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1 INSTITUTOS FEDERAIS: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE? SIDNEY REINALDO DA SILVA 1 RODRIGO RAFAEL FERNANDES 2 Resumo: Criados pela Lei 11.892 de 29 de dezembro de 2008, os Institutos Federais são instituições de educação superior, básica e profissional especializadas na oferta de educação profissional e tecnológica em diferentes modalidades de ensino que se propõem a conjugar conhecimentos técnicos e tecnológicos com suas práticas pedagógicas. E em suas concepções e diretrizes reafirmam uma formação humana e cidadã como precedente à qualificação para o exercício da laboralidade que seja capaz de articular ciência, tecnologia, cultura e conhecimentos específicos. No entanto, quais concepções de ciência, tecnologia e sociedade tem orientado a elaboração das políticas que norteiam a educação profissional, científica e tecnológica? Tem-se aqui como escopo maior analisar e discutir as políticas que norteiam os Institutos Federais tomando por base documentos do MEC e da SETEC, além da lei 11.892/08 que instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e criou os Institutos Federais. Busca-se, mais especificamente, discutir aspectos filosófico-sociológicos presentes nos documentos e suas concepções, sentidos, limitações e articulações para Ciência, Tecnologia e Sociedade, sob a perspectiva de autores como Marcuse e Feenberg. O texto mostra como esta proposta formativa tem um potencial de alavancar novas práticas formativas calcadas numa relação entre ciência, tecnologia e sociedade consideradas, de certo modo, contra hegemônicas. Palavras-chave: Educação; CTS; Institutos Federais; INTRODUÇÃO Este texto é resultado de um estudo sobre a compreensão do nexo entre ciência, tecnologia e sociedade que inicialmente orientou a criação dos IFs (Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia) e que, de certa forma, está inscrita em suas Concepções e Diretrizes (BRASIL, 2010). Essa abordagem se deu com base na filosofia da tecnologia de Marcuse e Feenberg. A partir desses autores, foi apresentado um quadro para analisar a relação entre ciência, tecnologia e sociedade visando destacar a responsabilidade da ciência, o modo como ela não é neutra perante os desenvolvimentos tecnológicos dela decorrentes, sobretudo no que diz respeito à maneira como valores predominantes na sociedade são incorporados na atividade dos cientistas. Nesse sentido é que se abordou a forma como a ciência e a tecnologia 1 Instituto Federal do Paraná (IFPR), Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Instituto Federal do Paraná (IFPR), Brasil. E-mail: [email protected].

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INSTITUTOS FEDERAIS: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE CIÊNCIA,

TECNOLOGIA E SOCIEDADE?

SIDNEY REINALDO DA SILVA1

RODRIGO RAFAEL FERNANDES2

Resumo: Criados pela Lei 11.892 de 29 de dezembro de 2008, os Institutos Federais são

instituições de educação superior, básica e profissional especializadas na oferta de educação

profissional e tecnológica em diferentes modalidades de ensino que se propõem a conjugar

conhecimentos técnicos e tecnológicos com suas práticas pedagógicas. E em suas concepções

e diretrizes reafirmam uma formação humana e cidadã como precedente à qualificação para o

exercício da laboralidade que seja capaz de articular ciência, tecnologia, cultura e

conhecimentos específicos. No entanto, quais concepções de ciência, tecnologia e sociedade

tem orientado a elaboração das políticas que norteiam a educação profissional, científica e

tecnológica? Tem-se aqui como escopo maior analisar e discutir as políticas que norteiam os

Institutos Federais tomando por base documentos do MEC e da SETEC, além da lei 11.892/08

que instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e criou os

Institutos Federais. Busca-se, mais especificamente, discutir aspectos filosófico-sociológicos

presentes nos documentos e suas concepções, sentidos, limitações e articulações para Ciência,

Tecnologia e Sociedade, sob a perspectiva de autores como Marcuse e Feenberg. O texto mostra

como esta proposta formativa tem um potencial de alavancar novas práticas formativas calcadas

numa relação entre ciência, tecnologia e sociedade consideradas, de certo modo, contra

hegemônicas.

