também tu podes ficar deficiente de ummomento para o outro. E que não podemos saber se eugostariadetisetepudessever.Euvejo-te,Sebastião.Vejo-temuitobem.Acaricias-meorostoenquantomeperguntas se a deficiênciavem sempre acompanhadaporumadose industrial de arrogância, ou seesseésóomeucasoparticular.Pergunto-tecomopodesdizerumacoisatãorudeaomesmotempoquemeacariciasorosto.Perguntas-meseeuqueroquemedigasaspalavrasquedefactomequeriasdizerenquantome acaricias o rosto.Não, Sebastião, não quero, respondo-te, enquanto fujo dos teus dedos.Pedes-mequenãotefuja.Jurasquenãomevaisfazermal.Esclareçoquenãoestouafugir,apenasqueroiràvarandafumarumacigarrilha.Espanta-tequeeufume,dizesquepossofumarnoquarto,queissonãoteincomoda.Incomoda-meamim,Sebastião.Possovivernomeiodofumo,masparasonharprecisodear limpo. E apetece-me apanhar ar.Vens comigo. Está calor, na varanda, um calor verdadeiro e levecomoosbraçosdeumacriança, cheiode energia.Lembras-mequeprometi contar-te tudo, esta noite.Tudo,Sebastião,nãoseisealguémconseguecontar.

Começasafazer-meperguntasconcretas,dejornal:quandoéqueaquiestive,como,comquem.Digo-tequechegueiaSalvadorperdidadeamores.Ovírusdohumordesacristiaferra-te:«Ah,temosfesta...eeuapensarqueteconhecia.»Ninguémconheceninguém,Sebastião.Temosumaideiadosoutros,temosaquiloquecadaumnosdeixater.Eunãogostodefalardopassado.Gostariadepensarquehouveumavida velha e que esta, a minha vida nova, revela um sacrifício que é meramente físico. Gostaria deromancear a minha limitação, de me reconstruir como heroína predestinada. Se acreditasseverdadeiramentenumDeus,diriaquefiqueicegaparaconseguirvalorizaroescuroeosilêncio,onãosaber o caminho. Gostaria de poder dizer que sinto que, de certamaneira, agora vejomelhor. Até éverdade,masnãoéumaverdaderedentora.Olhoparadentro,vejoointeriordascoisas,quedantesmeescapava.Porissoestoutãofartadauniversidade,desseantrodeegosenfunadosqueéonossopequenomundo,tãocheiodacegueiradavaidade,damiopiavoluntáriadainveja.

Lembras-te de quando nos conhecemos, Sebastião? — pergunto-te, procurando ganhar tempo eespaçoparaterevelarissoquenãoseiseseicontar.Lembras-te:foiàsaídadacantinadauniversidade,háquatroanos.Euvinhacarregadadelivros,óculosescurosesembengala,apenascomoMondegoaolado.Nuncapensastequenãomefossepossívelvislumbraracenaàminhafrente.Tãoestranho,nãoé?Umhomemabater-te,aroubar-teeaúnicapessoaqueapareceàquelahoraéprecisamenteaquenãotepodeajudar.OMondegoladrou,sim,masnuncaseafastariademim.Éumbomcão-guia.Aindahojemeperguntocomoéqueohomemalifoiparareoqueéqueesperavaroubarnumacantinadeuniversidade.Roubou-teacarteira,o relógioeo fiodeouroquea tuamãe tederaquando terminasteo liceu.Eeucalada,estática,sempercebernada.Dizesquefoi,comonofilme,oprincípiodeumagrandeamizade,porquequandopercebeste aminha... deficiência («Ofende-te?»—«Não,Sebastião, nãomeofende.»)ficastenaafliçãodosmortais favorecidose fizeste tudoparadesvalorizaro roubo.Ésumcavalheiro,Sebastião.

Deviasterpercebidoque,ondeeuapareço,emergeacaudadocaos.Atraioassaltos.Eassassinatos.QuemseaproximademimdesencadeiaasFúrias—talvezpelodesejodedesordemquesempreocupounomeucoraçãoolugardodesejodepoder.

Voltas ao ataque: relembras-me que isso foi há quatro anos, e que desde então eu fujo às tuasperguntas com a agilidade de um atleta olímpico.Agora que estou presa neste quarto de hotel, dizes,tenhodetecontar.Presa,eu?Equeméomeucarcereiro,tu,pobreSebastião?

Estábem.Conto-te.Conto-teoquepossocontar.Foiatrêsquarteirõesdestehotelondeestamos,numbarchamadoBelezaPura,comoacançãodoCaetano.VimparaaBahiaatrásdaquelequeomeudesejomediziaserohomemdaminhavida.Conhecemo-nosnauniversidade,umsemináriointernacional.Ele

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tinha um desses rostos picantes, descoordenados, nariz enorme, boca pequena, olhos cavados comopoçosdeáguaescura.Tinhatambémaquelairresistívelvozgravedequemfumamuito.Eraespecialistaem literatura portuguesa — no meu querido António Vieira, mais especificamente — e eu, jovemassistente, ouvia-o falar dos textos de Vieira como «engenhos futurantes» ou «máquinas de fabricarfuturo», explicar a racionalidade interior das suas profecias, inflamar-se, no seu púlpito académico:«Rasguemasvestesdotempo,ovéudodivino,efaçamrodaronúcleodurodessestextos,odiamantedoseu sentido, dentro de vocês.OQuinto Império queVieira sonhou é uma prefiguração domundo semfronteiras que hoje pretendemos construir, um presságio desse modelo de Estado social que hojeprocuramos.»

Quando dei pormim estava perdida no nebuloso e exaltanteHorto da paixão.Um toque dele, umbreve esboço de um beijo... era uma tortura. Ele explicava-me queAntónioVieira fizera implodir asconvençõesdaescritaedopensamentodasuaépoca,honrandoarazãohumanaatravésdeumaousadadissecaçãooudistorçãodostextossagrados,eeusentia-meimplodirpordentro.Aspalavrasdeletinhamumefeitodirectodeebuliçãosobreomeucorpo.Naantevésperado fimdoseminário fomos jantar,eacabeiporoabraçar,emdesespero,dizendo-lhequenãoaguentavamais.Eutinhatidoalgunsnamoros,nada de especial.Nessa noite, comele, percebi que o sexo podia sermuitomais do que prazer, umaverdadeira antecâmara da eternidade. Ou do Quinto Império, replicas tu, nervoso— e pateta, comosemprequeficasnervoso.Troçaàvontade,Sebastião.Euqueriaficarparasemprecomaquelehomem.Chamava-seAntónio,comoomeuPadre,sim.Umnomevulgar.Nofimdaprimeiranoite,aindanacama,leu-mepoemasdeAnaCristinaCésar,umlivroquetragosemprecomigo:ATeusPés.Éestúpidotrazerolivro comigo, como algumas pessoas transportam as fotografias dos maridos, dos filhos. Eu não meseparodestelivroquejánãopossoler,porqueelemodeu,porqueéaúnicacoisaquemeresta.

Fui levá-loaoaeroporto, laveias ruasdeLisboacomlágrimase ranho,desfiz-medesaudades.Atorturaeratalque,umasemanadepois,apanheiumaviãoparaaBahia.Nãooaviseidaminhachegada,nãotinhacomo.Otelemóvelestavadesligado,daUniversidadediziam-mequeoprofessornãoestava.Fizumamalapequena,nemmeatreviadespacharbagagem, tal eraapressa.Malaterrei corriparaaUniversidade, no departamento onde ele trabalhava consegui comover uma secretária que me deu amorada e segui que nem uma louca pelas ruas da cidade atulhada de trânsito com um taxista quemecontavaanedotasdeportugueses.Quando,porfim,conseguipararemfrenteaoendereçoquemetinhamdado,viumporteiro.Eledissemequeosenhorprofessoracabaradesair,tinhaidoaumalanchonetealiaolado,atalBelezaPura.Corriatrásdele.Derepenteaminhavidaeraisso,apenasisso,correratrásdele.Malentreinotalbarzinhovi-o.Viascostaseacabeçadele,curvadassobreorostodeumamulherquelhesorria,embevecida.Fiqueiparadaàporta,enquantoamãodelesubiaatéaorostodajovem,paralheacariciarocabelo.Tinhaocabelo todoentrançado,ela,umcachode trançashninhas,comfitasdecoresvivasquecontrastavammaravilhosamentecomasuapelecordecobre.Amulherpegou-lhenosdedosebeijou-os,umporum.Depois ficaramdemãodadasobreamesa.Avanceiemredordamesaparaveracaradele.Precisavadeveracaradele.Violampejodoespantonosseusolhosquandomeviu.Umespantoescuro,desgostado.Foisóumsegundo,depoissorriu.Essesegundoferiu-mecomoumanavalhada,masesquecianavalhadaquandoelemesorriue,soltandoosdedosdarapariga,ergueuamãoparameconvidarasentar-mecomeles.Aindahojesintoanavalhadadaqueleolhar inicial.Puxou-mepelobraço,beijou-menocantodabocamuitodepressa,puxouumacadeiraparaoseulado,naesquinadamesa, e apresentou-mea sua companheira, explicandoque estava aorientar-lhe atesedemestrado.Dissequenãoesperavaver-mealitãocedo,quesetratavadeumaagradávelsurpresa.Tudoaquilomesoouafalso,masnãotivemuitotempoparapensar.Porquederepenteentrounobarumhomemqueseaproximoudamesagritando:«Hojevocêvaiproinferno,seufilhadaputa!»Foitudomuitorápido.Derepenteviumapistolaabrilharnamãodohomem,atirei-mesobreoAntóniogritando«Não!»,ouviostiros,vários,umabalaacertounocoraçãodoAntónio,outranomeunervoóptico.Claroque istosóo

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soubedepois,quandoacordei,nohospital.Foi só isto, Sebastião. E agora não me digas mais nada, por favor, poupa-me uma dessas tuas

graçolasdearomatizadordeambiente.Precisodedormir.Pergunto-tesepossoiràcasadebanhotomarumbanho ou se queres tu irprimeiro.Respondes-me, num fio trémulo de voz, que posso ir eu.Depoisindagassenãoprecisodeajuda.Contenho-meparanãoteresponderàbrutaeàletra,Sebastião,tunãofazespormal,ninguémfazpormal,maseujánãoaguentoapalavra«ajuda».Jáninguémmepodeajudar,nãovêsisso,Sebastião?Ninguém.

Maspodereidizer-vosqueelasousam?Ouvão,porinjunçõesmuitomaissérias,lustrarpecadosquejamaisrepousam?

Dorme, Clara-, deixa-me entrar nos teus sonhos, enxotar esses fantasmas que te desassossegam,varreresseshomensquenãosãodignosdebeijarafímbriadolençolondeosteuspésespreitam.Oteucabelo desmanchado sobre a almofada, subindo, de sonho em sonho, um feixe de raios de solespreguiçando-senas

árvores damadrugada. Acurva do pescoço, a curva do seio desço -berto, a curva do joelho quedestapas, quero que o lume dosmeus olhos derreta a porta do teu coração, quero que osmeus olhosacendamosteus,dou-teosmeusolhos,edentrodelesoriodaminhasede,umriocurvo,cheio,comooteucorpo,cegariaparatodoosempreporti,Clara,paraficaràsescurasdentrodeti.

Oamorfinonãobuscacausanemfruto.Seamo,porquemeamam,temoamorcausa;seamo,paraquemeamem, temfruto:eamorfinonãoháde terporquênemparaquê.Seamo,porquemeamam,éobrigação,façooquedevo:seamo,paraquemeamem,énegociação,buscooquedesejo.Poiscomohádeamaroamorparaserfino?Amo,quiaamo-,amo,utamem:amo,porqueamo,eamoparaamar.Quemamaporqueoamaméagradecido,quemama,paraqueoamem,éinteresseiro:quemama,nãoporqueoamam,nemparaqueoamem,sóesseéfino.

Descrevo-teodia:estamanhãvamosvisitaroúnicocastelomedievaldaAmérica,ocasteloGarciad'Ávila.EdepoisseguimosparaaPraiadoForte,pertodoCastelo,ondeficaasededoProjetoTamar.Naestradaháumcartazenormecomumaraparigademegafonenamãoondeselê,emletrasgarrafais:

«Silêncio!Salvadorprecisadormir!»Depois,emletrasmaispequenas,acrescenta-se:«Aleitemdeser cumprida.»O autocarro salta nos buracos do tamanho de crateras. Assustas-te, agarro-te namão,agradecendoàscraterasodeliciosochoqueeléctricodosteusdedos,ocoraçãoarde-menopeito,digo-tequenão tenhasmedo,ésóumaestradade terrabatida.Gostoda ideiade tesalvar,Clara,gostariadesalvar-tedeleões,assaltantes,cheiaseterramotos.Agarro-teosdedosepensoemticomosetesalvasse.

NaCasadoForteespera-nosumlatagãochamadoGutenberg,queagradecequenohnalobservemosasuabancadeartesanato:

—Tembarquinhodemadeiraede folhadeárvore,mara-cas,umaporçãodecoisaqueeumesmofaço,nasminhashoraslivres.Éaminhaarte.EaminhaartepodelhesservirderecordaçãodestaviagempelaHistóriadoBrasiledePortugal.

Ecomeçaanarrar,notommonocórdicodequemdecorou,àmaneiradatabuada,umalongalistadenomesedatas,queGarciadÁvilaerahomemdeconfiançadeTomédeSouza,oprimeirogovernador-geraldoBrasil,vindoaimplantaremSalvador,emmeadosde1551,aprimeirafazendadaentãocolónia,construindo,emlocalestratégicoparaaobservaçãodolitoral,umafortificaçãoúnicaemseuestilonasAméricas.Perco-menomeiodaexplicaçãoedogrupo,derepentejánãoseiondeestástu,Clara.

(Palavras que lavram a terra e revolvem de luz os meus olhos sepultados. Palavras, titubeantes.Precisodastuaspalavras,AntónioVieira,porquedentrodelasoSoleaLuaeasEstrelaseaNaturezaressuscitam, emmaiúsculas e comuma firmeza de recorte que nunca aminha retina conseguiu captar.Precisodastuaspalavras,mesmoquandosãopaladras,pedrasladrasqueatirascontraaformabrutadascoisasparaadistorceraoteujeito.Precisodatuareceitaalquímica,Vieira,desseteudomdeilusionistaconvicto, dessa tua capacidade para transfigurar a Fé em Razão Pura ou a Pura Razão em Profecia.

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Preciso desse talento que te fazia dobrar o tempo e o rosto daHistória àmedida dos teus desejos, econsiderar as derrotas de hoje como experiências da dor destinadas a ampliar o triunfo das vitóriasfuturas.Precisodastuaspalavrasdepedra,Vieira,paraampararaprecariedadedomeucaminho.)

Nãoseideondeveioestavozcoleantequemepedeautorizaçãoparamefumar.Aprincípiopensoque é uma alucinação do calor, mas a voz, mansa e firme, insiste. Não sei que lhe diga; informo-o,gaguejando, de que a bemdizer nemprecisava de pedir, sou cega.Responde que não enxergar não émotivopara ficar abusandoda imagemdeumapessoa, explicaque sechamaEmanuelVianaequenarealidade queria convidar-me a participar num filme, no seu primeiro filme, negócio de artemesmo,negócio simples, de boa gente. Um filme em que a protagonista seria umamulher linda e cega, semconsciênciadasuabeleza—quenemeu,dizele.Rio-me,argumentoqueassuaspalavrasprovamqueeletambémnãovêlámuitobem.Diz-me:

—Enxergo o que pode ser enxergado,moça.Quanto ao resto sou somente um cego com os olhosabertos.Comotodoomundo.

Sebastião?Queméesterapazdefalafelina?Queméestehomemquefalacomosemeacariciasse,quem é este desconhecido que traz na garganta as notas da minha música, Sebastião? Não chego apronunciaro teunome,amigo,ocineastadeve ter sentidoomeumedopelomodocomofarejooar,erespondequenãomepreocupe,nãoestouperdida,ogrupoestáaquiaolado,comGutenbergeMarcos,queéseuamigo,equeomeumaridojávem,foipegarumaáguadecoco.Repete:

—Está tudobem, tudobem,nãoseassustenão,moça—esegura-menamão,eamãodeleé tãoquenteemansa,Sebastião,queeudoupormimasussurrar:

—Elenãoéomeumarido.—Piorpraele,então.Nosvemos.QuestãoécuriosanestaFilosofia,qualsejamaispreciosoedemaioresquilates:seoprimeiroamor,

ouosegundo?Aoprimeironinguémpodenegarqueéoprimogénitodocoração,omorgadodosafectos,aflordodesejo,easprimíciasdavontade.Contudo,eureconheçograndesvantagensnoamorsegundo.Oprimeiroébisonho,osegundoéexperimentado;oprimeiroéaprendiz,

o segundo é mestre: o primeiro pode ser ímpeto, o segundo não pode ser senão amor. Enfim, osegundoamor,porqueésegundo,éconfirmaçãoeratificaçãodoprimeiro,eporissonãosimplesamor,senãoduplicado,eamorsobreamor.Éverdadequeoprimeiroamoréoprimogénitodocoração;porémavontadesemprelivrenãotemosseusbensvinculados.Sejaoprimeiro,masnãoporissoomaior.

Gutenbergcontinua,àtorreiradosol,arecitarasualadainhasobreoCasteloGarciaD'ÁvilaouCasadaTorre;apropriedadedosÁvilasestendia-sedaBahiaaoMaranhão,comumaáreadecercade800milquilómetrosquadrados,equivalenteaumdécimodoterritóriobrasileirodehoje,oquecorrespondeàsáreassomadasdePortugal,Espanha,Itália,HolandaeSuiça.Etu,denovopertodemim,recitastambém,comumavozinhaescolar:

—«Oprimeirogovernador-geraldoBrasil foiTomédeSouza.Masse tivesse sidoomajorNicoPombo,poracasoosoldeixariadebrilharcomoagora?ExisteumcaboquesechamaFinisterra.Massenãoexistisse,osjacarandásnãoestariamfloridosdomesmojeito?»

Digo-te que tens razão, Claríssima, os factos históricos arredam-nos do encanto da nossa vida.Acabamporserumadrogacomooutraqualquer.Respondesquenãoéstuquemtemrazão,masoÉricoVeríssimo, porque o pedaço que acabaste de citar é do seu romanceClarissa.Mais um que nunca li,querida,menos uma estrela nosmeus galões. Espanta-me que saibas o livro de cor.Dizes que sabesapenas pedaços, as frases que sublinhavas.Destememorizaste páginas inteiras porque o leste emvozalta,doprincípioaofim,quandoaindatinhasolhos.AntesdecegaresfaziasvoluntariadonaBibliotecaNacional,gravandolivrosemvozalta,paraoscegos.

—Vêlátuaminhacapacidadedepremonição...—dizes.EscolhestecomeçarporClarissapensandonasvelhinhas,namultidãodasvelhinhascegas,enaescassezdelivrosbonsquenãoescandalizemouentristeçam

ainda mais as velhinhas. Clarissa pareceu-te o ideal, por ser uma luminosa aguarela sobre a

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adolescência.Comumaescritasimultaneamentesensualepúdica.Étãobomouvir-tefalarsobrelivros.Entusiasmas-teecintilas.

—Clara,límpida,transparente—dizes,creioqueaindasobreClarissa,jánãosei,perdidoqueestouaqui,entreruínas,vendocomoofuscasoprópriosol.Murmuroqueatransparênciaéograusupremodetodasascoisas,paradizeralgumacoisaque,nãoosendo,sejaaindaoquantoteamo.Creioquenemmeouves.Declarasqueo teupaicostumavadizerquesó justificaquemperde,equedemasiadaspessoasusamaartecomojustificação.ConfessasquetenspenadenãoteracabadooDomQuixote,queestavasagravar quando ficaste assim.Acrescentas que devias tê-lo feitomais cedo,mas não tiveste coragem.Digo-te que não te mortifiques. Fizeste tudo o que podias. Continuas a fazê-lo. Peço-te que meacompanhes até à centenária gameleira, ou figueira -brava, que existe em frente à Casa da Torre.Explicas-me que há muitas árvores destas no Brasil, que dizem que o leite debaixo da casca curainúmerasdoençaseque,porserconsideradaaárvoreprimordial,têm-nasnormalmentenosterreirosdecandomblé. Descrevo-te o tronco desta árvore, que parece uma escultura barroca. E peço-te que medeixesfotografar-tedebaixodela.Ris-te,anunciasquehojeacordastecomauradeestreladecinema.Eque pode acontecer que só a árvore fique na fotografia, porque te sentes evaporar, minuto a minuto.Comentoqueédocalor,masseiqueháqualquercoisadediferenteemti,hoje.Ris-te,sussurrasqueháanosperseguesocalor.Ris-te..

(Ocalor:caríciadosmortosquemuito—equasesempremal—amámos.Mortosquenãosoubemosaindaarrefecer,eardemlentamenteàsuperfíciedanossapele.Ardemoscomeles,aspalavrassomem-senofogodapele,papelquetornaespessaatintadocoração.Nãoháamorimediato;odesejotranstornaaverdade,caicomochuvasobreosangue,dissolvendo-lheotempodeondevemeoespaçoparaondevai.Nãoseconsegueamarcompletamentesenãonamemória,Sebastião.Ashistóriasquesonhámosparaaspessoasamadas flutuamnaneblinadosdiasmuitoquentes, comomentiras leves tocadaspelopesodaverdade. Espuma domar desfeita ao toque dos dedos.Não te canses a inventar-me no desejo do teucorpo, Sebastião, que o que emmim crês amar não émais do que amemória das lágrimas, das tuaslágrimas,feitasdeumaluzdistintadasminhas.)

Queéoquemaisdeseja, emais estimaoamor:ver-seconhecido,ouver-sepago?Écertoqueoamor não pode ser pago, sem ser primeiro conhecido: mas pode ser conhecido, sem ser pago: econsiderandodivididosestesdoistermos,nãohádúvidaquemaisestimaoamoremelhorlheestáver-seconhecido, que pago. Porque o que o amormais pretende, é obrigar: o conhecimento obriga, a pagadesempenha: logomuitomelhor lheestáaoamor,ver-seconhecido,quepago;porqueoconhecimentoapertaasobrigações,apagaeodesempenhodesata-as.Oconhecimentoésatisfaçãodoamorpróprio:apagaésatisfaçãodoamoralheio:nasatisfaçãodoqueoamorrecebe,podeseroafectointeressado:nasatisfaçãodoquecomunica,nãopode ser senão liberal: logomaisdeveestimaro amor ter seguranoconhecimentoasatisfaçãodasualiberalidade,queverduvidosanapagaafidalguiadoseudesinteresse.Omais seguro crédito de quemama, é a confissão da dívida no amado:mas comohá-de confessar adívida,quemanãoconhece?Maislheimportalogoaoamoroconhecimento,queapaga;porqueasuamaiorriquezaétersempreendividadoaquemama.Quandooamordeixadesercredor,sóentãoépobre.Finalmente, ser tão grande o amor que se não possa pagar, é a maior glória de quem ama: se estagrandezaseconhece,églóriamanifesta:senãoseconhece,ficaescurecida,enãoéglória:logomuitomaisestimaoamor,emuitomaisdeseja,emuitomaislheconvémaglóriadeconhecido,queasatisfaçãodepago.

Agora,Clara,estamosnaPraiadoForte,visitandoostanquesdeabrigoereproduçãocontroladadastartarugas marinhas. Há também um pequeno museu onde se observa o maior esqueleto da espécieencontradonolitoralbaiano.Falo-tedobrilhoconjuntodocéuedomar,daspalmeirasqueentrampeloareal.Segredas-mequenãotensassimtantassaudadesdaspaisagens;ospanoramasdeslumbrantes—oRio de Janeiro observado do Corcovado, por exemplo— provocavam-te um sentimento conjunto de

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arrebatamentoeangústia.Comoseoabsolutodabeleza tedestroçasseocoração.Tambémpor isso teconcentrastepreferencialmentenaspessoas.Confias-mequeumdosmotivosdoteuencantocomostextosdeAntónioVieiraéofactodenelesnãoexistiressasufocaçãodapaisagem—sósereshumanos.Sim,querida Clara, os seres humanos mudammenos do que as paisagens— e demorammais a decifrar.Sublinhas que os seres humanos sãomais iguais entre si do que as paisagens, e que o estudo dessassemelhançasuniversaiséumaliçãosobreaestupidezprofundadosracismos.Fascina-teaperspicáciadeAntónio Vieira, a forma como ele conseguiu encontrar nos índios este denominador comum da razãohumana— embora não tenha assumido idêntica fraternidade para com os negros, condoía-se com assevíciasaqueeramsubmetidos,comparava-asaoCalváriodeCristo,prometia-lhesocéu,masnãofoicapazdepregarpelasualibertação,apenasprocuravapersuadirosamosaqueostratassem

combrandura.Desculpas o teuPadre coma ferocidade da época, o primarismodas técnicas e asnecessidades dodesenvolvimento económico—e frisas que, ainda assim, ele conseguiuperceber emcadaserhumanoumfeixeessencialdepensamentoeafectos,atingindo,atravésdaconcepçãodeDeus,asabedoria a que hoje nós chegamos através do estudo do ADN. Acrescentas que o êxtase perante anovidadedapaisagemfoiograndeequívocodaépocadasDescobertas.Amim,fascina-meescutar-te—mascomeçoaexperimentargravessintomasdeciúmesdesseteupadredoutrinador.

Aproxima-se a horado almoço, napraia daGaruja.Pergunto-te senãoqueres aproveitar paraummergulho, respondes que não trouxeste fato de banho, digo-te que isso pode providenciar-se, porqueexisteummercadoderoupajuntoàpraia.Marcosreúneogrupoparaanunciarquenoslevaráestanoiteaumasessãodecandomblé,naCasaBranca,oterreirodecandomblémaisprestigiadodaBahia,quefoicriadoporumatetravôdele.EsclarecequeaCasaBrancadoEngenhoVelho,ouTerreiroIlêlyáNassô,foioprimeiromonumentoNegroconsideradoPatrimónioHistóricodoBrasil,emMaiode1984.Conta-nosqueelepróprio foi iniciadono ritual aos sete anos, e calhou-lhe logocomopatronoumdosmaispoderososorixásdocandomblé:Oxalufam,odeusdafriezaedaancestralidade,aversãoidosadograndeOxalá,oorixádacriação—que,quandomoço,dápelonomedeOxaguiam.

—Oxalámoldouembarroocorpodoshomens.DepoisOlodumaré,oSerSupremo,soprousobreasfigurasdebarroelhesdeuvida.OlodumarédepôsnasmãosdeOxaláacriaçãodomundo,doando-lheparaissoo«sacodacriação»eoaxé,ouenergiavital.Essanobremissão,porém,nãoodispensavadecumprir algumas obrigações para com outros orixás, aos quais ele deveria fazer alguns sacrifícios eoferendas.Oxalásepôsacaminhoapoiadoemumgrandecajado,oPaxorô.Nomomentoemquepassavapelaportadoalém,secruzoucomExu,orixádacomunicação,que,zangadoporqueOxalásenegaraafazer suas oferendas, resolveu se vingar lhe provocando uma sede insuportável. EntãoOxalá furou acasca de um tronco de um dendezeiro para saciar sua sede. Bebeu esse vinho de palma com talsofreguidão que ficou bêbado e adormeceu.Apareceu entãoOlófmOdúduà— criado porOlodumarédepoisdeOxaláeomaiorrivaldeste—que,vendooorixáadormecido,lheroubouosacodacriação,indoseguidamenteprocurarOlodumaré,para lhemostraroque tinhaachadoepara lhecontaremqueestadoOxalá se encontrava.Olodumaré entregou então aOdúduà esse trabalho da criação domundo.Odúduàencontrouumuniversodeágua,eaídeixoucairoqueestavadentrodosaco,eeraterra.Formou-seassimummontede terrasobreasuperfíciedaságuas.Entãoelecolocousobrea terraumagalinha,cujospéstinhamcincogarras.Agalinhacomeçouaarranhareaespalharaterrasobreasuperfíciedaágua,eaterrafoisealargandocadavezmais.QuandoOxaláacordoueseviusemosacodacriação,procurouOlodumaré,que,comocastigo,proibiuOxaláetodasuafamíliadebebervinhodepalmaedeusarazeitededendê.Masemcompensação,oincumbiudemodelarnobarroocorpodossereshumanosnosquaisele,Olodumaré,insuflariaavida.OxalásetornouumaespéciedeheterônimodeJesus,tambémfilhodocriadorsupremoesalvadordoshomens.OsincretismoentreJesuseOxaláémuitovisívelnumadasfestasmaispopularesdaBahia,alavagemdaIgrejadoSenhordoBonfim.Aindalhesrestapaciênciaparaescutarahistóriaquedeuorigemaesseritual?Ogrupoacenacomacabeçaemuníssono—oqueé

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umaviagemsenãoumapescariadehistórias?Um belo dia o velhoOxalufam, que vivia com seu filhoOxaguiam, resolveu viajar atéOyó para

visitar o rei Xangô, seu outro filho. Foi consultar um babalaô ou feiticeiro, que lhe recomendou quedesistissedaviagem,porqueelaacabariamal.Xangôéosenhordosraiosedo trovão,eexpele fogopela boca, tendo por símbolo um machado de duas faces. Ao entrar na cidade de Xangô, Oxalufamavistouocavaloqueelemesmoofereceraaoreiseufilho,equeandavaporaliperdido.Tentavaamansareamarrarocavalo,paradevolvê-loaofilho,quandoapareceramunssoldadosreais,queotomaramporladrão.Assim,Oxalufam,quesemantevesempresilencioso,foiatiradoparaaprisão.Setelongosanosdurouessaprisão.Oencarceramentodeum inocente, em terrasdoSenhorda Justiça, conduziuOyóasucessivas desgraças: epidemias, secas e esterilidade geral entre as mulheres. Desesperado, Xangôprocurouumbabalaôeassimtomouconhecimentodaprisãoinjustadeumvelho.

QuandoverificouqueessevelhoprisioneiroeraseupaiOxalufam,Xangôordenouquetodososseussúbditosvestissemdebranco,acordeOxalá,equefossemtrêsvezesdeseguidabuscaráguadorioparabanharoorixáinjustiçado.

