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INTRODUÇÃO A palavra patrimônio é de origem latina e significa ‘herança paterna’. Com o passar do tempo, seu significado foi alargado e passou a designar os conjuntos de bens privados e públicos, empresariais, familiares e individuais. O antropólogo José Reginaldo Gonçalves (GONÇALVES, 2003) afirma que a palavra está entre as mais usadas no cotidiano e pode classificada ou dividida em diversas categorias. São elas: móvel ou imóvel, arquitetônico, natural, histórico, artístico, etnográfico, biológico, genético, ecológico, turístico, cultural, tangível e intangível, entre outras. Patrimônio tangível ou material são todos os objetos, obras de arte, construções, vestígios ou evidências. Também, denominados “patrimônio de pedra e cal”, o patrimônio intangível ou imaterial compreende as rezas, as festas, as crenças, as músicas, danças, criações teatrais, romarias, além dos modos de viver e fazer das comunidades. Embora esteja dotado de materialidade, o patrimônio intangível não tem como foco o objeto, mas o conhecimento humano e é expresso através dos sons, dos cheiros, da memória, da degustação e, também da visão. A Casa de José de Alencar está situada às margens da Avenida Washington Soares, a principal ligação entre a capital e às praias do litoral leste. Local de nascimento do escritor José de Alencar é um equipamento cultural da Universidade Federal do Ceará desde 1964. Embora tenha um pouco mais de cinquenta anos como equipamento cultural, a história do Alagadiço Novo começa com a vinda da família Alencar para a capital da província no início do século XIX. O terreno que, na época, contava com mais de trinta hectares de extensão, abrigava várias construções, entre elas a ‘casinha’ 1 e o engenho de cana-de-açúcar 2 da família. 1 Imóvel histórico remanescente da época de José de Alencar e sua família. Sua construção é estimada entre os anos de 1820 e 1824. 2 O engenho, o primeiro a vapor da Província, contava com maquinário importado da França. Projetado e construído por um engenheiro e um mestre de obras franceses, representou um

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Page 1: INTRODUÇÃO - nordeste2017.historiaoral.org.br · A sala mais antiga foi inaugurada em 1981 e leva o nome do artista plástico maranhense, Floriano Teixeira. Nascido em Cajapió,

INTRODUÇÃO

A palavra patrimônio é de origem latina e significa ‘herança paterna’. Com

o passar do tempo, seu significado foi alargado e passou a designar os conjuntos

de bens privados e públicos, empresariais, familiares e individuais. O

antropólogo José Reginaldo Gonçalves (GONÇALVES, 2003) afirma que a

palavra está entre as mais usadas no cotidiano e pode classificada ou dividida

em diversas categorias. São elas: móvel ou imóvel, arquitetônico, natural,

histórico, artístico, etnográfico, biológico, genético, ecológico, turístico, cultural,

tangível e intangível, entre outras.

Patrimônio tangível ou material são todos os objetos, obras de arte,

construções, vestígios ou evidências. Também, denominados “patrimônio de

pedra e cal”, o patrimônio intangível ou imaterial compreende as rezas, as festas,

as crenças, as músicas, danças, criações teatrais, romarias, além dos modos de

viver e fazer das comunidades. Embora esteja dotado de materialidade, o

patrimônio intangível não tem como foco o objeto, mas o conhecimento humano

e é expresso através dos sons, dos cheiros, da memória, da degustação e,

também da visão.

A Casa de José de Alencar está situada às margens da Avenida

Washington Soares, a principal ligação entre a capital e às praias do litoral leste.

Local de nascimento do escritor José de Alencar é um equipamento cultural da

Universidade Federal do Ceará desde 1964.

Embora tenha um pouco mais de cinquenta anos como equipamento

cultural, a história do Alagadiço Novo começa com a vinda da família Alencar

para a capital da província no início do século XIX. O terreno que, na época,

contava com mais de trinta hectares de extensão, abrigava várias construções,

entre elas a ‘casinha’1e o engenho de cana-de-açúcar2da família.

1Imóvel histórico remanescente da época de José de Alencar e sua família. Sua construção é

estimada entre os anos de 1820 e 1824.

2 O engenho, o primeiro a vapor da Província, contava com maquinário importado da França.

Projetado e construído por um engenheiro e um mestre de obras franceses, representou um

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Em 1829, nasceu aquele que seria o mais ilustre membro da família

Alencar. No Alagadiço Novo, o menino Cazuza (apelido dado por sua mãe),

residiu durante a primeira década de vida. O pai do romancista, padre e

presidente da província, José Martiniano de Alencar, foi nomeado senador pelo

imperador D. Pedro I e a família passou a residir na cidade do Rio de Janeiro,

então capital do Império do Brasil. Na capital, Alencar cresceu, estudou e

produziu seus romances, entre eles, o mais famoso: Iracema, a virgem dos lábios

de mel.

Sobre o Alagadiço Novo, na ausência de seus proprietários, não foram

encontradas muitas informações. O que se sabe é que a fazenda foi

administrada por terceiros e para a propriedade retornou a filha caçula do

senador. Carolina Joaquina, também conhecida como D. Rolinha, casou-se com

um médico cearense e, depois de viúva, contraiu novas núpcias com um homem

bem mais jovem, Antônio de Barros. D. Rolinha viveu na propriedade até seu

falecimento, no início do século passado. Sem filhos, a irmã de José de Alencar,

deixou como único herdeiro o viúvo.