Palavras-chave: Educação; CTS; Institutos Federais;

INTRODUÇÃO

Este texto é resultado de um estudo sobre a compreensão do nexo entre ciência,

tecnologia e sociedade que inicialmente orientou a criação dos IFs (Institutos Federais de

Educação, Ciência e Tecnologia) e que, de certa forma, está inscrita em suas Concepções e

Diretrizes (BRASIL, 2010). Essa abordagem se deu com base na filosofia da tecnologia de

Marcuse e Feenberg. A partir desses autores, foi apresentado um quadro para analisar a relação

entre ciência, tecnologia e sociedade visando destacar a responsabilidade da ciência, o modo

como ela não é neutra perante os desenvolvimentos tecnológicos dela decorrentes, sobretudo

no que diz respeito à maneira como valores predominantes na sociedade são incorporados na

atividade dos cientistas. Nesse sentido é que se abordou a forma como a ciência e a tecnologia

1Instituto Federal do Paraná (IFPR), Brasil. E-mail: [email protected]. 2Instituto Federal do Paraná (IFPR), Brasil. E-mail: [email protected].

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são concebidas pelo discurso fundante do IF. As críticas feitas por Marcuse e Feenberg à

concepção positivista da ciência permitiram destacar especificidades da proposta dos IFs

relativa à produção da ciência e da tecnologia e sua relação com a formação

acadêmica/profissional.

Com a criação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia afirmou-se uma

formação humana e cidadã inerente à qualificação para o exercício da laboralidade capaz de

articular ciência, tecnologia, cultura e conhecimentos específicos. No entanto, quais concepções

de ciência, tecnologia e sociedade decorre das concepções e diretrizes dos IFs?

O texto mostra que prevalece no discurso fundante dos IFs (BRASIL, 2010),

independentemente de se aceitar ou não a sua legitimidade, uma concepção da ciência como

sendo produzida em um certo contexto social que lhe confere prioridades em termos de

direcioná-la segundo demandas tecnológicas, sendo que isso pode ser feito ou não de modo a

torná-la comprometida com intervenções orientadas por um projeto político nacional de

educação. A tríade ensino, pesquisa e extensão ajusta-se no sentido de privilegiar a

incorporação social da ciência, entendendo isso como um modo de produzir conhecimento,

tecnologia e inovação territorialmente orientada.

CIÊNCIA E TECNOLOGIA SOCIALMENTE ORIENTADAS

Em um artigo sobre a responsabilidade do cientista, Hebert Marcuse (2009) defende que

os cientistas são responsáveis pelos usos sociais da ciência. Isso decorre da própria “estrutura

interna e telos da ciência” e “pelo lugar e função da ciência na realidade social”, ao que se ligam

tanto o progresso quanto o regresso científico (2009, p. 158-159). Ainda que se possa falar de

uma intenção pura do cientista, ao ser publicado, sua obra, especificamente numa sociedade

capitalista, se transforma em mercadoria e passa a ser objeto dos mais diversos usos. Contudo,

afirma o filósofo, o trabalho do cientista, ao satisfazer necessidades sociais, tem também um

“valor social”, segundo o qual ele contribui ora para a opressão, ora para a emancipação

conforme a dinâmica do jogo das forças sociais (2009, p. 160). Ainda que não concorde com

os usos feitos dos conhecimentos que produz, o cientista não estaria isento de responsabilidade,

pois não seria admissível que ele não tenha consciência de que sua pesquisa está relacionada à

forma como o desenvolvimento social e a aplicação da ciência determinam “o posterior

desenvolvimento conceitual interno da ciência” (Idem, p. 161).

