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Interação, Conflito e Emoção – o exercício da autoridade em revistas de malas em aeroportos 1 Maria Claudia Coelho (UERJ) 2 João Trajano Sento-Sé (UERJ) 3 Anderson Castro (UERJ) 4 Bruno Zilli (UERJ) 5 Resumo Este trabalho apresenta resultados parciais do projeto de pesquisa ‘O Exercício da Autoridade no Sistema de Justiça Criminal’, cujo objetivo específico é examinar a articulação entre as dimensões cognitiva e emocional da experiência do exercício da/submissão à autoridade. Elege como foco de análise uma ‘cena’ de exercício da autoridade – as revistas de malas em aeroportos. Nesta cena, encontram-se tipicamente em interação, de um lado, agentes da receita federal e/ou policiais federais e, de outro, cidadãos das camadas médias e altas. A proposta é examinar de que forma categorias cognitivas – ‘autoridade’, ‘poder’ e ‘legalidade’, entre outras – se articulam às gramáticas emotivas geradas nestas situações – humilhação, raiva, impotência, entre outras. A metodologia empregada é a realização de entrevistas em profundidade com agentes da receita federal e policiais federais, combinada à observação participante em aeroportos do Rio de Janeiro. O trabalho pretende contribuir para: a – o campo da antropologia das emoções, ao construir um objeto de pesquisa voltado para o estudo do papel das emoções em situações públicas envolvendo o exercício da autoridade; e b - o campo dos estudos de policiamento, ao eleger cenas que tipicamente colocam em interação policiais e cidadãos de camadas médias e altas, escapando assim ao recorte predominante na literatura especializada que vem tradicionalmente privilegiando as interações entre policiais e cidadãos das camadas populares. Palavras chave: autoridade; emoções; etnopsicologia Introdução Este trabalho apresenta resultados parciais do projeto “O Exercício da Autoridade no Sistema de Justiça Criminal”. 6 Seu objetivo geral é examinar de que forma as dimensões cognitivas e emocionais se articulam no exercício da/submissão à autoridade, ou seja, de que maneira as concepções de “autoridade”, “poder”, “violência” 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Professora do Departamento de Ciências Sociais da UERJ. 3 Professor do Departamento de Ciências Sociais da UERJ. 4 Doutor em Ciências Sociais pela UERJ. 5 Pós-doutorando do Instituto de Medicina Social – IMS/UERJ. 6 Desenvolvido no período de 2011 a 2013 com apoio da FAPERJ.

Interação, Conflito e Emoção – o exercício da ... · 6 Desenvolvido no período de 2011 a 2013 com apoio da ... 8 O curso de Certificado de Habilitação em Segurança

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Interação, Conflito e Emoção

– o exercício da autoridade em revistas de malas em aeroportos1

Maria Claudia Coelho (UERJ)2

João Trajano Sento-Sé (UERJ)3

Anderson Castro (UERJ)4

Bruno Zilli (UERJ)5

Resumo

Este trabalho apresenta resultados parciais do projeto de pesquisa ‘O Exercício da Autoridade no Sistema de Justiça Criminal’, cujo objetivo específico é examinar a articulação entre as dimensões cognitiva e emocional da experiência do exercício da/submissão à autoridade. Elege como foco de análise uma ‘cena’ de exercício da autoridade – as revistas de malas em aeroportos. Nesta cena, encontram-se tipicamente em interação, de um lado, agentes da receita federal e/ou policiais federais e, de outro, cidadãos das camadas médias e altas. A proposta é examinar de que forma categorias cognitivas – ‘autoridade’, ‘poder’ e ‘legalidade’, entre outras – se articulam às gramáticas emotivas geradas nestas situações – humilhação, raiva, impotência, entre outras. A metodologia empregada é a realização de entrevistas em profundidade com agentes da receita federal e policiais federais, combinada à observação participante em aeroportos do Rio de Janeiro. O trabalho pretende contribuir para: a – o campo da antropologia das emoções, ao construir um objeto de pesquisa voltado para o estudo do papel das emoções em situações públicas envolvendo o exercício da autoridade; e b - o campo dos estudos de policiamento, ao eleger cenas que tipicamente colocam em interação policiais e cidadãos de camadas médias e altas, escapando assim ao recorte predominante na literatura especializada que vem tradicionalmente privilegiando as interações entre policiais e cidadãos das camadas populares. Palavras chave: autoridade; emoções; etnopsicologia

Introdução

Este trabalho apresenta resultados parciais do projeto “O Exercício da

Autoridade no Sistema de Justiça Criminal”.6 Seu objetivo geral é examinar de que

forma as dimensões cognitivas e emocionais se articulam no exercício da/submissão à

autoridade, ou seja, de que maneira as concepções de “autoridade”, “poder”, “violência”

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Professora do Departamento de Ciências Sociais da UERJ. 3 Professor do Departamento de Ciências Sociais da UERJ. 4 Doutor em Ciências Sociais pela UERJ. 5 Pós-doutorando do Instituto de Medicina Social – IMS/UERJ. 6 Desenvolvido no período de 2011 a 2013 com apoio da FAPERJ.

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e “legalidade” estão relacionadas à eclosão de dinâmicas emocionais envolvendo

sentimentos tais como a humilhação, a raiva, a impotência, o medo, a pena, etc.

O projeto elegeu duas “cenas” em que cidadãos interagem com funcionários

públicos investidos de formas de autoridade: as blitzes da Operação Lei Seca e as

revistas de malas em aeroportos. A metodologia empregada foi a entrevista em

profundidade, realizada com policiais integrantes das equipes da Lei Seca, fiscais da

receita federal lotados na atividade de fiscalização de bagagens em um aeroporto

internacional e cidadãos que já tivessem passado por essas experiências.

Nesse trabalho, abordamos o exercício da autoridade tal como descrito pelos

fiscais da receita. O texto está estruturado em três seções: a - uma exposição da

metodologia empregada, que descreve a forma de organização do trabalho de

fiscalização de bagagens como forma de explicitar a posição dos fiscais nessa atividade;

b – uma discussão sobre o exercício e a compreensão de sua autoridade por parte dos

fiscais, em particular o dispositivo a que chamamos de “semiológico”; e c – a descrição

da “etnopsicologia” desse grupo profissional, quer dizer, do lugar atribuído às emoções

no exercício da profissão, em particular em sua articulação com a imposição da

autoridade.

1. Metodologia

Para familiarizar o leitor com as questões que envolvem a coleta de dados em

aeroportos, um campo em trânsito, redigiram-se essas breves notas metodológicas. Elas

pretendem salientar tanto as especificidades de uma “pesquisa em movimento”, em que

tanto a direção como o sentido percorrido pelos sujeitos influenciam nas percepções

recolhidas no campo, como a menção de aspectos particulares do exercício da atividade

profissional pelos nossos entrevistados. A princípio, convém observar que, quando o

cenário da pesquisa é um terminal aeroviário, embarque e desembarque deixam de ser

apenas expressões que identificam locais de partida e chegada. Vão além disso: são

setores de trabalho nos quais diferentes atores exercem funções orientadas por saberes e

objetivos distintos, ainda que complementares.