Na década de 1930, O Sr. Barros vendeu a ‘casinha’ para a prefeitura de

Fortaleza. Desde então foram tentados projetos de cunho educativo e cultural

para o imóvel. Projetos que, segundo informações coletadas em jornais,

esbarraram em dificuldades de infraestrutura e de acesso ao, então, distante

bairro de Messejana.

Quase três décadas e meia depois o imóvel foi tombado como Patrimônio

Público Federal. Em visita a Fortaleza, o General Humberto de Alencar Castelo

Branco visitou o terreno e providenciou o tombamento do imóvel entregando a

administração à Universidade do Ceará. Através de Castelo Branco foram

grande avanço na produção de aguardente, açúcar, melaço e outros produtos advindos do beneficiamento da cana.

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adquiridos oito hectares no entorno da ‘casinha’ (o que incluía as ruínas do antigo

engenho) e foram iniciadas as obras da sede administrativa do equipamento.

A entrega do imóvel à Universidade aconteceu durante as comemorações

pela passagem da primeira década de criação da instituição, embora seu

documento oficial de criação seja datado de 1966.

Criada para ser um centro de memória do escritor José de Alencar e um

polo fomentador da literatura cearense (objetivos e missão expressos em seu

documento de criação - o Regulamento 166), A CJA, deveria manter em suas

dependências, um museu, uma biblioteca e uma pinacoteca com obras de e

sobre Alencar.

Com o passar dos anos apenas a pinacoteca saiu do papel. Na verdade,

a Casa, conta com duas pinacotecas. Duas salas com quadros inspirados nas

produções alencarinas. A sala mais antiga foi inaugurada em 1981 e leva o nome

do artista plástico maranhense, Floriano Teixeira.

Nascido em Cajapió, Maranhão, Floriano fez carreira no Ceará. Aqui

participou da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP) e, entre outras

contribuições para a arte cearense, ajudou a criar o Museu de Arte da

Universidade do Ceará (MAUC). Em 1971, Antônio Martins Filho, criador e

primeiro reitor da UFC, encomendou ao artista cearense, parte das obras que

comporiam a pinacoteca.

Em 1981, Floriano compôs as outras obras e a sala com seu nome foi,

oficialmente, inaugurada. São, aproximadamente, trinta e seis óleos sobre tela,

desenhos à carvão e à grafite que narram cenas e personagens descritos em

romances, contos e peças teatrais de Alencar. Floriano faleceu em 2000, em

Salvador, capital baiana.

A segunda pinacoteca foi inaugurada em 2006. Composta por quarenta

desenhos à nanquim e um óleo sobre tela, a sala é dedicada ao romance

Iracema. As obras foram adquiridas junto ao artista cearense, Descartes

Gadelha.

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Nascido na Fortaleza da década de 1940, Gadelha participou de inúmeros

salões de arte e é presença constante no Museu da Universidade, onde há uma

sala dedicada ao artista. Artista plástico e músico atuante, Descartes Gadelha,

continua produzindo. Além do trabalho como escultor, desenhista e pintor, é

fundador do Maracatu Solar e padrinho da Escola de Samba Unidos da Casa

Caiada (nome dado em alusão à ‘casinha’).

A biblioteca e o museu são compostos por acervos oriundos de outros

equipamentos. No caso da biblioteca, ela foi adquirida na década de 1980 e nela

estão os livros do acervo particular do escritor e bibliófilo cearense, Braga

Montenegro3. Após a morte de Braga Montenegro, a família do bibliófilo vendeu

os livros e as estantes confeccionadas por ele para a UFC. Inicialmente levada

para o Campus do Pici, a biblioteca foi transferida para o Alagadiço em 1981.

O museu é composto por peças que pertenceram ao extinto Instituto de

Antropologia da Universidade do Ceará (IAUC). O IAUC nasceu como serviço,

em 1957 e foi transformado em Instituto no seguinte. Foi extinto em 1969 e

durante o tempo de sua existência foi o responsável pela coordenação de

estudos cunho antropológico na área do semiárido nordestino. Esses estudos

tinham como objetivo o mapeamento do clima, da geografia e da população da

região, além do levantamento da cultura e da produção artesanal com o intuito

de auxiliar na criação de propostas de desenvolvimento econômico e social.

Idealizado e dirigido pelo engenheiro Thomaz Pompeu Sobrinho até 1967,

o IAUC, contava com um museu. Para ele foram adquiridas junto à Biblioteca

Nacional, o acervo do casal Arthur e Luíza Ramos e, no decorrer de sua

existência, acrescentadas as peças coletadas pelos pesquisadores do próprio

Instituto.

3Trata-se de uma biblioteca particular composta por assuntos e autores diversos. Nela

encontramos algumas raridades como as primeiras edições de livros de Machado de Assis e do próprio José de Alencar. Sem condições de funcionar, a biblioteca permaneceu fechada por algum tempo e, atualmente, embora ainda não realize empréstimos, conta com a presença de uma bibliotecária que atende no período da manhã. Todos os seus volumes estão na base de dados da UFC.

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Alagoano da cidade de Pilar, Arthur Ramos, nasceu em 1903 e faleceu

em 1949. Psiquiatra, estudou na Faculdade de Medicina da Bahia onde se

formou em 1928. Ainda na Bahia, dirigiu o Instituto Nina Rodrigues4. No Instituto

entrou em contato com os estudos do, também, médico maranhense Raimundo

Nina Rodrigues, dele passando a se intitular discípulo.

