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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Fortaleza, CE – 3 a 7/9/2012
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Construíndo Narrativas Fotográficas no Cariri Cearense1
Marcelo Eduardo LEITE2
Leylianne Alves VIEIRA3
Carla Adelina Craveiro SILVA4
Universidade Federal do Ceará, Juazeiro do Norte, CE
Resumo: A presente proposta tem como objetivo mostrar os primeiros resultados da
pesquisa que desenvolvemos no Laboratório de Narrativas Fotoetnográficas (LANAF)5, na
Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, em Juazeiro do Norte. O mesmo tem como
objetivo mostrar por meio de séries fotográficas alguns dos processos de transformação e de
mudanças no mundo do trabalho na Região Metropolitana do Cariri, que tem modificado
rapidamente os costumes e práticas sociais. Os trabalhos elegeram num primeiro momento
os Engenhos de Rapadura e Fotógrafos de Romaria, duas atividades que sofrem mudanças
drásticas neste momento. Nesse sentido, a fotografia é o meio usado por nós para observar
criticamente os fenômenos sociais e assume a função não só de instrumento de coleta de
dados mas, também, de meio pelo qual a descrição e a interpretação dos processos são
apreendidos.
Palavras-chave: Fotografia; Cariri; Trabalho; Antropologia
1. APRESENTAÇÃO
Além das suas potencialidades mais reconhecidas, tais como, latente religiosidade e, no
bojo desta, rica tradição cultural, que se junta a uma heterogeneidade étnica, oriunda de um
processo migratório vindo de várias regiões, hoje a região do Cariri cearense nos desperta a
curiosidade por um novo aspecto que nos parece relevante: o encontro entre esta mesma
cultura tradicional e os novos valores, provocado pela rápida transformação desse contexto
por meio da chegada de novas práticas cotidianas, onde crescimento desordenado e inclusão
se juntam. Além de elementos típicos da contemporaneidade, com as novas tecnologias e o
1 Além dos pesquisadores citados, participa do projeto o pesquisador Thiago Zanotti Carminati, doutorando em
Antropologia pela UFRJ.
2 Doutor em Multimeios pala UNICAMP, professor Adjunto de Fotografia na Universidade Federal do Ceará, Campus
Cariri.
3 Aluna do 5º semestre do Curso de Jornalismo, bolsista de Extensão pela Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri.
4 Aluna do 5º semestre do Curso de Jornalismo, bolsista de Monitoria das disciplinas Fotografia e Fotojornalismo, pela
Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri.
5 O projeto inicial foi fomentado por meio de uma parceira entre os Grupos de Pesquisa do CNPq “Fotografia: Mídia
Imagens e Representações” e “Laboratório de Estudos Avançados em Desenvolvimento Regional do Semiárido”, dando
origem, em janeiro de 2012, ao Projeto de Extensão “Laboratório de Narrativas Fotoetnográficas” sob coordenação do
Prof. Dr. Marcelo Eduardo Leite.
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encurtamento das distâncias, vislumbramos ainda a vinda de serviços e bens de consumo
até então desconhecidos da população.
Este inquietante cenário nos provocou a buscar formas de compreender melhor tais
fenômenos, problematizando a questão. A proposta que aqui apresentamos é a forma pela
qual construímos no âmbito da disciplina Fotografia, um projeto que permitisse, por meio
de reflexão Fotoetnográfica e Fotodocumental, o desenvolvimento de tais análises, foi por
esse motivo que criamos o Laboratório de Narrativas Fotoetnográficas.
Dentre nossas observações do cotidiano local, algumas práticas nos chamaram a atenção,
como por exemplo o comércio nos mercados públicos no centro da cidade, a fotografia
popular e a secular atividade nos engenhos de rapadura. O elo de ligação entre eles é a
problematização destes processos de trabalho que, cada um a sua maneira, estão mudando
muito rapidamente, modificando inúmeras práticas, detentoras de grande valor simbólico.