Ordenouaindaque todospermanecessememsilêncio,demodoa, respeitosamente,pedirperdãoaOxalufam.Xangôsevestiu tambémdebranco,carregounassuascostasovelhoorixáeorganizouumafesta em sua homenagem. Finalmente Oxalufam voltou para casa e Oxaguiam ofereceu um grandebanqueteemcelebraçãopeloretornodopai.Ora,oritualcatólicodelavarochãodaigrejacomoatodedevoção a Deus dava aos negros oprimidos uma oportunidade de celebrarem o banho reparador deOxalá.Assim,atéaosdiasdehoje,osfiéisfazemumaenormeprocissãoatéàigreja,vestidosdebrancoe levandoàcabeça jarrosdeáguapara lavarochãosagrado,homenageandoemsimultâneoOxaláeoSenhordoBonfim.

Acegueiraquecegacerrandoosolhos,nãoéamaiorcegueira;aquecegadeixandoosolhosabertos,essaéamaiscegadetodas:etaleraadosEscribaseFariseus.Homenscomosolhosabertosecegos.Comolhosabertos,porque,comoletrados,liamasEscrituraseentendiamosProfetas;ecegos,porquevendocumpridasasprofecias,nãoviamnemconheciamoprofetizado.

Alguémpergunta aMarcos separticiparána cerimóniadesta noite, o nossoguia respondeque emprincípionão,masnunca se sabeoquepode acontecer.Por isso, subcontratouumoutroguiaquenosacompanhará.TemequeOxalufamvenhaprocurá-lo,jáqueéesseoorixácelebradoestanoite.Esperaque não, mas o que se passa na celebração é imprevisível. Revela que a incarnação pode ser umprocessomuitodoloroso,porqueOxalufaméumorixápesado.Exorta-nosaquenãonosesqueçamosdenosvestirdebranco:

—Mesmoque,porsuadesgraça,nãoacreditememnada,respeitemoscrentes,pessoal,respeitemasmães-de-santodaCasaBranca,respeitemnossatradição.

Sugere-nosque,entretanto,aproveitemosapraia—nãomergulharáconnoscoporquesepuserumpénaáguadomarelencarátodo inchado,eadoecerá.GarantequeOxalufamlheproíbequalquercontactocomomar.Rio-me,eexclamoquelhecalhouumorixásádico,porqueproibiromaraumbaianosópodesermaldade.MasavozcomqueMarcosrespondeéinesperadamenteáspera:

—Cadaumtemseudestinoeseucaminho,senhora.Melhornãorirdestesnegócios,não.Puxas-mepelobraço,Sebastião,jáimpacienteporummergulho,esuponhoquetambémaflitocoma

minha falta de diplomacia em relação aMarcos. Precisas de umas calças brancas para logo à noite,proponho-te que compres qualquer coisa com rendas da Bahia, para dar sorte. Dirigimo-nos aomercadinho,decidesquemeajudarásaescolherofatodebanhoequeeuteajudareiaescolherotrajebrancoparaanoitedecandomblé.Comotepossoeuajudar,Sebastião?Pelotoque,dizestu.Ostecidosdevemescolher-sepelotoque.Epelocheiro,digoeu.Comoapele.Nadademoratantoaesquecercomoapele.Dequalquermaneira,Sebastião,euvisto-mequasesempredebranco.Émenosfácilenganarmo-

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nos,debranco.Queresoferecer-meumablusade rendadaBahia.Recusoaoferta, insistes:deixa-me,deixa-me. Dá-me esse prazer. Sim, porque não te hei-de dar esse prazer? O prazer que se pode daracalmaastempestadeshumanas;masoprazerqueserecebeeguardanuncamaisnosdeixaserenar.

Esta mesma cegueira de olhos abertos divide-se em três espécies de cegueira ou, falandomedicamente, em cegueira da primeira, da segunda, e da terceira espécie.Aprimeira é de cegos, quevêemenãovêemjuntamente;asegundadecegosquevêemumacoisaporoutra;aterceiradecegosquevendoodemais,sóasuacegueiranãovêem.

Descreves-meumapinturamuralondeestáescrito:«Resgateanossacultura.Tenhaumaidentidade.»Uma identidade—temo-la na ponta dos dedos, nas curvas do corpo, nas circunvoluções do cérebro. eninguém quer ver. É de dentro para fora que se vê. Confunde-se identidade com nacionalidade— aHistóriaéapilhadecadáveresnascidadestapatéticaconfusão.Aproveitasparamerecordar,comumrascunho de triunfo na voz, que o “teu Padre se fartou de lutar pela libertação de Portugal face aodomínioespanholepelalibertaçãodaspartesdoBrasiltomadasPelosholandeses.Tambémfezpartedaconfusão. Reponto que não podes confundir a defesa dum território invadido com o ataque àindependênciaalheia-, em1644,Vieira escreveuumacarta ao secretáriodeEstado, aconselhando-oanão atacar Espanha, e a gastar antes os fracos recursos do reino no reforço das praças portuguesas,prevenindoumaguerradefensiva.Afirmavaqueapopulaçãoerafirmenaresistênciaaoscercos,masossoldadosfracosdeorganizaçãoedisciplina.Hánessacartaumaafirmaçãoparticularmentearguta,queéesta:«quantomaisnosdilatamosmaisnosenfraquecemos».

Argumentasque,poressaordemdeideias,nemteríamoscriadooBrasil.MasseráquecriámosdefactooBrasil,Sebastião,oudeixámo-nos recriarporele?Dilatámo-nosnasDescobertas, sim—masporquejánãotínhamoscomquenosfortaleceremPortugal.Estávamoscomotu,Sebastião,nainfância,perdidosentrebrinquedosesemsaberquefazerdeles,comumhorizontepequeninoeumpapãopelascostas.Vieiranãoescapoucompletamenteaoespíritodoseutempo—deoutramaneiranãopoderiatersidoopragmáticoquetambémfoi,lançandoaideiaeasbasesdaCompanhiadeComérciocomoBrasil,atraindoaessecomércioodinheirodosjudeus,edando-lheisençõesfiscais.AnotasqueoPadretinhavisãoparaonegócio,equeosbonsIrmãosdasagradaInquisiçãodevemteradoradoessaCompanhia.Explico-te que a Inquisição era um empreendimento dos Dominicanos, que não poderiam serconsideradosfãsdosjesuítas...Aliás,quaseninguémgostavadosjesuítas,porqueestudavammaisdoqueosoutrose,consequentemente,brilhavammais.Oproblemadosjudeustambémeraecontinuaaseresse:fazemsempremuita sombra, sobretudoaosquenuncacuidaramdeprocuraro sol.Demodoque, logoapósamortedeD.JoãoIV,osinquisidoresconseguiramlimitarmuitoaacçãodacompanhiaeaferrolharumVieirajáfisicamentemuitodebilitadonosseuscalabouços.NuncaAntónioVieirafraquejou—ousouahumildevaidadedepensarpela cabeçadeDeus,quenão registadatasnem raças, eusoua religiãocomoinstrumentodereligaçãodecadaserhumanoconsigomesmoecomosoutros.

—Ah,entãoafinalsemprecrêsemDeus—comentas,triunfante.Por princípio, creio em tudo, Sebastião— dá-me jeito.Onde eu disseDeus podes ler Razão, ou

Amor—otalqueiluminaeensombraaalma,aomesmotempo.SemDeus,Vieiranãoteriachegadoaosdevaneiosnacionalistasaquechegou;mastambémnãoteriaatingidooâmagodacompaixãohumana,quefazcomqueaindahojeassuaspalavrascaminhemadiantedotempo.

Os Filósofos dizem que uma contraditória não cabe na esfera dos possíveis, eu digo que cabe naesferadosolhos.

Naverdade,Sebastião,nãosaímosaindadaEradoEspartilhamentoHumanoquefoiadeVieira—umaeraemqueaspessoasinteirasassustamcomoextraterrestresesóosperitos,devidamentearrumadosnassuascátedrasespecíficas,sãorespeitados.Dizesquesemprefoidifícilsaberquemsãoaspessoasinteiras. Digo-te que amim, quemoro na escuridade,me parecemuito simples. Pessoas inteiras sãoaquelasquesabemqueapalavraéumaformadeacçãoeaacçãoumaquestãodepalavra.Bemseique

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ontemcomohoje,Sebastião,omundoresisteàmudança.PorissoéqueossermõesdeVieiracontinuamaser inquietantes. Escreveu ele, por exemplo: Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam,mas nãoferem.Eéaindanissoqueestamos,explosõessemdeflagração.Pergunto-tesegostasdosmeussermões,respondes-mequegostasdemim.Gostavaqueesseteugostofosseumajanelaparaomundo,Sebastião,quenãotefechassesnasminhastrevas.Definhes-mecomoumconcentradodeluz.Eeupeço-teque,porfavor,tedesconcentres.

Andamoshomenscruzandoascortes, revolvendoosReinos,dandovoltasaomundo;cadaumemdemandadassuaspretensões,cadaumparaseintroduziraofimdosseusdesejos;todosaosencontrõesunssobreosoutros;osolhosabertos,aportaavista,eninguématinacomaporta.Andaisbuscandoahonracomolhosdelince;esendoqueparaaverdadeirahonranãohámaisdoqueumaporta(queéavirtude),ninguématinacomaporta.Andais-vosdesvelandopelariquezacommaisolhosqueumAlgoz;esendoqueaportacertadariquezanãoéacrescentarfazenda,senãodiminuircobiça,ninguématinacomaporta.Andais-vosmatandoporacharaboa

vida;esendoqueaportadireitaporondeseentraàboavida,éfazerboavida,ninguématinacomaporta.Andais-voscansandoporacharodescanso;esendoquenãohánempodehaveroutraportaparaoverdadeiroesegurodescanso,senãoacomodarcomoestadopresente,econformarcomoqueDeuséservido,nãoháquematinecomaporta.

(Vejo-te, António menino, semsaberes de que terraés. Trouxeram-te de Portugal para os trópicosatravésdeummarimenso,eoviolentíssimobaloiçodomardesenhou-teaformadaalma.Pertenceráspara sempre a esse baloiço que uns confundem com o sonho do poder e outros com o desvario dosucesso. Foi Deus quem encontraste no atordoamento das ondas, o milagre de atravessar um mundoabarrotadodefogueirasepelourinhoseconseguiraindaagarraraalegrianasmãos,nas tuaspequenasmãos de criança.Conseguir ajoelhar perante a beleza criada pelamão humana, ajoelhar nomeio dosjactosderisocáusticodaspessoasdesesperadas,comoajoelhaste,naquelediadatuainfância,diantedaimagem daquela Senhora das Maravilhas. Reza a lenda que sentiste então um estalo, o estalo dasabedoria, que te levaria a fugir de casa, aos quinze anos, para te juntares aos homens que maisestudavam,°sjesuítas.Gostodepensarquefoidiantedessaimagemdemulherquetivestearevelaçãodohomemqueiriasser.Diantedaimagemdoquefoste,diantedoqueastuaspalavrasaindasão,vouagoradescobrindoquempossoeuaindaser.)

Nãovos temacontecidoalgumavez terosolhospostose fixosemumaparte,eporquenomesmotempo estais com o pensamento divertido, ou na conversação, ou em algum cuidado, não dar fé dasmesmas coisas que estais vendo? Pois esse é omodo e a razão porque naturalmente, e semmilagre,podemosverenãoverjuntamente.Vemosascoisas,porqueasvemos:enãovemosessasmesmascoisas,porqueasvemosdivertidos.

Tenhoumahistóriaparatecontar,Clara.Nãoseiporquetequerocontarestahistória,talvezalimenteaesperançadeteseduziratravésdeumenredo.Nuncativedetrabalharparaseduzirninguém,Clara,nãoseicomosefaz.Sinto-meAMulherQueEscreveuaBíbliacriadapeloMoacyrScliar,conheces?Não?Vitória. Finalmente consigo ganhar-te um ponto, um livro que tu não leste— tu, a anticompetitiva, araparigaindiferenteaestatutosquenãoperdeumaoportunidadedeexibirumaleituraamais.Oupensasqueomeuamorportimeimpededeverosteusdefeitos?Amo-tepregaaprega,amooteumauhumorcomooteuriso,astuasapatiaseentusiasmos,oteucorpodesmoronadopelocansaço,amoastuasfalhaseastuasinjustiças—falastantodeeternidadeenempercebesqueéesteoamoreterno,oamorquenãocedeàsfendas,aosdetritos,aosburacosdotempo.PoisatalmulherdoromancedoScliar

era feia como uma trovoada eapaixonou-se pelo rei Salomão, que nem olhava para ela. Possuía,porém,odomdaescrita,earranjoumaneiradeoseduziratravésdanarrativasagrada,queescreveucomtodoofogodasuaexaltaçãoerótica.Maseunãotenhoodomdessamulher,etu,comooreiSalomão,ésmaissensívelaotoquedotextodoqueàaventuradahistória.

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Nem sei se é uma história, o que tenho para te contar. É uma coisa. Um momento objecto. Umepisódioquerecordocomocompletamenteíntimoecompletamenteexterior.Euestavaláenãoeraeu.Deixaradesaberquemeraeu.Nãoseiseteconte.Insistes.Repitoquenãoseiseteconteparaquetuinsistas. Perguntas-me se é um segredo, respondo-te que mais ou menos. Ris-te. Dizes que és todaouvidosparaomaisoumenos.

Na noite do meu doutoramento organizei uma grande festa num hotel sobre a praia, a cinquentaquilómetrosdeLisboa.Separara-mehápoucotempo,masfiqueiamigodaminhaex,eela tambémfoi.Por isso evitei contactos visíveis com a namoradita que tinha na altura. Uma ex-aluna, apostas— eapostas bem, Clara. A irresistível atracção pelo embasbacamento da juventude, aqueles olhos queaterram sobre nós como se possuíssemos a verdade e a luz, sem perguntar nada, sem exigir nada. Etambémoinebrianteperfumedacarnefresca—quejulgamospodercontagiar-nos,masquesóacentuaráotravodemelancolianonossocorpojápuídopelosanos.Contra-atacasdeimediato,cáustica:

— Oh, puidíssimo, sem dúvida. Vais continuar à pesca de elogios, ou vais deixar-te dessasbanalidades—semdúvidainebriantes—econtarahistória?

Claríssima,querida,nemseiporque insistoneste jogode sedução tão infantil, tãodesesperado—quero-tedemasiado.Deviaquerer-temenosparaquemequisessesalgumacoisa.Masnãosei.Penseiquese temostrasseaminhaalma, a fragilidadedessamaquineta invisívelquenosmoveocorpo, talvez...Masnãosei.

—Conta—ordenas-me.—Deixa-tedemerdaseconta,Sebastião.Conto-te.A jovemprocurou-menomeuquarto.Depoisde fazeramorcomela sentide súbitouma

vontadefortíssimadepossuirumaoutra,umaprofessoraconvidada,maisvelhadoqueeu,queconhecerahádias.Nãogostarásdoverbopossuir,bemsei,maséaquelequemelhordefineomeuímpetodaquelanoite.Defacto,perceberaqueelatambémsesentiamuitoatraídapormim.Deixeiaminhanamoradaadormirefui tercomessaoutra.Eracomosetentassesaturar-medecorposdemulher.Desaparecernofundodelas.Fazercomqueelasdesaparecessemnofundodemim.Provarqueeraomaiorgaranhãodomundo.Seiláoqueéqueeuqueria,Clara.Aprofessoraabriu-meaporta,levou-meparaacama,efoiumanoitedesexoabsolutamentesublime.Demanhã,quandoacordeieolheiparaela,quedormiaainda,fugiparaapraia.

—Credo,eraassimtãofeia?—ironizas.Não,Clara.Eraatémuitobonita,masparecia-meumaestranha.Nãomecomovia.Aminhamulher

tinha isso, uma capacidade de me comover involuntariamente — em pequenos gestos, pequenasimpaciências,desajustamentosquemefaziamsentirpróximodela,íntimo.Masacomoção,sóporsi,nãobasta.Comonãobastaaatracçãofísica.Nemacumplicidade.Unia-meàminhamulher,maisdoquetudo,umasensaçãodevidapartilhada,nosmínimospormenores.Porexemplo,umdia,viajávamososdois,eeuverifiqueiquemeesqueceradosantidepressivosqueandavaatomar.Fiqueiaterrado—masdepoislembrei-mequenãohaviaproblema,porqueelaandavaatomarexactamenteosmesmos.

Soltasumagargalhada,Clara,dizesqueeuaeminhaex-mulherparecemospersonagensdeumfilmedoWoodyAllen.Masapaixãoéoutracoisa.Naépocaeunãosabiasequeroqueera.Ris-tedenovo.Dizesquecomtalprofusãodemulheresatrásdemim,deviatornar-sedifícil.Talvez,Clara.Era-mefácilcativarasmulheres.Estudeiparaisso;serprofessoréserumcativadorprofissional.Nestemeiovivemosdenosseduzirmosunsaosoutros;àsvezesatéachoqueoslivros,oconhecimento,sãoapenaspretextosquejustificamofuncionamentodessamáquinadesedução.Dizesquesaberdemasiadotambématrapalhaossentimentos.Nãopassamosavidaadizerquealiteraturanãosefazdebonssentimentos,Clara?oqueéumaestupidez comooutraqualquer.Há livros cheiosdemaus sentimentosque tambémnãovalemoesforçodaleitura.Dizesqueossentimentosnãosãobonsnemmaus.Queéumaquestãodecircunstância.Dizesqueasboaspalavraséqueparecemgastas—porquejánãosabemosouvi-lasatéaofim.Dizesqueaspalavrasnãoestãogastas,estãosurdas.Amputadasdamúsicaquetêm.Porissonosrimoscada

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vezmais,paranãoescutarmosessamúsica.QueridaClara,adoroamúsicadoteuriso.Conta,ordenasdenovo.Eeuconto.Volteiparaacidade

nessatarde,semmedespedirdeninguém,comumamigomeu.Conduziaeaslágrimasescorriam-mepelorosto, incontroláveis, silenciosas. O meu amigo estava aflito, sem saber o que me dizer. De vez emquando perguntava: «Não queres parar para tomar uma água?»— e eu nem respondia, só abanava acabeça.

—Nãomeperguntasporquechorava,Clara?Dizesquenãoprecisasdeperguntar.Éterrívelnãoamarninguém,Clara.Sermostãocapazesdenos

deitarmosnosbraçosunsdosoutros semsequer encostarmos a sombrada alma.Por isso te estou tãograto.Agoraseiquemsou.Dizesquesetivéssemostidorelaçõessexuais,talvezeunãopensasseassim.Clara.Anoitepassadafiqueiaolharparatienquantodormias.Horasehoras,enãomecansei.Essaéadiferença.Omeuamorportipareciacrescerdentrodoteusono,aoritmodatuarespiração.

—Sebastião,Sebastião,issosãofervurasdaBahia.Amorquepodecrescernãoéamorperfeito.Mascomopodeser (paraquedemosa razãodesta segundacegueira,comoademosdaprimeira),

comopodeserquehajahomenstãocegos,quecomosolhosabertosnãovejamascoisascomosão?Diráalguémqueesteenganodevistaprocededa ignorância.O rústico,porqueé ignorante,vêqueaLuaémaiorqueasestrelas;masoFilósofo,porqueésábio,emedeasquantidadespelasdistâncias,vêqueasestrelassãomaioresqueaLua.Orústico,porque

é ignorante, vê que o Céu é azul; mas o Filósofo, porque é sábio, e distingue o verdadeiro doaparente,vêqueaquiloquepareceCéuazul,neméazulneméCéu.Orústico,porqueé ignorante,vêmuitavariedadedecores,noqueelechamaArco-da-Velha;masoFilósofo,porqueésábioeconhecequeatéaluzengana(quandosedobra)vêquealinãohácores,senãoenganoscorados,eilusõesdavista.Eseaignorânciaerratanto,olhandoparaoCéu,queseráseolharparaaterra?Eunãopretendonegaràignorânciaosseuserros;masosquedoCéuabaixopadecemcomumenteosolhosdoshomens(ecomquefazempadeceramuitos)digoquenãosãodaignorância,senãodapaixão.Apaixãoéaqueerra,apaixãoaqueosengana,apaixãoaquelhesperturbaetrocaasespécies,paraquevejamumascoisasporoutras.Eestaéaverdadeirarazãoousem-razão,deumatãonotávelcegueira.Osolhosvêempelocoração,eassimcomoquemvêporvidrosdediversascores, todasascoisas lheparecemdaquelacor,assimasvistassetingemdosmesmoshumores,dequeestão,bemoumal,afectososcorações.

EstamosachegaraoaltodaColinaSagrada,Clara,àfamosaigrejadoSenhordoBonfim.Dizesqueouvesumcorodemulheres.Cantamalto.Cantamcomforça:

—TodaaBíbliaécomunicação/entreoDeusAmoreoDeusIrmão.

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IIIA igreja está cheia, sobretudo de mulheres. Muitas delas muito novas, mulatas belíssimas com

minissaiasvertiginosasesaltosmuitoaltos.Vaicomeçaramissadascincodatarde.Oguiasugerequeaqueles que não desejarem assistir à missa aproveitem para visitar o corredor lateral, revestido deazulejos preciosos. Na entrada da igreja, Clara, estão duas telas impressionantes de José Teófilo deJesus.Amortedojustoeamortedopecador,queestáàesperadeserlevadoparaoInferno.Dizes-mequenãoésdemissas,masgostasdesta,emquetodasasrespostasdaspessoassãocantadas.Marcosdizqueaquiasmissasnuncasãoapenasmissas.Tudizesquenestelugarcadacoisaétudoaomesmotempo;tudooquefoi,tudooquepoderiatersido,tudooquehá-deser.EqueporissoamasaBahia—com«h»de homem, ou de hoje.ABahia é o reino do hoje, dizes, ou da eternidade, que é amesma coisa.Ocontráriodaposteridade,queestragaavidaatantos.

Aspaixõesdocoraçãohumano,comoasdivideeenumeraAristóteles,sãoonze;mastodaselassereduzemaduascapitais:AmoreÓdio.Eestesdoisafectoscegossãoosdoispólosemqueserevolveomundo,porissotãomalgovernado.Elessãoosquepesamosmerecimentos,elesosquequalificamasacções,elesosqueavaliamasprendas,elesosquerepartemasfortunas.Elessãoosqueenfeitamoudescompõem,elesosquefazem,ouaniquilam,elesosquepintamoudespintamosobjectos,

dandoetirandoaseuarbítrioacor,afigura,amedidaeaindaomesmoseresubstância,semoutradistinçãooujuízo,queaborrecerouamar.Seosolhosvêemcomamor,ocorvoébranco;secomódio,ocisneénegro;secomamor,oDemónioéformoso;secomódio,oAnjoéfeio;secomamor,oPigmeuégigante;secomódio,ogiganteéPigmeu;secomamor,oquenãoé,temser;secomódio,oquetemser,eébemqueseja,nãoé,nemserá jamais.Por issosevêemcomperpétuoclamorda justiçaos indignoslevantados,easdignidadesabatidas;os talentosociosos,eas incapacidadescommando;a ignorânciagraduada,eaciênciasemhonra;afraquezacomobastão,eovalorpostoaumcanto;ovíciosobreosaltares,eavirtudesemculto;osmilagresacusados,eosmilagrososréus.Podehavermaiorviolênciadarazão?Podehavermaiorescândalodanatureza?Podehavermaiorperdiçãodarepública?Poistudoistoéoque fazedesfazapaixãodosolhoshumanos, cegosquando se fecham,e cegosquando se abrem;cegos quando amam, e cegos quando aborrecem; cegos quando aprovam, e cegos quando condenam:cegosquandonãovêem,equandovêemmuitomaiscegos:Utvidentescaecifiant.

declarasqueparecemosumanuvembranca,aentrarnesteautocarro.Gostodesaberquetodaagenterespeitouasnormasdocandomblé.OPadreAntónioVieira,quesoubeserummulticulturalistavalentenumaépocaemqueessapalavranãoexistiaeaideiaescandalizava,decidiupregarumapartidaaestegrupodedevotos seus, enviando-nos umguia especializado em religiões alternativas.Dizes que fazerpartidaséumaoutraesugestivaformadepregação.Masalternativa,aqui,éareligiãocatólica,aqual,aacreditarnoeloquenteMarcos,nãoseriamaisdoqueumvéuparacobrirocandombléomnipresente.

Alegas que é preciso dar o devido desconto aMarcos— como, de resto, a toda a encantatóriaeloquência,incluindoadopróprioAntónioVieira.Respondo-tequenãoestoudispostaadardescontoanada.Ilusãoporilusão,prefiroaforçadaeloquênciaencantatória,comotudizes.Marcosestánervosocomapossibilidadeda incarnação,quasenãofala.Perguntoaonossoalternativoguiasea incarnaçãonão é coisa demulheres,mãe-de-santo.Confirma-me que, de facto, a incar -nação dos homens não éconsideradadebomtomemterreirosmatriarcais,comoéocasodestedaCasaBranca.Oshomenstocamosatabaquesparachamarosespíritos,que,devidamenteencaminhadospelobatuque,descerãosobreasmães-de-santoquedançamemtornodoaltar.

Entramos no sagradoTerreiro daCasaBranca doEngenhoVelho, eMarcos desaparece.Edson, oguiaalternativo,explica-nosqueoTerreiroédeOxóssi,oorixádamata,caçadorquegaranteosustentodesuatribo,eoTemploprincipalédeXangô,otalantigoreideOyó.Adianta-mequeobarracãoquedápelo nome de Casa Branca é uma edificação alongada com várias divisões internas que encerram

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residênciasdasprincipaispessoasdoTerreiro,e tambémespaçosreservadosaosquartosdeorixás,oquartodeAxé,oupoderderealização,osalãoondeserealizamasfestaspúblicaseondevamosentrar,ea cozinha onde se preparam as comidas sagradas, que provaremos.Em redor da casa central existemváriascasasdeorixás.AbandeirabrancahasteadanoTerreiroindicaocarátersagradodoespaço.NotelhadodaCasa,símbolosdeXangôidentificamopatronodoTemplo.EsteTerreiro,omaisantigodoBrasil, deu origem a inúmeros templos afro-brasileiros e tem como Iyalorixá ou mãe-de-santo aVenerável Altamira Cecília dos Santos, possuindo um vasto colégio sacerdotal composto pelas Iyabomin,OganseOlossés,alémdemuitasIyaôseAbians.Sobavozdoguia,Sebastiãomurmura-mequeestamos numa sala grande com um altar no meio, onde representações de santos se misturam ainstrumentos dos orixás. A sala tem vários bancos corridos a toda a volta, onde se senta o público.Algunsdosespectadoresmais jovensnão respeitaramobranco,eestãovestidosdecores.Assistemàdança de um grupo de mulheres de idade avançada, corpulentas, que rodopiam, descalças, de olhosfechados, em torno do altar. São as sacerdotisas. Sebastião murmura-me que é espantoso comoconseguemdançar sem se atropelarem, de olhos fechados. Envergam saias rodadas, com rendas, e asblusastêmcabeçõesdelinhobordados.Trazempulseirasdebúziosnosbraços,emuitoscolares,algunscordões de oiro. Ao fundo da sala, os homens tocam os tambores, ou atabaques. Sentamo-nos. Nãoprecisasdeme relatarmaisnada.Eu sigoos tambores.Sussurrasque asmães-de-santo estão agora apuxarparaarodatrêsmulheresmaisjovens,tambémvestidasapreceito,quesupõesseremumaespéciedenoviças.Pedes-mequetedêaminhamão.Empresto-ta,Sebastião.Commuitocarinho.

Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos Reinos, vedes asaflições emisérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos,vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes asmortes, vedes os cativeiros, vedes aassolaçãodetudo?Ouovedesouonãovedes.Seovedescomoonãoremediais?Eseonãoremediais,comoovedes?Estaiscegos.Príncipes,Eclesiásticos,grandes,maiores,supremos,evós,óPrelados,queestaisemseulugar:vedesascalamidadesuniversaiseparticularesdaIgreja,vedesosdestroçosdaFé,vedesodescaimentodaReligião,vedesodesprezodasLeisDivinas,vedesoabusodoscostumes,vedesos pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta dadoutrinasã,vedesacondenaçãoeperdadetantasalmas,dentroeforadaCristandade?Ouovedesounão o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes?Estais cegos.MinistrosdaRepública,daJustiça,daGuerra,doEstado,doMar,daTerra:vedesasobrigaçõesquesedescarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes asdesatençõesdogoverno,vedesasinjustiças,vedesosroubos,vedesosdescaminhos,vedesosenredos,vedesasdilações,vedesossubornos,vedesaspotênciasdosgrandeseasvexaçõesdospequenos,vedesaslágrimasdospobres,osclamoresegemidosdetodos?Ouovedesouonãovedes.Seovedes,comoonãoremediais?Eseonãoremediais,comoovedes?Estaiscegos.

(A tua voz como atabaque de brancos, António, moendo, moendo a lama que havia no lugar dasalmas,acreditandoquedessalamasepoderiafazerbarroequedobarromoldadorenasceriaaSenhoradas Maravilhas, falando todas as linguas. Atua voz enrouquecida no alto do púlpito, escondendo odesespero na fúria, furibundando os vivos adormecidos sobre as lajes e osmortos que debaixo delasestremeciam, despertos do sono purgatório pelos teus brados. A tua voz relampejando, rebentando acomposturadossantos,reiventando-osparatuacompanhia.DeSantoAntóniodissestequefoia luzdomundo. Ouço-te, em Roma, na Igreja dos Portugueses: «Se António não nascera para o sol, tivera asepulturaondeteveonascimento;mascomoDeusocriouparaaluzdomundo,nasceremumaparteesepultar-senaoutra,éobrigaçãodosol.»DequeAntóniofalavas,António,tuquenascesteemLisboaemorresteaquinaBahia, tuquediziasque semsairninguémpodesergrande, tuque saíste incontáveisvezessemnuncateresconseguidosossegaremti,tuquecrescestenaBahiaemorrestetãopoucoquemearrastasteparaaqui,paraestaBabilóniadecorposqueferemeacalmamcomopalavras?)