No tocante à revista de bagagem, quem deixa o país é alvo de inspeções quanto

àquilo que pode ou não sair do território nacional. Nas entrevistas, constatamos que,

além dos itens proibidos em viagens internacionais, como líquidos inflamáveis e objetos

cortantes, há uma preocupação especial dos agentes públicos com a evasão de divisas e

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o tráfico de entorpecentes. Já os passageiros que circulam no sentido oposto, isto é,

aqueles que chegam ao país, dependendo da origem do voo, são alvos de inspeções

distintas. No caso dos estrangeiros, viagens originadas no continente africano e no leste

europeu são postas em suspeição preventiva por serem percebidas como rotas

tradicionais do tráfico internacional de drogas pelos policiais federais. No caso dos

brasileiros, se procedentes de voos oriundos dos Estados Unidos, com destaque para

Miami, despertam atenção prioritária dos auditores da Receita Federal, em razão da

possibilidade de terem adquirido mercadorias cujo valor ultrapasse a cota de isenção

fiscal - hipótese que, segundo esses agentes públicos, é recorrentemente confirmada nos

plantões de serviço.7

Uma das principais características que orienta a fiscalização de bagagens diz

respeito tanto à origem como ao destino do voo e seus passageiros. Por um lado, no

setor de desembarque, observa-se que a inspeção está mais interessada no valor de

mercado do bem transportado do que nos eventuais riscos que os itens contidos na

bagagem possam representar para a segurança do voo. De outro lado, são essas mesmas

ameaças que aparecem como preocupação primária no setor de embarque, focado na

segurança da aeronave, tripulantes e passageiros. Como nosso interesse analítico residia

no exercício de autoridade junto às camadas médias, no procedimento de revista de

bagagens, logo constatamos que os trabalhadores que exercem suas atividades no setor

de desembarque seriam importantes colaboradores. Restava apenas identificar a que

categoria esses trabalhadores pertenciam.

Um viajante comum é capaz de perceber que há uma evidente distinção entre os

trabalhadores que prestam atendimento no guichê da companhia área e os demais

profissionais com os quais interagirá, a partir dos portões de embarque. No primeiro

caso, no despacho de malas, o funcionário traja o uniforme da companhia área emissora

da passagem e está atento, basicamente, à tarifação das bagagens com sobrepeso. No

segundo caso, alguns trabalhadores vestem paletós e gravatas em tons escuros e se

alternam em tarefas tais como validação do bilhete, monitoramento do scanner para

7 De acordo com as normas vigentes, algumas publicações como livros e periódicos estão livres de tributação alfandegária, assim como os itens pertencentes ao viajante que estejam retornando ao país. Nos demais casos, a cota de isenção tributária é de US$ 500, observando-se quantitativamente o seguinte limite: “a) 12 litros de bebidas alcoólicas; b) dez maços de cigarros, contendo 20 unidades cada; c) 25 charutos ou cigarrilhas; d) 250 gramas de fumo; e) 20 unidades de bens não relacionados nos itens “a” a “d” (souvenirs e pequenos presentes), de valor unitário inferior a US$ 10 (dez dólares dos Estados Unidos), desde que não haja mais do que 10 unidades idênticas; f) 20 unidades de bens não relacionados nos itens “a” a “e”, desde que não haja mais do que três unidades idênticas.” Fonte: Receita Federal do Brasil <http://www.receita.fazenda.gov.br/aduana/viajantes/dicaviajantes.htm>

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visualização do interior das bagagens e da parte de baixo das roupas dos passageiros,

revista do tipo busca corporal, conferência de visto e demais documentos e, no setor de

desembarque, inspeção de bagagens para fins de valoração aduaneira. Constatamos que

essas atividades são desenvolvidas no Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim –

o Galeão – por quatro categorias de profissionais que se apresentam visualmente de

maneira similar, embora não pertençam à mesma carreira.

Inicialmente, a validação da passagem, o monitoramento de bagagens e o

escaneamento corporal são atributos do Agente de Proteção da Aviação Civil (APAC),

funcionário celetista que presta serviço à Infraero.8 Quando um viajante se recusa a

seguir alguma instrução do APAC, este aciona um segundo profissional: o agente

terceirizado da polícia federal. Este agente também é celetista, não concursado, e

contratado por empresas que prestam serviço à Polícia Federal. No Galeão, os

terceirizados da Polícia Federal estão distribuídos por equipes plantonistas que são

coordenadas por policiais federais. Compete aos terceirizados controlar o deslocamento

dos viajantes, conferir passaportes e conduzir entrevistas na imigração. As únicas

tarefas que diferem os prestadores de serviços dos policiais federais é que, nos

aeroportos do Rio de Janeiro, eles não podem consultar o Sistema Nacional de

Procurados e Impedidos da Polícia Federal (SINPI) nem têm permissão para comandar

as revistas do tipo busca corporal, prerrogativa dos agentes concursados. Isto é, caso o

viajante observe todas as instruções verbalizadas pelos APACs e pelos agentes

terceirizados da Polícia Federal, poderá deixar o país sem que tenha tido qualquer

contato com um servidor público concursado.9

No retorno ao Brasil, após passar pelo setor de imigração, onde os policiais

federais procederão às verificações quanto aos antecedentes criminais dos passageiros,

os viajantes seguirão por um corredor ao fim do qual encontrarão dois caminhos,

sinalizados da seguinte forma: “Bens a Declarar” e “Nada a declarar”. Os que seguirem

8 O curso de Certificado de Habilitação em Segurança da Aviação Civil (CHS) é o principal pré-requisito para o exercício da atividade. Os demais são: capacidade de ler uma placa de automóvel ou outra sinalização similar a uma distância de 23 m e rótulos de embalagens a uma distância entre 30 cm e 50 cm; percepção de cores suficiente para utilizar o equipamento de raios-X em cores e examinar crachás (credenciais) com código de cores; audição com ou sem o uso de aparelhos auditivos, capaz de ouvir comunicações por rádio ou telefone, sinais de áudio emitidos por equipamentos de segurança e uma conversa humana em um nível médio de voz, a uma distância de 2,5 m, em ambiente silencioso; olfato, capaz de distinguir diferentes odores; tato, capaz de perceber, em uma inspeção ou revista manual, armas de fogo, objetos perfuro-cortantes e objetos proibidos para embarque nas aeronaves, fixados como tais pela ANAC, dentre outras competências. Fonte ANAC: < http://www2.anac.gov.br/avsec/ExibeProfAVSEC.Aspx?N=2> 9 Para saber mais sobre o processo de terceirização das atividades aeroportuárias da Polícia Federal ver: http://www.istoe.com.br/reportagens/138194_POLICIA+FEDERAL+S+A

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pelo primeiro caminho serão tarifados e recolherão impostos pelos valores das

mercadorias que ultrapassarem a cota de isenção fiscal. Aqueles que optarem pelo

segundo trajeto estarão sujeitos à inspeção de suas bagagens pelos fiscais da Receita

Federal que, em caso de comprovação de compras em valores superiores ao teto de

isenção fiscal, além do recolhimento de tributo, ainda aplicarão uma multa ao viajante.

Foi com esses trabalhadores, auditores fiscais da Receita Federal, lotados no setor de

desembarque do Aeroporto Internacional do Galeão, que observamos os procedimentos

de trabalho e as interações com os viajantes, assim como produzimos as entrevistas que

fundamentam o presente texto.

2. Notas sobre os fiscais da receita

Em nosso pequeno mosaico de personagens que interagem em situações de

exercício da autoridade, os fiscais da receita federal que atuam nos aeroportos

apresentam um perfil bastante peculiar. Em sua rotina de trabalho, os fiscais têm contato

direto com o público. Nessas ocasiões, a interação costuma ser tensa e implica a

possibilidade do fiscal fazer uso de sua prerrogativa de revistar os pertences dos

passageiros que desembarcam dos voos internacionais. Embora não seja comum, tal

contato pode gerar situações de conflitos verbais e, mais raramente ainda, físicos.