Isso nos deu evidências de mudanças, tendo relação direta com a própria reestruturação da
cultura local.
Neste primeiro momento, nossa pesquisa elegeu dois ofícios a serem estudados, os
fotógrafos populares o os engenhos. O primeiro, intimamente ligado ao contexto das
romarias e, o segundo, consolidado desde as primeiras ocupações na região, sobretudo na
cidade de Barbalha. Ainda, decidimos neste momento dar atenção a fenômenos que estão
dentro daquele que é denominado triângulo Crajubar, que nada mais é que a junção entre as
cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha, eixo mais afetado pelas mudanças sócio-
econômicas. Nesse sentido, aqui apresentaremos os levantamentos desta pesquisa e alguns
resultados já obtidos no trabalho de campo.
2. A FOTOGRAFIA COMO FORMA DE RECONHECIMENTO DA SOCIEDADE
A fotografia é um tipo de imagem técnica que funda uma nova era no campo da
representação das coisas, tendo na crença do seu realismo e sua veracidade a característica
principal. Depois ela aos poucos assumindo a sua vocação de geradora de um discurso
específico sobre as coisas. Tendo vivido nas suas primeiras décadas uma condição técnica
limitadora do seu uso, a fotografia se manteve principalmente restrita aos ateliês, seu espaço
por excelência. Esta complexidade inicial estava ligada a três pontos principais, a
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fragilidade das chapas de vidro, o tamanho das câmeras e o longo tempo de exposição.
Vontade de registrar acontecimentos socialmente relevantes sempre existiu, tanto que a
Guerra Civil dos Estados Unidos foi fartamente documentada, o problema estava na
qualidade e profundidade de tal trabalho. É, enfim, na virada do século XIX para o século
XX que ela ganha outros campos.
Foi então que a fotografia obteve maior pluralidade de usos e funções e, entre as novas
formas de registro, destaca-se a Fotografia Documental, cujo uso possibilita a denúncia
social e conscientização de segmentos que não estão diretamente ligados ao fato narrado.
Ou seja, aqueles que podem por meio da fotografia ter contato com uma realidade, muitas
vezes, distante. A Fotografia Documental configurou-se como aquela que faz do contato do
fotógrafo com a realidade, uma forma de compromisso social. Sua atuação acaba tendo um
vínculo a mais, possibilitando que ele se emprenhe em transformar a realidade observada.
Injustiças sociais, condições de trabalho, problemas urbanos, ganham relevância pelas
lentes de alguns fotógrafos.
Merecem destaque os fotógrafos como Lewis Hine e Jacob Riis, referências na área e
pioneiros no uso da fotografia para dar credibilidade a um discurso com fins sociais. Hine,
sociólogo de formação, denuncia o trabalho infantil e com suas imagens que desperta a
opinião pública para o problema, possibilitando mudanças na legislação sobre a questão. O
segundo, com denúncias sobre as péssimas condições de vida da população imigrante em
Nova York (FREUND, 2004, p. 98). No mesmo país, uma experiência governamental é
referência, trata-se da documentação imagética da pobreza no campo em decorrência da
crise econômica de 1929. Criado no âmbito da Farm Security Administration, o projeto
lançou ícones da fotografia universal como Dorothea Lange, Walker Evans e Russell Lee,
entre outros (AMAR, 2010, p. 106).
Nesse sentido, a fotografia com fins de documentação, tem como a principal motivação
apresentar um fato a segmentos que não estão cientes das suas características. Além disso, o
faz de uma forma detalhada e dando ênfase ao problema. Uma das diferenças é o fato de
contar com um tempo maior para realização, além de um estudo anterior, cujo objetivo é
enriquecer o trabalho. Desta forma, um bom planejamento, uma eficaz aproximação para
com o problema, conduz o olhar do fotógrafo em direção aos fatos e acontecimentos mais
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relevantes. Este tipo de trabalho também faz como que sejam previstas dificuldades,
questões de mobilidade e segurança. Mas ao mesmo tempo em que se faz da fotografia uma
forma de construção de um discurso sobre uma determinada realidade, ainda se tem o limite
do alcance desta mesma informação, nesse sentido, os fotógrafos engajados ainda
necessitavam de espaço para projetar as suas demandas.