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Segundo Marcuse (2009), a ciência tomada como indiferente aos “valores” torna-se

“cega para o que acontece com a existência humana”. Ainda que fique apenas no âmbito da

teoria pura, o cientista “sanciona uma prática estabelecida” (2009, p. 162). Para o autor, contudo

a atividade científica moderna não se dissocia de uma promessa emancipatória que,

intrinsecamente, atrela sua própria realização à técnica e à política:

A ciência como um esforço humano continua a ser a mais poderosa arma e o

instrumento mais eficaz na luta por uma existência livre e racional. Esse esforço

estende-se para além do estudo, além do laboratório, além da sala de aula, e visa à

criação de um ambiente, tanto social quanto natural, no qual a existência pode ser

libertada de sua união com a morte e a destruição. (Idem, p. 164)

Quando se dissocia da referida promessa emancipadora, a ciência perde a sua própria

razão de ser (raison d´être), produzindo algo “equivalente à ruptura entre a ciência e a razão”

(2009, p. 162), o que pode se verificar nas sociedades de administração total. Contudo, isso é o

que tem prevalecido nas sociedades unidimensionais, capitalistas e comunistas, como Marcuse

identificava em sua época.

A ciência, portanto, não escapa das contradições históricas, ou seja, da irracionalidade

social como um todo. Ela é impotente para fazer florescer a liberdade humana onde a dureza da

vida, a pobreza e a estupidez prevalecem. Da mesma forma, seria estranho pensar que ela, não

importa como, estaria contribuindo com a justiça entendida como uma forma de primeiro criar

riquezas para depois distribuí-las. Isso seria aceitar, incorretamente, que a libertação dos

oprimidos viria de cima pra baixo (1973, p. 55), o que contrariaria o princípio de que o “o fim

deve ser operante nos meios para atingi-lo” (1973, p. 56). Esse princípio tem, da mesma forma,

exigências para a educação. Não seria aceitável, em nome de um suposto atraso histórico e

imaturidade material e intelectual impor uma educação autoritária (“ditaduras educacionais”)

conduzida por uma administração pretensamente capaz de forçar o surgimento da

“autodeterminação genuína e inteligente”. (1973, p. 55)

Marcuse identifica uma tendência opressiva segundo a qual a ciência contribuiu para a

passagem de uma dominação para a outra mais eficaz, no caso, na modernidade, a substituição

gradativa da dependência pessoal para a dependência da ordem objetiva das coisas dada pelas

novas formas da escravização do homem por um aparato produtor racionalizado (1973, p. 142).

A ciência, ao mesmo tempo em que contribui para a elevação do padrão de vida ao intensificar

a racionalização do gerenciamento da produção e da divisão do trabalho, também justificou e

possibilitou o surgimento de aspectos destrutivos e opressivos ligados a padrões de mente e

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comportamento racionais. Marcuse refere-se a uma racionalização contraditória cuja força

sinistra cria um aparato escravizador, gerador de conflitos globais (“uma luta total mundial”),

arruinando a vida dos que o constrói e o usam (1973, p. 152). Frente a essa contradição da

racionalização, a responsabilidade da ciência é incontornável.

A prática científica não se isenta de valores. Contudo, os valores epistêmicos forjados

em vista de garantia a neutralidade metodológica, por si só, não blindam a prática da pesquisa

das exigências éticas, dos valores sociais. Nesse sentido, para Marcuse, o fato de que a

quantificação da natureza relacionada a sua explicação em termos de estruturas matemáticas

teve como exigência a separação da ciência e da ética, do verdadeiro ou do bem, não a isentou

de responsabilidades sociais e históricas. Portanto, o processo engendrador da racionalidade

tecnológica não se difere do processo político.

A não responsabilização do cientista está vinculada ao fato de que o conhecimento

científico suprime a força (a universalidade) normativa do Bem, do Belo, da Paz e da Justiça,

pois, afirma-se, ela não pode decorrer de condições ontológicas (científico-racionais), que são

as únicas a exigir validez não contingente. (1973, p. 145). Mas a observação, a medição e o

cálculo ao suprimir os aspectos éticos, estéticos e políticos, tornaram-se uma forma de produzir

um conhecimento supostamente neutro, mas que, contudo, está a serviço dos mais variados fins.

