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Faculda Introdução ao d Disse Ori ade de Letras da Universidade de Lisboa o Estudo Genético de Duplo Pa de Teixeira de Pascoaes ertação de Mestrado em Crítica Textual Patrícia Baltazar da Silva Franco ientadora: Prof.ª Dra. Cristina Sobral 2015 asseio,

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Faculdade de Letras

Introdução ao Estudo G

de Teixeira de Pascoaes

Dissertação de

Orientadora:

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Introdução ao Estudo Genético de Duplo Passeio

de Teixeira de Pascoaes

issertação de Mestrado em Crítica Textual

Patrícia Baltazar da Silva Franco

Orientadora: Prof.ª Dra. Cristina Sobral

2015

Duplo Passeio,

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Patrícia Baltazar da Silva Franco

Introdução ao Estudo Genético de Duplo Passeio, de Teixeira de Pascoaes

Tese apresentada à Faculdade de

Letras da Universidade de Lisboa

para obtenção do título de Mestre

em Crítica Textual

Área de Concentração:

Filologia e Língua Portuguesa

Orientadora:

Prof.ª Dra. Cristina Sobral

Lisboa

2015

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Resumo

Teixeira de Pascoaes (pseudónimo de Joaquim Teixeira de Vasconcelos) é um

escritor com um riquíssimo espólio literário e cuja obra, sobretudo a prosa, que

corresponde à segunda e última fase da sua carreira, tem permanecido pouco

estudada em Portugal, apesar de ter tido uma boa recepção fora do país. O trabalho

aqui apresentado tem como objectivo ser uma introdução ao estudo do seu processo

de escrita a partir dos materiais do seu espólio literário, pela primeira vez utilizado

para uma abordagem genética.

Partindo de uma descrição geral do espólio, constitui-se o dossier genético da

narrativa Duplo Passeio e procede-se à descrição material (localização e história,

suporte, escrita) dos seus quatro testemunhos manuscritos, um dos quais, incompleto,

é aqui identificado pela primeira vez. Estabelece-se fundamentadamente a ordenação

cronológica dos testemunhos e apresenta-se a edição genética de dois deles.

Contribui-se para o conhecimento da génese e da recepção desta obra com recurso à

correspondência pessoal do autor, nomeadamente com representantes de algumas

casas editoras. São apurados ainda novos factos relativos à tradução alemã do texto e

às relações do autor com o seu tradutor e amigo, Albert Thelen, em quem era

depositada bastante confiança e dada grande liberdade no trabalho de tradução.

Analisam-se alguns aspectos do processo de escrita de Pascoaes, nomeadamente

a evolução do título de Duplo Passeio e a génese do passo central da narrativa, o Cristo

de Travassos, no qual o encontro com uma criança está na origem de uma revelação

religiosa para Teixeira de Pascoaes. Demonstra-se que escrevia e reescrevia as suas

obras em busca da palavra ou expressão ideal, mas sem alterar a estrutura narrativa, e

verifica-se que o processo criativo levava, por vezes, ao aproveitamento de segmentos

de uma obra noutra, como acontece entre Duplo Passeio e a biografia O Penitente

(Camilo Castelo Branco), em que ocorre bifurcação genética.

Palavras-chave: Teixeira de Pascoaes, Duplo Passeio, Crítica Textual, edição genética,

dossier genético

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Abstract

Teixeira de Pascoaes (pseudonym of Joaquim Teixeira de Vasconcelos) is a writer

with an extremely rich literary estate. His work, particularly the prose, which

corresponds to the second and last phase of his career, has been little studied in

Portugal, despite having had a good reception abroad. The work here presented

intends to be an introduction to the study of his writing process based on his literary

estate, for the first time used in a genetical approach.

Starting from a general description of the literary estate, the genetic dossier of

the novel Duplo Passeio is constituted and the four handwritten testimonies, one of

which, incomplete, is for the first time identified here, are materially described

(localization, history, material support, handwriting). The chronological order of the

testimonies is established and the genetic edition of two of them is given as well.

Resorting to the author's personal correspondence, for example with the

representatives of some publishing houses, it contributes to the knowledge of the

genesis and the reception of the novel. In addition, new facts are determined

concerning the German translation of the text and the author's relationship with his

translator and friend, Albert Thelen, in whom Pascoaes deposited quite confidence,

giving him great liberties in the translation work.

Some aspects of the writing process of Teixeira de Pascoaes are analised, namely

the evolution of the title of Duplo Passeio and the genesis of the central episode of the

novel, the Travassos Christ, in which the encounter with a child contributes to Teixeira

de Pascoaes religious revelation. It is demonstrated that he wrote and rewrote his

works in search of the ideal word or expression, but without changing the narrative

structure. More: the creative process took him sometimes to use segments of a work

in another, as between the novel Duplo Passeio and the biography O Penitente (Camilo

Castelo Branco), whose genetic process is interconnected.

Key Words: Teixeira de Pascoaes, Duplo Passeio, Textual Criticism, genetic edition,

genetic dossier

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Índice

Introdução ................................................................................................................... 6

1. O Espólio de Teixeira de Pascoaes .......................................................................... 9

2. A Narrativa Duplo Passeio ....................................................................................... 12

2.1. Produção, Publicação e Recepção................................................................... 12

2.2. Tradução ......................................................................................................... 25

3. Os Manuscritos: Descrição Material ....................................................................... 32

3.1. Manuscrito A ................................................................................................... 33

3.1.1. Localização e História .............................................................................. 33

3.1.2. Suporte .................................................................................................... 34

3.1.2.1. Acidentes do Suporte ..................................................................... 35

3.1.3. Escrita ...................................................................................................... 35

3.2. Manuscrito B ................................................................................................... 36

3.2.1. Localização e História .............................................................................. 36

3.2.2. Suporte .................................................................................................... 37

3.2.2.1. Acidentes do Suporte ..................................................................... 38

3.2.3. Escrita ...................................................................................................... 38

3.2.4. Folha Solta Junto ao Manuscrito B ......................................................... 40

3.3. Manuscrito C ................................................................................................... 42

3.3.1. Localização e História .............................................................................. 42

3.3.2. Suporte .................................................................................................... 43

3.3.2.1. Acidentes do Suporte ..................................................................... 44

3.3.3. Escrita ...................................................................................................... 44

3.4. Manuscrito D ................................................................................................... 51

3.4.1. Localização e história .............................................................................. 51

3.4.2. Suporte .................................................................................................... 52

3.4.2.1. Acidentes do Suporte ..................................................................... 52

3.4.3. Escrita ...................................................................................................... 52

4. Seriação dos Testemunhos ...................................................................................... 54

5. Questões de Génese ............................................................................................... 58

5.1. O Título ............................................................................................................ 58

5.2. Bifurcação Genética ........................................................................................ 60

5.3. Evolução Entre Estados Genéticos .................................................................. 72

5.3.1. A Génese do Cristo de Travassos ............................................................ 76

Conclusão .................................................................................................................... 86

Bibliografia .................................................................................................................. 87

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Introdução

Entrei pela primeira vez em contacto com Teixeira de Pascoaes há pouco tempo,

através do manuscrito de Duplo Passeio que se encontra na Biblioteca Nacional (BN).

Chamou-me a atenção o facto de ser muito rico em emendas, o que o torna à partida

muito interessante para um estudo genético. Considerando a Crítica Genética como

uma área da Crítica Textual, na qual esta dissertação se inscreve, proponho-me aqui a

fazer a introdução ao estudo da génese de Duplo Passeio.

Para tal, começarei por fazer a constituição do dossier genético. Dado este

conceito não ser pacífico, importa esclarecer qual o seu significado nesta dissertação.

Segundo Pierre-Marc de Biasi (2011: 67-68), dossier genético é o conjunto dos

documentos e manuscritos relacionados com a escrita de uma determinada obra

(planos, cenários, apontamentos, cadernos, esboços, desenhos, notas de leitura,

marginália, fragmentos de redacções anteriores, notas de documentação, rascunhos,

cópias, provas corrigidas, etc.). Biasi considera que o dossier genético é um conjunto

compacto que importa organizar criticamente de forma a obter um conjunto

estruturado, a que ele chama ante-texto. Para Grésillon (1994), no entanto, dossier

genético e ante-texto são sinónimos. O termo ante-texto (avant-texte) foi proposto e

definido por Jean Bellemin-Noël (1972: 15):

l'ensemble constitué par les brouillons, les manuscrits, les épreuves, les

« variantes », vu sous l'angle de ce qui précède matériellement un ouvrage

quand celui-ci est traité comme un texte, et qui peut faire système avec lui.

Grésillon (1994: 109), não colocando de parte este termo, prefere antes dossier

genético por considerá-lo mais neutro, na medida em que ante-texto nos remete

imediatamente para a noção de texto, e a crítica genética, tal como esta autora a

entende e descreve, visa essencialmente, não o texto, não o resultado final, mas o

processo da escrita. Dossier genético é o conjunto dos documentos escritos que

testemunham a elaboração progressiva do texto (Lebrave e Grésillon, 2009), é o

conjunto de todos os testemunhos genéticos conservados de um projecto de escrita

ou de uma obra, classificados em função da sua cronologia de etapas sucessivas

(Grésillon, 1994: 242).

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Concordo com Grésillon. Não vejo necessidade de fazer, como Biasi, uma

distinção entre ante-texto e dossier genético. Considerando-os como sinónimos,

prefiro, pelas mesmas razões dadas por Grésillon, o termo dossier genético, pelo que o

utilizarei ao longo da dissertação.

A constituição do dossier genético é a primeira fase de todo o estudo genético,

na medida em que define a cronologia dos vários testemunhos genéticos, seriando-os.

Procurei ainda obter informação de génese externa, nomeadamente através da

correspondência de Pascoaes. Segundo Biasi (2011: 67-68), o dossier genético pode ser

enriquecido por documentos como a biblioteca pessoal do escritor, cartas recebidas,

contratos de edição, actas ou documentos oficiais, etc. Importava tentar perceber qual

o contexto da redacção de Duplo Passeio. Estes elementos, bem como a exogénese,

complementam o dossier genético e informam-nos acerca das condições externas nos

quais se situa uma génese (Grésillon, 1994: 25). A exogénese designa todo o processo

de escrita consagrado a um trabalho de pesquisa, de selecção e de integração que se

concentra em informações de uma fonte externa para a escrita. Autógrafo ou não,

qualquer cópia ou nota de um documento, todo o material citado ou intertextual

pertence à exogénese, como por exemplo recortes de jornais, fragmentos de textos

impressos, notas de leitura e cartas de amigos fornecendo informações (Biasi, 2007).

Ao longo desta dissertação apresentarei alguns destes elementos.

O estudo genético deve prosseguir com a análise do modo como o texto se vai

alterando ao longo do processo de escrita. Para essa análise, é fundamental a edição

genética dos testemunhos. Uma edição deste género é muito útil, na medida em que

apresenta por ordem cronológica um determinado processo de escrita, que, como já

foi referido, é a principal finalidade da crítica genética. Até que ponto, por exemplo,

existem emendas sucessivas num determinado ponto da narrativa? Fazer uma edição

genética implica a decifração da escrita sequencial do texto e a sua exposição de uma

forma mais acessível, legível e facilmente estudável.

Uma edição vertical visa reconstituir o processo de escrita de uma ponta à outra

do itinerário genético, através da publicação de todos os estágios da génese (Biasi,

2011: 170-171). Para esta obra, é preferível optar-se por uma edição horizontal. Neste

tipo de edição, publica-se apenas os documentos que correspondem a um momento

determinado da génese de uma obra. Uma edição horizontal inclui sempre uma parte

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mais ou menos importante de verticalidade. A camada de escrita da qual se ocupa a

edição horizontal possui as suas próprias temporalidade e espessura: não foi escrita de

forma instantânea, possuindo, portanto, a sua própria história genética (Biasi, 2011:

156-158). As características do dossier genético de Duplo Passeio não permitem fazer

uma edição vertical dos testemunhos. Por exemplo, há parágrafos inteiros que são

completamente reestruturados em apenas um dos testemunhos, o que torna a edição

horizontal — e, consequentemente, a sua leitura — suficientemente complexa. A

edição vertical, juntando todas as variantes ocorridas no processo de escrita, seria

pouco eficiente, na medida em que o seu resultado seria muito denso e ilegível.

Em casos como Duplo Passeio, o ideal é fazer-se a edição horizontal de todos os

testemunhos. Fazer a edição de todos os manuscritos, tendo em conta a sua

dimensão, não seria exequível numa dissertação de mestrado. Tendo conhecimento da

existência de três manuscritos da obra, optei por editar o segundo mais antigo, dado o

mais antigo dos três não se encontrar completo. Entretanto pude identificar quatro

folhas de um quarto manuscrito, até agora desconhecido e aparentemente anterior a

todos os outros. Porque se trata apenas de um fragmento, e pela novidade da sua

identificação, será também editado. Procederei, portanto, à edição do primeiro e do

terceiro manuscritos.

Sem a edição genética de todos os testemunhos e dada a quantidade de

emendas em cada um deles, não será possível fazer um estudo muito aprofundado,

que envolva, por exemplo, a classificação de todas as variantes de todos os

manuscritos. Em qualquer estudo focado num determinado objecto, é esse objecto

que o guia. É o que acontece num estudo genético, que inevitavelmente é orientado

pelos dados que os testemunhos genéticos oferecem. Abdico, portanto,

necessariamente, de um estudo genético com ambições de exaustividade.

Proponho-me, porém, analisar verticalmente alguns passos seleccionados da narrativa

e, para isso, editarei também o texto que lhes corresponde nos manuscritos segundo e

quarto. Pretendo, assim, revelar a riqueza do dossier genético de Duplo Passeio,

deixando para estudos futuros o muito que ainda fica por estudar.

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1. O Espólio de Teixeira de Pascoaes

O núcleo principal do espólio de Teixeira de Pascoaes, que inclui numerosos

autógrafos e correspondência, a biblioteca pessoal do escritor, pinturas e peças de

mobiliário desenhadas por Pascoaes, foi adquirido pelo município de Amarante à

família do escritor a 29 de Abril de 2013 (Câmara Municipal de Amarante, Arquivo de

Notícias, 07-05-13). O Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea (ACPC) recebeu

em depósito e inventariou grande parte deste espólio (D3, 59 caixas, 5050

documentos) em duas fases, por acordo assinado entre a Biblioteca Nacional e Maria

Amélia Teixeira de Vasconcelos, representante dos herdeiros. Na primeira fase

(Novembro de 1987 a 18 de Dezembro de 1990) esteve depositada a correspondência,

consultável na BN em 21 bobines de microfilmes, e na segunda fase (30 de Novembro

de 1994 a Fevereiro de 1998) foi a vez dos autógrafos e do resto da correspondência,

consultáveis em 39 bobines de microfilmes (Duarte e Oliveira, 2007: 129-130).

Na Biblioteca Nacional encontram-se o manuscrito Um Passeio (F. 3597), doado

em 1982 por Beatrice Thelen, a quem fora oferecido pelo escritor em Abril de 1942, e

um conjunto de cartas trocadas entre Teixeira de Pascoaes e Albert Vigoleis Thelen e

entre este e familiares do primeiro (F. 6190), doadas por Olívio Caeiro em Fevereiro de

1992. Estes elementos faziam parte da colecção de manuscritos avulsos do ACPC e

integram desde 1998 o acervo Esp. N63, ocupando uma caixa (Duarte e Oliveira,

2007: 115).

A Biblioteca Pública Municipal do Porto possui vários manuscritos e

correspondência do autor. Por se encontrarem dispersos por vários acervos internos,

esta instituição optou por reunir e divulgar publicamente a totalidade dos

documentos, nomeadamente através da sua digitalização e disponibilização na

Internet (BPMP, 2011).

A afilhada de Teixeira de Pascoaes, Maria Adelaide Barros Teixeira, tem em sua

posse alguns manuscritos, alguns deles inéditos. A este respeito consta o seguinte no

testamento do escritor: «Lega ainda à mesma sua afilhada Adelaide as seguintes obras,

dele testador: Idílio Pastoril, Dois Jornalistas, O anjo e a Bruxa, O Senhor Fulano, Uma

Fábula e Cartas a uma Poetisa, pois deve ao amor que lhe consagra os últimos

lampejos da sua inspiração.» Alguns destes manuscritos estariam até há pouco tempo

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na posse da família do escritor, nomeadamente cinco versões de Cartas a Uma Poetisa

e o manuscrito de Idílio Pastoril, junto ao qual se encontra outro texto, Cartas a Um

Poeta (Queirós, 2015). Por este motivo, os microfilmes destes manuscritos podem ser

consultados na BN, que os tratou documentalmente, como já foi referido.

António Cândido Franco (2006: 77) escreveu o seguinte acerca de Pascoaes:

[...] autor que a si próprio se chamou de maníaco do verbo e foi emendador e

rascunhador impenitente.

Isto já acontecia na juventude do escritor:

[...] o conhecimento dos textos do jovem Pascoaes mostra-nos um autor

radicalmente preocupado com a elaboração verbal, e com a reescrita constante

dos seus textos e, o que é mais, mesmo já depois de dados à estampa,

perfeitamente indiferente à sacralidade e à intangibilidade do que já foi escrito e

publicado. (Franco, 1996: 76)

Os parágrafos seguintes contêm informação importante acerca do processo de

criação de Pascoaes:

[...] atendendo a que o tecido foi entrançado com fios que passam

indiscriminadamente de livro para livro, como facilmente se vê com o poema que

começa por ser publicado com capa dura e acabou depois por integrar

sucessivamente o miolo de duas colectâneas líricas de Pascoaes —, um excurso

sobre o Sempre acaba inevitavelmente também por ser, dado que o texto aí

continua, um itinerário de leitura de livros como À minha alma ou Terra Proibida.

A originalidade em Pascoaes, se retivermos o caso das transformações de

um poema como aquele que foi publicado nos primeiros meses de 1898, é

nitidamente um processo de assimilação de textos anteriores, no caso

homo-autorais, mas que noutros casos podem até ser hetero-autorais, textos

esses que vão sendo sugados e absorvidos para camadas sempre mais profundas,

estratos depositados no fundo intestinal do poema, que só afloram à superfície de

forma latente, afloramentos cujos indícios ou vestígios já desapareceram, e só

depõem a favor do intenso e continuado labor do Poeta que parece ter amassado

as palavras com o mesmo cuidado, o mesmo esforço e até o mesmo amor com

que se amassa, ou amassou, manualmente o pão[...]

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[...] Desenterrar os palimpsestos que Pascoaes foi laboriosamente deixando

para trás do seu torno, enterrando-os debaixo do que nos dava a ler, fazendo

deles a matéria gasta e negra do poema mas também o seu húmus, a turfa em

que secretamente eles deitavam a raiz, é descer à selva escura das versões, mina

sem luz e raramente visitada, cujos corredores sinuosos e profundos, elásticos

como os intestinos da terra, se transformam rapidamente em labirintos de ecos.

Chegar finalmente ao fundo da mina[...] é chegar ao hipograma ou ao

arquigrama — uma matriz que é simultaneamente esqueleto exumado, estrutura

projectual e residual, e fantasma de névoa —, a partir do qual o texto se foi

convertendo no que é, organismo complexamente activo, máquina viva e arfante.

(Franco, 1996: 104-106)

Estas palavras de António Cândido Franco são esclarecedoras, porque partem de

estudos de Jacinto do Prado Coelho (na edição das Obras Completas de Teixeira de

Pascoaes) e de Ilídio Sardoeira (Pascoaes um Poeta de Sempre, 1951) que cruzam

diferentes edições e mesmo obras diferentes.

Uma simples vista de olhos pelo inventário do espólio feito na BN ajuda-nos a

perceber que Pascoaes reescrevia consecutivas vezes as suas obras. Só para dar alguns

exemplos, de Marânus existem oito manuscritos (dois dos quais incompletos e um

deles contendo a tradução para francês feita pelo autor, incompleta), duas provas

tipográficas da primeira edição e dois exemplares da segunda edição com emendas

autógrafas; d'O Bailado existem seis manuscritos (dois deles contendo apenas o

prólogo), um exemplar da primeira edição com emendas e folhas coladas e dois

exemplares da segunda edição com emendas autógrafas; d'O Empecido e do Livro de

Memórias existem cinco manuscritos; de São Paulo existem seis manuscritos (um com

algumas páginas dactiloescritas e outro simultaneamente autógrafo e alógrafo); e de

São Jerónimo e a Trovoada existem oito manuscritos (um contendo apenas o prefácio,

e três contendo também páginas dactilografadas), três dos quais contêm algumas

páginas escritas por mão alógrafa. Todos estes testemunhos estão bastante

emendados. É notório que Pascoaes dedicava muito tempo a aperfeiçoar os seus

textos, mesmo após serem impressos.

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Valerá certamente a pena fazer-se estudos genéticos de algumas destas obras.

Pascoaes (1985: 106), em O Penitente, escreveu o seguinte:

Uma obra a realizar absorve-nos, por completo. Entregamo-nos de todo à geração

dum filho, e o resto do mundo não existe.

O escritor, que não tinha filhos, via na sua obra o seu principal legado.

Encontra-se disponível, portanto, um espólio rico, cujo estudo genético, nunca

empreendido, pode esclarecer a evolução do pensamento e o processo de construção

literária de um autor que tem despertado o interesse, quer pelo valor poético da sua

obra, quer pela sua dimensão filosófica.

2. A Narrativa Duplo Passeio

2.1. Produção, Publicação e Recepção

Teixeira de Pascoaes escreveu Duplo Passeio na sequência de uma viagem de

carro de Amarante a Montalegre com os amigos Ângelo César e António Duarte. O ano

que consta na primeira edição é 1937: «Assim me aconteceu, num dia de julho de

1937, às seis horas da manhã» (pág. 13). No entanto, nos dois testemunhos anteriores,

o ano indicado é, ora 1939, ora 1935. Podemos concluir que o ano que o texto da 1ª

edição atribui ao passeio, 1937, está correcto e que os outros anos teriam sido escritos

de memória. O mês indicado no Manuscrito B é Agosto (fl. 2), que no manuscrito

seguinte é cancelado e substituído na sobrelinha por Julho (fl. 3), e assim passa a

constar em todos os estados genéticos posteriores. Numa carta1 a Ângelo César que

faz parte do espólio de avulsos da BN, Pascoaes diz o seguinte2:

07-09-1937

Escrevo-lhe ainda estonteado pelo fantasma do Gerês a contemplar-nos

pelo olho rubro do sol. Mas este passeio será o assunto duma longa epístola que

tenciono escrever-lhe.

1 Cota A/5410.

2 Ao longo desta dissertação a grafia será actualizada nas transcrições, excepto quando fazem parte da

descrição material dos testemunhos ou quando pretendem demonstrar a génese da novela.

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Agora, é para lhe agradecer o seu interesse pela minha obra ou pelo meu

filho.

Novamente a identificação da obra com um filho. A correspondência que faz

parte deste espólio não inclui mais nenhuma carta a respeito deste assunto, pelo que

ficamos sem saber se Pascoaes chegou a escrever a longa epístola, como tencionava. O

que sabemos é que este passeio serviu de inspiração à narrativa que viria a ser

publicada sob o título Duplo Passeio. Como não podia deixar de ser, o escritor enviou

um exemplar ao seu amigo, como atesta a carta de Ângelo César datada de 1 de Abril

de 19423:

Bem-haja pelo envio do seu Duplo Passeio.

Estou a lê-lo sofregamente. Na estrada, fui eu quem levou o Pascoaes,

levantando apenas a pobre e terrena poeira dos caminhos.

Agora, é o Pascoaes quem me leva a mim, rasando as estrelas,

envolvendo-me, em êxtase de espírito, nas divinas poeiras do céu...

Estou ainda em Travassos; contraria-me a lentidão dos olhos, pois toda a

minha ânsia é a de correr o livro até ao fim, sem demoras. Para o ler, tive de

interromper a narrativa homérica das atribulações de Ulisses. Só um livro como o

Duplo Passeio, em carne viva e em espírito vivo, poderia diluir na minha

lembrança as saudades da Odisseia... Grande livro!