O final do século XIX foi marcado pela emergência das teorias positivistas

e raciais. Teorias pautadas na ideia de civilização branca e europeia como ápice

da evolução humana, positivismo e racismo, classificavam como bárbaros

qualquer povo fora dos padrões eurocêntricos. No Brasil onde índios, negros e,

principalmente, mestiços somavam mais da metade dos habitantes, era

impossível crer que o país poderia ocupar um lugar entre as nações ditas

'civilizadas'.

A década de 1930 trouxe a mestiçagem para o centro das discussões e,

ao contrário do século anterior, os mestiços passaram a ser os grandes

representantes da Nação. Influenciados pelos artistas modernistas da década de

1920, intelectuais, como Arthur Ramos, começaram a pesquisar as expressões

populares.

Pesquisador interessado em diversos temas, o Dr. Ramos, notabilizou-se

pelas pesquisas acerca da presença negra no Brasil, sua influência em na

formação da cultura brasileira, principalmente, o papel das religiões de matriz

africana. Para levar a termo suas pesquisas, o médico, reuniu um acervo de

estudo que conta com quase trezentas peças. São instrumentos musicais,

estátuas, ervas e outros elementos ligados aos rituais de umbanda e candomblé.

4 O Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR) é o mais antigo dos cinco Institutos que

compõem a estrutura do Departamento de Polícia Técnica. Criado em 1905 pelo Prof. Oscar

Freire, recebeu o nome Nina Rodrigues da Congregação da Faculdade de Medicina da Bahia,

em homenagem ao Professor catedrático de Medicina-Legal, Raimundo Nina Rodrigues, falecido

naquele mesmo ano.

O IMLNR funcionou por mais de 60 anos junto ao prédio da tradicional Faculdade de Medicina

da Bahia, à época, localizada no Terreiro de Jesus. Fonte: http://www.dpt.ba.gov.br

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Maria Luíza de Araújo Ramos, era professora de música. Casada com o

médico por mais de uma década, foi sua principal colaboradora. Conheceram-

se em 1934, quando ele reunia material para seu mais famoso livro: 'O Negro

Brasileiro”. Ela, viúva de Luciano Gallet, maestro e pesquisador de música

popular, cedeu o material de pesquisa do falecido marido (informação contida no

prefácio do livro O Negro Brasileiro).

Em 1936 casaram-se iniciando uma união e uma parceria que durou até

a morte precoce do antropólogo em 31 de outubro de 1949, em um hotel em

Paris. Em vários prefácios, Arthur Ramos, destaca a atuação da esposa.

Segundo ele, a Sra. Ramos, era responsável por datilografar, levantar

bibliografia, traduzir textos, fazer fichamentos, compilar dados estatísticos, entre

outras tarefas.

Além do auxílio ao marido, a professora também atuou como

pesquisadora. Colecionadora de rendas desde a infância, uniu a paixão pelo

objeto colecionado e o interesse acadêmico ao contrair núpcias com o

antropólogo. Auxiliada pelo marido, elaborou questionários, coletou amostras de

rendas e outros elementos ligados à produção do referido artesanato, levantou

e analisou dados, reunindo um material que resultou na publicação: A renda de

bilros e sua aculturação no Brasil. Depois da morte do marido, D. Luíza, retornou

ao Brasil e, em 1952 vendeu para a Biblioteca Nacional (BN), as peças de

pesquisa do casal, o arquivo particular, a discoteca, e a biblioteca do falecido

marido.

Em 1957, foi criado o Serviço de Antropologia da Universidade do Ceará

(SAUC) que, em 1960, passou a ser Instituto (IAUC). Equipamento de pesquisa

responsável pelo mapeamento histórico, social e antropológico da região do

semiárido nordestino, o SAUC/IAUC, tinha como missão a formação de

pesquisadores aptos a desenvolver projetos de pesquisa voltados para o

semiárido e, seu objetivo principal era dar suporte às propostas de

desenvolvimento para a região.

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Idealizado e dirigido até 1967, pelo engenheiro e ex-diretor do

Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), Thomaz Pompeu

Sobrinho, o IAUC contou com o apoio do fundador e Reitor da UC, Antônio

Martins Filho. Para compor o IAUC foram convidados alguns professores como

o jovem antropólogo Francisco Alencar. Aluno egresso dos cursos do Museu

Nacional, Francisco Alencar, relata ter sido o responsável não apenas pela

redação do Estatuto do SAUC, mas de sua montagem, incluindo a negociação

do acervo do casal Ramos junto à BN.

No Ceará, as peças foram recebidas pela conservadora (e a partir de 1981

professora do Departamento de História), Valdelice Girão. Responsável pela

higienização, catalogação e acondicionamento do acervo, a conservadora,

atuou, também, como pesquisadora. Pautando-se no material de pesquisa do

casal Ramos, entrevistou diversas rendeiras, observando e descrevendo

detalhadamente o processo produtivo. As duas coleções e todo o trabalho de

catalogação e pesquisa da historiadora podem ser vistos no catálogo A Renda

de Bilros. Publicado em 1981 e reeditado em 2014, contém imagens e descrições

técnicas pormenorizadas.

Além das rendas, outros objetos também foram adquiridos pelos

pesquisadores. Todos os objetos estão ligados às diversas pesquisas realizadas

no Instituto. Eram pesquisas sobre a pesca, o artesanato e outras atividades

desenvolvidas no Estado do Ceará e em áreas limítrofes.

O IAUC existiu até 1969 esua extinção deu origem ao curso de Ciências

Sociais e Filosofia. A partir do ano de 1969, o museu, passou por várias sedes,

fechou as portas, entre os anos de 1974 e 1979 e, finalmente, em 1981, foi

enviado para a Casa de José de Alencar onde permanece até hoje.