A eficácia e a produtividade universais do aparato ao qual são subordinadas a ciência e

a técnica escondem os interesses particulares que o organizam (1973, p. 162). Um mundo que

se tornou material de uma administração total absorve também os administradores de modo que

“a teia da dominação se tornou a teia da própria razão e esta sociedade está fatalmente

emaranhada nela” (Idem). Essa crítica à razão refere-se ao modo como a ciência se submeteu

ao positivismo, à ideologia do empirismo total. Contudo, para Marcuse, cabe à crítica mostrar

as barreiras que impedem essa forma de ciência de se contrapor à realidade e os seus limites

para (re)estabelecer conceitos capazes de romper essas mesmas barreiras.

Assim como a tecnologia foi incorporada no cotidiano das pessoas de modo a acomodá-

las e submetê-las a exigências alheias ou repressivas, ela pode ser também base para a

contestação, ou seja, usada para fins emancipatórios. Nesse sentido, Marcuse critica o

positivismo como uma ideologia ligada a uma forma de patologia política ou dominação social,

contra o que ele apresenta possibilidades de transformar a ciência no sentido de abri-la também

para “self-expressive form of creative speculatio”. Mas isso exige transformações na divisão

social do trabalho e a supressão das condições sociais que sustentam formas opressivas e

autoritárias de dominação dos especialistas e tecnocratas (1973, p. 180). Contudo, frente a essas

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exigências, a própria ciência e a tecnologia são fundamentais para realizar potencialidades

sociais reprimidas no seio da ordem vigente. Elas são também fatores de novos agenciamentos

sociais.

A partir desse impulso dado pela obra de Marcuse, Feenberg mostra como uma teoria

crítica pode formar um novo código tecnológico impregnado de responsabilidade estética,

humana, social e ecológica (2002). A interpretação de Feenberg busca mostrar as

potencialidades emancipadoras da tecnologia relacionadas a uma práxis desreificadora capaz

de transformar ontologicamente as instituições sociais. Frente a isso, a tecnologia não é vista

apenas como uma forma de controle racional da natureza e da sociedade, cujo critério único de

desenvolvimento é a eficácia. Assim se busca resgatar as grandes possibilidades de

transformação que a visão tradicional da tecnologia não tem percebido. Esta não é mostrada

como portadora de uma lógica funcional autônoma sem referência à sociedade, como querem

os que defendem o determinismo tecnológico. Ao contrário do que ocorre no âmbito da ciência

pura e da matemática, os impactos sociais são forte e imediatamente percebidos (FEENBERG,

1992, p. 304).

Contrapondo a racionalidade tradicional que marca a correlação entre a ciência, técnica

e sociedade, Feenberg propõe uma racionalidade subversiva, segundo a qual, uma compreensão

crítica da tecnologia, baseada numa visão da racionalização diversa do instrumentalismo, capaz

de levar em conta a responsabilidade da ação técnica frente aos contextos humanos e naturais

(1992, p. 320). Com isso, possibilidades de avanços tecnológicos opostas à hegemonia

dominante passam a ser investigadas levando em conta as perspectivas e a resistência dos que

são afetados pelo desenvolvimento tecnológico (1992, p. 320). Assim podem ser criadas

estratégias de democratização do controle da produção de tecnologias, redesenhando-as para

melhor servir ao ser humano. Trata-se de superar tanto a resignação dos deterministas

tecnológicos quanto a utopia dos que defendem de uma volta romântica à natureza.

As narrativas fundantes dos IFs como política pública mantêm certa afinidade com a

concepção crítica de ciência e tecnologia. O maior desafio da educação profissional e

tecnológica refere-se então a propiciar uma prática de pesquisa, articulada com o ensino e a

extensão, capaz de incluir os que foram historicamente alijados, não apenas dos benefícios dos

avanços da ciência, mas também do controle e de sua aplicação tecnológica.