Nessas ocasiões, os fiscais lidam com a difícil imposição de fazer valer seu lugar sem

que lhes seja franqueada a possibilidade do uso legal da força física. Quando esta parece

ser necessária, cabe ao fiscal o acionamento dos policiais federais, com quem os fiscais

da receita muitas vezes são confundidos. Os contatos com o público podem gerar,

também, conflitos internos de natureza emocional nos fiscais. Trata-se, portanto, de um

trabalho em cujo eixo gravitam representações, percepções e experiências de autoridade,

uso do poder e sua legitimidade, sem que a força apareça como signo explícito de

intervenção.

“A maior dificuldade é a postura que o passageiro tem. O passageiro normalmente tem uma postura de consumidor ou de cliente, ele esquece que aqui ele não é nem consumidor nem cliente. Aqui ele é cidadão, e cidadão além de ter direitos também tem deveres, como, por exemplo, é tolerar a fiscalização federal. (...) Por que isso está na lei, né. Aqui, no curso de procedimento fiscal que não é processo, né, é uma relação de direito contestativo público, é poder e

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sujeição. Por isso que ele tem que tolerar, ele tem que se sujeitar, né, à vontade do estado, né, materializada pelas ordens que são dadas no momento que ele está sendo ou entrevistado na imigração ou, no caso da receita federal, feita a vistoria de sua bagagem.” (Entrevista 4)

Os fiscais da receita são profissionais bem remunerados. Estão muito próximos

do topo da hierarquia do serviço público no que tange a status e vencimentos. Alçados a

tal posição através de concursos públicos nacionais muito concorridos, eles não deixam

dúvida, nos depoimentos a nós concedidos, do espírito de corpo e do valor que

conferem a suas posições. Trata-se, então, de servidores altamente qualificados e

investidos de funções importantes, segundo suas próprias percepções.

“Eu tô aqui, eu sou um servidor público. E pelo que eu ganho, eu não posso dormir. Entendeu? Eu ganho muito bem para fazer o meu trabalho. Eu trabalho vinte e quatro horas e folgo setenta e duas. Então eu acho que é um trabalho que todo mundo queria ter, entendeu? Então eu vou fazer o quê?” (Entrevista 3)

Mas o que concorre para uma autoimagem tão positiva? Afinal, a despeito dos

ganhos pecuniários e da reconhecida dificuldade de entrada nos seus quadros

institucionais, o trabalho dos fiscais da Receita Federal nos aeroportos brasileiros

limita-se a pouco mais do que supervisionar a chegada de passageiros e, mediante o uso

de alguns critérios, investigar o que trazem em suas bagagens. Constatado que o

conjunto de bens adquiridos e trazidos no exterior ultrapassa o teto equivalente a

quinhentos dólares, eles determinam, quando não há documentos comprobatórios

quanto ao valor dos mesmos, o valor estimado, calculam o valor do imposto a ser pago

pelo passageiro e expedem o documento de arrecadação. Caso o passageiro se recuse a

proceder ao pagamento, cuidam da apreensão do(s) objeto(s).

O trabalho dos fiscais da Receita nos aeroportos é, portanto, tenso, implica

interações, interpelações recíprocas e acionamento de autoridade com frequência. O

repertório de saberes aí mobilizado, por outro lado, é relativamente reduzido e bastante

focado. Ainda assim, os fiscais são, repetimos, bastante ciosos da autoridade de que são

portadores e imbuídos do status de que julgam gozar.

Três elementos parecem sustentar a convicção com que os fiscais da receita

exercem sua autoridade no trabalho diário que executam. O primeiro deles decorre de

uma articulação entre o servidor público (ou o servidor público do tipo por eles

representado) e a legitimidade do funcionamento do Estado pautado no Direito. O

7

segundo, desdobramento do primeiro, diz respeito a sua vocação de fazer cumprir a lei

de forma a proteger os cofres públicos das tentativas de burla. Terceiro e último, o(s)

tipo(s) de conhecimento(s) de que dispõem para o devido exercício de suas

prerrogativas é extraído, segundo eles, de uma sabedoria prática que resulta na

capacidade de manter-se sob controle diante das situações que enfrentam.

Em reconstrução histórica sobre os mecanismos de consolidação da democracia

moderna desde o século XIX, Rosanvallon destaca os dois pilares sobre os quais esse

regime erigiu sua legitimidade: a crença nas virtudes dos mecanismos de representação

e a confiança na burocracia estatal, identificada como um corpo formado por servidores

qualificados e devotados às questões do Estado e empenhados em servir a ele e àqueles

sob sua jurisdição.

Segundo tal reconstrução histórica, a centralidade da figura do servidor público

qualificado técnica e moralmente é equivalente à do parlamentar engajado na dinâmica

representativa. Seguindo a mesma linha, a depreciação de sua credibilidade é tão

relevante para a crise que a democracia representativa vai conhecer a partir dos anos

1980 quanto o crescimento do descrédito em relação aos mecanismos de representação.

A crise é alimentada pela difusão e consagração da imagem do serviço público como

uma máquina pesada, dispendiosa e ineficiente. Nessa nova configuração, corrói-se a

confiança nas expertises dos servidores e desacredita-se de seu comprometimento com a

causa pública.

Embora o relato de Rosanvallon tenha uma clara inspiração no caso francês, é

inegável sua convicção de que, salvo singularidades nacionais, a chamada crise da

democracia representativa segue roteiro semelhante em todos os cantos em que teve

vigência ao longo do século XX. Sua abordagem contribui para a exploração dos dois

primeiros aspectos anteriormente destacados acerca das bases da autoridade dos fiscais,

tal como por eles mesmos representadas.

Aparentemente, a crise do serviço público e de sua imagem frente à população

mais ampla não chega a atingir a autoimagem de nossos entrevistados. O papel dos

fiscais é fazer valer a lei e garantir a universalidade e impessoalidade de sua aplicação.

Identificam-se, portanto, com o compromisso de fazer vigorar o império da lei.

Apegados a tal lógica, evitam a discricionariedade ou quaisquer espécies de

particularismos que viessem a conspurcar sua missão. No cumprimento dessa última, o

senso de dever, o imperativo de fazer valer a lei em defesa dos cofres públicos é o

segundo traço a destacar quando tratam de suas atribuições.

8

Taxar significa proteger os cofres públicos dos vícios privados de comerciantes e

fazedores informais de negócio que auferem parte de seus ganhos através da sonegação.

Nesse sentido, o consumidor que ambiciona contornar o fisco com pequenas burlas

trazendo objetos para uso pessoal nem seria o verdadeiro alvo do trabalho dos fiscais,

ainda que também ele esteja sujeito à ação fiscalizadora. O objeto privilegiado da ação é

aquele que age com fins lucrativos, que extrai parte de seus ganhos pela sonegação.