Essa forma de engajamento social e reconhecimento de diferenças pela fotografia, que
mostra aspectos importantes da vida social, convergem com o avanço da disciplina
Antropologia, que tem questionamentos parecidos. A descrição e a interpretação dos
processos de construção e troca simbólica de uma determinada sociedade permeiam os
objetivos do fazer antropológico. Sobretudo, quando se trata da prática da etnografia,
definida por Achutti e Hassen como “[...] um método de pesquisa, razão de ser da
antropologia e que implica a imersão do pesquisador no cotidiano do outro na busca daquilo
que é singular do ponto de vista cultural, aquilo que organiza e dá sentido à vida de um
determinado grupo social” (2004, p. 287).
Sendo a fotografia um recurso cujo uso torna-se plural, ela acabou sendo instrumento do
conhecimento antropológico e utilizada por pesquisadores em seus trabalhos etnográficos.
O uso do discurso fotográfico como forma de abordagem de uma realidade cultural assume
em diversos trabalhos um papel relevante. Dentro da Antropologia, já na década de 1910,
temos o pioneirismo de Malinowski, tanto na forma de obtenção das informações por meio
do contato direto com o grupo estudado, quanto na relação que se tece entre o fotográfico e
a narrativa escrita, já que ele de forma pioneira ultrapassou o seu uso como mera ilustração.
A característica do seu trabalho conduz um diálogo entre elas e as legendas, sendo que,
“[...] para Malinowski, o verbal e o pictórico (desenhos, esquemas e fotografias) são
cúmplices necessários para a elaboração de uma antropologia descritiva aprofundada”
(SAMAIN, 1995, p. 33-34). Assim, a organização seqüencial das pranchas fotográficas e
das legendas remissivas presentes no trabalho de Malinowski intitulado Os argonautas do
Pacífico Oeste acerca dos habitantes das Ilhas Trobriands na Nova Guiné, desenvolvido
entre 1915 e 1918, além de ser um marco na forma de se lidar com o campo a ser estudado,
por seu pioneirismo no contato direto com a população, ele revela um posicionamento
pertinente diante do uso da imagem que a privilegia como uma estratégia de explicitação de
aspectos de uma determinada cultura, além de ultrapassar a idéia de uma fotografia de
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cunho ilustrativo utilizado para a reflexão antropológica. Ele assume, neste trabalho, a
busca pelo estabelecimento de relações, inter-relações e oposições no contexto da
comunidade estudada por meio da articulação de conjuntos de fotografias que direcionam a
construção de sentido etnográfica proposta (SAMAIN, 1995, p.40).
Pouco depois, entre os anos de 1936 e 1939, o trabalho desenvolvido por Margaret Mead e
Gregory Bateson, deu origem à obra Balinese character. A photographic analysis, que
trouxe para o campo da Antropologia um aporte metodológico no qual existe a “[...]
utilização, conjunta e sistemática, dos registros verbal e visual, para expressar, representar e
dimensionar formas relacionais (e comunicacionais) presentes nas culturas humanas”
(SAMAIN, 2004, p. 68), além de, o uso da imagem obter um posicionamento central nas
práticas de pesquisa de campo, sobretudo quanto à coleta de dados (ACHUTTI, 1997,
p.25). O método de Mead e Bateson se instaura como uma forma de planejamento das
tomadas fotográficas e de posterior organização das pranchas cujo objetivo é não só
descrever as situações, mas encontrar e apontar, no discurso imagético, informações as
quais só se apresentam de maneira mais clara, ou, que, só podem ser apreendidas a partir da
imagem.