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ConsideraiaimensidadedeDeus,evereisatéondechegaeseestendeosignificadodestapequena,oudestagrandepalavra:Inútero.Imensidadeéumaextensãosemlimite,cujocentroestáemtodaaparte,eacircunferênciaemnenhumaparte:Cujuscentrumestubique,circunferentianusquam.Pondeocentroda imensidade na terra, ponde-o no Sol, ponde-o no Céu Empíreo, está bem posto. Buscai agora acircunferênciadestecentro,eemnenhumaparteaachareis.Porquê?Arazãoé,porquesendoaterratãogrande,eoSolcentoesessentavezesmaiorqueaterra,esendooCéumuitosmilhõesdevezesmaiorqueoSol,eoEmpíreo,comexcessoincomparávelmaiorqueosoutrosCéus,todasessasgrandezastêmmedida e limite, a imensidade não. Deus, por sua imensidade, como bem declarou S. GregórioNanzianzeno,estádentrodomundoe foradomundo:Deus inuniversoest,etextrauniversum.Masseforadomundonãohálugar,porquenãohánada,ondeestáDeusforadomundo?Estáondeestavaantesdecriarestemundo.SeDeusnãoestiveranesteespaçoondehojeestáomundo,nãoopuderacriar:ecomoDeusforadomundopodecriarinfinitosmundos,tambémestáemtodosessesespaçosinfinitos,aquechamamosimaginários.Eporqueoutrossimosespaçosimagináriosquenóspodemosimaginar,masnãopodemoscompreender,nãotêmlimite,porissoocentrodaimensidade,quesepodepôrdentrooufora do mundo, nem dentro, nem fora do mundo pode ter circunferência, Comparai-me o mar com oDilúvio.Omar tempraias,porque tem limite;oDilúvio,porqueeramarsem limite,não tinhapraias:Omniapontus erat, deerant quoque littoraponto.Assima imensidadedeDeus (quanto a comparaçãoosofre).EstáaimensidadedeDeusnomundo,eforadomundo,estáemtodoolugar,eondenãohálugar:está dentro, sem se encerrar, e está fora, sem sair, porque sempre está em simesmo: o sensível e oimaginário,oexistenteeopossível,ofinitoeoinfinito,tudoenche,tudoinunda,portudoseestende:eatéonde?Atéondenãoháonde:semtermo,semlimite,semhorizonte,semfim,eporissoincapazdecircunferência:Circumferentianusquam.

OxaláOxalufamestáabaixarsobreMarcos.Comoéqueeusei,Sebastião?Vejo-o.VejoOxalufam.Velho,curvado,mascheiodeenergia.SacodeviolentamenteMarcos.Vejo-o,Sebastião,naminhanévoavejoumvelhosaltandosobreumcorpodehomemjovem,fundindo-secomele.Atónito,confirmas:sim,queMarcosestáaescoicearcomoumcavaloenraivecido.E,minutosdepois,parecedesmaiado,temosolhosrevirados,estáaser levadoporduasmulheresparaoquartoderetaguarda.Nãoprecisasdemedizer,Sebastião,vejo.Vejoosespíritos,muitonítidos,descendosobrecorposesfumadosdemulheres.

Várias mães-de-santo rodopiam sobre si mesmas, bailarinas hipnotizadas, com os olhos vazios.Dançaminfinitamente, semperderoportenema frescura.Umadessasmulheresaproxima-sedemim,abraça-me,abraça-mecomosesoubessequemeusou,comosetivessesaudadesdemim,aperta-menumabraçoautênticocruemeenchedetranquilidade,eregressaparaaesferadadança.Devezemquandouma mulher estremece, roda sobre si mesma, revira os olhos e tomba— entrou o espírito. Como equando sairá, ninguém vê — as possuídas são transportadas para um quarto de retaguarda; depoisregressam,usandoasmáscaraseosinstrumentosdosseusorixás,dançandoesaltandodeolhosfechados,abraçandoalgunsfiéisassistentes,osolhosfechadosoubrancos,revirados.Eháoutrohomemaentraremtranse.Perguntas-meseestoubem,nuncaestivetãobem,foioabraçodaquelamãe-de-santo.Ris-te,Sebastião,eagoraeunãogostodoteuriso.

AEternidadeeodesejo,sãoduascoisastãoparecidas,queambasseretratamcomamesmafigura.OsEgípciosnosseusGeroglíficos,eantesdelesosCaldeus,pararepresentaraEternidadepintaramumO:porqueafiguracircularnãotemprincípio,nemfim;eistoésereterno.Odesejoaindatevemelhorpintor, que é a natureza.Todosos quedesejam, se o afecto rompeuo silêncio e do coraçãopassou àboca,oquepronunciamnaturalmenteéO.

Cessodever.Osespíritosdesmoronam-seeeuregressoàsminhastrevas.Amúsicadosatabaquesconduz-me,porém,paralongedaangústia.Alguémpedelicençaparasesentaraomeulado.Conheço-opeloaroma,conheço-oquandolhesintoasuacoxaencostadaàminha,jáoreconheceraquandoasuavozmedizboanoite,meninaClara.Emanuel.Sussurra-mequeconheceamãe-de-santoquemeabraçou.Mãe

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Marianinha.Diz-mequeelaquerfalarcomigo.Queelaé,desdehámuitotempo,asuaguiaespiritual,eestácuriosacomigo.Curiosa?Eporquêcomigo?Emanuelmurmuraquelhefaloudemim.Equeeunãovim à Bahia só atrás da talha dourada e das histórias de outros séculos. Diz-me que hámais coisasdebaixodocéu.Respondo-lhequesim,quefalareicomela.Nãoaqui,nãoagora,ciciaEmanuel.Depois.Noutrahora.Vira-meapalmadamão,põe-mequalquercoisapegajosaefria.Dizqueéebo,oalimentodo orixá,milho branco cozido só com água, sem temperos.Diz-me que coma, que vai fazer-me bem.Como.

DesejouDavidaáguadacisternadeBelém,eantesdedeclararaossoldadosqualeraoseudesejo,adiantou-seumOadizerquedesejava:DesideravitergoDavid,etait:Qsiquismihidaretpotumaquaedecisterna,quaeestinBethlehem!OOfoiavozdodesejo,asdemaisadeclaração.£comoanaturezaemumOdeuaodesejoafigurada

Eternidade,eaarteeraoutroOdeuàEternidadeafiguradodesejo;nãohádesejo,seégrande,quenatardançaeduraçãonãotenhamuitodeeterno.

Emanuelpede-me:—Vem,Iansã.Vemcomigo.Lembro-lhequeomeunomeéClara,responde-mequeestanoitenão.—Estanoitevocêéasenhoradosraios.Voucontigo,Emanuel?Conheçoastuasmãos,conheço-asporqueasdesejo.Asurpresadodesejocai

nomeu coração como neve, ilusão branca de eternidade.Mas será que te conheço?Dizes-me que teconheço, sim. Que atravessei o mar inteiro para te conhecer. Emudeço. Onde se meteram as minhashabituaisrespostasrápidasecáusticas?Numnodevoz,pergunto-teparaondemequereslevar.Dizes-mequeparaapraia.Quenãotenhamedo.Voucontigo.

Seacaso,oude indústria, lançastesumapedra aomar serenoequieto, aoprimeiro toquedaáguavistesalgumaperturbaçãonela;mas tantoqueestaperturbaçãosesossegou,eapedra ficoudentrodomar,nomesmopontoseformouneleumcírculoperfeito,elogooutrocírculomaior,eapósesteoutro,eoutros,todoscomamesma

proporção sucessiva, e todos mais estendidos sempre, e de mais dilatada esfera. Este efeitomaravilhosocelebramuitoSénecanoprimeirolivrodassuasQuestõesNaturais,edeleaprenderamosFilósofosomodocomqueavozea luzsemultiplicamedilatampor todooar.Masseanaturezanamultiplicaçãoeextensãodestescírculos teveoutro intentomaisalto,semdúvidafoiparanosdeclararcomapropriedadedestacomparaçãoomodocomqueosdosdesejosdaSenhora,aopassocomquesemultiplicavam,juntamenteseestendiam.

Clara?Ondevais?Respondes-me,secamente,quenãomepreocupecontigo,maseunãopossodeixarquevásassim, semmais,pelamãodeumdesconhecido.Perguntasquemsoueuparadecidiroque tupodesounãofazer.Quemsoueuparadecidirqueméque tuconhecesoudesconheces.Lembro-tequeestásàminharesponsabilidade,Clara.Respondes-mequemeengano,equenãoespereporti.Masoqueé que as pessoas vão pensar, Clara?—pergunto-te, tonto, desesperado, sem saber o que fazer para teguardarjuntodemim,oquefazerparaquenãomeabandonesdestaformacruel,humilhante,impossível.Prendo-teobraço,ohomemquetelevaameaçachamarapolíciaseeucontinuaraincomodar-te.Solto-te.Comumsorrisonos lábios, fazes-meumafestanoombroedizesatéamanhã,Sebastião.Dizesqueficasbem.Dizesquevaiscomumamigoteu.

Clara, porque não me deixas seguir-te? Porque me cegas assim, devagar, com tão desarmadodesamor?Abandonas-me,eéaindanoteulugarquesofro—esenãovoltaresamanhã,eseessehomemquetelevouéumassassino?Nãomorras,porfavor—nãoaguentomatarmaisninguém,esemorreresaculpavaiseroutravezminha.Clara,eudava-teomeucorpo,todoobemqueomeucorpoécapazdefazer,euamar-te-iacomotuquisesses,semsequerpensarnomeudesejo—comoumescravo,comoumobjecto,comoalgoquefizessepartedoteusangue.Mastudeixas-mesemsequerpensaresnoalarmeem

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quemedeixas,tuvaispelamãodeumhomemquenãosabessetemataráenemteimportaqueeumorratambémnestealarme.Clara,Clara,porquemeabandonaste?

Porquecresceuodesejoàproporçãodoamor,eotempoàproporçãododesejo.Nãomecreiaisamim, senão aos dois maiores Doutores da Igreja, Nazianzeno entre os Gregos, e Agostinho entre osLatinos.S.GregórioNazianzenocomprefaçãodequeafirmaumagrandeverdade,dizqueumsódiadeardente e ansiosodesejo, é igual a todoo tempoaque sepode estender a vidahumana:Projectovelunicusdiestotiusvitaehumanaeinstarestdesideriolaborantibus.

Não, não tenhomedode ti,Emanuel.Não sei porquê,mas sei que não preciso de termedode ti.Dizes-mequeentreOxaguiam,queéstu,eIansã,quesoueu,nuncaexistiumedo,apenasovendavaldapaixão. E contas-me uma história. Oxaguiam estava no meio de uma guerra que não acabava nunca,porqueerampoucasasarmas.PediaurgênciaaoferreiroOgum,masoferrodemoravaaforjar-seecadaferramentanovatardavacomoaeternidade.TantoreclamouOxaguiamquelansã,amulherdoferreiro,resolveu ajudá-lo. lansã começou a soprar o fogo da forja deOgum e o seu sopro era tão forte queavivavaofogoeaceleravaaproduçãodasarmas.OsoprodelansãpermitiuqueOxaguiamvencesseaguerra.QuandofoiacasadeOgumagradeceravitória,Oxaguiamapaixonou-seporlansã,queretribuiuessa paixão e fugiu com ele, deixando Ogum enfurecido e a sua forja gelada.Mais tarde, Oxaguiamprecisouvoltaraguerrear,edenovolhefaltaramasarmas.Entãolansãsoprou,dacasadeOxaguiam,emdireçãoàforjadomaridoabandonado.Atravessandoosares,oseusoproarrastavaconsigotudooqueencontrava pelo caminho — pó, folhas e galhos de árvores, insetos e pássaros — até atingir,furiosamente,aschamas.Opovoacostumou-seaosoproviolentodelansãedeu-lheonomedevento.Àsvezesessesoprotornava-setãofortequearrancavaárvoresearrasavaaldeiasinteiras—eaesseventoincontroláveldeuopovoonomedetempestade.

—lansãévocê,senhoradosoprodapaixão,quearrasatudooqueseopõeaofuturo.Oxaguiamsoueu,ojovemorixádacriaçãoedajustiçafinal.Juntossomosimbatíveis.

Eterríveis,acrescentoeu.GostariasqueeupudessevercomoaluzdaLuameabraça.Sintoasmãosdalua.Sinto-acomoseumacriançaestivessenoaltodocéuabrincarcomMarionetasdeseda.ComoseaLuafosseumadessasmarionetasdeumahistóriainfantil.Digo-tequeardodedesejoporti.

Perguntas-me se ouço o sussurro do mar, respondo-te que escuto apenas o marulho do teu corpochorandopelomeu.Dizes -meque abra a tuapele eme fechedentrodela.Digoqueo teu corpo temperfumededeserto,umgostodeareiadistantedomar.Dizesqueo teucorpoprecisadaáguadomeusexo.Digoquequerosentiroteucorpointeirodentrodomeu.Agora.Agora,sim.Tapas-meabocacomosteusdedoscompridos,hábeis.Dizes-mequenãofalemais,quejátempalavrademaisnessemundo.

Certo estou já, que não haverá quem duvide que os desejos da Senhora foram eternos. O que sóreceio, pelo contrário, é que não falte quem ponha dúvida serem desejos. O bem (replicará algumFilósofo),obemqueéoobjectodavontade,assimcomotemdiferentestempos,assimcausanamesmavontadediferentesafectos.Porqueobem,ouépresente,oupassado,oufuturo:seépresente,causagosto;seépassado,causasaudade;seéfuturo,causadesejo.Ecomoobem,esumobem,objectodosafectosda Senhora, que era o Filho único deDeus, e seu, não só o tinha presente, senãomais que presente,porqueotinhadentroemsimesma;parecequeanteshaviadecausaremseucoraçãojúbilosdogosto,enãoânsias,nemdesejos?Quemdiscorredestasorte,aindanão tementendidoqueapresençaparaserpresença,hádeteralgumacoisadeausência.Oobjectodavista,parasepoderver,hádeser

presente; mas se está pegado e unido àmesma potência, é como se estivera ausente: há de estarapartadodosolhos,parasepoderver.Assimapresençaparaserpresença,nãohádepassaraseríntima,nemhádeestartotalmenteunida,senãodealgummododistante.EaqueixadeNarciso,comverdadeirarazãoemhistóriafabulosa:Quodcupiomecumest:inopemmecopiafecit:oquedesejo,tenho-oemmim;eporqueotenhoemmim,careçodoquetenho.Poisqueremédio:Votuminamantenovum-.oremédioéumdesejonovo,qualnuncadesejouquemamasse.Equedesejoéeste?Vellemquodamamusabesse-.

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desejarqueoqueamoseausente,eseapartedemim.TaleraodesejodaSenhora,etalrazãodoseudesejo.Careciadomesmobemquetinha,porqueotinhadentroemsi.

EraumavezumaLuapresunçosa,quesejulgavaagrandedescobridoradocaminhocelesteparaosexo.Semprequeobservavaumpardenamoradosafazeramoraoluar,inchavadevaidadeeespicaçavaoventoparaqueexpulsassedocéualgumanuvemmaisafoitaquepudessetapar-lheavisãoeotriunfo.Com o passar do tempo e o aumento de arrogância da Lua, se tornou cada vezmais frequente que aapariçãodoamorredundassenumazoariaentreaLua,oventoeasnuvens,produzindoumaagitaçãotalqueacabavaporenxotartambémosamantes,lánaTerra,resfriados.Inocentes,científicos,osamantes,cadavezmaismaltratadospeloselementos,queixavam-sedapoluiçãoedoaquecimentoglobal.Nosdiassemluar,asestrelasjulgavam-sedonasdosexodoshumanos—maspertodomar,sofriamaindafortecompetiçãodeumcorodesereiasque,emboravelhinhas, trôpegas, roucasde tantosséculosadesviarmarinheiros,mantinhamumtravoeróticonavozque levavaosamantesa se imaginaremnoParaíso,eelasasepretenderemasúnicasegenuínasdescobridorasdocaminhomarítimoparaosexo.Umadelasassustoucertavezumparenlaçado,que,olhandoasondas,aenxergou,decabeleiradesgrenhadaecomumavendadepiratanumolho.Tratava-sedeumarecordaçãosentimentaldeumpirataparticularmentegarboso—masasoutrassereiasnãoquiseramsaberdesentimentoseaposentaram-nacompulsivamente,enviando-aparaummuseu,nasprofundezasdooceano.Nofundo,apetulânciadaLuanãoeramaisdoqueumaconsequênciadodesamordoSolporela,quesepunhaafugirmalaviaaproximar-se.TambémoamordossereshumanospelaLuaepelasestrelaséfrutodaenormedistânciaqueossepara.Talvezporisso,éinfinito.Comoosexo.

EstaéaverdadeiraFilosofia,porqueobempresentepodecausardesejos,eporqueapresençaparaselograrhádeteralgumacoisadeausência.ObemesumobemdaSenhoraenquantootinhadentroemsi,pormuitopresentefazia-oapresençainvisível;porémdepoisqueoteveforadesieemseusbraços,estamesmadistância,queerapartedeausência,fezqueopudesseveregozar.

Não dormi nada, Clara, e agora apareces-me fresca, sorridente, matinal, no restaurante do hotel,dizendoqueaquiestás,pontualcomoumaestrela,ahorasparaapartida.Imploro-tequemedigasporondeandaste,dizes-mequenãotensalmaparainterrogatórios,nemidade,nemposição.Nãodorminada,Clara.Desconversas,perguntasseestouprontoparairparaoautocarro—nemopequeno-almoçotomas.Insisto emqueme contes por onde andaste, dizes quenão adianta pressionar-te, e que és umamulherlivre.Digo-tequealiberdadenãoétudo.Dizesquemeengano,equenãoestousónesseengano—tenhomuitosséculosdemortoscomigo.Etu,quemtens,Clara?RespondesquetensAntónioVieira,ohomemqueteensinouavirtude.

—Avirtude?Quevirtude,Clara?—Aúnica—dizestu.—Adaindependência.De talmodo há de luzir a vossa luz diante dos homens, que vejam eles as vossas boas obras, e

glorifiquemaDeus.IstoéoquedizCristoaSantoAntónio.EistonãoopodiafazerumPortuguês,entrePortugueses.Aprimeiracoisaqueseencarreganestaspalavras,équehádeluzirasualuz:Sicluceatluxvestra-.eluzirPortuguêsentrePortugueses,emuitomenosluzircomasualuz,écoisamuitodificultosananossaterra.Comaluzalheiavieuláluziralguns;mas

comaprópria, luxvestra, nemSantoAntónio, quantomais osoutros.Toda a terra (porque toda étocadadestevício) temoposiçãocoma luz.ALuaquemaeclipsa?Aterra;porquechegamláassuassombras.EoSolondenãochegamassombrasdaterra,quemoescureceeencobrecadahoraanossosolhos? Também a terra. Levanta o Sol com seus raios os vapores, e esses mesmos vapores que elelevantou,condensando-seemnuvens, sãoosqueonãodeixamluzir.Tomamemsios resplendoresdomesmoSol,edourando-secomelesouoescurecemdetodo,ouno-lotiramdosolhos.Preze-se,ounãoseprezeoSoldeescurecerasEstrelasdoCéu,queláestãoosvaporesdaterra,queoescurecerãoaele.

Sendoestaacondiçãonaturaldetodaaterra,comogrosseiraenfim,rudeeopaca,enascidadebaixo

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dastrevas:Terraerat inanis,etvácua,et tenehraeerantsuperfaciemabyssi:nenhumaterrahácontudoentre todas as domundo, quemais se oponha à luz, que a Lusitânia. Outra etimologia lhe dei eu noSermãopassado,mascomohávocábulosqueadmitemmuitasderivações,ealgunsquesignificamporantífraseocontráriodoquesoam;assimoentendodestenome,postoquetãoluzido.omundo,dizemosGramáticos,quesechamamundo,Quiaminimemundus-,eamorte,Parca,Cuianeminiparcit.Eassimcomoomundosechamamundo,porqueéimundo,eamortesechamaParca,porqueaninguémperdoa,assimanossaterrasepodechamarLusitânia,porqueaninguémdeixaluzir.

Sebastião,Sebastião,quefaçoeuaindanestepériplo?Avisas-mequeestamosemSantoAmarodaPurificação,aterradomeuCaetano.Dizes-mequepassamosagoraemfrentedonúmero179daRuadoAmparoqueéacasadamãedele,DonaCanô,equeporissoomotoristaabranda.Descreves-meumacasabranca,comasjanelasazuis,todasabertas.Peço-tequevejasseovês—sebemqueaestahoradamanhã,mesmoqueestivessenestacasa,aindaestariaadormir.Informo-tedequeéumnoctívago,comoeu.Mulheres,suspirastu:pormaisquesegabemdeadmirarosgrandesescritores,acabamsempreporseembeiçarporcantores.Aeternacantigadobandidotemresultadosgarantidos.Evoltasasuspirar.Ondebuscasumanjo,soumulher.Digo-tequeoCaetaninhonãoénenhumbandido.Equetambéméescritor.oCaetaninho,suspiras:

—Umcanastrãodaqueles,VirgemMaria!Digo-te que não sejas ciumento, que te fica mal. Para provares que não és ciumento lês-me a

homenagem inscritaemfrentedacasa:«Caetano,poetada terra,meninodagente,nósamamosvocê.»Acrescentasqueháoutrainscrição,querezaassim:«Bethânia,detuascordasvocaisemergeestagentebonita,tuavozéamelhornotíciadaterraquetegerou.»Eperguntas,àqueima-roupa,comquemfuieudormir ontem à noite. Onde pisas o chão, minha alma salta. Em vez de te retorquir, comento que éreconfortanteencontrarumaterraqueseorgulhadosseusfilhosenquantoestãovivos.NonossoPaíssóosmortos são amados, se é que se pode chamar amor à invocação regeneradora da voz dosmortos.Dizes,comescuridãonavoz:

—Poucaterra,muitasombra.Aterramaisocidentalde todaséaLusitânia.EporquesechamaOcidenteaquelapartedomundo?

Porventura,porquevivemalimenos,oumorremmaisoshomens?Não;senãoporquealivãomorrer,aliacabam,ali se sepultame seescondem todasas luzesdo firmamento.SainoOrienteoSolcomodiacoroadoderaios,comoReiefontedaLuz:saiaLuaeasEstrelascomanoite,comotochasacesasecintilantescontraaescuridadedastrevas,sobemporsuaordemaoZénite,dãovoltaaoglobodomundoresplandecendosempreealumiandoterrasemares;masemchegandoaosHorizontesdaLusitânia,aliseafogamosraios,alisesepultamosresplendores,alidesapareceeperecetodaaquelapompadeluzes.

E se isto sucede aos lumes celestes e imortais; que nos lastimamos, Senhores, de ler osmesmosexemplos nas nossas Histórias? Que foi um Afonso de Albuquerque no Oriente? Que foi um DuartePacheco?Que foiumD.JoãodeCastro?Que foiumNunodaCunha,e tantosoutrosHeróis famosos,senãounsAstrosePlanetaslucidíssimos,queassimcomoalumiaramcomestupendoresplendoraquelegloriososéculo,assimescurecerãotodosospassados?CadaumeranagravidadedoaspectoumSaturno,no valor militar umMarte, na prudência e diligência umMercúrio, na altiveza e magnanimidade umJúpiter,naFé,enaReligião,enozelodeapropagareestenderentreaquelasvastíssimasGentilidades,umSol.MasdepoisdevoaremnasasasdafamaportodoomundoestesAstros,ouindígetesdanossaNação, onde foram parar, quando chegaram a ela?Umvereis privado com infâmia de governo, outropreso,emortoemumHospital,outroretiradoemudoemumdeserto,eomelhorlivradodetodos,oquesemandou sepultar nas ondas doOceano, encomendando aos ventos levassemà suaPátria as últimasvozes,comquedelasedespedia:Ingratapátrianonpossidebisossamea.

Vedeagoraseeutinharazãoparadizer,queénaturezaoumácondiçãodanossaLusitânianãopoderconsentir que luzam os que nascem nela. E vede também se podia Santo António deixar de deixar a

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Pátria,sendofilhodeumaterraondenãoseconsenteoluzir,etendo-lhemandadoCristoqueluzisse:Sicluccatluxvestra.

Tréguas,meuamigo.DeixaqueSantoAmaronospurifique.Concentremo-nosnavozdeMarcos,naconsoladoraacumulaçãodefactosqueamusicalvozdeMarcosdebita,porquesecontinuarmosalançarpalavras de pedra um ao outro vamos acabar bastante feridos. E já temos feridas de sobra, tu e eu,Sebastião.—Excelentíssimossenhores,desafortunadamentenãoterãotempoparadesfrutardosencantosdestacidadezinhadoRecôncavoBaiano,porémvoulhesdesvendarumpoucoda

suahistória.Osprimeiroscolonizadoresaquichegadosinstalaram-senasmargensdorioTraripe.Umincidente trágico causou amorte de um jesuíta, o que fez osmoradores se deslocarem para um localpróximo,ondeconstruíramumacapelaparaSantoAmaro(hojededicadaaSantaLuzia).Nestepontosedesenvolveu a cidade. O primeiro núcleo de povoamento data de 1557 e a região foi importanteprodutora de cana-de-açúcar, fumo e mandioca, surgindo engenhos e casas de farinha. Santo Amaropossuibelasatraçõesnaturaiscomogrutas,cachoeiraseumapraiafluvial,alémdealgunsedifíciosdegrandevalorhistóricoearquitetônico,emparticularigrejas,sendoaprincipaldelasadeNossaSenhorada Purificação. No mês de Fevereiro, nesta igreja acontece a tradicional lavagem da escadaria,organizada por essa verdadeira matriarca local que é dona Canô, com a participação de mais dequatrocentasbaianas.Vamosapenasdarumaparadinharápidanomercadolocal,maspeçoqueregressemaoônibusimpreterivelmentedentrodequinzeminutos.

Veioaluzaomundo,eoshomens(quemtalhaviadeimaginar?)amarammaisastrevas,quealuz.Quantasvezessevê istonomundo,eeuo tenhovisto?Verosque luzem,épararir;everosquenãoluzem,parachorar:

Dilexeruntmagistenebrasquamlucem.(Seeutivesseolhos,Emanuel,poderiatrairasimagens,poderiaesquecê-las,acumulá-las,confundi-

las.Nãovendo,sótevejoati.Peçoquemeinjectemimagensemcatadupa,asigrejaseruaseestátuasemqueosquetêmosentidodavisãosedistraemdasvisõesqueosdominam.Masnãopossoescolher.Acegueira obriga-me a ver o que émeu.Eo que vejo, no escurodesta corrida a queme agrilhoonailusãodeumaescolhaquejánãotenho,éoveludodatuapele,oferrodoteucorpofundindo-senomeu.Evejo,comosenovaziodosmeusolhossetivesseminstaladoosteus,aimagemdoteufilho,azulcomoomaremaisfriodoqueasondas,aimagemdesseteufilhoquemorreuafogado.Evejo,nofimdanossanoite—primeira, não sei se única, não sei se última noite—omonumento funerário do teu filho.Umquadropretocomgiz—terás tuesperançadequeeleconsigafugiràmãodosanjoscomofugiuà tuamão,evenhafazer-tedesenhosnapedraquelhedeixaste?Vejoalápide,vejoogiz,vejooteufilhodedoisanosdesenhandoumbarco,desenhandoasondasdomarqueolevaram.Aomeuredorelesfalam,olham,fotografam,esquecem.Eeuvejocontinuamente—éesseoluxoeamaldiçãodacegueira.)

As trevasamadas,veneradas, e aplaudidas, comose foram luz, e a luz aborrecida,desestimada, eperseguida,comoseforatrevas.Talé,etalcostumaserojuízodoshomens,ousejaporignorância,oupormalícia.Masqueremédioteráaluzparanãoseraborrecidadetalgente?Seéaborrecida,

porque veio ao mundo: Lux venit in mundum: vá-se do mundo, e não será aborrecida. Assim ocuidavaeu,eassimcreioquebastaráparacomalgunshomens,masnãoparacomtodos.

Referes-mequeomercadoémuitocolorido.Flutuaumcheiroquenteaespeciariasetabaco.Rolodefumo,dizes-metu.Faz-secomsobrasdetabacoemelaço.Eraotabacoqueosescravosfumavam,eeratambémumadasmoedasusadasparaacompradeescravos.Trêsrolosporumhomemembomestado.Umavozbrasileirademulher,juntodenós,dizquedavaatédezrolosparaacharumhomem,mesmojáusado. Calor humano, dizes tu. Cor local. Não te assustes, aconselhas -me tu. Não me conheces,Sebastião. O calor humano nunca me assustou. Gosto desta sensação de corpos que se acotovelamfamiliarmente, do bruá das vozesmisturadas. Dás-me a provar um cigarro de rolo de fumo. É forte,saboroso.Comproumrolo,parafumarmosmaistardeemhonradaBahia.Umcardumedepequenasmãos

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agarram-meablusa:—Temcaneta?Medácaneta,minina.Peço-te queme conduzas a uma lojeca ondepossa comprar canetas e rebuçadospara as crianças.

Discordas,dizesquesedouaunstereidedaraoutrosenuncamaisparo.Respondo-tequecomprareicinquenta esferográficas e dois sacos grandes de bombons, explico-te que não ficareimais pobre porcausa disso.Vais dizer-me que a caridade não resolve nada, Sebastião?Não respondes.Tambémnãopretendo resolvernada,Sebastião.Quero apenasouvir a alegriadas crianças.Prazermeu,pequenino,egoísta,entendes?Gostodedar.Gostodessapalavraproscrita:caridade.AcrescequesónoBrasilmetratampormenina.Epormadama.Duascoisasquemeficambem.

Nasceunoprimeirodiadomundoaluz,aqualnãoeraoutracoisa,queumglobodaqueleluminosoacidentecriadonasegundaou terceira regiãodoar,dentrodaqual faziaseucursodividindoodiadanoite,edandodesdelogoàduraçãocompostadeambos,operíodonaturalquehojeobservam.Éporémcoisamuitodignadeadmirar,queenquantoaquelaprimeiraluzseconservounolugarouregiãoondefoicriada,nãohouveolhoscriados,queavissem:porquenematerraeaáguacriadosnoprimeirodia,nemofirmamentonosegundo,nemasplantaseervasnoterceirotinhamolhos.

Marcosexplica-nosqueCachoeirasignifica«margrande»,efoiassimbatizadapelosÍndiosdevidoàquantidade das águas e à largura do rio Paraguaçu nesta região. A cidade nasceu de um engenho deaçúcar,noséculoXVI,efoiumdosprincipaispóloseconômicosdaBahiaatéaoséculoXVIINãoseiseaguentomaisumainjecçãodefactosdopassadoglorioso.Estouestoirada.Uautocarrocansa-me,atravésdosvidrosnãoconsigochegarà

paisagem.Nãoaincorporo,comodiriaMarcos.Dizesquevaistentardar-meaverCachoeiraatravésdaspalavras: trata-sedeumacidadecolonial,comaatmosferamelancólicadossítiosqueperderamopodereguardamamemóriadosseuscrimes.Ruasdeparalelepípedos,casascoloniais,aquiloaqueaquinoBrasilchamamsobrados,comtelhaseparedesdecoresbrilhantescomodesenhosdecriança,arderestaurorecente.Marcosdiz-nosquepassamosagoraemfrentedaIrmandadedaBoaMorte.Trata-sedeumasociedadeexclusivamentefeminina,formadapormulheres,obrigatoriamentecommaisdequarentaanosedescendentesdeescravos.Foifundadaem1820porumgrupodenegrasalforriadasquevendiampetiscos na rua para comprar cartas de alforria para outros escravos. Pediam então ajuda a NossaSenhoraparalibertarosescravoseconseguirregressaraÁfricadepoisdamorte.Brincas:

—Ummovimentofeministadenegrascatólicas,quecurioso.(Emanuel-Oxaguiam,quemeinteressaamimofeminismo,eoBomSucessodasArmasdePortugal

contraasdeHolanda,eatalhadourada,eatralhadosAntónios,umaquerersalvar-meaalma,outroalevar-meosolhos,embandeja,paraumcorpoqueoaqueçanumasombradoCéu,quefaçoeuaquicomesteSebastiãoamigoquequerafogarnaminhadorumadorquedesconheço?Quefaçoeu,confundindoas cores do dia e da noite, arrastando o tempo através do espaço e os sentimentos através dos seuscontrários?Palavras,ladrasquemeroubameestafam,chamasquelavramemeintoxicam.Emanuel,sótunãomepedesnada,tenhosaudadestuas.)