Atualmente, além das peças do extinto IAUC e dos quadros expostos nas

duas pinacotecas, a CJA, conta com uma coleção arqueológica. A coleção é

formada pelas peças retiradas do engenho do Senador Alencar. Construído pelo

pai do escritor, o engenho passou por uma prospecção coordenada pelo

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professor Marcos Albuquerque da Universidade Federal de Pernambuco no ano

2000.

O material foi guardado na reserva técnica da Casa de José de Alencar e

parte dele foi exposto em uma sala do museu. A sala reúne, além das peças do

antigo engenho, fotografias, cartazes e outros documentos que permitem contar

a trajetória da CJA.

Em 2004 ingressei na Universidade Federal do Ceará para trabalhar no

Museu de Arte da UFC (MAUC). Lotada no Instituto de Cultura e Arte (ICA), fui

convidada a realizar um inventário do acervo museológico. O inventário era parte

de um projeto de recuperação da Casa de José de Alencar e previa, além do

levantamento do acervo, a continuidade das obras de conservação nas ruínas

do engenho e outras ações estruturais, educativas e culturais cujo objetivo era

recuperar o Alagadiço Novo.

Ao iniciar a coleta dos dados para o levantamento do acervo, encontramos

dificuldade em mapear informações relacioandas não apenas ao acervo

museológico, mas à história da Casa de José de Alencar. O inventário só foi

possível graças a ajuda dos demais servidores. Foram as memórias dos colegas

que permitiram reunir documentos dispersos dentro da CJA, percorrer

departamentos da UFC, conversar com pessoas e buscar informações que

ajudaram, e continuam ajudando, a elucidar diversas perguntas acerca do

equipamento e seu eclético acervo.

Os relatos dos servidores deram um norte à equipe formada por mim e

dois bolsistas. Em 2009, convidamos os cinco servidores mais antigos para

registrar seus depoimentos em vídeo, transcrever e utilizar o material como fonte

de pesquisa. Os servidores escolhidos ingressaram na CJA entre os anos de

1977 e 1982. Através do projeto intitulado: A trajetória da Casa de José de

Alencar através das memórias de seus servidores mais antigos, obtivemos apoio

da UFC, que remunerou os bolsistas e da direção da CJA que disponibilizou a

câmera, scanner e o computador para a captação das imagens e para as

transcrições.

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José do Carmo Rodrigues, Maria Elsanira Máximo de Oliveira, Vera Maria

Barros da Silva, José Maria Silvestre Farias e Tereza Lúcia Maia de Oliveira,

foram os servidores escolhidos. Durante meses coletamos seus depoimentos e

transcrevemos. Os relatos forneceram elementos que ajudaram a compreender

a trajetória da CJA enquanto equipamento cultural Federal, auxiliando em nossa

pesquisa interna e fornecendo informações capazes de auxiliar na elaboração

de monografia (2010), dissertação (2014) e artigo (2016), além de outros

resultados como uma palestra com os cinco servidores, a museóloga que

coordenou as entrevistas e o administrador e historiador, Frederico Andrade

Pontes, atual diretor do equipamento.

A palestra foi parte da programação da Semana de Museus de 2011 o

evento tivemos a oportunidade de exibir as imagens dos colegas. Evento anual

promovido pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), a Semana de Museus

que acontece na semana do dia 18 de maio (dia dos museus) e todo ano tem

um tema diferente. Em 2011 o tema foi Museu e Memória.

CASA DE JOSÉ DE ALENCAR PARA ALÉM DA PEDRA E CAL

Pedra e cal são termos utilizados para designar o patrimônio material,

notadamente, os imóveis onde residiram nobres, políticos, intelectuais e outras

figuras notáveis ligadas à elite política, financeira e intelectual do Brasil. Crítica

a excessiva materialidade das políticas patrimoniais dos primeiros anos e da

representatividade relacionada aos grupos hegemônicos, a denominação pedra

e cal, demonstra a seletividade da imagem oficial que se pretendia criar do país,

pois ficaram de fora casas simples, objetos de uso cotidiano da população da ou

qualquer elemento referente ao habitante mais simples do campo e da cidade.

Em Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla do patrimônio

cultural (FONSECA: 2003), assinala que a expressão ‘patrimônio histórico e

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artístico’ evoca entre as pessoas uma imagem de ‘um conjunto de monumentos

que devemos preservar, ou porque constituem obras de arte excepcionais, ou

por terem sido palco de eventos marcantes’ (p. 57). Uma imagem que, segundo

Fonseca, está longe de refletir a diversidade, as tensões e os conflitos que

marcam a produção cultural do Brasil, mais nitidamente a atual, mas também a

do passado.

Citando como exemplo as imagens evocadas pela Praça XV, no centro do

Rio de Janeiro, a autora ressalta que o Paço Imperial e a Igreja do Carmo, antiga

catedral, não representam toda a pluralidade da capital fluminense. Evocando

as imagens do poder hegemônico representado pelo tanto pelo poder da família

real/imperial quanto da igreja católica, os edifícios não registram a presença dos

escravos, dos mercadores e de toda a sociedade complexa e multifacetada que

por ali circulava. Foram os estrangeiros que, sem o compromisso de promover

uma imagem ideal, em moldes europeus, registraram, em imagens, o que lhes

parecia peculiar, ‘e próprio daquelas terras que costumava “incluir” na paisagem

os “excluídos”, não apenas daqueles espaços que também ocupavam, mas da

memória coletiva” (p.57).