Sobre essa característica, Guran afirma que “Uma das potencialidades da fotografia é
destacar um aspecto particular da realidade que se encontra diluído num vasto campo de
visão, explicitando assim a singularidade e a transcendência de uma cena” (2000, p. 3).
Nesse sentido, dar-lhe uma função de destaque no âmbito de uma pesquisa é buscar ampliar
as possibilidades de apreensão de um determinado fenômeno, além de abrir espaço para
formas diferentes de narração interpretativa.
Na década de 1990, alguns trabalhos realizados no Brasil inauguraram o uso da fotografia
como instrumento de pesquisas em Antropologia. Citaremos aqui aquelas que nos parecem
ter contribuído mais diretamente para a elaboração de metodologias e que estão nos
ajudando a desenvolver nossos trabalhos. Em Os Argonautas do Mangue, uma comunidade
de caranguejeiros do município de Vitória (Espírito Santo), e a relação que se dá entre tais
indivíduos e o Manguezal é o objeto de abordagem de André Alves que adota a proposta
metodológica de Margaret Mead e Gregory Bateson. O método faz uso de sequências
fotográficas que possibilitam uma compreensão das práticas e significados que perfazem o
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cotidiano dos caranguejeiros e suas famílias a partir da ideia de etnografia visual. Nela, os
elementos e situações, nos quais o pesquisador reconhece um valor significativo para a
apreensão de um universo simbólico maior da cultura estudada, são fotograficamente
explicitados e organizados em uma seqüência que narra visualmente os objetos, os espaços
e os procedimentos dos trabalhadores na lida com os caranguejos, sequências estas,
seguidas de comentários textuais.
No desenvolvimento de uma metodologia de uso da fotografia no contexto da Antropologia
brasileira, a pesquisa de Luiz Eduardo Achutti destaca-se por apresentar, discutir e realizar
um trabalho antropológico onde o uso da fotografia detém a especificidade de se propor
como uma forma narrativa que não visa substituir ou competir com o relato oral e escrito,
mas constituir uma narrativa visual independente de outros suportes que possibilite a
compreensão do universo cultural estudado. Utilizando o termo fotoetnografia para designar
seu método, seu objetivo é entender o outro a partir das trocas de significado instauradas na
experiência da observação e enunciar tal entendimento por meio da expressão fotográfica.
No trabalho que desenvolveu com mulheres trabalhadoras de um galpão de reciclagem de
lixo orgânico na Vila Dique, Porto Alegre, Rio Grande do Sul (ACHUTTI, 1997), no
trabalho feito na Biblioteca Nacional da França, em Paris, França (ACHUTTI, 2004), e no
que aborda a Vila de Itapuã, em Viamão, Rio Grande do Sul (ACHUTTI; HASSEN, 2004)
a narração fotoetnográfica adquire posição central na pesquisa antropológica, mais
especificamente, na prática da etnografia.
A proposta de Achutti é elaborada através do minucioso planejamento das etapas do
trabalho, desde as idas ao local, passando pelas as tomadas fotográficas até sua edição e
ordenação final, onde as fotografias assumem o foco principal na enunciação dos resultados
da pesquisa. Nos termos do autor, “uma narrativa visual que pretenda utilizar a fotografia
deve ser fruto de um longo processo de construção, a construção de uma descrição visual”
(ACHUTTI, 2004, p. 3-4 apud BONI; MORESCHI, 2007, p. 141).
Nesse sentido, o levantamento de dados e a observação da realidade cultural tomada como
objeto de estudo, imprescindíveis em qualquer proposta de pesquisa, atrelam-se ao
necessário domínio da técnica fotográfica e à posterior sistematização de uma narrativa
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visual que constitui as informações etnográficas para uma nova tomada de posição na
utilização da fotografia na pesquisa no campo da Antropologia. Sobre a importância da
aplicação de tais etapas, Boni e Moreschi argumentam que é imprescindível que o
conhecimento do antropólogo sobre fotografia e o do fotógrafo sobre antropologia seja
considerado para a realização de um trabalho fotoetnográfico criterioso que atenda aos
objetivos científicos da Antropologia (2007, p.139). Sobre essa relação entre o fazer
fotográfico e o fazer antropológico na qual convergem para o mesmo ponto, afirma Becker,
Com a permanência por longos períodos entre as pessoas de diversas
sociedades estudadas, estes fotógrafos aprenderam o que é importante ser
estudado, como identificar a dramaticidade dos eventos e traduzí-la em uma
linguagem especifica. Isto não se pode apreender em uma ou duas semanas
[...]. A sociedade se revela para aqueles que a observam por um longo
período, não para aqueles que a observam de relance (BECKER, 1996, p.
