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INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E FILOSOFIA IVETE MARIA FORTES ÉVORA A Produção da Aguardente na Ilha de Santo Antão e o seu Contrabando nos meados do século XX: um olhar histórico Licenciatura em Ensino de História Praia, Setembro de 2006

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E .... Ivete... · fonte riqueza e que hoje está sendo devidamente explorada gerando, deste modo, empregos para a população

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INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E FILOSOFIA

IVETE MARIA FORTES ÉVORA

A Produção da Aguardente na Ilha de Santo Antão e o seu

Contrabando nos meados do século XX: um olhar histórico

Licenciatura em Ensino de História

Praia, Setembro de 2006

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E FILOSOFIA

IVETE MARIA FORTES ÉVORA

A produção da aguardente na ilha de Santo Antão e seu contrabando

nos meados do século XX: um olhar histórico

Licenciatura em Ensino de História

Praia, Setembro de 2006

IVETE MARIA FORTES ÉVORA

A produção da aguardente na ilha de Santo Antão e seu contrabando

nos meados do século XX: um olhar histórico

Trabalho monográfico apresentado ao Instituto Superior

de Educação para a obtenção do grau de Licenciatura em

Ensino de História sob a orientação do Dr. José Silva

Évora.

ISE, Setembro de 2006

Ivete Maria Fortes Évora

A produção da aguardente na ilha de Santo Antão, e seu contrabando

nos meados do século XX: um olhar histórico

Aprovado pelos membros do júri e homologado pelo

Presidente do Instituto Superior de Educação, como

requisito parcial para a obtenção do grau de

Licenciatura em Ensino de História

O JÚRI

_____________________________________

_____________________________________

______________________________________

ISE, _____ de __________de 2006.

I

Dedicatória

À minha mãe Bibi, à qual devo a razão da minha existência e que nos momentos mais

difíceis esteve sempre presente. À minha filha Andreia, ao meu namorado César e aos

meus irmãos, que sempre se preocuparam com a minha formação.

II

Agradecimentos

O trabalho que aqui se apresenta, da completa responsabilidade da autora, só se

concretizou e atingiu o ponto final, devido ao contributo e apoio de várias pessoas, que

eu gostaria de agradecer imensamente, e isso só poderá ser feita através de curtas

palavras.

Sendo assim, um agradecimento muito especial e particular ao meu professor e

orientador Dr. José Silva Évora, pela paciência e disponibilidade que teve ao longo da

elaboração do trabalho.

No geral agradeço, aos senhores: Domingos Santos, João Nascimento Jesus, José

Angelina Santos, Manuel Nascimento, Pires Ferreira, Rosa Francisca Fortes, Zacarias

Delgado, Carlos Fortes, pelas entrevistas que me concederam, que foram importantes e

sem as quais o presente trabalho não poderia ser realizado. Ainda aos senhores Jorge

Pires, Lauro pela documentação facultada.

Às minhas colegas Lanísia, Joanita, Solange, e Marilda, pelo incentivo e apoio moral

que sempre me concederam, durante a realização do trabalho.

Aos professores: Dr. Sena Monteiro, Doutor Daniel Medina, Mestre Lourenço Gomes,

Mestre Baltazar Neves, os quais não podia deixar de agradecer, pelas orientações

concedidas.

Aos que de uma forma ou de outra contribuíram para que o trabalho fosse uma

realidade, um muito obrigado.

INDICE

Paginas

Introdução ---------------------------------------------------------------------------------------------1

CAPITULO I

1 - Enquadramento Histórico e geográfico ------------------------------------------------------ 3

1.1 – Enquadramento Geográfico ------------------------------------------------------------------- 3

1.2 – Enquadramento Histórico ---------------------------------------------------------------------- 5

CAPITULO II

2 - Santo Antão nos meados do século XX -------------------------------------------------------- 8

2.1 – Aspectos da economia --------------------------------------------------------------------------- 8

2.2 – Impacto da agricultura --------------------------------------------------------------------------- 11

2.3 – O cultivo da cana sacarina: um exemplo de Monocultura na ilha de Santo Antão ------13

CAPITULO III

3 - O fabrico da aguardente e seu consumo na e fora da Ilha -------------------------------- 19

3.1 – Caracterização dos espaços de produção ----------------------------------------------------- 19

3.2 – Produção da aguardente ------------------------------------------------------------------------- 21

3.2.1 – A fermentação --------------------------------------------------------------------------------- 22

3.2.2 – A destilação da calda ------------------------------------------------------------------------- 23

3.3 – A comercialização na e fora da Ilha ---------------------------------------------------------- 24

3.4 – Impacto do seu consumo ----------------------------------------------------------------------- 26

CAPITULO IV

4 - O contrabando da aguardente na ilha de santo Antão ------------------------------------ 29

4.1 – Regulamentação de fiscalização da aguardente nas ilhas de Cabo Verde --------------- 29

4.1.1 – Imposto ----------------------------------------------------------------------------------------- 30

4.1.2 – Licença para destilação ----------------------------------------------------------------------- 30

4.2 – Legislação de proibição do fabrico da aguardente em Cabo Verde -----------------------36

4.3 – Início do contrabando e suas consequências na ilha de Santo Antão --------------------- 38

4.4 - Legalização da produção do fabrico da aguardente ----------------------------------------- 44

Conclusão ----------------------------------------------------------------------------------------------- 47

Bibliografia --------------------------------------------------------------------------------------------- 50

Anexos

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

1

Introdução

O trabalho que ora apresentamos insere-se no âmbito das exigências curriculares do ISE,

como requisito parcial para a obtenção do grau de licenciatura em ensino de história.

Para o efeito propusemos como tema, a produção da aguardente na ilha de Santo Antão, e o

seu contrabando nos meados do século XX, assunto tão falado na e fora da ilha, mas muito

pouco tratado na nossa historiografia, sendo essa, uma das razões da escolha.

Sendo assim, quisemos no fim do curso de Ensino de História dar o nosso contributo, ainda

que modesto sobre esta matéria, procurando dentro do possível, lançar um olhar sobre um dos

aspectos que parece-nos mais marcantes na história contemporânea de Santo Antão.

Pela documentação consultada nomeadamente os Boletins Oficiais da então Colónia de Cabo

Verde, foi-nos possível seguir o percurso histórico por que passou a produção da aguardente,

pelo menos, no que diz respeito à legislação e regulamentação sobre esta matéria.

Para além da documentação consultada, para a elaboração deste trabalho, recorremos a

pesquisas de campo nomeadamente as entrevistas, que foram aplicadas às pessoas que de uma

forma ou de outra estiveram ligadas ao fenómeno.

Os objectivos traçados para a elaboração deste trabalho foram:

- Conhecer o impacto socio-económico da produção da aguardente na ilha de Santo

Antão;

- Explicar as razões que levaram o governo de então a proibir o fabrico da aguardente

e, finalmente, analisar as consequências do contrabando deste produto.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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O referido trabalho encontra-se compartimentado em quatro capítulos, estes subdivididos em

sub-capítulos, com excepção das partes reservadas à introdução, conclusão, bibliografia e

anexos.

Assim, no primeiro capítulo trabalhámos o enquadramento histórico e geográfico de Santo

Antão, onde fizemos um breve resumo daquilo que foi a descoberta e o povoamento da ilha;

No segundo capítulo falámos de Santo Antão nos meados do século XX, realçando alguns

aspectos da economia e da sociedade e o cultivo da cana sacarina na ilha;

No terceiro capitulo abordámos a produção/fabrico da aguardente e o seu consumo na e fora

da ilha, onde tentámos demonstrar todo o processo de fabrico deste produto, sua

comercialização, bem como o impacto do seu consumo.

Finalmente no quarto e último capítulo levantámos a problemática do contrabando nos

meados do século XX, tentando sempre que possível explicar os motivos que levaram o então

governador da Colónia de Cabo Verde a proibir o fabrico da aguardente.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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CAPÍTULO I

Enquadramento Histórico e Geográfico da Ilha de Santo Antão

1.1 - Enquadramento Geográfico

Situado na parte mais setentrional do arquipélago de Cabo Verde, a ilha de Santo Antão faz

parte do grupo das ilhas de Barlavento, com uma superfície de 779 Km2. É a segunda em

dimensão, depois da ilha de Santiago. O seu ponto mais alto é o Topo de Coroa com 1979

metros de altitude, situa-se na parte Oeste da Ilha e é a segunda maior altitude do arquipélago,

depois da Ilha do Fogo.

Situa-se no “Atlântico Médio, a cerca de 450Km da Costa Africana entre os paralelos 16°55’

Norte no Extremo Sul e 17°12’ de latitude Norte no extremo Norte e os meridianos 24°58’ no

Extremo Este e 25°22’ de longitude W G, no Extremo oeste, delimitados respectivamente

pela Ponta do Sol, Ponta Cais dos Fortes, Ponta Chã de Mangrade e ponta da salina1.

A ilha tem um relevo bastante acidentado, principalmente nas regiões norte e nordeste. É a

mais montanhosa do arquipélago de Cabo Verde, com muitas serras e cordilheiras, entre os

quais encontram-se os vales que nas épocas “das-águas” correm caudalosamente: Ribeira

Grande, Ribeira da Torre, Ribeira do Paúl, Ribeira de Duque, Ribeira da Garça entre outros.

Tem 42.750 Km de comprimento e 23.970 Km de largura.

Na parte central, depara-se com uma extensa zona montanhosa que começa no Monte do Pico

da Cruz e se estende para o Sudoeste pela Cova Selada de Tarrefe, Loaguinha e Chã de Lagos

1 - Serviço de Administração civil (1951) in PIRES, J. Humberto – Evolução demográfica de S. Antão (1940-

2000), Monog. Apresentada ao ISE, para a obtenção do grau de Bacharelato em História 2001.

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para terminar no Monte Gudo de Cavaleiro com a altitude compreendida entre 1200m e

1811m.

A parte Sul da ilha é de orografia mais suave com zonas planas. O relevo montanhoso

favorece as precipitações orográficas e a captação do nevoeiro, principalmente nas vertentes

norte e nordeste.

As praias são praticamente inexistentes, localizadas no desembarcadouro das principais

ribeiras.

Devido às condições climatéricas existentes, as potencialidades hídricas são naturalmente

escassas, embora, com relativa abundância nos vales mais importantes do norte e do nordeste.

No resto da ilha, mais extenso e mais seco, só muito raramente são notórios algumas

ressurgências de fraco caudal, sendo de assinalar hipóteses de existências de reservas

subterrâneas.

Na parte norte/nordeste da ilha, nas zonas mais altas encontram-se as coberturas vegetais de:

Eucaliptos, Pinheiros, Acácias, Sisal, entre outros, e nos vales as grandes áreas de exploração

agrícolas, e na parte Sul localizam-se as paisagens áridas, tipo desérticas e lunares de difícil

desenvolvimento de espécies vegetais.

Na ilha existem nascentes de água minero-medicinal de diversas qualidades: Gasosa Férrea,

Alcalina, nas localidades de Fajã dos Matos, João Afonso, Paúl, Chã de Pedras, Ribeira das

Patas, entre outros. Existem ainda as jazidas de Pozolanas no Porto Novo que constituem uma

fonte riqueza e que hoje está sendo devidamente explorada gerando, deste modo, empregos

para a população da ilha.

Encontra-se dividida em três concelhos: Ribeira Grande, Paúl e Porto Novo, com as suas

respectivas freguesias.

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1.2 - Enquadramento histórico

Como é sabido as ilhas de Cabo Verde foram descobertas, segundo consta, por volta de 1460,

no âmbito das viagens da expansão marítima europeia iniciada, no século XV, tendo iniciado

o seu povoamento provavelmente em 1462, graças aos privilégios concedidos aos moradores

de Santiago. A ilha de Santo Antão também não foge à regra. Porém, ao que tudo indica terá

sido deserta de gente pelo menos até o século XVI.

Segundo Lopes de Lima, nenhum cronista indica concretamente a data do descobrimento da

ilha de Santo Antão, mas ele afirma que “não podia elle deixar de ser simultâneo com o das

mui vizinhas de S. Nicolau, Santa Luzia e S. Vicente.” 2

É tida como descoberta oficial da ilha de Santo Antão, 17 de Janeiro de 1462, dia em que

geralmente se celebra o seu Santo Padroeiro, isto porque era habitual atribuir ao lugar ou ilha

descoberto o nome do Santo do Calendário religioso.

À semelhança do que aconteceu nas outras ilhas, após a sua descoberta impunha-se a sua

rentabilização e gestão, esta fazendo-se através do controlo exercido por um aparelho

administrativo institucional: a Capitania-donatária. É assim que em Santo Antão vamos ter

capitães donatários com amplos poderes sobre toda a unidade, poderes esses de foro

administrativo, jurídico e económico.3

Santo Antão foi a ilha do norte a primeira - mesmo que incipiente - onde se iniciou o

povoamento e ocupação nos primórdios do Século XVI. A comparar tal hipótese os autores da

história da ilha apontam o desembarque da Caravela Santa Luzia em 1504, em Lisboa, de

12.687 peles e 67 quilos de sebo embarcados em Santo Antão.

A ilha de Santo Antão, terá sido povoada, por algarvios, alentejanos e minhotos, mas que

devido à falta de mão-de-obra para trabalhar na agricultura que era a única actividade da ilha,

os colonos viram-se obrigados a importar mão-de-obra escrava da costa da Guiné,

2 - FERRO, Maria Haydeé Ferreira. Subsídios para a História da ilha de Santo Antão de Cabo Verde (1462-

1900). Praia. Instituto da Promoção Cultural. Tese. 1998. pp. 11. 3 - Sobre o assunto sugere-se a leitura de Diversidade e complementaridade na formação da Sociedade Colonial

Caboverdeana: A arqueologia da sociedade de Santo Antão (1504-1732) do professor Artur Teodoro de Mattos.

Universidade Nova de Lisboa.