Normalmente destinados a funções educativas, burocráticas ou culturais,

os edifícios tombados são franqueados à população (caso da Casa de José de

Alencar) tornando-se parte da rotina da cidade ou do bairro. Locais de trabalho

e estudo ligados à educação, cultura ou segurança, esses lugares são o que o

historiador Pierre Nora chamou de ‘lugares de memória’. Criados para exaltar

figuras expoentes nacionais ou locais, para marcar fatos considerados

relevantes para a nação, os monumentos, podem ser reinterpretados por seus

usuários; aqueles que transitam ou trabalham em suas dependências esporádica

ou diariamente.

Alguns autores diferenciam memória e história definindo memória como

um fenômeno atual e inconsciente dela mesma. Poderosa e autoritária ou

absoluta, tem como principal forma de expressão a oralidade. Já a história é

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conceituada como uma representação do passado. É consciente, racional e

relativa se expressa através da escrita.

Jacques Le Goff afirma que memória e passado são objetos da história e

motores para seu desenvolvimento. Segundo este autor, a memória é

indispensável para a constituição da história oral e integra-se à história geral.

Pode ser não ser um dado preciso, mas possuir dados que, às vezes, o

documento escrito não tem. Se impõe como primordial para o estudo do tempo

presente e, através dela, podemos conhecer sonhos, anseios, crenças e

lembranças do passado de pessoas anônimas, simples, sem nenhum status

político ou econômico, mas que viveram os acontecimentos de sua época.

OS NARRADORES DA CASA DE JOSÉ DE ALENCAR

No filme Os narradores de Javé de 2003. A diretora Eliane Café conta a

história do Vale de Javé. Cidade fictícia, que será inundada por uma barragem,

Javé não conta com qualquer registro escrito ou iconográfico que façam

referência a fundação, fatos e personagens históricos da cidade. Com uma

população majoritariamente analfabeta, os habitantes são avisados que a única

chance de impedir a inundação e comprovar a importância histórica do

município.

Encontrar quem escrevesse o documento histórico tornou-se um

problema. A solução encontrada foi chamar o antigo carteiro da extinta agência

dos correios. O escolhido foi o inimigo número um da cidade, Antônio Biá. Na

tentativa de aumentar o fluxo de correspondências, evitando o fechamento da

agência e a consequente perda do emprego, Biá, escreveu cartas com conteúdo

difamatório a respeito dos moradores de Javé, para seus familiares, amigos e

conhecidos residentes em outras cidades. Criou uma verdadeira corrente de

fofocas e difamações que movimentaram a agência, mas não evitaram o

fechamento do posto.

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Com a incumbência de coletar as narrativas dos moradores para escrever

o livro histórico da cidade, Biá, conversou com cada um dos moradores e

percebeu as múltiplas narrativas acerca do mesmo fato. Depois de ouvir muitas

histórias e conhecer as fantasias e as memórias do povo de Javé, o ex-carteiro,

percebeu a dificuldade de colocar no papel as histórias do povo. Em uma

narrativa bem-humorada, o filme, mostra elementos como: a oposição entre

história e memória, heranças históricas, verdade e invenção, a formação cultural

do povo, a importância da oralidade na construção científica, a dimensão da

escrita e da fala, além do confronto entre o progresso e as tradições do vilarejo.

Histórias tão plurais e, às vezes, inventadas que revelavam a riqueza da

formação cultural do povo, mas que não contribuíram para a elaboração do

documento que poderia evitar que Javé fosse tragada pelo progresso. Sem

poder contar com outras fontes de pesquisa, Biá, não escreve o livro e a cidade

é inundada.

Segundo Maurice Halbwachs a história oral, cujas fontes são a memória

e a oralidade, é uma história do tempo presente, pois todo relato, mesmo que

faça referência ao passado é narrado a partir das memórias evocadas no tempo

presente. Assinala Halbwachs que, assim como qualquer documento, a fonte

oral é passível de manipulação e comporta lembranças, esquecimentos e

silêncios. Apesar de ser uma narrativa individual, expressa códigos, formas de

viver, pensar e agir do grupo ao qual pertence o narrador, expressando conceitos

e valores da memória coletiva.

Ao contrário do filme, a CJA, possui toda a documentação que

comprovam que o terreno e os imóveis nele existentes são propriedades da

União. Registrada em livro de tombo, a ‘casinha’ possui sua certidão oficial de

Patrimônio Público Federal e, nem ela nem os demais imóveis e objetos correm

riscos de desaparecer para dar lugar a uma barragem, qualquer outro

empreendimento ou ação considerados ameaçadores ao patrimônio.

Nossos narradores são alfabetizados e não coube a equipe de pesquisa

criar uma história ou um documento que provasse a importância da CJA. Os

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fatos narrados foram alvo de pesquisa prévia e de coleta de fontes escritas e

iconográficas, além de levantamentos em outros equipamentos como o Museu

de Arte da UFC e a hemeroteca da Biblioteca Dolor Barreira. Com o objetivo de

preencher as possíveis lacunas deixadas pela documentação escrita,

comparando, não apenas as fontes orais e as escritas, mas as cinco narrativas,

para corrigir possíveis enganos, resolvemos registrar esses depoimentos,

disponibilizando-os para futuras pesquisas.