97).
Como um meio de apreensão, expressão e comunicação a fotografia é simultaneamente
instrumento para olhar e forma de olhar, pois “[...] não existem homens, sociedades e
culturas sem a existência de meios para se comunicar. São precisamente esses meios de
comunicação humana que os constituem e os fazem viver, pensar, organizarem-se entre si”
(SAMAIN, 1995, p. 25). Sua constituição envolve uma integração entre o arcabouço
cultural de quem a produz, daqueles sobre quem é produzida e dos que para quem é
destinada.
Desta forma, buscamos aqui rapidamente mostrar algumas das nossas referências para o
desenvolvimento de nossas abordagens, que tem no campo da Fotografia Documental e da
Fotoetnografia que, a nosso ver, são duas vias de uma mesma busca, já que ambas tem
como objetivo principal buscar uma reflexão sobre a realidade social tendo como premissa
o aprofundamento no tema, o cuidado com seu levantamento inicial, além de uma
preocupação ética com os resultados obtidos.
3. O CARIRI CEARENSE E SEU PROCESSO DE METROPOLIZAÇÃO
O Cariri cearense, localizado ao sul do Ceará, situa-se muito próximo aos Estados da
Paraíba e Pernambuco, contando atualmente com uma população estimada de 800 mil
habitantes. Destes, mais da metade reside na região na qual estão as cidades de Juazeiro do
Norte, Crato e Barbalha. Este aglomerado urbano está localizado numa espécie de oásis do
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sertão nordestino, principalmente por estar num vale e aos pés da Chapada do Araripe. É
também uma região habitada pelo homem desde a pré-história. O seu nome, inclusive, foi
herdado dos índios Kariri, que habitavam esta área quando da chegada dos colonizadores
europeus. A ocupação da região se deu no século XVII, em processos de colonização do
sertão para o uso nas atividades de pecuária, tomando o território dos povos originários.
Depois disso a região sofreu um intenso processo de miscigenação, com a chegada de
indivíduos de várias regiões. Esta nova ordenação, fez com que a população da região
crescesse paulatinamente.
Porém, o local no qual está hoje seu principal centro urbano, Juazeiro do Norte, tem uma
origem bastante peculiar. O início da ocupação vem de um contingente populacional que se
desloca no bojo da figura relevância do Padre Cícero, que reconhece em alguns dos seus
espaços analogias de locais citados nas passagens bíblicas, como a Colina do Horto, o
Monte das Oliveiras e o Santo Sepulcro. Em consequência disso, ele teria procurado os
proprietários dos terrenos para comprá-los, objetivando transformar o local em um
ambiente de oração e peregrinação. Por ser uma proposta vinda dele, o terreno foi doado.
Assim, foi erguida no alto da serra uma capela de pau a pique, com a promessa de que uma
igreja maior seria construída. Com os anos o povoado de Juazeiro do Norte se formou como
o refúgio dos sertanejos diante das dificuldades vividas, muitas delas originadas do contexto
de exploração do trabalho nos latifúndios administrados pelos coronéis e, ainda, agravados
pelas condições climáticas do Semi Árido.