Louvado seja Deus por se deixar assim entrever no milagre das palavras que

são o barro de que se faz aquela verdade que é (segundo o Pascoaes) calor —

aquecendo e luz — alumiando.

Para o elogio do... Verbo?!

Estas palavras de Ângelo César comprovam que Pascoaes se inspirou num

episódio real para escrever este livro, e que foi ele que conduziu o automóvel em que

seguiam.

Pascoaes tencionava publicar esta narrativa na Livraria Tavares Martins, que já

editara algumas das suas obras, São Paulo (1934) e Napoleão (1940). Uma carta4 desta

editora, assinada por Américo Martins, explica o porquê de isto não ter acontecido:

3 Cota D3/64, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 1.

4 Cota D3/4677, consultável na BN em microfilme: F. R. 133, bobine 2.

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29-10-1941

Fiz hoje as contas da edição de 1000 exemplares da obra Duplo Passeio.

Fiquei aterrado!

O livro custar-nos-ia 7034$00 e os 900 exemplares para a venda

render-nos-iam 7560$00.

Junto lhe remeto o orçamento da tipografia ao qual se deverá juntar:

Direitos de Autor ........................................... 1200$00

Anúncios nos Jornais (o mínimo) .................. 1000$00

Como vê, o negócio é impraticável. Como o meu Amigo vem na 2.ª feira ao

Porto falaremos sobre o assunto.

Esta resposta da editora Livraria Tavares Martins demonstra que o livro daria

prejuízo, pelo que não podia publicá-lo, o que terá levado Pascoaes a optar por fazer

uma edição custeada por si. Poucos dias depois, inicia as negociações com António de

Sousa, da Tipografia Civilização, do Porto, como podemos verificar pela

correspondência recebida pelo escritor que foi adquirida pela Câmara Municipal de

Amarante:

8-11-19415

Comunico a V. Ex.ª que na próxima segunda-feira envio as provas do livro

— 1.ª folha — e o mais que se puder, além da folha.

Por estar a terminar a impressão de um outro romance, não pude ser mais

breve, do que peço desculpa a V. Ex.ª Logo que termine este livro, darei todo o

impulso ao livro de V. Ex.ª

18-11-19416

Junto encontrará V. Ex.ª as 2.as provas da 1.ª folha e dos granéis seguintes

(2.ª prova também).

Devido a precipitação ou não sei quê, o preço que fiz aos 300 exemplares a

mais não foi bem feito. Creio que multipliquei 75 folhas por 2, quando deveria ser

150 folhas por 2, que dão os 300 exempl. Assim, o preço dos 300 é de 35$00 e de

400 é de 45$00, custando cada folha de 16 páginas, 1.100 exemplares 220$00.

5 Cota D3/3559, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17.

6 Cota D3/4726, consultável na BN em microfilme: F. R. 133, bobine 2.

Page 17: Introdução ao Estudo G enético de Duplo Passeiorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/23338/1/ulfl198832_tm.pdf · Introdução ao Estudo G de Teixeira de Pascoaes Dissertação de

15

Preço primitivo: 700 exempl. ........................ 175$00

Mais 400 ........................................................ 45$00

....................................................................... 220$00

Peço desculpa a V. Ex.ª da minha falta, do erro imperdoável, e rogo-lhe a

fineza de me dizer, com a devolução das provas, se devo imprimir 700 ou 1100

exemplares.

Desta carta se conclui que Pascoaes inicialmente estaria a pensar publicar 700

exemplares, e que entretanto estaria a ponderar publicar 1000. O engano nos cálculos

da parte da tipografia, para um valor inferior ao do custo real dos exemplares a mais,

possivelmente teria tido um papel na ponderação de publicar mais 400 exemplares em

vez de mais 300, ou seja, 1100 em vez de 1000.

20-01-19427

Recebi hoje 1.as e 2.as provas, o que muito agradeço a V. Ex.ª

As 1.as seguem hoje mesmo por este correio, como 2.as provas e que serão

para a folha 7.

— Aproveitando esta oportunidade, venho rogar a V. Ex.ª um subido favor,

o qual, desde já, reconhecidíssimo agradeço, pedindo-lhe me perdoe a ousadia.

É que até ao dia 30 do mês corrente tem de ser pago, como deve ser de

conhecimento de V. Ex.ª, o 1.º semestre de Contribuição Industrial, sob pena de

relaxe, caso não pague. Ora, como, infelizmente, o trabalho não abunda e o

produto do sinal, que V. Ex.ª de tão boa vontade me deixou, foi para a compra de

todo o papel preciso para o livrinho, vejo-me agora desprevenido e, por tudo isto,

venho solicitar de V. Ex.ª a fineza de me adiantar mais a quantia de 500$00 para o

fim do livro pronto, caso V. Ex.ª o possa fazer.

20-03-19428

— Recebi o postal de V. Ex.ª, o qual muito agradeço.

Por este correio seguem as segundas provas da parte final do livro e

também a folha 14 e 15, já impressas.

7 Cota D3/3560, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17.

8 Cota D3/3561, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17.

Page 18: Introdução ao Estudo G enético de Duplo Passeiorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/23338/1/ulfl198832_tm.pdf · Introdução ao Estudo G de Teixeira de Pascoaes Dissertação de

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Sobre a capa, será ela impressa conforme o desejo de V. Ex.ª Na lombada

levará a repetição do título, o nome de V. Ex.ª, em cima, e 1942 em baixo — o

costume. Não leva preço?

Na folha 16, que dá 8 páginas, há espaço para levar índice. Se V. Ex.ª assim

o desejar, organiza-se aqui, com os respectivos Capítulos — Epílogo — Nota final,

ou então, para não virem páginas em branco, pôr, em uma delas, Acabou de se

imprimir aos tantos de tal, etc., etc., como se vê em alguns livros.

A pedido de V. Ex.ª, tomo a liberdade de juntar a este a factura de

importância total. Para ela peço a V. Ex.ª bom acolhimento, o que agradeço.

Contava com a sua estimada visita, ontem, mas como não foi possível

(oxalá não fosse por falta de melhoras da Mãe de V. Ex.ª). Desculpe-me V. Ex.ª a

ousadia, se fosse possível enviar-me metal de restante, muito agradecia, isto

devido a compromissos que tenho na próxima segunda-feira.

Esta carta demonstra que a 20 de Março o livro estava quase pronto. Faltava

acertar alguns pormenores. Como já foi referido, a 1 de Abril Ângelo César já possuía

um exemplar.

Como se pode ler nos parágrafos seguintes, houve uma edição especial e alguns

livros foram encadernados.

3-04-19429

— Envio a V. Ex.ª mais 14 volumes, conforme o pedido que tenho presente.

Os exemplares da edição especial e que vão ser encadernados (6) estão

prontos na próxima semana. A encadernação custa 7$50, cada exemplar.

Logo que os receba, avisarei.

No canto inferior esquerdo desta carta, Pascoaes fez os seguintes cálculos para

chegar ao valor da encadernação dos seis exemplares a encadernar: «7 x 6 = 42 mais

3/escudos e meio.»

13-04-194210

O encadernador comprometeu-se a entregar hoje os exemplares

encadernados. Nos 14 exemplares que V. Ex.ª recebeu não foi incluído nenhum da

edição especial.

9 Cota D3/3562, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17.

10 Cota D3/3563, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17.

Page 19: Introdução ao Estudo G enético de Duplo Passeiorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/23338/1/ulfl198832_tm.pdf · Introdução ao Estudo G de Teixeira de Pascoaes Dissertação de

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Logo que o encadernador os entregue, enviá-los-ei pelo recoveiro

imediatamente.

20-05-194211

Acabo de receber os 3 exemp. encadernados, o que «já não é sem tempo».

Queira V. Ex.ª dizer se deseja que os mande entregar na camioneta ou se espero

por portador.

O Tavares Martins ainda não mandou buscar mais livros, além dos 100 que

pediu quando V. Ex.ª aqui estava.

A Livraria Tavares Martins não quis publicar a obra, mas colocou o livro à venda.

Na página 335 do Anuário Académico de 1942, onde consta a bibliografia de

Teixeira de Pascoaes, a última linha indica «Duplo Passeio. Porto, 1941.» Esta

informação resultou do seguinte pedido feito ao escritor pela Academia de Ciências de

Lisboa, através de uma carta12:

23-07-1941

Se quisesse ter a fineza de enviar à secretaria da Academia a actualização

da sua Bibliografia a fim de que o Anuário Académico de 1942 não sofra atraso

idêntico ao de 1941[...]

Podemos concluir que Pascoaes contava ver Duplo Passeio impresso ainda no

ano de 1941. Como já vimos, houve imprevistos que o impediram.

A 1.ª edição de Duplo Passeio data de 1942 (fim de Março). Trata-se, como já

vimos, de uma edição de autor feita com recurso à Tipografia Civilização, Porto. Não

houve mais edições em vida de Pascoaes. Esta narrativa é editada pela Bertrand em

1975, no volume X das Obras completas de Teixeira de Pascoaes, colecção com

introdução e aparato crítico de Jacinto do Prado Coelho, em conjunto com outro texto

e sob o título A Beira (num relâmpago) — Duplo Passeio. A 3.ª edição é da Assírio &

Alvim e data de 1994. É notório que foi feita a partir da 2.ª porque, para além de

também ser uma compilação das duas obras, repete um erro no prefácio: «impotência

diminuída pela cobertura de colmo» em vez de «imponência diminuída pela cobertura

de colmo».

11

Cota D3/3564, consultável na BN em microfilme: F. 5516, bobine 17. 12

Cota D3/2287, consultável em microfilme: F. 5516, bobine 11.

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Relativamente à recepção da obra de Pascoaes, atentemos às palavras de

António Cândido Franco (2003: 24-25):

O afastamento de Pascoaes dos problemas de pensamento centrais da

literatura do seu tempo, e até da sua anterior literatura, cria nas últimas obras de

Pascoaes um efeito de estranheza. São obras difíceis, irreconhecíveis e solitárias.

O último Pascoaes13 escreveu em Portugal na mais completa solidão, sem crítica e

sem leitores. Por parte da crítica, a sua literatura não encontrou qualquer favor

ou compreensão. Mesmo nos melhores casos, como o de Gaspar Simões, a crítica

literária portuguesa não se mostrou preparada para enfrentar o tipo de questões

desconcertantes que a literatura do último Pascoaes levantava. Preferiu, por isso,

o silêncio. Por parte do público, não houve também a mais pequena receptividade

aos seus livros. Livros como São Paulo, São Jerónimo, Napoleão ou Santo

Agostinho demoraram por vezes mais de cinquenta anos a serem reeditados em

Portugal e as editoras das primeiras edições desses livros ainda recentemente

vendiam exemplares das primeiras tiragens, que não iam além dos 1000 ou 1500

exemplares. Alguns outros, como A Minha Cartilha, que teve uma primeira e única

tiragem de 300 exemplares, não foram sequer reeditados até hoje.

Isto quer dizer que, além de difíceis, as últimas obras de Pascoaes foram, e

continuam a ser, pelo menos entre nós, obras ilegíveis.

Este silêncio a que António Cândido Franco se refere está patente na

correspondência de Ilídio Sardoeira, poeta do município de Amarante, a Teixeira de

Pascoaes:

5-06-194214

Só há uma cabeça, só há um pensamento, só há uma ideia, só há um

homem em Portugal: o resto vale na medida em que se nega[...]

Nas livrarias vai um alvoroço de publicações reaccionárias, mamando nas

tetas do Sardinha e nos cofres dos sem sardinha[...]

O Duplo Passeio já chegou a Lisboa mas o bloco livreiro-editorial — o

estado-novo das páginas tipográficas — não dá mostras de o querer apresentar

publicamente.

13

Referência ao período entre 1934 e 1952. 14

Cota D3/3402, consultável em microfilme: F. 5516, bobine 16.

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E infelizmente não é por nossa discordância de ideias mas por um protesto

de negociante lesado.

Desejava publicar sobre ele uma crítica na Seara Nova. Incidiria sobre a

concepção ateoteísta.

Até hoje não recebi qualquer resposta. O inconformismo da actualidade

mais parece uma forma superior de conformismo[...]

A era pascoalina chegará: a era do pensamento como definição da

personalidade e não como servo de qualquer partido.

Ilídio Sardoeira aponta para o facto de, apesar de o livro já ter chegado a Lisboa,

as livrarias não o estarem a publicitar, «por um protesto de negociante lesado». Daqui

se depreende que os livros de Pascoaes não tinham grande saída, provavelmente por

não se incluírem no tipo de «publicações reaccionárias» que vendia bem.

Sardoeira menciona que queria publicar uma crítica a Duplo Passeio na revista

Seara Nova.

22-07-194215

Já rabisquei algumas linhas sobre o Duplo Passeio. Não sei bem o destino a

dar-lhe. A Flor do Tâmega é uma folha restrita ou da família; a Seara Nova não

deu resposta.

Efectivamente, a revista Seara Nova não chegou a publicar a crítica de Ilídio

Sardoeira. Ao referir que A Flor do Tâmega era «uma folha restrita ou da família»,

Ilídio Sardoeira dá a entender que gostaria que a sua crítica chegasse a todo o país, o

que não aconteceria caso fosse publicada no jornal de Amarante. O louvor a Pascoaes

na sua própria terra, como o de um pai a um filho, retirar-lhe-ia o mérito. Sardoeira

inclui nesta carta um esboço dessa crítica:

Creio ter chegado a uma conclusão que me parece acertada sobre o

pensamento pascoalino.

Trata-se apenas de um esquema:

«Duplo Passeio não é para nós um passeio duplo, isto é, dois modos

diversos de percorrer o mesmo caminho: em realidade e em sonho. Antes me

15

Cota D3/3403, consultável em microfilme: F. 5516, bobine 16.

Page 22: Introdução ao Estudo G enético de Duplo Passeiorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/23338/1/ulfl198832_tm.pdf · Introdução ao Estudo G de Teixeira de Pascoaes Dissertação de

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parecem dois caminhos que têm vindo paralelos até aos nossos dias e que, em

Pascoaes, convergem num posto único e paradoxal — o da sua personalidade.

Poder-se-ão chamar idealismo e realismo e exemplificá-los com a caverna

de Platão.

Estas duas atitudes que têm polarizado, em homens diferentes, o

pensamento, atitudes conduzindo a caminhos paralelos e exclusivos, não podem

aplicar-se a Pascoaes.

Pascoaes não é um idealista, ao contrário do que pensa a maioria, mas

realista.

O seu drama não é de partido, mas de unidade ambivalente, quer dizer, o

pensamento de Pascoaes lança raízes para os dois campos, nenhum,

isoladamente, o satisfaz, os dois reunidos desesperam-no.

E atingimos o ponto crucial — o do desespero pascoalino — um desespero

vivo, real, absorvente mas que nada espera: o desespero sem esperança, o

inverso do pauliniano: o seu maior inimigo.

O desespero pascoalino salva-se na desesperança: é trágico e contraditório.

A bipolaridade na unidade, eis o sentido deste livro, ou o aspecto mais

significativo da mensagem de Pascoaes.

Há dois caminhos? Não. Há o mesmo homem que tem de percorrer, ao

mesmo tempo, dois caminhos que se opõem.»

Não sei se será legítimo pôr o problema deste modo. Muitas vezes

sugestionámo-nos com as próprias palavras e julgamos ter encontrado uma chave

onde está apenas uma gazua.

No entanto esta ideia da unidade ambivalente ou da bipolaridade na

unidade parece-me aceitável e merecedora de exploração, isto é, de mais carne.

O esboço da crítica a Duplo Passeio demonstra o esforço feito por Ilídio Sardoeira

para compreender a obra. Cinco meses depois, este esforço continua patente noutra

carta, na qual Ilídio Sardoeira faz referência à seguinte crítica, publicada na revista

Brotéria (Maurício, 1942: 466-467) a 5 de Novembro:

Não é fácil a tarefa de criticar um livro de Teixeira de Pascoaes. A

originalidade de imagens, a insistência do paradoxo, a mistura em cocktail do

divino e do humano, do sério e do burlesco, de angelismo e satanismo, de alor

poético e de bestialidade bronca, de lodo vil e de poeira astral, de seriedade

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académica e de banalidade funambulesca, dentro do mais ousado imprevisto,

cortam todo o fio condutor e de síntese compreensiva.

Neste volume, o poeta, levado amigavelmente por certa manhã de Julho de

1937 a fazer de automóvel o circuito Amarante, Vila Real, Chaves, Lanhoso, Fafe,

Amarante, descreve impressionisticamente esse passeio. É a primeira parte.

Não se busque nela a simples reconstituição descritiva da paisagem, dos

homens e dos factos cristalizados nos monumentos, à maneira de Ramalho

Ortigão. Teixeira de Pascoaes, quando descreve, é uma imaginação sanguínea,

pedindo à realidade sensorial que lhe faça cócegas, que a estimule na variada

gama de reacções de que é susceptível. Não o preocupa a intenção de nos pôr em

contacto com a realidade. Preocupa-o, simplesmente, o desejo de nos desvendar

tudo o que lhe passou pela cabeça, em sugestão livre, ao atingi-la por todos os

cinco sentidos sob a batuta da fantasia, a reger a orquestra das suas

reminiscências. Esta primeira parte, como aliás também a segunda, lembra, por

isso, um rifoneiro de imagens. Teixeira de Pascoaes não desenvolve um tema

unitário, não esbate as tintas numa composição harmoniosa; dá-se ao prazer de

lançar apotegmas, às vezes originalíssimos e singularmente belos, sobre as suas

próprias imagens visuais ou auditivas, associando, por contacto freudiano, as mais

remotas lembranças que lhe ocorrem ao espírito.

No seu passeio, o poeta do Marão, ao passar por Travassos, pára diante

dum cruzeiro. Uma pequenina de onze anos trava-lhe ousadamente do braço e,

apontando o divino Crucificado, diz-lhe: Aquele é o Senhor.

O interpelado, desde há muito, como Saulo, anda na sua estrada de

Damasco. Ainda não teve a visão-relâmpago que o lançasse abaixo do corcel da

sua fantasia; mas, neste momento, parece haver recebido um dos mais violentos

estremeções da aproximação de Cristo.

A segunda parte tem, por fundo, outro passeio dado em sonhos sob a

influência do primeiro. É uma divagação descabelada, sem nexo, à margem de

toda a lógica e ortodoxia, espécie de meningite após um golpe de sol ou comoção

cerebral resultante do embate psíquico a que o espírito do poeta, despreocupado

de Deus e da vida eterna, então foi sujeito pela pequena de Travassos.

Um delírio não se critica; regista-se, quando muito, como sintoma de uma

alma, que tendo reagido, por vezes tão belamente, em face do divino (págs.

61-106), em face de Jesus e da sua Igreja, também ao retornar à calma

ponderação das ideias e dos factos conseguirá tomar fôlego para seguir o

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caminho que, nestes últimos anos, a tem aproximado, a passos largos, da divina

graça, mesmo nos momentos em que, inesperadamente, parece mais distante

dela. O transe é conhecido, na sintomatologia psicológica da conversão.

Segue a transcrição da carta de Ilídio Sardoeira referida acima:

29-12-194216

O drama de Pascoaes é um drama sem solução e sempre se me afigura

impossível reduzi-lo a palavras.

É preciso criar uma concepção nova ou uma nova maneira de conceber

para trabalharmos com certas ideias de Pascoaes sem lhes tirarmos o verdadeiro

sentido.

Creio que estas palavras estão em desacordo com uma crítica de Domingos

Maurício, publicada sobre o Duplo Passeio, na Brotéria.

Para D. M. o drama de Pascoaes nunca esteve tão perto do fim.

Pascoaes é um caso típico da sintomatologia da conversão!

Duplo Passeio é um delírio. Daí só resulta um facto: Pascoaes procura o seu

relâmpago de Damasco; a criança de Travassos deu-lhe o primeiro estremeção.

É-me difícil ver até que ponto D. M. tem razão. Não creio que a tenha, mas

não juro também que a não tenha.

Em Duplo Passeio aparecem expressões comprometedoras, ou que se

prestam a várias interpretações.

O sagrado coração de Jesus, o Espírito Santo, a Virgem-mãe, têm para

Pascoaes valor teológico ou simplesmente lírico?

Valem como símbolos poéticos à semelhança de quantos foi buscar à

mitologia ou dá-lhes, digamos, substancialidade ou realidade dentro de um

campo dogmático?

Eis o que me parece essencial saber de Pascoaes para compreender

verdadeiramente o Duplo Passeio de Pascoaes, a obra em prosa mais pessoal de

Pascoaes, porque nela é Pascoaes que intervém como personagem central.

Se as palavras são polivalentes, um livro só é bem compreendido quando

conhecemos o valor único das palavras para o escritor.

Caso contrário só há duas soluções: deformá-lo ou supô-lo.

16

Cota D3/3408, consultável em microfilme: F. 5516, bobine 17.

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Ilídio Sardoeira considerava, portanto, que Duplo Passeio era a obra mais pessoal

do escritor. Parece ser esta a opinião de António Cândido Franco, que escreveu que

«não se pode saber quem foi Teixeira de Pascoaes sem se saber de cor os parágrafos

do Duplo Passeio.» (Franco, 2006: 47). Efectivamente, por ser um relato na primeira

pessoa, que convida o leitor a vislumbrar episódios da vida pessoal do escritor (a

atmosfera da casa de Pascoaes, a dinâmica dos seus habitantes com alguns visitantes

habituais, a reflexão filosófica que se seguiu a um passeio de lazer), este livro

destaca-se dos restantes e é particularmente interessante para quem pretenda

conhecer melhor Teixeira de Pascoaes. Ainda acerca desta obra, António Cândido

Franco (Introdução, Thelen, 1997: 25-26) escreveu o seguinte:

O livro que melhor desenvolve, e num quadro de experiência religiosa

pessoal, a relação de grau que se estabelece entre a incerteza física e a incerteza

metafísica é Duplo Passeio (1942), talvez o livro mais importante da literatura

portuguesa do século xx e decerto o mais importante, mas não o mais conhecido

ou em vias de o ser, de Pascoaes.

A incerteza aparece aí, no devaneio acordado do narrador[...], como o

fulcro de uma teoria geral do conhecimento humano, com disseminadas, mas

bem reconhecíveis, alusões ao princípio da indeterminação de Heisenberg, e que,

ao nível da crença ou descrença religiosas, leva à formulação de um ateísmo

teísta, que é a logofania central do Pascoaes desse tempo.

O ateoteísmo parece ser, no plano do comportamento religioso, aquilo que,

no plano físico da matéria, o átomo era, quer dizer, um afirmativo negativo, um

insubstancial substancial, um corpo alma (um corpo sem corpo) ou ainda uma

saudade divina que é saudade de nada.

Apesar destas opiniões, e do facto de Pascoaes considerar, como já vimos, que

este era o seu livro mais religioso, esta obra não é das mais conhecidas do escritor

amarantino.

A prosa de Pascoaes não foi bem recebida em Portugal, ao contrário do que se

passou fora do país, como se fazia notar no Jornal Flor do Tâmega (n.º 2:781, 5 de

Maio de 1942), que publicou o seguinte artigo acerca de Teixeira de Pascoaes,

assinado «Um Amarantino»:

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É necessário possuir altas qualidades de crítico para atinar com o valor

deste ser faminto de Deus e, por isso, fugido à lei por assombrosos caminhos que

deixam em farrapos as carnes e a própria alma daqueles que pretendem segui-lo:

é que só nus poderão tocar a sua obra, isenta de pecado, por tudo nela derivar

dum sério movimento interior a irmanar toda a criação no mesmo drama. Para

penetrar no íntimo deste grande Poeta, para o ver tal qual ele é, não basta levar

nas mãos o facho da crítica bem aceso: é necessário, indispensável, ser dotado de

sensibilidade aparentada da sua e sentir um bocadinho da fome do Poeta, ou não

verá nunca a exaltação desta alma, no que vai além do seu verbo.