“Você vai, viaja pra Miami, leva uma mala, quando você volta, você vem com duas, três malas. As malas assim oh! enormes. Aí você chega assim. Bom se você traz duas, três camisas dessas, duas três da outra, tá tudo bem, a gente até tolera. Agora, o cara traz dez camisas deste tipo, outra mais dez, outra mais dez, isso aí já é comércio. Eu, pra gente, a gente não. Eu estou aqui, não sou boneco de posto de gasolina, pra ficar assim, tá entendendo? Eu bato pesado. Eu bato pesado. (...) Todo mundo bate pesado aqui.” (Entrevista 3)

Nesse sentido, os fiscais da Receita operam como guardiões do sistema de

arrecadação contra a pilhagem dos cofres públicos pelo oportunismo privatista de

determinados atores. Desempenham essa função munidos do código legal e do

conhecimento que detêm dele. É, em suas representações, o somatório da natureza da

missão que cumprem (a proteção do erário público) ao conhecimento de que dispõem

para sua atividade (o conhecimento aferido em concursos públicos, quando

pouquíssimas vagas são disputadas por muitos candidatos) que resulta em uma

autoimagem bastante positiva. Essa autoimagem parece ser a chave da afirmação de sua

autoridade.

Diferenciam-se, nesse último aspecto, os fiscais da Receita de outros aplicadores

da lei, sobretudo os policiais. Mais do que respaldada pela letra da lei e pelo aparato

jurídico do Estado, sua atuação goza de prestígio mesmo entre aqueles que são objeto de

sua intervenção e “vítimas” de seu rigor no cumprimento de suas funções. Sua

autoridade é traduzida em sua posição na hierarquia do serviço público. Ela se alimenta

e se atualiza, por sua vez, pelo desenvolvimento de uma espécie de sabedoria informal,

desenvolvida com a prática da profissão. Tal sabedoria prática se desenvolve em dois

sentidos. Chamaremos o primeiro de “semiológico” e o segundo de “controle de si”.

Pelo primeiro, os fiscais da Receita, assim como o fazem outros agentes do

sistema público de controle social, alegam desenvolver uma capacidade específica de

leitura daqueles que devem ser o foco de sua ação. Nesse aspecto, são pouco diferentes

de outros atores, como policiais, por exemplo. Tipos sociais, atitudes corporais, modos

9

de comportamentos são alguns dos signos decodificados por tais leitores que indicam

dentre numerosos grupos de pessoas aqueles que devem ser objeto de sua ação. O

desdobramento dessa hermenêutica não incide propriamente sobre os personagens

objeto de escrutínio, mas sobre suas bagagens. Afinal, os fiscais não inspecionam as

pessoas propriamente (segundo seus próprios relatos), mas aquilo que elas carregam

consigo, o que implica uma dupla interpretação: de pessoas e de bagagens.

“Mais usuais é a quantidade de malas, é… uma abordagem, uma abordagem que a gente faz junto ao passageiro o passageiro fica nervoso, fica arredio; a gente percebe que ele está querendo esconder alguma coisa, a gente configura que a pessoa através de um passaporte costuma fazer muitas vezes esse tipo de viagem, muito frequente esse tipo de rota, Estados Unidos, Europa; pode configurar um tipo de comércio pode estar usando esse tipo de procedimento pra fazer comércio, o que é irregular… e aí nesse momento o fiscal fica ali no (...) ou ele libera a pessoa e a pessoa vai embora pra casa ou ele coloca pra dentro da área alfandegada dentro dessa área alfandegada primeiramente (...) fiscalização de raio x pra verificar se tem algum.. sei lá….se tem algum eletrônico… e a gente faz uma verificação prévia do que mais ou menos …na visão mais ou menos …faz um desenho mais ou menos do tipo de passageiro e nesse momento, no raio x, se configurar que realmente na mala dele realmente não possui bens que possam vir no somatório ultrapassar a cota legal; ou ele vai pra bancada pra abrir a mala e fazer uma verificação física do que realmente possui dentro daquela mala caso o operador de raio x tenha algum tipo de dúvida. E mandando pra bancada pra abertura é cem por cento de chance de que realmente ultrapassou porque a pessoa configura que viu eletrônicos, ou viu medicamentos, ou viu quantidade de roupas que somadas você ultrapasse a cota.” (Entrevista 1)

Na passagem acima destacada, podemos perceber a oscilação do discurso das

bagagens para os passageiros retornando o foco, depois, para as bagagens novamente.

Trata-se, na verdade, de uma dupla inquirição em que os dois objetos de interpretação

são intercambiáveis e os sinais oferecidos por um cooperam para a decifração dos

sentidos capturáveis no outro.

A segunda sabedoria de que tratam os fiscais da Receita para o exercício de sua

autoridade, nos termos postos nas páginas anteriores, implica uma delicada equação

entre o conhecimento e a aplicação da lei de modo impessoal e universal, por um lado e,

por outro lado, as frequentes arapucas representadas pela emergência de determinadas

emoções diante de situações específicas. Chamemos essa capacidade de equacionar o

impessoal com o emocional de “controle de si”, um tipo de aptidão adquirida pelos

fiscais durante os anos de trabalho e pelo acúmulo de experiências dessa natureza.

10

Relatadas em casos específicos, quando as emoções parecem querer desafiar a ética da

convicção profissional de que são portadores, tais experiências põem à prova e exigem a

confirmação do conhecimento e do controle de si necessários, para esse servidor, para o

exercício dessas atividades. Também essa capacidade parece confirmar o mérito que os

faz se identificarem como elite do poder público. É sobre tal capacidade de gestão das

emoções no decurso de seu exercício profissional, bem como sobre sua importância na

imposição dessa autoridade que entendem como essencial à atividade de fiscalização de

bagagens, que discorreremos a seguir.

3. “Com o Coração na Mochila”: uma etnopsicologia profissional

Em seu livro Unnatural Emotions, a antropóloga norte-americana Catherine

Lutz discute a existência de “sistemas de conhecimento etnopsicológicos”, baseados na

crença de que “as pessoas em todas as sociedades desenvolveram entendimentos

compartilhados relativos a aspectos da vida social e pessoal, aspectos que, para

propósitos heurísticos, podem ser nomeados ‘psicológicos’” (1988: p. 83, tradução

nossa). Entre os aspectos da vida que podem ser objeto desse “conhecimento

etnopsicológico” está a vida emocional, incluindo-se aí tanto a experiência emocional

per se quanto emoções específicas, bem como aspectos correlatos, como o corpo ou as

concepções de pessoa.

Lutz aplica essa ideia ao conhecimento da vida emocional dos Ifaluk, discutindo

suas concepções de emoções específicas, tais como fago ou a concepção de uma “raiva

justificável”. A autora demonstra ainda a fecundidade do conceito de “etnopsicologia”

ao explorar as categorias que organizam o pensamento “euroamericano” sobre a vida

emocional, sugerindo a existência de dois eixos principais: as oposições

emoção/pensamento e emoção/distanciamento. Essas oposições têm uma natureza

valorativa, na medida em que, quando em oposição ao pensamento, a emoção é

negativa, mas ocupa o polo positivo quando em oposição ao distanciamento. Essas

cargas valorativas, por sua vez, estariam associadas aos temas do gênero e do (des)

controle, vinculando o feminino ao descontrole emocional.

A antropologia das emoções vem conhecendo, há cerca de vinte anos, uma

expansão do rol de seus objetos possíveis, com a formulação de problemas de pesquisa

11

que abordam experiências da chamada “vida pública”, incluindo-se aí, de um lado,

aquelas que podem ser associadas ao mundo da política, tais como os movimentos

sociais, o militarismo, a violência urbana e as transformações em regimes políticos

(Coelho, 2010); e, de outro, as experiências do mundo do trabalho, recortadas por

critérios organizacionais ou profissionais. Exemplos recentes são os trabalhos de Lopes

(2011) sobre as emoções no mercado de ações; de L’Hoste (2013) sobre as trajetórias

emocionais de cientistas e sua relação com dinâmicas institucionais; de Kanaan (2012)

sobre a valorização da inveja como motor da competitividade em relações de trabalho; e

de Condé (2013) sobre a existência de uma “etnopsicologia” nas prescrições relativas

ao gerenciamento da vida emocional, com vistas ao sucesso profissional, oferecidas pela

mídia voltada para o mundo dos executivos.