INSTITUTOS FEDERAIS: CIÊNCIA TECNOLOGIA E SOCIEDADE

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Os Institutos Federais tomam por base a “consolidação e fortalecimento dos arranjos

produtivos sociais e culturais locais” (BRASIL, 2008). Trata-se de levar em conta o

mapeamento das potencialidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural,

desenvolvendo um “espírito crítico” capaz de orientar as formas de inserção das tecnologias

nas comunidades. Em sua concepção e diretrizes iniciais verifica-se uma preocupação com o

“desenvolvimento e a transferência de tecnologias sociais, notadamente as voltadas à

preservação do meio ambiente” (BRASIL, 2008). Isso corresponde a uma crítica social que

recusa a primazia das iniciativas que se orientam pelos valores da tecnologia convencional,

acenando positivamente para a tecnologia social, na forma como essa é entendida como

democratização ao acesso dos benefícios decorrentes do avanço da ciência (DAGNINO,

BRANDÃO & NOVAES, 2004). Trata-se também de uma proposta de democratização

mediada pela formação profissional.

Segundo a lei que fundou o IF, a inter-relação entre o desenvolvimento de soluções que

atendam à comunidade e o mundo do trabalho é posta na base dos processos educativos que

gerem trabalho e renda e a emancipação do cidadão, levando-se em conta o desenvolvimento

socioeconômico local e regional (BRASIL, 2008). A formação inicial e continuada de

trabalhadores, sua capacitação, aperfeiçoamento, especialização e atualização nas áreas da

educação profissional e tecnológica estão conjugados ao desenvolvimento de soluções técnicas

e tecnológicas que estendam seus benefícios à comunidade e estejam, conjuntamente com as

atividades de extensão, articuladas com o mundo do trabalho e os segmentos sociais para a

produção, desenvolvimento e difusão de conhecimentos tecnológicos. Orientam esta

perspectiva o “desenvolvimento territorial sustentável” e a “formação integral de cidadãos-

trabalhadores emancipados”, isso na perspectiva de um “projeto societário que corrobore uma

inclusão social emancipatória” (BRASIL, 2010, p. 14), mais do que numa perspectiva

assistencialista ou de controle social.

A “territorialidade” da formação relaciona-se com a expansão da rede profissional e

tecnológica em localidades remotas até então desprovias de oportunidades educacionais para a

formação técnica de trabalhadores. Trata-se, sobretudo, de fundar uma instituição que não se

direcionasse por interesses políticos clientelísticos, mas de necessidades de desenvolvimento

técnico e tecnológico em sua distribuição territorial. Caberia a ela estar em sintonia com

arranjos sociais e culturais locais (ou seja, o desenvolvimento local e regional), considerando

preferencialmente “periferias de metrópoles e em municípios interioranos distantes de centros

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urbanos, em que os cursos estivessem articulados com as potencialidades locais de geração de

trabalho” (BRASIL, 2010, p.14).

Enquanto políticas públicas, os Institutos Federais se propõem a uma ação integrada e

a uma institucionalidade de caráter social que coloca em destaque a educação profissional e

tecnológica e a ocupação do território entendido como lugar de vida (BRASIL, 2010, p. 15). A

rede federal de educação e a educação profissional e tecnológica são tomadas como estratégicas

não somente para o desenvolvimento nacional, mas também para a “inserção cidadã milhões de

brasileiros” (BRASIL, 2010, p. 18), apresentando um salto qualitativo na trajetória centenária

da rede de ensino profissional, técnico e tecnológico. Em outras palavras, assume-se a educação

e as instituições públicas como fundamentais para a construção da soberania e da democracia e

o combate às desigualdades estruturais. Os Institutos Federais são pensados então como bens

públicos articuladores da transformação social, respondendo à necessidade de

institucionalização da educação profissional e tecnológica, da busca pela igualdade na

diversidade (social, econômica, geográfica e cultural) e da articulação entre outras políticas (de

trabalho e renda, de desenvolvimento setorial, ambiental, social e educacional) (BRASIL, 2010,

p. 19). Nesse sentido, a colaboração na estruturação de políticas para a região em que atuam

permite a mediação do diálogo entre o poder público e as comunidades locais.