Potente e complexa mentalidade que, depois de encerrar um maravilhoso

ciclo poético, abre outro em prosa de curva ainda ignorada, porque nem se repete

nem tão-pouco desfalece em nada, força inesgotável na expressão e no

pensamento.

Este grande Poeta, que tanto dá que falar lá fora, reduz ao silêncio os

nossos críticos, incapazes ou intoleráveis na sua inveja.

No estrangeiro não: para além da fronteira lusa, olhares agudos e de

alcance comparam-no aos maiores génios e lêem-no tão comovidos como se

assistissem ao aparecimento inesperado duma nova estrela: e é realmente uma

nova estrela que brilha alto de mais sobre nós.

Ainda há pouco, na Holanda foi um alvoroço com o S. Paulo. Foi-o também

com o S. Jerónimo e o mesmo sucederá ao seu Napoleão que me dizem estar

prestes a sair.

Em Portugal, este homem extraordinário passa quase despercebido,

mesmo depois de verem o seu triunfo no estrangeiro, onde o querem, e admiram

a sua obra vasta e universal. Homens dementados pela vaidade e outros

reduzidos à miséria pela inveja dizem simplesmente «ali vai o mimoso poeta»; ou:

«ali vai o escritor de maior valor entre os nossos contemporâneos.» Isto não é

estupidez: é maldade — por inveja. Porque se é incapacidade, que abram pelo

menos a boca ao vê-lo passar. É o que eu faço e sinto-me bem ao deixar sair por

ela toda a minha muda admiração, expressiva e simpática forma de render

homenagem aos grandes, quando não há forças para mais. Não posso sobretudo

com o «mimoso Poeta» que sai da boca ou pena como pedra atirada

maldosamente ao viandante. Não é «mimoso» o acto de criar, senhores, mas

drama íntimo e profundo. Foi esta expressão insignificante que encontraram

certos amigos, travados não sei porquê, para definir o homem cuja obra é bela e

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original, cheia de força criadora. Quantas afirmações nela feitas que só mais tarde

a ciência reconheceu verdadeiras!

Ao menos adivinhai nele, por instinto, a novidade cheia de saudável beleza

a dar-nos frutos que caem suculentos e duma altíssima inspiração poética[...]

M. Thelen, longe de nós, pressentiu o génio e deu-o a ler aos povos

nórdicos que o cobrem de aplausos; nós lemo-lo e calamo-lo criminosamente ou

chamamos «mimoso» Poeta a quem é grande sem nunca ter sido «mimoso»,

antes doloroso, por dolorosa ser toda a obra do Poeta. Ainda não chegou a sua

geração, aquela que melhor o entenderá.

E ai daquele que nasce com ela.

O drama deste profundo pensador, a querer penetrar o mistério de Deus,

está-lhe bem gravado na fisionomia. Quem o não vê? E quem considera este acto

grave e sério da sua vida?

Por isso a obra deste Poeta eleito é a mais alta afirmação espiritual dos

últimos séculos, mas que ninguém quer ver, parados no dogma17, ou errados no

materialismo do tempo.

Mais uma vez, aqui transparece o silêncio geral em Portugal perante a obra de

Pascoaes.

O facto de este artigo elogioso ter sido publicado na primeira página de um

jornal numa época em que a obra de Pascoaes era geralmente ignorada não é de

estranhar, uma vez que se trata do Flor do Tâmega, um jornal de Amarante, a que

Ilídio Sardoeira se referiu na carta acima citada como «folha restrita ou da família». Foi

este jornal (n.º 437, 21 e Abril de 1895) que deu a conhecer os primeiros versos de

Pascoaes na sua juventude, já sob o pseudónimo Teixeira de Pascoaes (Coelho,

1970: 62). No entanto, parece estranho o facto de o seu autor não dar a cara e de o

artigo estar assinado «Um Amarantino».

2.2. Tradução

Duplo Passeio foi traduzido por Albert Vigoleis Thelen (1903-1989), escritor

alemão que viria a ser distinguido em 1954 com o Prémio Theodor Fontane, prémio de

literatura de Berlim, pelo romance Die Insel des zweiten Gesichts (não traduzido para

17

No jornal lê-se «parados dogma» em vez de «parados no dogma».

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26

português). Ele e a mulher, Beatrice, que em 1931 tinham decidido abandonar a

Alemanha por causa da instabilidade económica e política, viveram em Portugal quase

oito anos, de 1939 a 1947 (Caeiro, 1990: 7). O casal encontrava-se em Portugal na

altura em que Pascoaes escreveu e publicou Duplo Passeio.

Beatrice foi muito mais do que a mulher do tradutor de Pascoaes. Numa carta de

5 de Outubro de 1942, Thelen escreve:

«Já estou esgotado. Que tristeza de não poder trabalhar. Felizmente a Beatrice

anda a traduzir a primeira versão do Napoleão, agarrada ao trabalho nas horas

livres.»

Daqui podemos concluir que Beatrice teve um papel importante em pelo menos

este trabalho do marido. Beatrice era muito dotada no domínio de línguas

estrangeiras, deu lições particulares, fez traduções e trabalhos dactilográficos, assim

como Albert Thelen (Caeiro, 1990: 10). Pascoaes manteve sempre contacto com o

casal e dedicou O Empecido, publicado em 1950, «À Beatrice e ao Albert Thelen».

Até à data, salvo erro, a única informação que possuíamos acerca da publicação

da tradução alemã de Duplo Passeio, Der Christus von Travassos, era a seguinte: em

1950 Thelen «ultima a tradução alemã de Duplo Passeio[...] que será publicada, um

ano depois, ao que parece em folhetins, numa revista protestante de Berlim oriental»

(Franco, «Introdução», Thelen, 1997: 43). Ao pesquisar sobre este assunto, consegui

apurar mais alguns dados. Foi leiloado em Outubro de 2013 um duplicado a papel

químico do dactiloescrito da tradução alemã de Albert Thelen, de 176 folhas

numeradas (Figura 1). No catálogo da leiloeira Hauff & Auvermann é indicado que se

trata da segunda versão da tradução inédita. No entanto, Der Christus von Travassos

foi publicado em 1952 na revista Unterwegs, como atesta o fascículo 6 do ano 6,

colocado à venda na Booklooker a 19 de Fevereiro de 2014 (Figura 2). Este fascículo, de

62 páginas, sobretudo tendo em conta que inclui mais cinco artigos, não pode conter a

tradução completa da narrativa. Não consegui apurar em quantos fascículos foi

publicada, ou se o foi na íntegra. É possível que se tratasse de uma versão diferente da

do dactiloescrito leiloado em 2013.

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27

Figura 1 Figura 2

A correspondência entre Pascoaes e Thelen contém informação preciosa acerca

do processo da tradução. Apresento de seguida alguns excertos, por ordem

cronológica, de algumas cartas. Muitas, aquelas que se encontram presentemente em

Amarante, foram editadas por António Cândido Franco (Thelen, 1997). Indico as que

não foram, que fazem parte do Esp. N63 que se encontra na BN e são consultáveis em

microfilme (F.6190), com um asterisco antes da data.

14-03-47, Amesterdão

Decerto vamos editar antes o Duplo Passeio. Exige menos papel, mas a

razão principal é o facto que o público holandês se nega de aceitar livros sobre

tiranos18.

18-03-47, Amesterdão

Amanhã começamos na tradução19 do Duplo Passeio[...] Ainda estou à

procura dum outro título para o Duplo Passeio. O equivalente em holandês é

bastante banal. Se o Pascoaes se lembrar de qualquer outro título, mande-nos

dizer, faz favor, eu ainda não encontrei nada.

18

Thelen refere-se a Napoleão. 19

«começamos na tradução»: assim na carta.

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28

25-03-1947, Amesterdão

Como lhe escrevi a semana passada, vamos editar agora o Duplo Passeio,

ou por menos intencionamos de o fazer20, mas ontem o Meulenhoff disse-me que

mandou calcular a quantia de papel necessário para este livro e que, fazendo uma

edição de por menos 1500 exemplares, o papel disponível para esta tradução (a

verba para traduções é menos do que para obras de autores holandeses) não

chega. Para evitar um novo atraso na edição dum livro seu, propus ao Meulenhoff

encurtar o texto duma maneira, que não ataca o pensamento original, tirando

coisas, que são mais ou menos divagações anedóticas, pouco ou nada ligadas com

as ideias sobre o Cristo; por exemplo a parte do Ângelo, da mulher do Belchior, o

tenente Vieira, etc., coisas, que podem ter um interesse para o leitor português

ou mesmo só amarantino, mas cujo significado escapa ao leitor estrangeiro.

Lembro-me que já uma vez falámos sobre isto, e o Pascoaes não disse que não.

Agora, que este assunto se torna actual por motivos de ordem puramente

material, queria saber se o Mestre autoriza um tal encurtamento, que eu fazia

com todos os escrúpulos que uma operação tão melindrosa exige. Peço-lhe que

me mande a resposta por avião, para não perdermos mais tempo.

A resposta de Pascoaes é breve e demonstra total confiança no amigo e tradutor:

*31-03-1947, Amarante

À pressa.

Sim, senhor. Faça a poda como entender ao Duplo Passeio.

Escreverei com vagar amanhã.

29-10-1947, Amesterdão

Os editores sofrem muito com as novas restrições de papel, de modo que o

Duplo Passeio não vai sair este ano[...] Consegui também que o Meulenhoff

publique o Napoleão antes do Duplo Passeio, respeitando assim a sequência em

que os livros foram escritos.

20-12-1948, Amesterdão

A tal carta, que o Pascoaes me mandou pelo Eduardo, deu-me uma grande

alegria[...] É dum pastor protestante de Berlim e conta mais ou menos o seguinte.

20

«intencionamos de o fazer»: assim na carta.

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Já em plena guerra, em 1942, o pastor de nome Zimmermann encontrou

por acaso um exemplar da edição alemã do São Jerónimo. O homem leu-o e ficou

entusiasmadíssimo com a obra[...] Durante a guerra este sacerdote pertencia ao

movimento clandestino de resistência contra o nazismo e como tal juntou-se

sempre nas catacumbas e bunkers de Berlim com outros homens da igreja e

amigos. Nestas reuniões o pastor costumava ler passagens do São Jerónimo[...] E

ainda hoje, continua ele, costumam unir-se amigos em casa dele, onde ele

fala-lhes do Pascoaes e lê páginas do seu livro. Disse, que a luta para a palavra de

Cristo continua não subterraneamente, mas já em plena luz do dia, uma luta que

exteriormente se caracteriza pelas divergências entre o Oeste e o leste.

E agora vem o pedido dele: tem uma revista religiosa e quer um artigo meu

sobre o Pascoaes e se for possível um trabalho do próprio Mestre. Já lhe respondi,

dizendo-lhe que enquanto a mim, pode contar com a minha colaboração[...]

Enquanto a um trabalho original do Pascoaes, não sei que dizer-lhe. O Mestre terá

qualquer coisa? Terá qualquer coisa que seria apto para a revista? O homem fala

dum ensaio, dum conto, ou passagens ou fragmentos duma obra maior. Se o

Pascoaes não tiver nada disponível, vou-lhe mandar as páginas mais essenciais do

Duplo Passeio, com uma introdução minha.

Thelen refere-se a Wolf-Dieter Zimmermann, editor da Unterwegs, revista de

política e religião publicada entre 1947 e 1954 pelo grupo cristão Unterwegs (cuja

tradução literal é «na estrada»). A resposta de Teixeira de Pascoaes não tarda:

*03-01-1949, S. João de Gatão

Será melhor o Thelen enviar ao Zimmermann um trecho do Duplo Passeio,

que é o meu livro mais religioso; e trata-se duma revista religiosa.

Na carta seguinte é mencionado o título da tradução alemã, Der Christus von

Travassos. Os dados que possuímos não nos permitem concluir se o título da tradução

foi escolhido por Albert Vigoleis Thelen ou por Teixeira de Pascoaes:

*23-07-1949, Praia de Valadares

Que é feito do teólogo berlinense Zimmermann? Sempre lhe mandou, para

a revista, um trecho do Duplo Passeio ou do Cristo de Travassos?

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Passados meses, a tradução ainda não está completa. Ficamos sem perceber se

Thelen chegou a enviar um trecho da obra a Zimmermann:

*13-03-1950, Amesterdão

O Zimmermann de Berlim também não percebe nada o que se está

passando. A nossa relação se esfriou um pouco. Faz mais de um ano que lhe

prometo o texto íntegro de Duplo Passeio para a revista dele. Só a metade está

pronta a estas horas.

Sabemos apenas que Thelen prometeu enviar a Zimmermann o texto integral,

mas que em Março de 1950 apenas concluíra metade da tradução. O facto de ter

outros trabalhos impedia Thelen de se dedicar exclusivamente à obra de Pascoaes,

como podemos ver em seguida:

2-10-1950, Amesterdão

A verdade é que os meus queahaceres não me dão tempo para me dedicar

exclusivamente à sua obra, coisa que me entristece[...] Ainda hoje recebi uma

carta muito amável do Teólogo Zimmermann de Berlim a perguntar pelo

manuscrito do Duplo Passeio. É-me doloroso, claro, de lhe ter que escrever que

outros trabalhos literários dos mais reles me impedem de acabar a tradução.

Na seguinte carta para a Emissora Nacional, Albert Thelen dá conta de a

publicação da tradução holandesa estar prevista para 1951.

*21-10-1950

De Thelen para Emissora Nacional (Lisboa)

É o quarto livro21 deste autor que a casa Meulenhoff edita, sendo a

revolucionária biografia de S. Paulo o primeiro que lancei aqui (e na Suíça) e cuja

4.ª edição saída faz meio ano é ainda discutidíssima. Os outros são o São Jerónimo

e o Verbo escuro. No ano vindouro sairá o Duplo Passeio com o título O Cristo de

Travassos, roubando deste modo esta terra portuguesa esquecida à obscuridade.

6-12-1950, Amesterdão

Este Passeio (ando de novo a trabalhar nesta tradução) fica cada vez mais à

parte como uma espécie de «união mística» dentro das suas retentativas de

21

Referência a Napoleão.

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ultrapassar a realidade. Muito para compreender-lhe me ajuda ultimamente a

leitura de Santa Teresa!

Em Dezembro de 1950, Thelen estava a trabalhar novamente nesta tradução. Em

Fevereiro de 1951, dá conta do seguinte:

17-02-1951, Amesterdão

O pastor Zimmermann de Berlim está a ler, finalmente, o Duplo Passeio.

Custou-me de acabar este livro em meio de tanta chatice da vida, oposta à

tranquilidade de espírito que eu preciso para poder dedicar às suas obras.

Na correspondência entre Thelen e Pascoaes a que tivemos acesso, não há mais

referência a Duplo Passeio. Pascoaes morre quase dois anos depois, a 14 de Dezembro

de 1952. No final de uma carta para Maria José, sobrinha de Pascoaes, com quem

continuou a corresponder-se após a morte do escritor, Thelen escreve que a

publicação da tradução holandesa não estava assegurada:

*25-02-1953

Importante: ainda não é certo que o Meulenhoff edita o Duplo Passeio.

Hesita outra vez, visto que a 4.ª ed. do Paulus e a ed. do Nap. foi22 um fracasso

rotundo. Acrescenta-se a nova dificuldade criado23 com as inundações que tornam

a vida caríssima, ninguém compra livros, etc. Mas eu nem quero continuar de24

negociar com ele antes de ter esclarecido a minha situação deante do herdeiro, e

disse-o ao Meulenhoff, que é muito prudente. Não quero lios25. De modo26, achas

que me podes conseguir um papel do João filho declarando que não mudou nada

na minha posição relativo27 às ed. hol. e germânicas que faço, sendo tudo como

em tempos da vida do autor?

Quando escreve que «a 4.ª ed. do Paulus[...] foi um fracasso rotundo», Albert

Thelen parece contradizer-se com o que escreveu na carta para a Emissora Nacional

22

«foi»: erro por «foram». 23

No dactiloescrito, «difficukdade creado». 24

«continuar de»: assim no dactiloescrito. 25

«lios»: assim no dactiloescrito. 26

«De modo,»: assim no dactiloescito. 27

«posição relativo»: assim no dactiloescrito.

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em Outubro de 1950: «sendo a revolucionária biografia de S. Paulo o primeiro que

lancei aqui (e na Suíça) e cuja 4.ª edição saída faz meio ano é ainda discutidíssima.»

Em conclusão, a tradução de Duplo Passeio demorou cerca de cinco anos devido

a motivos como o preço do papel e a crise económica, a indecisão relativamente à

ordem de publicação das obras de Pascoaes e ao facto de Albert Vigoleis Thelen estar a

fazer outros trabalhos simultaneamente. Aparentemente, além de todos estes

motivos, parece ter pesado o facto de as biografias terem sido um fracasso de vendas,

pelo menos a 4.ª edição de São Paulo e a primeira edição de Napoleão. Isto leva a

ponderar se a recepção de Pascoaes, pelo menos na Holanda, terá sido tão boa como

se diz. A tradução holandesa de Duplo Passeio nunca chegou a ser publicada e a

tradução alemã foi publicada, possivelmente incompleta, em folhetins.

3. Os Manuscritos: Descrição Material

Para distinguir os manuscritos, passarei daqui em diante a denominá-los

Manuscrito A, B, C e D, segundo a sua ordenação cronológica.

Ao dossier genético pertencem ainda pelo menos três outras peças importantes

para o estudo genético do texto, duas das quais se perderam. Uma é o dactiloescrito

apógrafo de Beatrice Thelen (ver capítulo 3.3.1), que terá servido de original de

imprensa e sobre o qual possivelmente houve uma revisão do autor — todos os

elementos do espólio de Pascoaes contêm emendas, o que nos leva a concluir que este

elemento não seria diferente. Outra seriam as provas tipográficas revistas pelo autor.

A terceira, essa sim, sobrevivente, é a primeira edição, impressa pela Tipografia

Civilização, que contém variantes significativas, certamente autorais e não decorrentes

do trabalho do tipógrafo, relativamente ao Manuscrito D (ver seriação dos

testemunhos no capítulo 4).

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3.1. Manuscrito A

3.1.1. Localização e História

Este manuscrito pertence ao espólio adquirido pela Câmara Municipal de

Amarante. Era, até ao momento, totalmente desconhecido. Identifico-o, portanto, pela

primeira vez.

A consulta das bobines 38 e 39, que incluem microfilmes de «fragmentos de

prosa esparsa», permitiu-me encontrar quatro folhas deste testemunho, sem data e

sem nome. A sua identificação foi feita apenas com base no texto. Há duas folhas em

[Prosa XIII], D3/5050, conjunto descrito no inventário como «1921?-1923; s. l.; 52f.;

aut. Nota: Inclui notas bibliográficas de santos, prováveis fragmentos de "Penitente",

de "Dr. Fulano", e de "O bem e o mal" e um estudo sobre Raul Brandão», e duas folhas

em [Prosa VII], D3/5044, cuja descrição no inventário é «s. d.; s. l; 44 f.; aut. Nota:

Suporte: caderno com folhas em branco; inclui provável estudo para uma peça de

teatro».

Em D3/5044 também foi possível identificar um conjunto de dez folhas de um

caderno pautado com fragmentos de A Beira Num Relâmpago, uma folha com notas

acerca de Napoleão e uma folha, com o número 52 no canto superior direito, de S.

Paulo. Identifiquei ainda, em D3/4793, quatro folhas de diferentes características com

notas sobre Napoleão, uma das quais com a indicação de páginas em que ocorrem

repetições, interessantes para o estudo genético dessa obra.

Do Manuscrito A apenas foi possível identificar quatro folhas, escritas em ambos

os lados, mas é provável que tenham sobrevivido mais. A minha pesquisa nos

microfilmes do espólio, com o objectivo de encontrar mais folhas, foi infrutífera. A

foliação, de 4 a 7, permite concluir que se perderam — ou que ainda não foram

encontradas — pelo menos as três primeiras folhas. Os dados que existem não

permitem depreender se existiam fólios para além do sétimo, uma vez que a última

frase deste está completa. Não é de descartar a hipótese de este manuscrito apenas

ter tido sete fólios. Pode ter constituído um primeiro ensaio de texto, imediatamente

substituído por uma nova versão.

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Duas das folhas estão dentro de uma folha dobrada que forma uma pasta de

343 x 225 mm, com um carimbo vermelho no canto superior esquerdo onde se pode

ler «BIBLIOTECA NACIONAL ESPÓLIOS» e a cota a grafite. A meio da pasta, também a

grafite, está escrito «2 f.». Por sua vez, esta pasta está guardada dentro de outra

semelhante, mas de maiores dimensões: 420 x 307 mm, também com o carimbo

vermelho da BN no canto superior esquerdo com a cota a grafite, e «[Prosa

XIII]/[Textos]» a grafite, a meio da pasta. A cota atribuída na BN ao conjunto em que

estas folhas estão integradas, [Prosa XIII], é D3/5050, consultável na BN em microfilme

(F. R. 133, bobine 39).

Duas das folhas estão guardadas dentro de três pastas, que descrevo em seguida

de fora para dentro: a primeira, de 420 x 307 mm, tem o carimbo vermelho da BN, no

canto superior esquerdo, com a cota a grafite, e, a grafite: «[Prosa VII]/[Textos]/44 f»;

a segunda é semelhante à primeira, com o mesmo carimbo no canto superior

esquerdo com a cota, e escrito a grafite «27 f.»; a terceira, coeva de Pascoaes, é uma

capa de livro em cartão grosso, de lombada castanha e forrada a papel muito

degradado, possivelmente marmoreado, de 197 x 131 mm, com um poema na guarda

final. A cota atribuída na BN ao conjunto em que estas folhas estão integradas, [Prosa

VII], é D3/5044, consultável na BN em microfilme (F. R. 133, bobine 38).

3.1.2. Suporte

Os fólios 4 e 5 são folhas de papel muito fino, sem marca de água, de 217 x 137

mm, de cantos arredondados, pautadas com uma linha cinza azulado seguida de duas

linhas vermelhas próximas (uma grossa e uma fina), e de novo cinza azulado, 32 linhas.

Cada folha tem 3 furos para dossier: o fólio 4 do lado esquerdo e o fólio 5 do lado

direito. Existem folhas iguais a estas, com ou sem os furos, em D3/4743 (duas),

D3/4793 (duas e uma metade), D3/5044 (três), D3/5045 (uma) e D3/5046 (uma).

Os fólios 6 e 7 estão escritos em duas folhas lisas, de 227 x 145 mm, de papel

grosso (almaço?) com marca de água: um animal de quatro patas, de pé,

aparentemente um buldogue, com a cabeça virada para o lado direito, e ainda as

palavras «Extra Strong». A distância entre as pontusais é 24 mm, e as vergaturas

distam 1 mm.

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É possível que se trate de um papel importado dos Estados Unidos. Embora não

tenha sido possível obter imagens da marca de água para confrontá-la com a da folha

de Pascoaes, a hipótese é sustentada pelo facto de apenas se encontrar referência a

uma marca de água representando um buldogue na produção da Western

Pennsylvania Paper Co., Pittsburgh (Watermarks and Brands Used in the American

Paper Trade, 1909: 12), para 1910. Não foi possível saber se a marca de água

continuou a ser usada nas décadas seguintes, mas é bem possível que, para este

primeiro ensaio de escrita do Duplo Passeio, Pascoaes tenha usado folhas mais antigas,

sobrantes de trabalhos anteriores.

Pascoaes parece ter utilizado o papel que tinha à sua disposição, sem se

preocupar com a uniformidade quando fazia anotações ou rascunhos. Exemplo disto é

um conjunto de folhas paginadas sequencialmente, em D3/5044, que inclui duas folhas

pautadas iguais às dos fólios 4 e 5, mas sem os furos para dossier.