A noção de “etnopsicologia” pode, assim, ser utilizada como forma de

construção, como objeto de estudo, da compreensão acerca da vida emocional de grupos

cujas fronteiras não se traçam por critérios geopolíticos, mas sim institucionais,

organizacionais ou profissionais. É um estudo dessa natureza que propomos aqui –

examinar a etnopsicologia que orienta o desempenho dessa atividade de fiscalização de

bagagens, em particular o lugar das emoções no exercício da autoridade profissional.

2.1 – O Lugar das Emoções na Fiscalização das Bagagens: um ideal “asséptico”

O discurso dos fiscais entrevistados aponta, em primeiro lugar, para o que

poderíamos chamar de um ideal de “assepsia emocional”. Na concepção que têm do que

seria um bom desempenho profissional, as emoções devem ser erradicadas, uma vez que

seriam um fator prejudicial. Alguns exemplos:

“ENTREVISTADO - Quando eu tô na bancada ou tô no canal eu deixo meu coração guardado na minha mochila. Eu não me emociono com isso. Eu sou frio e calculista, porque se não você começa a misturar as coisas. Aqui não é número, vamos supor, quando eu trabalhava na fiscalização era número. Os números não mentem, é isso, é isso, acabou. Aqui não é número. Aqui é sensibilidade. Se você botar o teu coração, o seu sentimento no meio, você começa a enfraquecer as coisas.” (Entrevista 3)10 “ENTREVISTADO: Eu me blindei, procurei ficar mais imune a esse tipo de olhar, não me deixo esse tipo de energia que a pessoa coloca em cima de você, fazer ouvidos moucos, quando a pessoa tá fazendo algum tipo de

10

Todas as passagens sublinhadas nas citações de trechos das entrevistas são grifos nossos.

12

brincadeira, algum tipo de xingamento querendo te desestabilizar, me blindei com relação a isso, mas é uma blindagem, uma blindagem normal, porque se você ficar querendo discutir com todo mundo que está te provocando, você vai ficar brigando o dia inteiro, entendeu, você vai ficar mandando todo mundo pra polícia federal, nem a polícia federal vai te aguentar. Você tem que fazer ouvidos moucos e ouvir só o que te interessa.” (Entrevista 1) A “frieza” emocional do fiscal aparece, assim, como algo essencial para o

exercício competente de sua função. Além disso, serve também para conter eventuais

descontroles emocionais por parte dos cidadãos cuja bagagem é revistada, como no

depoimento abaixo:

“ENTREVISTADO: Então nesses casos o procedimento é não, é... não aderir a esse tipo de diálogo, não é. Dizer que não se deve discutir com uma pessoa tomada pela emoção e aguardar que aquela emoção, é... pré ordenada ou espontânea passe pra se voltar a questão objetiva da avaliação dos bens que ela tá trazendo.” (Entrevista 4) Essa assepsia emocional parece, contudo, não dizer respeito apenas a um ideal

abstrato de “não sentir”. Seu alvo parece ser um sentimento específico: a pena.

“ENTREVISTADA: Isso me toca, mas não me impede de exercer o meu trabalho como ele deve ser exercido, com toda autoridade e com toda a legislação acerca do caso, porque eu acima de tudo eu penso na minha responsabilidade. Embora, eu tenha pena de algumas pessoas por conta de terem feito alguma coisa ilegal, eu tenho a minha obrigação de cumprir a legislação, quer eu esteja satisfeita ou não, porque tem momentos que você fica ali, né? …naquela insatisfação, né? Puxa vida Essa pessoa coitada, mas… É a minha função, é a nossa função. A gente realmente quando assume esse cargo, a gente já sabe de tudo que pode acontecer, mas a gente tem que agir como se aquilo ali, naquele momento, não tivesse nada interferindo no nosso sentimento. Embora, a gente por dentro esteja ali com o aperto no coraçãozinho doído, mas a gente aplica a lei de qualquer jeito.” (Entrevista 2)

“ENTREVISTADO: Não. É como eu te falei no caso daquela senhora, meio que você faz uma blindagem, né, porque se você for ouvir todo mundo, ninguém gosta de pagar imposto, então só houve história triste, diz que tem gente doente, minha mãe tá morrendo, é só história triste, e eu costumo na mesma hora brincar, imagina quem tá passando férias em Madureira e não viajou pra Miami, imagina ele tá passando férias no alemão, agora com polícia dando tiro, imagina.” (Entrevista 1)

Temos, assim, um primeiro traço dessa etnopsicologia que encara as emoções

como indesejáveis, “intrusas” que atrapalhariam o exercício profissional ideal, em

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particular se surgem sob a forma da “pena”. O depoimento abaixo pode assim ser

entendido como um momento de síntese dessa natureza inadequada do sentir:

“ENTREVISTADO: Não. Não. Não. É por isso que o preparo pra trabalhar tanto em fiscalização externa quanto aqui, atendendo passageiro não é um trabalho comum né, é um trabalho de ponta né, então é preciso que as pessoas sejam experientes, sejam ponderadas, sejam serenas pra esse tipo de questão de emulação emocional não aconteça. Isso aí é um desvio do exercício funcional. Acontece eventualmente né, mas isso é um incidente que não é a finalidade do trabalho.” (Entrevista 4)

Mas como erradicar as emoções? Como garantir que não se imiscuam no

cotidiano do trabalho de fiscalização? Um segundo traço recorrente nos depoimentos

dos fiscais parece estar a serviço deste “expurgo emocional”: a representação de seu

trabalho como algo que diz respeito a objetos, e não a pessoas. Alguns exemplos:

“ENTREVISTADO: Não. Não. Aí nesse ponto eu sou frio. Vai pagar? Dá tanto. Vai pagar? Não vai. Então vamos fazer um termo de retenção, bota lá no depósito. Assina aqui e pronto e acabou. Isso aí não tenho chorumela não. Comigo, bagagem é bagagem. Eu não me emociono não.” (Entrevista 3)

“ENTREVISTADO: Não. Veja, isso é um assunto incidental, eventual e lateral ao nosso trabalho. Porque nós temos que nos concentrar no nosso procedimento, e o nosso procedimento é objetivo em relação aos bens e não a pessoa, então eu não tenho que é... fazer algum outro juízo de valoração quanto à pessoa.” (Entrevista 4)

“ENTREVISTADO: Como eu lhe disse, nós selecionamos bagagem, nós olhamos para a bagagem né, mas uma vez selecionada a bagagem, a pessoa que é dona da bagagem ela tem uma reação inicial bastante variada (...)” (Entrevista 4)

A pessoa, nesse discurso profissional, tem um papel inteiramente secundário – ela

é apenas “a dona da bagagem”. Esse protagonismo absoluto dos objetos aparece com

clareza na fantasia abaixo expressa por um entrevistado:

“ENTREVISTADO: Se você consegue se concentrar nesse exercício funcional, só nisso, então a pessoa pode falar o que quiser, isso não vai modificar porque é um dado objetivo, que os bens estão ali no recinto alfandegado e precisam ser valorados é uma questão objetiva que independe do passageiro. Poderia a pessoa colocar os bens, tirar das malas, passar por um protetor, um túnel, nesse túnel alguém fazer a valoração e depois que sair do túnel o passageiro pegar de volta, é uma questão objetiva.” (Entrevista 4)

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Os objetos presentes no trabalho da fiscalização, assim, parecem ser representados

como desprovidos de qualquer “vínculo social”. Não pertencem a ninguém, não têm

utilidade, não atribuem identidade, não serão dados a ninguém, sua aquisição não tem

história: seu único valor é aquele que lhes é atribuído pelo fiscal para efeitos de cálculo

de tributo. No momento da fiscalização, é como se todas as formas possíveis de

construção de valor fossem obliteradas, cedendo lugar a uma única – o cálculo do

imposto, no qual não há qualquer lugar para a pessoa.