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provenientes de Santiago através dos colonos e donatários. Mais tarde veio a juntar a esses os

italianos, os franceses, espanhóis, madeirenses e açorianos, judeus, norte-americanos, entre

outros aventureiros. Com isso, conclui-se que o povoamento da ilha de Santo Antão resultou

da miscegenação de vários povos. Para além da agricultura, outros factores atraíram essas

populações à ilha: o clima e, também as condições geo-ecológicas serem propícias, em

resultado da existência de muita e boa água.

Com base em dados disponíveis, pode-se dizer que, apesar das sucessivas doações feitas à

Casa dos Condes de Santa Cruz, a maior parte da zona sudoeste da ilha que na altura

correspondia ao Porto dos Carvoeiros, não foi totalmente colonizada.

Na parte norte/nordeste da ilha – Santa Cruz – actual Ribeira Grande e Paúl, era onde a

exploração e ocupação mostrava melhores condições. Segundo reza a história, a principal

actividade económica da ilha, na altura, era a criação de gado que ao longo dos tempos foi-se

aumentando e alastrando-se por toda a ilha.

A partir do Século XVI e até o século XVIII, a ilha foi objecto de sucessivas cartas de

doações, à família e sucessores Condes de Santa Cruz, até 1759, ano em que a ilha foi

integrada na administração da Coroa, aquando da condenação do seu donatário, o Duque de

Aveiro (1758).4

A partir daí, foi abolido o sistema de donataria, e a ilha foi entregue a administração da

companhia de Grão Pára e Maranhão “que exerciam grandes vexames (…) obrigando o povo

a trabalhar e não lhe dando de comer”5.

A partir do momento em que foi implantado novas formas de exploração económica na ilha:

criação de novas actividades industriais; produção do vinho, aguardente, anil, etc; mas

também devido ao comércio da Urzela, que como se sabe, nessa altura era um produto de

grande valor a nível do comércio, a ilha de Santo Antão tornou-se alvo de grandes interesses

económicos.

4 Sobre o assunto ver: FERRO, Maria Haydeé Ferreira. Subsídios para a história da ilha de Santo Antão de cabo

Verde (1462- 1900). Praia. Instituto da Promoção Cultural. Tese 1998. 5 Ob. Cit. Pp. XIII.

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Perante essa intensiva exploração económica, mas também devido ao número crescente de

centros populacionais, a Povoação de Santa Cruz, foi elevada à categoria de Vila, com a

denominação de Ribeira Grande – nome que até hoje se mantém, até que por Carta Régia de

30 de Agosto de 1731 foi criada a Câmara Municipal de Santo Antão, que só foi instalada no

ano de 1732. “O estatuto de Vila e a criação da Câmara foram alternativas encontradas para

por cobro aos abusos dos capitães e possivelmente responsabilizar as populações no governo

e desenvolvimento da sua área”6.

A partir desse momento realizaram a primeira sessão para a pauta e a respectiva eleição dos

oficiais da Câmara, o elenco camarário tomou posse, constituindo deste modo a primeira

Câmara na ilha de Santo Antão. Hoje a ilha encontra-se dividida em três concelhos com as

suas respectivas Câmaras Municipais: Ribeira Grande, Paúl e Porto Novo.

Como facilmente se depreende, não propomos dissertar sobre o percurso histórico desta ilha,

porquanto apenas referimos alguns aspectos históricos, que consideramos mais marcantes e

que permitiremos contextualizar como um dos momentos históricos de Santo Antão do século

XX – produção da aguardente e seu contrabando – que constitui o assunto central do nosso

trabalho.

Assim no capítulo que se segue, iniciaremos uma incursão ao século XX à volta do qual

desenrola toda a nossa pesquisa.

6 LOPES, Maria José – Surgimento de Câmaras Municipais nas Ilhas do Norte: Santo Antão, S. Nicolau e S.

Vicente. Notas para seu estudo. Praia. I.A.H.N. 2005.

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CAPÍTULO II

Santo Antão nos meados do Século XX

2.1 – Aspectos da economia

Antes de falar da economia de Santo Antão em particular, achamos por bem e em traços

largos, falar da economia de Cabo verde, nos meados do século XX. Nessa altura podemos

dizer que, ainda o comércio, a agricultura a navegação e a indústria que são considerados

pilares máximos de desenvolvimento de qualquer país, não se encontravam tão desenvolvidos

a ponto de gozar de qualquer tipo de prosperidade em Cabo Verde.

Em relação ao comércio “é o ramo da actividade económica que mais entusiasma o Cabo-

verdiano, uma vez que é a que menos sofre da contingência das estiagens e das secas e que

era sustentado pela importação e pela exportação”7, hoje está em menor escala.

A situação económica das ilhas de Cabo Verde sempre foi agravada pela falta de chuva e

pelas estiagens que assolam o arquipélago, relevada ainda pela “insuficiência técnica, aliada

ainda á sub-utilização das superfícies cultiváveis, tornando-se precária e angustiosa,

principalmente a produção agrícola cabo-verdiana “que dependia de métodos muito

rudimentares e ausência de mecanização, praticando a actividade agrícola apenas ou quase

exclusiva com a enxada e a força humana, não dispondo de meios para combater as estiagens

7 - Jornal – Noticias de Cabo Verde – Ano IX/ nº 197/ Fev. 1941 ano XIII / nº 226/ Fev. 1944.

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e doenças, pela falta de água e pela degradação sistemática dos solos, mas também a falta de

utilização de adubos químicos”8, ou seja, os investimentos no sector agrícola desde sempre

foram um pouco precário não permitindo assim o melhoramento dos instrumentos de

trabalho.

No que diz respeito à economia da ilha de Santo Antão, pode-se dizer que, ela é caracterizada

fundamentalmente por disfunções de ordem estrutural que se prende essencialmente com a

escassez de espaços e de recursos naturais, fraca concentração de capital e baixa valorização

dos recursos humanos.

Pelas suas características sabe-se que, Santo Antão esteve sempre destinada a ser uma ilha

vocacionada para a agricultura, predominantemente dominada pela monocultura da cana

sacarina, principalmente nos concelhos de Ribeira Grande e Paúl, “ocupando mais de 2/3 dos

terrenos do regadio”9.

A agricultura é do tipo de subsistência e é a única que possui condições de vida próprias e a

que desde muito tempo tem sido considerado fonte de alimentação da população da ilha,

destacando as culturas do milho, feijão, batata-doce, e semi-mercantil no interior de alguns

vales da ilha – bananeira, cana-de-açúcar, as mais cultivadas uma vez que levam menos

tempo para produzir e portanto, satisfazer as necessidades mais imediatas. Nos anos agrícolas

considerados bons pode restar alguma parte da produção que fica reservado para os anos

considerados de estiagens ou maus anos agrícolas, ou ainda de fraca produção.

Com isso podemos considerar que a economia da ilha da Santo Antão depende e muito da

agricultura, tendo como subsidiária a pecuária, uma vez que, nessa altura a indústria ainda

encontra-se numa fase muito incipiente, dependendo ainda da produção da aguardente da cana

sacarina. Durante algum tempo os agricultores de Santo Antão viram-se obrigados a substitui-

la pelo cultivo da bananeira, mas que devido às dificuldades de transporte e mercado de

colocação levou-os de novo a desistir desse tipo de cultura, voltando novamente à plantação

da cana que embora sujeita a pesados impostos, permitiriam pagar as suas muitas

contribuições.

8 - ANDRADE, Elisa Silva. As Ilhas de Cabo Verde da “Descoberta” á Independência Nacional (1460-1975).

L’harmattan. 1996. 9 - PANA III – Plano Ambiental elaborado pela Câmara Municipal do Porto Novo – 2004.

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Sendo uma ilha essencialmente agrícola, ainda nos meados do século XX, encontrava-se

carecida dos mais elementares rudimentos de assistência agrícola, o que não seria fácil o

progresso neste sector.

Durante a década de 40 a economia da ilha de Santo Antão foi agravada pelos maus anos

agrícolas provocadas pelas secas e estiagens passando a ilha a depender apenas dos impostos

que eram pagos pelos fabricantes da aguardente, da produção e exportação do café e da

banana, e que vai ter repercussões sociais devido ao grande número de mortes provocadas

pelas fomes.

Para além da agricultura, a ilha dispõe também de núcleos de povoamento que surgiram na

boca dos portos e consequentemente vocacionados para o comércio – principal factor de

desenvolvimento a nível do sector secundário, ainda que sem muitas repercussões para a

economia da ilha, mas que contribuiu ainda que pouco para o desenvolvimento da ilha, uma

vez que, apenas a agricultura não seria capaz de satisfazer todas as necessidades da

população. No entanto, nos meados do século XX, enfrentava algumas dificuldades,

principalmente a nível da navegação, porque, ainda os portos da ilha não se encontravam bem

preparados, para receber as embarcações que ali aportavam, tornando a navegação um pouco

limitada.

Actualmente, quase todas as localidades encontram-se cobertas de pequenas unidades de

comercialização de bens, principalmente géneros de primeira necessidade. Mas o fraco poder

de compra da população da ilha condiciona o volume de negócios do sector, o que faz com

que os comerciantes adquirem um “stock” de produtos muito baixo. “Mas também a alta

concorrência do mercado paralelo, preços mais elevados que a média nacional, fraca

disponibilidade financeira dos importadores, inexistência de controlo de qualidade,

ineficiência no abastecimento de géneros alimentícios.”10

Relativamente à indústria, pode-se dizer que ela sempre foi deficitária, e ainda nos meados do

século XX, baseou-se essencialmente nos derivados da cana sacarina, particularmente a

aguardente, cuja análise constitui ponto essencial do trabalho que propomos analisar.

10 - PANA III – Plano Ambiental elaborado pela Câmara Municipal do Porto Novo – 2004.

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A pesca, não obstante as potencialidades, é explorada de forma artesanal com técnicas

rudimentares, utilizando os pequenos botes. O rendimento é fraco e emprega pouca gente,

sendo o pescado destinado ao consumo interno.

No que diz respeito a pecuária, pode-se dizer que ela era praticada de forma tão rudimentar

quanto a agricultura e na sua maior parte em regime familiar e em complementaridade com a

agricultura Mas, nos dias de hoje há tendência para melhorias uma vez que, conta com o

apoio do centro pecuário dos Lajedos, Concelho do Porto Novo, em matéria de factor de

produção e uma unidade industrial de produção de queijos e charcutaria.

A criação de animais – bovinos e caprinos – nessa ilha tem como objectivo melhorar a dieta

alimentar, assim como a resolução de problemas socio-económicos das famílias do meio rural

e mesmo de algumas famílias do meio urbano.

Quanto ao Turismo, pode-se dizer que Santo Antão tem um potencial turístico que carece de

infra-estruturas compatíveis para um bom serviço. A ilha oferece uma riqueza paisagística

atractiva com um jogo de contraste entre o verde e a paisagem lunar, as praias balneárias e a

natureza das montanhas. A sua actividade turística decorre da qualidade do ambiente, da

riqueza do património cultural, da gastronomia, da disponibilidade de áreas com baixa

densidade populacional, desenvolvimento de grandes áreas de lazer, como sendo o campismo

balnear, campismo de montanha entre outros.

Mas o objectivo aqui não é dissertar acerca da caracterização económica actual da ilha.

Assim, após este breve visionamento, lançaremos um olhar na história para, na medida do

possível, analisar a ilha de Santo Antão numa perspectiva económica e social nos meados do

século XX. Aproximemo-nos então do tema do nosso trabalho, a produção da aguardente na

ilha de Santo Antão e o seu contrabando.

2.1- Impacto da agricultura

A ilha de Santo Antão, é a que depois de Santiago, apresenta melhores condições e/ou

possibilidades agrícolas, isto porque, não só apresenta bons solos, como também dispõe de

uma riqueza/abundância de água em quase todas as ribeiras, que permite uma exploração

intensiva dos terrenos através da rega, principalmente na parte mais a norte da ilha.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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A agricultura, juntamente com a pecuária, continuam a ser as actividades mais importantes

para o sustento da população incluindo ainda algum pescado. Mas, a situação da ilha vem

sendo agravada actualmente pelos sucessivos maus anos agrícolas verificados ao longo dos

anos. É sabido que a agricultura era exercida nesta ilha por processos rotineiros: a adubação e

o afolhamento. A irrigação é feita por levadas de pedra, terras muitas vezes misturadas com

areia e em casos muito raros utilizam-se cimentos, o que contribui para o desperdício da

maior parte da água que nos meses de estiagem ou seca, deixa muita falta às culturas, sendo

os canaviais e outras culturas como a banana e a mandioca, insuficientemente regadas

causando desta forma pouca produção.

A agricultura na ilha é caracterizado não só pelas culturas de sequeiro (terras cultivadas

apenas nas épocas das chuvas) – milho, feijão, batatas e algum café nas encostas mais

abrigadas das ribeiras, mas também pelas de regadio (cultivo feita a tempo inteiro, ou seja

culturas irrigadas), árvores de frutos, mandioca, alguma hortícola e a cana sacarina, esta em

maior quantidade – podendo até dizer que esta é a principal cultura da ilha de Santo Antão,

garantindo o sustento de muitas famílias que não dispõem de outros meios para o fazer.

É importante dizer que o relevo é a causa primária de toda a capacidade produtiva da ilha. A

erosão natural (em quase todas as épocas do ano) e a provocada pelos homens são muito

verificados na ilha dificultando a prática agrícola. Devido a este forte poder, mas também à

falta das chuvas, a sua riqueza em água tende a diminuir, ao mesmo tempo que vão se

diminuindo as áreas de cultivo de regadio. Sendo assim, há necessidade de proceder à

conservação dos solos, principalmente as do planalto, proibindo a cultura nas zonas mais

vulneráveis a esse processo impondo técnicas da armação da terra e de controlo da água –

construindo diques e barragens para a sua captação e proceder a uma imediata (re) vegetação

em larga escala e de uma forma geral em todas as regiões mais altas. Estas distribuem-se ao

canto Norte do leste da ilha e situam-se nos planaltos e vertentes exposto ao Nordeste,

enquanto a zona mais húmida localiza-se na parte mais Nordeste da ilha: Pico da Cruz,

Ribeira de Janela, e a parte alta da Ribeira do Paúl, algumas áreas de Monte Joana, as

cabeceiras de Ribeira da Torre e algumas Zonas da Ribeira Grande. Estas são as áreas de

culturas intensivas, garantindo a sobrevivência da população que habita estas zonas.