3.1.2.1. Acidentes do Suporte

O papel encontra-se bastante amarelecido. O primeiro e o último furo do fólio 4

apresentam um rasgão que vai até ao bordo; além disso, o primeiro furo também tem

um rasgão para o interior da página. Existem diversas manchas acastanhadas,

concentradas sobretudo a meio da margem superior do verso do fólio 4, cuja excisão

no canto superior esquerdo afecta a legibilidade do texto. Os restantes acidentes do

suporte não comprometem a legibilidade do texto. O fólio 6 apresenta uma pequena

excisão, talvez causada por insectos, no canto inferior direito. Uma mancha no fólio 7,

em baixo, que não penetrou os poros do papel, sugere que a página tenha sido pisada.

Em 6v e 7v as margens inferiores apresentam manchas de humidade.

3.1.3. Escrita

As linhas escritas dos fólios 4 e 5 (28, 29, 30 e 30) não correspondem às linhas

pautadas, ou seja, Pascoaes ignorou as linhas e escreveu como se estivesse a utilizar

folhas lisas. Os parágrafos são alinhados à esquerda e não são deixadas margens

laterais. O texto foi escrito a grafite, com algumas partes a tinta preta. A numeração

dos fólios, a grafite, é feita no canto superior esquerdo, o que é singular. Não

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encontrei outros exemplos noutros manuscritos do escritor. Existem traços verticais a

meio das páginas: no fólio 4 a vermelho, no verso do fólio 4 a preto e no fólio 5, até

meio, igualmente a preto. Não existem traços verticais na metade inferior do fólio 5

nem no seu verso. Os traços no recto do fólio 6 são metade preto e metade grafite, em

6v são pretos e em 7 e 7v são vermelhos.

Há presença de mão alógrafa, a grafite, as cotas atribuídas na BN, no canto

superior direito dos versos dos fólios 4, 5, e 7, e no canto superior direito do recto do

fólio.

Neste testemunho, a haver divisão por capítulos, trata-se de uma divisão

diferente, porque nenhuma destas folhas contém numeração de capítulos e o seu

texto corresponde ao fim do capítulo I e ao início do capítulo II dos restantes

manuscritos, mais precisamente aos fólios 5v a 13 do Manuscrito B (16 páginas), aos

fólios 8v a 18 do Manuscrito C (20 páginas) e às páginas 16 a 29 do Manuscrito D (14

páginas). Quanto à primeira edição, o texto deste testemunho encontra

correspondência com as páginas 21 a 35 (14 páginas).

O início do fólio 4 trata do ponto em que Ângelo César acaba de chegar de

automóvel ao terreiro da casa de Pascoaes e António Duarte não encontra o seu

chapéu. O fólio 7 termina quando os amigos chegam ao alto de Espinho.

3.2. Manuscrito B

3.2.1. Localização e História

Este manuscrito encontra-se em Amarante, como já foi referido. Está dentro de

uma folha de papel dobrada a meio com um carimbo a vermelho no canto superior

esquerdo, «BIBLIOTECA NACIONAL ESPÓLIOS», e com «Um Passeio/I/ver: Duplo

Passeio» a meio, a mão alógrafa, a grafite.

No inventário da BN consta o seguinte: «Um Passeio [I]/1940; Gatão; 105, 1 f.;

aut./Nota: As primeiras 8 folhas incluem fragmentos sobre "Napoleão"/paginadas de 1

a 6 e com a data de 1935; inclui tb. desenhos e um poema; incompleto.» A cota

atribuída na BN é D3/4969. O manuscrito é consultável na BN em microfilme (F. R. 133,

bobine 26).

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3.2.2. Suporte

O suporte de B é um livro do tipo livro de contabilidade, de folhas pautadas.

Possui uma capa de cartão duro forrada com papel com relevo zebrado (fundo preto

com relevos verdes), e a lombada e os cantos em tecido bege, macio. A capa mede

220 x 172 mm e a espessura da lombada é de 37 mm. A guarda externa é em papel

pardo, grosso, em dois tons de verde seco acinzentado. A guarda interna é branca e

lisa e possui marca de água.

As folhas, de 212 x 165 mm, são pautadas a azul (23 linhas), com 8 mm entre as

linhas, a margem superior de 29 mm e a margem inferior de 11 mm. A marca de água

é igual à das guardas internas: a palavra Emege (leitura incerta) com cerca de 170 mm

de comprimento e um símbolo arredondado, incompleto devido ao corte da folha, que

parece conter no interior letras entrelaçadas. Não foi possível identificar a origem

desta marca de água. Não há pontusais nem vergaturas.

O livro possui 11 cadernos, cada um deles constituído por cinco bifólios. O

primeiro fólio do primeiro caderno encontra-se entre a capa do livro e a guarda

externa, de papel pardo. A guarda interna está colada à guarda externa e une-se ao

primeiro fólio do segundo bifólio por uma tira de cola. Só restam quatro fólios do 11.º

caderno. As folhas restantes foram arrancadas, como se pode depreender das metades

dos bifólios que sobraram. Se pensarmos que o caderno 11 era o último, como parece

ser o caso, faltam cinco fólios, visto que o último fólio do último caderno, tal como o

primeiro fólio do primeiro caderno, estaria entre a capa e a guarda externa.

O facto de estas folhas faltarem pode indiciar que terão sido arrancadas e

deitadas fora por existir algum descontentamento com o seu conteúdo.

Existe outra possibilidade, a de as últimas folhas do livro terem sido arrancadas

por não pertencerem a Duplo Passeio, e de o resto da narrativa ter sido escrito em

folhas soltas, que se terão perdido entretanto. Por vezes Pascoaes escrevia acerca de

um assunto diferente no fim de um bloco de notas, invertendo-o. É o caso dos

manuscritos de O Bailado [III] (D3/4895) e de O Pobre tôlo: (elegia satirica)

(M-SER-1296), que contém o rascunho de uma carta no final, que se encontra na

Biblioteca Pública Municipal do Porto, e pode ter sido o que se passou aqui.

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38

3.2.2.1. Acidentes do Suporte

O estado geral de conservação é bom. A etiqueta da capa apresenta-se muito

escurecida. Ao longo do livro há muitas manchas acastanhadas causadas pela

humidade. Algumas páginas apresentam manchas castanhas que aparentam ter sido

causadas por pingos ou salpicos de café: verso do fólio 57, verso do fólio 70, recto do

fólio 76 e recto do fólio 91. Pelo menos 29 páginas foram manchadas pela tinta da

foliação da página ao lado. Os borrões de tinta, quer preta quer vermelha, são algo

frequentes. Há também várias manchas que parecem ter sido causadas por pingos de

água.

Os acidentes do suporte comprometem a leitura no recto do fólio 20 (palavras

esborratadas na emenda a vermelho na margem inferior), no verso do fólio 49

(palavras esborratadas na linha 5), recto do fólio 71 (borrões de tinta), recto do fólio

81 (emenda a vermelho esborratada na sobrelinha 5) e no verso do fólio 84 (palavras

esborratadas). De salientar que sobre o recto do fólio 34 foi entornada tinta preta, que

terá escorrido por essa página na parte interna do caderno, formando um grande

borrão no canto superior esquerdo, o que torna parte do texto ilegível.

3.2.3. Escrita

Na capa do livro está colada uma etiqueta em forma de rectângulo octogonal

com uma sequência de riscas de larguras diferentes, cujas cores, de fora para dentro,

são as seguintes: vermelho, branco, preto, verde seco, preto, vermelho, verde seco,

verde seco claro, verde seco. O interior da etiqueta é branco e nela pode ler-se, a tinta

vermelha e cancelado a preto, «Napoleão». Em baixo está uma sequência de palavras

ilegíveis escritas e canceladas a preto, seguidas de «A cheia» e da assinatura do autor,

a preto.

Tal como consta no inventário da BN, as primeiras folhas deste livro (desde a

folha de guarda branca inicial até ao fólio 6, inclusive) incluem notas e desenhos sobre

Napoleão. Esta biografia foi publicada em 1940. É natural, portanto, que Pascoaes

tivesse este livro à mão neste ano e, como estava quase todo em branco, o tivesse

aproveitado para escrever uma nova obra. No recto do fólio 1 Pascoaes escreveu «5

dez — 935», que deverá corresponder à data dos escritos neste livro acerca de

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Napoleão, e que servirá para datar o início da génese de Napoleão, uma vez que as

notas e desenhos aqui inscritos poderão constituir, pela sua natureza, as primeiras

etapas da sua fase redaccional, anteriores à textualização da obra.

Os fólios tinham sido numerados por Pascoaes, no canto superior direito, a

esferográfica preta, até ao 76. Após os apontamentos acerca de Napoleão, quando

começa a escrever uma nova obra28, o escritor altera a numeração dos fólios,

escrevendo-a por cima da anterior, de modo a que os fólios 1 a 70 passam a ser 7 a 76.

A nova numeração, até ao fim do livro, já não está a esferográfica, mas a tinta

permanente de cor preta. O manuscrito B está incompleto, terminando no fólio 97,

interrompendo a narrativa poucas linhas após o narrador despertar do seu sonho.

A escrita segue as linhas. Os parágrafos são alinhados à esquerda e não são

deixadas margens laterais. É usada sobretudo tinta preta, mas também vermelha e,

menos vezes, em contexto de emendas ou anotações, lápis vermelho, roxo, verde e

grafite. A caneta vermelha foi utilizada na linha pelo menos 20 vezes. Os traços

verticais a meio de todas as páginas escritas foram feitos a lápis de cor vermelho. Por

vezes, em substituição do traço vertical ou ao lado deste, aparece um «S» invertido,

que talvez tenha o mesmo significado dos traços verticais, ou seja, é apenas uma

forma de sinalizar transferência de texto para outro suporte, ou talvez tenha sido

utilizado com um propósito diferente, que até à data não foi possível apurar. Contei 19

«S» invertidos por cima de segmentos de texto: um a lápis verde, um a lápis roxo, um a

grafite e os restantes a lápis vermelho. Os fólios 15v e 18v foram deixados em branco,

por se encontrarem após o fim de capítulos, isto é, Pascoaes optou por começar os

capítulos no recto dos fólios.

Há muitos cancelamentos e emendas, por vezes de várias linhas seguidas. No

caso das emendas mediatas, com frequência as encontramos em caixas de texto nas

margens, umas linhas abaixo ou mesmo em páginas mais à frente — neste caso, é

possível identificar alguns locais em que o autor parou, reviu o que tinha escrito e

decidiu acrescentar texto. Teixeira de Pascoaes trabalhou de modo semelhante nos

restantes manuscritos desta narrativa.

28

No topo do fólio 1, Pascoaes escrevera «A cheia», nome que também consta na etiqueta da capa. Depois, tapou este título com riscos espiralados e colocou por baixo um trapézio invertido, formando o que parece uma espécie de vaso de flores. A primeira linha deste fólio continha palavras a grafite, provavelmente uma frase, que foram apagadas com borracha.

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40

De referir que no fólio 51 (recto) a palavra «epilogo» foi cancelada e substituída,

à frente, por «Segunda Parte», o que indica que a narrativa era para ter sido bastante

mais curta. Duplo Passeio inclui a descrição de um passeio real, na primeira parte, e a

descrição de um passeio sonhado, na segunda parte. Podemos concluir que Pascoaes

não tinha planeado inicialmente escrever a segunda parte. O passeio sonhado só lhe

terá ocorrido neste ponto em que adia a escrita do epílogo. Se atendermos a isto, o

título atribuído a este mauscrito, Um Passeio, faz mais sentido.

A presença da mão alógrafa decorre do inventário feito na BN e corresponde à

cota atribuída nessa altura: «D3/4969», que é visível na primeira guarda marmoreada,

na primeira e na última guardas brancas e nos fólios 2 (de Napoleão), 9, 14, 37, 50, 64,

74, 84, 94, 95, 96 e 97.

Este manuscrito contém uma versão quase completa do texto, faltando apenas

algumas páginas no final, cujo número discuto adiante.

3.2.4. Folha Solta Junto ao Manuscrito B

Dentro do manuscrito B está uma folha solta dobrada ao meio horizontalmente,

de 135 x 110 mm. Podemos depreender que esta folha foi arrancada de um bloco de

notas espiralado, por causa do aspecto irregular, característico, que apresenta no

topo. O papel, amarelecido, é de espessura média e apresenta uma trama de fibras

semelhante a tecido em linho.

A escrita ocupa metade de uma página. A numeração autógrafa (151, no canto

superior direito) e o texto estão a tinta vermelha. Trata-se do seguinte poema:

No altar da minha egreja,

Nova de cal por fóra, entre velhinhas árvores

E a enegrecida torre de granito

Que ao desmaiar a tarde nos pinhaes,

Nas aguas mortas, nos profundos vales,

*Derramai29 pelo ar, em lagrimas de bronze

*Uma saudade que anoitece o mundo

____________________________

29

De acordo com a chave dos símbolos da edição genética, um asterisco antes de uma palavra corresponde a leitura conjecturada.

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O texto está cancelado com traços grossos, a lápis de cor azul, que se cruzam na

diagonal. Da utilização deste lápis resultou uma mancha azul na base inferior da

página, a meio, aparentemente uma dedada.

É certo que encontramos fragmentos de poesia em mais do que um testemunho

de Duplo Passeio, no entanto, nenhum é tão extenso como este. Além disso, trata-se

de um poema cujo conteúdo aparentemente não se relaciona com o dossier genético

de Duplo Passeio.

Uma vez que o Manuscrito B termina, incompleto, no fólio 97, se o poema

inscrito nesta folha solta pertencesse ao texto do Duplo Passeio, o número que lhe é

atribuído apontar-nos-ia para a perda de pelo menos 54 fólios. Atendamos às últimas

palavras de 97v: «O sol é o deus dos passaros e de todas as almas que». Esta frase,

inacabada, tem o seu equivalente no verso do fólio 116 do Manuscrito C: «O sol é o

deus dos passaros e de todas as almas que tem azas.» O Manuscrito C originalmente

ocupava 117 fólios, sendo que os últimos cinco fólios, de 118 a 122, foram

acrescentados posteriormente. Ou seja, as últimas palavras do Manuscrito B

correspondem praticamente ao fim do manuscrito C tal como ele foi primeiro

concebido, isto é, antes de ter sofrido o acrescento posterior de cinco novos fólios. Se

tivermos em conta que existe entre os três últimos manuscritos30 de Duplo Passeio

uma grande uniformidade quanto ao número de sequências narrativas e respectiva

extensão, é mais provável que faltem apenas algumas folhas a B do que falte uma

grande percentagem do mesmo: isto significaria que o texto teria sofrido profundas

modificações estruturais na passagem do Manuscrito B para o Manuscrito C, e que

Pascoaes teria optado por eliminar deliberadamente uma grande quantidade de

folhas. Não temos nenhum indício que nos aponte para esta hipótese.

Consideremos as características da folha solta, pertencente a um bloco de notas

com argolas no topo. Ao consultar os microfilmes de poesia do escritor, deparamo-nos

com folhas semelhantes em Canticos, Cantos empedernidos [I], Cantos empedernidos

[II], Cantos Indecisos [III] e Marános [VIII].

Por último, o lápis de cor azul utilizado para cancelar o texto da folha solta não

está presente em nenhum dos manuscritos de Duplo Passeio. Há vestígios do seu uso,

30

O facto de o Manuscrito A estar incompleto não nos permite incluí-lo nesta afirmação.

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por exemplo, em [Poesias] (M-SER-1297, Biblioteca Municipal do Porto, fólios 1, 7, 7v,

e 8), e na primeira página das provas tipográficas de [Painel] (M-SER-1295).

Tendo estes pontos todos em consideração, devemos concluir que a folha solta

não faz parte deste dossier genético. O facto de se encontrar dentro do livro que

constitui o Manuscrito B pode ter sido acidental ou não. Por exemplo, não é difícil

imaginar Teixeira de Pascoaes a socorrer-se de um pedaço de papel que tivesse à mão

como marcador de página, particularmente se esse papel já não lhe interessasse para

outro fim, como parece indicar o cancelamento de todo o poema. Importaria agora

saber de que poema, eventualmente já publicado, esta folha constitui um testemunho

genético interessante, tarefa que caberá ao futuro editor genético da poesia de

Pascoaes.

3. 3. Manuscrito C

3.3.1. Localização e História

Este manuscrito foi oferecido a Beatrice Thelen em Abril de 1942, de acordo com

a letra de Pascoaes na folha de guarda. Segundo consta num cartão dactiloescrito

colado na contracapa do manuscrito,

Este autógrafo de Teixeira de Pascoaes foi doado à Biblioteca Nacional por

Mme Beatrice Thelen-Bruckner, residente em Lausanne/Vennes, que em Gatão o

dactilografou em 1942; o escritor ofereceu-lhe, por isso, o original manuscrito.

O cartão está datado de 8 de Junho de 1982 e está assinado pelo director de

então da Biblioteca Nacional, João Palma-Ferreira. Este testemunho encontra-se na BN

e pode ser consultado em microfilme (F. 3597).

É possível que a informação de que Beatrice Thelen teria dactilografado este

manuscrito em 1942 não esteja completamente correcta. Acredito que o manuscrito

dactilografado foi o D, e não o C. Pascoaes começou a trabalhar no Manuscrito D

quase imediatamente após ter terminado o Mauscrito C. Sabendo que iria proceder a

alterações no texto, não faz sentido tê-lo dado a dactilografar. Além disso, necessitava

dele para trabalhar. Sabemos que em 1941 Pascoaes já começara a negociar com a

editora de Duplo Passeio e que contava ver o seu livro publicado ainda nesse ano. Por

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este motivo, não faz sentido que a obra tenha sido passada à máquina em 1942. Este

não foi o ano em que a obra foi dactilografada, foi o ano em que este manuscrito foi

oferecido a Beatrice Thelen, possivelmente pela altura da publicação de Duplo Passeio.

Como veremos mais adiante, o Manuscrito D é composto por bifólios não

encasados. É provável que este tenha sido o motivo pelo qual Pascoaes não o ofereceu

a Beatrice Thelen, mas sim o Manuscrito C, escrito num livro de capa dura, mais fácil

de guardar e de transportar.

3.3.2. Suporte

Trata-se de um livro semelhante ao do Manuscrito B, de capa dura. Contém oito

cadernos e há 10 bifólios por caderno, com excepção do quarto caderno, com nove

bifólios, e do quinto caderno, com cinco bifólios, totalizando 66 folhas. O primeiro fólio

do primeiro caderno e o último fólio do último caderno estão colados entre a capa do

livro e a folha de guarda.

A lombada mede 22 mm. A capa, de 220 x 172 mm, está forrada com um tecido

de cor bordô cuja malha forma um padrão de cubos. Este tecido aparece na lombada e

nos cantos. Por cima, a capa está forrada com um papel marmoreado em tons de

bordô e preto. Está colada na capa uma etiqueta rectangular de 69 x 101 mm, com

riscas a toda a volta (oito no total), de várias larguras, alternadamente em branco e

azul-escuro. O interior da etiqueta, de 40 por 75 mm, é branco.

No interior do livro, quer nas guardas quer nas páginas, a marca de água é um

escudo ornamentado no interior com uma cruz da Ordem de Cristo e encimado por

uma coroa. A palavra «ALMAÇO», escrita em curva, emoldura a parte inferior do

escudo, e por baixo estão as iniciais «P. C», escritas a direito. Este papel foi produzido

na Fábrica de Papel Porto de Cavaleiros, em Tomar.

No verso da capa está colado um cartão da Biblioteca Nacional de 105 x 148 mm.

Na folha de rosto podemos ver, no canto inferior direito, uma marca de posse de

Beatrice Thelen: marca de carimbo circular com os nomes «vigoleis» e «beatrice» e

iniciais entrelaçadas (Figura 1, pág. 26). Ainda na folha de rosto, no canto superior

direito, há dois carimbos da Biblioteca Nacional: um a azul-escuro, com as palavras

«BIBLIOTECA NACIONAL DE LISBOA/ SECRETARIA», e outro a vermelho, com as iniciais

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«BN», o B invertido. Também têm este carimbo os fólios 1, no canto inferior direito, e

122, no canto superior direito.

As páginas, de 214 x 167 mm, têm 22 linhas azuis, com 8 mm de espaçamento

entre elas. A margem superior é de aproximadamente 35 mm e a margem inferior de

cerca de 12 mm (há alguma variabilidade de página para página).

3.3.2.1. Acidentes do Suporte

O cartão colado no verso da capa deixou vestígios de cola a toda a volta, com

alguns arrastamentos de cola na metade inferior do cartão.

O papel apresenta-se bastante amarelecido, sobretudo a guarda final, que tem

grandes manchas de humidade.

À semelhança de B, há algumas manchas que aparentam ter sido causadas por

café: no recto do fólio 11, no verso do fólio 42, no recto do fólio 46, no verso do fólio

67 e no recto do fólio 104.

Há um grande rasgão a meio do fólio 63, de cima a baixo, que ocupa 10 linhas, da

3 à 13.

Os acidentes do suporte não comprometem a leitura.

3.3.3. Escrita

A etiqueta colada na capa indica o autor e o título (Um passeio). No verso da

capa, no canto superior esquerdo, há a indicação autógrafa «Nova novela/ — Os

dois —»; esta leitura difere da proposta pela BN: «Nona novela/ — Os dois —» (Duarte

e Oliveira, 2007: 206). Na Figura 3 é notória a semelhança entre o n e o v de «novela»:

Figura 3

A página de rosto foi executada na primeira página da metade solta da folha de

guarda: no topo, a preto, o nome do autor; a meio, a vermelho, o título Um passeio,

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seguido da seguinte indicação, a preto: «manuscrito oferecido a madame Thelen, pelo

auctor em abril de 1942/ Gatão»; no canto inferior esquerdo, a data, a vermelho: «15

fev. 1940/ 5 de julho 1940/ Gatão».

Numeração autógrafa, a caneta preta, de todos os fólios com texto (canto

superior direito), excepto os fólios 80, 108 e 114, a caneta vermelha, e o último (122),

a lápis vermelho. Os fólios seguintes, sem texto, não estão numerados, excepto o

último do caderno (145), a grafite. Não houve enganos na numeração.

Como no manuscrito B, o escritor começa os parágrafos no início das linhas e não

deixa margens dos lados (Figura 4). A primeira linha de um novo parágrafo apenas tem

um avanço relativamente à anterior nos casos em que o parágrafo que o precede

termina encostado à direita (Figura 5).

Figura 4

Figura 5

A narrativa foi escrita sobretudo a caneta de aparo com tinta preta, mas existem

numerosos segmentos a caneta de tinta permanente vermelha, inclusivamente nas

linhas. Pascoaes chega a começar uma frase numa cor e a acabá-la com outra,

mudando mesmo de cor, por vezes, na mesma palavra (Figura 6).

Figura 6

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Creio que o escritor, após escrever várias linhas a preto, revia o texto e usava a

caneta vermelha para fazer emendas, e continuava a escrever a vermelho na linha;

tendo em conta a frequência com que texto desta cor aparece na linha (mais de 50

vezes), é pouco provável que isto tenha decorrido de esquecimentos de Pascoaes,

embalado no processo de escrita. Parece, sim, tratar-se de algo propositado, como

forma de assinalar os trechos já revistos. Não encontro, para já, outra explicação para

a utilização do vermelho na linha.

Foram feitos muitos cancelamentos e emendas, sobretudo com tinta preta e

vermelha, mas também a lápis vermelho (em 17 páginas), verde (numa página), roxo

(em apenas três fólios, sempre em cancelamentos feitos também a tinta preta) e

grafite (em 12 páginas). A Figura 7 contém exemplos de formas diferentes de

cancelamento: um simples traço por cima da palavra a cancelar, traços cruzados,

espiralados ou em ziguezague, ou ainda um traço na diagonal da altura de uma ou

mais frases. É muito raro os cancelamentos impedirem a leitura do que está escrito por

baixo.