Os cidadãos, contudo, resistem, de acordo com o relato dos fiscais, a aceitar essa

destituição. Há um argumento que acionam com alguma frequência como forma de

escapar à tributação: o fato de terem sido comprados para serem dados de presente, e

não para consumo próprio ou para serem vendidos.

“ENTREVISTADO: Esses dias aconteceu um lance hilário. Veio uma deficiente visual numa cadeira de rodas, trazendo duas bicicletas, duas bicicletas. O que que eu vou fazer com uma coisa dessas? Tem que pagar o tributo. Por que que uma deficiente visual vai trazer duas bicicletas? Não tem que pagar imposto? Ela tá trazendo pra alguém. ENTREVISTADOR: E o que que ela disse? ENTREVISTADO: - Não isso aqui é pro meu neto e tal. – Não senhora, vamos aqui, vamos aqui. E como ela não declarou pagou o imposto mais a multa.” (Entrevista 3) “ENTREVISTADO: É pro meu neto. Agora principalmente, tá chegando o natal, nós vamos ter muito trabalho. Ah é pro meu neto. Não interessa.” (Entrevista 3) “ENTREVISTADO: É, que não é pra fins de comércio, que é pra fins de uso pessoal dele, não tô comprando isso aqui, comprei esse vídeo game, mas é pra minha filha não vou vender, enfim.” (Entrevista 1) “ENTREVISTADO: Muitas vezes na própria reclamação que ela oferece já tá até a resposta porque ela fala que trouxe 3 ipads, mas era pros 3 filhos dela e que teve pagar imposto sobre isso, isso é um absurdo, entendeu, enfim, que isso é um absurdo.” (Entrevista 1)

Esses argumentos acionam uma lógica comum: retiram o objeto do universo do

mercado (não foi comprado para ser vendido nem para ser consumido) e o inserem no

universo da dádiva (foi comprado para ser dado). Mas por que esse argumento, risível

aos olhos dos fiscais, parece plausível aos cidadãos? Por que o julgam minimamente

dotado de eficácia (sem o que, obviamente, a ele não recorreriam)?

Em alguns depoimentos, os fiscais acionam uma estratégia retórica dizendo que as

pessoas “donas das bagagens” são cidadãos, e não clientes ou consumidores. Retiram-

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nas, assim, do universo do mercado, da prestação de serviços ou do consumo de bens,

inserindo-as no mundo da tributação. Por sua vez, ao descrever os objetos como dádiva

futura, os cidadãos/consumidores parecem realizar um esforço para dotá-los de hau

(Mauss, 1974), daquela parcela de pessoalização que, em sua concepção, os tornaria

refratários ao universo do mercado, porque agora tornados dádiva.

É como se houvesse aqui dois embates simultâneos: de um lado, entre o

consumidor e o doador, em que o passageiro esforça-se para escapar à tributação

destituindo o objeto de seu valor de troca, atributo da mercadoria, e atribuindo-lhe um

valor de vínculo, prerrogativa da dádiva (Godbout, 1999); de outro, entre o consumidor

e o cidadão, em que o fiscal lhe nega os “direitos” que supõe ter como consumidor e os

substitui por seus “deveres” como cidadão.

Três formas da troca fazem aqui uma triangulação conflituosa: a forma-tributo, a

forma-mercado e a forma-dádiva. Os fiscais rejeitam, simultaneamente, a forma-

mercado, ao repudiar a atitude que caracterizam como de “consumidores” ou “clientes”

que alguns passageiros assumiriam; e a forma-dádiva, ao ridicularizar o argumento por

esses acionados de que o objeto teria sido comprado para ser dado de presente.

Para eles, a forma da troca que deve reger essa cena é a forma-tributo. E, nela,

almas e coisas não se misturam.

2.2 - Gramáticas Emocionais do Exercício da Autoridade

A sociologia norte-americana vem, desde os anos 1970, propondo modelos

teóricos para a análise das emoções, entre os quais está o “modelo estrutural” de

Theodore Kemper (2001). Nesse modelo, o autor procura correlacionar as variáveis

macro-estruturais do poder, da autoridade e do status com a emergência de sentimentos

específicos, entre eles o orgulho, a humilhação e a culpa.

Central para esse modelo é a relação entre o “real” e o “imaginado”. Para

Kemper, o ator social entra em interação com um conjunto de expectativas relativas às

reações dos outros ao seu desempenho, baseadas em resultados imaginados ou

rememorados. A relação entre essas expectativas e a reação efetiva dos outros, com suas

eventuais discrepâncias, gera uma gama de reações emocionais, que podem ser

tipificadas em um modelo. Kemper sintetiza assim sua perspectiva:

“As relações de poder e status também geram emoções. Reformulando a afirmação feita no início desta seção, podemos dizer que uma ampla gama de emoções resultam de resultados reais, antecipados, rememorados ou imaginados de relações de poder e status. Isto é, atores individuais ou

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coletivos engajam-se em relações sociais, isto é, de poder e status, com outros atores, e um resultado destas interações é a emoção – em ambos os atores envolvidos.” (Kemper, 2001: 62, tradução nossa)

Nesse desenho, a autoridade ocupa lugar particular, podendo engendrar

dinâmicas emocionais específicas devido à sua natureza ambígua:

“Em relação às emoções geradas pelo poder, a autoridade é uma zona cinzenta, já que aqueles que a detêm e aqueles que a ela estão submetidos muitas vezes discordam quanto à fronteira entre ordens legítimas e ilegítimas, e quanto ao que é que constitui coerção” (2001: 61, tradução nossa).

O modelo teórico de Kemper nos oferece um eixo fecundo para a análise dos

sentimentos descritos pelos fiscais entrevistados. Ao falar sobre suas estratégias para

impor sua autoridade sobre os cidadãos, os entrevistados relatam dois sentimentos – a

pena e a satisfação – que nos permitem dialogar com o quadro proposto por Kemper

para o exame das gramáticas emocionais engendradas pela imposição da autoridade.

É possível perceber na fala dos entrevistados uma elaboração emocional acerca

da autoridade que visa organizar os sentimentos experimentados nestas situações numa

gramática que lhes dá sentido e ordem. Uma das emoções que surgem nesta gramática é

a pena, que funciona como articulador hierárquico. Como característica da relação

emocional que os entrevistados têm com os cidadãos, a pena coloca-os numa posição de

superioridade hierárquica. Esta é não apenas institucional, caso em que é concreta na

relação de poder com o cidadão; é também simbólica, no nível emocional. Ao ser capaz

de relacionar-se através da pena com a pessoa cuja bagagem é revistada, o agente

coloca-se numa posição moral superior.