Católicas, sim — mas não exactamente apostólicas romanas, estas Irmãs negras. Aderiram semdúvidaaocultodeNossaSenhoradaBoaMorte,queos jesuítas trouxeramparaoBrasil.Os jesuítastinham boa imagem junto de índios e escravos. Inspirados pelo exemplo e pelos sermões do PadreAntónio Vieira, embora sem a coragem que só ele demonstrou, procuravam suavizar a vida destaspopulações.Mantinhamaféeosrituaisdocandomblé,àsescondidas.Osescravospassaramséculosaterdedisfarçarosorixásdebaixodosaltaresdossantoscatólicos,eacabaramporrezarasantoseorixásemconjunto.Todosossantosedeusesnãoseriamdemasiadosparalhesinsuflaresperançanumaoutravida.

Quandose faladadoçuraparticulardacolonizaçãoportuguesa,damiscigenaçãoeda invençãodomulatoenãoseiquemais,esquece-searealidadedaescravatura:jornadasdetrabalhodedezoitohoras,

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aosol,naagricultura,mutilaçõesdosfugitivosefugitivasqueerampunidosatravésdocortedostendões—, os grilhões, as queimaduras com ferro em brasa no rosto, os açoites de chibata. Além de outrosrequintes,açaimesemáscarasdefolha-de-flandres,extracçãodedentesasangue-frio,cortedeorelhasdos mais escutadores ou das línguas dos mais faladores. Desprezamos o sofrimento de milhares depessoasqueviveramnesteInferno,subjugadaspelosgloriososcivilizadoresdoBrasil,desprezamo-lostantoqueatéa instituiçãodoabusosexualdasescravaspelossenhoresbrancospassa,aindahoje,porbeneméritacriaçãodeumaraçanova.

Demaneiraque,defacto,estaIrmandadetalveztenhasidooprimeiromovimentofeministanegrodopaís. Hoje organizam a famosa Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, que se celebra desde osprimórdios do movimento abolicionista, durante a primeira quinzena do mês de Agosto, e que visaagradecer a Nossa Senhora a liberdade duramente conquistada. As cerimónias revestem-se deextraordináriariqueza,desdeostrajesespeciaisejóiasqueasmulheresusam,atéàsceiasoferecidasnacasa da irmandade e o samba-de-roda, que caracteriza a parte profana da festa. Percebemos que asrelações desta Irmandade com a Igreja Católica não têm sido simples. Ainda há relativamente poucotempo, na década de oitenta, o pároco local confiscou bens da Irmandade, incluindo jóias e estátuasreligiosas.Umajovemadvogadaofereceu-separadefenderasIrmãs,econseguiuencontrardocumentosdoséculoXIXqueprovavamqueaIrmandadeeradefactoadonadaspeças.Sóem1998ocasoficouresolvido. Também em Terras de Vera Cruz a justiça se apresenta como uma rapariga preguiçosa etrapalhona.

Ogrupoprepara-seagoraparavisitaroedifíciodaCâmara,ondeseencontraoMuseuMunicipal,para compreendermelhor a história da cidade e o seu contributo para a independência doBrasil, tãomarcante que Cachoeira acabou por ser distinguida com o título de cidade heróica. A guerra daindependênciatevealiásumaheroínafeminina,MariaQuitéria,umaraparigaquesedisfarçoudesoldadoe foi depois condecorada pela sua bravura. Estou demasiado cansada para farejar mais um museu.Esperaremos pelo grupo no café literário que fica quase em frente aoMuseu, o «Pouso da Palavra».PertenceaumartistaepoetadeCachoeira,DamárioDaCruz,quetemalioseuatelier.AmúsicadaBahiarefrescaoespaçodocafé,dizesqueosítioémuitoagradávele temalgunslivrosediscos,recitasumpoemadotalDamárioDaCruz:

—«Apossibilidade/dearriscar/équenosfazhomens.»Digo-tequeéumaverdadeexacta,eeisqueapareceoprópriopoeta empessoa, queixando-sedo

isolamentodeCachoeira,eprontificando-sealer-meorestodopoema:—«Apossibilidade/dearriscar/équenosfazhomens.//Vooperfeito/noespaçoquecriamos.//Ninguémdecide/sobreospassosqueevitamos.//Certeza/de

quenãosomospássaros/equevoamos.//Tristeza/dequenãovamos/pormedodoscaminhos.»Digo-lhequetodasaquelaspalavraspoderiamserminhas,responde-mequeparaissoserveapoesia.(Poesia.Poeirasalgadadodia.Poesadia.Aprincípiofaltavam-measpalavras.Nuncaencontravaas

palavrascertas,porissoexperimentavaescreverpoemas:acreditavaqueaarquitecturadoversogerariaaspalavrasdequeeuprecisava,palavrascomummecanismoderelógiotãopoderosoqueestancasseotempo.

Essaspalavrascapazesdeboiarsobreessemardemortequeéotempo,encontrei-asnosteustextos,Vieira—cordasdefrasesresistindoàsintempérieseasimesmas.Assimdesistidosrituaisdapoesia,fizprofissãodeestudaraspalavrasdosoutros—masralhavas-mesempre,AntónioVieira,puxavas-measorelhas,nãoseisepelaminhadesistência,sepelaminhainsistêncianaspalavrasdosoutros.Semprefoste umvaidoso, tu também,Vieira; até nisso és brasileiro e português; galo deBarcelos,mestre decapoeira, emplumado, lançando frases como lanças de fogo em mortais encarpados à cara dosmiseráveis, vingando-te do mal que te faziam no bem que anunciavas, atirando a virtude, como umescândalo,àcaradospecadores.Acorageméopontodeexclamaçãodavaidade,àqualacompaixãofaz

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de vírgula — os pecados de que desististe por amor a esse Deus que inventaste para não morrer,sublimaste-os a todos na vaidade.A luxúria, a cobiça, até a vontade de poder, a que hoje chamamossucesso, tudo desfizeste e engoliste no caldeirão frugal da vaidade. É disso queme acusas, António,ouço-oagoramuitobem:denãotersabidoencolher-menavaidade,meter-menasuasotainadevirtudesexemplares.Não,nãoseiserexemplar,AntónioVieira?nemseiseaindaalguémopodesersemqueseriamdele.Riram-sedetitambém,bemosei—masouviam-te,ouviram-tereiserainhas,aceitaram-teosconselhos,tentarammerecer-te.Mesmoosqueteexpulsaram,osquetecondenaram,osqueteprenderamecalaram,tentarammerecer-te—eéissoaindaesóoqueeufaço;tentarmerecer-te,semcontarsequercomosrigoresdeumDeusquemeorienteediscipline.

O teu Deus estoirou, Vieira— Jeová, ou Alá, ou como quer que se lhe chame, consumiu-se nasfogueiras da Inquisição, nas câmaras de tortura emorte de todosos séculos, explode ainda agoranoscorposmuitojovensdosbombistassuicidas.ODeusdosfiéisedosinfiéisserviu-teati,quesoubesteamaciá-lonosveludosdoteucoração,afeiçoá-loaessamanhaportuguesaque,nasaflições,sedisfarçacom os nós da consolação. O teuDeusmarinheiro, feito do braço dos Lusíadas e de uma justiça detenças,estámortonosbraçosdoshomensqueemnomedeleaindamatam,viveapenasnosoprodosteustextos que transporto sobre omar— o teumar, que já ninguém cruza, nesta civilização do ar. Estoucansada,António,cansadadepairarsobreomundo,caricaturadacaricaturadoviandantequefostetu,demuseuemmuseu,demusoemmuso,procurandonocordamedatuavozasegurançadaminha.)

Luziaaluz,enãohaviaolhosqueavissemluzir;alumiavaelasóouniverso,enãohaviaemtodoouniversoolhosquesealumiassemcomela,nemavissemalumiar:distinguiaasnoiteseosdias,masnãohaviaolhosquenotassemaigualdadeeconcertodestadistinção,nemsealegrassemcomapresençadamesmaluz,ousentissemsuaausência.Nãoseisechameaistodesgraçadaluz,senaturezadolugar,ouregião emque nasceu aomundo.Desenganai-vos, luz, ainda que sejais a primogénita doCriador, e aprimeiradetodoocriado,queenquantonãosaíresdolugarondenascestes,nãohá,nemhão-dehaverolhos que se ponham em vós. Saí, saí desse berço natural, em que nascestes, passai a outros lugaresestranhose remontados, e logo tereisolhosquevosvejam,quevosadmirem,quevosamem,quevoscelebrem,quevivamdevósemorramporvós.Assimfoi.AoquartodiadacriaçãotirouDeusaluzdaregião do ar, onde a criara, repartiu-a pelas esferas celestes com forma e nome deSol, deLua, e deEstrelas;elogonoquintodiaenosextosedesfezomundotodoemolhos,quesealumiassemcomaluzea festejassem: olhos nomar, olhos no ar, olhos na terra; olhos nas aves, olhos nos peixes, olhos nosanimaisterrestres;esobretudoolhosnohomem,quenãosólograsseosresplendoresdaluz,masdesseosdevidos louvores aoCriador dela.Demaneira que estamesma luz quehoje vemos e comquevemostodasascoisas,enquantoesteveenãosaiudolugareregiãoemquenascera,nemelasevia,nemseviamcomela asoutrasobras admiráveisdaOmnipotência, enãopor faltadasobras,nempor faltada luz,senãoporfaltadeolhos.

Explicas-mequeestamosnaQuintadoTanque,nosarredoresdeSalvador,queactualmentealbergaoArquivoPúblico doEstado daBahia. E voltas ao teu refrão: «Não vaismesmodizer-me quem era ohomemdeontem?»Respondo-tequenestaquintapassouVieiraosúltimosanosdasuavida,apartirde1681,trabalhandonaversãoderradeiradosseusSermões.

Estranhasqueeudiga sempreVieira,nuncaoPadre.Paramim,Sebastião, elenão foi apenasnemsobretudoumpadre.Foiummagistral escritor eorador,umpioneirodosdireitoshumanos, eumbomdiplomata — embora nem sempre acertasse nas causas e nos apoios. Deixou-se deslumbrar umbocadinho com o poder, o que o arrastou, aliás, para inúmeras decepções. Era um voluntário daingenuidade,comocostumamseraspessoasquenascemcomamaniademelhoraromundo.Tambémteveazar;D.JoãoIV,oreiemqueeledepositoutodasasesperanças,nãotinhaforçaparalevaratéaofimalealdade,eraumacomodado.

Dizes-mequenãotinhasessaideiadoRestaurador;afinal,foioreiquenostiroudecimaosFilipes

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deEspanha.Explico-tequeessafoiaversãoquenosvenderamnaescola,sacrificandoaverdadeàpobremusiquetadopatriotismoinfantil.D.JoãosóaceitouserreiquandoEspanha,desconfiadadaspretensõesportuguesas, lhe deu ordem de marcha para a guerra contra os catalães. Porque até aí, os fidalgosrevoltososabordavam-noeeleencolhia-se.Gostavaeradecaçaedescanso.Deresto,nemaqui,nestelugaraparentementetranquilo,Vieiratevesossego.Em1688,aOrdemnomeou-oVisitadordaProvínciadoBrasil,eláfoiele.RegressouaestaQuintaem1691ecomeçouaescreverumensaioquepretendiaquefosseachavedeourodasuaobra—aClavisProphetarum,DeRegnoChristiinTerásConsummato.Nãochegariaaacabarolivro,atéporqueasinvejaseintrigascontinuavamapersegui-lo.Em94osseussuperiores acusaram-no de excesso de intervenção na eleição do procurador àCongregaçãoGeral deRoma,eretiraram-lheodireitoapregar.Andoucomacensuraàpernaavidainteira.

DizesquenãosabiasqueaIgrejachegavaaorequintedeperseguirosseus.AntónioVieiranuncafoide ninguém, Sebastião; era isso que não lhe perdoavam. Ou melhor; foi dos amigos, porque tinha aamizadeemaltaconta.Era,acimade tudo,emesmofaceaosamigos,umespírito livre,e issonemosamigosaguentavam.Comonão lheperdoaramadefesaestrénuados índios,dosnegrosedoscristãos-novos,queelequeriaautomaticamenteequiparadosaosvelhos.Nessaderradeira intriga, seria ilibadodasacusações,masanotíciadessailibaçãoviriaaencontrá-lojámorto.Em1696adoençadebilitava-otantoquetevedeirparaoColégiodosJesuítas,ondemorreua18deJulhode1697.

Dizes-mequenopátiodaQuintadoTanqueháumbustodoPadre,eumalápideevocativa,quefoidescerradaem1997,aquandodotricentenáriodasuamorte.TemumexcertodeumacartadeVieira,querezaassim:«AdeusTanque.Nãovoubuscarsaúdenavida,senãoumgénerodemortemaissossegadoequieto.»Eassim foi,Sebastião.Mas teveumavidacheia.Umavidaquemoveaindaasnossasvidas,hoje.

Descreves-meolusco-fusco,ahoraemquetodasascoresdodiasemisturameainsignificânciadoque somos se torna real.As nuvens correm, brancas e velozes, comumamelancolia de carta cifrada.Nenhuma é igual à outra e todas se parecem,mas não conseguimos agarrar-nos a nenhuma.O brancoparecemaisfortedoqueopesodoazuldocéu,queescurecedeminutoaminuto.Vieirapertenceaestemomentoemqueacordocéumudaderepente,enãosesabeoquevaiser.É issoaBahia.Primeiracapital doBrasil, laboratório da humanidade futura.Vieira foi sobretudo bahiano, porque aBahia deTodososSantoséaconsciênciadasinfinitaspossibilidadescombinatóriasdomundo.

Sãotãoincapazesosolhosdoinvejosodeverluzir(dizSantoAntónio)queseuminvejosofosseaoCéulogohaviadeficartotalmentecego;porquealuzdaglóriaebem-aventurançadopróximoohaviadecegar.Dopróximo, disse, e nãodobem-aventurado, comgrande elegância e energia; porque a invejasendodordeolhos,édeolhosqueolhamaoperto(proximi)enãoaolonge.

—Olá,Clara,disseram-mequeiasparaoBrasil.—EstounoBrasil.—Entãosereibreve,paratepouparnoroaming.Queriaagradecer-te,seiqueoteuparecerpositivo

foi fundamental para que eu ficasse com o lugar do nosso querido João, paz à sua alma, aqui nauniversidade.

—Nãotensqueagradecersenãoatieaoteucurrículo.Foisóissoqueavaliámos,procurandoserisentos.

—Bom,mashásemprefactoressubjectivos,todossabemosisso.Fico-temuitograta,asério.Eolha,setevieremdizerqueeudigomaldeti,nãoacredites.

—Como?— Sabes como é este pequeno meio. Alguém me veio dizer: «Tu dizes tão mal da Clara, e ela

defendeu-tetanto.»Fiqueisurpreendidíssima.Comcaradeparva,mesmo.Porqueépúblicoquetemosasnossasdivergências,masdaíaeudizermaldeti...

—Épúblico?Quedivergências?

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—Nadadeimportante,Clara,minúciasepistemológicas.Sabesqueeutenhoamaniadorigor,ésóisso,eàsvezes...masnãoseideondevemestamá-língua.

—Nãosabes?—Não,eupraticamentenãotenhovidasocial,massabescomoéestemeio...—Masquemtedisseisso?—Clara,poramordeDeus,nãomepeçasnomes,nãointeressanada,eeudetestointrigas,nãovou

agoracomeçaradebitarnomes,nãoachas?—Éumapeste,o falatório.Asúltimas semanas, então, têmsidoumhorror.Sabesquehouveuma

mudançagrandenaminhaeditora,nãoé,foicompradaporumamultinacional,navésperadaassinaturadocontratoparaaediçãodaminhatese.Poisimaginaquemetelefonouumrordegenteaperguntarseeuiamudardeeditora,paraumacasamaisséria,ouseficavanesta,queagoracertamenteiráprivilegiarosbest-sellers.

—Équenãomelargamotelefone.AtéparecequeeusouoHaroldBloom,queexagero...—OHaroldBloomtambémjátevemelhoresdias,deixa.Subiu-lheoêxitoàcabeça,sabescomoé.

Acontecemuito.—Pois,mas vê lá tu: só porque eu fui almoçar como JoaquimSabugosa, telefonaram-me logo a

perguntarseeuiamudarparaaeditoradele.OraoQuiméumeditorconcorrente,masé,antesdetudo,meuamigoháséculos.

—Eunemsabiaquetutinhasséculos,Julinha.—Tueoteusarcasmo...Oqueeuqueroquepercebasmesmoéque,setevieremdizerqueeutenho

algumacoisacontrati,nãoacredites.Sobretudodesdeque...—Sobretudodesdequeoquê?—Nada,nada,nãoligues.Estoumuitocansada.—Ninguémmevemdizeressascoisas,MariaJúlia.Eunãomedoucompessoasdessas.—Nuncasesabe,nuncasesabe.Eunãomedoucomquaseninguém,eolhaascoisasquemevêm

pararaosouvidos.—Estouaver.—Tinhas-medeixadoumamensagem,háunsdias,nãofoi?Oqueera?— Nada de especial, Maria Júlia. Descobri que ainda tinha uma estante cheia de livros que,

evidentemente,jánãopossoler,eiaperguntar-teseosquerias,sóisso.Masfalamosdepois,agoraestounoBrasil,comotedisse.

—Ah,pois...Obrigadapelatuagenerosidade,Clarinha.Nemseiquetediga.—Nãodigas.Atédepois.—Umbeijo,minhaquerida.Diverte-temuito.— Ainda não tendes advertido, que a inveja faz grande diferença dos mortos aos vivos, e dos

presentes aos passados? Os olhos da inveja são como os do Sacerdote Heli, dos quais diz o Textosagrado, quenãopodiamver a luzdoTemplo, senãodepoisque se apagava:Oculi ejus caligaverant,necpoteratviderelucernamDei,antequameoctingaeretur.Enquantoasluzessãovivas,cadareflexodelaséumraio,quecegaosolhosdainveja:porémdepoisqueelasseapagaram,emuitomaissesemetemlargosanosemmeio,entãoabrea inveja,comoavenocturna,osolhos;entãovêoquenãopodiaver:entãoveneraecelebraessasmesmasluzes,elevantasobreasEstrelasseusresplendores.PorissodissecomgrandejuízoS.ZenoVeronense,quetodooinvejosoéinimigodospresentes,eamigodospassados:In omnibus se inimicumpraesentium servat, amicum vero pereuntium. Os mesmos que agora amam, eveneram tanto a Santo António, se viveram em seu tempo, o haviam de aborrecer e perseguir; e asmesmas maravilhas, que tanto celebram e encarecem, se foram obradas na sua Pátria, as haviam deescurecer.

Marcosarrebanha-nosparadentrodoônibus:

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—Depressa,gente,quetemosmuitabelezanosesperando.Antesde seguirmosparaoCentroHistórico,mais conhecidoporbairrodoPelourinho,pararemos

rapidamente no Forte de Santo António, para que possamos tirar umas fotografias. Por questões dedefesa, os portugueses cercaramSalvador de fortes, de quinhentos em quinhentosmetros.Hoje, essesfortes estão cercados de vendedores ambulantes. Marcos adverte-nos que, no meio dos vendedores,existesempreumlarápiotentandoasuasorte,erecomenda-nosumespecialcuidadocomascarteiras.

—CompraumcolarzinhopraNeuzaaqui,quedásorte.Compra,senhora.—Esseportuguês,dantes,levavatudo—perguntava:quantoéobraço?Eagenteialogopracasa,

comavendafeita.Agoranãolevanada.Parecepobrequenemnós.—Ajudaobaiano,vai,queobaianotambéméportuguês.—LevaumaestreladomardaBahiaqueatraiosucesso,madama.—Fotografou,temquepagar,messiú.Eonossotrabalho,adignidadedobaiano,comoé?—Pasd'argent.Nomoney.No,pardon.—Nãotemdinheiro?Nãotemprobrema,patrão,pagaemeuro.—Éumjovembailarinodecapoeiraquerefilacomumfrancêsqueacaboudeofotografar,aeleeao

seugrupo.— Se o Pranto e o Riso aparecessem neste grande teatro no traje da verdade (sempre nua), sem

dúvidaseriaavitóriadoPranto.Masvestido,ornadoearmadodeumatãosuperioreloquência,queoRisoseriadoPranto,nãoémerecimento,foisorte.Detudoquantorisaiuvestido,ornadoearmadooRiso: riem-se os prados e saiu vestido de flores: ri-se a Aurora, e saiu ornado de luzes; e se aosrelâmpagose raios chamouaAntiguidadeRisusVestae, etVulcani, entre tantos relâmpagos, trovões eraiosdeeloquência,quemnãojulgaráaomiserávelPrantocego,atónitoefulminado?Taléafortuna,ouanatureza,destesdoiscontrários.PorissonasceoRisonaboca,comoeloquente,eoPrantonosolhos,comomudo.

EstamosnaactualCatedralBasílicadaBahia,antigaIgrejadoColégio.Vemosafamosacadeiradejacarandá,queatradiçãoasseveraterpertencidoaoPadre,eacelaondeteriavividoemorrido.Aquisecumpriu,comtodaasolenidade,acerimóniafúnebredeVieira,comapresençadogovernador,D.JoãodeLencastre, e do bispo eleito deSãoTomé,D.António daPenhadeFrança.Dizes queVieira teriaficadonasepulturan.°14,àdireitadoaltar-mor.Estamosprecisamentenesselugar.Peçoajudaaogrupoparaafastarumtapete,umasbandeiraseunsfioseléctricos.E,defacto,eisasepultura14-Estavaali,bemescondida.Dizes-mequenãomeiluda,Clara,queaíjánãorestamaisdoqueamemóriadeVieira.Ocorpofoiretiradoparaparteincertanaépocadaexpulsãodosjesuítas,enuncamaissesoubedele.Dizes-mequepouco importao lugardoscorpos.MoraaindaaquioespíritovivazdomeninoAntónioVieira, que neste lugar aprendeu a ler. E, sobretudo, aqui encontrou, entre os frades missionários, oestímulo para pensar tudo, até ao fim.OColégio dos Jesuítas seria, naquele tempo e noBrasil, umaescolavanguardista.

Demócrito ria sempre: logo nunca ria.A consequência parece difícil e é evidente.ORiso, comodizem todos osFilósofos, nasce da novidade e da admiração e cessando a novidade ou a admiração,cessatambémoriso;ecomoDemócritoseriadosordináriosdesconcertosdomundo,eoqueéordinárioesevêsemprenãopodecausaradmiraçãonemnovidade;segue-sequenuncaria,rindosempre,poisnãohaviamatériaquemotivasseoriso.

Peço-tequevenhasdarumpasseiocomigoatéàbeira-mar,Clara.Aceitas.Háumchoroquechamaportidentrodatuavoz.Hátantotempo,sim—sóagoraoouves,Clara?Digo-tequenaquelaoutranoite,quandomefugiste,acabeiporvaguearàbeira-maratédemadrugada.Viparesdenamorados,gruposdebêbados... E uma escultura queme arrepiou,Clara.Nem era bem uma escultura, na verdade era umapedratumular—masfeitadeardósia,aardósiadosquadrospretosemqueascriançasescrevem.

Aoladodapedraexisteumacaixinhademetalondeestáescrito:«Giz.»Edentrodacaixahávários

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pedaços de giz branco e um apagador. Para que cada pessoa possa escrever o seu epitáfio. Porque oepitáfiorealestánumalaje,embutidanopasseioaolado.Edizisto,queagora,juntodapedratumular,teleio-.

—«AquijazAlexandreEmanuelFariaViana(8.5.2001—18.8.2003).Antesdemorrereleaprendeua dizer "eu te amo", "por favor", "obrigado" e "perdão". Acreditamos que entendeu o sentido destaspalavras.Morreunomar,umlugardequegostavamuito.Mantemo-nosnaTerraparahonraraluzdasuapresençasobreela.TatianaeEmanuel.»

Trouxe-teaquiporquequeria contar-tequemateiumapessoa,Clara.Perguntas-me, comumfiodevoz,setambémeutiveumfilho.

Não,Clara.Apenas omeumelhor amigo. Tínhamos vinte anos, vínhamos de umbar,já um bocadocambaleantes,eupedi-lhe para conduzir, peguei no carro dele, acelerei ematei-o.Dizes-me que não omateidepropósito.Nemporissoeleestávivoeeumorto,Clara,comoseriajusto.Declarasquenãonosfoidadodeliberarsobreajustiçadomundo,massobreoAmor.Comoumapedrapreciosaquetemosdeprocurarnumarealimenso.

Digo-tequeseiondeestáaminhapedrapreciosa.Dizes-mequenãoseinada,queoarealcomeçadentro domeu próprio sangue. Dizes-me que ainda nem comecei a procurar e que tenho de começarprecisamenteporesseamigoquemorreu; tenhodeperdera raivadeo terassassinado.Dizes-meque,enquantomesentirumassassino,nãoconseguireiamarninguém.Nãoseiporque tecontoestascoisas,Clara.

Háchorarcomlágrimas,chorarsemlágrimasechorarcomriso:chorarcomlágrimasésinaldedormoderada;chorarsemlágrimasésinaldemaiordor;echorarcomrisoésinaldedorsumaeexcessiva.

Seiqueestascoisassãofáceisdedizer,Sebastião,mastensdefazerumesforçoporacreditarnelas.Avancemos, que a excursão jávai longe.Marcos explicaque a construçãodo conventodoCarmo foidemorada:iniciadaem1586,sóficouconcluídaem1780.Oconventochegouaserumautênticoquartel-general.Atrásdassuasmuralhas,osportuguesescombateramaprimeirainvasãoholandesa.Asjanelasdopisotérreoserviramdeseteiras,edaliconseguiramsitiaredesgastaroinvasor,atéque,em1625,osholandeses tiveram de assinar aqui, neste mesmo convento, a sua rendição. Conto-te que a invasãoholandesa levou grande parte da população de Salvador a esconder-se nomato.AntónioVieira tinhaentãodezasseisanos,esaírahaviaumanodacasadafamíliaparaoColégiodosjesuítas,comgrandedesgostodopai.Afugaaosholandesesproporcionou-lheoprimeirocontactocomosíndios,eVieira

aproveitouessainesperadaestadianumaaldeiaíndiaparacomeçaraaprenderosidiomasnativoseaproximar-sedaquelaoutracivilização,queofascinoueofezmeditarsobreaunidadefundamentaldanaturezahumana,paraládavariedadedasculturas.ComentasqueosbravoscombatentesdoséculoXVIIficariammuitosurpreendidossesoubessemqueessafortalezaguerreiraviriaatransformar-se,noséculoXXI,nohoteldeluxoquehojeoconventoé.Ris-te?porummomento,tornasaseroSebastiãodequegosto. Respondo-te que, de certa maneira, os turistas são também invasores; espalham o vírus doexotismo. Informas-mequea sacristia, belíssima, é todapintadaaouro.Equeestamosdiantedeumapeça de uma beleza arrasadora: um Cristo Atado na Coluna, portentosamente esculpido emmadeira,cravejadode rubis.Cadarubiéumagotadesanguecintilante—comoseoescultor tivesseembutidonestapeçapreciosa todaadordasuavidadeescravo,porqueestaéaobradeumescravodoséculoXVIII, Francisco Chagas, conhecido como O Cabra. Pergunto-te se lhe posso tocar, dizes queinfelizmentenão,porqueestáprotegidoporumavitrine.Murmuras-mequeseopudesseacariciarveria,melhordoquequalquerpessoacomolhos,aperfeiçãoabsolutadestaescultura.Acrescentasquesólhefalta respirar: músculos, tendões retesados, pele retalhada. Afirmas que esta imagem contém emsimultâneoo louvordocorpodivinoeohorrorperante a torturahumana.Peço-tequenãodigasmaisnada,equemedeixesficaraquiumbocadinho,asós.Sintoumavozflutuandonestelugar,umavozquemeprocura—masnãopossodizer-teisto,Sebastião,nãoqueroquemetomesporlouca.Sesoubesses

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queouçovozes,quetragodentrodemimvozesquedesconheço,nuncamaisseriascapazdevoltaràtuavida,quenãoéaminha.Já tebastamas tuasmortes,queridoSebastião.Tupodesressuscitardos teusmortosnaglóriaefémeradomundovisível.Tunãoprecisasdesombrasnemfantasmas—vaiSebastião,regressaaoteucéuazul,deixa-meescutaroquetemparamedizeravozquenestelugardemortosmeprocura.

—Dona.PelaschagasdosenhorJesuscrucificadoquenestacasaescurarepresento,escuteoqueeutenhopralhefalar,enãoémuito,não.Nãofaçamaisturismo,não.Oportuguêséquenemessasigrejasbarrocasqueamãodagentefezamandadodele:brancolisoporfora,etodo

emaranhadolápelosinteriores.Emvezdecolocaravaidadenoliso,colocanessabarbaridadedeouros,eficafácildepegarporespíritoruim.NofriodessasigrejasnãotemDeusnossosenhornemseussantosnemorixásnemsalvaçãonenhuma.SóosofrimentodosnegrosmilhõesdevezespregadosnacruzondeoCristobrancosofreuumavez.Nãoprecisaprocurarmais,não.SeudestinoeraaBahia,dona,enoseudestinoadonajáestá.Dizes-mequetemosdeir.Digo-tequejánãotenhodeiraladonenhum,Sebastião.Perguntas-meo

queéquesepassa,digo-tequedepoisfalamos.Eseguimosaexcursão.—OlhaafitinhadoSenhordoBonfim.Quecorvocêquer,querida?—Nãoqueronada,nãovejoascores.Soucega,largue-me.—Nãofalaassim,doçura.Nãofuja,não.Tadinha.Comovocênãovêacorvoueutedar.Branco,queéacordapaz,doSenhordoBonfimedeOxalá.Trêsdesejos,

belezura,trêsdesejosemsilêncio,depressa.Pronto,querida.Quandoafitinhaseromperseusdesejossetornamrealidade.Deuslheajude.Eosenhor,nãocompraumagradoprasuaamiga?