Figura 7

Em todo o manuscrito apenas há seis emendas que colidem com texto não

cancelado (Figura 8): no recto do fólio 20 «entra na formação» e na sobrelinha «é que

informa» («é que» cancelado), no recto do fólio 25 «sentimentos» e na sobrelinha

«emoções», no recto do fólio 30 «da Amazona» e na sobrelinha «galego» (sendo que

o «a» de «da» foi substituído por um «o»), no verso do fólio 34 «esse mais longe se

existisse, ficaria já» e na entrelinha inferior «este mais longe se existisse, ficaria», no

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verso do fólio 43 «este calor é a propria emoção religiosa que nasce do sofrimento ou

é ele mesmo transcendentalisado» e numa caixa de texto «este calor é o proprio

sofrimento feito emoção religiosa, ou transcendentalisado», e no recto do fólio 113

«entardecer» e na sobrelinha «sol-por».

Figura 8

A concentração de cinco destes seis casos em apenas 23 fólios aponta para uma

destas hipóteses: Pascoaes, no intervalo de tempo em que os escrevia, estaria mais

indeciso, deixando as duas variantes para mais tarde escolher a que preferia, ou uma

maior velocidade na escrita e revisão destes fólios teria feito o escritor esquecer-se de

fazer estes cancelamentos.

Por vezes, aquilo a que chamo emendas parece ser anotações, possivelmente

para uso posterior. É este o caso da única ocorrência de palavras a lápis verde, na

margem superior do verso do fólio 100. Há 22 anotações (texto que não parece fazer

parte da narrativa) no manuscrito, sobretudo nas margens, nos versos dos fólios 22,

23, 28, 44, 65, 69, 70, 73, 79, 80, 94, 98, 100 e 101, e nos rectos dos fólios 51, 55, 58,

70, 74, 79, 96 e 99.

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Ao longo deste manuscrito existem 20 eliminações de parágrafos. Isto ocorre de

duas formas diferentes, como se pode ver nos exemplos seguintes, ambos do verso do

fólio 2.

Figura 9

Figura 10

Na Figura 9 temos um exemplo de um parágrafo que foi cancelado através de um

risco a todo o comprimento da página, começando no início do parágrafo a eliminar,

continuando na sobrelinha e subindo finalmente até à linha anterior. Há 8 ocorrências

deste tipo: nos rectos dos fólios 7 e 57, e nos versos dos fólios 2, 3, 4, 26, 69 e 103.

A Figura 10 exemplifica o segundo tipo de eliminação de parágrafo: as primeiras

palavras do parágrafo a eliminar foram canceladas e foi adicionado texto de forma a

fazer-se uma ligação com o parágrafo anterior. Há 12 ocorrências destas: nos rectos

dos fólios 47, 52, 61, 63, 80 e 95, e nos versos dos fólios 2, 25, 36, 38, 65 e 66.

Neste manuscrito são bastante menos frequentes as aberturas de novo

parágrafo: apenas três, nos rectos dos fólios 31 e 39 e no verso do fólio 114. Para tal,

Pascoaes fazia um traço de chamada no local pretendido e escrevia «novo §», como se

pode constatar na Figura 11. Este exemplo, na sobrelinha, é do recto do fólio 31. No

recto do fólio 39 o traço de chamada vai até à margem superior, e no verso do fólio

114 vai até duas linhas acima, aproveitando um espaço disponível nessa página.

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Figura 11

Os capítulos, em numeração romana, estão assinalados a caneta vermelha ou

preta: I, IV e V da primeira parte e I da segunda parte, a preto; II e III da primeira parte,

II, III, IV e V da segunda parte, a vermelho. O uso de uma cor ou de outra parece ter

sido aleatório, mas é possível que para o escritor tenha tido algum significado. De

salientar que o autor mudou de ideias acerca do início dos capítulos II e III da segunda

parte, cancelando os números a lápis vermelho e reescrevendo-os, com o mesmo lápis,

duas páginas antes (II) ou na página anterior (III).

Teixeira de Pascoaes terminou a narrativa na primeira página do fólio 117. O

verso desse fólio está vazio mas, decorrendo de nova revisão, o autor começou a fazer

emendas no fólio 118, onde escreveu na primeira linha: «Para o meio da pagina 109,

verso». No fólio 122 recto acrescentou um epílogo de 12 linhas, a tinta vermelha, com

uma frase, a meio, a tinta preta.

Foram deixadas duas páginas em branco: uma após o fim da primeira parte, no

verso do fólio 60, e outra no fim da segunda parte, no verso do fólio 117 (antes da

adição dos fólios 118 a 122).

Todas as páginas escritas têm a meio, de cima a baixo, um risco ou mais do que

um risco a lápis vermelho. Estes riscos, semelhantes aos dos testemunhos anteriores,

terão sido feitos à medida que o autor transferia o texto para outro testemunho. Cada

risco corresponde a uma unidade de texto como um parágrafo ou uma frase, o que

sugere que cada risco tenha sido feito à medida que essa unidade de texto ia sendo

copiada. O facto de Pascoaes ter utilizado lápis vermelho para escrever alguns

números e palavras, em oito páginas, suporta a tese de ter sido ele a fazer estes riscos.

Também a meio da página, por vezes, Pascoaes faz um «S» invertido: contei 41,

todos a lápis vermelho excepto um a caneta vermelha, mais um conjunto de seis «S»

invertidos, lado a lado, a grafite, no verso do fólio 36. O facto de alguns destes

símbolos não estarem alinhados com o traço vertical a meio da página, mas ao lado

deste, como acontece nos versos dos fólios 55, 103 e 106, aponta para que não

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tenham sido feitos com o mesmo propósito dos traços verticais. É também significativo

que a um «S» invertido num parágrafo no fim de uma página corresponda quase

sempre um «S» invertido no fim desse parágrafo, no início da página seguinte.

Poderíamos pensar que eventualmente seriam uma forma de Pascoaes sinalizar texto

não copiado para outro suporte. No entanto, a comparação de algumas passagens em

que o «S» invertido aparece neste manuscrito com os locais equivalentes no

testemunho seguinte provou não ser este o caso. O Manuscrito D é significativamente

diferente deste, na medida em que há parágrafos inteiros que não foram aproveitados.

O «S» invertido ora coincide com texto não aproveitado, ora não. Também há texto

rejeitado no momento da cópia que não tem o «S» invertido no Manuscrito C. Para dar

alguns exemplos, os segmentos de texto deste manuscrito a que corresponde o «S»

invertido dos fólios 21, 53/53v, 56 e 61 não aparecem no testemunho seguinte

(páginas 35, 86/87, 90 e 98). Por outro lado, os segmentos de texto a que corresponde

o «S» invertido dos fólios 27/27v, 71, 51 e 55v aparecem no Manuscrito D nas páginas

35, 44, 71 e 89. Existe a hipótese de este símbolo ser um ponto de interrogação

estilizado, sem o ponto. Suporta esta teoria o facto de noutros manuscritos do escritor

haver pontos de interrogação ao longo das páginas, possivelmente com o mesmo

objectivo do «S» invertido: Cantos Empedernidos [I] (D3/4801), Maranus [II]

(D3/4817), Maranus [III] (D3/4818), Maranus [IV] (D3/4819), Maranus [IX] (D3/4824),

Sempre [I] (D3/4842) e O Bailado [III] (D3/4895).

Há várias partes que sugerem rapidez de escrita: a caligrafia é irregular e

ocorreram vários lapsos de pena, sobretudo troca de letras e repetição da mesma

palavra. Podemos verificar que o escritor, frequentemente, redesenhava algumas

letras menos legíveis; por vezes isto ocorre numa cor diferente, o que aponta para que

seja uma operação ligada a etapas de revisão.

Há presença de mão alógrafa a lápis, na folha de rosto, canto superior direito,

onde se pode ler a cota da BN: «N63/1» e «cx. 1» mais sumido; ao lado, «acad»

(leitura incerta), e no último fólio com texto, o 122 («N63/1»).

O texto deste testemunho está completo.

A Figura 12 corresponde ao recto do fólio 14 deste manuscrito. Contém a meio

da página «S» invertidos, dois, intercalados de dois traços verticais, a lápis vermelho.

As duas emendas na margem superior estão ligadas ao texto pelo habitual traço de

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chamada; uma está rodeada por uma espécie de caixa de texto

11 o início de uma nova frase está escrito a vermelho, continuando a frase a preto, na

linha seguinte. No penúltimo parágrafo, a emenda a vermelho foi feita, não na

entrelinha ou nas margens, m

linha do parágrafo anterior.

emenda, Pascoaes utiliza-as

texto, após a qual retoma a escrita

duas vezes, como se pode observar na Figura 13

forma habitual de Pascoaes fazer a numeração das páginas e dos fólios, envolvendo os

números num traço curvo ou recto.

Figura 12

3.4. Manuscrito D

3.4.1. Localização e história

Este manuscrito encontra

folha de papel de 420 x 307 m

51

deada por uma espécie de caixa de texto, a outra não. Na linha

11 o início de uma nova frase está escrito a vermelho, continuando a frase a preto, na

No penúltimo parágrafo, a emenda a vermelho foi feita, não na

entrelinha ou nas margens, mas noutro ponto da página que estava vazio: a última

linha do parágrafo anterior. Por vezes, quando há linhas vazias abaixo do local da

as para escrever a emenda, rodeando-as de uma caixa de

retoma a escrita da narrativa. No recto do fólio 37 ist

mo se pode observar na Figura 13. Em ambas as figuras

forma habitual de Pascoaes fazer a numeração das páginas e dos fólios, envolvendo os

números num traço curvo ou recto.

Figura 13

3.4.1. Localização e história

ontra-se em Amarante, onde está colocado dentro de uma

0 x 307 mm, dobrada ao meio. No canto superior esquerdo, um

a outra não. Na linha

11 o início de uma nova frase está escrito a vermelho, continuando a frase a preto, na

No penúltimo parágrafo, a emenda a vermelho foi feita, não na

as noutro ponto da página que estava vazio: a última

há linhas vazias abaixo do local da

as de uma caixa de

No recto do fólio 37 isto acontece

Em ambas as figuras pode ver-se a

forma habitual de Pascoaes fazer a numeração das páginas e dos fólios, envolvendo os

stá colocado dentro de uma

m, dobrada ao meio. No canto superior esquerdo, um

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carimbo vermelho: «BIBLIOTECA NACIONAL ESPÓLIOS». Escrito a mão alógrafa, «Um

Passeio/[II]». No inventário da BN consta o seguinte: «Um Passeio [II]/1940-1941;

Gatão; 88, 1 f.; aut./Nota: Cf. "Duplo Passeio".»

A cota atribuída na BN é D3/4970. O manuscrito é consultável na BN sob a forma

de microfilme (F. R. 133, bobine 26).

3.4.2. Suporte

O Manuscrito D foi escrito em 44 bifólios não encasados, de papel fino (a escrita

na página oposta transparece) e liso, sem marca de água, e também numa folha solta

de papel mais grosso cortado por uma dobra, o que a deixou com um aspecto algo

irregular do lado direito. Há, sem contar com a folha solta, 88 folhas, paginadas como

se descreve adiante. Os fólios e a folha solta medem 220 x 137 mm e 187 x 119 mm,

respectivamente.

3.4.2.1. Acidentes do Suporte

Nos bifólios, o papel encontra-se bastante amarelecido e há muitas manchas

acastanhadas causadas pela humidade. As páginas 16, 20, 103 e 113 (e a 112, por

contacto com esta) apresentam manchas que aparentam ter sido provocadas por café.

Há alguns borrões e salpicos de tinta. Os acidentes do suporte não comprometem a

legibilidade do texto.

A folha solta está bem conservada.

3.4.3. Escrita

A primeira página foi concebida como se fosse a capa de um livro, com a

inscrição do nome do autor no topo, título centrado a meio — (Um passeio) aquele é o

senhor — e, na metade inferior, o esboço de uma ilustração a caneta preta, vermelha e

grafite, representando uma paisagem montanhosa cortada por uma estrada.31 O único

elemento que destoa da semelhança com uma capa de livro é a paginação, no canto

31

As características gerais deste manuscrito, isto é, conjunto de bifólios não encasados, paginados com o primeiro fólio concebido como sendo uma capa de livro, por vezes com uma ilustração de Pascoaes, encontram-se igualmente em O Penitente [II] e em três manuscritos de São Jerónimo e a Trovoada ([I], [III] e [IV]).

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superior direito. Ao contrário dos anteriores manuscritos, este foi paginado, e não

foliado. A paginação (176 páginas no total), no canto superior direito nos rectos e no

canto superior esquerdo nos versos, está a caneta preta, exceptuando as páginas 60 e

143, a vermelho. A página 2 (a única não numerada) está em branco. Na página 49 o

último algarismo está por cima de um 8. Tirando isto, não houve enganos na

numeração.

O texto foi escrito a preto, vermelho e roxo. Tal como nos manuscritos

anteriores, a caneta vermelha é utilizada na linha frequentemente (contei 55 vezes) e

chega a haver palavras começadas numa cor e terminadas noutra. Uma vez que as

folhas não são pautadas, as páginas não têm margens superiores nem inferiores: toda

a superfície do papel foi utilizada. Como nos testemunhos anteriores, não há avanço

da primeira linha dos parágrafos.

Ainda existem bastantes cancelamentos e emendas, algumas feitas em caixas de

texto.

Este é, dos quatro manuscritos que fazem parte do dossier genético de Duplo

Passeio, o único que não apresenta os traços verticais a meio de todas as páginas; no

entanto, é frequente ver-se um «X» a grafite a seguir a sinais de pontuação. Estas

marcas terão sido feitas numa passagem a limpo, possivelmente por Beatrice Thelen,

que terá dactilografado este manuscrito. Há ainda alguns «S» invertidos a meio da

página, da altura de um ou mais parágrafos, 32 a lápis vermelho e dois a grafite. O

facto de este manuscrito não ter os traços verticais a meio das páginas, decorrentes da

trasferência de um suporte para outro, mas sim «X», parece apontar para o facto de o

«S» invertido ter algum significado que nos escapa. Se os «S» invertidos significassem

o mesmo que os traços verticais, sendo contemporâneos destes, não apareceriam

neste manuscrito. É importante salientar que os «X» estão a grafite e os «S» invertidos

estão maioritariamente a lápis de cor vermelho, o que aponta para que tenham sido

feitos em ocasiões diferentes. Acredito que os «X» tenham sido feitos por Beatrice

Thelen quando dactilografou o manuscrito e que os «S» tenham sido feitos por

Pascoaes.

A folha solta é adventícia (isto é, interpolada, acrescentada posteriormente para

fazer um acrescento de texto). No topo, centrado, encontra-se um símbolo a

vermelho: pequeno círculo com pinta no meio. Do lado direito desse símbolo, a tinta

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preta, está escrito «(pag. 100)». Nessa página encontra-se um símbolo vermelho igual

a este, o que comprova que esta folha pertence a este dossier genético e corresponde

a uma adição a fazer no local assinalado. Esta folha está escrita num dos lados, de cima

a baixo (29 linhas), a tinta preta, exceptuando a primeira palavra e as emendas, a tinta

vermelha. Para além disto, possui algumas cruzes a grafite, à semelhança do que se

passa ao longo do manuscrito.

Mão alógrafa, atribuível a funcionário da BN, escreveu, a grafite, a cota

«D3/4970» no canto superior direito do primeiro fólio de cada bifólio e da folha solta.

O texto está completo.

4. Seriação dos Testemunhos

Para fazer a seriação cronológica dos testemunhos é necessário ter em conta as

datas escritas nos manuscritos.

Nenhuma das folhas do Manuscrito A tem data. Apesar de este manuscrito não

estar datado, as suas características materiais, acima descritas, indicam que se trata da

primeira versão da obra. Contém o início da narrativa (considerando os primeiros

fólios que se perderam mas que existiram). Não há ainda, aparentemente, divisão de

capítulos. Há cancelamentos de transporte: os riscos verticais feitos com instrumentos

de escrita diferentes, que supõem transporte em momentos diferentes, ou seja à

medida que ia reescrevendo o texto noutro suporte, ia cancelando o correspondente

que ficava para trás. A degradação do suporte, muito maltratado e inclusivamente

pisado, mostra uma displicência no seu tratamento perfeitamente coerente com um

estado genético cedo ultrapassado. Essa mesma distância que Pascoaes cedo terá

criado relativamente a esta versão do texto deve explicar a dispersão das folhas

sobreviventes e provavelmente o desaparecimento das perdidas.

O Manuscrito B está datado no fólio 1 junto à foliação, isto é, no canto superior

direito: «15 de fev. 1940».

O Manuscrito C tem datação na folha de guarda, no canto inferior esquerdo: «15

fev. 1940/5 de julho 1940». No canto inferior esquerdo do recto do fólio 117, onde

inicialmente terminava a narrativa, Pascoaes escreveu «Abril de 1940 a 27 de

setembro de 1940».

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Quanto ao Manuscrito D, no canto inferior esquerdo do primeiro fólio está

escrito «29 set. 1940» e na última página (176), no canto inferior esquerdo, está

escrito «28 de jan. 1941».

As datas parecem colidir umas com as outras e aparentemente não fazem

sentido. Atentemos ainda à data impressa no fim da 1.ª edição: «27 de Setembro de

1940». Trata-se da data escrita no fólio 117 do Manuscrito C. No entanto, segundo

parece apontar a data escrita na última página do Manuscrito D, ele é anterior à 1.ª

edição e terá acabado de ser escrito a 28 de Janeiro de 1941.

Verificamos em dois dos manuscritos um par de datas: a data em que Pascoaes

começara a escrevê-lo e a data em que o terminara. Imaginamos que, à semelhança do

Manuscrito D, o Manuscrito B tivesse data também na última página escrita, que se

perdeu. O Manuscrito C tem dois pares de datas. Tendo em conta a apresentação da

folha de guarda como se fosse uma folha de rosto (disposição cuidada e cores

alternadas), tudo aponta para que tenha sido escrita apenas em Abril de 1942, isto é,

logo após a publicação de Duplo Passeio, quando Pascoaes ofereceu o manuscrito a

Beatrice Thelen.

Uma explicação para haver dois pares de datas não coincidentes no Manuscrito C

é a indicação «15 fev. 1940/5 de julho 1940» corresponder, não ao intervalo de tempo

em que o Manuscrito C foi escrito, mas ao intervalo de tempo em que a obra foi escrita

na sua totalidade — neste caso, a primeira data (15 de Fevereiro de 1940) bate certo e

o escritor ter-se-ia enganado no último ano: onde se lê «5 de julho 1940» deveria estar

«5 de julho 1941». Se assumirmos que foi isto que se passou, Duplo Passeio terá ficado

concluído nessa data, possivelmente num dactiloescrito revisto e emendado, cerca de

cinco meses após o Manuscrito D estar concluído.

Se a teoria apresentada no parágrafo anterior estiver certa, os intervalos de

tempo correspondentes a cada testemunho são os seguintes:

Manuscrito A: posterior a Julho de 1937 e anterior a 15-02-1940.

Manuscrito B: escrito entre 15-02-1940 e (provavelmente) Abril de 1940.

Manuscrito C: escrito entre Abril de 1940 e 27-09-1940.

Manuscrito D: escrito entre 29-09-1940 e 28-01-1941.

Dactiloescrito com emendas(?): concluído a 5 de Julho de 1941.

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Para fazer a seriação dos testemunhos não basta ter em conta a sua datação. É

importante provar textualmente qual é a sua ordenação cronológica. Para isso é

necessário analisar as variantes existentes entre os manuscritos. É necessário partir de

uma passagem do Manuscrito A e expor-se a evolução do texto ao longo dos

testemunhos genéticos. De seguida utilizarei simbologia genética. A chave dos

símbolos pode ser consultada na página 2 da edição genética.

Manuscrito A, fólio 7

[...] paramos no ultimo lacete <da estrada> já proximo do Alto de Espinho, onde

uma trovoada surpreendeu o Camilo a caminho como nós de Vila Real, mas <por

outra estrada antiquissima e> a cavalo num macho, a ver o panorama serrano

defumado pelas lunetas. Via tudo negro dentro e fora dele. E, por isso, as suas

paisagens são dantescas.

Os dois segmentos cancelados em A não aparecem no testemunho seguinte. Em

B Pascoaes, partindo da ideia de que as paisagens de Camilo são dantescas, introduz

uma referência a Lucrécio, Dante e Leopardi.

Manuscrito B, fólio 13

Paramos, no ultimo lacête, já proximo de Espinho, onde uma trovoada

surpreendeu o Camilo, a caminho, como nós, de Vila Real, mas a cavalo num

macho, a gosar o panorama serrano defumado pelas lunêtas de vidro escuro. Via

tudo negro, dentro e fóra dele<,>/.\ E, por isso, os seus descritivos são dantêscos,

leopardinos, lucrecianos<. Parámos>, que <D>/L\ucrecio, Dante e Leopardi são a

Trindade tenebrosa do velho deus do Lacio.

Do Manuscrito B para o C, a expressão «a cavalo num macho» é substituída por

«montado num cavalo», «via tudo negro» passa a ser simplesmente «via negro» e

Lucrécio, Dante e Leopardi passam a ser caracterizados como «os tres mochos da noite

mediterranea».

Manuscrito C, fólio 18

Paramos no ultimo lacête, já proximo do Espinho, onde uma trovoada

surpreendeu Camilo, a caminho, como nós, de Vila Real, mas <a cav> montado

num cavalo, a gosar o panorama serrano defumado pel<o>/a\[↓s] <vidro das>

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lunetas de vidro escuro. Via <tudo> negro, dentro e fóra dele; e, por isso, os seus

descritivos são dantescos, leopard<e>/i\scos e lucrecianos<, que>[.] Lucrecio,

Dante e Leopardi, eis a trindade tenebrosa<, do velho Lacio> os tres mochos da

noite mediterranea.

Do manuscrito C para o D, introduz-se a ideia de que o cavalo que Camilo

montava era «de aluguér» e a adjectivação das lunetas «defumadas» substitui a ideia

de o panorama estar defumado pelas lunetas de vidro escuro. Toda a adjectivação de

Lucrécio, Dante e Leopardi desaparece.

Manuscrito D, pág. 29

Paramos no ultimo lacête, já proximo do Espinho, onde uma trovoada

surpreendeu Camilo, a caminho, como nós, de Vila Real, mas <em outra [{↑}

época] e amarrado a outro esqueleto ou personagem da morte.><§>[↑ em outra

época e] <M>/m\ontado num cavalo de aluguér, <ia <gosando> olhando>[↑

olhando] o panorama serrano, <com outra serra de <nuvens>[↑ trovões] sobre a

cabeça, <alguns em pincaros agudos a <†>> olhava-o> atraves dumas lunetas

defumadas. Via escuro, como Lucrecio, Dante e Leopardi.

Há bastantes variantes entre o Manuscrito D e a 1.ª edição. «Paramos no ultimo

lacête, já proximo do Espinho» passa a ser «Atravessamos o alto de Espinho», a

trovoada que surpreendeu Camilo é adjectivada de «medonha», e a expressão «a

caminho» é substituída por «que se dirigia». Pascoaes mantém a adição do Manuscrito

D, «em outra época e», mas substitui «cavalo» por «azémola».

1.ª edição, pág. 35

Atravessamos o alto de Espinho, onde uma trovoada medonha

surpreendeu Camilo, que se dirigia, como nós, a Vila Real, mas em outra época e

montado numa azémola de aluguer, olhando o panorama serrano, através dumas

lunetas defumadas. Via escuro, como Lucrécio, Dante e Leopardi...

Está comprovada a ordenação dos testemunhos, que coincide com as datas que

lhes foram atribuídas por Pascoaes. Verificamos que o escritor foi amplificando o texto

nos manuscritos para depurá-lo na primeira edição. Mais adiante veremos que isto não

ocorre sempre, e que há certas passagens que são ampliadas.