Assim foi proposta uma estratégia de ação política e de transformação social tendo como

horizontes “a educação como compromisso de transformação e de enriquecimento de

conhecimentos objetivos capazes de modificar a vida social e atribuir-lhe maior sentido e

alcance no conjunto da experiência humana” (BRASIL, 2010, p. 18). As concepções destas

políticas estão relacionadas com a intenção de superação de uma

visão althusseriana de instituição escolar como mero aparelho ideológico do Estado,

reprodutor dos valores da classe dominante, e refletir em seu interior os interesses

contraditórios de uma sociedade de classes. Os Institutos Federais reservam aos

protagonistas do processo educativo, além do incontestável papel de lidar com o

conhecimento científico-tecnológico, uma práxis que revela os lugares ocupados pelo

indivíduo no tecido social, que traz à tona as diferentes concepções ideológicas e

assegura aos sujeitos as condições de interpretar essa sociedade e exercer sua

cidadania na perspectiva de um país fundado na justiça, na equidade e na

solidariedade (BRASIL, 2010, p. 19).

Estas políticas atribuem aos sujeitos do processo educativo centralidade em uma práxis

orientada para assegurar as condições de interpretação da sociedade e do exercício da cidadania.

E isto é posto, em termos de proposta, através de uma articulação da base educacional

humanístico-técnico-científica.

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Trata-se de um ideário que propôs uma mudança de sentido nas políticas públicas de

formação profissional visando potencializá-la para romper com a tendência histórica das

instituições federais de educação, que, nos diversos momentos de sua existência e atuação,

atenderam as mais variadas orientações de governos, compatibilizando-se com a centralidade

do mercado e o desenvolvimento industrial, na maioria das vezes descomprometido com o

interesse dos trabalhadores e as questões ambientais, além de marcar-se por um caráter

funcionalista pragmático e circunstancial. Nesse sentido foi proposta uma educação vinculada

a inclusão social e orientada por políticas de construção de “um projeto viável de nação para

este século” (BRASIL, 2010 p. 21). Eis o anuncio de um projeto de educação profissional

tecnológica que buscava, incialmente, levar em conta as exigências de um trabalho educativo

como instrumento de política social para a criação de oportunidades, redistribuição de

benefícios sociais e diminuição de desigualdades de acesso ao ensino profissionalizante, ao

mesmo tempo em que propiciasse o desenvolvimento de tecnologias mais afinadas com as

necessidades sociais locais.

A opção pelo regional e pelo local refere-se também em superar a antinomia local versus

global. Os Institutos Federais, conforme a sua narrativa fundante, estariam comprometidos com

uma proposta de superação da subordinação cega ao poder econômico, assumindo o

compromisso com a formação humanística e estética de profissionais nos mais diversos níveis

do ensino, sem deixar de se comprometer com a “a intervenção na realidade, na perspectiva de

um país soberano e inclusivo” (BRASIL, 2010, p. 21). A noção de política pública dos

Institutos Federais tem por base a possibilidade de criar condições para formar pessoas capazes

de dominar tecnologias para a construção de um mundo diferente:

garantir a perenidade das ações que visem a incorporar, antes de tudo, setores sociais

que historicamente foram alijados dos processos de desenvolvimento e modernização

do Brasil, o que legitima e justifica a importância de sua natureza pública e afirma

uma educação profissional e tecnológica como instrumento realmente vigoroso na

construção e resgate da cidadania e da transformação social (BRASIL, 2010, p. 21).

As concepções de Ciência, Tecnologia e Sociedade, neste sentido fundador, não estão

aficionadas a visão triunfalista da ciência e da tecnologia que orientam políticas de gestão

comprometidas com o mero crescimento econômico sem levar em conta a desigualdade social.