—Nãotemostempo,estamosnumaexcursão,vamosentrarnaigreja.—Entra,meubem,igrejabonitaéaquinaBahiamesmo.Depois,àsaída,vocêvemmeprocurar,vem

falaràSelma,eunãosaiodaqui.—Não,nãoquero.—Nãodizassim,«não»éumapalavratãofeia;dizquevaipensar,queassimnãofazdoerocoração.—Entremos,entremos,Clara.Pensastenostrêsdesejos?—Sótivetempodepensaremdois.Tambémfosteagarrado,Sebastião?—Muitomaisdoquetu.Quandodeipormimjátinhatrêsfitaspostas:duasnobraçodireitoeuma

noesquerdo.Ecobraram-mebem.Tambéméverdadequeumadasfiteirasestavagravidíssima,tivepenadela.

—Guaraná,whisky,água,champanhe,comesemgás!Virge!Hojeachoquevoumorrerdefome.Essesturistatãomuitofraquinho...Pintas-meaigrejadeSãoFranciscocomoumdelíriobarroco,comazulejosbelíssimoseforradaa

talha dourada do chão ao tecto. Depois entramos na porta ao lado, na igreja do convento da OrdemTerceira deSãoFrancisco.Comunicam-nos que esta é a igreja onde casa a elite deSalvador, que oscasamentossãoumadasfontesderendadaOrdem,emboraaOrdemprefiraaqualidadeàquantidade.Aigreja e as elites continuam, portanto, de mãos dadas. Esclareces-me que as paredes do claustro doconvento são forradas a painéis de azulejos azuis e brancos, preciosos — embora, nalguns casos,bastante danificados. Um dos painéis é particularmente valioso, porque se trata do único retratoconhecido do casamento de D. José I comD. AnaMaria Vitória de Bourbon. Revelas-me que estes

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azulejos mostram ao pormenor a paisagem e a vida de Lisboa no século XVIII, como se em bandadesenhada. Lamentas não saberes dar-mos a ver. Digo-te que não percas tanto tempo a ter pena,Sebastião. Sobretudo de mim. Vejo tudo aquilo de que preciso. Falei demasiado, como de costume,porquetuperguntasimediatamente:

—Eamim,seráquemevês?Quemtedissequeeuprecisodetever,Sebastião?Basta-mesaberqueexistes.Lembro-me da cor destas pedras queme atraiçoam os passos, Sebastião. São negras, irregulares.

Trazemecosdechicotes,avisãodosangueescravoqueerigiupaláciosecatedrais.Agarro-meao teubraço.VamosentrarnaIgrejadeNossaSenhoradoRosáriodosPretos.

—«Aigreja toda azul no meio da tarde, igreja dos escravos no largo onde se ergueram tronco epelourinho.Éreflexodosolouumlaivodesanguenochãodepedras?Tantosanguecorreusobreessaspedras, tantogemidodedorsubiuparaessecéu, tantasúplicae tantapraga ressoaramnasparedesdaigrejaazuldoRosáriodosPretos.»Vem istoa seramaisperfeitaeabreviadadefiniçãodessa igreja,senhora,talcomoconstadaobraTendadosMilagresdonossobabalaôJorgeAmado.Dáumamoedinhaaopretoleitor,quejátácomagargantasecadetantarécita.

Marcosexplica-nosqueestaigreja,iniciadanosprimeirosanosdoséculoXVIIIpelaIrmandadedeNossaSenhoradoRosáriodosHomensPretosdoPelourinho,foiconstruídaànoiteedelivrevontadepelosescravosqueforamforçadosaconstruir,diaadia,todasasoutrasdeSalvador.Precisoudequaseum século para ser concluída e tingir de azul o coração doCentroHistórico. Afachada, com frontãorococó,reúnetrabalhosdelicadosebelíssimastorres.Noseuinteriordestacam-seospainéisdeazulejos,osaltaresneoclássicosetrêsimagensdoséculoXVIII—deNossaSenhoradoRosário,SantoAntóniodeCartegeronaeSãoBenedito.Opaineldo tetoédeJoséJoaquimdaRocha.Nas traseirasda igrejalocaliza-seumantigocemitériodeescravos.Dizesqueasacristiapareceasaladejantardeumacasadefamíliamodesta,compãosobreamesa.Najanelaháumpapelcomestesdizeres:«PeçaàMãequeoFilhoatende.»Informas-mequenopátioháumaltarcomumasantaimpressionante,aestátuadorostodeumanegraaçaimada—Anastácia,queseriaumaprincesabantuqueveioparaoBrasilescravizada.Porseterrecusadoaseramantedoseudono,eparaquedeixassedepregarcontraaescravidão,puseram-lheumagargantilhade ferroe taparam-lheabocacomumaçaimede folha-de-flandres.Morreuem1838,vítima de gangrena, em consequência de tortura e maus-tratos. Como é que uma cidade tão bela foiconstruídaemcimadetantamaldade,Sebastião?

Adormoderadasoltaaslágrimas,agrandeasenxuga,ascongelaeasseca.Dorquepodesairpelosolhos,nãoégrandedor;porissonãochoravaDemócrito;ecomoerapequenademonstraçãodasuadornãosóchorarcomlágrimas,masaindasemelas,paradeclarar-secomosinalmaior,sempreseria.

Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira Filosofia e da experiência. A mesmacausa, quando émoderada e quando é excessiva, produz efeitos contrários: a luzmoderada faz ver, aexcessiva faz cegar; ador,quenãoé excessiva, rompeemvozes, a excessiva emudece.Desta sorte atristeza,seémoderada,fazchorar;seéexcessiva,podefazerrir;noseucontráriotemosoexemplo:aalegriaexcessivafazchorarenãosódestilaas lágrimasdoscoraçõesdelicadosebrandos,masaindadosforteseduros.

—Bem-vinda.—Obrigada.—Pediparalhefalar.OEmanuellhefalou?—Semedisse?Dissesim.—Quebom,meubem.Tenhocoisaspara te falar, avocêquecorrecomooventoaoencontrode

Iemanjá.Sentiualgumahoraaquelavontadefortedesejogarnomar?—Sim...achoquesim.Àsvezestenhoasensaçãoquemedeixariair.—Certavezfoisocorridaporum...cachorro.Toucerta?

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—OMondego,sim.—E,issofoiaíháunsquatroanos,depoisdoacidente.Vocêachavaquetinhaocoraçãocheiode

amorpelohomemquelhefezisso,nãoera,querida?—Ninguémmefezisto.Foiumtiroteio,umabalaatingiu-meefiqueicega.—Ah,minhafilha...Euvoucontarpravocê.Omartemvontades,comooventotemdesejos.Nem

semprehácomunicaçãoentrevontadesedesejos.Seuvento,detãoverdadeiro,podecarregarmentirasjunto com ele. Esse homem, António... não é?Mentiu para você e usou a sua cabeça para soprar avaidadedele.Porqueavidavemdopensamento.Éacabeçaquemama,mesmoquandoagentenãoquerpensar.Ocoraçãoéanossadesculpa.OTempoéumamedidadacabeça,enotempodessehomemnãohaviaoseutempo,querida.Nãoeraumhomembom.

—Comoéquepodedizerisso?Éabsurdo.Eunãoculponinguém.Alémdisso,oAntóniomorreunotiroteioenãoseofendemosmortosquenãoestãocáparasedefender.

—Temrazão,sãosábiassuaspalavras,mascêtemumdestinoeéessedestinoqueprecisacuidar.Essehomemmorreuporqueeraotempodele.Masnãofoiverdadeiropravocê.

—Aessênciadeleeraoutra.Aessênciaéamaneiradeser.Cadapessoavibranumadeterminadaesfera.Issonãotemrelaçãonenhumacomcultura.Vocêsedeixouimpressionarpelaculturaeruditadessehomem, mas para que a cultura e a erudição sejam formas de aprendizado têm que vir junto com asimplicidade.Essehomemnãoerasimples,não—eraumcomplicador, todoocontráriodeumsábio.Elefaloupravocêquetinhamulherefilhos?Enãofaloupravocêquedevolveriaodinheiroquevocêemprestou?Evocênuncafalouessascoisapraninguém,nãofoi?

— Não estou lhe criticando, minha filha. Quero apenas que siga o seu caminho. Na pedra daingratidãoafiaoamorassuassetasequantomaiorforadureza, tantomaisasafina. Istoescreveuumhomembom.

—Eusei,conheçoessehomembom.Quemlheensinouisso?—O senhor padre, na igreja, era eu bemmenina.Nuncamais esqueci, que eu não soumesmode

esquecernada.—Naigreja?Asenhoravaiàigreja?—Euvouem todoo ladoondeDeusNossoSenhor,ouos seus santosouosorixásqueiram falar

comigo.Agentenãodeveperderoportunidadedeouviradivindade,sejaondeforqueelaestiver,minhafilha.Sãoassimascoisas,amãeestásabendo.Tenhasempreáguadomaremcasa,nãocombataIemanjá.Façabanhosdesalgrossoquandotiversonhosruins.Cêaindasonha,nãoé?Poisentão,façacomoamãeestálhefalando,tenhaáguaemcasa,purifiqueocorpoeamentecombanhosdesalenãoseescondanascoisasdomundo.Temhoraemqueumapalavraéumaaçãoetemhoraemqueumanãoaçãoétambémumaação.Cêtámeseguindo,minhafilha?Precisasairdessecaminho.Estáseafogandoemtristezaeasondasdetristezasãodemasiadaspraocêengolir.

—Nãoseioquedizer.—Nãofalanada,meubem,nãofalanada.Presteatençãonoshomensquetemdoseulado.—Quem?OSebastião?Éumamigo.—Sim,umamigo.Eosamigossãoumadasmaioresbênçãosdomundo.Mastemoutrotambém,não

tem?—OEmanuel?OEmanuelnãoseiseestápropriamenteaomeulado.—Elepodelheajudar,minhafilha.Elesabeoscaminhos.—Easenhorasabeoscaminhos?—Alguns,algunspensoquesei.Masagoraatéseimaisporqueestouquenemvocê.—Comoeu?—Sim,estoucomoitentaetrêsanosejánãoenxergoquasenada.Nãofalamqueestouficandocega,

maseusei,euseimuitobemqueestou.Énobrancoinfinitodosmeusolhoséondeenxergoaspoeiras

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quecausamadanaçãodomundo.Enxergoatémelhor,agora.Vaiempaz,minhafilha,tentaconstruirapazeesqueceessehomem.Dêumachancepravocêepròseumundo.Talvezcêpossaaindaenxergar.Peguecadadiacomamão,devagarzinho.Nãoseafobeemviagens,nãoseperca.Anossaessênciachegaaténósatravésdoexercíciodaesperaedapaciência.QueDeuslhedêumbomdia,acadadia.

—Oagricultor,paracolherosfrutos,regaasplantas:oimpressor,paraimprimirasletras,molhaopapel;eassimodevefazercomaslágrimas,quemquerimprimirosseusafectosecolherofrutodassuaspersuasões.

Perguntas-me porque estou tão calada, Emanuel, tão triste. Tens medo que te estrague o filme,certamente. Não tenho nada para dizer. Perguntas-me se estou zangada contigo por causa damãe-de-santo,seeladissealgumacoisa...inconveniente.Digo-tequenão,masqueescusavasdelhetercontadoaminhavida.Dizesquenãocontastenada.Juras.Dizesquesabesmuitopoucodaminhavida.Pedes-mequepenseseelanãomedissenadaquetunãosoubesses,queeunãotetivessedito.Disse,Emanuel.Edigo-tequetambémmepodiasterditoqueelaécega.Perguntassefariadiferença,digo-tequetudofazdiferença.ElasabiatudosobreoAntónio,mesmocoisasquenuncatedisse.E,alémdomais,dissemaldele,dissequeeraumdemónio,márês.Queeracasadoecomfilhosequemetinhausadoequeeutinhaficadocegaporcausadamaldadedele,comoumreflexodamaldadedele.Percebes?Comosetivessechegadootempodele,masfossenecessáriodeixarcáumaassinaturadasuapassagempelomundoeessaassinaturafosseaminhacegueira.Estacoisaquemefazpediratortoeadireitoquemedigamsepossoatravessararua,sealiéacasadebanhodoshomensoudasmulheres,mijardeportaabertaporquenãoseiondeficaotrinco,ouvirasnotíciasenãovernada,nada,nada.Percebes?Querolerumlivroenãohá. Impressoembraille,quasenuncahá.Nãoposso irescolherroupasozinha,porquenãomevejodooutroladodoespelho,omeucorpo,omeurosto.

Estouaperderosmeusúltimosanosde juventude,apossibilidadedemehabituarnovagardeumespelhoaoespectrodaminhavelhice.EstouaperderaPrimavera,ascoresdaPrimavera,ascoresdetudo,o sorrisodos filhosdosmeusamigos,osolhosabrilharquando lhesdou istoouaquilo, istoouaquiloquetemdesercompradocomajudaporquenãopossoirsozinha,porquenãopossoandarsozinha,porquetenhoqueaturarestacoisadedependerdacaridadealheia,deaplacaracaridadealheia.Porqueestoucansadaegostavadeconseguiracreditarque,porumavez,tinhaconhecidooamorverdadeiro.Emvez deme suicidar de desgosto, faço o esforço de sobreviver para celebrar esse amor, para ser umapessoa inteira, e o que é que ganho?Umamãe-de-santo a revelar-me que afinal omeu amor era umescroque,casadoecomfilhos.Comosfilhosqueeujánãoterei.Umescroquequemetiroudinheiroqueeunãotinha.Percebes?

EramaslágrimasdeHeraclito,comoaágua,quecaindopoucoapouco,vailimandosuavementeosmármoreseenfimosrompe.Nãodigoeusomenteosmármores:

Lacrimisadamantamovebis,dizatrevida,masverdadeiramente,Ovídio.Aslágrimas,comolhechamouomelhorFilósofodaGrécia,sãosangueda

alma;eeste(nãoooutrofabuloso)éoquelavraosdiamantes.—Tensacertezadequeamoradaéesta,Clara?—Tenho.Nãomeiaesquecerdamoradanemquepassassemmilanos.—Tuéquesabes.—Éumprédioaltocomumaportadeferrotrabalhado?Temumporteiro?—Sim,Clara,éissotudoetemoporteiro.Eagora?—Agora?Agora,Sebastião,voufalarcomele.Jásabesqueaumaceganãoserecusanada.—Clara,ofactodeconfirmaresocasamentodoAntónionãotevaitrazernada.—Vai,vaitrazer-meapazdeespíritoqueaquelamãe-de-santoondefuimeroubou.—Tambémaindanãopercebiporqueéquetefostemeternessascrendices.

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—Nemeu,Sebastião.Nãopercebi,nemqueroperceber.Sóquerosaberaverdade.—Averdade,Clara...queinteressaaverdadedeumhomemquejámorreu?Tuestásviva,Clara,a

tuavidacontinua.—Olha,Sebastião,parecesaminhamãeafalar.—Provavelmenteporque,comoela,sóquerooteubem.—Muitodomaldomundovemdegentequesóquerobemdosoutros.Sobreoqueéomelhorpara

asmulheres,eemparticularparaasdeficientes,todaagentetemimensasideiasprontas.Esquecem-seédeperguntarseessebemquequeremparaelaslhesparecebemaelas.Estoufarta.Farta,farta.

—Fartademim,também,Clara?—Também,Sebastião.—Sabesumacoisa,Clara?Vaisficaraqui,emplenocoraçãodacidadedeSãoSalvadordaBahia.

Tensumapassadeiraà tuaesquerda.Estou farto, tambémeu.Seprecisaresdemim, tenhoo telemóvelligado.Aocontráriododeoutraspessoas,omeuestásempreligado.

—Sebastião?Não residem as lágrimas só nos olhos, que vêemos objectos,mas nosmesmos objectos, que são

vistos;aliestáafonte,aquiestáorio;alinascemaslágrimas,aquicorrem;eseasmesmascoisasquenãovêem,choram,quantomaisrazãotemohomemquevêesevê?

—Ah,ocaradoterceiroG?Sim,eraoprofessorAntónio.Sumiu,foicomosanjoseosbandidosnum tiroteio. Faz um tempão. Parece que até foi um cara valente, quis defender dos bandidos umasmeninas.

—Umherói,sim.—Podeser,madama.Todoohomemtemseumomento.Mas,prafalaraverdade,eununcagosteido

cara.Erameiovidradonelepróprio,cheiodenovehoras,todogrifadodospésàcabeça.—Grifado?—É.Grifado,sóvestiaroupadegriffe.Eunãosouhomemquesecuidemuito,éverdade,masassim

tambémachofeio,semprecheiodegriffe.Nempareciaumcaramacho,pareciaeraumavitrinedelojagrã-fina.Amadamaconheciaele?

—Eleviviaaquinoedifíciohámuitotempo?—Nãofazmuitotempo,não.OprofessorcasoucomdonaClara...—Clara?—É.Umamulherqueéumasanta.Famíliacomgrana,coisaboa.DonaClaraédonadissoaí,do

prédiotodo.Oprofessor—sabequeeunemseiseocaraeramesmoprofessorado—casoueveioviverpr'áqui.Depoisveioacriançadaeassim.Eleviajavamuito.Achoquetinhamuitacoisarolando.

Dinah trabalha para a dona Clara há muito tempo, desde que ela era criança, e não gostava doprofessor.Nãogostavanada,não.Diziaqueele tinhaumfeitiçoruimequenãodavaprarespeitarumhomem que vivia pendurado na grana da mulher. Uma vez escutei o cara falando no celular que sópaqueravamoçachamadaClarapranãoseenganar.Eocararia,riamuito.PareciaFalabella.AmadamasabequeméoactorFalabella?FalametácomomaiorsucessoláemPortugal.

—Sei,seimuitobem.VaimuitoaPortugal,sim.—E.PortugaleBrasilsãoduasjóiasdomesmoanel,nãoémesmo?—É.—AmadamaquersubirprafalarcomdonaClara?Cuidoqueelaestáemcasa.—Não,obrigada.Nãoépreciso.—MaspramimfalarpradonaClaraqueasenhoraesteveaqui...comoémesmooseunome?—Clara.Comoasoutras.Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da natureza; prodigioso artifício da

Providência!Eles são aprimeiraorigemda culpa; eles aprimeira fontedaGraça.Sãoosolhosduas

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víboras,metidasemduascovas,equeatentaçãopôsoveneno,eacontriçãoatriaga.SãoduassetascomqueoDemóniosearmaparanosferireperder;esãodoisescudoscomqueDeusdepoisdeferidosnosreparaparanossalvar.Todosossentidosdohomemtêmumsóofício;sóosolhostêmdois.OOuvidoouve,oGostogosta,oOlfactocheira,oTactoapalpa,sóosolhostêmdoisofícios:VereChorar.Estesserãoosdoispólosdonossodiscurso.

Ninguémhaverá(se tementendimento)quenãodesejesaberporqueajuntouaNaturezanomesmoinstrumentoaslágrimaseavista;eporqueuniunamesmapotênciaoofíciodechorar,eodever?Overéaacçãomaisalegre;ochoraramaistriste.Semver,comodiziaTobias,nãohágosto,porqueosabordetodososgostoséover;pelocontrário,ochoraréoestiladodador,osanguedaalma,atintadocoração,ofeldavida,olíquidodosentimento.Porqueajuntoulogoanaturezanosmesmosolhosdoisefeitostãocontrários,verechorar?Arazãoeaexperiênciaéesta.AjuntouaNaturezaavistaeaslágrimas,porqueaslágrimassãoconsequênciadavista;ajuntouaProvidênciaochorarcomover,porqueoveréacausadochorar.Sabeisporquechoramosolhos?Porquevêem.

Não, não quero ouvir-te Sebastião. Não vou sequer responder-te. Não falarei com ninguém, estanoite.Basta-meescutar.Escutar,nãotantoasuperfíciedasconversas,masadorquedentrodelasnada,silenciosamente.Ospianistasconfessam-senasteclas,nomododeatacarasnotas.SeiquemsãoAdrianoJordãoeTheodorParaschivescu,conheço-lhesainfânciaeossonhos,porqueosouvitocar.Nomeiodatagarelicedestarecepçãoconsularcontinuoaopianocomeles,semqueelesdêempormim.Esqueçam-sedemim, todos, esta noite. Esqueçam-me. É impossível a uma cega tornar-se invisível. Ah, a terrívelbondade daqueles a quem nenhum sentido falta. Esmagam-me de compaixão. Falam-me alto,espaçadamente,comoseeutambémfossesurda.Agarram-menobraço,continuamente.Queriaconheceralguémquetivesseasensibilidadedemetocarapenascomoolhar.Euseiquandoolhamparamim.Masprecisamente eles evitam olhar paramim, não se olha uma aleijadinha.Deixem-me entrar nos vossosrisos,deixem-meserigualavocês.

Perguntas-meporquechoro.Aindabemquechoro,Sebastião.Ésinaldequeosmeusolhosaindaservemparaalgumacoisa.Escoamonaufrágiodomeucoração.Pedes-mequedeixequemesequesaslágrimas, e começas a beijar-me os olhos—mas já não há beijos que possam acender-me os olhos,Sebastião.Rogas-mequetedeixeamares-me,sóestanoite.Prometesqueamanhãdemanhãvoltarásaseroamigoqueeuquero.Masé semprecomoamigoque tequero,Sebastião.Nãopossoperder isso,oupercotudo.Amanteshámuitos,esboroam-secomamadrugada.Dizesquemedesejasmuito.Tanto.Peço-tedesculpa.Seiquenãodeviater-temetidonestasituaçãoambígua.Empurro-teparaavaranda,querofumar um cigarro. Ralhas-me por fumar demais. Sim, Sebastião, por issomesmo é que fiquei cega.Insistoemquevenhasparaavaranda,respirasfundoeissopassa-te.Afiançasquenãopassanunca.Queatravessasasnoitesemclaroaolharparamim,aguardaromeusono,atentaradivinhar-meossonhos.Esse teu programa de cinema parece-me um bocadinho monótono, Sebastião. Pedes-me que nãodesconverse.Nãotenhocomonãodesconversar.Amo-tecomoamigo,Sebastião.Acreditaqueéesseoamorquedura.Dizes que amedidada duração é a intensidade.Dizes queo tempo é umamedidadosentimento,nãodosdiasquepassam.Dizesqueosamigostambémsedeslaçam,perdem-se.Tambémeuperdivários,notempoemqueacreditavaqueaamizadepodiasermúltiplaeinfinita.Agorasótetenhoati, e não quero perder-te a troco de uma noite de sexo. Porque sei que te perderia, Sebastião. E nãoaguentomaisperdas.Hápessoasqueeuconsideravaminhasamigasequenuncamaisvidesdequedeixeidever.Esfumaram-senoar,Sebastião.Restam-meosmortos,osmortosquemefalamcomaspalavrastransparentesqueescapamaosvivos,osmortosquesabemquemeusou.Atraioamorte;é issoque teatraiemmim.

VedequemisteriosamentepuseramaslágrimasnosolhosaNatureza,aJustiça,aRazão,aGraça.ANaturezapararemédio;aJustiçaparacastigo;aRazãoparaarrependimento;aGraçaparatriunfo.Comopelosolhossecontraiamáculadopecado,pôsaNaturezanosolhosaslágrimas,paraquecomaquela

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águaselavassemasmanchas:comopelosolhosseadmiteaculpa,pôsaJustiçanosolhosaslágrimasparaqueestivesseosuplícionomesmo lugardodelito:comopelosolhosseconcebeaofensa,pôsaRazãonosolhosaslágrimas,paraqueondesefundiuaingratidão,adesfizesseoarrependimento:ecomopelos olhos entram os inimigos à alma, pôs a Graça nos olhos as lágrimas, para que pelas mesmasbrechasondeentraramvencedores,osfizessesaircorrendo.EntrouJonaspelabocadabaleiapecador;saíaJonaspelabocadabaleiaarrependido.RazãoélogoeJustiça,enãosóGraça,senãoNatureza,quepois os olhos são a fonte universal de todos os pecados, sejamos rios de suas lágrimas a satisfaçãotambémuniversaldetodos;equepaguemosolhosportodoschorando,jáquepecaramemtodosvendo:Quofontemanavitnefas,Fluentperenneslacrimae.

EstamosnavarandadoGabinetePortuguêsdeLeitura,nocentrodaPraçadaPiedade.Nestapraçaforamesquartejados, em1798, quatro negrosmártires da revolta da InconfidênciaMineira.Umdeles,Luís Gonzaga das Virgens, celebrizou-se por ter respondido à pergunta: «O que é a liberdade?» daseguinteforma:«Aliberdadeéadoçuradavida.»ÉessevisceralentendimentodaliberdadeoquefazagraçaeagarradoBrasil—e,emespecial,daBahia.PerguntasaMarcosseorapazqueestánumbancodojardimafalarnocelularnãoéumdospossuídosdaoutranoite,nocandomblé.Marcosconfirma:ocavalodosorixásé,navidareal,professoruniversitáriodeSociologia.TodoodiscursodeMarcoséestruturadodeformaaconvencer-nosdeque,lábemnofundo,sóosorixássãoverdade.Agoramesmo,embrulha-se numa discussão interminável com um católico do grupo, acerca do que se entende comoalma, porque se lembrou de dizer que o catolicismo dos tempos esclavagistas considerava os negroscomo desalmados. A estratégia deMarcos assemelha-se à dos laicos produtores daquilo a que hojechamamosinformação:usaasmaiúsculasdaHistória—umasenhoradecostaslargas,emuitosambista—deacordocomassuasconveniências.AntónioVieiraprocuroufazeromesmo—masatorrentedogénioarrastava-lheopensamentopara ládascircunstâncias,eeleacabavasempreporescreversobreessa matéria escaldante, carnal e enigmática, que é o coração dos Homens. Existam ou não Deuses,santoseorixás,arealidadeéqueMarcos,aoqualoinclementeOxalufamproíbequalquercontactocomomar,ficoudefactodoentedepoisdeterapanhadounspingosdeonda,natravessiaqueasuavidarealdeguiaoforçouafazerontematéàilhadeItaparica.

Em frente à varanda do nosso hotel está umhomem sentado a ler, encostado a um cartaz que diz:«Vamosmudaromundo.»Dizesquenãosabiasqueaindaseescreviamcoisasdestas.Aindabemqueseescrevemcoisasdestas,Sebastião.Queseriadenós semabanalidadedautopia?Afirmasqueosquequeremmudaromundo,assimdeumavezsó,acabaminevitavelmenteporotornarpior.Digo-tequenemtodos. Lembro-te outra vez António Vieira: mudar, aperfeiçoar, ter noção dos limites e dasresponsabilidades,viveremfunçãodooutroporqueénooutroquesomosmelhores.Argumentasqueissoémuitocristão.Emuitocomunista.Eumbocadinhodemagógico.Repetes:Clara,Clara.Perguntassenãopoderia eu deleitar-me com algo mais moderno. Decides que o Padre António Vieira, com os seusdelírios de umQuinto Império, é uma figura de alucinado. Um doido. Digo-te que não há nadamaismodernodoquealoucura.Acrescentoqueessatuafénoabsolutodaciência,essaconvicçãodequeavidapodeserentendidaapartirdomicroscópio,tambémpodeserumaloucura.Ouumafraqueza.Falasdas intuições de António Vieira como de char-latanices, Sebastião, e isso é-me insuportável. O seusonhadoQuintoImpériopodeparecer-noshojemuitodatado,masaformacomoeleodescreveeoidealque nele representa émuitomais vasto do que isso.A tua perspectiva puramente visual dá-me raiva,Sebastião.

Anotasquearaivametomademasiadoespaço,eépena.Pena.Jánãoconsigoouvirapalavrapena,Sebastião. Chamas -me querida,minha querida, dizes que a raiva acaba por ser uma prisão como asoutras.Digo-tequeondehásereshumanos,háprisões.Vejoorelógio,estouaficaratrasada,começoamaquilhar-me.Confessasqueé extraordináriover comoeumemaquilho.Pergunto-te se também tedápena. Se estou a borrar a pintura.Dizes que não, indagas porquemepinto, se vou sair. Sim, vêm-me

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buscar, Sebastião. E trazer, não te preocupes. Queres saber se regressarei a tempo de ir ao teatroconvosco,comogrupo.Sebastião,Sebastião,achasqueumespectáculodedançaéumbomprogramaparamim?Achas?Balbuciasqueháamúsica.Easvozes.Nemsempreissomebasta,Sebastião.Digo-te:

—Diverte-te.Tacteioaporta,esaio.NotávelFilosofiaéadosnossosolhosnochorarenãochorar.Sechoramos,onossoverfoiacausa;

e senãochoramos,onossoveréo impedimento.Comoestesnossosolhos sãoasportasdoveredochorar,encontram-senestasportasaslágrimascomasvistas;asvistasparaentrar,aslágrimasparasair.Eporqueaslágrimassãomaisgrossas,easvistasmaissubtis,entramdetropelasvistas,enãopodemsairaslágrimas.Vistesjánasbarrasdomar,encontrar-seaforçadamarécomascorrentesdosrios;eporqueopesodomarémaispoderoso,vistescomoasondasentram,eos riosparam!Poisomesmopassanosnossosolhos.Todososobjectosdestemarimensodomundo,emaisosquemaisamamos,sãoasondas,queumassobreoutrasentrampelosnossosolhos;eaindaqueaslágrimasdosmesmosolhostenham tantas causas para sair, como o sentido do ver, podemais que o sentimento do chorar, vemosquandohavíamosdechorar,enãochoramos,porquenãocessamosdever.

Depois de tu saíres, Clara, assisti a uma conversa interessante, na televisão, com um economistachamadoRichardLayard,queanalisavauminquéritointernacionalsobreaconfiança.OBrasilficouemúltimolugar,porqueapenascincoporcentodapopulaçãoafirmavaconfiar,àpartida,nasoutraspessoas,contrasessentaequatroporcentonaEscandinávia.EexplicavaquesóasubidadessapercentagemdeconfiançapoderiafazercomqueaeconomiadoBrasilflorescesse.Declarasqueoatrasoeconómicoétambémumaformadelutarcontraumaescravidão.Afirmasquecincoporcentodecentoeoitentaeoitomilhõesdepessoasaindaémuitagente.