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5. Questões de Génese

Dadas as limitações deste trabalho, não é possível apresentar uma análise que

esgote todas as questões suscitadas pelo confronto entre os testemunhos e pelo

processo de reescrita em cada um deles. Tratarei, por isso, apenas três aspectos

macro-genéticos: a génese do título, um problema de bifurcação genética e a génese

do Cristo de Travassos.

5.1. O Título

Desta análise, temos que excluir necessariamente o primeiro testemunho, cujas

páginas restantes não contêm título.

O título A cheia aparece cancelado no Manuscrito B, quer na etiqueta da capa,

quer na primeira página. Por estar cancelado, mas sobretudo por não haver relação

aparente com o texto de Duplo Passeio, podemos concluir que este título pertenceria a

outra narrativa, que possivelmente não chegou a tomar forma. Na primeira página

aparece o título Um Passeio. Como já foi dito acima, inicialmente Pascoaes não estaria

a pensar escrever uma obra com duas partes, uma sobre um passeio real, a outra

sobre um passeio em sonhos. Podemos concluir isto porque no Manuscrito B a palavra

«Epilogo» foi cancelada e substituída por «Segunda Parte». Isto significa que, na

primeira concepção que o autor teve do texto, a narrativa construía-se como uma

estrutura cuja progressão ascendente culminava no episódio do Cristo de Travassos,

depois do qual restava apenas contar, de forma necessariamente breve, o regresso a

Amarante. Porém, em determinado momento, o sonho posterior à viagem tornou-se

matéria para reflexão filosófica com dimensões imprevistas.

No Manuscrito C, na folha de guarda, Teixeira de Pascoaes escreveu «Nova

novela — Os dois —». Este testemunho não inclui vestígios de ter sido utilizado para

escrever outra coisa para além de Duplo Passeio, ao contrário do anterior, que possui

algumas páginas dedicadas a Napoleão. Tudo aponta, portanto, para esta indicação na

folha de guarda estar relacionada com esta narrativa. Terminando o Manuscrito B,

onde o passeio foi desdobrado em dois, e transferindo o texto para um novo suporte,

o C, Pascoaes deve logo ter pensado em evidenciar no título o paralelismo dual

resultante da criação da Segunda Parte. O facto de ter escrito apenas «Os dois» pode

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significar que, embora a ideia de transportar a dualidade para o título estivesse no seu

espírito, não sabia ainda exactamente qual a formulação que lhe daria. Foi

provavelmente por não se sentir satisfeito com a hipótese «Os dois passeios» que a

escreveu lacunar e inconsequentemente. Na primeira página do livro não há título. A

inscrição Um Passeio aparece na folha de rosto, que terá sido escrita, segundo os

indícios parecem apontar, apenas em 1942, e na etiqueta colada na capa, que poderá

ter sido adicionada em qualquer altura.

A primeira página do Manuscrito D, estabelecida como se fosse a capa de um

livro, com ilustração, contém o título (Um Passeio) Aquele é o senhor. Esta é a frase

que a rapariguinha de Travassos diz ao escritor, apontando para a imagem de Jesus

Cristo crucificado, no largo da povoação. Trata-se do episódio central da narrativa e faz

todo o sentido que estas palavras tenham sido escolhidas pelo escritor para fazerem

parte do título, reconhecendo essa centralidade. Trata-se de um retorno e de um

redireccionamento, relativamente ao título lacunar do testemunho anterior. A ideia de

dualidade, que é fundamental no pensamento gnóstico de Pascoaes (Feijó, 2015: 85),

parece perder a importância, e o autor regressa à primitiva unicidade para apontar o

episódio do passeio real como fundamental no texto. Se, na hipótese anterior, tomava

importância o paralelo entre o mundo (passeio) real e o onírico, agora é a epifania, na

sua singularidade, que subordina e articula todo o sentido.

Na 1.ª edição, no entanto, o título é outro: Duplo Passeio, o que constitui novo

retorno à dualidade e ao paralelismo antitético das viagens real e onírica.

Como introdução a esta parte no Manuscrito D, Pascoaes escreveu o seguinte,

que posteriormente cancelou:

Prefacio

Agora é a descrição do meu passeio sonhado, intercado32 de outras scenas.

Retoquei-as todas que o sonho pinta acontecimentos dum modo confuso e

arbitrario...

32

intercado por intercalado. Lapso.

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Possivelmente, estaria a pensar substituir a primeira parte do epílogo que se

pode ler no Manuscrito C por este «prefacio». As semelhanças são notórias:

Como o leitor já viu, retoquei<, para> o passeio sonhado e intercalado de varias

scenas, que o sonho pinta os acontecimentos <dum modo> confus<o>/a\ e

arbitrari<o>/a\[↓mente].

Sabemos, através da carta de Américo Martins, da Livraria Tavares Martins, que

no final de Outubro de 1941 o título definitivo já estava estabelecido.

Finalmente, o título da tradução alemã, Der Christus von Travassos, O Cristo de

Travassos, parece constituir, mais uma vez, um retorno ao título do Manuscrito D, (Um

Passeio) Aquele é o senhor.

Um título é um elemento textual do qual não depende o texto intitulado mas

que, pelo contrário, normalmente depende dele. Porque pode ser alterado até ao

último momento da génese e porque deve identificar e metonimizar o texto que

intitula, o título pode exprimir eloquentemente a leitura que o autor faz do seu próprio

texto. É essa leitura que ele procura condensar no título. Assim, a alternância de

títulos, com um redireccionamento e depois sucessivos retornos, parece dar conta dos

dois elementos fundamentais deste texto, na perspectiva do autor: o paralelo entre o

real e o sonho e a revelação religiosa. Como o título, pela sua posição paratextual, é

também um condicionador de leitura, a alternância revela o modo como Pascoaes quis

que o seu texto fosse lido. Este aspecto é interessante sobretudo porque, na tradução,

esta vontade autoral parece ter sido fortemente condicionada pela recepção. O autor

conforma-se à vontade do seu público, permitindo a eliminação de muitos elementos

textuais considerados acessórios e elegendo como subordinante semântica a epifania.

5.2. Bifurcação Genética

Encontra-se no espólio um bloco de notas de capa preta, com a cota D3/5048

[Prosa XI]33, com as dimensões de 91 x 143 mm e constituído por 14 folhas (a última foi

rasgada) quadriculadas a azul não numeradas. Metade do bloco contém pequenos

fragmentos narrativos a tinta preta, alguns cruzados ou traçados diagonalmente, por

33

Consultável na bobine 39 de F. R. 133.

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cima, a tinta vermelha, e a outra metade contém contas relacionadas com a venda de

vinho. Na primeira página, centrado, a meio, «Pobre Tolo». Na oitava página lemos o

seguinte:

Bloco de notas

O horror ao mesmo sitio é profundamente... camiliano<...>/,\ ou adamico; quem

estará contente no paraiso, depois de 15 dias de bemaventurança?

Compreende-se o pecado de Adão e a queda de Napoleão. Aborreceram-se, um

do jardim do Eden, outro, do jardim das Tulherias...

A identidade textual com um passo de Duplo Passeio conduz à hipótese de

estarmos perante mais uma peça do dossier genético desta obra, como se poderá

constatar:

Manuscrito A, fólio 4

A ancia de partir! O horror ao <*pou> mesmo local!

Depois destas duas pequenas frases exclamativas do Manuscrito A, no

testemunho seguinte o autor faz uma substituição sinonímica, «local» por «sitio», e

amplifica o texto:

Manuscrito B, fólio 6

A ancia de partir, o horror ao mesmo sitio... por mais belo! Quem estará contente

no céu, depois de quinze dias <de estação <parasidiaca?34>[↑ edenica?]>[?]

Compreende-se o pecado de Adão. <O que ele queria <era> fugir <do Eden> do

Paraiso...> e a queda de Napoleão. <Lá está o seu perfil de morto, repousado no

leito e a silhueta de Santa Helena, ao lado, como se fora a sua sombra em pedra e

terra da Corsega,> Queriam fugir, um, do jardim do Eden, o outro, do jardim das

Tulherias...

As duas exclamações iniciais, que apenas exprimem um sentimento de desgosto

perante a imobilidade e justificam a acção de partir desencadeadora da narrativa

(inicia-se aqui o passeio com Ângelo), ganham dimensão filosófica e desenvolvem o

paradoxo da repulsa por aquilo que naturalmente atrai (o belo, o paraíso).

Simultaneamente, é convocada a participar nesse paradoxo uma das figuras históricas 34

«parasidiaca» por «paradisiaca». Lapso.

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preferidas de Pascoaes, Napoleão, objecto de uma das suas biografias filosóficas. Há,

portanto, uma espécie de expansão interpretativa que, partindo de um evento

prosaico — três amigos sentem-se naturalmente impacientes pela partida para um

passeio turístico — evolui filosoficamente para uma dimensão antropológica — Adão e

a condição universal do Homem — que oferece a luz que permite interpretar a História

— Napoleão e o seu destino. O sentido do texto desenvolve-se, assim, em círculos

interpretativos que interligam o homem individual (o autor), o Homem-espécie (Adão)

e o homem histórico (Napoleão), fazendo-os participar numa mesma dinâmica

filosófica, segundo a qual «a História reproduz a Criação, sendo por isso domínio

regional de um regime cósmico. Bonaparte, por exemplo, é um sucedâneo histórico da

degenerescência do Criador» (Feijó, 2015: 85).

No testemunho seguinte os cancelamentos do Manuscrito B já não aparecem e

há pequenas variantes na primeira frase. É nas frases seguintes, no entanto, que há

maior ocorrência de variantes:

Manuscrito C, fólio 9

É tambem a ancia de partir, o horror ao mesmo sitio, por mais belo. Quem estará

contente no Paraiso, depois de quinze dias de bemaventurança? Compreende-se

o pecado de Adão e a queda de Napoleão. <Quizeram fugir;> [↓ Aborreceram-se,]

um, do jardim do Eden, o outro, do jardim das Tulherias.

<Adão repousa no Calvario, e Napoleão, em Santa Helena, dois ossos de

jardim>

Intensifica-se o sentido teológico com a substituição de «céu» por «Paraiso»,

variante inicialmente rejeitada mas agora preferida. Tendo cancelado a caracterização

dos quinze dias no céu no manuscrito anterior, o escritor retoma-a, no mesmo sentido,

mas substituindo «de estação edenica» por «de bemaventurança», provavelmente

para evitar o efeito da redundância semântica Paraíso/edénico/Eden. Permanece a

identificação entre Adão e Napoleão, mas agora com a especificação do «horror», isto

é, o desgosto pela imobilidade não nasce de nenhuma causa activa que lhe seja

inerente (perigo, ameaça) mas apenas do aborrecimento, ou seja, da própria ausência

de actividade. Note-se ainda o esboço abortado de um terceiro movimento

interpretativo: Pascoaes intenta uma identificação entre o destino e condição

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antropológica e a sua dimensão eminentemente cristã: «Adão repousa no Calvario».

Mas estava-se ainda no primeiro arranque do passeio e era provavelmente cedo de

mais para trazer à cena Cristo, o Adão que repousa no Calvário, e que o autor estava

destinado a encontrar apenas mais adiante, em Travassos.

No manuscrito seguinte os cancelamentos de C já não aparecem e as variantes

introduzidas são mínimas:

Manuscrito D, pág. 17

É <tambem> a ancia de partir<,>/!\ <o>/Oh,\ [o] horror ao mesmo sitio, por mais

belo! Quem estará contente no paraizo, depois de quinze dias de

bemaventurança? Compreende-se o pecado de Adão e a queda de Napoleão.

Aborreceram-se, um, do jardim do Eden, outro, do jardim das Tulherias.

Com o cancelamento do advérbio inicial e com a introdução da interjeição, a

frase divide-se em duas e aproxima-se da do Manuscrito A, num retorno em que

parece estar patente a opção por uma certa concentração verbal, à qual se adiciona

tom emotivo. Quanto ao restante, o enunciado fixou-se, sem mais hesitações, na

formulação do paraíso e da identidade de Adão e Napoleão.

Na primeira edição este passo é bastante diferente. O mais significativo é o facto

de não haver qualquer referência a Adão e a Napoleão, que são substituídos por outro

nome: Frei Agostinho. Do exemplo de duas figuras, uma mitológica e outra histórica,

que não conseguiram permanecer num local belo, passa-se para o exemplo contrário,

o de uma figura histórica, Frei Agostinho da Cruz, que viveu como eremita no convento

da Arrábida por mais de quarenta anos, até à sua morte:

1.ª Edição, pág. 22

[...] ansioso de partir ou impelido pelo horror ao mesmo sítio. Estar aqui, neste

lugar tão belo, eternamente... só Frei Agostinho na Arrábida.

No pensamento gnóstico pascoalino Adão e Napoleão, figuras mítica e histórica

do real decadente, vivem no universo em situação de encarceramento, enquanto o

convento aparece, em São Jerónimo, como «a única habitação que não é cárcere»35.

35

«Quando, na biografia de São Jerónimo, lemos que "o convento é a única habitação que não é cárcere" (Jer 32), deverá ler-se "habitação" num sentido eminentemente inclusivo: excetuado o enclave livre que é o convento, o universo é a forma mais ponderosa de encarceramento» (Feijó, 2015: 81).

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Nesta sequência genética, portanto, substituem-se duas ilustrações concretas (Adão e

Napoleão) da ideia da fuga do emprisionamento a que está condenado o homem pela

expressão da mesma ideia a contrario, isto é, pela ideia da imobilidade no território

livre que é o convento, ilustrada por um único exemplo (Agostinho da Cruz). Como «a

poesia é esse impulso nómada» (Feijó, 2015: 94) e «o filósofo se move na dúvida»36, o

autor-personagem do Duplo Passeio, iniciando a viagem com impaciência, dá início a

uma viagem de demanda poética e filosófica.

Aos olhos do leitor habitual de Duplo Passeio não aparece senão Frei Agostinho

da Cruz e o efeito desta substituição é o da antítese marcada entre a posição do santo

imóvel e a do autor-filósofo inquieto. Pascoaes preferiu, portanto, na última

oportunidade de emenda do texto, o efeito retórico da antítese ao da analogia

identificadora.

Qual o lugar que ocuparia nesta série genética o texto do bloco de notas?

O horror ao mesmo sitio é profundamente... camiliano<...>/,\ ou adamico; quem

estará contente no paraiso, depois de 15 dias de bemaventurança?

Compreende-se o pecado de Adão e a queda de Napoleão. Aborreceram-se, um

do jardim do Eden, outro, do jardim das Tulherias...

Ele é certamente posterior a C, porque já tem a «bemaventurança» e o

aborrecimento de Adão e Napoleão. Mas pode igualmente ser posterior a D, se

considerarmos que foi rejeitada a formulação das frases iniciais, e que este é um

testemunho intermédio em que surge uma terceira figura, Camilo, que terá acabado

por ser eliminado com os seus pares Adão e Napoleão e com eles ser preterido em

favor do exemplo de Frei Agostinho.

Consideremos, porém, algumas peças de um outro dossier genético, o de O

Penitente, biografia de Camilo Castelo Branco publicada no mesmo ano que Duplo

Passeio, apenas meses mais tarde, pela Livraria Latina, e cujo contrato de edição37 data

de 14 de Maio de 1942. A este dossier pertencem dois manuscritos cujos microfilmes

podem ser consultados na bobine 26 de F. R. 133. Daqui em diante, referir-me-ei a eles

36

«O santo crê, imobiliza-se na certeza, enquanto o filósofo se move na dúvida» (Feijó, 2015: 81). 37

Biblioteca Pública Municipal do Porto, ML-P11A, n.º inv. 1286A (BPMP, 2011)

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como O Penitente A e O Penitente B. Vejamos um passo de O Penitente A,

comparando-o com o passo do bloco de notas:

Bloco de notas O Penitente A, fólios 72 e 72v

O horror ao mesmo sitio é profundamente...

camiliano<...>/,\ ou adamico; quem estará

contente no paraiso, depois de 15 dias de

bemaventurança? Compreende-se o pecado

de Adão e a queda de Napoleão.

Aborreceram-se, um do jardim do Eden,

outro, do jardim das Tulherias...

O horror ao mesmo logar é profundamente

camiliano ou adamico, pois Camilo é mais que

um homem; é tambem o Homem...38 Quem

viverá contente no Paraiso, depois de quinze

dias de bemaventurança? Compreende-se o

pecado de Adão e a queda de Napoleão.

Aborreceram-se, um, no Jardim do <Eden,>

Eden, o outro, no jardim das Tulherias.

É evidente a identidade estreita entre o bloco de notas e o manuscrito de O

Penitente. O passo de O Penitente A é posterior ao bloco de notas, na medida em que

inclui a adição feita neste, com pequenas variantes: «é profundamente... camiliano, ou

adamico». A palavra «sitio» do bloco de notas e de quatro testemunhos de Duplo

Passeio é substituída por «logar». Na segunda frase, o verbo «estar» é substituído pelo

verbo «viver». Na última, Adão e Napoleão não se aborreceram «do», mas sim «no»

Jardim do Éden e «no» Jardim das Tulherias. Façamos agora a comparação com O

Penitente B:

O Penitente B, pág. 93

O horror ao mesmo logar é <profundamente> camiliano, pauliniano [{↓}

napoleonico] ou adamico, pois Adão não suportou o Paraiso, nem Napoleão o

trono imperial. Aborreceram-se, um, no jardim do Eden, o outro, no jardim das

Tulherias. Antes o inferno e Santa Helena!

Mantêm-se as emendas introduzidas em O Penitente A: «logar» e «no». As frases

são reestruturadas, mas a ideia mantém-se. O advérbio «profundamente» é eliminado.

O horror ao mesmo lugar, além de ser adjectivado de «camiliano» e «adamico», passa

38

Neste ponto há uma adição na margem inferior que explora o que é ser «um Homem». Não a incluo aqui porque me parece pouco relevante para o que procuro demonstrar e porque esta ideia não é continuada no testemunho seguinte.

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a ser também «pauliniano» e «napoleónico», quase esgotando (falta S. Jerónimo) toda

a série de biografados já percorrida por Pascoaes (S. Agostinho será escrito depois da

biografia camiliana), num eloquente traçar da linha que reúne essas figuras no

pensamento do autor. Cai a amplificação de O Penitente A, «pois Camilo é mais que

um homem, é tambem o Homem...», substituída por uma explicação para os dois

novos adjectivos introduzidos: «pois Adão não suportou o Paraiso, nem Napoleão o

trono imperial». Por fim, uma intensificação com a adição «Antes o inferno e Santa

Helena!».

Na primeira edição de O Penitente (Camilo Castelo Branco) o passo é levemente

encurtado:

O Penitente (Camilo Castelo Branco), 1.ª edição, pág. 142

O horror ao mesmo lugar é camiliano, pauliniano, napoleónico ou adámico, pois

Adão não suportou o Paraíso, nem Napoleão o trono imperial. Aborreceram-se,

um, no Jardim do Eden, outro, no jardim das Tulherias.

Não há variantes substantivas nem de pontuação, há apenas variantes gráficas.

A exclamação final («Antes o inferno e Santa Helena!») não aparece.

O texto do bloco de notas participa, portanto, tanto da génese de Duplo

Passeio como da génese da biografia de Camilo. Tudo indica que ocorreu com este

passo uma bifurcação genética:

Duplo Passeio 1.ª edição

Duplo Passeio A → B → C → D

bloco notas → O Penitente A → B → 1.ª ed.

Não é possível afirmar com segurança se a bifurcação se deu depois de D ou de

C. Uma análise do bloco de notas revela que os textos que contém pertencem

maioritariamente à génese de O Penitente, tratando-se muito provavelmente de um

suporte onde Pascoaes anotava frases e ideias que pensava aproveitar para a escrita

desta biografia39. A transferência para este novo suporte parece também corresponder

39

Por limitações de tempo e espaço, não será possível fazer a demonstração cabal da articulação entre os apontamentos do bloco de notas e as restantes peças do dossier de O Penitente, de forma a demonstrar o que aqui afirmo. É trabalho que terei de deixar para melhor ocasião.

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ao mesmo processo de depuramento textual que já encontrámos no ponto sobre a

seriação dos testemunhos. O texto de Duplo Passeio foi amplificado nos testemunhos

intermédios (B, C, D) e por fim depurado para publicação (1.ª edição), sendo o

«excesso textual» resultante da depuração conduzido por bifurcação para um novo

texto.

Não é este o único caso de bifurcação genética em Pascoaes. Atentemos no

seguinte excerto de Camilo Castelo Branco, Memórias do Cárcere, vol. I, Viúva Moré,

1864, discurso preliminar, pág. XXXIX:

No coberto da capellinha da aldeia encravada no sopé da serra, vi o cadaver

fulminado d'uma pastorinha, e mulheres em volta d'ella, amarellas de terror.

Este excerto faz parte da exogénese de Duplo Passeio. Surge pela primeira vez

sob a forma de uma adição na margem superior do Manuscrito C:

Manuscrito C, fólio 18

Lá está a *cota *capelar, e a sua cobertura, onde o *genial *escritor viu o

cadaver duma pastorsinha fulminado, rodeado de lividas mulheres...

No testemunho seguinte o passo foi integrado no texto e significativamente

alterado:

Manuscrito D, pág. 29

Lá está <a>/o\ <cobertura> alpendre da capela, onde o apostolo da Penitencia,

o nosso Paulo de Seide, encontrou o cadaver duma pastorsinha, cercado de

lividas mulheres ou fantasmas do terror.

A expressão comum «*genial *escritor» é substituída pelas perífrases que

inscrevem Camilo no sistema filosófico de Pascoaes, «o apostolo da Penitencia, o

nosso Paulo de Seide»; as «lividas mulheres» são igualmente semantizadas como

«fantasmas do terror», remetendo para o lado demónico e tenebroso do dualismo

radical de Pascoaes (Feijó, 2015: 94-95), intensificado pela substituição de

«rodeado» pelo violento «cercado» na descrição da posição do cadáver na cena.

Finalmente, o dramatismo é acentuado também na posição da personagem Camilo

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que, em vez de simplesmente ver o cadáver, numa posição a uma distância vaga, o

encontrou, com sugestão de impacto e proximidade.

Na primeira edição de Duplo Passeio este passo não aparece. No entanto,

podemos encontrá-lo, com bastantes variantes, em O Penitente A:

O Penitente A, fólio 108

<Parece que> <f>/F\oi nessa altura, [(↓) parece,] que ele encontrou, sob o

alpendre duma ermidinha [(↓) da] serra, <[(↓) conrgua à estrada,]> o cadaver

<duma>[↑duma] jovem pastora <fulminada>[↑morta] por um raio,

<cercada>[↑no meio] de <mulheres, <†> †> <lividas mulheres, ajoelhadas e de

mãos erguidas, a rezar> <[(↓) lividas]> mulheres <lividas>, petrificadas de terror.

Dado que se trata de uma biografia, o episódio está enquadrado no resto da

narrativa: «Foi nessa altura, parece». Camilo continua a «encontrar» o cadáver, e a

«pastorsinha», agora «jovem pastora», passa a estar «no meio de» mulheres;

repare-se que a variante «cercada» do Manuscrito D de Duplo Passeio ainda foi

considerada, mas preterida em favor de uma atenuação. A «capela» passa a ser «uma

ermidinha da serra». Muito provavelmente, para além de ter usado o Manuscrito D,

Pascoaes terá voltado a consultar o primeiro volume de Memórias do Cárcere ou o

Manuscrito C, porque é indicado o motivo da morte da pastora, ausente no

Manuscrito D de Duplo Passeio: «<fulminada>[↑morta] por um raio».

No testemunho seguinte, de «jovem pastora» até ao fim do passo, este

mantém-se inalterado. É no seu início que ocorrem algumas variantes:

O Penitente B, pág. 145

Foi então que ele encontrou, no declive oriental da serra, e <*num> no alpendre

duma <capelinha,> capela, uma jovem pastora, morta por um raio, no meio de

mulheres petrificadas de terror.