O propósito delineado por sua concepção inicial foi o de romper com a subserviência aos

modelos industriais pautados na lógica do grande mercado e do capital, propondo um

compromisso com a reflexão e articulação ética entre o sentido da ciência e da técnica e sua

correlação com economias locais e regionais e arranjos produtivos solidários. Em tal discurso

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fundador, os modelos que associam a ciência e tecnologia numa perspectiva triunfalista linear,

que tomam o desenvolvimento da ciência como um condutor ao aprimoramento da tecnologia,

que por sua vez levaria ao aumento da riqueza e do bem-estar social, dariam lugar a propostas

que não consideram que qualquer ciência e tecnologia são capazes de produzir bem-estar social,

sobretudo aquelas dissociadas de projetos democráticos de produção e agenciamento de

conhecimentos.

Assim, em princípio, pretendeu-se romper com a imposição das lógicas e saberes para

atender as comunidades vistas como objeto da ação acadêmica, comprometendo-se

institucionalmente com conhecimentos que estejam articulados com os “arranjos produtivos”

das localidades nas quais os IFS se situam, a partir da valorização da dimensão social da ciência

e da tecnologia. Manifestou-se, dessa forma, uma abertura para os fatores não-técnicos ou não-

epistêmicos que desempenham significativo papel na produção e consolidação da tecnologia.

Os IFs foram apresentados, idealmente, em sua concepção e suas diretrizes, como instâncias

agenciadoras da ciências e tecnologia, capazes de democratizar o acesso, não apenas ao domínio

profissional/produtivo de seus resultados, mas também aos processos de sua construção.

ANCORAGEM LOCAL E IMPACTOS NOS ARRANJOS DE PRODUÇÃO DA VIDA

Os IFs têm, tal como posto em suas narrativas fundantes, potencialidades para

transformar formas de vida, indo além de uma educação comprometida com a mera formação

de técnicos subordinada à reprodução do capital. A instituição dos IFs, ao propor o diálogo com

a realidade local como um de seus pilares, comprometeu-se com a produção de soluções

tecnológicas visando garantir acesso e direitos a bens sociais, especialmente à educação. A sua

inserção local é, em princípio, entendida como propiciadora das alterações em esferas maiores,

considerando que o universal está no regional. A atuação no regional e no local é pensada como

a construção de uma cultura que “supere uma identidade global a partir de uma identidade

sedimentada no sentimento de pertencimento territorial” (BRASIL, 2010, p. 22). Mas esta

noção de território não é orientada a partir da competitividade nem da produtividade, em relação

as quais se beneficiam sobremaneira os atores sociais hegemônicos, mas no diálogo com as

comunidades do território onde os IFs se situam, “diálogo este que inclui as coisas naturais e

socioculturais, a herança social e a sociedade em seu movimento” (BRASIL, 2010, p. 22). A

educação profissional técnica e tecnológica assume um sentido para além da instrumentalização

de pessoas para trabalhos determinados, mas como potencializadoras da geração de

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conhecimentos a partir de uma prática interativa com a realidade, alavancando assim o

desenvolvimento com inclusão social e distribuição de renda (BRASIL, 2010, p. 23).

Os aspectos locais desafiadores estão nas negociações de sentido entre o local e o global,

da “construção de uma rede de solidariedade intercultural” (BRASIL, 2010, p. 23) tecida a

partir das relações sociais existentes. Propõe-se a formação de uma cultura da participação

democrática que associe o domínio, o desenvolvimento e a adequação de técnicas com o

respeito às tradições e costumes das populações. Trata-se de buscar formas de partilhar o

conhecimento a partir de sua capacidade de incrementar os “arranjos produtivos locais”. O

diálogo torna-se o emblema de uma educação que extrapole a academia e alcance os pontos

mais distantes da produção da vida em relação aos grandes centros privilegiados. A prática do

diálogo como base para buscar novas formas de organizar e articular saberes para a

compreensão e enfrentamento dos desafios locais e regionais. Isso sem perder de vista o

compromisso com “as demandas sociais, econômicas e culturais, permeando-se das questões

de diversidade cultural e de preservação ambiental, o que estará traduzindo um compromisso

pautado na ética da responsabilidade e do cuidado” (BRASIL, 2010, p. 26).