Estás enervantemente bem disposta. O teu optimismo já entrou na fase supra-humano. Tento serirónico,aventoquequalquerdia,senãotenscuidado,tetornasumasanta.CitasMillôrFernandes:«sersanto é uma ambição pecaminosa», e dizes que posso ficar descansado, porque não tens nenhumatendência para o sacrifício. Juras que gostas muito do prazer, da vida, do calor, do mar, das coisasquentes.Esclarecesquetambémgostasdedificuldades,éoteuvício.Dizesqueémaisfácilser-seumbisonho domesticado do que um feroz alegre. Dizes que a tristeza tem um carisma instantâneo que aalegriasóatingedepoisdemuitosofrida.Alegasquenãosepodedizerqueaalegriaseja,noBrasil,umadisciplina, porque o Brasil é indisciplinado por natureza; em vez de macaquinhos no sótão, temmacaquinhospulandoparadentrodasjanelasemplenoRiodeJaneiro.Digo-teque,noBrasil,amortepula para dentro da vida em qualquer canto de bairro. Recordas-me que sabes isso melhor do queninguém.Euseiquetusabes,Clara—sóqueriaapagaressesorrisoradiosoquetutrazesdarua,essesorriso que contraíste longe demim, nos braços de outro homem, cega, cega, cega ao amor cego quetenhoporti,cegaaomeusofrimento.Clara,Clara,porquemearrastastecontigoparaesteinferno?Dizes-mequeestáscansada.Quevaisdormir.Equeamanhãeusigosemti,porquetuficasnaBahia.Nãopodesfazer-me isto. Lembro-te que me meti nesta viagem por causa de ti. Pedes-me que não te cobre.Relembras-mequetedisseinúmerasvezesqueestavaaadoraraexcursão.Adoro-teati,Clara—nãovêsisso.Nãoireisemti.Dizes-mequefaçaoquequiser,masficarásaquisemmim.Pergunto-teoqueficarása fazersozinhaemSalvador.Dizes-meque jánãoestássozinha.Pedes-mequenão teperguntemais nada.Garantes que nos apanharás na viagem de regresso a Portugal. Pergunto-te se nosmetestenesta excursão para te livrares demim.Replicas que vais fazer de conta que nem ouviste esta frase.Depoisviras-mecostas,deitas-teedesejas-me:—Bonssonhos,Sebastião.

E seme perguntarem os Filósofos, como podia o desejo fazer eternos aqueles dias, sendo de tãopoucosmeses?Respondo, queomodo foi, e a razão é, porqueos desejos daSenhora, e osOOdosmesmosdesejos (que também são rodas) unidos e acrescentados à rodado tempo, postoqueo tempo

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fossefinito,elesomultiplicavaminfinitamente.

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IV

ANTÓNIOVIEIRA,SERMÃODENOSSASENHORADOÓ

Nãomeprocureisondeeunãoestou,Clarasenhora.NuncatomeioMaranhãocomomorada,apenasporlámefoidadopenar,porentrecoraçõesdepedraqueoescoprodasminhaspalavrasjamaissequerlogrou arranhar, quantomais quebrar. É necessário trabalhar com a língua, dobrando-a, torcendo-a, edando-lhemilvoltasparaqueelachegueapronunciaraescuridadequeescorraçadesimesmaaalma.OMaranhão foi uma escada de paciência na impaciência do meu percurso terreno. Fiquei grato àdesumanidadequemeforçouaotalherijodaspalavras—masdequevaleramessaspalavras,senãodebálsamoàminhapóstumavaidade?Quealguémcomovósbusqueaindanasminhasletrasalgumaluz,éum sinal de queo amorque entre elas pobremente estremecia transporta ainda a cor do sanguedesseJesusCristo que se deixou crucificar para descrucificar a humanidade. E esse amor o que perseguis,senhora, cuidandoqueo encontrareis naminhahistória.Tanto enganopor adoração de enredos! Jesuspregavaporparábolasepoucossouberamleraimobilidadedosfactosdaalmapordetrásdosmeandrosdas parábolas— e assim permanecem os homens de hoje, fixos nos acontecimentos e incapazes depenetrarnoesplendoríntimododesacontecimentoqueéaalma.

Perdoai-mequevosinterpelecomosevosfosseoíntimoamigoquequereisveremmim:amaríeisessehomemmortosenãovostivessemorridoneleofulgordosolhos?Amaisohomemouocírculodavidaqueneledesenhasteinteiro?Amaisohomemouaesferaabstractadavossaalmaprojectadanele?Amais esse outro homem no qual procuras serenar a efémera veemência da carne, ou amais a vossaimagemprojectadanodesejodele?Cuidaiqueemcadaespelhoespreitaumdemóniomudo—eocorpocarnaléomaiscurvodosespelhos,quemnelesemiramaisseadmiraedistrai,maisseapartadoseupoderdedescobrimento.Amaisquemamas,ouquemsabesquejánãopodepedir-vosnada?Buscais-mea mim ou o sentido da vossa existência nas minhas circulares pregações? Procurai a vossa esferaparticular,senhora,quenãoéadasminhaspalavrasnemadostrilhosdosoutros.Procurai-apelosolhosdentro,queparaissovosretirouDeusosolhosdefora.Conheceisjáadorcomoúnicoremédiodobemperdido;étempodereconhecerdesqueomaiorbemperdidoéadorqueseperde.Enãovosdesfaçaisdestaspalavrasque emverdadevosdigo, como sedeumsonho.Sonhoé aquilo aque chamaisvida,sonhosãoasfrasesquearrancais,comoconstelaçõesórfãs,àharmoniacelestedosescritosqueamãodeDeusmeconfiou.

AbandoneiogrupodeseguidoresdeAntónioVieira,enoentantoavozdeleressoacontinuamenteemmim.Avozdele,ouavozdomeusonhodele?Lancei-meparaailusãodaviagem,comose,deixandoomundoconhecido,pudesse tornar-meeu tambémumadesconhecida—cegadenascença,capazdevercomooscegosvêem.Porém,arrasteiopobreSebastiãopara estaviagem,comoquem transportaumamaletadecosméticos—parateroconfortodoscremeseperfumeshabituais,lánonovomundo.TerradeVeraCruz—Brasiluz ouBrasilusão?Amúsica das palavras estilhaçou-se no túnel de silêncio que acegueiraconstruiudentrodemim.Acegueiracrescecomoumlongoouvido,sim—masosquevêemnãoseapercebemdosilêncioaterradorqueseamplianessehiperouvido.Oroerdotempotorna-seaudível.Pouco a pouco torna-se mesmo o único ruido audível, um roer de castor, uma parada de castorestrabalhandoemuníssononascircunvoluçõesdonossocérebro,mastigando-nososficheirosdamemória.Insónias dedicadas à tipologia dos azuis: azul-anil, azul-atlântico, azul-petróleo, azul-noite, azul-desespero.

Umdiadesiste-sedascores,dainsidiosasubtilezadascores.Desiste-sedesefazerdecontaquesevive como os outros. Então declina-se a cegueira como revolução, porta de passagem para um outromundo,acomeçardozero.Efalha-se,comofalhamasrevoluções,suicidadasporessaarrogânciaingrata

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que sofismamos em candura. Falha-se, porque ninguém pode, nem verdadeiramente quer, começar dozero.Quezeroéozero?0zerodapedra,ozerodoJardimdoÉdencomassuasmaçãsbiológicaseassuasserpentesconversadeiras?

Ouozerodocemporcentodealgodão,domicroondasedasbombasnucleares?Quepartículadozero podemos decidir? Ser cego é não poder desistir dos sons. Esse órgão agigantado já não é umouvido,ummecanismohumano,falível,atravessadopelamentirafácil,confortável,davisão.Acabaram-seossorrisos,oprópriotactocedeaosseusequívocos.Sóavoznãotemopoderdetrair,essepoderfulgurante que determinou a prevalência do Homem sobre a Terra e esse trajecto circular, épico,entorpecente,aquesepôsonomedeprogresso.Apalavrainicialcontinhajáemsiopoderdeligareodedividir,aenergiabélicaqueestánaorigemdaarteedaguerra.Apalavraéumutensíliosofisticadoqueserveparataparavoz.Naamabilidadedaspalavrasocultoorumordedesolaçãoquemetremenagarganta—masacegueiraconduziu-meaessedomqueeunãoqueria,deverasvozesàtransparênciadas palavras. Não tenho como me distrair: sou inteiramente vulnerável à brutalidade das vozes, aossentimentosincontroladosquecirculamnelas,mordendocomopiranhas.Centro-menosentidoespecíficode cada palavra, tento anular a voz que ouço, transformá-la numa cortina de fundo—mas a palavradançaedecompõe-se,quebra-seemestilhaçosdevidroquevoamdentrodomeucorpo-ouvido,ferindo-o,primeiro,eabrindo-oemchaga,depois,porquedentrodoouvidodoqueéomeucorpoagita-seumacorridade criança atraídapelobrilhodas coisasperigosas.Palavras estilhaçadas.Despalavradas.Ossubstantivosabstractos,nenhumsobreviveao impacto.Amor.Teríamosque inventarumapalavraparacadaespéciedeamoreparacadaamanteeparacadainstantedaexperiênciafísicaoumetafísicadessaexaltação sem fórmula. Amor, diz-me a vendedora de bugigangas na rua, e quer dizer compra-mequalquercoisa.Ouquerdizertenhofome.Ouquerdizerajuda-me.Oudeixa-meempaz.Eeuagoraseisempreoquequerdizer—eseiquequasesemprenãoquerdizernada.Aspalavrasjánãomeprotegem,estãotodasemcacos.

Precisodepalavrasnovas,umalínguamuda,depalavrasescritaselidasemsilêncio,comaminhavoz,avozmisturada,modulada, radiofónicaqueeupossuíaquandoaindanão tinhaentradonoabissaltúnel das vozes. Palalavras que me permitam fugir do palapântano ondeme afundo. Palavras que eurepetiria em surdina antes de pronunciar em voz alta, palavras tão diferentes das que existem que eupudessemostrá-lasafrio,brancosobrebranco,flocosdenevefundindoaminharecordaçãodamágoa.Mudei de hemisfério e de sotaque, acreditando que deixaria de escutar a verdade das vozes sob amelodiacordedocede leitedoportuguêsdoBrasil.Ledoengano—adensidadedadoreleva-se,nobalançomeigodestasvozes,aníveisqueaminhaalmadesconhecia.Tudoaquimefala;oar,asestrelas,os anjos barrocos, o espectro deAntónioVieira, oCristo crucificado com sangue de rubis, o sol, aschuvasrepentinas—eomar,quenuncasecala.

VariamentepintaramosAntigosaqueeleschamaramaFortuna.UnslhepuseramnamãooMundo,outros umaCornucópia, outros umLeme: uns a formaramde ouro, outros de vidro, e todos a fizeramcega,todosemfigurademulher,todoscomasasnospés,eospéssobreumaroda.

Partida,parti.Falsapartida—haveráoutras?Ondequerqueaportemos,acompanha-nosumcaudalde notícias, aHistória do lugar que deixámos, as inquietações do lugar onde chegámos.A notícia darestauração da independência de Portugal demorou um ano a chegar ao Brasil português de AntónioVieira.DecadavezqueVieirasemetianumbarcoparaatravessaroAtlântico,deumPortugalaoutro,quenãooeraequeeraoseu,sabiaquepodiamorrer—tantasvezesviuamorteàsuafrente,ondascomotorresdesabando,oupiratassempernadepau.

Nu como um recém-nascido o largaram, nos penhascos da ilha Graciosa, dos Açores. Partira àsescondidas,nodia17deJunhode1654,escapandoà turba furiosademaranhensesquenãoaguentaraver-seretratadanasuainfâmianovalenteSermãodeSantoAntónioaospeixes,nacatedraldeSãoLuís.AmeiodoAtlânticoanaufoitomadaporumdemóniomarinho;rezavaVieirapelasalvaçãoeternados

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quecomeleseafogavam,quandosurgiuumbarcodepiratasholandesesqueossalvaram,espoliaram,eos soltaram ao largo dosAçores, apenas com esse invólucro da alma a que chamamos pele.AntónioVieira tinha a ciênciadonaufrágio—conquistara-a cedo, a suaviagem inicial paraoBrasil foraumsobressaltodevagasesuplícios.Ressuscitavaemsobrevida—comumincêndionolugardocoração,umincêndioquefoiapurandoneleatraçasubversivadepersonagemdofuturo.Pobresfogos-fátuos,asnossas deambulações contemporâneas! Estamos perdidos e mudamos de lugar, esperando menosencontrar-nosdoqueesconderanossaperdição.

Derepentefalta-meaconversaeamãodoSebastião,quemesobravamquandoastinha.Conseguireisobreviver na solidãodomeuorgulho, numpaís a que chameimeu semque eleme chamasse?Podescerrar-meopunhonumaesfera,recu-sando-meatuaférreamão,podesatroar-measnoitescomatuavozescarpada—eunãodesistodecaminharcontigo,enisso,pelomenosnisso,assemelho-meati.Nuacomoastuassantasnaflordomartírio,nuaenáufragacomotu,dessavezemqueatravessasteoAtlânticoembusca de cura para amordida das hidras doMaranhão e a hidra holandesa te despojou de haveres evergonhas,despejando-tenaságuasdosAçores.Somossobreviventesdeummaremescombros.

Averdadequevosdigo,équenoMaranhãonãoháverdade.—Clarinha!Comovais?AindaestásnoBrasil?—Sim,ainda.Quemfala?—Tãodepressaesquecesavozdosamigos?SouoDiogo.DiogoMendonça.Quandoéquevoltas?—Nãosei.Porqueéqueperguntas?—Équeháporaquiumaschatices...Eeuprecisodoteuapoio.—Apoio,paraquê?—ÉqueaMariaJúlia...bom,eudescobriqueatesedaMariaJúliaémaisdoqueinspiradanuma

outratese,publicadaporumauniversidadeamericana.—EstásadizerqueatesedaMariaJúliaéumplágio?—Pois,querdizer,pelomenosemparte...Masseforeuadenunciaristovaiparecermal,entendes?

Afinal,senãotivessesidoelaaficarcomolugardonossosaudosoJoão,teriasidoeu,nãoé?—Nãodizesnada?—Nãoseiquedizer.Nãopercebooquetenhoeuavercomisso.—Válá,Clarinha...TodosnóssabemosquetudesteumparecerfavorávelàentradadaMariaJúlia.

Claroquenãopodiasadivinharqueelateiriacolocar,querodizer,queelairiacolocaraUniversidadenestasituaçãoembaraçosa...PorqueédoprestígiodaUniversidadequesetrata.

—Eentão?—Então,evidentemente,seriabomquetutedemarcassesdestabronca,quepusessesporescritoque

nãosabiasdenada...—Enãosei,Diogo.NemsequerliessatesedeondetudizesqueaMariaJúliacopiou...—Nãosoueuquedigo,Clara.Tomaranãoterquedizernada,entendes?Maséumavergonha,estas

coisascorrem,eeutambémnãopossofingirquenãosei...Deresto,várioscolegasnossosachamquetufostedeumagenerosidadeímparparacomaMariaJúlia,atendendoaomalqueeladizdeti...

—Quemal?— Ora, querida Clara, o que é que isso interessa agora? Invejas, sabes como é este meio, não

podemos dar importância a estasmesquinhices... AMaria Júlia não é propriamente uma pessoa bemresolvida.Sefosse,nãoteriacaídonestainfantilidadedoplágio.Inseguranças,sabescomoé.Aliadasaumaambiçãodesmedida,dãosempredesastre...

—Estoucompressa,Diogo.Diz-meondeéquequereschegar.—Nãoquerochegaraladonenhum,Clarinha.Apenasmeocorreuqueseriabom,atéparalimpareso

teunome,quetedemarcassesdaescolhadaMariaJúlia,equesugerissesomeunomeparaasubstituir.Era bom que tudo isto se passasse rápida e discretamente, para evitar estragos na imagem da

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Universidade,nãoteparece?—Limparomeunome,Diogo?...—Sim,confessaresquenãosabiasdenada...— Confessar? Eu nunca fui de confissões, Diogo. E, para tua informação, nem vou voltar à

Universidade.Oqueatétornatudomaissimples.Podesficardirectamentecomomeulugar.—Oteulugar?Nãovoltas?Clara,oqueéque...—Adeus,Diogo.Passabem.Queridoamigo;perdoaseteuseicomoummapaparaencontraromeucaminho—masnãosãoisso

osamigos?PartiaoencontrodaBahiacomaquelaansiedadeeufóricadequemvaiconhecerumescritorquedesdehámuitoama,nosilênciorugosodaspáginas.Tinhamedodeencontrarforadascapasumavozquemedestoassedocoração,quenãocondissessecomoestiloque fizerameu.Tinhamedo,masnãopodiafugiraesseconviteirresistível;assim,arrisquei-meaoencontrocomorostodoamor,apostandoque a sua erótica de tigre haveria de sobreviver, mesmo que muito arranhada, à desilusão que ademasiadarealidadesemprearrastanasuacauda.Tinhamedodepartirsemti,depoistivemedodepartirsó contigo. Chegada a Salvador, fui percebendo que era este omeu destino-, para encontrar AntónioVieiranãoprecisode lheseguirospassos todos—outeriade ir tambémaCoimbra,ondeeleestevepresoesujeitoaostenebrososinterrogatóriosdaInquisição,eaRoma,ondeesteveexilado,acarinhadopelaadmiraçãodaconvertidaebelarainhaCristinadaSuécia,queoqueriaparaconfessorparticular.Alémdeque,seVieiradeclinou—comelegânciaedoçura,écerto—oserviçodabelasueca,comotomariaomeu,quenemconvertidasou?

Vieiraéomeurastilho,elesabe-oesuponhoquenãoseimporta;queroatésuporqueseráparaelemotivodealegriaverestacegaguiar-se,noséculoXXI,pelatexturadassuaspalavrastãoantigas.Naverdade,maisdoqueassuaspalavras,move-meaarquitecturadoseupensamento:linhascirculares,deum barroco expansivo, que abre círculos em vez de os fechar. Vieira usava as palavras como armaspolíticasextremamenteafinadas,propaganda insinuanteaoseuDeus,aoseurei,aosseus ideais.E,noentanto, a espora da verdade fura nelas sempre as dissoluções da veemência. Por isso me dá tantavontade de rir quando ouço alguns artífices da escrita contemporânea, envoltos nos negros e luzidioscabedais da estética, perorando com ar solene sobre a doença funesta da mensagem, que mata aambiguidadeeabelezaeainteligênciadostextos,enãoseiquemais...Vieiraerabrasileiro,eportuguês,e diplomata, e humanista, emissionário. Atravessou sete vezes oAtlântico numa época em que cadatravessiaeraumaodisseia,enãoescreveuumasópalavraquenãoestivessecontaminadapelovírusdeuma mensagem. E que luxo de escrita, que vendaval de pensamento, que capacidade de torpedear aarrumaçãodascoisasterrenasedivinas!

Durmomuito,fechoosolhoseAntónioVieiraescreve-me,leioassuascartas,ououço-as,navozdooutroAntónio,oquemecegou.HáagoraaquiumcongressosobreVieira,apolíticaeomistério,tambémfoiporissoquequisficar,paraouvirfalardele.Háumamulherquevaifalarsobrearacionalidadedaprofecia, e isso interessa-me especialmente. Mas conta-me tudo, e que o anjo de António Vieira teacompanhe.Beijos,Clara.

Todas as terras, assim como têm particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas,assimpadecem tambémdiferentes vícios, a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este propósito osAlemãesumagalanteFábula.

Dizem que quando o Diabo caiu do Céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços seespalharamemdiversasProvínciasdaEuropa,onde ficaramosvíciosquenelas reinam.DizemqueacabeçadoDiabo caiu emEspanha, e quepor isso somos fumosos, altivos, e comarrogânciasgraves.DizemqueopeitocaiuemItália,equedaquilhesveioseremfabricadoresdemáquinas,nãosedaremaentender,e trazeremocoraçãosemprecoberto.DizemqueoventrecaiuemAlemanha,equeestaéacausadesereminclinadosàgula,egastaremmaisqueosoutroscomamesaecomataça.Dizemqueos

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pés caíramemFrança, e quedaqui nasce serempouco sossegados, apressadosno andar, e amigosdebailes.Dizemqueosbraçoscomasmãoseunhascrescidas,umcaiuemHolanda,outroemArgel,equedaquilhesveio(ounosveio)oseremcorsários.EstaéasubstânciadoApólogo,nemmalformado,nemmal repartido;porqueaindaqueaaplicaçãodosvícios totalmentenão sejaverdadeira, temcontudoasemelhançadeverdade,quebastaparadar sal à sátira.E supostoqueàEspanha lhecoubeacabeça,cuido eu que a parte dela que nos toca ao nossoPortugal, é a língua: aomenos assimo entendem asNaçõesestrangeiras,quemaisdepertonostratam.

Faztempoqueestouaquiparadasobreapágina,tentandoleroqueelatemparamedizer—inútil.Ficopensandonaquelamulherquenãopodeler,aquelaportuguesacegaqueconhecihoje.Procureilheajudar,quasememaltratou.Depoismereconheceupelavoz,perguntouseeunãoeraacongressistaqueabordara a relação profética deVieira com omundo da época, e falou que eu estava completamenteerrada,queeunãofazianemideiadequemeraVieira.Eeu,estúpida,deitrela.Porquenãofalei:«Essaéasuaopinião»evireicostas?Ora,porquenãosedáascostasaumcego,pelomenoseupensavaassim.Ofatoéqueamulherzinhameperturbou—pequenininha,magrinha,umaaragemdepessoa,arrumadacomo se estivesse indo para a ópera— me explicando que tentar interpretar Vieira através do seusuposto insucesso era uma besteira total, e uma consequência da fdosofice empática dos nossos dias.TerminoumedizendoqueVieiranãoeraumfalhado,equeVieiranãoeraeu—quedesaforo.

Essesportugueseschegamaquipensandoquenosfalamdecátedra,quesóeleséquesabem—comoseVieira não fossemais nosso do que deles, que, aliás, não lhe dão amenor bola. O certo é que amulherzinhameperturbou—nãosei seapenaspela ligaçãoentreacegueiraeamáeducação, seporalguma outra coisa. Tem gente que carrega uma fúria contagiosa. A verdade é que, no fundo, estoucomeçando a duvidar do meu enfoque sobre a figura de Vieira. Algumas frases dessa mulherzinhaconflituosaestãoconflituandodentrodemim.Memagoouainjustiçadassuasapreciaçõesapriorísticas,dotipo:vocês,académicos,estãosempresacrificandoaverdadeàoriginalidadedeumânguloquevospermitasubirnacarreira.

souisso.MeapegueiaoVieiraparacontinuaraobradoAntónio,comopodia—eoqueeupodiaeraanalisá-lo através da História, é isso o que eu sou, uma simples historiadora, nunca tive nem tenhopretensõesaliterata.Masfiqueisentindoqueprecisorepensaressenegóciodosucessoedofalhanço—sãoconceitosdemasiadoincrustadosnocorpodotempo,paraquepossamosfazê-losvoardeséculoemséculo, sem as roupagen da época. Fiquei pensando que aquilo que chamamos de História éprovavelmenteetão-sóumexercíciodeautoconsolação,quejamaispassaremosdefrágeisleccionistas.Ora.Comoéque,nessaidade,eufuimedeixararrasarassimporumaceguinhaboba,bemmaisjovemdoqueeu?

Osvíciosdalínguasãotantos,quefezDrexélioumAbecedáriointeiro,emuitocopiosodeles.Eseas letras deste Abecedário se repartissem pelos Estados de Portugal? que letra tocaria ao nossoMaranhão? Não há dúvida, que o M. M de Maranhão, M. murmurar, M. motejar, M. maldizer, M.malsinar,M.mexericar, e, sobretudo,M.mentir:mentir comaspalavras,mentir comasobras,mentircomospensamentos,quedetodoseportodososmodosaquisemente.NovelaseNovelos,sãoasduasmoedascorrentesdestaterra:mastêmumadiferença,queasNovelasarmam-sesobrenada,eosNovelosarmam-sesobremuito,paratudosermoedafalsa.

Bemfeita,Clara.Pensavasquebastavamudaresdecontinentepara te livraresdorançodas ideiasfeitas.ParaquetefostemeternaquelecongressodeVieira—nãoestavasjáfartadessatuaexistênciadesalão?Querias sabermais, só te enfurecestemais.Nadaparecepoder tranquilizar-me.Sóo corpodoEmanuel,comasuasuavidadepagã,demasiadopróximadeumaordemderendição.ComopôdeVieiraviver sem sexo? Invejo-lhe esse Deus que lhe fez da carne uma armadura, um carro de combateinvulnerável,concedendo-lheaomesmotempoosentimentomundanodoshomens.

—ComosepodefalardealmasemfalardeDeus?—pergunta-meEmanuel,enquantomeacariciae

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eucantoaoseuouvidoaquelacançãoemqueCaetanodefineapelecomoapartemaisclaradaalma.DetudosepodefalarsemfalardeDeus.ComodetudosepodefalarenquantosefaladeDeus.FoioquefezAntónioVieira.Nãoeraumsanto,Vieira,nãoeraumdessesseresqueemvezdeartériasenervostêmumacorrentedenuvensdentrodo corpo, epairam sobre aTerra, atraindoos carrascosparaque lhesdesfaçamoinvólucroedeixemvoarparaoaltoCéu.Sofriacadaingratidãoeafiavasobreelaoferrodassuaspalavras,asuafúriadivinaéocaldoborbulhantedadecepçãohumanalevadoaopontodeciênciageral da injustiça — por isso o sinto tão próximo de mim, as mesquinhas corrupções das relaçõeshumanas permanecem para além do desenho das catedrais, dos códigos jurídicos, da evolução dastécnicasdeguerraedasfórmulasquímicas.

Senãosetivessedeixadoconsumirtantopeloseutempo,Vieiranãoteriasidocapazdeinventaresse

outro tempo, imóvel e intranquilo, um templo de textos em espiral onde a insignificância da vida setranstornaeorostohumanodaeternidadesurgeemcontornosnítidos.ÉdaTerraedaspessoas,paraaTerraeparaaspessoas,quefalaAntónioVieira,semsedeixaramainarpelaperspectivadavidaeterna.Por issoengendrou inúmerosplanoseconómicosepolíticosparaopaís,por isso seexasperoucomabarbaridade das escravaturas, por isso se afeiçoou às artes da diplomacia e correu a Europa comocaixeiro-viajantedeumPortugalqueelesabiaaindanãoexistirsenãonasuaideia.Concentrouodesejoonos seus sonhos sobrea realidade.Tudoparaqueagoraumapatetametidaa académica, comoessaClara que hoje conheci, venha com os seus manuais de marqueting pessoal declarar o estrondosoinsucessodeVieira!Quemmemandaamim,Vieira, tãobemencaminhadaqueestava,meter-menumareuniãodebárbaros?

Claraquerida,Alcântaraemanaessa tristezamansa, infinitamentesábia,de lugar-ao-lado: tudo lheaconteceu sem nada lhe ter verdadeiramente acontecido. Todo o seu reconhecimento parece póstumo,como se estivesse destinada a ser um daqueles amores cuja intensidade só percebemos em rewind.Desprende-seumamelancoliaquase cómica,na candurada sua tragédia,das ruínasdosdoispaláciosinacabadosdosbarõesdeMearimePindaré.Rivaispolíticos—MearimlideravaoPartidoConservadorePindaréoLiberal—,entraramemdespiquenaconstruçãodeinstalaçõescondignasparaumaeventualvisitaaAlcântaradoImperadorD.PedroII.Estadisputapalaciana,jogadapedraapedra,teveoefeitoprecisamentecontrário—oImperadordesistiudevezdevisitaracidade,jánessaépocaemaceleradadecadência.OfulgordeAlcântara,dasuafundação,em1648,atéaoiníciodoséculoXIX,ficouadever-seaoaçúcar,aoalgodão—àsfazendaseàescravatura.Brilhobaço,desumano,clinicamentedescritonoromanceNoiteSobreAlcântara,deJosuéMontello,queacompanhaasminhas longasnoites,agora tãosolitárias,tãosaudosasdeti.MuitodeveterpenadooteuPadrenestePortugalinhotransplantadoqueé,ainda hoje, o Maranhão. Provavelmente, fizeste bem em ficar; na Bahia a memória da opressão éatenuadapelamemóriadaconcomitanterevolta,osdeusesafricanosconseguiraminhltrar-senobojodossantoscatólicosecriarumalinhagemderesistentesinsubmissos,aestirpecriadoradosbahianos.Aqui,aviolênciaparece ter-sedesvanecidopor forçado tempo, sem interferênciadequalquerpensamentoouacção de mudança. Empobrecidos, os senhores foram-se desfazendo dos escravos como de anéis defamília;numoutroromancedeJosuéMontello,queéograndeescritordoMaranhão,OsTamboresdeSãoLuís,assistimosaoabandonodosescravosnosbancosdosjardinsdeSãoLuís.-osdonosdiziam-lhesqueiamaliejávoltavam,eapanhavamobarcoparalugaresmaispromissores.Tudonestelugarétãobonitocomosufocante?casinhasportuguesas,comcerteza,azulejos,sobradossilenciosos,aquiealiumbandodecriançascujosrisosnossalvammomentaneamente.

AprimeiraimpressãoquesetemdeSãoLuísé,assim,adeumavirgindadeimplacávelperanteissoaquevulgarmentechamamosocorrerdotempo.Osuivoseosanguedaguerraestiveramaqui,repetidasvezes,masagarraram-setãopoucoàspedrasdacidadecomoafelicidadedaquelesnamoradosquenãoconseguemparardesebeijar,nolargodaigreja,aopôrdoSol.Háumfotógrafocomardeprofissional

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queostemnamira,maselesnãovêemacâmarafotográfica,nemosvelhinhosqueosfitam,incomodadosounostálgicos.Ohomemfotografa-oseeuvejoumdeles,daquiavinteanos,apanhandoamemóriamortadaquele beijo numa revista encarquilhada, algures noutra cidade. Romanceio, claro, é o meu vício,sobretudo desde que tu não estás — mas a verdade que este vício me tem trazido é essa, de umarealidade dançando sinuosamente. Ninguém se atreveria a meter numa história o reencontro destafotografia,emenosaindaqueorapaznemsequersereconhecessenela,masanteslembrasseumaoutranamorada,posterioraestaqueagorabeija,naqueleretratocasualmenteressuscitado.Terrívelépensarque daqui a dois ou cinco anos este par terá esquecido este abraço que era infinito. Terrível etranquilizante,porqueosbeijosprecisamdeseapagarparaserepetir.Comooshomens,ouascidades—eSãoLuísjáseapagoutantoquesetornouinesquecível.