As regiões sub-húmidas também ocupam uma vasta área abrangendo a parte Sul e Sudeste do

planalto, região produtiva, mas apresentando graves problemas de erosão. As áreas de

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sequeiro, semiárida, situam-se ao longo da Orla Sul da zona Sub-húmida e ocupa a faixa

costeira.

Os regadios são particularmente importantes no norte da ilha, onde se encontra a abundância

da água.

A produção agrícola da ilha de Santo Antão – quase toda – é destinada ao consumo local,

contribuindo deste modo para o sustento da sua população, que na sua maioria dispõe de

fracos recursos económicos, para adquirir os bens de que mais necessitam. Sendo assim, a

agricultura tem um impacto muito grande na ilha, uma vez que é o garante da sua

sustentabilidade económica.

2.2 - Cultivo da cana sacarina: um exemplo de monocultura na ilha de Santo Antão

António Carreira, na sua obra, Estudos da Economia Cabo-verdiana (1982) diz-nos que, a

cana sacarina deve ter sido uma das primeiras plantas introduzidas nas ilhas de Cabo Verde

após o seu achamento, e deu bons resultados. Mas no início do seu cultivo, não havia

condições necessárias para a cultura intensiva e económica da cana, porque as terras estavam

limitadas a escassas milhas de terras, em vales e ribeiras, e o sistema orográfico não favorecia

o aumento das áreas de cultivo. Por isso, o seu cultivo só foi possível graças à introdução de

enormes quantidades de fertilizantes no solo e também devido a regularidade das chuvas de

então. Sendo assim, a cana-de-açúcar aclimatou-se muito bem aos terrenos e ao regime de

chuvas passando a ser considerado da terra.

A questão da data da introdução da cana sacarina na ilha de Santo Antão é um pouco

controversa. Em 1683, Dampierre “regista a existência ali de cana-de-açúcar de que os

habitantes fazem mel”11

. Sabe-se, no entanto, que em 1833, uma boa parte dos vales da ilha

de Santo Antão estava ocupado com vinha, e a cana sacarina numa menor escala.

11 FONSECA, Humberto. Citado por António Carreira (1982) pp. 246.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

14

O fabrico da aguardente e do açúcar exigia elevados custos, o que não permitia o cultivo da

cana sacarina aos pequenos proprietários e cultivadores. Sendo assim, o seu cultivo era

acessível apenas à classe formada pelos poucos morgados reinóis e brancos da terra.

A cana sacarina foi introduzida nesta ilha “em substituição da vinha que a filoxera* destruía

e que constituía a principal cultura no fabrico do vinho e também do cafeeiro que se

cultivava no regadio de algumas zonas agrícolas, que ao longo dos anos ia tornando-se

improdutivo pela fumagina**” ou ferrugem negra12

. Com isso, pode-se dizer que o ambiente

da depressão económica criado pela doença da vinha e do cafeeiro é que determinou a cultura,

na maior parte dos terrenos de regadio, da cana-de-açúcar nesta ilha.

Hoje a cultura da cana é feito na maior parte dos terrenos de regadio da ilha de Santo Antão,

porque o agricultor ou cultivador possui poucas alternativas de outra espécie de luta pela vida

em culturas, a não ser a da banana.

Devido ao cultivo constante ao longo dos anos, a fertilidade do solo diminuiu atingindo deste

modo uma acentuada erosão, mais precisamente, em consequência da lenta queda da

pluviosidade e das marcadas e prolongadas estiagens. A infertilidade dos solos juntamente

com as secas prolongadas e a degradação do clima contribuíram para que houvesse uma

diminuição do cultivo da cana sacarina nas ilhas de Cabo Verde, isto porque a cana é uma

planta que exige muita água e um solo fértil. “É uma planta que se cultiva em regime de

autofagia”13

***. As suas raízes propagam no solo a ponto de destruir todas as outras plantas

ou cultivo ao seu redor.

Em Cabo Verde, o seu cultivo prolongou-se por muito tempo devido à tentativa de produzir

grandes quantidades de açúcar, o que não foi possível devido à qualidade dos solos. Logo, a

sua produção sempre foi destinada mais ao consumo doméstico, ou seja, a pequena indústria

de cana era destinada mais para satisfazer as necessidades da população do arquipélago que

até então era em número muito reduzido.

12 SERRA, João Coelho Pereira. O problema sacarino em Santo Antão. (artigo periódico). Imprensa Nacional.

Ano V nº 55. 13 CARREIRA, António, Estudos da economia Cabo-verdiana. Lisboa. Casa da moeda. 1982.

* Insecto que ataca a videira; doença causada na vinha por esse insecto.

** Doença das vinhas.

* **Planta que mantêm a sua vida á custa de qualquer substância.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

15

É bem provável que nas ilhas de Santo Antão, S. Nicolau e Brava, o cultivo da cana sacarina

remonta aos últimos anos do século XVII ou primeiros do século XVIII, porque nessa altura

já se registava o fabrico do açúcar e da aguardente. As maiores produtoras de aguardente

sempre foram e continuam sendo as ilhas de Santo Antão e Santiago, porque são as que

possuem melhores condições para a plantação da cana: vales, terras e água em abundância.

Ao que tudo indica, a sua introdução nas ilhas de Cabo Verde esteve ligado ao tráfico de

escravos, e se partirmos desse princípio, podemos concluir que a introdução desta planta na

flora cabo-verdiana remonta aos primeiros séculos coloniais, pelo Infante D. Henrique que em

1446, com esse fim, enviou botânicas a Chipre e a Sicília, mas somente nos finais do século

XVII, princípios do século XVIII foram criadas condições que tornaram possível a sua

produção em Santo Antão. Inicialmente, registou-se uma grande perseguição aos produtores

de aguardente por parte das autoridades, alegando que a sua produção afectava a saúde

pública. Infelizmente, a natureza do nosso trabalho, e o objectivo por nós traçados não nos

permite remontar ao século XVIII para seguir o percurso histórico por que passou esse

fenómeno.

Assim, nas páginas que se seguem centralizar-nos-emos século XX, para analisar as

vicissitudes por que passaram os produtores e negociantes desse produto: O fabrico

clandestino da aguardente e seu contrabando, após a publicação do Diploma Legislativo nº

124/ 12/1941, que proibiu o fabrico da aguardente, estimulando o cultivo de outras culturas

alimentares. Mas, tal lei não vingou e como tal trouxe consequências à sociedade, que

tentaremos explicar ao longo da elaboração deste trabalho.

Como já se disse a cultura da cana sacarina domina as boas terras de Cabo Verde, sendo já

introduzidas tecnologias sofisticadas para a sua trituração e produção dos seus derivados.

Segundo António Teixeira, na sua obra – “Agricultura no arquipélago de Cabo Verde (1958)”

a cana sacarina é a mais importante cultura regada de Cabo Verde e além de ocupar a maior

parte dos regadios, absorve ainda os melhores terrenos de sequeiro, ou seja, os mais húmidos.

(Só em Santo Antão até 1958, foi calculado em mais de 800ha a área dedicada ao cultivo da

cana sacarina, e nos dias de hoje com uma área muita mais elevada.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

16

Existem variedades de espécies da cana sacarina entre as quais destaca-se: branca ou bourbon

(a que maior percentagem de mel produz), ervastin ou cana riscada, crioula ou preta, a cariçal,

raiada e caneca que é a melhor para se comer.

A melhor época de plantação dessas variedades é de Março a Maio e faz-se enterrando nos

vales o traço superior das canas velhas com cerca de 4 a 5 nós, deixando de fora o gomo

terminal. De forma geral são irrigadas de 15 em 15 dias. Para a obtenção de melhores

rendimentos, os cultivadores costumam utilizar fertilizantes, mesmo sendo, apenas adubos

orgânicos – o estrume dos currais.

Depois de cortada é transportada à cabeça de pessoas ou no dorso de alimárias até aos currais

de trapiche onde é triturada e esmagada, cuja calda é depositada em pipas para a produção do

mel, açúcar, aguardente e antigamente o melaço. Apenas uma ínfima parte dessas canas,

acima mencionados, são utilizados para comer ou “chupar”, e ainda quando há escassez do

açúcar no mercado das ilhas de Cabo Verde, nalgumas localidades a cana é utilizada no

fabrico caseiro como adoçante. Como exemplo, podemos apontar a ilha de Santo Antão, onde

a cana é cortada e lavada, depois esmagada no pilão. O suco dela resultante é “coado” com a

ajuda de um pano. Seguidamente, o suco é fervido com água e depois misturado ao café ou ao

chá para adoçar essas bebidas, geralmente, no pequeno-almoço.

A maior parte da produção da cana-de-açúcar cultivada na ilha de Santo a Antão é destinada à

produção da aguardente, essa que até uma certa altura da sua história era considerada uma das

melhores, devido à sua boa qualidade, não obstante, enfrentando alguns problemas, como a

falta de mercados para a sua colocação, uma vez que até uma certa altura poderia contar

apenas com os da província.

Pensa-se que foi o trapicheiro, cultivador madeirense, quem passou aos agricultores de Santo

Antão o jeito de tratar o caule açucarado. Por volta de 1800, Manuel António Martins14

trouxe

para a ilha a variedade conhecida por cana routins, a que se segue a bourbon, que ainda hoje

se cultiva. A Ribeira do Paul e o seu vale ficaram famosos pela excelente aguardente de cana

que ali se produz, em recantos alcantilados e nos estreitos socalcos que sobem pelas ravinas

14 - Um reinol que se instalou em Cabo Verde Onde fez nome e fortuna chegando mesmo a ser feitor.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

17

do Eito ao Figueiral. Envelhecida nos espaços frescos dos lagos, a aguardente do Paul está

classificada entre as melhores bebidas do arquipélago.”15

No início da sua cultura, mas também durante muitos anos a cana foi utilizada em grande

quantidade no fabrico do “açúcar preto” ou “açúcar bruto” ou ainda “açúcar de forma”16

e

para isso, usavam os mesmos métodos da cultura agrícola do Brasil. Mas isso, não foi

frutífero, devido à impossibilidade e imperfeição de fazê-lo progredir em Cabo Verde. A

alternativa que o agricultor encontrou foi a de transformar a cana em aguardente, e mel, sendo

a aguardente em maior quantidade com rendimento a nível financeiro oscilatório por longo

período de anos, não obstante as oscilações de preço, não lhe tivessem sido de todo

desfavoráveis e enfraquecidas ou mesmo deficitária. Isto vai contribuir de certo modo para a

diminuição do consumo provincial, mas também pela interdição da sua importação na Guiné e

na metrópole.

A cultura dessa planta exige um grande esforço do lavrador e muito cuidado, isto com o

objectivo de obter melhores resultados. É necessário também preparar o terreno com regos e

canteiros para melhor aplicação dos adubos e/ou fertilizantes.

A altura do corte da cana verifica-se geralmente nos meses de Dezembro, Janeiro Fevereiro e

Março, altura em que ela já se encontra amadurecida, dependendo das condições em que ela

foi cultivada e tratada.

Como já foi referido a cana é uma das principais matérias-primas utilizadas no fabrico da

aguardente. É uma planta rizomatosa, de colmo lenhosa, da família das gramíneas, útil pelas

aplicações do seu colmo e segundo afirmações é originária da Índia e bastante cultivada nas

regiões tropicais.

O seu cultivo tem um impacto muito grande na economia e na sociedade cabo-verdiana,

principalmente na ilha de Santo Antão, onde é feita em grande escala, sendo a sua produção

estimada em cerca de 800 a 850 ha.

15 In Fragata, Revista de bordo da TACV Nº 3, III Série, 2005, Out./Dez. Pp 32 16

SERRA, João Coelho Pereira. O problema sacarino em Santo Antão. Boletim de Propaganda e Iinformação,

Cabo verde. Ano V nº 55; 1954.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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18

A venda da aguardente daí resultante destina-se ao sustento de muitas famílias santantonenses

que não dispõem de outros meios ou rendimentos para a sua subsistência.

O seu cultivo é mais acentuado nos vales ou nas ribeiras por possuírem solos com temperatura

adequada: abundância de água e é mais fertilizada, mas também nos terrenos de regadio, isto

porque, a qualidade da cana depende e muito do tratamento – desde a sua introdução no solo

ou sementeira, até o corte, o que vai também influenciar a fermentação da calda, e

consequentemente a qualidade da aguardente.

Em Santo Antão, pela quantidade e qualidade da aguardente e seus derivados, nota-se que a

cana sacarina aclimatou-se bem aos terrenos, dando deste modo um grande contributo à

economia, não obstante os males que tem causado a esta sociedade, particularmente nos

últimos anos.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

19

CAPÍTULO III

O fabrico da aguardente e o seu consumo na e fora da ilha

3.1 - Caracterização dos espaços de produção

O trapiche ou engenho de bois, “é o moinho movido por bois, para triturar a cana de açúcar,

e teve a sua origem no Brasil, mas também pode ser real ou movido por energia,17

onde todas

as operações de esmagamento e industrialização da cana eram realizadas em grandes espaços

ou armazéns denominados trapiches. É uma máquina utilizada para a trituração da cana e

extracção do suco ou calda.

O trapiche fica instalado em locais denominados currais de trapiche, dispondo à sua volta as

barracas – casa de calda – onde se colocam as pipas para a fermentação da calda, os

alambiques de destilação, o local de armazenamento da aguardente, e ainda, os currais para

abrigarem os animais (enquanto usavam os trapiches tradicionais). Antigamente, até mais ou

menos a década de 90 do século XX, encontrava-se na ilha de Santo Antão dois tipos de

armação de trapiche: trapiche de quatro pés ou bilros e trapiche de dois pés.