No caso da Casa de José de Alencar, os 'narradores' são os cinco

servidores técnico administrativos mais antigos do equipamento. Uma memória

registrada a partir da identidade laboral, que não apenas ajuda na composição

de uma história patrimonial, mas a compreender relações institucionais; com a

chefia, os colegas e os usuários do equipamento. Permite, também perceber as

trajetórias de vida a partir da identidade 'servidor técnico administrativo' e

como as memórias laborais são permeadas de outras memórias e identidades:

familiares, afetivas, escolares, etc.

O primeiro servidor entrevistado foi José do Carmo Rodrigues. Nascido

em Beberibe no ano de 1956 'Zé do Carmo' ou 'Tio zé', ingressou na Casa de

José de Alencar em 1977, na direção de Francisco Paiva de Azevedo. É o mais

antigo em atividade.

Na tarde do dia 29 de junho de 2009. Nos reunimos, eu – Márcia Pereira

de Oliveira e os bolsistas: Atila Saraiva, Tales Maciel e Amanda Duarte, na

Biblioteca Braga Montenegro para conversar com Zé do Carmo. Durante

quarenta minutos, ele nos relatou sua chegada em Fortaleza e seu ingresso na

firma de limpeza terceirizada. Foi incorporado aos quadros da Universidade em

1983.

Apesar de trabalhar na zeladoria do prédio, Zé do Carmo é registrado

como jardineiro e relata que desempenhou outras atividades como: atendente e

cozinheiro no restaurante. Atualmente, além de cuidar do prédio, ele auxilia os

mediadores culturais no atendimento em dias de movimento mais intenso.

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Dono de uma memória prodigiosa, falante e extremamente simpático,

além de ótimo narrador, Zé do Carmo, falou sobre os eventos e as festas que

aconteceram na CJA, especialmente, as festas de São Gonçalo, ainda na gestão

de Francisco Paiva de Azevedo (Seu Paiva), as quartas culturais e as festas de

São João promovidas por Romeu Cysne Prado (Seu Romeu)

Segundo o servidor, a Casa ficava cheia de ônibus das agências de

viagens, que traziam turistas de outros estados. Época de intenso movimento, a

CJA, estava no roteiro oficial das agências e os eventos contavam com a

presença de artistas como Patativa do Assaré e Banda Cabaçal, além de

artesãos que vendiam suas produções: rendas, cerâmica, couro e outros

produtos apreciados pela indústria do turismo. Nos eventos também era possível

saborear o baião de dois, cuscuz, tapioca e outras iguarias da culinária cearense.

Na mesma biblioteca entrevistamos a servidora Vera Maria Barros da

Silva. Natural de Fortaleza, ingressou na CJA em 1980. Diarista, foi chamada

para fazer um ‘bico’ (extra) de uma semana na Casa de José de Alencar e

acabou contratada pela empresa terceirizada.

Desde 1983 é servidora técnica administrativa. Durante esse tempo

trabalhou no restaurante, foi responsável pela limpeza do equipamento e

assistência aos hóspedes (era comum a CJA hospedar professores, artistas e

grupos de participantes das atividades culturais e acadêmicas desenvolvidas na

Casa). Trabalhou nos encontros culturais e nas festas juninas. Ainda dentro de

suas funções, auxiliou no translado das peças do extinto IAUC e da Biblioteca

do Reitor Antônio Martins Filho.

Em sua fala, a servidora, destaca o viveiro de aves, as redes embaixo das

árvores, o açude, os móveis que ficavam na casinha e hoje estão na reserva e

as salas que foram mudadas, entre outros detalhes.

Indo além das funções exigidas pelo cargo, Vera Maria, foi um importante

apoio a partir de 2004, auxiliando na higienização, organização e

acondicionamento do acervo da reserva técnica e das áreas de exposição. Sua

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atuação foi de extrema importância, também, para a localização e organização

de documentos dispersos e outras informações ligadas ao mapeamento do

acervo.

Maria Elsanira Máximo de Oliveira foi entrevistada na reserva técnica na

tarde do dia 15 de maio de 2009. Ingressou na CJA em outubro de 1981, aos

vinte anos de idade. Aluna do Instituto de Educação, ingressou como bolsista,

sendo em seguida contratada por uma empresa terceirizada para trabalhar como

atendente de turismo. Atividade na qual permaneceu até o ano de 1997, quando

passou a ser secretária, cargo que ocupa até hoje.

A secretária relata que, assim como os demais servidores, ela atuava no

restaurante e em outras atividades durante os encontros culturais e nas festas

juninas. Nesses períodos era comum trabalhar na cozinha, no atendimento e na

venda de ingressos. Eventos promovidos na administração de Romeu Cysne

Prado (1987-1998), as festas e eventos culturais, tinham entrada paga, e eram

uma forma de angariar recursos para pequenos reparos e obras menos

complexas, como a construção do muro que hoje cerca a Casa de José de

Alencar. Serviam também, para a compra de insumos como papel, caneta e

outros materiais de uso cotidiano.

Elsanira fala com emoção da Casa: da tristeza nos momentos difíceis e a

alegria em ver a recuperação do equipamento. A emoção da servidora foi

registrada por uma repórter do Diário do Nordeste. Em 2006, durante uma

entrevista com a, então, diretora Angela Gutierrez, percebeu que a secretária

chorava de emoção por presenciar a restauração da casinha e a recuperação do

equipamento como um todo.

Ao perceber o choro da servidora, a repórter se interessou em saber o

porquê das lágrimas. Ao que Elsanira respondeu: “(...) eu quero primeiro que

valorize aqui. Porque sem isso aqui, eu não ‘taria’ aqui, na CJA se a Casa não

existisse” .