Padre Cícero, tornou-se conselheiro, guia espiritual, líder, sendo de forma crescente
procurado por devotos em busca de apoio e aconselhamento e, muitas vezes, um lugar para
morar. Eram pessoas que tinham abandonado seus lares em outras regiões pra reconstruir
sua vida em Juazeiro do Norte. Sendo assim, com o passar do tempo o local é visto como
santificado e, todo o percurso para chegar até ele, como uma provação e um pagamento por
pedidos alcançados.
Esse reconhecimento da figura do Padre Cícero e, sua relação direta com as demandas
locais, tanto no atendimento de algumas necessidades dos fiéis, como na relação que se
estabelece entre este e o sofrimento vivido pelos sertanejos, cria uma ponte que aproxima
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uma grande quantidade de indivíduos a ele, processo que se dá nas romarias que se
estabelecem em Juazeiro do Norte. Após sua morte, em 1934, sua figura ganha uma
conotação mais forte, tornando-o um santo popular, à revelia da igreja católica. Essas idas e
vindas de pessoas, em pelo menos três grandes romarias anuais e que trazem até 400 mil
devotos, provocam um crescimento contínuo da cidade. Isso ocorre pois, parte delas aqui
abre os seus negócios, muitos ligados a sua imagem ou ao uso dela, outros vêm a procura de
melhores condições de vida.
No início do século XX, Juazeiro do Norte apresenta-se como importante centro comercial
e de serviços que atende, além do estado do Ceará, parte da Paraíba e Pernambuco. Sua
população cresceu rapidamente nos últimos anos, números do IBGE apontam 212.000
pessoas em 2000 e 250.000 em 2010, somando a área que compreende ainda as cidades de
Crato e Barbalha, o salto é de 364.000 para 433.000. Notamos desta forma que Juazeiro do
Norte apresenta vários problemas com relação ao seu desenvolvimento, com grande
desigualdade de oportunidades e de renda, criando muitos postos de trabalho que raramente
são ocupados pela população que já está na cidade, além de não apoiar alguns que nela já
existem, como os que aqui abordaremos.
4. PRIMEIROS RESULTADOS DA PESQUISA
Nesse momento, duas temáticas estão em desenvolvimento e que nos permitem mostrar os
primeiros resultados obtidos, são elas, as mudanças na prática do ofício fotográfico em
Juazeiro do Norte e a atividade nos Engenhos de Rapadura na cidade da cidade de
Barbalha. A primeira abordagem foca nos fotógrafos ambulantes ou populares, que atuam
nas romarias, cuja presença está atrelada à demanda de fiéis aos pontos de visitação, como a
estátua do Padre Cícero, a Capela do Socorro, a Basílica Nossa Senhora das Dores,
atividade que depende diretamente do fluxo de romeiros.
Com relação aos fotógrafos, apresentamos algumas imagens que fazem parte de séries
realizadas em Juazeiro do Norte na ocasião de duas romarias e que abordam
especificamente a fenômeno de mudança relativo à democratização do uso da fotografia,
mostrando um tensionamento entre os romeiros e os fotógrafos, ambos, lado a lado,
munidos de equipamentos digitais. Esse momento é aquele no qual nota-se que, pela
primeira vez, os fiéis conquistam certa independência para fotografar, prática até então
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restrita aos profissionais. Na seqüência abaixo, feita aos pés da estátua do Padre Cícero,
podemos ver uma situação que demonstra o processo de mudança e de uso do espaço.
Figura 1, sequência que mostra o encontro entre o fotógrafo oficial que atua no Horto (Estátua do Padre Cícero), e o
romeiro, munido de equipamento e que busca fazer uma composição similar a aquela que observa.
Fonte: Acervo LANAF
Notamos que os visitantes procuram observar as técnicas de trabalho dos fotógrafos,
configuração das poses e sobreposição entre o retratado e o fundo. As fotografias são parte de
algumas séries que fizemos e que nos mostram a convivência entre os fotógrafos locais e os
romeiros com suas câmeras. Elas têm mostrado que os visitantes se apropriam das formas de
trabalho dos profissionais e seus procedimentos e, mesmo que seja sem a mesma qualidade
técnica, reproduzem, à sua maneira, as poses feitas pelos fotógrafos oficiais e que foram
desenvolvidas historicamente6. São metáforas visuais que provocam um diálogo entre os
planos, interligando o retratado a estátua, postada ao fundo da cena. Percebemos também que
os visitantes, muitas vezes, fazem as fotografias com os profissionais e, depois, voltam para
fazer uma versão pessoal do mesmo local, tentando copiar os procedimentos.