O trapiche de quatro pés, é feito de madeira de amendoeira, mangueira, laranjeira, ou então

mogno e é formado por 24 peças, entre as quais destacam-se os bilros, os varais de cima, a

madre, o varal de espiga e a base fechados por meio de chavetas de madeira, e assentam os

17 FREITAS, Gustavo de. Vocabulário de História (Política, social, económica, Cultural, Geral.). Lisboa. 1ª

Edição Plátano Editora. S/d.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

20

bilros em coches de pedra vermelha. Sobre a mesa assentam-se os cilindros de aço que viram

em movimentos de rotação inversos entre si, sendo o macho ou central com um varão que se

eleva no topo da qual se aplica o capacete de ferro com duas ranhuras nas extremidades onde

se aplica dois paus de almanjarra (alavanca feita de forma arcuada pouco acentuado que

através das rodas dentadas faz moer a engrenagem) que nos primeiros tempos era puxado por

escravos e mais tarde passou a ser puxado por dois bois ou mulas, além de dois cilindros

laterais, as fêmeas (ver anexo). Os animais são colocados “cangados” no trapiche com cintos

de cabedal, sisal ou carrapato.

No que diz respeito ao trapiche de dois pés, pode-se dizer que é mais simples que o de 4 pés,

na medida em que, é formado por apenas onze peças (ver anexo). Para a trituração da cana

temos dois homens sentados num banco de trapiche (um de cada lado) de forma a fazer a cana

passar entre os cilindros que vão triturar a cana, espremendo a calda, que cai na celha através

de um canal denominado cuba ou cubra, que depois vai ser transportado em baldes de 20

litros para a casa de calda, onde vai ser depositado nas pipas para a fermentação. Mas nos dias

de hoje, com a substituição dos trapiches tradicionais pelos trapiches motorizados, a calda é

transportada através de um tubo, da celha para a pipa.

Estando “exprimida” toda a calda, fica o bagaço que depois de secado é utilizado (como

combustível) para atiçar fogo no alambique e mesmo utilizado como lenha.

Os animais que movem o trapiche são comandados por um homem denominado de colador de

boi e é também acompanhado pelas cantigas de trabalho, as chamadas “kola boi”, mais

populares na ilha de Santo Antão.

É aconselhável que os currais de trapiche fiquem localizados junto as ribeiras ou nascentes de

água de modo a facilitar a destilação da calda.

Além do “kolador de boi”, existe também o homem que é encarregado de meter a cana no

trapiche, e para puxar o bagaço, as pessoas que carregam a cana, o alambicador, os cortadores

de cana, entre outros.

Normalmente, no último dia do trapiche, é considerado dia de festa, porque há muitas

actividades nos currais, onde todas os trabalhadores e alguns vizinhos juntam-se à volta do

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

21

trapiche. É costume amarrar junto ao trapiche uma cana sacarina enfeitada com flores e outros

frutos, uma garrafa de mel e uma de aguardente. Faz-se uma caldeirada de peixe, ou na

ausência deste, galinha, juntando-se todo o tipo de verdura: banana, mandioca, fruta-pão,

inhame, e oferecem a todos os presentes. Para a despedida entoam a cantiga de kola-boi.

Actualmente, pode-se dizer que os trapiches tradicionais foram praticamente substituídos

pelos motorizados, isto por serem mais práticos e conseguem triturar uma grande quantidade

de cana em pouco tempo. Mas ainda encontra-se um trapiche tradicional de quatro pés no

concelho do Paul pertencente ao senhor Ildo Benrós. Segundo ele o trapiche tem mais de 400

anos (ver anexo), e é considerado uma autêntica peça de museu e que existe uma lenda a volta

do trapiche, segundo a qual teria sido obra de maçonaria.

Segundo o Sr. José M. Pires Ferreira, na entrevista que nos concedeu, há histórias da tradição

oral que contam que maçónicos tentaram implantar trapiches em determinadas zonas da ilha

de Santo Antão. Isto porque da noite para o dia apareceu instalado esse trapiche no sítio onde

se encontra até os dias de hoje. Isso era para confundir os espíritos das pessoas daquela altura

para tentar desenfrear, a fiscalização aduaneira, mas há noticias também que um navio pairou

na baía do Paul altas horas da madrugada, durante dias, para deixar o trapiche, numa altura em

que era proibido movimentar equipamentos para destilação.

Presume-se que tenha sido um dos principais trapiches trazidos para Cabo Verde logo após o

início da cultura da cana-de-açúcar no arquipélago que segundo alguns historiadores data do

século XVI.

3.2- Produção da aguardente

Para a obtenção de uma aguardente de boa qualidade é necessário um controlo intensivo em

todas as fases da sua produção, mas também detectar o melhor momento em que ela deve ser

“cortada” ou seja, “quando atinge seu melhor estágio de maturação, isto representado pelo

maior acumulo de açúcares no colmo. Essas análises devem ser precedidas por uma

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

22

determinação do Brix (exprime a percentagem de sólidos solúveis na calda)18

. Com isso,

pode-se supor que, na ilha de Santo Antão, corre-se o risco de colher a cana no momento

errado, uma vez que ainda não se conhece o melhor momento de corte, já que o procedimento

é empírico e não sustentado nas análises acima referidas.

A primeira fase do longo processo de obtenção da aguardente consiste na corte da cana e a

penagem (tirar as folhas) da mesma. Esta operação é feita com ou sem auxilio de qualquer

ferramenta (faca ou machado). As folhas são juntadas em molhes e futuramente servirão de

cobertura de casas, e também como lenha na altura do alambique.

A cana é depois transportada aos currais de trapiche, por pessoas, animais e carros, amarrada

em pequenos feixes, onde se vai fazer a extracção da calda, antigamente feita através dos

trapiches tradicionais (de quatro ou de dois pés), com auxílio das mulas ou dos bois, e nos

dias de hoje feita através dos trapiches motorizados utilizando apenas dois homens, sendo um

para meter a cana e o outro para puxar o bagaço. A todo este processo dá-se o nome de pilar a

cana. A partir daí segue-se o processo da fermentação da calda.

3.2.1. - A fermentação

A palavra fermentar vem do latim “fervere”19

que significa ferver. Para que os produtores ou

responsáveis dos engenhos possam intervir durante o processo de fermentação da calda é

necessário que os mesmos tenham conhecimentos dos princípios básicos que regem este

processo.

Ao extrair a calda, esta é colocada em pipas para a fermentação. Numa primeira fase mistura-

se uma certa quantidade de calda fervida e calda fria ficando na pipa um dia até ferver e

depois acaba-se de encher a pipa com calda fresca.

18

- JÚNIOR, Plínio Uchoa. A produção da aguardente em Santo Antão – Cabo Verde. Rª Grande, Santo Antão.

1992. P.10. 19 JÚNIOR, Plínio UCHOA. Ob. Cit. Pp. 11.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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A fermentação demora entre 8 à 10 dias, altura em que estará pronto para ir ao alambique.

Uma boa fermentação depende da temperatura onde se encontra colocado o barril (pipa) com

a calda, e da forma como esta foi preparada.

Nota-se que a calda está pronta para ir ao alambique quando se verificar a acumulação de

bolhas à superfície do líquido podendo-se mesmo ouvir o borbulhar dessas bolhas e também

pelo gosto amargo da calda.

A fermentação é um factor determinante da produção, isto porque dela depende a qualidade e

quantidade e até mesmo o cheiro da aguardente. Isto quer dizer que nessa fase o produtor

pode determinar o gosto e a quantidade que quer obter.

Nos dias de hoje, a tendência é para misturar novos produtos como o açúcar e outros, que

podem ser prejudiciais à saúde pública, por tornar a aguardente de péssima qualidade, com

efeitos nefastos à saúde dos consumidores.

3.2.2. - A destilação da calda

Destilar é antes de mais nada separar. A prática da destilação vem dos tempos muito remotos,

pensando ter sido iniciado no Egipto, pois nos séculos II e III foram encontrados num dos

seus templos desenhos de aparelhos destiladores traçados entre hieróglifos.

A destilação é uma combinação de duas operações inversas e distintas: a vaporização e a

condensação. A destilação inicia-se a partir do momento em que a calda é introduzida no

alambique. O líquido vai ser submetido ao fogo durante cerca de uma hora, num recipiente

bem tapado de forma a impedir a saída da temperatura. No final desse tempo abre-se a água

fria para correr no coxe. Em cada 90 ou 100 litros de calda fervida nesse tempo (1 hora)

obtêm-se 20 litros de aguardente.

A destilação é um processo complexo, tal como a fermentação, e há determinados critérios a

serem seguidos: formam-se os vapores que se vão dirigir para um tubo de cobre onde se dá a

condensação provocada pelo arrefecimento da água, transformando-se em aguardente.

Contudo, o primeiro líquido que sai do alambique é muito forte, dada a percentagem de

álcool. Sendo assim é recolhido numa garrafa para fins medicinais, e é denominada cabaça,

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

24

continuando a destilação, a quantidade de álcool vai-se diminuindo até atingir o grau desejado

para o consumo.

A qualidade ou gradação alcoólica é determinada pelo vazamento de uma quantia de

aguardente de um recipiente (copo) a outro. Caso houver muita espuma é sinal de que a

aguardente é boa, e caso isso não acontecer, prova o contrário.

“Depois de retirar os primeiros 20 litros, e continuada a destilação o grau do álcool vai-se

diminuindo e por conseguinte a aguardente fica muito fraca. O líquido que sai no final de cada

destilação com menos de 20 graus é mais conhecido por rapé ou água-pé, isto por ser muito

fraco. Posteriormente este líquido é misturado à calda a fim de ser de novo destilada”20

. É

aconselhável a diminuição do fogo quando a calda já estiver praticamente no final da fervura.

No final de cada destilação a aguardente é engarrafada normalmente em recipientes de 20 ou

25 litros e comercializada e consumida dentro e fora da ilha.

3.3. - A comercialização na e fora da ilha de Santo Antão

Ao longo da sua história, a aguardente tem vindo a sofrer alterações de preço, e sobre ela

aplicam-se os impostos de transporte de circulação conforme a ilha a que ela se destinava, e

muitas vezes esse imposto era superior ao preço que os agricultores vendiam cada litro.

Devido aos vários problemas que os agricultores enfrentavam no início da sua produção –

custos elevados, falta de mercados – os cultivadores viram-se obrigados a substituírem a

produção da aguardente pela indústria do açúcar com o objectivo de tentar minimizar os

problemas, principalmente a nível de subsistência, uma vez que, como já se disse, a

agricultura era o principal factor de subsistência, e encontravam-se mercados mais depressa e

mais facilmente para a sua colocação.

Nas últimas décadas da segunda metade do século XIX, a aguardente constituiu um produto

de grande escoamento, particularmente para a ilha vizinha de São Vicente, proporcionado

pela dinâmica do Porto Grande. O mesmo aconteceu ao longo do século XX, uma vez que foi

da Cidade do Mindelo que ela pode ser escoada para outras paragens, não só dentro do

20 - JÚNIOR, Plínio UCHOA. Ob. Cit.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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25

próprio país, mas também, para o exterior, principalmente nos países de acolhimento da

emigração cabo-verdiana.

O escoamento da aguardente no mercado consumidor da cidade do Mindelo, na segunda

metade do século XIX, pode ser constatado, partindo da análise de um texto de João Coelho

Pereira Serra no qual diz o seguinte:

“Nos tempos mais felizes do Porto Grande da ilha de São Vicente (…) a aguardente

da província era em grande parte consumida pela numerosa classe dos trabalhadores

de carvão e pelas tripulações dos barcos ali aportados., sempre em número elevado e

consolador. No intervalo da faina diária e no fecho desta aqueles lavavam com

aguardente as guelras encardidas do pó negro e rumavam satisfeitos para o trabalho

ou para habitações, mal cuidando que se 20.000 consumidores, pouco mais de 12%

da população da província, bebessem diariamente 2000 litros de aguardente, isto é na

proporção de 1 decilitro para cada, seriam anualmente necessários para a regular a

satisfação do hábito. 720.000 litros, quantidade que não fabrica em cada ano, pois é

superior e em muito à do respectivo manifesto. O consumo nessa época foi de tal

monta que, ao que me informam, se chegou a importar aguardente do Brasil.”21

É importante realçar que a maioria dos produtores da aguardente vende directamente o seu

produto a terceiros geralmente a rabidantes, fixos ou não, o que se pressupõe existir um

vínculo entre proprietários e compradores, que se dirigem às propriedades, e que depois estes

encarregam-se de fazer este produto chegar aos consumidores, estando eles dentro ou fora da

ilha e/ou do país.

Durante o período de contrabando deste produto, os responsáveis pela venda da aguardente

dirigiam-se aos locais a altas horas da madrugada para tomarem o produto às escondidas e

dirigir-se ao local de venda, sem serem presos pelos fiscais das Instâncias Aduaneiras, e

evitarem assim pesadas multas e mesmo a morte.

“Nos dias de hoje a aguardente da cana de açúcar depara-se com uma concorrente que é a

aguardente de açúcar, esta que é vendida a um preço muito baixo – menos de 50% do preço

da aguardente de cana –, mas também um outro concorrente directo, é o volume de outras

21 O problema sacarino em Santo Antão. Boletim de Propaganda e Informação, Cabo Verde. Ano V nº 55; 1954.

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bebidas alcoólicas tais como: vinho, conhac, cachaça, provenientes de diversas paragens;

Portugal, Cuba, França entre outros.”22

Um outro factor que tem vindo a dificultar a comercialização da aguardente da ilha de Santo

Antão tem sido a questão da embalagem, isto devido à falta de meios económicos e técnicos

que limitam grandemente a resolução do problema. Por outro lado, ao longo da sua história as

leis que regulamentam a importação e exportação da aguardente têm sido bastante rigorosas o

que pode ser constatado mais adiante ao analisarmos a questão da regulamentação da

fiscalização da aguardente.