Os objetivos formativos têm por fim o trabalho educativo. Mais do que o trabalho

puramente acadêmico, acentua-se uma formação com domínio de técnicas laborais e

metodologias de aprendizagem articulados com a realidade concreta reunindo “conhecimento,

apropriação das tecnologias, desenvolvimento nacional, local e regional sustentável” para se

pensar os sujeitos da educação profissional como “sujeito de reflexão e pesquisa, abertos ao

trabalho coletivo e à ação crítica cooperativa, o que se traduz como um lidar reflexivo que

realmente trabalhe a tecnociência” (BRASIL, 2010, p. 30). Com isso se pretendeu superar

dicotomias como a de teoria e prática, ou ciência e tecnologia através da pesquisa como

princípio educativo, além de científico, e da intervenção humana no mundo social por meio da

ação sobre os “arranjos” tecnológicos e institucionais.

Aponta-se também para a superação de uma visão meramente econômica da tecnologia.

O universo do trabalho no Brasil é heterogêneo, onde prevalecem modelos de produção

assentados no sistema taylorista/fordista e na acumulação flexível, além da maior centralidade

das bases técnicas assumidas pela microeletrônica, que tem provocado novas demandas na

formação profissional e técnica dos trabalhadores. Daí resulta uma desconexão entre os

sistemas formativos e o mundo do trabalho e a necessidade de se qualificar trabalhadores. Se

por um lado esta demanda por mão-de-obra no cenário produtivo foi elemento balizador da

educação profissional técnica e tecnológica e “definidor da política de ampliação de vagas para

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esta modalidade de educação”, as concepções e diretrizes dos Institutos Federais, sem descartar

a articulação entre a educação profissional e o mundo da produção e do trabalho, colocam-se

“para além do fator econômico”, buscando relacionar educação e trabalho tendo em vista a

inclusão social e o “domínio intelectual da tecnologia a partir da cultura” (BRASIL, 2010, p.

33).

A formação proposta tem um sentido de formação do cidadão como agente político na

perspectiva de “possibilitar as transformações políticas, econômicas, culturais e sociais

imprescindíveis para a construção de outro mundo possível” (BRASIL, 2010, p. 33).

Reconhece-se que para isso é necessária uma formação enquanto integralidade a partir da

prática interativa com a realidade e na perspectiva da emancipação. Desta forma, parte-se de

uma crítica ao reducionismo da mera formação para os postos de trabalho e se propõe uma

atividade formativa voltada para “a construção de uma sociedade mais democrática, inclusiva

e equilibrada social e ambientalmente” (BRASIL, 2010, p. 34). Mais do que consumidores,

trata-se da formação de produtores de ciência e tecnologia. E, para isto, amalgamam-se nas

políticas dos Institutos Federais, enquanto concepções e diretrizes, trabalho, ciência, tecnologia

e cultura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas análises e críticas podem ser feitas ao modo como os Institutos Federais

garantem a educação profissional em relação ao padrão acadêmico dominante. Isso é um indício

de que se trata de uma nova proposta portadora de possibilidades e limites. Ao apresentarmos

o ideário de correlação entre ciência, tecnologia e sociedade configurado nas concepções e

diretrizes dos IFs, buscamos destacar uma tendência desde o início nele instalada. Até que ponto

essa tendência tem prosperado ou não cabe a pesquisas constarem. Contudo, cabe dizer que o

IF é uma instituição sujeita a disputas políticas e a construção de suas concepções e diretrizes,

o modo de interpreta-las, ou mesmo o fato de se levá-las em conta ou não estiveram e estão

sujeitos a forma como as forças sociais se compõem em seu interior. Contudo, cabe sempre

discutir até que ponto os institutos foram se afastando ou não do referido ideário, sobretudo a

respeito de até que ponto tem ocorrido de fato à construção de compromissos em torno de

políticas de formação de professores, de financiamento de projetos e editais internos de fomento

e apoio a pesquisa, extensão e a inovação como forma de produzir conhecimento e tecnologia

não hegemônicos.

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REFERÊNCIAS

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11892.htm> Acessado em: 15

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