Outra situação que tem se tornado comum, se relaciona ao uso dos objetos cênicos dos
fotógrafos que possuem espaços no entorno das igrejas, são potenciais clientes que se
aproximam não para contratar serviços, mas para alugar o local e fazer as suas próprias
fotografias.
6 No total, 50 fotógrafos estão cadastrados no Horto, diariamente aproximadamente 10 atuam em dias comuns, sendo que,
durante as romarias, ali se encontram aproximadamente 40 deles.
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Figura 2, fotógrafo faz retrato de grupo na ocasião da Romaria de Finados e, Figura 3, o espaço sendo usado por uma
visitante que fotografa por meio do celular.
Fonte: Acervo LANAF
Acima, exemplo do fenômeno que tem modificado o uso dos espaços de trabalho dos
fotógrafos: o aluguel dos objetos para que o próprio visitante faça sua fotografia. Nas figuras,
em sequência, vemos o fotógrafo fazendo o registro com sua câmera, porém, minutos depois,
constatamos a aproximação de uma cliente que, ao contrário do grupo anterior, queria apenas
usar os seus objetos, sem contratar seus serviços, apenas alugando os objetos. Esse é um
fenômeno que dita um pouco da reconfiguração neste ofício, um esfacelamento da função e do
espaço de trabalho. Hoje, com a presença de pessoas com equipamentos, criou-se uma
demanda específica que busca apenas o uso dos adereços e objetos cênicos.
Além dos fotógrafos, cuja abordagem depende das festividades religiosas, estamos
fotografando o Engenho Padre Cícero, em Barbalha. Este trabalho está se dando pelo
reconhecimento fotográfico das variadas etapas do ofício, fazendo com que as imagens nos
permitam entender a própria lógica da produção. Nossa perspectiva foi a de, por meio do
levantamento das várias etapas da feitura da rapadura, realizar séries que mostrassem cada
ação, em sequência. Estamos também fotografando aspectos do espaço de trabalho, como
objetos usados, itens de uso pessoal. Nesse sentido, a fotografia em nossa pesquisa tem um
papel que converge com as observações de Nobre e Gico (2011):
[...] as imagens fotográficas possuem a peculiaridade de conter na sua composição a
história social de determinados universos sociais, modos de vida, agentes sociais,
hábitos e costumes, gestos, comportamentos e transformações de aspectos físicos e
culturais ao longo do tempo [...] (p. 115)
Assim, nossa aproximação se deu tendo algumas percepções iniciais, que visam mostrar a
espacialidade do engenho, demarcado por divisões específicas que refletem as etapas do
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trabalho. As fotografias estão sendo agrupadas em três categorias principais: trabalho
interno, trabalho externo e objetos referentes ao cotidiano de trabalho. Abaixo, elencamos
uma sequência da rotina de trabalho no engenho de rapadura.
Figura 4, caixeador do Engenho Padre Cícero enquanto enforma uma carga de rapadura
Fonte: Acervo LANAF
Pela sequência de imagens, podemos perceber a precisão e velocidade do funcionário
responsável por colocar o melaço em formas, o que dará origem à rapadura como é
comercializada. Além do trabalhador em si, as imagens ainda apresentam parte do local
onde o mesmo está: muitos objetos pessoais estão dispostos ao longo das janelas, bem como
algumas cadeiras podem ser vistas ao fundo. Destacamos ainda, mais uma vez, o uso do
boné e o porte físico do trabalhador. Ou seja, a fotografia nos permite apreender várias das
dimensões do trabalho e da lida dos funcionários com o meio, o que contribui com a
compreensão do fenômeno com um todo.