3.4 - Impacto do seu consumo

A aguardente é uma bebida alcoólica muito forte que se consumida sem controlo, pode causar

distúrbios mentais e sociais, porquanto o consumidor perturba o normal funcionamento da

sociedade. O consumo excessivo, principalmente se ela não for de boa qualidade, causa

graves problemas à saúde pública. Sendo assim, é necessário encontrar-se soluções para

atenuar o vício e os estragos que são causados, nomeadamente as doenças e mesmo a morte.

Assim, como qualquer outro tipo de bebida, a aguardente, quando tomada em dose moderada,

ou uma primeira dose, produz uma certa excitação e/ou alteração no estômago, na cabeça e

mesmo no corpo inteiro, sentindo depois um certo abatimento, vontade de tomar uma nova

dose, como consequência da ingerência da primeira, pelo que normalmente esse abatimento é

combatido tomando uma segunda dose. Nessa sequência a pessoa vai ficando totalmente

dependente do álcool.

Com isso o corpo humano começa a ficar fraco devido à perda de força dos órgãos (consome

muito álcool, mas não alimenta como deve ser), totalmente consumida ao tentar responder ao

estímulo da aguardente. Em consequência o “consumidor fica sem apetite – sem vontade de

comer – logo o estômago não tem força para digerir, os músculos ficam frágeis e cansam-se

com pequenos esforços. Começam a aparecer problemas de visão, ruídos nos ouvidos (ouvem

pessoas a falar sem ser e vêm coisas), insónia, impaciência, mau humor, não conseguem

22 - Associação dos Municípios de Santo Antão GTI. II Plano de desenvolvimento de Santo Antão. II PDSA.

1998-2001. Tomo I. Diagnostico da Situação actual. Janeiro de 1999. pp. 135.

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relacionar as coisas nem combinar as ideias, os raciocínios são incompletos, mal conseguem

falar, perde-se a memoria,”23

, podemos então dizer, que a pessoa fica com alucinações dos

órgãos dos sentidos.

A partir daí começam a aparecer vários tipos de doenças: “nervosas, (irritabilidade, perda de

memória, agressividade, e por vezes alucinações e delírios – pensamento completamente

desorganizado, perturbação de sono, ou insónia) de estômago (vómitos, dores no estômago

que depois vai levar a gastrite e úlceras) e fígado, (aumento do tamanho do fígado,

acumulação de gorduras nas células do fígado, cirrose hepática que vem a ser uma

desorganização do fígado que leva a morte) e o estado dessas avançam a ponto de lavar a

morte, a pele começa a mudar de cor e enruga-se. Em consequência dessas aparecem as

úlceras e feridas que nunca conseguem cicatrizar-se”24

devido ao estado do organismo que já

se encontra debilitado, fragilizado e profundamente atacado.

“Normalmente as pessoas dependentes do álcool, tendem a gerar filhos com temperamento

Limpático-nervoso, (são indivíduos com transtorno de ansiedade, ou seja, indivíduos sempre

causando stress, palpitações ataques cardíaco), com uma fraca inteligência, dificultando o

raciocínio, corpo fraco, logo sujeitos a doenças e infecções, e tendem a ser epilépticos e

racitícos”25

. Na verdade os filhos ou descendentes de alcoólicos podem apresentar

dificuldades físicas ou psicológicas. Actualmente, admite-se que essas situações não são

inevitáveis.

Os sintomas negativos do uso excessivo da aguardente não são notáveis apenas a nível físico,

(emagrecimento acentuado, problemas da pele por falta de vitamina, inflamação do corpo,

particularmente dos membros). São sentidas também a nível da moral. Quando bêbedo a

pessoa fica com alucinações e começa a provocar desordens em casa com os elementos da

família: mulher e/ou marido, filhos parentes. Estes que presenciam cenas degradantes e

imorais do indivíduo que se encontra perturbado devido ao consumo excessivo do álcool, e

quando se chega a essa situação, advém problemas de nova ordem: Económica, isto porque a

pessoa fica sem condições de trabalhar para obter o sustento do dia à dia. Muitas vezes ele é

obrigado a abandonar o lar familiar e vai a procura de novos paradeiros. Mas também, por

23

- Boletim Oficial da Província de cabo Verde. Ano de 1972. pp. 84. 24 - Idem Ibdem. 25 - Idem Ibdem

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

28

outro lado, perturbam o bom funcionamento da sociedade, passando a ser uma pessoa

desprezada e desacreditada perante a sociedade, chegando ao ponto de serem marginalizados.

Quando são as mulheres que usam a aguardente em quantidade exagerada muitas vezes são

conduzidas pelo “caminho errado”, e normalmente as que a usam descuidam por completo da

vida: se for chefe de família – esposa e mãe – são vários os casos em que elas, comandadas

pelo vício, costumam abandonar o lar e os filhos, à procura de abrigo onde ela possa tomar

aguardente e satisfazer os seus desejos. Tudo isso vai causar graves problemas à sociedade,

porque normalmente, os filhos dessas famílias são nervosos, sujeitos a todos os tipos de

violação, são fracos e sem quaisquer cuidados, correndo séries riscos de vida, e de serem

marginais.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

29

CAPÍTULO IV

O contrabando da aguardente na ilha de Santo Antão

O contrabando, pode significar o comércio clandestino que consiste principalmente em

importar ou exportar fraudulentamente mercadorias em determinada área fiscal. Podemos

dizer que é todo e qualquer tipo de comércio que se faz sem ser passado pelas alfandegas, e

que seja totalmente proibido.

Muitas vezes é confundido com o descaminho de direitos que é todo e qualquer acto

fraudulento, que tenha por fim evitar no todo ou em parte o pagamento de direitos e impostos

estabelecidos sobre a entrada e saída de mercadorias.

Existem dois tipos de contrabando: o absoluto, que é quando há desvio do pagamento de

direitos e consequentemente o apodo do contrabandista dado aos que praticam este acto, ou

seja quando há proibição total de produção e/ou de comercialização de um determinado

produto; e o relativo que se dá quando a entrada da mercadoria não está totalmente proibida.

4.1 – Regulamento de fiscalização da aguardente nas ilhas de Cabo Verde

Relativamente ao contrabando da aguardente na ilha de Santo Antão, temos que, antes da

proibição do fabrico da aguardente, o então governador da colónia de Cabo Verde, José Diogo

Ferreira Martins, decidiu-se em 1941, regulamentar o seu fabrico, nas ilhas de Cabo Verde

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

30

aplicando algumas medidas, com vista a cobrar os devidos impostos de consumo e de

circulação, mas também para evitar possíveis fraudes, e o fabrico de aguardente de péssima

qualidade que prejudicava a saúde pública. Assim sendo, o Diploma Legislativo nº 723 de 26

de Dezembro de 1941 foi aprovado e posto em vigor com as seguintes medidas:

4.1.1 - Imposto:

Artigo 1º – Toda a aguardente produzida na Colónia de Cabo Verde estava sujeita, a partir do

momento da entrada em vigor do referido Diploma, aos impostos do consumo, que passariam

a constituir receitas da fazenda e dos Municípios; Sendo assim, ficou estipulado o seguinte:

Artigo 2º – “2$ para cada litro destinava-se a fazenda e 1$ para cada litro seria para os

Municípios.26

Esse montante iria aumentar 50% nos anos de 1947/49, e que nos anos

seguintes esse montante iria aumentar 100%.

4.1.2 - Licença para Destilação

Artigo 3º – As licenças para a destilação da aguardente de cana sacarina só serão concedidas

por ano civil e por quantidade não inferior a mil litros por cada fabricante. Assim, o

proprietário ou industrial que quisesse fabricar aguardente, ou alguém que possuísse

alambique deveria requerer, ou pedir ao chefe da Instância Aduaneira do Concelho, onde

queria fazer a destilação, uma autorização ou uma licença de alambique, e para isso, ele teria

que declarar, ou então identificar-se seguindo os seguintes pontos, utilizando um boletim

modelo nº 1 (ver anexo nº 1):

- a) Nome, freguesia e sítio, número da matriz predial onde iria funcionar o aparelho de

destilação, isto com o objectivo de permitir a fiscalização das entidades competentes; a área

de cana cultivada, a quantidade em litros da produção da aguardente na quadra agrícola e a

graduação média na escala cartier e ainda declarar, ser proprietário, rendeiro ou parceiro da

dita propriedade e do material do trapiche e dos equipamentos de destilação, ou de ter

autorização, caso não for ele próprio dono da propriedade, dos representantes legais deste,

para que, em caso de qualquer contacto com as Instâncias Aduaneiras, pudessem responder

nas mesmas. E deveria apresentar a capacidade máxima de produção de cada hora de trabalho

26 - Para isso toda a aguardente produzida teria de ser manifestada ou declarada nas Instâncias Aduaneiras.

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31

e ainda declarar o nome do dirigente ou capataz, caso não fosse o próprio dono a comandar

toda a actividade – neste caso o chefe ou o responsável da instalação.

Artigo 3 nº 2 – “os proprietários deveriam indicar fiador idóneo e duas testemunhas

abonatórias que se responsabilizem pela quantia a destilar. Essa fiança e abonação,

comprovadas em face de valores constantes da matriz predial, serão correspondentes ao

quíntuplo do imposto que tiver de recair sobre a quantidade declarada e autorizado a destilar

e serão extensivas à importância da multas em que possa incorrer o afiançado”27

. Ficou

estipulado ainda que os possuidores de alambiques são considerados, para os devidos efeitos

deste regulamento, como fabricantes de toda a aguardente pertença no todo ou em parte a

terceiros, ficando deste modo sujeito a todas as obrigações e impostos, ou seja, ele, o

proprietário, será responsável por todo o processo de fabrico da aguardente, logo sujeito a

todas as exigências e ordens das Instâncias Aduaneiras Concelhia, seguindo um Modelo nº 3,

(ver anexo nº 2) e ainda se o proprietário quisesse possuir mais que uma propriedade de

destilação ele teria que colocar ao conhecimento das Instâncias Aduaneiras indicando o local

que pretendia instalar o alambique e a data do início da destilação. Todas essas medidas

tinham como objectivo evitar o fabrico clandestino da aguardente.

Com objectivo de melhor controlo dos alambiques estipulou-se taxas de impostos de selo à

pagar de acordo com a capacidade de cada um: “Quando o alambique tivesse a capacidade de

até 300 litros, inclusive, o imposto seria de 62$60; Quando a capacidade fosse superior a

300 e inferior a 750 a taxa seria de 207$70; Quando a capacidade fosse superior a 750 litros

ou quando a sua produção, fosse de produção contínua, a taxa do imposto seria de

312$00”28

.

A partir desse momento proibiram o fabrico da aguardente de açúcar. Poderiam produzir sim,

mas apenas aguardente de cana sacarina e mel, e a aguardente ficaria sujeita aos impostos

estipulados no regulamento. Se no caso, os fiscais da Instância Aduaneira encontrassem

trapiches a funcionar e a destilar os produtos proibidos ou então se conseguissem comprovar

que esses proprietários destilaram esses produtos há menos de dois anos, da data em que foi

detectada a infracção eram obrigados a garantirem o pagamento de pesadas multas, caso não

pagassem ou não depositassem o produto no prazo de 24 horas.

27 - Boletim Oficial do Governo da Republica de Cabo Verde Suplemento Nº 11. Nº 51de 1941. 28 - Boletim Oficial do Governo da Colónia de Cabo Verde Suplemento Nº 11. Nº 51. pp. 2 – Artigo 6º.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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32

Para a destilação o mesmo regulamento estipulou o seguinte:

a) A partir do momento em que o proprietário ou responsável da destilação tivesse a

licença para destilar ele poderia começar a fazê-lo quando quisesse desde que

informasse o “delegado administrativo, chefe do posto fiscal, chefe de polícia ou

administrador do concelho”29

, o local e o dia em que vai começar a trabalhar e a

duração do mesmo e também logo que terminasse o ciclo deveria avisar ou declarar

nas entidades e exigir um recibo declarando o término do trabalho, que deveria ser

entregue na altura da fiscalização, pelo fiscal autorizado pelas Instâncias Aduaneiras.

Segundo consta do artigo nº 9 do Diploma Legislativo, o responsável ou pessoa autorizado

para destilar deveria ter na sua posse um livro modelo nº 6 (ver anexo nº 3), com a assinatura

do chefe da Estância Aduaneira do respectivo Concelho que serviria como livro de registo da

produção diária, o nome dos donos da aguardente, o número e a qualidade das vasilhas em

que a aguardente foi armazenada, bem como o nº de litros e a graduação na escala Cartier.

A partir daí a Instância Aduaneira ficaria encarregada de registar em livro igual todo o

movimento de destilação de aguardente, livro esse que deveria ficar no local de destilação

com o objectivo de ser examinado pelo empregado fiscal na altura da inspecção da aguardente

fabricada, e caso não houvesse destilação por uma ou outra razão, esta deveria ficar registada

no referido livro.

Durante o processo de destilação e todas as segundas-feiras o proprietário ou responsável do

alambique deveria enviar a Instância Aduaneira um relatório ou uma cópia do livro de toda a

quantidade produzida durante a semana finda, até Sábado inclusive, ou seja era da obrigação

dos responsáveis da destilação enviar um relatório de uma semana de produção.

Terminado o processo de destilação da aguardente, o proprietário ou responsável do

alambique deveria, no prazo de oito dias, enviar ao chefe da Instância Aduaneira Concelhia

um boletim comprovativo de toda a quantidade de aguardente destilada, os respectivos donos,

a quantidade de vasilhas utilizadas no armazenamento da aguardente e o grau médio em

escala Cartier. O boletim serviria de manifesto definitivo da produção e deveria estar em

conformidade com todos os boletins que foram enviados semanalmente ao longo da produção,

29 - Idem – Artigo 8º.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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33

ou seja, a produção final deveria ser igual a da soma de todos os boletins que foram enviados

ao longo das semanas durante o processo de destilação.