Épossívelque,comorezaa lenda,o fantasmadeDonanJânsencorraainda,nasnoitesescurasdesexta-feira, pelos empedradosdestas ruas, na suapavorosa carruagem,puxadapormuitas parelhasdecavalos brancos decapitados, guiados por uma caveira de escravo, igualmente decapitada. DonaAnaJoaquina Jânsen Pereira celebrizou-se por torturar os seus escravos, incluindo crianças, de formaparticularmentebárbara,muitasvezesatéàmorte.Diz-sequequemtivera infelicidadedeencontraracarruagemdeDonanaenãofizerumaoraçãopelasalvaçãodaalmadessamulherdesalmada,receberá,aodeitar-se,umavela,dasmãosdofantasmadela—velaquesetransformaráemossohumanoaonascerdodia.Sim,queridaClara,estásmelhor—eprovavelmente—oh,infortúnio!—melhoracompanhada,aíemSalvador.

Passeio,converso,leio.Tambémteconfessoqueaquaseinexistênciademuseusdignosdessenomeé,paramim,umdosgrandesatractivosdeSãoLuís.Nãosepodedevorarummuseucomoquemmedeumacasaparacomprar;creioqueseasobrasdearteestãolá,tãopacatas,éporqueesperamavisitadosseuscontempladoresíntimos,individuais.Éassimquegostodevermuseus?procurandoporumavisão,uma só, que me desinquiete. Certo é que ainda não curei a indigestão museológica que contraí daprimeiravezquepusospésemParis,commuitopoucodinheironobolso,edecidiveroLouvreinteironumdomingo,porqueeragratuito.Demaneiraqueagradeçoafrugalidademonumentaldestasparagens.Comotu,aprecioesseprivilégiosupremodoviajantequeéodeparticipardabanalidadequotidianasemlhe sentir o peso— porque não é a sua. Mas conta-me, conta-me como vives e o que fazes aí emSalvador.

DoceSebastião,conto-tequehojeestivecontigoaíemSãoLuísdoMaranhão.Apertei-teosdedosquandoouvisteosgritosdeumacriançaescravaqueestavaaserchicoteadanopátiodeDonanaJânsen.Todaavidaviveremosassombradospelosgritosegemidosdeumpassadoquenãopodemostransformar—jána infância os ouvíamos, falavam-nos damansa colonizaçãoportuguesa e nós sentíamos que nãotinhasidoassim,queosgrandiososportuguesestinhamavilezahumanadosoutrospovostodos,amesmacobardeafoitezadeexplorarosoutros.

Portugal soubeexilar-se,dentroe forade si,masnunca soube sair.Osubstantivo«saideira» foi alínguadoBrasilqueoinventou.Oportuguêsinventouomulato,diziam-nos,enósvíamosoquantoessesmulatoseramolhadoscomoanimaisdezoológico...Nósvemosasmesmascoisas,sim—tudizesqueeuavanço melhor do que tu, mas é só porque vi a morte à minha frente, e ver a morte torna-nostemporariamenteimortais.Temossensibilidadesgémeas,sim—masnãoéissoquenostornaráumcasal,nunca. Poderia até fazer amor contigo, se não te amasse tanto de uma forma tão envergonhada,transparente, pouco conjugal. O amor físico é feito de desvergonha e intimidade, e eu não posso seríntimadeumapessoaqueéfeitadaminhaprópriamassa—experimentamosdemasiadasafinidadesparapodermosseramantes.Enãosomostãoleves,nemtunemeu,quepudéssemosterprazerumcomooutrosemqueanossacumplicidadefosseafectada,poisnão?

Todavia, lembro-memuitasvezesda tua imagemchorando,numautomóvel, ao ladodeumhomemdemasiado homem para te poder consolar, e essa lembrança faz-me desejar-te. Ser mulher é desejar

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absorvernahumidadedosexoaslágrimasdeumhomem.Ficomolhadaquandopensonastuaslágrimas.Grandeinvenção,aescrita—aoteuladonuncadiriaestascoisas.Otextoéerotismopuro,sexoquefazdoer — descobri-o nos textos de António Vieira. Longe de ti estou mais perto de ti—meu queridoSebastião, vamos mesmo ter de viver separados. Porque eu sou daqui, do Brasil— sou deste odorviolento a floresta e mar, desta melancolia urbana excessivamente quente e perigosa, desta línguaportuguesalentaelúbrica,destebailedegerúndiosmergulhadonoscompassosdopresente.OBrasiléohoje vertical: todas asmisérias do passado e as esperanças do futuro se aglutinamna experiência domomentopresente.EusoudestamestiçagemmaispotentedoquetodaaHistória,tuésdaHistória,comprincípio,meioefim.

Eunãoqueroviajarmais,nãopossoviajarmais—tudooquetenhoparaverestádentrodemim.NoBrasilpossoserubíqua—oBrasiléessacapacidadedeestaremtodaaparteaomesmotempo,porissoéopaísdascanções,feitasdotempoquecorreedaeternidadequeesquecemos.Ter-me-ássempreaoteulado,assim—virtualeinteira.

Quecoisaéaconversãodeumaalma,senãoentrarumhomemdentroemsiever-seasimesmo?Paraestavistasãonecessáriosolhos,énecessária luz,eénecessárioespelho.Opregadorconcorrecomoespelho,queéadoutrina;Deusconcorrecomaluz,queéagraça;ohomemconcorrecomosolhos,queéoconhecimento.

Clara,nãotedeixesiludirpelossons,cheirosecaríciasdabeleza—oBrasiljátemostrouooutroladodoseurosto,asuafacehorrível.Esqueceste?Esqueceste-me?

Sebastião,ohorríveldesistiudeserrivaldobelo,deixoudeseroantibelo.Ambossefundem,ambosse fundiram sempre—mesmo quando não o queremos ver; são um só ser hermafrodita. Em todo ohorrívelháumgritopelobelo.Nobelooúnicogritoque seouve—enãoégrito, éum lamentoemsurdina—épelamorte:amortequeoapagaráemdefinitivo,amortequeéamelancoliadasuaausência.Odesaparecimentodaideiadobeloresultadasuapolitização:abelezaemsifoidesprezadaafavordeumabelezaética,quemuitasvezesseimpõeatravésdasimagenscontrastantesdohorrível—oumesmo,nosseusmomentosmaisintensos,deumabelezaépica,queressuscitasemprenoslugaresemomentosdetragédia.Estabelezaépicarelaciona-secomosublime,belezaextremaque,nasuaextremaintensidade,se torna dor, vazio, o terrível emudecido. O horrível pelo horrível torna-se infantil, habitual,insignificante,domesmomodoqueobelopelobelosetornafrustrante.Nãotepreocupes;paramimjánãohábelezanemfealdade,apenasessacoisahíbridaqueéodesejodeviver.Eéaquiquequeroviver,éaestaterraescaldantequequeropertencer,pormuitoqueonãoqueiras.Semteesquecer,nunca.

Clara, pormais queme tentes atordoar com filosofias, tu não podes ficar noBrasil, tu não podeslargarassimumavidainteiraderepente.Oteumundo,atuacivilização,nãosãoesses.ABahiatemumefeitohipnótico,ésabido—masnãosepodeviverempermanentehipnose.Esqueceste-tequefoiporcausadoBrasilqueperdesteavisão?Usaosubstantivo«saideira»,usa-o,porfavor,comonaquelatãoexactacançãodoChicoBuarquechamadaTrocandoemMiúdos,lembras-te?«Eubatooportãosemfazeralarde/eulevoacarteiradeidentidade/umasaideira,muitasaudade/ealeveimpressão/dequejávoutarde.»Clara,queridaClara,diz-me:apaixonaste-te?

Queperguntatãopragmática,Sebastião!Paraeumeapaixonarnãoéprecisomuito—enissosomosmuitodiferentesumdooutro.Quantaspessoaspelasquaismeapaixoneiconseguiamar?Apaixãoéoardanossacivilização,umaespéciedemandamentoelementar—passamosanos,enãopercebemosoquevimosnaquelaspessoaspelasquaisnosjulgávamoscapazesdemorrer.Enraizei-me—issoéqueéraro,descobrirmosdequeterrasomos.Enganas-te;éesteomeumundoeaminhacivilização.Nuncafuinadadadaadelíriospatrióticosnemnacionalistas,sabesbemquenão—massempremesentiincompletaemPortugal, comosenão fossedali.Emcertosdias,para ter coragemdeme levantar, tinhademepôr aenumerarmentalmenteasqualidadesdopaís.Quesãomuitas—masquandoentramosnodeveehaverdosafectoséporqueelesjánãonosservem.

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Sebastião,Sebastião,nãosabescomomemagoasquandofalasdosolhosqueperdi,nãoconseguesentenderquenosítioemquemeperdiéqueprecisodemeencontrar,eeunãoconsigoexplicar-temaisnemmelhorestascoisas.ProvavelmenteétambémissooquemeprendeaoBrasil:aquininguémmepedeexplicações.Portugalcheira-meaindaaoTribunaldoSantoOfício,exigindo justificaçõesecontriçõespermanentes, mentiras cerimoniais, hipocrisia e solenidade. O Brasil emancipou-se dessa tralha dealdrabices — pelo menos, é um país onde a injustiça e a corrupção brilham ao sol, em vez de secalafetarememvéniasemesuras.Nestepaíssinto-me,maisdoqueentendida,aceite.Estoucansadadeterdeescolheraspalavrasedeasarredondarparaquemepercebam.Gostavaquepelomenos tumepoupasses. Sebastião querido, Salvador faz-me regressar à menina que eu fui, alinhando palavras àprocuradapoesia.Escreviestesversos,inspiradospeloatabaquedavozdeVieira,quenãomelargaossonhos.

AminhalínguaAminhalinguacheiraaligadurastintasdesangueeavinho,ouálcoolpuro.Línguamacha,derramadaemdesvergonha,

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trilhodeespermamarcandoosabordomarprofundo.Língualenta,soleneetrôpeganoconversarcorrido,atulhadadedoutores,excelências,favoreseobrigações,banquetedeverbosirregulares,regrasmestrasmaquilhadasporumcortejodeexcepções.Línguaviolentaesecreta,mafiosa,sónastrevasdapáginaembrancoabreaspernasemostraosexo.Língua-labirinto,feitaparasuper-heróis.Línguadeameiasearremesso,combativaeardilosacomoumapontelevadiça.Línguadeclinadaemmúsicanofogolíquidodoseuhemisfériotropical,doendonosgonzoscomouma

portademasiadasvezesbatida.Línguanáufraga,

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flutuandonocascodaspalavrasquandotudosoçobra,línguasalgadaesôfrega,talhadapelaraivadossobreviventes.Línguaplásticaembrulhadaempanosdepedra,línguaduraderoer,suadacomoumbandido,línguadevãodeescadacomumanavalhaemcadavírgula

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eumagargalhadanegravibrandonascordasdanoite.Línguadevaidososesconsosgingandoporatalhosesussurros.Línguavelha,entrapada,malcriada,semroupainteriornemespartilhos,escravadosonhodomando,entorpecidadeincensoscatólicosdescaradamenteputaepolítica.Beijos,ClaraEntão agora poetizas... Gosto da tua língua—foi quando me mandaste embora que descobriste a

inspiração? És injusta quando desconsideras a minha afinidade contigo. Entendo-te muito bem, aocontráriodoquedizes,apenasgostavaqueentendessesquemedóia ideiademesepararde ti.SobrePortugal,achoqueexageras,masfalta-meoalentoparaodefender.Sinto-mesubmersoemsaudadesdeti.Escrevo-teestee-maildeBelémdoPará,debaixodeumcalordechumbolíquido.

Visitámos hoje umMuseu das Civilizações Indígenas, situado no Forte do Presépio, ironicamenteconstruído(emvão,jáquenuncafoiutilizado)paradefenderoImpérioqueoprimiaessascivilizações.Aexposição é declaradamente pedagógica, com painéis explicativos sublinhando que é errado chamaríndiosaestespovos,quetão-poucodevedizer-sequesãopovos«doPará»,masantes«noPará»dadoque «não reconhecem fronteiras geográficas» e que as suas línguas (tupi, tupi-guarani e karis) ediversidadesculturaisdevemser,nãosórespeitadas,masdignificadas.Explica-seaindacomoatécnicaagrícola dos tupinambás, que cortavam as árvores e as incendiavam para depois cultivar mandioca,esgotava rapidamente os solos e os obrigava a mudarem constantemente de lugar, devastação apósdevastação.Sempreéumalívioperceberquenemsóacivilizaçãodoprogressoesbugalhouoplaneta,nãoteparece?Econclui-se:«Comoadventodacolonizaçãoportuguesa,osrituaisantropofágicosforamgradativamentesendoesquecidos,oqueprovocouaperdadaidentidadeculturaldaquelespovos.»Oraimagina o que aconteceria a este apetitoso grupo de viajantes, se a identidade cultural antropofágicadaquelespovosnãosetivesseperdido...

Asaída,debaixodosbandosdeabutresque sobrevoamo forte,noar forradodecoladerretida, adissoluçãodasidentidadesculturaissopracomoumventodealegriasincrética,comamemóriadorisodonossoMarcosbaianoedavibranteinteligênciadeBruno,oguiamuitojovemquenosacompanhounoMaranhão,escavandoointeriordaHistóriaedoslivroseencontrandonelesasingularidadequedefinecadainstantedohumano,paraládasidentidadesassassinas.Surpreendentesanjos-guiasnosenviouoteuVieira,doaltodasuaeternairreverência.

Tenhotantassaudadestuasqueatéapelemedói.Nãoseioquefaçoaqui,eseiaindamenoscomopoderei voltar aLisboa sem ti. Se não consegues ter dó da tua família, dos teus amigos, dessa pobreLusitâniaqueprecisatantodoteuânimo,tempelomenosdódemim.Beijoslancinantesdoteu

SebastiãoO meu amante está a fazer um filme comigo. Um filme, vê lá a ironia. Sim, tenho um amante,

Sebastião—nãoqueriadizer-toparatepoupar,masnadanosgastamaisdoqueasesperançasvãs.Nãoé por causa dele que quero ficar no Brasil; sei que ele pode morrer amanhã, trocar-me no próximoinstante por outra ou por outro— sim, omeu amante já teve paixões por homens, Sebastião, não tearrepies—mas a minha ligação a esta terra é mais forte do que qualquer amor humano. No Brasil,território de afectos exacerbados, o que primeiro se aprende é o desprendimento, ou o dom de amaresquecidamente.

AmarPortugal é fácil e claustrofóbico: empouco tempo se conheceo território inteiro, empoucotempotodososrostosseassemelham.NãoseiseteconteiqueumavezencontreioministrodaEducaçãonumcafé,ummêsdepoisdetermoderadoumdebatecomelenaUniversidade—elefalou-me,eeunãoo

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reconheci. Ainda por cima, o homem perguntou como iam as coisas lá na Universidade, e eu,simpaticamente,disselhequeiammal,porqueapolíticadaEducaçãoestavaumamiséria,eoministroeraumbanana.Osenhorabriuumsorrisoamarelo,agradeceu-meaminhafrontalidadeezarpou—olha,tivedelhepagarocafé.Pelomenosagoraestoulivredestasvergonhas,asvozesrepetem-semenosdoqueascaras—outalvezeuestejaagoramaisadestradanossentidosquemesobram.

Avastidãodaterrabrasileiraexorcizaociúmeeespevitaoimediatismodoamorlírico.Rarossãoosbrasileiros que conhecem todo oBrasil, e basta-lhes a parte que conhecempara se sentiremparte dotodo.Agrada-me a ideia de ser de uma terra aparentemente infinita, de pertencer a umapátria que seconfundecomaideiademundo,agrada-meaimpossibilidadedeconhecertodososmeusconterrâneos,umaimpossibilidadequemepermiteaprenderasentircadaserhumanocomomeusemelhante.Nãopoderolharensina-meaverointeriordabeleza,asvíscerasdestepaísfamosopelasuaimagem.Serceganopaísqueexportacirurgiaplásticaéassimcomoumaespéciedeprovocaçãopolítica,umaperformanceinterventiva.

EmPortugal sinto-meumadesgraçadinhaverdadeira numpaís de falsos desgraçadinhos.Sento-menumafestaetodaagentemevemfalardetragédiaspioresdoqueaminha,pensandoconsolar-me.Estoufartade ser consolada, protegida,maltratada commimos,Sebastião.Desculpa se sou ingrata—estoufartadeestarsempreapedirdesculpa.

Precisodeste cheiro.Docheiro amar, bulício, perigo eousadiaquenão encontro emPortugal.Ocheiroacorposquesemostram—ocheiroacarneeasexo,àmisturaderaças.OBrasiltemumodorasobrevivênciapuraquemeapaixona;nãohánadaquemateestaterra—talvezsejaprecisamenteissooque a impede de se tornar uma superpotência do mundo e talvez seja também isso o que faz dela,estranhamente, uma referência do mundo. O Ocidente como transcendência das identidades culturaisfixas,comopossibilidadedesuperaçãodasfronteirasdaidentidade,énoBrasilqueoencontro.Aqui,ahumanidadeparticularésempremaiordoqueoEstado,eseissorepresentacoisasterríveis,nográficoda pobreza e da injustiça, sinaliza também, ainda que de forma obscura, a possibilidade de umoutrocaminho,deumaoutraliberdade.

Sinto-memaisviva,aqui,ondequasemorri,doquenoPortugalinhoqueesconjuraomardamortenocharcodasmaleitas,oPortugalinhodocavamosandando,quandomalnuncapior,da invejapequeninaadministrativamenteorganizada.Dirásqueexagero,epodesdizeroquequiseres,eteratémuitarazão.Sucedeéquearazãojánãomebasta—aliás,nãocreioquebasteaninguém.Aterraquemedáavidanãopossooferecermenosdoqueaminhavida.

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BeijosdaClaraOestilohádesermuitofácilemuitonatural.PorissocomparouCristoopregaraosemear:Exijt,qui

seminat, seminare.ComparaCristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que temmais denaturezaquedearte.Nasoutrasartestudoéarte;naMúsicatudosefazporcompasso,naArquitecturatudosefazporregra,naAritméticatudosefazporconta,naGeometriatudosefazpormedida.Osemearnãoéassim.Éumaartesemarte;caiaondecair.VedecomosemeavaonossolavradordoEvangelho.Caíaotrigonosespinhosenascia:Aliudceciditinterspinas,etsimulexortaespinae.Caíaotrigonaspedrasenascia:Aliudceciditsuperpetram,etnatura.Caíaotrigonaterraboaenascia:Aliudceciditinterrambonam,etnatum.Iaotrigocaindoeianascendo.

Assimhádeseropregar.Hãodecairascoisasehãodenascer; tãonaturaisquevãocaindo, tãoprópriasquevenhamnascendo.Quediferenteéoestiloviolentoe tirânicoquehojeseusa!Vervirostristes Passos daEscritura, comoquemvem aomartírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados,outrosvêmestirados,outrosvêmtorcidos,outrosvêmdespedaçados;sóatadosnãovêm!Hátaltirania?Entãonomeiodisto,quebemlevantadoestáaquilo!Nãoestáacoisanolevantar,estánocair:Cecidit.Notaiumaalegoriaprópriadanossalíngua.Otrigodosemeador,aindaquecaiuquatrovezes,sódetrêsnasceu;paraoSermãovirnascendo,hádetertrêsmodosdecair:hádecaircomqueda,hádecaircomcadência, háde cair comcaso.Aqueda épara as coisas, a cadênciapara aspalavras, o casopara adisposição.Aquedaéparaascoisas,porquehãodevirbemtrazidaseemseulugar;hãodeterqueda.Acadênciaéparaaspalavras,porquenãohãodeserescabrosas,nemdissonantes;hãodetercadência.Ocaso é para a disposição, porque esta há de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e nãoestudo:Cecidit,cecidit,cecidit.

Jáquefalocontraosestilosmodernos,queroalegarpormimoestilodomaisantigopregadorquehouvenomundo.Equalfoiele?OmaisantigopregadorquehouvenomundofoioCéu.CoelienarrantgloriamDei,etoperamanuumejusannuntiatfirmamentum,dizDavid.SupostoqueoCéuépregador,devedetersermõesedevedeterpalavras.Sim,tem,dizomesmoDavid,tempalavrasetemsermões,emaismuitobemouvidos.Nonsuntloquellae,nequesermones,quorumnonaudianturvocêseorum.EquaissãoestessermõeseestaspalavrasdoCéu?Aspalavrassãoasestrelas,ossermõessãoacomposição,aordem,aharmoniaeocursodelas.VedecomodizoestilodepregardoCéu,comoestiloqueCristoensinounaterra?Umeoutroésemear;aterrasemeadadetrigo,oCéusemeadodeestrelas.Opregarháde ser como quem semeia, e não como quem ladrilha, ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas:Stellaemanentesinordinesuo.Todasasestrelasestãoporsuaordem;maséordemquefazinfluência,nãoéordemque faça lavor.Não fezDeusoCéuemxadrezdeestrelas, comoosPregadores fazemosermãoemxadrezdepalavras.SedeumaparteestáBranco,daoutrahádeestarNegro;sedeumapartedizemLuz,daoutrahãodedizerSombra;sedeumapartedizemDesceu,daoutrahãodedizerSubiu.Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre emfronteira como seu contrário?Aprendamos doCéu o estilo da disposição, e tambémo das palavras.Comohãodeseraspalavras?Comoasestrelas.Asestrelassãomuitodistintasemuitoclaras.Assimhádeseroestilodapregação,muitodistintoemuitoclaro.Enemporissotemaisquepareçaoestilobaixo;asestrelassãomuitodistintas,emuitoclarasealtíssimas.Oestilopodesermuitoclaroemuitoalto;tãoclaroqueoentendamosquenãosabemetãoaltoquetenhammuitoqueentendernele

os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura, e o mareante para suanavegação,eomatemáticoparaassuasobservaçõeseparaosseusjuízosDemaneiraqueorústicoeomareante,quenãosabemlernemescrever,entendemasestrelas;eomatemáticoquetemlidocraantosescreveramnãoalcançaaentenderquantonelashá.Talpodeserosermão:estrelas,quetodosasvêem,emuitopoucosasmedem.

—Possosaberporqueéquecêtáchorando?Possofazeralgumacoisacontraessassuaslágrimas?

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—Conheçoasuavoz.ÉaprofessoradoAntónioVieira,nãoé?—Seria uma arrogância imperdoável, tentar ensinarVieira, não lhe parece?Mas sim, sou aquela

mulherruimquevocêachaquenãoentendenadadoPadre.Provavelmentevocêestácerta.Masporqueestáchorando,seisolandoassim,numafestadessas?

—Porque não consigo acompanhar. As pessoas falam de cinema, do novo cinema brasileiro. Ougabam as telas, parece que maravilhosas, que há nesta casa. A beleza destes jardins, das árvoresiluminadas,dapaisagemsobreomar.Dochampanhecor-de-rosa.

—Ué.O champanhe você pode beber,menina. É divino. Fale demúsica, sei lá, do PadreVieira,dessascoisastodasquevocêsabe.Cadaumtemsuaexperiênciaindividual,nãoémesmo

—Eu sei. Ninguém tem culpa. Escolhi o Brasil para fugir da pena contínua que osmeus amigosportuguesestinhamdemim.Masédifícilcomeçar.

—Todoocomeçotemlágrimas.Medesculpe,eunãoseinadasobrevocê,possoatéestarfalandobobagem.Jábebinãoseiquantastaçasdessechampanhe,tantoquejánemseidequecoreleé—vejotudoemarco-íris,nessemomento.Seaspessoaslhefalamdecinemaedascoisasqueestãovendo,issosignificaquelheconsideramigualzinhaaelas,nãoéverdade?Nãoeraissoquevocêqueria?

—Sim,mas...—Oportuguêspõesempreum«mas»quandoascoisascomeçamarolardireitinho.Pelomenosera

issoquediziaomeumarido,queatégostavamuitodePortugal.—Gostava?Jánãogosta?—Seiládoqueéqueelegostaagora,querida.Estálánocéue,sebemoconheci,deveestarcom

ummontedegatinhasdeasasbrancas,depenando-lhesasasinhasumaauma...Estoufalandobobagem,jábebidemais,mesmo.Seanime,moça.Eunãolhevientrandodebaixodaasadeumnegrãosensacional,ouestoumeconfundindo?

—É,entreicomomeu...namorado,sim.-Comumnamoradodesses,comoéquevocêpodechorar.Esserapazélindomesmo.Casovocênão

tenha tateado e o suficiente para saber, isso eu posso te garantir. Ah, já está táo. Ainda bem. Ria àvontade,quequemvaificarchorando

eu.Tomaraumgatãodessesnaminhavida.Vocêolargouporaí?— Não, ele está lá dentro a conversar com um músico sobre a banda sonora do filme dele. O

Emanuelfazcinema.Sóqueeunãoconheçoquaseninguémaqui,ainda.— Sorte a sua, moça. Eu conheço gente até de mais. Olhe, está todo o mundo dançando. Vamos

dançar.Nãotenhamedo,eulheconduzo,escolhoumlugarzinhobemespaçoso.Vailhefazerbem,venha.Amãodestamulher temumapedradentro.Umseixobranco,comoaquelesqueascriançassoltam

pelocaminhonoscontosdefadas,quandoospaisasabandonamnafloresta.Pedrasoumigalhasdepão?Emcertashistóriassãomigalhasdepão,vêmospássarosecomem-nas,perde-seotrilhodoregresso.Não tenho trilhode regresso,deixo-me levarpelamãofortedestamulher,quequis inimiga.Nunca fuicapazdeseríntimadeumaoutramulher,assimqueelasabriamoalçapãodossegredoseucomeçavaaespernear, tirem-medas conversas sobre as submissões do amor, as dietas, os cremes, os casamentosfuturos ou pretéritos. Fazia pouco delas, sentia-me pouco com elas. Na Faculdade eram a maioria,agitavam-se como corvos, lembravam-meos pássaros doHitchcock—agrupando-se, a pouco e pouco,paraatacaremnumbandonegrodebicosdesesperados.Masnuncachegavamaformaressebandounido,des-pedaçavam-se sempre antes disso, num diz-que-diz suicida. Os dedos desta mulher acariciam osmeus com a delicadeza que só conheço nos homens, uma promessa de sensualidade que é aomesmotempoacertezadoamorqueficaparaládosexercíciosdoprazer.Sónoshomenstenhoencontradoestacerteza, este dom de prolongar a amizade para lá das curvas do sexo. Talvez por isso ahomossexualidademasculinatenhatidoumahistóriamaislongaefelizdoqueafeminina—oshomensaprenderam o valor do amor, por contraste e mistura com o horror do sangue, a guerra, as guerras

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imemoriais em que aprenderam a sobreviver em bando. Sempre procurei esse amor que permanecedepoisdoesgotamentodosexo,querecomeçadepoisdosexoteratingidoamisériahumanadoseugrauzero,quesereinventaapartirdarecordaçãodomomentodaentrega.Oamorconcreto,louco,azedo,cru,bárbaroquesóoshomensparecemsaberfazer,semvelasnemrituaisdelingerie,nadadessaparafernáliadebibelotsinventadapelasmulheresparasuprirafaltadeimaginaçãoaqueaHistóriaasconfinou.

—Euagoraestoutendoumaperspectivabemmaisholísticadavida,minhafilha.FizumBotox,sim,deiumaremoçada,eissomeajudouameolharnoespelhoeencontraressemeunovoeu,integral,estáentendendo?

Éumavozvelhademulher.AindanãoexisteBotoxparaasrugasdavoz.Umavozvelhacomoumfacto, maquilhada de juventude. No tempo de Vieira não havia a palavra «holística» e mesmo quehouvesse,elenuncaausaria.Nãousavapalavrasfalsas,depapeldelustro,deencandearpapalvos.Nãoprecisava do «paradigma» nem dos «protocolos mediáticos» nem da «análise do contexto». Nãoprecisavade«deslocamentos»nemdese«situar»—eraumdeslocalizadovoluntário,sempre

prontoalançar-seaosmaresparaacudiraoschamamentospermanentesintermediáriosdofuturo.Amãodestaoutramulherquemepuxaparadançartemaqualidadeduraecristalinadaspalavrasde

Vieira. Deixo-me levar para dentro de uma espécie de samba e no interior das duas vozes dos doishomensqueocantamressoaavozdeVieira-

—«MeunomeéOrsonAntónioVieira/Conselheirode"Pixote""SuperOutroVQueroservelho,denovo eternoQuero ser novo de novo/Quero ser "Ganga bruta" e clara gema/Eu sou o samba, viva ocinema.»

Jánãomesurpreendo.Danço.EstouemSãoSalvadordaBahiadeTodososSantos.Estouviva.Sim,Padre;porémesseestilodepregar,nãoépregarculto.Masfosse!Estedesventuradoestiloque

hojeseusa,osqueoqueremhonrarchamam-lheculto,osqueocondenamchamam-lheescuro,masaindalhefazemmuitahonra.Oestilocultonãoéescuro,énegro,enegroboçalemuitocerrado.ÉpossívelquesomosPortugueses,ehavemosdeouvirumpregadoremPortuguês,enãohavemosdeentenderoquediz?

—AminhavozvailimardoseucoraçãoavozdesseVieiraÉumapromessaqueestoulhefazendo.Poderir.Riaàvontade.

—Quepromessa,Emanuel!Issomaispareceumaameaça.Estácomciúmesdeumhomemmortoháséculos?

—Queciúme,quenada,meubem.Sóestouquerendolheofereceraminhapresença.Nessesnegóciosdevidaemorte,Claraquerida,séculosediasétudoamesmacoisa.Amortenãomorre,issoeusei,porexperiência,mesmo.

—Nemcalculascomoadmiroatuaforçaperanteamortedoteufilho.—Nãosetratadeforça,não.Questãodefé.IncorporeiAlex.Paramimelenãomorreu—passou

paradentrodomeusangue.JáTatiananãoaguentou.—AmãedeAlex?Oquelheaconteceu?—Dissequenuncamaisqueriamever,eemigrouparaPortugal.Comoomeninoestavacomigona

praia,passouameencararcomoassassino.Euatéentendoisso.Masparamimessaraivadelasignificouquenãoéramosfeitosumparaooutro,comoimaginávamos.