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O quarto servidor foi José Maria Silvestre Farias. O mais velho entre todos

os entrevistados e o único aposentado (2014), ‘Zé Maria’, nasceu na cidade de

Aracati em janeiro de 1944. Único a escolher seu local de entrevista (todos

puderam escolher, mas apenas Zé Maria o fez), Zé Maria foi entrevistado em 29

de maio de 2009. Contou ter ido morar em Messejana aos oito anos de idade.

Residindo próximo à ‘casinha’ e nos arredores do que viria a ser o equipamento

cultural Casa de José de Alencar, Zé Maria, conheceu ocupantes do terreno e

viu as paredes do engenho ainda de pé.

Falou da vida no interior, da mudança para a cidade e seu cotidiano em

Messejana. Relatou ter trabalhado na construção da sede administrativa durante

o ano de 1966. Em 1983, trabalhou por seis meses em uma firma terceirizada

que prestava serviço para a Universidade. Levado por um primo ele foi

contratado como jardineiro, cargo que ocupou até se aposentar.

A narrativa de Zé Maria extrapolou os limites espaço/tempo. Sem

obedecer aos parâmetros sugeridos (o tempo de trabalho e o espaço CJA), o

servidor, falou das relações com o local, os colegas de trabalho e a chefia.

Estendeu sua narrativa até o Sr. Antônio de Barros e a irmã de José de Alencar

e descreveu lojas e casas de show existentes nos arredores da Casa.

Único trabalhador da parte externa a ser entrevistado, Zé Maria,

demonstrou uma relação estreita com a fauna e a flora existentes no Alagadiço

Novo. As perguntas a ele dirigidas foram reestruturadas no momento da

entrevista, pois mostrava-se mais à vontade em descrever o plantas e animais

do que eventos.

Descreveu o Bosque da Jurema e as plantas nela existentes, assim como

os demais vegetais dispersos pelo Sítio. Demonstrou conhecer as ervas,

narrando quais as venenosas e quais podem ser usadas como remédio. Muito à

vontade, falou sobre as frutas cobras, teiús e guaxinins que habitam a área.

Em todas as entrevistas solicitamos aos colegas que nos dissessem qual

seu local favorito. O único a indicar esse lugar foi José Maria. Ao ser questionado

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ele nos pediu que o seguíssemos e nos levou a um passeio entre as plantas, nos

mostrou e descreveu cada uma das árvores e cada uma das plantas rasteiras.

Mais do que informar, José Maria, nos fez lembrar que patrimônio não é apenas

o que está dentro da sede administrativa, mas o que está fora.

Quinta e última entrevistada, Tereza Lúcia de Oliveira Maia, nasceu em

Fortaleza no ano de 1965 e, assim como sua família reside em Messejana. Por

causa de problemas com a qualidade do som e da imagem, tivemos que gravar

dois depoimentos de Tereza.

No dia 12 de junho de 2009, gravamos o primeiro CD e um mês depois

gravamos o segundo. As duas entrevistas aconteceram na parte da tarde. Para

conversar com Tereza, escolhemos a área da entrada da sede administrativa.

Nas imagens conseguimos captar a casinha e parte da área verde.

Definindo a Casa como o local que guarda toda sua vida, relata que o avô

dizia ter conhecido D. Carolina Joaquina ou D. Rolinha e, que eram comuns, as

broncas da irmã de José de Alencar com as crianças que entravam na

propriedade para se banhar em um córrego. Relatos que Tereza nunca pode

comprovar, mas que passou a infância inteira ouvindo e mesmo inventados,

demonstram a relação estreita e familiar da depoente com o equipamento.

Tereza contou que chegou ao Alagadiço Novo em 1981 como bolsista,

foi contratada por uma firma terceirizada e foi incorporada ao serviço público

Federal em 1983. Assim como Maria Elsanira, era aluna do segundo grau (atual

ensino médio) do Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará (CEFET)

e, ao ingressar fez um curso sobre conservação de acervos com a professora e

conservadora do IAUC, Valdelice Carneiro Girão e com o museólogo e professor

Alfredo Dunas de Sá Pessoa.

Trabalhou no museu com Valdelice até 1986, e lá verificava a existência

de fungos e parasitas nas peças. Cuidou da exposição e auxiliou pesquisador

Raul Lody que, no ano de 1983, pesquisou o acervo e elaborou o catálogo Arthur

Ramos, o mais recente entre todos os catálogos até o momento.

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Sua atuação não ficou restrita ao museu, pois Tereza, também, trabalhou

com a identificação e catalogação dos livros da Biblioteca Braga Montenegro.

Segundo ela, os livros recebiam os carimbos da Universidade, sendo

incorporados ao acervo do equipamento.

Destaca a mudança de horário implementada por Romeu Cysne Prado,

pois com o antecessor, Wilson Fernandes, o horário de funcionamento da Casa

era o mesmo de outros museus: de terça a domingo em dois turnos. Com Cysne

Prado, passou a ser de segunda a segunda. Aos fins de semana havia uma

escala diferenciada, os servidores se alternavam aos sábados e a servidora Ana

Maria trabalhava aos domingos.

Pedagoga, trabalha atualmente na mediação cultural e, unindo a teoria à

prática, Tereza, ressalta o ecletismo do público, o desafio de lidar com essas

diferenças e destaca a necessidade de treinamento e da elaboração de ações

educativas que possam contemplar, especialmente, o público escolar.