Figura 5, retrato do Botador de Fogo do Engenho Padre Cícero e, Figura 6, detalhe de objetos pessoais de um dos
trabalhadores do Engenho Padre Cícero
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Fonte: Acervo LANAF
Ao longo de nossa experiência, percebemos o interesse maior de alguns em falar sobre sua
função, como é o caso do que aparece retratado na Figura 5. O senhor ali apresentado já
trabalhou em diversas funções dentro do engenho e hoje realiza uma das que mais demanda
atenção e um trabalho contínuo: alimentar o fogo das fornalhas. Na Figura 6, detalhe de
objetos pessoais trazidos pelos trabalhadores que muitas vezes tem uma jornada longa de
trabalho, já que ela está ligada a encomendas específicas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho aqui apresentado ainda reflete a etapa inicial do nosso projeto. Esta etapa nos
parece ser aquela que nos permite entender não só o objeto pesquisado, mas também as
possibilidades da prática fotoetnográfica. Notamos inclusive que temos que ter muito
cuidado me nossa aproximação e, durante as visitas, temos cuidado para interferir o mínimo
nos eventos observados.
Outra questão que tem surgido, está relacionada aos ciclos dos dois temas em estudo
atualmente, os Fotógrafos de Romaria, dependentes das datas específicas de visitação na
cidade e, os Engenhos de Rapadura, das encomendas vindas de São Paulo, hoje o maior
consumidor do produto. No caso dos fotógrafos, notamos uma dramática decadência do
ofício, que tanto valor simbólico tem para a cidade. No caso dos engenhos, além de termos
constatado o fechamento da maioria deles por questões ambientais, fica claro que o
consumo do produto é pequeno, dependendo também dos visitantes, além dos, já citados,
pedidos vindos do sudeste.
Ainda, quanto ao uso da fotografia na pesquisa, no parece claro que ela carrega informações
e percepções que muitas vezes o olhar presencial não capta, uma vez que muitos fatos
ocorrem ao mesmo tempo. Desta maneira, destacamos a relevância das fotografias a fim de
facilitar a reflexão acerca das práticas, especialmente as que se apresentam como resistentes
dentro de uma cultura que vem absorvendo rapidamente as novas tecnologias e as
demandas de novos mercados. Nosso objetivo é, além de dar continuidade às abordagens
em questão, buscando outros fenômenos para desenvolver ainda séries de Fotografias
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Documentais e Fotoetnográficas7, fazendo com que as duas abordagens sejam utilizadas na
formação dos envolvidos, já que temos notado que tal proposta tem, sem dúvida, dado um
componente a mais na formação dos alunos participantes do projeto e aos que participam
das discussões oriundas do mesmo.
Referências
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de Antropologia Visual sobre
cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial; Palmarinca, 1997.
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson; HASSEN, Maria de Nazareth Agra. Caderno de campo digital
– Antropologia em novas mídias. In: Horizontes Antropológicos, ano 10, n. 21, p. 273-289, jan./jun.
Porto Alegre, 2004.
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora
da UFRGS; Tomo Editorial, 2004.
ALVES, André. Os Argonautas do Mangue. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2004.
AMAR, Pierre-Jean. História da Fotografia. Lisboa: Edições 70, 2010.
BECKER, Howard. Explorando a sociedade fotograficamente. In: Cadernos de Antropologia e
Imagem, vol 2. Rio de Janeiro: UERJ, 1996.
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SAMAIN, Etienne. Balinese character (re)visitado. In: ALVES, André. Os Argonautas do
Mangue. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2004.
7 Da nossa parte, não existe previsão para o final do Projeto de Extensão “Laboratório de Narrativas Fotoetnográficas”,
podendo ele ser renovado anualmente, está nos nossos planos transformá-lo numa ferramenta permanente de estudo da
fotografia no Curso de Comunicação Social (Jornalismo).