Para a armazenagem de toda a aguardente produzida ao longo do processo era necessário os

responsáveis disporem de 3 armazéns segundo consta do Diploma Legislativo nº 723 de 26 de

Dezembro de 1941. Sendo assim, era obrigatório possuírem um armazém provisório na

propriedade de destilação e dois armazéns definitivos para depósito da aguardente que deveria

ficar sob a sua inteira responsabilidade para com a Fazenda Nacional, toda a aguardente

destilada e ainda a aguardente cativa ou sujeita aos impostos, segundo o artigo 12º do

regulamento em análise. Estando a aguardente armazenada nestes armazéns ficaria mais fácil

às autoridades o controlo de toda a aguardente produzida e a que saia para o consumo, sem

correr o risco de haver saída clandestina da aguardente, ou seja, sem pagamento dos impostos.

Para que esse controlo fosse feito de forma mais eficaz, as Estâncias Aduaneiras distribuíam

aos proprietários dos engenhos um livro modelo nº 9 (ver anexo nº 4), este que deveria ser

duplicado, escriturado e conservado na Estância Aduaneira Concelhia, e que tinha que ser

assinado pelo Chefe da Repartição Central dos Serviços Aduaneiros, isto para evitar

documentos falsificados.

A aguardente armazenada, tinha que pagar um imposto, pelo próprio proprietário do

alambique, ou então por uma pessoa autorizada a destilar, na altura denominada “Chefe de

Trapiche.”

Nos armazéns onde se encontrava aguardente sujeita aos impostos, ou seja, a aguardente que

ainda não tinha sido despachada, não poderia ser colocada a já despachada na alfândega, sob

pena de, a ela também ser aplicada um novo imposto, e para que isso não acontecesse, havia

um armazém propício para a armazenagem da aguardente despachada para o consumo.

Os armazéns onde se encontrava a aguardente sujeita aos impostos estavam sob a vigilância

do Estado, e a aguardente neles armazenada não poderia sair de lá sem pagar os respectivos

impostos. Não poderia permanecer no armazém por mais de dois anos, ou seja, a partir desse

momento o responsável ou dono da aguardente tinha que a despachar para o consumo,

pagando os respectivos impostos, podendo ou não o Chefe da Repartição Central das

Instâncias Aduaneiras prorrogar o prazo por mais um ano. Caso esse prazo não fosse

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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cumprido, ou seja, se a aguardente não fosse despachada, o Chefe da Instância Aduaneira

Concelhia anunciava a venda ao público, podendo esta ser realizada no armazém do dono,

sendo o primeiro preço o valor dos impostos, mais o valor fiscal e outras despesas. Caso a

aguardente não fosse vendida na primeira volta, a ela seria atribuída um novo preço que seria

apenas o valor dos respectivos impostos.30

O artigo 14º do B.O. em análise, deixa claro que a aguardente em trânsito, do armazém

provisório, do local de destilação, para os definitivos, seria sempre acompanhada de guia

visada pelo Chefe da Instância Aduaneira Concelhia, na qual o fabricante tinha que lançar a

quantidade da aguardente que se encontrava a ser transitada de um para outro armazém, caso

a quantidade a transferir não correspondesse à quantidade que na altura poderiam destilar.

Chegado ao armazém definitivo, o chefe deste, passaria um recibo, modelo nº 10 (ver anexo

nº 5), como prova que a aguardente foi transferida. Sabe-se que antes da proibição do fabrico

da aguardente, o governador da Colónia de Cabo Verde, achou-se por bem estipular uma certa

quantia a produzir, igual, para todos os alambiques, com o objectivo de regulamentar o

fabrico, e evitar constrangimentos, ou seja, produção clandestina da aguardente.

Nessa altura, caso alguém fosse apanhado a transferir a aguardente de um armazém para

outro, sem o carimbo do Chefe da Instância Aduaneira Concelhia, era considerado como

sendo descaminho dos impostos,31

e logo sujeito a pesadas multas, que segundo consta do

artigo 29º do B.O. em análise, poderia ser o quíntuplo da importância dos impostos, e nunca

inferior a 500$00. Ao longo das entrevistas que feitas às pessoas, na ilha de Santo Antão

constatamos que, eles – proprietários, e/ou chefe dos engenhos – sempre tentavam transferir a

aguardente sem ser manifestada nas entidades competentes com vista a fugir ao pagamento

dos impostos, isto porque muitas vezes a produção não compensava pagar um imposto tão

alto como eram os aplicados na altura.

Quando a aguardente era destinada à exportação ela deveria ser transferida dos armazéns

provisórios e dos definitivos para os armazéns fiscalizados pelas Instância Aduaneiras

acompanhados de um documento, modelo nº 11 (ver anexo nº 6), com conhecimento do Chefe

da Instância Aduaneira Concelhia.

30

Boletim Oficial do Governo da Colónia de Cabo Verde. Diploma Legislativo nº 723, de 26 de Dezembro de

1941. Sup. nº 11 B.O. nº 52. Artigos 12º e 13º 31 Evitar no todo ou em parte o pagamento dos impostos devidos.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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35

No que diz respeito ao trânsito da aguardente, sabe-se que o artigo 20º do B.O. em análise,

estipulou que era permitido o trânsito da aguardente de um sítio para outro desde que, ela

estivesse em conformidade com os direitos aplicados, ou seja, pagos os impostos e

acompanhados de documentos comprovativos da legalidade do trânsito e ainda deveria dar

entrada nos armazéns fiscalizados pela Instância Aduaneira, antes de prosseguir para o

destino.

Relativamente ao pagamento dos impostos, temos que o artigo 22º do B.O em estudo, deixou

claro que este pagamento era da inteira responsabilidade dos fabricantes ou do dono da

aguardente a ser destilada, que por sua vez iria fornecer ao consumo, mas antes disso a

aguardente deveria ser despachada, ou manifestada nas entidades competentes.

Para o referido despacho da aguardente, era exigido que este fosse feito por pessoas idóneas,

ou seja, o proprietário do alambique quando a aguardente era manifestada como sua; pelos

proprietários da aguardente manifestada com autorização do manifestante, ou seja, a pessoa

que fez a manifestação da aguardente.

Todo o despacho da aguardente era feito na Instância Aduaneira Concelhia, mediante a

apresentação do modelo nº 13 (ver anexo nº 7), que seria preenchido, sendo as quantias

devidas pagas na tesouraria da respectiva Instância Aduaneira.32

Um outro aspecto importante que convém realçar é o facto das contravenções ou a

transgressão da lei, ou então quem não cumprisse o estabelecido no referido Diploma no

artigo 7º, que proibia o fabrico da aguardente de açúcar, seria aplicada uma multa que variava

de 1000 a 10000$00.

O fabricante ou dono que não cumprisse o estipulado no artigo 22º – pagar os impostos

referidos no artigo 2º do B.O. em estudo – de 2$00 por litro que constituía receita da fazenda

e 1$00 por litro que constituía receita dos municípios, ficaria sujeito a uma multa que

32 - Boletim Oficial do Governo da Colónia de Cabo Verde. Diploma Legislativo nº 723, de 26 de Dezembro de

1941 – Sup. nº 11 ao B.O nº 51. Artigo 27º

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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correspondia ao quíntuplo da importância dos impostos. A multa não poderia ser inferior a

500$00.33

Não era permitido o fabrico da aguardente sem uma autorização prévia, passada pela Instância

Aduaneira. Caso essa lei fosse transgredida, a pessoa seria punida com a perda da aguardente

fabricada, do alambique e dos demais acessórios de destilação e estaria sujeita a uma multa

que variava entre 1000$00 e 10000$00. Também os proprietários de alambiques que não

permitiam a entrada de agentes de fiscalização eram punidos, porque estes eram autorizados

pela Instância Aduaneira, para verificar qualquer aparelho de destilação que encontrassem a

funcionar, no sentido de ver se estava devidamente autorizado.

4.2 – Legislação de proibição do fabrico da aguardente em Cabo Verde

As circunstâncias “anormais” que a colónia atravessava, na altura, em consequência do

impacto dos conflitos internacionais com repercussões intensas no abastecimento e na

economia do arquipélago, assim como da escassez da produção agrícola, impunha-se,

portanto, medidas que contrariassem o desenvolvimento destas duas ordens de factores

(escassez da produção agrícola e fraco abastecimento dos produtos de que necessitavam e que

não eram produzidos na Colónia). Assim, de acordo com as prerrogativas deste Diploma

Legislativo, a partir de então toda a cana-de-açúcar produzida na Colónia de Cabo Verde

destinar-se-ia a outras dimensões económicas a saber:

1) Figura o açúcar com uma elevada importação, de que resulta a saída de avultados

capitais, que deverão servir para a aquisição de géneros que não produz a colónia.

2) Promover o fabrico de açúcar e mel com a cana sacarina existente, em lugar de

aguardente.

33

- Boletim Oficial do Governo da Colónia de Cabo Verde. Diploma Legislativo nº 723, de 26 de Dezembro de

1941 – Sup. Nº 11 ao B.O nº 51. Artigo 29º

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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37

3) O consumo do açúcar e mel ficariam garantidos um preço remunerador e as

existências, em armazéns de aguardente, garantem por outro lado, ao produtor o

escoamento das suas reservas para melhor preço.

O Concelho do Governo aprovou e assim, o governador da Colónia de Cabo Verde, de então,

José Diogo Ferreira Martins, no uso das faculdades que lhe eram atribuídas pelos artigos 28º e

30º do acto colonial e pelo artigo 43º da Carta Orgânica do Império Colonial Português,

mandou o seguinte:

- Artigo 1º Proibir durante o ano civil de 1942, o fabrico da aguardente destinando-se toda

a cana sacarina à produção de açúcar e mel. Como já tínhamos referido anteriormente, toda a

cana sacarina cultivada nas ilhas de Cabo Verde só poderia ser utilizada na produção e fabrico

do açúcar e do mel.

A infracção ao artigo era punida com uma multa de 5.000$00 a 20.000$00 e a perda dos

engenhos, ou seja, as pessoas que fossem apanhadas a produzir aguardente após a publicação

deste regulamento teriam que pagar o montante estipulado na lei (5000$00 a 20000$00) e

ainda todo o material de destilação era penhorado.

Artigo 2º “Os donos de alambiques deverão durante o mês de Janeiro de 1942, manifestá-los

nas Instâncias Aduaneiras Concelhias, indicadas o local onde se acham, o sistema de cada um,

se é de produção contínua ou descontínua, a capacidade máxima de produção em cada hora de

trabalho, nome do construtor, sendo possível, e número”.

Com isso ficaria mais fácil o controle da produção clandestina da aguardente, que a partir da

publicação deste regulamento passou a fazer parte do quotidiano da ilha de Santo Antão, uma

vez que, a única saída que os santantonenses viram após a proibição do fabrico da aguardente

foi a produção e venda clandestina desse produto, como alternativa para o sustento da família.

1º A Instância Aduaneira Concelhia no prazo de 8 dias, e após ter recebido o manifesto, ou

seja, a declaração do sítio onde se encontrava o engenho, mandava os fiscais ou os chefes

aduaneiros selar os alambiques, de forma a evitar o fabrico da aguardente.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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38

- Os donos do alambique que não fizessem o manifesto, ou seja o exigido nos artigos

anteriores ficariam sujeitos a uma multa de 1.000$00 a 10.000$00 e na perda do aparelho.

Toda a legislação referente a esta matéria, aplica-se, como não poderia deixar de ser, na ilha

de Santo Antão. Assim, de seguida passamos a analisar o impacto dessas medidas nesta ilha,

com particular incidência sobre o fenómeno do contrabando, tão controverso e delicado em

Santo Antão e cujas consequências terá exercido tantos constrangimentos a muitas famílias

naquela ilha do Norte.

Assim, temos que, pelo Diploma legislativo nº 724, de 31 de Dezembro de 1941, a produção

da aguardente e consequente comercialização ficou proibida no solo Cabo-verdiano, tendo em

conta as circunstancias anormais enfrentadas na altura, mas também, alegando que a sua

produção e o consumo afectava a saúde pública.

A partir daí, o Diploma legislativo nº 761 de 1942 manda o seguinte:

Todo o regadio que era ocupado pela cana sacarina poderia ficar disponível para a produção

hortícola e para outras plantações, nomeadamente, batatas, ou seja poderiam aproveitar esses

terrenos para produzir os produtos que eram considerados imprescindíveis para o consumo da

população na colónia, tendo em conta que nessa altura, não era fácil importar os produtos

devidos aos conflitos internacionais. Mas também com a cana sacarina poderiam produzir o

açúcar e o mel, que eram considerados remuneradores e eram mais aceitáveis do que a

aguardente, tendo em conta as circunstancias da Colónia.

4.3 – Início do contrabando e suas consequências na ilha de Santo Antão

Logo após a proibição da produção da aguardente na Colónia de Cabo Verde, os produtores

da aguardente, não viram outra alternativa a não ser enveredar para o fabrico e a venda

clandestina desse produto, considerado de extrema importância para a economia do país, e

principalmente para a ilha de Santo Antão que sempre dispôs de fracas condições económicas

para o seu desenvolvimento.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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39

Mas o objectivo principal do trabalho não é analisar o contrabando em todo o arquipélago de

Cabo Verde, mas sim, especificamente, na ilha de Santo Antão, uma vez que nela o

contrabando da aguardente foi mais expressivo e evidente.

Para falarmos do contrabando da aguardente nos meados do século XX, convém fazermos

uma breve retrospectiva histórica, para uma melhor compreensão do fenómeno. Assim sendo,

e segundo o Sr. Pires Ferreira, numa entrevista concedida, e conforme já tínhamos referido, a

cana-de-açúcar apareceu pela primeira vez na ilha de Santo Antão, numa estratégia de

substituir a vinha, que já se encontrava degradada devido o ataque da filoxera. Havia espaços

cultiváveis de vinha na Garça, Serrado, Vale do Paul e Janela.