Este tipo de relação moral e socialmente hierarquizante mediada pela pena foi

explorada por Clark (1997), ao examinar a gramática da compaixão. A autora indica que

o papel daquele que é digno de pena envolve uma hierarquia moral que coloca o que

sente pena de outro numa posição privilegiada de uma economia de troca emocional que

muitas vezes se manifesta mesmo numa troca material: aquele que sente pena ou

compaixão é o que dá a esmola ao invés de receber, aquele que oferece ajuda ao invés

de necessitar dela. Ou no caso das revistas de malas, a pena opera no plano emocional o

posicionamento hierárquico já garantido pelo poder institucional, que é o de controlar o

trânsito ilícito de bens.

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“ENTREVISTADO 02 (MULHER): Olha, marcado assim não. Porque eu sou uma pessoa muito tranquila, entendeu? Então, eu tenho muito cuidado nas coisas que eu falo, nas coisas que eu faço, eu procuro… Porque fundamentalmente, você lida antes de qualquer coisa com o ser humano. Então, eu tenho muito cuidado, mesmo na hora de tratar com as pessoas que estão praticando alguma coisa ilícita, que no caso são os contrabandistas, aí, olho bagagem, um monte de coisas… Já houve casos até de contrabando e que foi preso… Eu procuro respeitar muito enquanto ser humano, porque muitas vezes você vê que essas pessoas elas são muito pobres de espírito, são pessoas com a mente muito pequena, porque se submeter a praticar uma coisa ilícita pra levar uma vantagem financeira. Dá pena, mas… ENTREVISTADOR: Mas, você tá falando daquele que faz comércio ou daquela família que extrapola sem querer a cota? ENTREVISTADO 02 (MULHER): De quem faz comércio. Comércio, contrabando… Esse sim… Então, você vai, exerce a sua autoridade, pratica todos as atividades que tem que exigir, mas no fundo você fica com pena, entendeu? Me toca profundamente. Porque você percebe que são pessoas de classe menos favorecidas, pessoas ignorantes inclusive porque desconhecem a lei. Ele não tem noção, entendeu? ...Que vai responder a um processo criminal. São ignorantes. Mas, por quê? Por necessidade. Tava desempregada, ou se tava empregado tava ganhando pouco, acha que aquilo ali vai ser fácil e não é. Ele se depara com a autoridade que tá ali trabalhando e não vai é… digamos, pra facilitar nenhuma situação, entendeu? Então, às vezes, quando me confronto… Me dá pena, me dá pena. Mas, tem que cumprir nosso trabalho, né?” (Entrevista 2)

A pena também opera como um agente de abrandamento do poder, como se

pudesse desculpar a coibição desta situação de crime, mas que é um tipo de crime que

não envolve violência, e talvez por isto visto como mais humano. E é também um tipo

de crime que nem sempre envolve intento, pois se reconhece que pode haver mal

entendidos quanto às regras que estão sendo burladas.

“ENTREVISTADO: Uma senhora que era faxineira, que tava trazendo muita coisa, mas de encomenda. Ela trabalhou lá de faxineira por 6 anos e foi descoberta pela imigração, foi em cana, deportada, aí nesse momento ela falou com a família que estava voltando e pediram pra trazer as encomendas, traz que aqui a gente paga você, paga no cartão que a gente paga você, nem pagar ela pagou, comprou no cartão ia pagar aqui, e ficou retido, e era uma senhora, e é bastante, é bastante triste, mas a gente tem que fazer nossa função né? Mas é ser humano né? Toca bastante, ainda mais uma senhora, muito chato. E você vê que a pessoa não estava com nenhuma intenção de burlar, não estava. Não sabia. A origem da pessoa bem humilde, bem humilde.” (Entrevista 1)

A pena também pode ser causada pela percepção de que este é um tipo de crime

menor, em que o delito seria de natureza mesquinha, em especial se praticado por

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pessoas de boa situação social ou econômica que não precisariam se “rebaixar”

praticando-o:

“ENTREVISTADO: Foi isso, político, um político que me ameaçou dizendo que tinha um conhecimento em Brasília e ia levar meu nome, pediu minha matrícula eu dei e tentando me prejudicar por eu estar fazendo o meu trabalho. Eu tava fazendo o meu trabalho porque ele tava pagando imposto, e não aconteceu nada. Não dá em nada, mas é chato né. Isso ao contrário da senhora de Minas Gerais, por exemplo, não funciona, entendeu. Isso aí passa, na verdade eu sinto até pena de um cidadão desse. Um cidadão que também é um agente público, ou com cargo político ou efetivo como é o juiz e... sinto pena, sinceramente sinto pena. Esse tipo de mesquinharia de não pagar imposto, esse tipo de ameaça.” (Entrevista 1)

Mesmo quando está ausente, a pena ainda é uma emoção referencial,

hierarquizando aqueles que são dignos dela e aqueles que sequer a merecem, que de fato

estão num patamar moral ainda mais baixo.

“ENTREVISTADO: Recolheu, ou então ia fazer a retenção fiscal. Desse pessoal eu não tenho pena. É o rigor da lei. Até porque muitas vezes conhecem a legislação, diferente daquela senhora de Minas Gerais. Então pode me ameaçar pra mim é indiferente.” (Entrevista 1) Outro sentimento que se destaca na gramática que organiza os sentimentos dos

entrevistados em relação à sua interação com os passageiros que têm a mala revistada é

a satisfação. Como a negociação com os passageiros e a própria suspeita dependem de

habilidades específicas por parte dos entrevistados, uma descoberta de tentativa de

burlar a alfândega ou uma negociação bem sucedida sobre o pagamento de impostos

gera um sentimento de satisfação.

ENTREVISTADO 02 (MULHER): Mas, de certa forma, quando a pessoa tenta te enganar, você conseguiu colocá-la dentro, enquadrá-la, entendeu? Um episódio muito interessante, que uma vez vinha um rapaz no voo nacional, ele vinha de Manaus, com um monte de caixas, ele trazia um monte de tinta de impressora, alguma coisa assim, importada; e ele irritado me desacatou bonito porque eu pedi pra olhar é… já as notas fiscais (...) Aí, a colega tá lá, e eu conversando com ele sobre outros assuntos, entendeu? Educadamente. Aí, a colega passa o fax pra Manaus, e Manaus devolveu dizendo que ele documento não existia. Aí, ele começou a falar que ele era advogado, tinha muitos amigos… E ele ainda respondeu um processo criminal. ENTREVISTADOR: Esse caso especificamente te deixou assim… [satisfeita]

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ENTREVISTADO 02 (MULHER): Me deixou porque ele foi extremamente grosseiro e mal educado. Na frente de todo mundo, ele gritava comigo e eu não entendia nada. [Dizendo:] “Eu sou advogado”. Sabe aquela coisa assim? E eu tratando com todo respeito, tratando com todo o respeito… (...) Vai mentir pra mim. Aí, eu não troquei ideia com ele. Ah vai, então, tá bom, você tem o documento aí do registro de saída; tem todo documento aí? Deixa eu ver o documento. Aí, ele todo, sabe? Querendo mostrar que tava todo muito certo. E aí, eu sou uma pessoa magrinha, baixinha, falo baixo. Aí, ele deveria tá pensando assim: coitadinha, essa aí não sabe nada. E eu deixei ele pensar. Eu deixo a pessoa pensar que sou bobinha, sabe? Faço umas perguntas bem bobas. A pessoa nem desconfia. Aí, você vai perguntando, vai perguntando; porque quando você chegou ali, a pessoa tá tão à vontade que ela até fala que ela cometeu um delito, entendeu? (Entrevista 2)

De fato, a satisfação revela um gerenciamento bem sucedido das demais

emoções (ou comoções) possíveis nestas situações de interação, e expressa justamente o

misto de cálculo simultaneamente cognitivo e emocional que os entrevistados entendem

ser fundamental para o exercício de seu trabalho, isto é, a combinação do

apaziguamento das emoções com a percepção e a astúcia. Satisfação e pena seriam

assim dinâmicas emocionais atreladas ao exercício da autoridade.