Na dedada de 1990, Tereza, foi responsável pela conservação do prédio

e ressalta as peculiaridades da manutenção de um monumento histórico ligado

a uma Universidade pública. Segundo Tereza, essa não é uma tarefa simples

como a manutenção de uma residência ou mesmo de uma empresa privada.

Uma instituição pública está ligada a uma estrutura complexa. Obras,

consertos e aquisição de materiais estão sujeitos aos trâmites burocráticos do

poder público. Uma manutenção adequada do equipamento não depende

apenas da vontade ou da capacidade de seus gestores imediatos ou servidores,

mas da administração superior e, principalmente, das políticas para a educação

e a cultura. A servidora relata que entre os anos de 1996 e 2004, a CJA, viveu

um período de esquecimento. Assinala que: “(...) todo o nosso trabalho foi por

água abaixo, foi quebrando e não foi substituindo”.

A mudança das políticas federais em relação às universidades, trouxeram

novos rumos ao equipamento. De 2004 para cá, a sede administrativa foi

recuperada, a casinha foi restaurada, equipes de manutenção trabalham na

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poda de árvores e na retirada do mato e ervas daninhas e o restaurante (fechado

por mais de dez anos) voltou a funcionar.

Ao fim da entrevista perguntamos para Tereza o que a CJA significa para

ela. Ela respondeu que não é apenas o trabalho dela, mas a vida toda dela está

aqui dentro. Diz Tereza: “(...) já tô aqui desde os 18 anos. Acho que mesmo

depois de me aposentar, eu vou procurar alguma coisa por aqui”

Dizendo sentir-se em casa, Tereza ressalta:

“(...), quando venho pra cá eu não posso dizer que vou trabalhar, eu venho pra casa também, porque eu curto muito aqui. Eu gosto, eu quero que isso aqui vá muito à frente. Às vezes eu me irrito com o descaso de quem pode fazer alguma coisa e não faz” (OLIVEIRA, 2009, p. 15).

Continua a servidora:

“Eu gosto dessa Casa. Gosto de fazer com que ela continue assim. Quero ajudar, mas meu objetivo é esse. É que a Casa continue exercendo o papel dela, (...), garantir que as futuras gerações conheçam José de Alencar” (OLIVEIRA, 2009, p. 15).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um artigo é muito pouco para descrever a riqueza de detalhes de cada

entrevista. Mais do que mapear o patrimônio, tivemos a oportunidade de

conhecer cada servidor, através dos olhares que cada um tem do local de

trabalho e das atividades que desempenha. É importante ressaltar que, ao

coletar os depoimentos conseguimos observar como o trabalhador se vê dentro

do equipamento, qual o grau de satisfação ou insatisfação de cada um, e os

problemas e soluções encontrados em cada momento. Acima de tudo foi tocante

perceber a emoção de cada colega ao relatar sua trajetória e, notadamente, ao

definir o que a casa significa para eles.

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As definições de Tereza estão transcritas acima. Assim como a mediadora

cultural, os demais entrevistados, definem o que a CJA representa. Uma

definição muito parecida com a de Tereza é a de Maria Elsanira, para ela é

“tudo”, além do lugar onde trabalha e no qual pretende permanecer após a

aposentadoria, é o lugar em que conheceu a literatura alencarina e escritores

como Jorge Amado e Rachel de Queiróz. Para o simpático, Zé do Carmo, é o

local onde ele fez e faz muitas amizades. O jardineiro e conhecedor de plantas,

Zé Maria define como: “lugar que a gente chega e não fica preso, apertado” e

para a mãe de família, Vera Maria, é lugar no qual ela chegou e conseguiu criar

seus cinco filhos.

É nossa intenção continuar a coletar depoimentos, não apenas dos

servidores ativos, mas dos inativos, além dos ex-diretores. Apesar de já termos

coletado depoimentos de quatro dos ex-diretores é nossa meta fazer um trabalho

mais apurado, com equipamentos mais sofisticados e com uma produção mais

adequada. No entanto, o trabalho realizado até agora, foi proveitoso e um

importante auxílio para a pesquisa.

A pesquisa iniciada com o intuito de coletar informações acerca da Casa

de José de Alencar e preencher possíveis lacunas deixadas pela documentação

escrita, foi muito além das expectativas iniciais. As coletas de depoimentos

auxiliaram na elaboração de trabalhos acadêmicos e foi tema da Semana de

Museus.

As entrevistas também permitem observar as múltiplas relações com o

patrimônio edificado. Ajudando a perceber que, patrimônio, não é somente o que

está oficialmente instituído (caso da CJA), mas os significados dados pela

comunidade e por todos os que frequentam o local.

No caso da CJA, nota-se que os servidores têm uma relação de carinho

e cuidado com o equipamento. Para eles, não apenas o edifício, mas plantas,

animais, todo o conjunto do entorno do Alagadiço Novo e, mesmo a avenida, as

construções externas e toda a vida que transita nos arredores do Sítio, fazem

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parte de um conjunto que ajudam a formar aquilo que chamamos de Patrimônio

Histórico.

Fontes

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GIRÃO, Valdelice Carneiro. Relatório Geral do Museu Antropológico do

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Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1961.

_____. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da

Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1963.

_____. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da

Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1964.

_____. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da

Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1965.

_____. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da

Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1966.

_____. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da

Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1967.

_____. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da

Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1968.

_____. Relatório Geral do Museu da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia

da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará.

1969.

______. Relatório Geral do Museu da Faculdade de Ciências Sociais da

Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará.

1971.

_____. Relatório Geral do Museu da Faculdade de Ciências Sociais da

Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará.

1973.

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