Os antigos donatários de Santo Antão – Casa de Santa Cruz – cultivavam a vinha nessa

região, mas nessa altura a produção já não estava a dar grandes resultados, e viram na cana-

de-açúcar a solução para o problema.

Com o andar dos tempos verificou-se que a aguardente fabricada de cana-de-açúcar estava a

dar grandes rendimentos, e devido à sua qualidade, era um produto muito apreciado nas

classes autóctones baixas e igualmente pelas classes que dominavam o país. Essa emergência

da aguardente, desde o início da sua produção e pela sua qualidade começou a prejudicar a

comercialização dos vinhos de Portugal.

A partir daí começou a haver pressão dos produtores de vinho coloniais que tinham nas

colónias um mercado bem forte para o escoamento do vinho, e que viram assim a produção da

aguardente como uma concorrente para esse mercado. Também, segundo o mesmo

entrevistado, no período compreendido entre 1843 e 1918, o governo da Colónia da Cabo

Verde exercia uma repressão e injustiça tributária, isto porque nesse período uma frasqueira

de aguardente de Santo Antão era tributada a 60 reis e o vinho e aguardente da metrópole

apenas por 25 reis.

Entre 1849 e 1852 a produção concorrente da Metrópole era taxada a 1%. Uma explosão de

contrastes, pois anteriormente a vinha foi sacrificada em beneficio da cana sacarina. Mas o

Santantonense tentou viabilizar a aguardente, pois o monopólio do vinho era imposto por

decreto não deixando qualquer margem à produção da ilha.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

40

Para tentar impedir essa concorrência, o governo da colónia de então, tratou de

institucionalizar medidas para travar o avanço da produção da aguardente. Uma das medidas

que foi tomada para tal foi impedir que os sistemas instalados no país fossem renovados, ou

seja, proibiram a importação de tecnologia, ou materiais de produção de aguardente,

destiladores. Importaram os primeiros equipamentos, apetrecharam os currais com trapiches e

depois proibiram a importação de peças suplentes e de equipamentos para moenda e

destilação da aguardente.34

Essa situação agravou-se nos inícios do século XX, isto porque faltavam engenhos para

reparar e modernizar o sistema de alambiques, cubos e trapiches instalados. O impacto dessa

medida é sentido até os nossos dias35

, porque os produtores e proprietários de alambiques,

criaram uma cultura de produção com equipamentos não adequados as exigências da

produção e do mercado consumidor.

O período compreendido entre 1919 e 1941 é caracterizado por anos bem difíceis, isto porque,

como se sabe, foi o término da Primeira Guerra Mundial, consolidação do Estado Novo em

Portugal, tendo como protagonista o Salazar, depressão dos anos 30 e consequentemente o

início da 2ª Guerra mundial. Com tudo isso acima apontado, podemos dizer que, nenhuma

atenção poderia ser dada à Colónia, isto porque ela estaria toda voltada para os problemas da

Europa.

Sendo assim, em 1919, o governador da Colónia de Cabo Verde, pela portaria nº 413,

começou por aplicar altas taxas fiscais na aguardente criando também um seguimento fiscal

que perseguisse o produtor da aguardente, no sentido de levá-los a desistirem do fabrico.

A situação é complicada e insustentável pelo Decreto-lei nº 724 de 31 de Dezembro de 1941,

já acima mencionado, que proibia o fabrico da aguardente e valorizava a produção do açúcar e

do mel. Segundo o Sr. Pires Ferreira, essa proibição duraria até o armistício que pôs fim a 2ª

Guerra Mundial. Com isso, a aguardente encontrou solução no contrabando, colectivamente

defendido pelo consumidor. Assim, foram ultrapassados os impostos múltiplos, bem como a

repressão para impor e fiscalizar o monopólio para proteger os produtos da metrópole.

34 Entrevista concedida pelo Sr. José Manuel Silva Pires Ferreira. 35 FERREIRA, José Manuel Silva. Impacto da produção do Grog em Santo Antão (doc). Paul. 2004.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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O contrabando emerge em salvação da aguardente que em 1940 o erário público foi à

falência, cobrando impostos vinte vezes menos do que em 1931.Tal situação era no momento

da 2ª Grande Guerra Mundial difícil que projectavam o aumento dos impostos para 50% e

100% de 1947 a 1950, isto no sentido de levar as pessoas a desistir do fabrico da aguardente,36

estimulando deste modo o fabrico do açúcar e do mel.

Na ilha de Santo Antão o contrabando vai ter uma particularidade, diferente, uma vez que, a

aguardente era considerada a única fonte geradora de rendimentos para o sustento da família

que não dispunha de outros meios de sobrevivência, o que vai fazer com que muitos

produtores e vendedores se especializassem no fabrico e na venda clandestina, ou seja, no

contrabando da aguardente, pese embora as consequências negativas para a sociedade. Vários

números de mortos e inválidos ocorridos durante o transporte desse produto, uma vez que, era

feito a altas horas da madrugada, caminhando pelas altas e íngremes montanhas da ilha de

Santo Antão.

Uma pergunta se coloca: Porque razão o poder colonial teve a necessidade de fazer pressão

aos produtores da aguardente, proibindo o fabrico da aguardente? Esta é uma questão que

tentaremos responder fazendo uma breve comparação entre as entrevistas concedidas e os

artigos publicados nos Boletins Oficiais. Segundo o senhor Pires Ferreira, a aguardente era

mais consumida nas ilhas de Cabo Verde do que o próprio vinho da metrópole, e é claro que

os governadores de então não poderiam admitir que a colónia fizesse concorrência.

A fiscalização da aguardente instituída em Santo Antão, para tentar controlar o fabrico

clandestino, foi tão forte a ponto de levar a morte de muitas pessoas que fizeram dessa prática

o sustento familiar. Ainda nas décadas de 50/60, se notava a grande fiscalização, ou seja a

aguardente era tão perseguida, de tal forma que os vendedores tinham que arranjar estratégias

várias para o transporte desse produto.

Mas com o andar dos tempos, após terem descoberto as estratégias dos vendedores, na venda

clandestina, tornou-se constante ver a aguardente sair e alargar nalguns espaços do cais

devido a acção fiscalizativa que existiu até a década de 60. Há uma situação que piora essa

fiscalização, durante a Segunda Guerra Mundial, devido aos vários conflitos a nível

36 Ferreira, José Manuel Silva Pires. Impacto da produção do Grog de Santo Antão Paul. 2004. Documento

adaptado.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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internacional, não era possível importar, ou seja, as divisas não eram suficientes para comprar

o açúcar, devido às limitações de navegação atlânticas impostas pelas frotas beligerantes.

Todas essas dificuldades, proibiam a importação do açúcar, então encontraram a solução no

próprio país e quem não produzisse o açúcar ou o mel estava sujeito a pesadas penalidades

(multas ou perdas dos aparelhos destiladores).

As pessoas que já estavam habituadas em produzir aguardente para competir com o vinho

tiveram ainda uma dificuldade acrescida que era a dirigida para o açúcar, mas nunca se deixou

de produzir a aguardente e nunca também a aguardente deixou de circular através do país, ou

seja, passaram a comercializar a aguardente de forma clandestina – o dito contrabando.

Houve um grupo que se especializou no contrabando da aguardente, um grupo que sustentou a

família nessa prática arriscada, ou seja, o contrabando foi a única saída para muitos

produtores que continuavam a ter a necessidade de matar a fome dos filhos, mas também

ajudou na educação dos filhos, na saúde etc., e viver dentro da dignidade possível, à época.

Por força disso, muitos eram os produtores que vendiam a aguardente a comerciantes

aportados em São Vicente entregando-a a altas horas da madrugada que, depois, por sua vez o

faziam sair da ilha de São Vicente para outras paragens. Esse grupo apareceu no Porto Novo

no Paul e na Ribeira Grande, muita boa gente safou-se em função do contrabando, dessa

limitação injusta imposta pela lei de então.

O Santantonense aventurava-se em pequenos botes, quais cascas de nozes e acompanhado de

alguns litros do precioso líquido, rumando à ilha vizinha a quase dez milhas de distância. Os

riscos enfrentados nessa aventura eram inúmeros: desde a guarda marítima, os fiscais que

sempre atentos e actuantes, porque eram conhecedores dessa actividade, e muitas vezes

agrediam as pessoas a ponto de as levar a morte, mas também aos perigos inerentes ao mar

que, a meio percurso, tem já características oceânicas de mar alto, aos quais se juntavam os

ventos fortes e os tubarões sempre famintos. Mas também muitas foram as que conseguiram

safar em empreendimentos arriscados. E era assim, que, naquele tempo, se escoava o produto

e se ganhava a vida. Em casa ficavam as mulheres e os filhos, em oração permanente para que

a desgraça não se abatesse sobre a família.

Para que a aguardente escoasse no mercado consumidor sem ser apanhado pelos fiscais, os

contrabandistas adoptaram várias estratégias de fugir ao fisco: a aguardente era depositada

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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numa lata de 20 litros, até mais ou menos ¾, e depois era soldada com uma chapa, fazendo

deste modo um fundo falso, e sobre este depositavam o mel de cana (sem entrar em contacto

com a aguardente), e quando esta lata tivesse que passar pela fiscalização nas alfândegas, era

fácil passar, porque pensariam que estava ali apenas o mel. Ou ainda, levavam, um certo

número de latas, sendo dois ou três de mel para disfarçar e o resto era de aguardente, abriam

uma lata e viam que era mel, já não ligavam abrir o resto. Mas essa forma era muitíssimo

arriscado, uma vez que, poderiam abrir as latas que continham aguardente.

Os garrafões eram transportados embalados como se fossem cachos de banana, colocavam as

bananas entre as palhas e no meio dessas colocavam a aguardente para tentar despistar os

fiscais da alfândega, mas a certa altura, isto foi descoberto, logo trataram de arranjar

instrumentos de penetração, o que tornou difícil de “safar-se” com a aguardente. Ainda a

aguardente era transportada amarrada nos “balaios” com se fossem “trouxas”, no meio de

outros produtos: batata, feijão, milho, etc., colocavam a aguardente por baixo e em cima desta

colocava esses produtos, mas essa forma era muito arriscada, não só por causa do fisco mas

também, porque poderia quebrar durante o transporte.

Toda essa aguardente era transportada amarrada nos animais (burros e mulas), a altas horas da

madrugada, caminhando a pé pelos campos desertos da ilha de Santo Antão. Saíam da Ribeira

Grande, rumo a Porto Novo para embarcarem nas pequenas embarcações nas encostas do

então Porto dos Carvoeiros, por onde os fiscais não passavam, e esses caminhos eram os mais

difíceis e perigosos, e por estes motivos, houve muitos acidentes, mortos, feridos e inválidos.

Muitas vezes os contrabandistas conseguiam fugir dos fiscais porque, estes andavam nos

caminhos que eram preparados pela Câmara Municipal, andavam a cavalo. Mas também

muitas vezes a aguardente saía nas pequenas embarcações da zona de Sinagoga rumo a São

Vicente. Nessa rota os perigos de enfrentar os fiscais eram menos, mas em contrapartida os

riscos de vida eram maiores, uma vez que o percurso nessas embarcações era muito mais

longo.

Na ilha de São Vicente o desembarque era feito, não no cais acostável, mas sim, nas encostas

mais difíceis da ilha – Salamansa, Matiota, Lazareto, Calhau, a altas horas da madrugada –

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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antes do amanhecer, evitando os fiscais.37

Ao desembarcarem em São Vicente, tinham que

encontrar a melhor forma de entregar a aguardente ao consumidor, sendo assim, uns ficavam

de guarda, e outros tentavam ir para a cidade fazer a respectiva entrega.

Uma pergunta que se coloca é: será que era necessário os produtores e vendedores arriscarem

as suas vidas nessa produção e venda clandestina da aguardente? Segundo o Sr. Pires Ferreira,

era necessário sim, mesmo sabendo os riscos que viriam enfrentar durante o percurso, porque,

sabe-se que nessa altura era o período das grandes secas que assolavam o país, e a aguardente

produzida em toda a parte do arquipélago suportava essas secas. Poderia ser transportada de

um lado para o outro, e durante muito tempo, sem correr o risco de se estragar mas também

porque era um produto de muito valor. Sendo assim as famílias viram na sua produção

clandestina, sem pagar impostos, uma hipótese de sustentação das suas vidas.

4.4 - Legalização da produção do fabrico da aguardente

A primeira tentativa de mudar o fenómeno foi proposta pelo governador João Figueiredo, pelo

Diploma legislativo nº 878 de 17 de Novembro de 1945, que eliminou o regulamento de

múltiplos impostos e das elevadas taxas em vigor na altura, publicando deste modo um

diploma que regulamentasse o fabrico, a fiscalização e cobrança dos impostos aplicados sobre

a aguardente, e de maneira a satisfazer as justas pretensões dos produtores da Colónia de

Cabo Verde, eliminando todas as deficiências verificadas na legislação anterior.

O ponto auge dessa situação veio a culminar 23 anos depois, quando a 7 de Dezembro de

1968, o governador Sacramento Monteiro, reconheceu a inoperância e os erros cometidos nas

legislações anteriores, fez publicar um novo regulamento – o Diploma Legislativo nº 1672 de

7/12/1968, instituindo um novo sistema para a tributação e cobrança do imposto de consumo

da aguardente de cana sacarina, originária da província38

. Este diploma alterou tudo,

concedendo livre circulação da aguardente aos proprietários, bem como aos vendedores,

mudando a unidade de impostos. Em vez de pagarem por litro produzido passaram a cobrar os

impostos por hectare de terreno cultivado de cana sacarina, revogando assim o Diploma

37 - Sobre o assunto ler a obra do autor Manuel Lopes, O galo Cantou na Baía, um romance que retrata essa

realidade 38 - Boletim Oficial da Colónia de Cabo Verde nº 49 de 7 de Dezembro de 1968. II Semestre. Repartição da

Fazenda.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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Legislativo nº 723 de 26 de Dezembro de 1841 e o 724 de 31 de Dezembro de 1941 e criando

assim condições para o relançamento, ou seja liberalizando o fabrico da aguardente,

desaparecendo deste modo, o seu contrabando.