—Enãosofreucomisso?—Sofri,sim—graçasaDeus.MasnaquelaépocatinhatantasaudadedasgargalhadasdomeuAlex

quenemtinhaespaçoparasofrerporcausadeTatiana.Elasemandoue,naverdade,eunemdeiporisso.—Nemmaistarde?-Nãotemmaistarde.AsaudadedoAlexnãodiminui,nunca.Aúnicadiferençaéqueagentecomeçaaperceberquenãovaimesmoesquecernuncaogrão

daquelavozinha,acordaquelesorriso,ocheirodaquelapele.Agenteficaparasempregrudadonaquelefilhoestranho,quenãocresce.Masisso

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também acaba por ser bom, nos impede de crescer de mais. E nos ajuda a nos libertarmos dosnegóciosquenãointeressam.DesdequeoAlexmorreu,eusouquenemele:façosomenteoquequeroeaquiloemqueacredito.

—Compreendo-te.—Eusei,beleza.Nãoprecisafalarnada.Emanuel,meuamigo,digo-te—edizes-mequenãoésisso,umsimplesamigo.Maséissooqueum

diaserás,eeuprocurohabituar-mejáaofuturo.Ris-tequandoeufalodefuturo,paratisóháoeternoetáctilpresente.Dizesquemeagarrotantoàspalavrasquemeesqueçodeviver.

— As palavras são matéria plástica, Emanuel; resistem à deformação — mas a vida nunca seesqueceudemim,agarrou-meeabanou-medetodasasmaneiras,asmelhoreseaspiores.Houveumaépocaemquechegueiaacreditarquealgumacoisaemmimatraíaadesgraça.ViveremPortugalajudaaessasensação.Agora,queestouasairdevezdopaís,sintoqueumalâminadeinjustiçaatravessaestasensação—Portugal éum lugar afável, onde avida flui com suavidade eo sol aquece semqueimar.Talvezalamúriasejaapenasumritualportuguêsdeprotecção,queixamo-nosparailudirosdeuses,deformaaqueseapiedemdenósemvezdenosconsideraremosprivilegiadosquesomos.Talvezporissonos afadiguemos tanto a complicar as coisas simples e a fazer comque a justiçademore até ao JuízoFinal.Esse empenhamentona frustração tornou-se-nosuma segundanatureza, e enfraquece-nos.Tantasvezesmeinsinuaramquetinhaazarouqueatraíaoazar,queacabeiporacreditarnisso.Ograndeazar,narealidade, foi aqui na Bahia que o encontrei — mas é também aqui que descubro o princípio dodesprendimento,quemeimunizacontraqualquerazarfuturo.

—Amo suaplasticidade, sua capacidadedepermanecer atravésdas provasdavida—dizes-me,afagando-measmãos.

Devo-te muito, Emanuel. Devo-te acima de tudo a certeza de que nunca mais experimentarei asensaçãodequedevoalgumacoisaaalguém.Tornaste-meoutravezmulher,e,pelaprimeiravez,livre.Amo-memuitomelhordesdequeteamoati—eéporissoquenuncadeixareideteamar,mesmoquandoformos já só amigos.Só amigos, nuncamais seremos, tens razão: o prazer explosivodosnossosdoiscorpos juntos iluminar-nos-á em definitivo, quando isso a que chamamos amor se tiver despedaçadocontraabanalidadedosdias,queésempremaiordoqueapobrevontadehumana.Umdia,Emanuel,omeuestômagodeixarádeestremeceràaproximaçãodoteuperfume,omeucoraçãodeixarádepalpitaraoescutarosteuspassos,eaminhacabeçaterádeimaginarhistóriasperversasparaqueomeucorpoconsigamolhar-sededesejopeloteu.Nessedia,esperoqueconsigamosofeitodaamizade.Esperoqueconsigasgostartantodemimquetransportesalembrançadonossoencontroparaosegredodaintimidadequedepoisdemimvaisencontrarnoutrasmulheres.Pedes-mequemecale.Dizesquepensarnofuturoarruina o encanto do presente.Dizes que tentar dizer tudo é estragar tudo. Tens razão, Emanuel.Mastentarfixaropresenteemimagens,comotufazes,étambémmatá-lodepressa,etunãodásporisso.Osteusfilmescongelamavida,tantocomoasminhaspalavras.Eunãopossoverosteusfilmes,etuamas-meemsilêncio.Assimduraremos.

Estanossachamadavida,nãoémaisdoqueumcírculoquefazemosdepóapó:dopóquefomosaopóquehavemosdeser.Unsfazemocírculomaior,outrosmenor,outrosmaispequeno,outrosmínimo:Deúterotranslatusadtumulum:Masouocaminhosejalargo,oubreve,oubrevíssimo;comoécírculodepó a pó sempre e em qualquer parte da vida somos pó.Quem vai circularmente de um ponto para omesmoponto,quantomaisseapartadele,tantomaissechegaparaele:equem,quantomaisseaparta,mais se chega,não se aparta.Opóque foinossoprincípio, essemesmoenãooutro éonosso fim, eporque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quantomais parece que nos apartamos dele,tantomaisnoschegamosparaele:opassoquenosaparta,essemesmonoschega;odiaquefazavida,essemesmoadesfaz;ecomoestarodaqueandaedesandajuntamente,semprenosvaimoendo,sempresomospó.

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Entre mim e a minha nova amiga Clara existe uma intimidade de cem anos. Usamos de modosdiferentesamesmalíngua,

efazemosdessadiferençaumcódigonosso.Bastam-nosmeiaspalavras,umainterjeição,amelodiadinâmicadasnossasvozes.Clara éomeuespelhomágico: corrige-meamaquilhagem, escolhe-meascores,dizqueeutenhodevestirvermelho,porquesoudelansã—eovermelhodasblusasescolhidasporelacintilanavozdeEmanuel:

—Vocêestáumagata,princesa!Bomquevocênãopodeenxergar, senão iaseapaixonarporvocêmesma,enemprecisavamaisdemim.

PorsugestãodeClara,ecomaajudadelaedeumamigodeEmanuel,queéadvogado,compositorecantor, Emanuel criou para o seu filme— a que chamouMulherQueAmavaAntónioVieira— umabandasonoraapartirdostextosdopróprioVieira.Asurpresaemudeceu-me;osmeusolhossecoscomopedrastornaram-serios,enquantoEmanuelmesussurrava:

—Eunãodissequeminhavoziatesacudirmaisdoqueadessecaradoséculodezessete?Numagargalhadacristalina,Claraconcluiu:—Querida,comessetalentoprachorarvocêjánãoprecisamesmodevoltaraPortugal.Nempode,

queelesláaindaseafogam.Ergue-seoaviãoquemelevaparajuntodetipelaúltimavez,Claraamada.Seiqueteperdinesta

viagem.Não, não é assim: esta foi a viagem emque soube que nunca te fui nem serei indispensável.Pedir-te-ei que pelomenosme segures nasmãos como seme olhasses nos olhos. Pedir-te-ei quemecontestudosobreoteuamante.Quepelomenosissopartilhescomigo.Nãosuavizesnadaporvergonhaou pena. Preciso dos pormenores. Pelo menos sofrerei tudo até ao fim. Deleito-me imensamenteescutando as tuas histórias e as palavras — como viverei depois, em Lisboa, sem elas? Voo paraSalvador, voo para ti, Clara — com uma ténue, esfarrapada, miserável esperança de que regressescomigoaLisboa.

Não,nãoincomodanada.Imagina.Portuguesinhaboba,quandoéquevocêvaiparardetermedodeincomodar?Pelocontrário:vocêestámeabrindoaflordeumaalegriaqueeunãosabiaquetinha.Seuespanto, ontem, com aquela moça da caixa do supermercado que rimava palavras feito uma criança,falandoqueamavaesse trabalhoque lhepermitiaconversarcommuitagenteeversejar.Oentusiasmocomquevocêpediuquefôssemosnumalivrariaprocurarumbomlivrodepoesiaparaofereceràmoçados versos do supermercado.As histórias que você contava, esta tarde, enquanto fazíamos amão nocabeleireiro,eríamostantoqueasmeninastiveramquerepetirovernizemtodasasnossasunhas.Vocêdizque é aBahiaque lhe faz feliz.Será aBahia, seráumcerto artista baiano...mas é a sua almadenavegadora,querida,queestá trazendoessasondasdefelicidadequotidianaparadentrododesertodaminhavida.Nãosearrependadeficar,Claraquerida.PrecisamesmodesedespedirdesseSebastião?Paraquêcarregaressanossacurtaexistênciacomdespedidas?Ninguémsabedespedir-sede

nada—não inventámos a eternidade para evitarmos as despedidas? Pois é.Olhe? vou eu no seulugar.Nãoincomodanada,estoumorrendodecuriosidadedeconheceresseseucavaleiroandante.Emvezdeumadeus,eulhelevoummimoseueomeumelhorsorrisodebom-dia.Ocarasóficaaganhar,querida.Assuntoencerrado.

(Acarnedaspalavras.Alimentando-sedecorposparanãomorrer,movendo-senoescuroparanãocegar.Abroolugardaspalavraspararespirar.Palavrasquesedespalavramnosilêncio,deasasabertas,largandoosrecatosdatinta,escapandoaofurordospúlpitos,lavandoocéu.)

Noaeroportovejoumamulherqueexibeumcartazcomomeunome.Aproximo-medela,dizquesechamaClara.Que é amiga daminha amigaClara.Que vem entregar-me uma lembrança dela, porqueClaranãogostadedespedidas.ComumolharcompadecidoacrescentaqueissosignificaqueClaranãoquer despedir-se de mim. Abro o pacote, tem um livro de poemas: Guardar, de António Cícero.Murmuro:

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—António,outravez...AClaraquenãoéaClararesponde,sorrindo:—Não,nãoéesseAntónio,fiquedescansado.Leia,vailhefazerbem.Despeço-merapidamentedestamulherquepretendefazer-mebem.Nãoqueroqueelaassistaàminha

raiva,àminhadesolação.Alegoquetenhoaindaumasériedelembrançasparacomprarnoaeroporto,eviro-lheascostas.Merecia-temaisdoqueisto,Clara.Merecia-te.Estoucegodelágrimas,Clara,tenhoosolhosembaciadosmasninguémoperceberá.Sorrio,explicoaosoutrosqueafinalficasmaisunsdiascom uma amiga que não está bem, amãemuito doente, não quero que o grupo se apiede domaridocornudo em que me transformaste, sorrio monumentalmente, aflito, demasiado desgraçado para meenfurecercontigo,notúnelparaoaviãocontrolooimpulsodelargartudoecorrerparati—porumavezomeuorgulho(ouvergonha,oucobardia,ouoquelhequeiraschamar)foimaior.Nãomehumilhareiumavezmais—aguentariadecertoahumilhação,sim,masnãoaguentariaterdemesepararoutravezdeti.Derastosateuspés,etuaenxotares-me—édemasiadopingão,demasiadopatético.Acimadasnuvens,leioatuadedicatória:«ParaoSebastião,queguardareicomigoavidainteira.»Mentesharmoniosamente.

«Guardarumacoisanãoéescondê-laoutrancá-la.Emcofrenãoseguardacoisaalguma.Emcofreperde-seacoisaàvista.Guardarumacoisaéolhá-la,fitá-la,mirá-laporadmirá-la,istoé,iluminá-laouserporelailuminado.Guardarumacoisaévigiá-la,istoé,fazervigíliaporela,istoé,velarporela,istoé,estaracordadoporela,istoé,estarporelaouserporela.PorissomelhorseguardaovoodeumpássaroDoquepássarossemvoos.»Tantoqueeuteguardei,Clara.Tantoquemeesquecidemeguardaramim.RegressoaPortugalsem

nada—aspessoasdogrupo falamanimadamentedomuitoqueaprenderamnestaviagem.Amimestabagagemdemuseus, igrejasepaisagens tropicaispesa-mecomoumacondenação.Queriadormir,masquandofechoosolhosvejo-teaindacommaiornitidez.Vejooteurostodeolhosbrancos,oteusorrisovago,oteucorpoadormecidoincendiandoainsóniadomeucorpo.Fechoosolhosechoro,Clara.Comosetumetivessesdeixadoemherançaastuaslágrimas.

Claracoloca-meosdedos,umporum,nascordasdoviolãoerecordameolugareomododecadanota. Falei-lhe das transatlânticas noites de juventude em que saíamos do Coliseu inebriados eesticávamosanoiteatéaonascerdoSol,emcasadealguémouàbeira-Tejo,emtornodeumaguitarra,prolongandoosconcertosdeChicoBuarqueouCaetano.Hávinteanosquenãotocavaenoentantoasnotasfluemdebaixodosmeusdedos.ClaradizquenenhumcantorconseguiucriarmulherestãoautênticasquantoChicoBuarque, e começa a cantar: «Quero ficar no teu corpo feito tatuagem/que é pra te darcoragempra seguir viagem/quando a noite vem.»Osmeus dedos descobremo tom, no violão dela, eseguem-na. Depois trocamos. Eu canto: «Oh pedaço de mim/oh metade afastada de mim/leva o teuolhar/que a saudade é o pior tormento/é pior doqueo esquecimento», enquanto ela dedilhaoviolão.Acabamos rindo à gargalhada, desesperadamente, como se misturássemos lágrimas. Choramos a rir,choramoscomoriso.Pornografiaracional:duasmulheresemancipadascantandoafavordaescravaturavoluntária da paixão.O nosso risomisturado enche-me de cor, entre as nossas gargalhadas vejo umachuvadefoguetesbrilhantes,amarelos,azuis,vermelhos,roxos,verdes.

Enquantorimos,esqueço-medequenãovejo.SóasconversascomClaraeosexocomEmanuelmeprovocamesteesquecimento.Depoisdoorgasmo,osorrisodoEmanuelabre-se lentamentecomoumaflorcarnívorapordentrodosmeusolhoscegos;oscantosdasuabocaerguem-se,comosedançassem,

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muito devagar, os dentes brancos, pequenos, um pouco incertos, vão surgindo a pouco e pouco, e osorrisoespreguiça-secomoumcorpofelizatéoiluminarporinteiro.ClaradizqueaminhadefiniçãodosorrisodeEmanueléexata—«Agoraseelesorriassimdepoisdoorgasmo, issonãoposso lhefalar,querida,lhejuroquenãoestousabendo...Sebemquetemhoraemqueatéquenãomeimportariadetiraruma conhrmaçãozinha, sua sortuda.» Nomeio domeu riso, ouço-a acrescentar: «Afinal, nós temos omesmotipodehomem,enãoseriaaprimeiravezquepartilharíamosomesmocara.»Paroderirparalheperguntar de que cara fala ela—do nossoAntónioVieira? «Esse também, claro.Mas esse, querida,apenasnosaqueceriaoespírito,mesmo.EstoufalandodooutroAntónio,doAntónioquelhecegou,doAntónioquevoouparaocéu,dopaidosmeusfilhos.»Ofogodeartifíciodeserta-meossentidos,caiodenovo, vertiginosamente, no túnel das trevas. Sussurro: «Tu sabias. Porque é que não me disseste?»,perguntaestúpida,disléxica,atordoada.

Clara,aClaraverdadeira,aúnicaClara,procura-measmãoscomasmãos,deixacairoviolão,ouçooestrondo,fujocomosdedosaosseusdedos,digo-lhequenãomeagarre,nãomeagarre,eavozdela,trémula,respondequegostavaquepudéssemoscontinuaragarradasumaàoutra,quetambémelavivianoescuro,deoutramaneira,queprocuravaacoragem,omomento,oinstanteperfeito,quepassaraanosaterraivademim,apensarqueforaeuacausadoradamortedeAntónio,ajulgarqueeleseinterpuseraàsbalasparamedefender.Comqueinocêncialhecontaradomeudesastre.«Porissonuncamedesteatuamorada,diziassemprequeeunãomepreocupasse,queiasbuscar-meacasadoEmanuel.Eeuapensarqueeraporgentileza»,digo-lhe,feridanestemeuorgulhodediminuída,depessoaaqueméfácilmentir,enganar,manipular.Claradeclaraquesouinjusta,queapenastinhamedodemeafastardesi,medodequeeudesistissedaBahiaemefosseembora.Talcomoeu,nuncateveumaamiga—descobriasemprequeassuasamigaseramamantesdeAntónio.Confessa-meque,quandolheconteiaminhahistóriacomAntónio, percebeu que eu viera para acabar com o ressentimento que ela guardava contra o Antóniomorto,eparalhedarumasegundaoportunidadedevida—umaespéciederessurreição.Ponhopedrasde raiva na voz para lhe dizer que a julgava agnóstica. Responde-me com doçura. Diz-me queprecisamente por não acreditar na eternidade precisa da ressurreição terrena.Diz: amiga, amiga.Nãorespondo.Ouçovozesjuvenis,osseusdoisfilhosqueregressamdocolégio.Pedro,omaisvelho,temavozdopai—comoéquenuncareparei?

AvozdeAntónio,dizendoagora:«Quebomencontrá-la,Clara,ficaparajantarcomagente?»Avozda mulher de António, implorando-me que fique, murmurando por favor, por favor, nós duas somosmaiores que isso, eu não aguento abrir mão de mais um afeto. Amiga, amiga. Quantas formas tem odesejo?Quantas aparições a eternidade?Habituei-me em poucas semanas à voz deClara, ao riso deClara,àsuacumplicidadesolar,aocheirodasuacasa,acasaquefoidelaedeAntónio.ABahiaquemeensinouaperderensina-meagoraaaceitarhumildementeadádivadoamor;aartedaperdaconsistenodesprendimentodaraivaedapiedade—ClarafoimulherdeAntónioenãotemraivanempenadesimesmaoudemim.

Dasparedesdomeupaísescorreumamágoadeespoliadosdaepopeiadomundo,umsentimentoquesecurvousobresimesmoeseavinagrou.Édemelevinagreavozdofado,avozdeumpaísdenegro,opaísdanoiteimóvel,suspensaentreafebredasrecordaçõeseadoençadofuturo,opaísincomparávelqueseesboroaemcomparações,umpaísquesecurvaeturvaetransformaasestrelasempoalhadeluz.OcéudoBrasiléumespelho,águaeaço,nítidoereal,quecegaemataesugaenoscorrompedeazul.Tenhooutravezolhos,outrosolhos,aqui—naextremidadedosdedos,nasmaçãsdorosto,napeledosbraçosedosombros,nos fiosdocabelo.Toco, tocam-me, tudo toca, soa, ressoa, as frasesmexem-secomo pessoas, rebolam pelo interior do corpo e trazem o sangue ou a saliva, o desejo, o suor, apaisagem,omuco,omusgo,afotografiadadesolaçãocomastripasdaesperançaaindaemcarneviva.País de palavras redondas como corpos abraçados, país do dia cru, absoluto, erguido contra omedocomoummeninocurioso,paíshipermortalhiperbolicamentevivo,paísmeu, tãodiferente e íntimodo

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meupaís.Fique,pede-meavozdeClara,avozenrugadadeClara,feitadamatéria incandescentedosolhosqueperdi.Fique.Vocêsabequeesteéoseupaís.Aterradosseusmortos.

Nãoéterrívelamortepelavidaqueacaba,senãopelaeternidadequecomeça.Noinícioeuaamavacomumsentimentodevingança,António.Tinhacompaixãoporela,eesseera,

paramim,umsentimentosafado,quasecriminoso—umaesmolasentimental.Estremeciadefúriaquandoolhavaparaocorpobalançadodela,aquelasancaslargaseenxutasdeportuguesasonsa,comumjeitoderecatolançadoemdesacatoparalheenfeitiçar.Masovaziodosolhosdelamedavavontadedechorar—depenadevocêedelaedemimaomesmotempo.Acompaixãoinscritanessesolhosopacoséfeitadeumacumplicidadepassionalnosofrimento.Omeuamorporvocê,António,oseudesejopor

ela, a paixão dela por você compõem uma sómassa de cinzas, sabedoria póstuma, como que umpresentequeasuamorteeamortedosolhosdeClaranosoferecemàsduas.

Atravésdacegueiradelapossoolharparavocêdenovo,António.Perdoar-lhe,perdoar-me,acimadetudosoltar-medessaredehumanaefracadeofensaseperdões,doenredoteatraldenossasvidas.UmpadredoséculoXVIIlheconduziuaPortugaleaocorpodeumamulher,essemesmopadreatransportouagoraparadentrodomeucoração.Pelomeio, ficouonaufrágiodonossocasamento,dasuavida,dosolhosdela.Juntas,renascemosdetodasessastragédias.Euaqueroemmimcomoumaamigadeinfância,ouçoosnossoscorposeasnossasalmascrescerementrebrincadeirase risos.Elanãovêa idadedaminha pele, ganhou o dom de atravessar o tempo, imune à degenerescência dos tecidos do corpo.ObrigadaporClara,António.Descanseempaz.

Deixastedeme responder, ingratoSebastião,masnãopensesque te culpoou te castigoou sequerlamentoatuadecisãodesilêncio.Danossatãoaltaamizadeguardofirmamentobastanteparafirmementete querer bem pelo resto das nossas vidas. Talvez um diamorras, e eu não saiba— e isso significaapenasquetecontinuareiamandovivo,equeviverásemmimenquantoeuviver.Eessaaimortalidadeemqueacredito.

Nãoestranhesqueuseapalavraamor—sempre tedisse,amigo,queentendiaesteafectodaalmapartilhadacomoamaisconstantedeclinaçãodoamor,eoBrasilensinou-meaeróticadoamorqueasimesmosebasta.EraesteoamorfinodequefalavaAntónioVieira,umamorsemretorno,indiferenteàesperança e ao desespero, obsessivamente amante. Que prazer se pode retirar de um amor assimdesabrigadoesolitário?—perguntariastu,seaindameperguntassesalgumacoisa.Oprazermesmododesabrigoedavertiginosacompanhiadoabsolutodoamor.AntónioVieiraencontrouparaesteamoronome de Deus, e despiu-se do corpo— ou antes, macerou-o em expedições constantes— para lheentregar esse desfiladeiro de luz a que chamamos alma.No tempoque lhe foi dadoviver, as pessoasserviam-sedocorpocomodeumamuralhaimpenetrávelaosentimento,umaarmafrágil,corroídapelopecado original, amesquinhada pelo pó da terra e pela rudeza dos instintos.Não se sabia ainda nadasobreaquímicadosafectosnemsequersesuspeitavadaexistênciadeumarazãocríticauniversalquenosdefineefortalececomosereshumanos.Porissoseprojectavaoamornumcéufuturo—umcéuquejáconquistámos,Sebastião,equeéfeitodamatériaestelarquecompõeosnossoscorpos.Háépoucagenteparadarporisso,ainda,porqueoóbviocegamaisdoqueacegueira.

OBrasiljáconheceesteamor;neleresideasuaespantosaenergia.Esteamorfino,generoso,queserespiraemfelizinconsciência,nascedoconvívioquotidianocomamorteecomamúsica,comadançaeodesaparecimento.Éumamorsemontemnemamanhã,semcálculosnempoupanças, instantaneamenteeterno. Partilho-o no corpo do meu amante Emanuel e na gargalhada da minha amiga Clara, e nessapartilhaomultiplico,demodoaque,seClaraeEmanueldesapareceremamanhãdebaixodeumachuvadebalas,dotrovãodeumadoença,oudosimplestédiodaminhapresença,eupossaprosseguircomeledentrodemim.

Esta descoberta do amortornou-me invulnerável, Sebastião. Dou-me, e acrescento-me. Clara e eulançámoshámesesumaescolaondeascriançascegasaprendememconjuntocomascriançasquevêem.

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Criámosumsistemadepagamentoproporcionalaosrendimentosdospaisdosmeninos,oquesignificaqueascriançascegasmaisprotegidaspelafortunacusteiamosestudosdasquenãotêmnada.Nãoéumarevolução—nemeunemClara acreditamosnelas—mas éoprincípiodeumnovo entendimentodavida,quepodegerarnovosemelhorespoderes.Pelomenostentamos—eestamosfelizes.

Querocrerqueoteusilêncioétambémumsinaldefelicidade.Assaudadesquetenhodeti,emboraimensas,queridoSebastião,sãoummerogrãodeareiadiantedaalegriaqueexperimentoaosentirquejánãoprecisasdemim.Aliberdadedenãosernecessáriaé,verdadeiramente,inebriante—tambémissodevoaAntónioVieira, desta feitapor contraste: estemeuqueridoMestreviveudemasiado sujeito aoolhardosoutros.Eraumartista,e talvezumartistanãopossanuncaprescindirdopesodosoutros,dolugardosoutros,deafirmarasuavozcontraomarulharimpiedosodosoutros.Eutenhoasortedenemsequerveresseolhar,quandomeéhostil.Porqueosolhosdosquenosamam,aquinoBrasil,beijam-nosapele.Enãoémetáfora,Sebastião,aquijánãoprecisodagaioladasmetáforas.

(Avançopelodiatacteandoapeledossonhos.Palalastrosdeumalfabetotáctil.Palavrasembotãodebaixoda língua,nocéudaboca,napontadosdedos, rumorejantescomo ruas.Avozdeumhomemdespertandoosonodosanjosesquecidos,ateando-lhesolumedasasas,revelandoaeternidadequeosengendrou.Anoiteespalha-sepelocéucomoumespelhodepalavrasnuas,distintasesemelhantescomoestrelas.Avozdeumhomemlançandoofogodasestrelassobreanoitedosséculos.Palavras,coisasdepedraqueateiamoincêndiodoinstanteeguardamassuascinzas.)

MinhameninaClara.Apliquei os pincéis aoquadro e comecei a delinear-lhe as feições do rosto.Tornei aolhar, eoquevi jánãoeraamesmamulher; jánãoeraomesmo rosto, jánãoeraamesmafigura,senãooutramuitodiferentedaprimeira.Deixeiodesenhoque tinhacomeçado; lanceisegundaslinhas, comecei segundo retrato e segundo rosto? olhei pela terceira vez, o segundo original já tinhadesaparecido,Claraestavaoutraveztransformadacomnovoaspecto,comnovasfeições,comnovacor,comnovaproporção,comnovafigura. Jámepuderadesenganarecansar;masamesmamaravilhameinstigavaaprosseguir.Olheietorneiaolhar;desenheietorneiadesenhar;masnuncapudetornaraveromesmoquetinhavisto;porquequantasvezesaplicavaedivertiaosolhos,tantoseramosrostosdiversos,etantasasfigurasnovasemqueaminhaamadaserepresentavaamim.Pasmeiedesistidoretrato.ComoseClarafosseúnicaesemelhantea todasasmulheres,emsimultâneo.Assimficaramosmeusretratossuspensos e imperfeitos. Se ela é semelhante a tantas mulheres, como pode ser uma mulher semsemelhantes?Parteporparte,ésemelhante;toda,nãotemsemelhante.Nelaseachajuntooquenasoutrasseachadividido.

Omelhorretratodecadauméaquiloqueescreve.Ocorporetrata-secomoPincel,aAlmacomaPena.

Amoos teusdedos frios e firmes,Emanuel.Amoa lentidão comque introduzes cadaumdos teusdedosnaminhaboca.Amoalevezadatualínguaavançandopelasminhascoxas.Tocas-meapenascomaextremidadedalíngua,sabesaquepontoopoucoquesedáfazcrescerodesejo.Gostodesentiromeusexotransformar-seemmarteu.Gostoquemeentornesaalmaparaasuperfíciedapele.Amoquemedecomponhasemletraemúsicaemereconstruasnotaanota,versoaverso,comoumacanção.Amoestepedaço de ti que se endurece e expande na minha boca, Emanuel. Amo este talento particular defragmentaçãoqueosteusmembrospossuem:umamãosobreosmeuscabelos,aoutradedilhandoosmeusmamilos,obraçoroçandoomeupescoço,umdedodopénomeutornozelo.Osteusdedostransformamomeu corpo em lava incandescente. Gosto que me digas que não tenha pressa, que te demores aenlouquecer-me,queentresportodasasminhasportas,quemeproibasdemeviremtisemti.Gostodalevezadosteusdentesroendoolóbulodaminhaorelha.Gostoquemeperguntessemeestouvindo,numgerúndiosemprincípionemfim,comoomeudesejoporti.Gostodeteouvirgritarqueestásgozando.Gostodoarrepiodatualinguanaminhanuca,gostoquemedigasqueromaisquandocreiojáteterdadotudo.Gostodaspalavrasobscenasqueinventamosjuntos,feitasderestosdebarcoseimpérios,lodose

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dolosdonossopassadocomumestoiradopelascosturas.Gostodosabordoteuumbigosuado,gostodocheirodospêlosdoteucorpo,dotoquedobrincodatuaorelhanapartedetrásdomeujoelho.Gostodeacariciaroteupescoçodecisne,comosetealisasseaspenas.Gostodeapertaratuacinturaestreitanasminhas pernas, de sentir os teusmúsculos pequenos latejando como uma bateria caótica de corações.Amoesteamorquenosderreteosangueequeseabrenumalentidãoderosanoteuinigualávelsorriso.Amoadelicadezacomquelevasosmeusdedosàtuabocaparaqueeusintaoteusorrisocrescersobosmeusdedos, embriagadodegratidão.Aquemmedá a eternidadenãopossooferecermenosdoque aminha eternidade. És todo para desejar, meu amado, e os meus desejos são todos como tu. E sei,Emanuel,quealuzdestedesejoseperpetuaráparaládenós.Sei-onesteinstanteemquedentrodemimvensatiedentrodetivenhoamimeosdoisengendramos,numacordeuníssono,umavidanova.

FIM

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AGRADECIMENTOS

A autora agradece ao Centro Nacional de Cultura, e em particular ao seu presidente, Guilhermed'OliveiraMartins,oconviteparaaviagempeloBrasildoPadreAntónioVieira,emSetembrode2005,no âmbito do ciclo Os Portugueses ao Encontro da Sua História. Do percurso e dos cenários dessaviagemnasceuaideiadesteromance.AgradecetambémaoInstitutoPortuguêsdoLivroedasBibliotecase àLedigHouse—Writer'sResidence. nosEstadosUnidos daAmérica, a estada que lhe permitiu oisolamentoeosilêncionecessáriosàrealizaçãodesteprojecto.

Um agradecimento especial é devido aos anteprimeiros e providenciais leitores deste livro, pelapaciência,pelassugestõesepeloestímulo.Sãoeles,porordemalfabética (e lembrandoqueooceanodosafectosnãoreconheceordemalguma):CecíliaAndrade,CristianeCosta,FernandoPintodoAmaral,HelenaMatos, JoséMiguelWisnik,Lídia Jorge,MariaLúciaDalFarra,PatríciaReis,PauloRobertoPires,RuiZinkeThomasColchie.

AoJorgeColombo,nãopossojásequeragradeceracolaboração,porquesãoosseusolhosaquelesque primeiro desenterram da névoa os meus personagens, e foi graças à sua voz de comando, a umcontinentededistância,que todososmeus livrosnasceram-.«Escreve.Não tequeixes.Reescreve.»Éeletambémoautordorostofinaldetodososmeuslivros.