São, sobretudo, substituições sinonímicas: «nessa altura» por «então», «sob o

alpendre» por «no alpendre», «ermidinha» primeiro por «capelinha» e depois por

«capela». Aparece a expressão «no declive oriental da serra».

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A primeira edição de O Penitente mantém este passo inalterado, salvo uma

variante gráfica:

O Penitente (Camilo Castelo Branco), 1.ª edição, pág. 219

Foi então que êle encontrou, no declive oriental da serra, e no alpendre duma

capela, uma jovem pastora, morta por um raio, no meio de mulheres petrificadas

de terror.

Desta vez parece mais evidente que a bifurcação se deu depois do Manuscrito D

de Duplo Passeio e não antes. É o que indica a presença de «cercado» e «terror» em O

Penitente A. A génese deste passo pode então ser esquematizada:

CCB, Memórias do Cárcere O Penitente A

Duplo Passeio C (margem) → D (texto)

No Manuscrito C de Duplo Passeio há anotações feitas nas margens que não têm,

aparentemente, ligação com o texto. Algumas delas assemelham-se com frases de O

Penitente (Camilo Castelo Branco). É o caso da nota seguinte, a caneta vermelha:

Manuscrito C, fólio 58, adição na margem superior40

<*No>/A\ descrença justifica a nossa crença, e o pessimismo o optimismo.

No primeiro manuscrito de O Penitente há uma frase semelhante a esta, nas

notas finais.

O Penitente A, fólio 117

O optimismo resulta do pessimismo, a crença da descrença.

No testemunho seguinte, bem como na primeira edição (pág. 110), a nota foi

integrada na narrativa e a frase mantém-se igual, excepto na adição da partícula de

ligação «e» a seguir à virgula:

O Penitente B, pág. 71

O optimismo resulta do pessimismo, e a crença da descrença.

40

Note-se que, apesar de a nota se inscrever na margem superior, não há sinal da inserção no texto, ou seja, a linha com que habitualmente Pascoaes liga as adições topograficamente distantes ao lugar do texto onde devem ser integradas.

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Segue-se outro exemplo de adição na margem superior do Manuscrito C sem

aparente ligação com o texto:

Manuscrito C, fólio 74, adição na margem superior

Creio eu, embora seja mentira!

Esta exclamação aparece no primeiro manuscrito de O Penitente, desta vez

enquadrada numa frase:

O Penitente A, fólio 54v

Creio eu, embora seja mentira! exclamava uma rapariga da minha aldeia, ouvindo

pôr em duvida <o>/a\ <aparecimento> aparição <duma> da Virgem, na serra da

Abobreira.

No testemunho seguinte a frase mantém-se igual, exceptuando «da minha

aldeia», que desaparece. O mesmo acontece na primeira edição desta obra, na página

103.

O Penitente B, pág. 66

Creio eu, embora seja mentira! exclamava uma rapariga, ouvindo pôr em duvida a

aparição da Virgem, na serra da Abobreira.

Há outras duas notas nas margens do Manuscrito C que também parecem estar

relacionadas com O Penitente, embora talvez de forma não tão óbvia:

Manuscrito C, fólio 98v, adição na margem superior

Vultos de princezas que só vemos pelas costas, arrastando, na *penumbra, a

cauda de sêda luminosa..

A mesma ideia está presente no fim do capítulo X de O Penitente:

O Penitente A, fólio 151v

[...] dama ou Princeza, que se afasta, para <um> o fundo escuro d<a>/o\ <tela>

quadro, arrastando hieraticamente a cauda <branca>[↑ luminosa] do vesrdo...

O Penitente B, pág. 185

[...] dama ou Princeza, que se afasta para o fundo escuro do quadro arrastando

hieraticamente a cauda branca do vestido...

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O Penitente (Camilo Castelo Branco), 1.ª edição, pág. 279

[...] dama ou Princesa, que se afasta, para o fundo escuro do quadro, arrastando

hieràticamente a cauda branca do vestido...

Mais distante ainda, embora não de todo improvável, é a relação entre a

seguinte nota marginal do Manuscrito C e um segmento do capítulo II de O Penitente:

Manuscrito C, fólio 79, adição na margem superior

A musica é <ruido ao> feita de ruidos ao longe.

O Penitente A, fólio 20

[...] que o paraiso é inferno esfumado, [(↓) dor anestesiada,] remota, lá onde é

musica o ruido...

O Penitente B, pág. 23

Assim o inferno se esfuma em paraiso, o perto em longe, e em musica o ruido.

O Penitente (Camilo Castelo Branco), 1.ª edição, pág. 40

Assim o inferno se esfuma em jardim das delícias, o perto em longe, e a música

em ruído.

Apesar de terem em comum a relação música/ruído, a estrutura frásica desta

adição na margem do Manuscrito C não é suficientemente próxima do segmento de O

Penitente para podermos concluir que faz parte da génese da biografia de Camilo

Castelo Branco. Se foi este o caso, a mudança na frase deu-se na cabeça do escritor,

não deixando vestígios no papel.

As datas presentes nos manuscritos de O Penitente confirmam que estes são

posteriores aos de Duplo Passeio. O primeiro manuscrito está datado de 28 de Agosto

de 1941 e o segundo terá sido escrito, segundo as datas presentes no manuscrito, de

20 de Janeiro de 1942 a 17 de Março de 1942.

Os dados aqui apurados confirmam o que foi dito por António Cândido Franco

(1996: 104) acerca do processo de escrita do autor:

[...] processo de assimilação de textos anteriores, no caso homo-autorais, mas que

noutros casos podem até ser hetero-autorais, textos esses que vão sendo sugados

e absorvidos para camadas sempre mais profundas[...]

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Pascoaes escrevia como se tivesse vários textos na cabeça simultaneamente, e

fazia derivar sequências de uns para outros, revelando uma complexa articulação

semântica e conceptual que interliga o conjunto de narrativas escritas no final da vida,

as cinco biografias (São Paulo, São Jerónimo, Napoleão, O Penitente, Santo Agostinho)

e a narrativa Duplo Passeio. Na verdade, dada a coerência deste conjunto de textos,

onde pode ser encontrado o sistema filosófico pascoalino, «disperso nas cinco

biografias que Pascoaes escreveu, entre 1934 e 1945» (Feijó, 2015: 80), quase

poderíamos considerar os textos escritos neste período (incluindo Duplo Passeio)

como um grande macro-texto, no interior do qual Pascoaes recolocava sequências

textuais, projectando-as para o texto seguinte. A dimensão global e as implicações que

pode ter este processo de escrita no conhecimento do pensamento do autor só serão

reveladas quando puder estudar-se a génese de cada uma destas obras. O seu estudo

mostrará talvez outras linhas bifurcadas de circulação textual, invisíveis para os leitores

dos textos das primeiras edições.

5.3. Evolução Entre Estados Genéticos

Como já foi referido, a principal alteração ocorrida durante a génese desta obra

parece ter sido o facto de inicialmente o escritor não ter em mente dividir a narrativa

em duas partes, como a conhecemos — recorde-se que no Manuscrito B a palavra

«Epilogo» foi cancelada e substituída por «Segunda Parte».

O Manuscrito C não revela muitas emendas ao nível da pontuação. Os passos

comparados mostram que o mesmo se passou com os outros manuscritos,

diferentemente do que ocorre de um estado genético para outro: as passagens a limpo

ocasionaram muitas variantes deste tipo. É habitual os escritores deixarem questões

relacionadas com a pontuação para serem resolvidas nas provas tipográficas, e

Pascoaes parece não ser excepção.

Vejamos de seguida algumas diferenças entre o Manuscrito D e a 1.ª edição.

Manuscrito D, pág. 54

[...] transluz numa flor e é uma energia <indestruti> invencivel, em dado

momento proprio.

Revelaram-me a verdade divina, pois tal verdade não se demonstra [...]

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1.ª edição, pág. 62

[...] transluz numa flor, e é uma energia primaveril que incendeia de vida a morte.

Soou, nos meus ouvidos, como um toque de moeda em que se ouve o oiro retinir.

O oiro é que se ouve, não é a moeda. Assim nas palavras da rapariga, ouvi apenas

a verdade. E a verdade divina não se demonstra[...]

Manuscrito D, pág. 55

Existe a luz, porque nos fere os olhos; e Deus tambem nos fére ou como <sendo

o> Espirito <vivente> ou como problema do espirito. Fére-nos sempre, como

Fantasma ou Sêr. [{↓} Como enrdade ignota ou conhecida.] Fére os crentes e os

descrentes. Que o diga o <pobre>[↑ nosso] Apostolo, com a testa queimada dum

relampago. Que o digam os martires, os eleitos da dôr, os lançados às feras e à

fome, essa loba que nos devora lentamente.

1.ª edição, pág. 62

Existe luz, porque nos fere os olhos. E Deus também nos fere, porque o negamos

e afirmamos, injuriamo-lo e adoramo-lo, matamo-lo e morremos por êle. Olhai o

Apóstolo, com a fronte queimada dum relâmpago! E os mártires, os eleitos da

Dor, os lançados às feras ou à fome, essa lôba que nos devora lentamente? E os

Nietzches, os desesperados contra a religião cristã? E os anacoretas do deserto? E

os lucrecianos, anacoretas do ateísmo? E os ascetas da Estupidez mineralizados na

mais absoluta indiferença? Diversos actores figuram no drama religioso. São actos

dêsse drama a propaganda de Paulo e a de Voltaire, o Cristo entronizado no

Vaticano, e queimado, com todos os Deuses, numa fogueira de Moscovo...

Manuscrito D, pág. 56

Não me saia da memoria a raparig<a>[↑ uinha]<, a sua figurinha> trigueira,

altiva e medrosa, na sua atitude de inspirada <de creança,> <infantil,>[↑ de

creança,] com o vestido de chita muito cingido ao corpo <esbelto.>[↑ esguio.]

1.ª edição, págs. 63-64

Não me sai da lembrança a rapariguinha trigueira, embrulhada num farrapo

de chita, portadora duma frase, que é todo o Livro da Vida citado, por Paulo, nas

suas cartas. Persegue-me aquela criança inspirada e enviada à minha incerteza,

êsse deserto e oásis confundidos, em que eu divago, sedento e saciado, alegre e

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aflito, numa onda de alvoroço a petrificar e a liquefazer-se, ora parada em

mármore, ora evolada em luar.

Manuscrito D, pág. 57

[{↓} O mundo anrgo, ao falecer, legou-nos Jesus Cristo... <Foi necessario a morte

dum *mundo, para o nascimento de Jesus, esse>] [↑ O] caminheiro do deserto.

1.ª edição, pág. 66

O mundo antigo, falecendo, legou-nos Jesus Cristo. Daquele imenso

cadáver tombado ergueu-se aquele Espectro sobrenatural. Tomou figura humana,

perante as almas, que êle já existia desde a Origem, mas inominado e invisível. A

embriaguez pagã ou infantil iludiu a sua Presença. Foi preciso o desencanto da

aurora, a noite, para que o seu vulto de luar se desenhasse nas trevas. É na

solidão que ele aparece ao nosso espírito, que o nosso espírito é a suprema

solidão, a consciência do deserto, ou, melhor, o deserto a contemplar-se no Mar

Morto, esse espelho da Parca.

Cristo é o caminheiro do deserto.

Manuscrito D, pág. 57

Não é o corpo de Cristo a mesma terra, a Mater? Valha-me Cristo! Ai, Jesus!

1.ª edição, págs. 67-68

Cristo é o padre Sol e a terra mater, a Virgem Pura e o Sagrado Coração. Filho do

seu coração, que é o ventre onde se gera o amor, é ele o próprio Amor, um Ente

sobrenatural.

O amor não é natural; natural é a sensualidade e a crueldade. Basta a

sensualidade para que haja vida; mas a vida humana só aparece com o amor. É

obra de Jesus a metaforfose da sensualidade em amor, a passagem de cá para lá,

a transfiguração e a ascensão.

O homem forte não o é o que luta contra o tigre, de punhal nas unhas,

como na estátua de Regent Park; é o que luta com o lôbo, como S. Francisco. Êste

é que é o homem perante a bêsta; aquele é outra bêsta, a super-bêsta, ó

Zaratustra! S. Francisco, irmanando-se à fera ou amansando-a, é o mesmo Cristo.

Todos os gritos vão para êle. Ai Jesus!

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Manuscrito D, pág. 60

Cristo é o calor da Verdade, e o canto de aleluia que inflora as almas; <e o

devaneio inefavel, a intima ternura alada em que elas se libertam dos seus

corpos> e [↑ nele] pairam além da morte. Ha momentos de etérea anciedade em

que pairamos além da morte. Se tal momento se eternisasse!... Talvez um dia!...

Talvez um dia!

1.ª edição, pág. 74

Cristo é o calor da Verdade, mas um calor vestido de luz, como a dor se

veste de água nas lágrimas. Por isso, a sua aparição é a da primavera: afasta o

inverno e a morte. Diante dela, por mais efêmera que seja, temos o sentimento

da eternidade.

Os exemplos apresentados demonstram que não houve alterações profundas de

manuscrito para manuscrito, na medida em que as emendas não alteram o sentido do

que já estava escrito e não orientam a narrativa numa direcção diferente da

estabelecida, mas são sobretudo de carácter estilístico e surgiram da busca pela

palavra ou expressão ideal. As frases acrescentadas vêm reforçar uma ideia e as frases

eliminadas foram provavelmente consideradas dispensáveis por serem repetitivas ou

supérfluas.

A análise da génese destes passos de Duplo Passeio demonstra existirem

diferenças consideráveis entre o Manuscrito D e a 1.ª edição, sobretudo relativamente

ao texto adicionado, mas também a respeito de texto removido. Isto prova que um ou

ambos os estados genéticos intermédios, o dactiloescrito feito por Beatrice Thelen e as

provas tipográficas, foi ou foram alvo de numerosas emendas autógrafas.

Há indícios de que o escritor trabalhava simultaneamente com mais de dois

estados genéticos ao mesmo tempo: refiro-me a retornos, isto é, quando reaparece

uma expressão ausente no estado genético imediatamente anterior, mas presente

noutro mais antigo. De seguida apresento três exemplos. No Manuscrito C estão

ausentes as expressões «o seu vulto» (página 55 do Manuscrito D) e «o seu pequeno

vulto» (fólio 29 recto do Manuscrito B), o que aponta para que o escritor estivesse a

consultar não só o Manuscrito C, mas também o B. Na 1.ª edição, página 63, a

expressão «jardim suspenso de Semiramis» é um eco da expressão utilizada nos

manuscritos B e C: «jardins suspensos de Semiramis» (29v e 34v, respectivamente); no

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Manuscrito D, página 55, a formulação utilizada é «jardins de Babilonia». A palavra

«orango» está presente no Manuscrito C (fólio 37: «<Vivamos longe do orango,><[(↑)

Afastemo-nos do orango, [↑ libertemo-nos da sombra ridicula,] vivamos] além de nós

ou no Senhor.>») e na 1.ª edição (página 72: «Ou a nossa vida é susceptível de se

tornar amorosa e fraternal, ou, então, o sêr humano é um orango qualquer e mente ao

seu destino redentor, que é transformar a violência em brandura, a fealdade em

beleza, acrescentar o Sobrenatural ao Natural.»); a palavra «orango» ocorre

aproximadamente no mesmo ponto da narrativa, apesar de estar enquadrada em

frases bastantes diferentes; no Manuscrito D está ausente.

O facto de não haver uma lista, um esboço da divisão dos capítulos ou um plano,

por exemplo, mas apenas testemunhos genéticos nos quais a narrativa se encontra

textualizada, aponta para que Teixeira de Pascoaes seja um escritor de processo, e não

um escritor de programa. O restante espólio do escritor também suporta esta

conclusão. Almuth Grésillon (1994 :243) define escrita de programa como «um tipo de

escrita que obedece a um programa preestabelecido e cuja elaboração percorre vários

estados genéticos (notas documentais, planos, esboços, listas)» e escrita de processo

como «um tipo de escrita sem fase preparatória, sem plano, sempre textualizada.»

5.3.1. A Génese do Cristo de Travassos

De seguida é apresentada a evolução genética do epifânico encontro do autor,

em Travassos, com a criança que lhe mostrou a imagem de Cristo no largo da

povoação. Este episódio é especialmente importante, pela sua centralidade filosófica

na obra de Pascoaes. A edição dos estados genéticos é dada lado a lado, dois de cada

vez, para facilitar a sua colação.

Manuscrito B, 28v Manuscrito C, 33v

Esta rua desagua no Largo onde encontramos um monumento religioso. É um pobre alpendre circular, abrigando uma tôsca imagem de Cristo crucificado.

Esta rua <desagua> finda num largo assinalado por um mon<o>/u\mento religioso, <em tão> <num>[↑ em] esrlo tão rudimentar que [(↑) , simbolisando Cristo,] parece anterior <a qualquer religião.>[↑ ao deus Apolo.] É, na verdade, uma tôsca imagem de

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Saimos do auto e paramos, deante dela. Então, uma rapariga quasi creança, de onze anos, talvez, aproxima-se de mim. Era <*tri> morena, delicada<, de palidas>[↑ de] feições, <† †>[↑ num] vesrdinho [↑ de] chita muito cingido à magreza esguia do <seu> corpo. Aproxima-se de mim, entre espantada e sorridente, a vencer a propria timidez, como impelida por um impeto misterioso e <transcendente><[↑transcendente] ao seu pequeno sêr feminino.><[{↓} exterior a ela.]> <[↑ E logo,]> <De <repente,>[↑ subito,]> <t>/T\oc<a-me>/ou-me\ num braço, com a <sua> mãosinha triste e <e> assim me di<z:>/sse\, apontando o crucifixo:

Aquele é o Senhor.

<Estremeci.> O gesto, <a fisionomia,>[↑ e] a intoação da voz da rapariga <desenharam-se-me nos sentidos> não sei reproduzi-los <em palavras.>[.] <*Afele> Afligem-me, neste momento, como certas nuances das cousas <que nos fogem d> tão distantes do seu desenho, que <é impossivel exprimi-los.>[↑ são inexprimiveis.] Naquele gesto, havia um além indefinivel. <[(↑) Seria dela aquele]> E aquela voz esvoaça, na minha lembrança, não para me repetir a sua fraze, <mas outra fraze> em que a <minha> tôsca imagem <ressurgiu>[↑ de Cristo] lampejou ressuscitada, como na manhã da aleluia, mas outra fraze insistente:

<Cristo cr> Jesus crucificado, protegida pelo teto dum alpendre <alpendre41,> <circular> tambem de côlmo. Saimos do auto e <paramos, deante dela. Então, uma rapariga de onze anos, talvez, abeira-se de mim.> [↑ puzemo-nos a] <C>/c\ontempla<va>/r\ <eu> aquele Cristo <tão ingenuamente> duma divindade <tão> ingenua<, dum sofrimento no corpo>[↑ e <tão> ingenuamente] martirisad<o>/a\, onde

as chagas riam vermelho do artista que as pintou...

De repente, senti <num braço>[↑ no braço] esquerdo uma pancada <suave>[↑ branda [{↑} , a mêdo,]] que <me despertou,> e vi uma pequena mão triguei<rinha>/r<a\>/i\[↑nha] e triste, apontando-me o Crucifixo. E logo estas palavras<:> [(↑) , <duma seriedade infinita>[↑ <de>[↑ duma] infinita seriedade] na intoação infantil:]

Aquele é o Senhor. Era uma rapariga, <quasi creança,> de

onze anos, talvez, morena e delicada de feições, com um <vestido de chita> vestidinho de chita (ha vestidos que provocam a ternura) muito cingido, à <cintura esguia> magreza esguia do seu corpo.

<Estava>[↑ Ficou] [(↓) a olhar-me,] <entre> <espantada[,]> <e sorridente,> [↑ curiosa e trémula,] a vencer a propria timidez, como <animada> <se tivesse> <se a tivesse impelido> animada por uma força <misteriosa.>[desconhecida.]

O seu gesto, a intoação da sua voz, não sei reproduzi-los. Afligem-me, <neste momento,>[↑ agora,] como certas nuances das cousas <muito>[↑ tão] distantes d<os>/o\ <seus> desenh<os>/o\ [(↑) destas,] que são perfeitamente inexprimiveis. Naquele gesto havia um além indefinivel; e aquela voz esvoaça, na minha lembrança, não para me repetir a fraze em que a tôsca imagem de Cristo lampejou ressuscitada, mas outra fraze insistente:

41

«alpendre <alpendre>»: a repetição é erro, provavelmente no decurso de mudança de linha: «alpendre / alpendre.»

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Não acreditas ainda na divindade de Jesus? Senti nas palavras da creança uma

verdade superior à dos escritos dum Santo Agostinho ou S. Tomaz<.>[{↓} que a verdade <é indemonstravel> não se demonstra: afirma-se. E a sua prova real está na sua evidencia deslumbrante.] E <o misterio da sua aparição ali, naquel<e>/a\ <lar> praça de Travassos, vinda donde e para que?>[↑ a aparição da rapariga?] <Donde veiu ela? E para que?>

A que impulso obedeceu [↑ ela,] ao dirigir-se <a>/à\ <mim?> minha melancolica pessôa? Donde lhe viria <a força> essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda?

<Quando <acordei>[↑ voltei a mim,] da minha comoção, o seu pequeno vulto havia>[↑ Quando acordei da minha surpreza comovida, tinha] desaparecido o seu pequeno vulto. Escondeu-se numa nuvem ou no interior duma choupana de côlmo e pedregulho que o <vento>[↑ temporal] não derruba, porque penetra por todos os buracos. Estas choupanas da serra não diferem duma obra da Natureza.

Não acreditas ainda no Senhor? <Revelaram-me> <as>/As\ palavras da

creança <uma verdade superior>[↑ rveram [↑ mais eloquencia], para mim,] <uma eloquencia superior à dos>[↑ que os] escritos dum São Tomaz<, por> e mesmo dum Agostinho. Revelaram-me <não sei <bem> que>[↑ a] verdade <transcendente,>[↑ divina,] pois tal verdade não se demonstra: afirma-se; e a sua prova real está na sua evidencia deslumbrante. Existe a luz, porque nos fére os olhos; <Deus> <existe> [e] Deus<, porque> [↑ tambem] nos fére <o coração.>[...] Que o diga o pobre Apostolo, com <o golpe dum relampago na testa!> a testa queimada dum relampago! Que o digam os mártires de Cristo, <desde> os <que fôram lançados às feras <†>[↑ e os] que sofrem os golpes do Destino> <e as victimas <dum cruel destino.> da desgraça impiedosa, os eleitos> os eleitos da dor, os lançados às feras e à fome, essa lôba que nos devora lentamente.

A que impulso obedeceu a rapariga, quando me <tocou> bateu no braço <com> a <mesma> mão <a estender-se já <na> para>[(↓) já decidida a apontar-me] a <tôsca> escultura [↑ tôsca] de Jesus? Donde lhe viria essa audacia que a levou a dominar o seu proprio acanhamento e lhe deu uma atitude de heroina e até de personagem da Historia Mistica,> <*ou></de\>[↑ de] pequenina Santa Tereza, uma Santa Tereza em botão de rosa selvatica, crestado do sol e da miseria? Donde lhe viria essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda? <[Não!] [(↑) que esse mais longe se existisse, ficaria já [↓ este mais longe se existisse, ficaria] para lá de Deus..]>

Tinha ela desaparecido, <ao>[↑ quando] acord<ar>/ei\ da minha surpreza comovida. Escondeu-se numa nuvem ou no interior duma choupana de côlmo e pedregulho, que o temporal não destróe, porque penetra, dentro dela, por todos os buracos. Estas choupanas da serra não diferem duma obra da Natureza.