Com o objectivo de conferir igualdade a todos os proprietários, escolheram uma nova unidade

de tributação, passaram a considerar não só os factores ecológicos de cada uma das regiões

produtoras de cana sacarina, como também os locais onde a aguardente era produzida, até o

local de escoamento, dentro ou fora da ilha e ainda para o exterior da província.

Partindo deste pressuposto, os responsáveis pela tributação da aguardente, resolveram não

fixar uma taxa única para cada hectare de terreno cultivado de cana sacarina, mas antes,

consoante a natureza dos terrenos, das zonas de maior ou menor produção, por hectare.

Para a aplicação dessas taxas, consideravam para além dos factores já mencionados, outros,

nomeadamente as disponibilidades de água para a rega, e quando o fabricante ou interessado

resolvesse mudar a cultura da cana sacarina por uma outra de maior reflexo e interesse

económico, este ficaria isento de pagar os impostos devidos. Com isso, aplicaram para cada

hectare de terreno cultivado de cana sacarina um imposto anual, que era cobrado de forma

diferente para as diversas ilhas e nos diferentes locais do arquipélago de Cabo Verde. Sendo

assim, para as ilhas de “Santiago e Santo Antão (excepto o concelho do Porto Novo – zona

Ribeira das Patas e Ribeira Grande nas zonas de Figueira e Ribeira Alta) o imposto seria mais

barato – 1200$00 por cada hectare de terra), cobravam um imposto de 1500$00 por cada

hectare de terreno cultivável, que deveria ser pago nas recebedorias das Repartições de

Fazenda Concelhias, podendo ser pagas de uma só vez ou em duas prestações”39

. Ficou a

aguardente da cana sacarina produzida, livre para circular entre diversas ilhas do arquipélago

e entre os diferentes lugares da mesma ilha sem quaisquer constrangimentos.

Para evitar constrangimentos, no que diz respeito à tributação dos impostos, os responsáveis

dos terrenos eram obrigados a fornecer até 31 de Dezembro de cada ano à Repartição de

Fazenda do Concelho, informações no que dizia respeito à localização dos terrenos do cultivo

da cana sacarina, bem como as respectivas áreas (dimensão do terreno cultivado), facilitando

39

- Boletim Oficial da Colónia de Cabo Verde nº 49 de 7 de Dezembro de 1968. II Semestre. Repartição da

Fazenda.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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deste modo a cobrança dos impostos, e sempre que houvesse alteração da área de cultivo de

cana sacarina ou caso o dono da propriedade, acabasse com a cultura da cana, este deveria

comunicar de imediato aos Serviços da Fazenda, para que eles pudessem fazer a alteração ou

eliminação dos respectivos impostos devidos.

Os proprietários que não pagassem os impostos e que não informassem aos Serviços da

Fazenda o total de área cultivada de cana sacarina ficavam sujeitos a uma multa que variava

entre 200 e 5000$00 respectivamente (estes destinados aos cofres da Fazenda Nacional e das

cooperativas agrícolas da província).

Caso a aguardente fosse destinada à exportação, o exportador teria o direito à restituição do

imposto correspondente à quantidade exportada e anteriormente pago, sendo o requerimento

desta restituição, solicitado pelo interessado na exportação, e este deveria dar entrada nos

Serviços da Fazenda e Contabilidade acompanhado do comprovativo da exportação de

quando a aguardente exportada entrou no território de destino.

No novo sistema instituído, passaram a utilizar a cana sacarina em regime de cooperativas de

produção da aguardente de qualidade com o objectivo de exportá-la e obter deste modo, maior

lucro. Não deixando igualmente de estimular o aumento da produção unitária da cana sacarina

por hectare de terreno, para além de estabelecer a livre circulação da respectiva aguardente

para todas as ilhas de Cabo Verde sem quaisquer constrangimentos.

Tendo dado todas essa facilidades aos produtores e ou fabricantes, proibiram o fabrico da

aguardente que não fosse de cana sacarina e estabeleceram uma multa de 1000 a 5000$00,

bem como a perda dos aparelhos de destilação e seus acessórios, que seriam entregues aos

Serviços da Fazenda e Contabilidade, para os que resolvessem produzir a aguardente

clandestinamente.40

40 - A aguardente poderia ser fabricada apenas de cana sacarina, ou seja, não poderiam misturar o açúcar, ou

outros produtos

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

Ivete Maria Fortes Évora

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Conclusão

A produção da aguardente e todos os fenómenos com ele relacionada, constitui um dos

aspectos que mais profundamente marcou o devir histórico da Ilha de Santo Antão. Ao longo

dos tempos esta actividade passou por vicissitudes diversas e adversas, nomeadamente, o seu

contrabando nos anos 40 do século XX.

Do trabalho que acabamos de apresentar, procuramos debruçar sobre essas vicissitudes,

cientes, porém de que o assunto não ficou esgotado.

Ao longo do trabalho foi-nos possível chegar as seguintes conclusões:

1 - A cana sacarina apesar das várias vicissitudes que tem passado ao longo dos tempos,

continua sendo importante na economia Santantonense, que não dispõe de outras formas de

sustento, a não ser o fabrico da aguardente, cujo lucro permite vender e comprar outros

produtos de primeira necessidade. Por essa e por outras razões ela se cultiva em grandes

quantidades. Hoje, nos muitos vales da ilha é fácil encontrar trapiches por todo o lado, uma

vez que a produção da aguardente é liberalizada para todos quantos dispõem de um pedaço de

terra para cultivar a cana sacarina.

2 - Esses trapiches, ainda se encontram exactamente com as mesmas características que

tiveram desde as suas origens, não obstante, as inovações que começaram a surgir a nível da

tecnologia, ou seja, começaram a aparecer alguns anos depois, nas explorações maiores, os

trapiches mecanizados que vieram substituir a força do animal e por vezes do homem.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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3 - O contrabando da aguardente na ilha de Santo Antão foi uma solução encontrada para os

produtores, após a proibição do fabrico deste produto, para que pudessem ganhar o sustento

da família, uma vez que nessa altura, a ilha de Santo Antão foi particularmente assolada pelas

secas.

4 - A aguardente defrontou-se com a vinha e conseguiu sobreviver perante esta, porque foi

substituída pela cultura da cana sacarina, devido ao estado em que ela já se encontrava.

Defrontou-se ainda com o cafeeiro, que ainda nos finais do século XIX representava uma

produção muito boa, liquidando depois o café ocupando as boas terras outrora destinadas ao

cultivo do mesmo. O mesmo veio a acontecer com a banana que nas décadas de 50 e 60 foi

também substituída pela cultura da cana sacarina.

5 - Devido às circunstâncias vividas a nível internacional – conflitos – não era possível

exportar para a Colónia os produtos de que tanto necessitavam, principalmente o açúcar, mas

também nessa altura já não estavam a conseguir exportar o vinho que era muito apreciado na

Colónia de Cabo Verde. Sendo assim, a aguardente começou a ser apreciada e muito

consumida nas classes mais privilegiadas. O governo tratou de instituir medidas para proibir o

fabrico da aguardente.

6 - A aguardente esteve sujeita a uma série de irregularidades, e de falta de estratégias,

compatíveis com a sua evolução. O problema do contrabando taxativamente sustentou um

grupo de pessoas e fez com que o proprietário tivesse alguma venda do seu produto. Mas a

aguardente era vendida ao desbarato, ou seja a um preço muitíssimo baixo, e na incerteza de

chegar ou não chegar ao destino (morrer pelo caminho, ou perder a aguardente). Com tudo

isso, podemos então concluir que a aguardente tem condições de sustentabilidade, uma vez

ultrapassada essas dificuldades já apontadas, conseguiu ainda sobreviver após a proibição do

seu fabrico, pelo então governo colonial.

7 - Sabe-se que ao longo dos tempos a aguardente tem vindo a perder o seu valor,

principalmente a nível dos preços, isto devido a produção de grandes quantidades, mas

também devido à introdução de produtos tóxicos durante o seu fabrico. A partir daí a falência

domina por completo a sua exploração agrícola.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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8 - O contrabando da aguardente foi uma atitude nacionalista, por parte dos produtores e dos

vendedores, que queriam defender os recursos naturais de Cabo Verde. Foi nacionalista

porque era impensável que pudesse vingar uma atitude imposta pela metrópole na colónia,

que só em 1968, o governador Sacramento Monteiro, veio modificar, liberalizar e/ou isentar a

aguardente do pagamento dos impostos que foram aplicados pelo diploma legislativo nº 723

de 26 de Dezembro de 1941, passando a aguardente a ser considerada um produto nacional e a

circular sem quaisquer problemas.

9 - Nos dias de hoje a aguardente está sujeita a um novo e grande desafio talvez de maiores

proporções, porque está colocada dentro do interior da ilha de Santo Antão, que é a produção

da aguardente do açúcar, mas pelos vistos e pelas intervenções que tem vindo a fazer talvez

venha a conseguir vencer esta árdua etapa, e venha a ser um produto que se valorizado e

produzido em boas condições, conseguirá conquistar o seu mercado.

O contrabando da aguardente ocorrido nos meados do século XX – 1941/1968, foi uma

alternativa encontrada para os produtores e vendedores da aguardente logo após a proibição

do seu fabrico pelos governadores da colónia de Cabo Verde de então.

A produção da aguardente na Ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do Século: XX: um olhar histórico

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B.O. Nº 42 – ano de 1942.

B.O. Nº 40 – ano de 1945.

B.O. Nº 49 – ano de 1968.

Manuscritos

Secretaria-geral do Governo (S.G.G).

S.G.G, cx Nº 442 – Representação dos habitantes da Ilha de santo Antão sobre a proibição do

fabrico da aguardente.

Secretária Geral do Governo – Relatório do Governador-geral da Província relativo a

administração do Governo de Cabo Verde no ano de 1898.

Anuário Estatístico.

Imposto de aguardente. – Movimento de aguardente da produção da Colónia de Cabo Verde e

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Imposto de aguardente. – Movimento de aguardente da produção da Colónia de Cabo Verde e

imposto cobrado, em 1940

Imposto de aguardente. – Movimento de aguardente da produção da Colónia de Cabo Verde e

imposto cobrado, em 1943

Imposto de aguardente. – Movimento de aguardente da produção da Colónia de Cabo Verde e

imposto cobrado, em 1944

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Revista

ECKOS do Paul. Revista de Informação e cultura Números 7 e 10. Agosto 1994/Junho 1995.

Jornais

Noticias de Cabo Verde – Orgão regionalista independente: Directores: Ribeiro de Almeida E

Raul Ribeiro. Ano XIII. São Vicente 30 de Junho de 1943. Abo IX/nº 197/ Fev. 1941.Ano

XIII/nº 226/Fev. 1944.

Renascimento.

ENTREVISTA

Eu Ivete Maria Fortes Évora, pretendo elaborar o trabalho de fim de curso para a

obtenção do grau de licenciatura em ensino de História cujo tema é “A produção da

aguardente na ilha de Santo Antão, e seu contrabando nos meados do século XX: Um

olhar histórico”, e para isso solicito e agradeço a vossa disponibilidade ao responder as

seguintes questões, que serão única e exclusivamente utilizadas na elaboração deste

trabalho.

Esta entrevista destina-se a todos os proprietários e pessoas que de uma forma directa ou

indirecta estiveram ligadas a esta actividade.

Questões:

1 - O senhor foi proprietário de algum trapiche? Se sim, desde quando começou a

produzir a aguardente?

2 – Onde foi a primeira instalação? Teve licença logo no início da produção?

3 – O senhor começou logo como produtor deste produto?

4 – Produzia a aguardente sem nenhum tipo de constrangimentos? Se sim Quais?

5 – Havia um limita máximo de produção? Se sim qual era a quantidade estipulada?

6 – O senhor produzia mais que a quantidade estipulada na lei?

7 - Qual era a finalidade de sua produção?

8 - Se a produção era para venda, onde e para quem vendias a aguardente?

9 - Havia algum constrangimento na venda desse produto? Se sim quais?

9 – Porque o senhor produzia ou vendia a aguardente?

10 – Além da aguardente o senhor vendia outro tipo de produto? Se sim qual?

11 – Algum dia o senhor teve problemas com autoridades locais/ fiscais? Se sim

porque?

12 – Que tipo de aguardente produzias? Cana-de-açúcar? ----- ou açúcar ----?

13 – A partir de 1941, houve a proibição do fabrico da aguardente. Na sua opinião qual

foi a razão dessa proibição?

14 – Essa proibição foi total ou parcial? Se foi parcial qual foi a quantidade máxima de

produção? Ultrapassavas essa quantidade?

15 – Qual seria a multa aplicada as pessoas que excediam o limite?

16 – Como era aplicada a multa?

17 - A partir desse momento como é que faziam para escoar? Após essa proibição como

era vendida a aguardente?

18 – Qual foi o impacto/consequência dessa proibição?

19 – Quantas pessoas dependiam dessa prática para o seu sustento?

20 – Quais eram os perigos enfrentados, durante a venda clandestina da aguardente?

21 – O senhor tem conhecimento se houve alguma vítima (mortal, ferimentos e outros)

na venda clandestina da aguardente?

22 – Até quando vigorou a lei da proibição da aguardente?

23 – Sabendo que a produção da aguardente era proibido, porque é que produzia?

Sabendo ainda que estavam sujeitos a pesadas multas?

Muito obrigado pela disponibilidade em conceder estas informações

que serão importantes na elaboração do meu trabalho.

ANEXO N° 1

ANEXO N° 2

ANEXO N° 3

ANEXO N° 4

ANEXO N° 5

ANEXO N° 7

ANEXO N° 6