A autoridade exercida no contexto da fiscalização de bagagens é vista sob uma

ótica disciplinar pelos entrevistados. Esta ideia está por trás de uma percepção desta

interação como marcada pelo apaziguamento de um excesso de emoções dos

passageiros, coibindo manifestações exageradas de queixa ou incomodo com a revista, e

em especial com a retenção de itens/pagamento de multa. Neste sentido, a posição

assumida pelos entrevistados é quase parental, uma atitude que poderia ser vista até

mesmo como civilizatória – e sempre em nome da lei. Da mesma forma que se educa

sobre as emoções, instrui-se sobre as regras. Os trechos abaixo exemplificam a presença

de dois modelos de autoridade: a parentalidade e a docência.

“ENTREVISTADO: Sabe o que eu faço? Digo: ‘Me aguarde aí!’ Dou uma canseira. Fico de olho lá pra ele não fugir. Pronto acabou. Dou uma canseira. A pessoa, vamos supor, você falou que tem filhos, você não bota o seu filho de castigo quando se fizer necessário? Então, boto de castigo também. Sem problema. E vai reclamar com quem? O senhor não me tratou bem. Então, paciência. Aí depois que termina o movimento, lá pra duas e pouca da tarde falo: “agora vamos conversar, vamos ver qual o seu problema”. (Entrevista 3)

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“ENTREVISTADO - Mas, no cotidiano, eu só deixo de castigo. ‘Ah, o senhor não vai me atender não? Não, tem mais gente na frente, aqui e tal, tal, tal, tal.’ Pra pessoa ficar pensando, sabe a merda que ele fez. ENTREVISTADOR: E ela se acalma, assim? ENTREVISTADO: Acalma, acalma. Presta atenção: Você já tem nove, dez horas de voo, mais uma hora pra pegar a bagagem, vai ficar quatro horas aqui, o senhor tem que pensar né. ‘Ah, que bom. Vou refletir alguma coisa!’” (Entrevista 3)

“ENTREVISTADO - Tem uns dois meses que botaram um vídeo ali. A senhora fica vendo aí um pouquinho, quando a senhora entender, a senhora voltar lá pra fazer.” (Entrevista 3)

“ENTREVISTADO 02 (MULHER): Não, não. Porque se já ocorreu comigo assim foram muito poucas vezes, e como eu costumo ser assim bastante tranquila na hora que eu vou abordar a pessoa, e como eu já fui professora, então, eu explico muito, entendeu? Pra ficar bem claro pra pessoa até entender o porquê que ela tá pagando ali, porque a legislação prever que ela tem que pagar aquele tributo, no caso se ela não declarar pode pagar a multa também, eu nunca tive nenhuma dificuldade, eu nunca me arrependi não, de jeito nenhum.” (Entrevista 2)

Por fim, a relação de autoridade sempre pode ser ameaçada por uma ou

outra forma de insubordinação, que na verdade está sempre implícita no incômodo

geralmente demonstrado pelos passageiros que têm a mala revistada e/ou são

pegos infringindo as normas relativas às bagagens. Na formulação dos

entrevistados o potencial para o desacato à sua autoridade e as formas de se lidar

com ele aparecem como estratégias de impessoalização e desqualificação, que em

última instância falam da percepção do desacato como uma experiência

inconcebível, dada a “blindagem” emocional.

“ENTREVISTADO: O desacato é não reconhecer a autoridade do ato.” (Entrevista 4) “ENTREVISTADO 02 (MULHER): Ah, verbal… É, a pessoa começou a dizer: ‘Não, tá pensando que é o quê? Num sei o quê… Vai fazer o que comigo?’ Sabe, assim… Eu prefiro ficar calada, porque você percebe logo que o estado da pessoa tá alterado e o que ela tá falando não tem o menor sentido com aquilo que você tá, com o trabalho que você tá executando. Então, você deixa a pessoa pra lá .” (Entrevista 2)

“ENTREVISTADOR: O senhor já se sentiu desacatado? ENTREVISTADO: Não. ENTREVISTADOR: Nem nesses casos em que as pessoas te xingaram?

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ENTREVISTADO: Eu não me sinto desacatado por quê? Porque aqui dentro desse espaço aqui quem manda sou eu. Nem a Polícia Federal manda aqui. Se a gente precisar de um apoio deles… Mas aqui nós somos autoridade. Tá entendendo? Por quê? Quando o pessoal chega tem que fazer alfândega. Não tem problema nenhum.” (Entrevista 3)

Conclusão

Perguntado sobre algum episódio que o tenha marcado, o fiscal responde assim:

“ENTREVISTADO: Tem. Teve um dia que chegou um voo de Londres. Eu me emocionei. Chegou uma moça só com a bolsa. Bolsa de mulher, sem bagagem. Aí eu falei: ‘a senhora não vai pegar a bagagem? Não. Eu tô vindo sem bagagem. Eu tô vindo pro enterro do meu filho’ (novamente se

emociona com o relato). Aí eu falei assim: ‘Por que que eu fui perguntar essa merda?’ Eu disse: ‘Meus sentimentos, vai na paz’. Mas, tem certas coisas. Aqui você vê de tudo. Me desculpa tá? (se desculpa por estar

emocionado)” (Entrevista 3)

Esse é o mesmo entrevistado que enfatiza sua valorização da frieza emocional

como um critério para o bom desempenho profissional através da expressão “coração na

mochila”. Entretanto, perguntado sobre um episódio marcante, narra uma história em

que se comoveu, chegando ao ponto de emocionar-se novamente ao narrar a história

durante a entrevista.

Escolhemos essa história para encerrar esse trabalho porque ela parece realizar

aquele curioso movimento de reiteração pela inversão, tão a gosto de tantas reflexões

antropológicas. Em meio a uma etnopsicologia que enfatiza um ideal emocionalmente

asséptico, em que as emoções atrapalhariam o bom desempenho profissional, voltado

para a lida com bagagens, e não com pessoas (as “donas das bagagens”), eis que surge

uma história que comove nosso fiscal até às lágrimas. Como conciliá-la com o tom geral

de sua visão da profissão?

A chave para o entendimento dessa história, parece-nos, está menos na sua

dramaticidade evidente – uma viagem para o enterro do filho – do que em um dado

adicional: a moça viajava sem bagagem. Esse detalhe, que em outros contextos poderia

parecer prosaico, irrelevante mesmo, parece-nos ser justamente aquilo que confirma os

traços gerais de nossa descrição dessa etnopsicologia profissional. Emocionalmente

frios, desinteressados das pessoas e atentos somente aos objetos que trazem, é apenas

quando uma pessoa se apresenta diante deles como que “desnuda” em sua dor, sem

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portar qualquer objeto, que os fiscais podem se emocionar, pois estão agora diante de

uma pessoa a qual não podem, e da forma mais literal, entender como “a dona da

bagagem”.

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