No Manuscrito B a descrição da imagem de Cristo crucificado é feita

rapidamente: «tôsca imagem». No Manuscrito C é mais detalhada: «duma

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divindade <tão> ingenua<, dum sofrimento no corpo>[↑ e <tão> ingenuamente]

martirisad<o>/a\, onde as chagas riam vermelho do artista que as pintou...» O corpo

da figura religiosa foi «martirisado ingenuamente» pelo artista que pintou as feridas,

que se assemelham a bocas vermelhas a rir-se dessa ingenuidade. O episódio da

revelação religiosa de Teixeira de Pascoaes não gira em torno de uma imagem religiosa

feita por um grande mestre e exposta num grande monumento, mas de uma figura

grosseiramente executada e destinada a ser contemplada por poucas pessoas, num

largo de uma pequena povoação quase desconhecida, «Travassos, perdida em pleno

êrmo serrano de Traz-os-Montes. Em letra redonda, só aparece num romance do

Camilo<, pois o mapa não lhe concede tal importancia>» (Ms C, fl. 1).

No fólio 21v é feita referência a uma imagem semelhante, que também tocou o

escritor: «o Cristo mutilado, prêso à Cruz, só por um braço, sob um alpendre tão

miseravel, exposto à ventania da serra, impressionou-me fundamente<.>/,\ [(↑)

porque nunca entendi, como então, aquele grito, Perdoae-lhe, que eles não sabem o

que fazem.] E todavia é natural o odio atentar contra o amor, embora o odio seja um

animal vivente e o amor uma tôsca imagem de madeira.»

Ambas as imagens, para além de toscas, possuem uma qualidade patética que as

torna mais comovedoras: as feridas pintadas de tal modo que se assemelham a bocas,

no caso do Cristo de Travassos, e a falta de um dos braços na outra figura.

Ainda acerca da imagem do Cristo de Travassos, Pascoaes faz a seguinte reflexão

(Ms. C, fl. 39):

Sei que vi <o> Cristo <carnal> naquela escultura de madeira, quando o gesto da

rapariga incidiu, sobre ela, como um relampago, como a propria luz da evidencia

sobrenatural[...]

Vi o Cristo, <vivo,> a redenção pelo sofrimento; <e o sofrimento redimido

ou divinisado> <que>[↑ pois] toda a emenda é dolorosa; é cortar em carne viva,

aperfeiçoar a estatua <animada,>[↑ viva,] a golpes de cinzel.

[§] E vi o sofrimento redimido ou divinisado. Temos de subordinar a nossa

triste realidade a uma verdade superior. E eis o <orango deante do homem,> o

escravo deante do senhor. Ser escravo cristãmente é prender as más tendencias,

metê-las no segredo.

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Estes parágrafos condensam dois aspectos centrais da revelação religiosa de

Pascoaes: a redenção pela dor e a submissão voluntária dos cristãos ao Senhor — daí a

importância das únicas palavras pronunciadas pela pequena no largo de Travassos:

«Aquele é o Senhor», à luz das quais «a tôsca imagem de Cristo lampejou

ressuscitada».

Manuscrito C, 33v Manuscrito D, pág. 53

Esta rua <desagua> finda num largo assinalado por um mon<o>/u\mento religioso, <em tão> <num>[↑ em] esrlo tão rudimentar que [(↑) , simbolisando Cristo,] parece anterior <a qualquer religião.>[↑ ao deus Apolo.] É, na verdade, uma tôsca imagem de <Cristo cr> Jesus crucificado, protegida pelo teto dum alpendre <alpendre,> <circular> tambem de côlmo. Saimos do auto e <paramos, deante dela. Então, uma rapariga de onze anos, talvez, abeira-se de mim.> [↑ puzemo-nos a] <C>/c\ontempla<va>/r\ <eu> aquele Cristo <tão ingenuamente> duma divindade <tão> ingenua<, dum sofrimento no corpo>[↑ e <tão> ingenuamente] martirisad<o>/a\, onde as chagas riam vermelho do artista que as pintou...

De repente, senti <num braço>[↑ no braço] esquerdo uma pancada <suave>[↑ branda [{↑} , a mêdo,]] que <me despertou,> e vi uma pequena mão triguei<rinha>/r<a\>/i\[↑nha] e triste, apontando-me o Crucifixo. E logo estas palavras<:> [(↑) , <duma seriedade infinita>[↑ <de>[↑ duma] infinita seriedade] na intoação infantil:]

Aquele é o Senhor. Era uma rapariga, <quasi creança,> de

onze anos, talvez, morena e delicada de feições, com um <vestido de chita> vestidinho de chita (ha vestidos que provocam a ternura) muito cingido, à <cintura esguia> magreza esguia do seu corpo.

<Estava>[↑ Ficou] [(↓) a olhar-me,] <entre> <espantada[,]> <e sorridente,> [↑ curiosa e trémula,] a vencer a propria timidez, como <animada> <se tivesse> <se a tivesse impelido> animada por uma força <misteriosa.>[desconhecida.]

O seu gesto, a intoação da sua voz, não

Esta rua finda num largo <assinalado por um monumento religioso> onde existe um<a> coberto sob o qual se encontra uma tôsca imagem <de Cristo crucificado.><[↑ sagrada.]>[{↓} sagrada.]

Saimos do auto, e fômos admirar <aquele>[↑ a escultura dum] Cristo crucificado, [{↓} mas] duma divindade tão ingenua e tão ingenuamente martirisada que as suas chagas parecem rir vermelho do artista que as pintou.

De repente, senti, <no braço esquerdo uma pancada> <que>[↑ que estranha mão] me <tocavam>[↑ tocou], no braço esquerdo, <e logo uma pequena mão de creança>[↑ <que me tocou estranha mão no>[{↑} Era uma] rapariga <me>[{↑} que me] disse] aponta<va-me>/ndo-me\ o crucifixo; <e uma> <E ouvi a seguinte fraze pronunciada com infinita seriedade na intoação infantil:

Aquele é o Senhor... <Era uma rapariga de><[↑ Teria]>[↑

Era uma criança de] onze anos, <talvez,> morena e delicada de feições, com um vestidinho de chita, muito pobre <e>/,\ comovedor e <muito> cingido à magreza esguia do seu corpo. <§> <*Vi-a a olhar-me,> <[↑ <Disse-me e olhou-me,> *Viu-me,] curiosa e trémula, a vencer a propria timidez, como animada por uma força desconhecida.> O seu gesto, <[(↑) animado de força desconhecida,>] o timbre <[↑ misterioso]> da sua voz, não sei reproduzi-los. Afligem-me agora como certas nuances das cousas, tão

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sei reproduzi-los. Afligem-me, <neste momento,>[↑ agora,] como certas nuances das cousas <muito>[↑ tão] distantes d<os>/o\ <seus> desenh<os>/o\ [(↑) destas,] que são perfeitamente inexprimiveis. Naquele gesto havia um além indefinivel; e aquela voz esvoaça, na minha lembrança, não para me repetir a fraze em que a tôsca imagem de Cristo lampejou ressuscitada, mas outra fraze insistente: Não acreditas ainda no Senhor?

<Revelaram-me> <as>/As\ palavras da creança <uma verdade superior>[↑ rveram [↑ mais eloquencia], para mim,] <uma eloquencia superior à dos>[↑ que os] escritos dum São Tomaz<, por> e mesmo dum Agostinho. Revelaram-me <não sei <bem> que>[↑ a] verdade <transcendente,>[↑ divina,] pois tal verdade não se demonstra: afirma-se; e a sua prova real está na sua evidencia deslumbrante.

Existe a luz, porque nos fére os olhos; <Deus> <existe> [e] Deus<, porque> [↑ tambem] nos fére <o coração.>[...] Que o diga o pobre Apostolo, com <o golpe dum relampago na testa!> a testa queimada dum relampago! Que o digam os mártires de Cristo, <desde> os <que fôram lançados às feras <†>[↑ e os] que sofrem os golpes do Destino> <e as victimas <dum cruel destino.>

distantes, que são perfeitamente inexprimiveis.

Naquele gesto, havia um além indefinivel; e aquela voz <invoca,>[↑ percute-se] na minha <lembrança, não para me repetir as palavras em que a tôsca imagem de Cristo lampejou ressuscitada, mas outra fraze insistente:

Não acreditas ainda no Senhor?> memoria, de lembrança em lembrança, <banhando-as na mesma luz amanhecida. E não <para> me repet<ir>/e\ as palavras em que a tôsca imagem de Cristo lampejou ressuscitada, mas outras palavras mais insistentes.>[{↓} até à ultima ou primeira, aquela que marca a nossa entrada na existencia. E todas ressuscitaram, em mim banhadas numa claridade matutina.] [«Aquele é o Senhor?]

<«>Não acreditas ainda no Senhor?<»> <É certo que me>[↑ Nestas palavras a

imagem de Cristo lampejou como se estivesse nova.] <i>/I\mpressionaram[↓ -me bem] mais que os escritos dum Santo Agostinho ou S. Tomaz<, por virtude da propria vida <que contagiam> que espalharam na minha sensibilidade amortecida por>[↑ . Tinham] uma virtude <propria,> deles, talvez a inocencia viva, natural, <em que>[↑ como essa que] transluz numa flor e é uma energia <indestruti> invencivel, em dado momento proprio.

Revelaram-me a verdade divina, pois tal verdade não se demonstra, o que acontece, aliás, a qualquer verdade, como a da luz, por exemplo... Não se demonstra: afirma-se; e a sua prova real está na sua evidencia, deslumbrante, <*que *é>[↑ ou] [n]ela mesma <demonstrando-se.> afirmando a sua existencia.

Existe a luz, porque nos fere os olhos; e Deus tambem nos fére ou como <sendo o> Espirito <vivente> ou como problema do espirito. Fére-nos sempre, como Fantasma ou Sêr. [{↓} Como enrdade ignota ou conhecida.] Fére os crentes e os descrentes. Que o diga o <pobre>[↑ nosso] Apostolo, com a testa queimada dum relampago. Que o digam os martires, os eleitos da dôr, os

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da desgraça impiedosa, os eleitos> os eleitos da dor, os lançados às feras e à fome, essa lôba que nos devora lentamente. A que impulso obedeceu a rapariga, quando me <tocou> bateu no braço <com> a <mesma> mão <a estender-se já <na> para>[(↓) já decidida a apontar-me] a <tôsca> escultura [↑ tôsca] de Jesus? Donde lhe viria essa audacia que a levou a dominar o seu proprio acanhamento e lhe deu uma atitude de heroina e até de personagem da Historia Mistica,> <*ou></de\>[↑ de] pequenina Santa Tereza, uma Santa Tereza em botão de rosa selvatica, crestado do sol e da miseria? Donde lhe viria essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda? <[Não!] [(↑) que esse mais longe se exisrsse, ficaria já [↓ este mais longe se exisrsse, ficaria] para lá de Deus..]>

Tinha ela desaparecido, <ao>[↑ quando] acord<ar>/ei\ da minha surpreza comovida. Escondeu-se numa nuvem ou no interior duma choupana de côlmo e pedregulho, que o temporal não destróe, porque penetra, dentro dela, por todos os buracos. Estas choupanas da serra não diferem duma obra da Natureza.

lançados às feras e à fome, essa loba que nos devora lentamente.

A que impulso obedeceu a rapariga, quando me bateu, no braço, com a mão, <já decidida a> aponta<r-me>/ndo-me\ a escultura de Jesus? Donde lhe viria essa audacia que a levou a dominar o seu proprio acanhamento e lhe impôs uma atitude de heroina e até de santa? Uma <pequena> Santa Tereza em botão de rosa selvatica, crestado do sol da miseria... Donde lhe viria essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda?

Quando acordei da minha surpreza, já <ela havia desaparecido.> o seu vulto42 havia desaparecido como se <o seu> não pertencesse à realidade. Ou se escondeu no Invisivel, como qualquer anjo repentino, ou então, simples mortal, no interior duma choupana <de colmo e pedregulho>[↑ da serra] que, de tão pobre e trabalhada pelo tempo, não <difere> difére <duma>[↑ das] obra[s] da Natureza.

O Manuscrito D introduz uma ideia nova: a de que Deus «fére os crentes e os

descrentes».

Relativamente ao último parágrafo desta passagem, a antítese presente no

Manuscrito C («Escondeu-se numa nuvem ou no interior duma choupana de côlmo e

pedregulho») é alterada no Manuscrito D: «Ou se escondeu no Invisivel, como

qualquer anjo repentino, ou então, simples mortal, no interior duma choupana <de

colmo e pedregulho>[↑ da serra]». A ideia de «nuvem» desaparece, substituída pela

palavra «Invisivel», mas continua presente na imagem do «anjo repentino», a que é

oposta a de «simples mortal». É o contraste entre estes dois seres que está destacado,

colocando em relevo a figura da rapariga de Travassos, e não os locais de refúgio:

«nuvem»/«choupana de côlmo de pedregulho» e «Invisivel»/«choupana da serra».

42

«o seu vulto»: em B, «o seu pequeno vulto». Em C nenhuma destas formulações está presente.

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Manuscrito D, pág. 53 1.ª edição, págs. 60-61

Esta rua finda num largo <assinalado por um monumento religioso> onde existe um<a> coberto sob o qual se encontra uma tôsca imagem <de Cristo crucificado.><[↑ sagrada.]>[{↓} sagrada.] Saimos do auto, e fômos admirar <aquele>[↑ a escultura dum] Cristo crucificado, [{↓} mas] duma divindade tão ingenua e tão ingenuamente martirisada que as suas chagas parecem rir vermelho do artista que as pintou. De repente, senti, <no braço esquerdo uma pancada> <que>[↑ que estranha mão] me <tocavam>[↑ tocou], no braço esquerdo, <e logo uma pequena mão de creança>[↑ <que me tocou estranha mão no>[{↑} Era uma] rapariga <me>[{↑} que me] disse] aponta<va-me>/ndo-me\ o crucifixo; <e uma> <E ouvi a seguinte fraze pronunciada com infinita seriedade na intoação infantil:

Aquele é o Senhor... <Era uma rapariga de><[↑ Teria]>[↑

Era uma criança de] onze anos, <talvez,> morena e delicada de feições, com um vestidinho de chita, muito pobre <e>/,\ comovedor e <muito> cingido à magreza esguia do seu corpo. <§> <*Vi-a a olhar-me,> <[↑ <Disse-me e olhou-me,> *Viu-me,] curiosa e trémula, a vencer a propria timidez, como animada por uma força desconhecida.> O seu gesto, <[(↑) animado de força desconhecida,>] o timbre <[↑ misterioso]> da sua voz, não sei reproduzi-los. Afligem-me agora como certas nuances das cousas, tão distantes, que são perfeitamente inexprimiveis.

Naquele gesto, havia um além indefinivel; e aquela voz <invoca,>[↑ percute-se] na minha <lembrança, não para me repetir as palavras em que a tôsca imagem de Cristo lampejou ressuscitada, mas outra fraze insistente:

Não acreditas ainda no Senhor?> memoria, de lembrança em lembrança, <banhando-as na mesma luz amanhecida. E não <para> me repet<ir>/e\ as palavras em que a tôsca imagem de Cristo lampejou ressuscitada, mas outras palavras mais insistentes.>[{↓} até à ultima ou primeira, aquela que marca a nossa entrada na existencia. E todas ressuscitaram, em mim

Esta rua finda num Largo, uma espécie de Ágora céltica. No meio dela, destaca-se um alpendre, abrigando tôsca imagem sagrada. Saímos do auto e fomos contemplar uma escultura de Cristo crucificado, de tão ingénua divindade e tão ingènuamente martirizada, que as suas chagas vermelhas pareciam rir-se do artista que as pintou...

Estava eu numa atitude de crítico ou de idiota, quando me tocaram no braço esquerdo. E logo uma rapariga, de onze anos talvez, apontou-me o Crucifixo, dizendo:

— Aquele é o Senhor...

O seu gesto, o timbre da sua voz, não sei reproduzi-los. Afligem-me, agora, como certas nuances das cousas, que afloram, na inspiração, mas fogem ao domínio da palavra.

Que significado o daquele gesto! E aquela voz percutiu-se, na minha memória, de lembrança em lembrança, até à primeira, a que nos abre as portas do mundo. A contar dela é que principiamos a viver. Irrompemos, para a luz da consciência, dum fundo insondável e tenebroso.

A frase: Aquele é o Senhor! animou, de-repente, a tôsca imagem de madeira. De ali ao Cristo vivo de João e das nossas aflições, mediou apenas a minha sombra miserável.

Mas aquela frase tinha uma virtude própria: a virtude dos lábios que a pronunciaram (escrita não significaria nada) e a virtude da inocência, como essa que transluz numa flor, e é uma energia primaveril que incendeia de vida a morte. Soou, nos meus

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banhadas numa claridade matutina.] [«Aquele é o Senhor?]

<«>Não acreditas ainda no Senhor?<»> <É certo que me>[↑ Nestas palavras a

imagem de Cristo lampejou como se estivesse nova.] <i>/I\mpressionaram[↓ -me bem] mais que os escritos dum Santo Agostinho ou S. Tomaz<, por virtude da propria vida <que contagiam> que espalharam na minha sensibilidade amortecida por>[↑ . Tinham] uma virtude <propria,> deles, talvez a inocencia viva, natural, <em que>[↑ como essa que] transluz numa flor e é uma energia <indestruti> invencivel, em dado momento proprio.

Revelaram-me a verdade divina, pois tal verdade não se demonstra, o que acontece, aliás, a qualquer verdade, como a da luz, por exemplo... Não se demonstra: afirma-se; e a sua prova real está na sua evidencia, deslumbrante, <*que *é>[↑ ou] [n]ela mesma <demonstrando-se.> afirmando a sua existencia.

Existe a luz, porque nos fere os olhos; e Deus tambem nos fére ou como <sendo o> Espirito <vivente> ou como problema do espirito. Fére-nos sempre, como Fantasma ou Sêr. [{↓} Como enrdade ignota ou conhecida.] Fére os crentes e os descrentes. Que o diga o <pobre>[↑ nosso] Apostolo, com a testa queimada dum relampago. Que o digam os martires, os eleitos da dôr, os lançados às feras e à fome, essa loba que nos devora lentamente.

A que impulso obedeceu a rapariga, quando me bateu, no braço, com a mão, <já decidida a> aponta<r-me>/ndo-me\ a escultura de Jesus? Donde lhe viria essa audacia que a levou a dominar o seu proprio acanhamento e lhe impôs uma atitude de heroina e até de santa? Uma <pequena> Santa Tereza em botão de rosa selvatica, crestado do sol da miseria... Donde lhe viria essa força? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda?

ouvidos, como um toque de moeda em que se ouve o oiro retinir. O oiro é que se ouve, não é a moeda.

Assim nas palavras da rapariga, ouvi apenas a verdade. E a verdade divina não se demonstra: afirma-se, que a sua prova real está na sua evidência. Cada forma, espiritual ou material, afirma a sua existência.

Existe luz, porque nos fere os olhos. E Deus também nos fere, porque o negamos e afirmamos, injuriamo-lo e adoramo-lo, matamo-lo e morremos por êle. Olhai o Apóstolo, com a fronte queimada dum relâmpago! E os mártires, os eleitos da Dor, os lançados às feras ou à fome, essa lôba que nos devora lentamente? E os Nietzches, os desesperados contra a religião cristã? E os anacoretas do deserto? E os lucrecianos, anacoretas do ateísmo? E os ascetas da Estupidez mineralizados na mais absoluta indiferença? Diversos actores figuram no drama religioso. São actos dêsse drama a propaganda de Paulo e a de Voltaire, o Cristo entronizado no Vaticano, e queimado, com todos os Deuses, numa fogueira de Moscovo...

A que impulso obedeceu a rapariga, tocando-me, no braço, com a mão, e apontando-me o pobre Crucifixo? Donde lhe viria essa audácia, que a levou a dominar o seu próprio acanhamento, e lhe impôs uma atitude heróica e até de Santa? Uma Santa Tereza em botão de rosa brava... Donde lhe viria essa fôrça? Do infinito do seu coração? De mais longe ainda?

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Quando acordei da minha surpreza, já <ela havia desaparecido.> o seu vulto havia desaparecido como se <o seu> não pertencesse à realidade. Ou se escondeu no Invisivel, como qualquer anjo repentino, ou então, simples mortal, no interior duma choupana <de colmo e pedregulho>[↑ da serra] que, de tão pobre e trabalhada pelo tempo, não <difere> difére <duma>[↑ das] obra[s] da Natureza.

Quando acordei da minha surprêsa, já ela havia desaparecido, como se não pertencesse à realidade: ou se escondeu, no Invisível, qual Anjo repentino, ou, então, no interior duma choupana, quási convertida pelo tempo numa construção natural.

Na 1.ª edição estão ausentes os elementos mais descritivos relativamente à

criança que aponta ao escritor o crucifixo do largo de Travassos: «morena e delicada

de feições, com um vestidinho de chita, muito pobre <e>/,\ comovedor e <muito>

cingido à magreza esguia do seu corpo.» A sua caracterização é menos física e mais

espiritual: «inocência», «audácia, que a levou a dominar o seu próprio acanhamento, e

lhe impôs uma atitude heróica e até de Santa? Uma Santa Tereza em botão de rosa

brava...». A omissão da caracterização física talvez sirva melhor o propósito de reforçar

o lado espiritual do encontro. Na 1.ª edição a rapariga desaparece «qual Anjo

repentino, ou, então, no interior duma choupana»; no Manuscrito D desaparece

«como qualquer anjo repentino, ou então, simples mortal, no interior duma

choupana»: repare-se que Pascoaes optou por omitir a expressão «simples mortal», tal

como a sua caracterização física nos parágrafos anteriores. Desta forma, a criança

aproxima-se mais de uma figura etérea, angelical, portadora de uma mensagem que

originou uma revelação religiosa. O leitor fica apenas a saber dela a sua idade

aproximada, «onze anos talvez». Curiosamente, esta idade é atribuída em Duplo

Passeio a duas outras figuras, dois pastores: um, «teria onze anos» (Manuscrito C, fólio

22), que os amigos encontram, quando vão a caminho de Vila Real, junto a uma

imagem de Cristo mutilada, sem um braço, e outro, «Um pegureiro de onze anos»

(Manuscrito C, fólio 31), num campo perto da margem da estrada de Chaves a Braga.

Pascoaes podia ter escolhido um número mais redondo, o 10, para indicar a idade

aproximada destas crianças, mas optou três vezes pelo 11, o que aponta,

possivelmente, para uma atribuição de significado especial a este número.

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Conclusão

Duplo Passeio, não sendo das obras mais conhecidas de Teixeira de Pascoaes, é

provavelmente a sua criação mais pessoal, pelo que a sua leitura será de grande

interesse para quem quiser aprofundar o seu conhecimento acerca do escritor.

O dossier genético das obras de Pascoaes é bastante rico, e o de Duplo Passeio

não é excepção, com quatro manuscritos e uma primeira edição que difere

significativamente do manuscrito que a antecede, o que demonstra que um ou ambos

os elementos em falta, o dactiloescrito de Beatrice Thelen e as provas tipográficas,

continham emendas em número significativo.

A análise da correspondência de Pascoaes com o seu tradutor e amigo, Albert

Thelen, em quem depositava bastante confiança, permite concluir que lhe era dada

grande liberdade no trabalho de tradução.

A ausência de estados genéticos não textualizados aponta para que a escrita de

Pascoaes se enquadre no tipo de escrita de processo.

Os resultados deste estudo contribuem para fundamentar e documentar

objectivamente afirmações conhecidas acerca do processo de criação do escritor: que

Pascoaes escrevia e reescrevia as suas obras incessantemente, preocupado em atingir

a formulação ideal, e ainda que podem ser encontrados vestígios de uma obra noutra,

ou seja, que existe uma bifurcação genética entre algumas obras do escritor, como é o

caso de Duplo Passeio e de O Penitente. Não se trata simplesmente do aproveitamento

de ideias, mas da reutilização ou reciclagem de frases ou segmentos textuais de maior

dimensão. Muito possivelmente há uma relação semelhante entre Duplo Passeio e

Napoleão, biografia que antecedeu a narrativa do Cristo de Travassos.

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