Introdução ao LIVRO DE JÓ-Chesterton

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/30/2019 Introduo ao LIVRO DE J-Chesterton

    1/6

    Introduo ao LIVRO DE J - Parte I"O homem confortado, sobretudo, por paradoxos"

    G.K. Chesterton

    O livro de J , dentre os livros do Antigo Testamento, tanto um enigma filosfico quantoum enigma histrico. o enigma filosfico que nos interessa numa introduo como esta;assim, dispensemos umas poucas palavras numa explicao geral ou num alerta a respeitodo aspecto histrico. H muito sobrevivem controvrsias sobre que partes desse picopertencem ao esquema original e quais partes so interpolaes de datas muito posteriores.Os doutores discordam, como do ofcio dos doutores; mas, no geral, a tendncia dainvestigao tem sido sempre na direo de sustentar que as partes interpoladas, caso osejam, so o prlogo e o eplogo, que esto em prosa, e possivelmente o discurso do jovemque faz uma apologia ao final. No sou competente para decidir tais questes.

    Qualquer que seja a deciso a que o leitor chegue a respeito delas, h uma verdade geral a

    ser lembrada concernente a isso. Quando voc lida com uma criao artstica antiga, nosuponha que haja algo negativo no fato de que ela tenha crescido gradualmente. O livro deJ pode ter crescido gradualmente exatamente como a Abadia de Westminster cresceugradualmente. As pessoas que escreviam antigas poesias populares, como as pessoas queconstruram a Abadia de Westminster, no davam tanta importncia data real ou ao realautor de sua criao, importncia esta que uma criao do quase insano individualismodos tempos modernos. Podemos colocar de lado o caso de J, como um caso cheio decomplicaes religiosas, e analisar um outro, digamos o caso da Ilada. Muitos tmafirmado a frmula caracterstica do moderno ceticismo, que Homero no foi escrito porHomero, mas por outra pessoa com o mesmo nome. Da mesma forma, tem sido afirmadoque Moiss no foi Moiss, mas outra pessoa chamada Moiss.

    Mas a coisa a ser realmente lembrada na questo da Ilada que se outras pessoas, de fato,interpolaram passagens da obra, a coisa no criou o mesmo sentimento de choque que teriacriado tal procedimento nestes tempos individualistas. A criao de um pico tribal era, decerto modo, considerado um trabalho tribal, como a construo de um templo tribal.Acredite, se lhe apetecer, que o prlogo e o eplogo de J e o discurso de Eli so coisasinseridas depois da composio do trabalho original. Mas no suponha que tais inserestenham o carter esprio e bvio que teriam quaisquer inseres num livro moderno eindividualista. No considere as inseres como consideraria um captulo de GeorgeMeredith1 que voc mais tarde descobriu no ser escrito por George Mederith, ou meiacena de Ibsen que voc descobriu ser astuciosamente inserida por William Archer2.Lembre-se que este velho mundo que produziu estes velhos poemas como Ilada e Jsempre mantiveram a tradio do que estavam fazendo. Um homem sempre pode deixarum poema para seu filho para ser terminado, como se ele mesmo fosse termin-lo, como se

    um homem deixasse um campo para seu filho, para ser colhido como ele o colheria. O que chamado de unidade homrica pode ser fato ou no. A Ilada poderia ser escrita por umhomem s. Mas deixe-nos lembrar que havia mais unidade naqueles tempos em cemhomens do que h unidade agora em um homem. Bem como uma cidade era como umhomem. Agora um homem como uma cidade em guerra civil.

    Sem entrar nas questes de unidade, como entendidas pelos acadmicos, podemos falar doenigma acadmico de que o livro tenha unidade, no sentido de que todas as grandescriaes tradicionais tenham unidade; no sentido de que a Catedral de Canterbury tenhaunidade. E o mesmo amplamente verdadeiro a respeito do que chamei de enigma

    1 Foi um escritor e poeta, nascido em Portsmouth em 1828, faleceu em Box Hill em 1909. Seus escritos

    eram em grande parte comdias.2 Crtico literrio escocs, nascido em 1856, faleceu em 1924. Traduziu vrias obras de Ibsen para o

    ingls e contribuiu para sua divulgao.

  • 7/30/2019 Introduo ao LIVRO DE J-Chesterton

    2/6

    filosfico. H um sentido real em relao ao qual o livro de J se diferencia da maioria doslivros includos no cnon do Antigo Testamento. Mas, aqui novamente, estaro equivocadosaqueles que insistem na falta completa de unidade. Esto equivocados os que sustentamque o Antigo Testamento uma simples coleo de livros; que ele no tem consistncia eobjetivo. Quer o resultado seja alcanado por uma verdade espiritual sobrenatural, quer poruma tradio nacional estvel, ou meramente por uma engenhosa seleo posterior, os

    livros do Antigo Testamento tm uma muito perceptvel unidade. Tentar entender o AntigoTestamento sem compreender esta mesma ideia seria to absurdo quanto estudar uma peade Shakespeare sem dar-se conta de que o autor delas no tinha objeto filosfico de modoalgum. Isto como se um homem fosse ler a histria de Hamlet, Prncipe da Dinamarca,pensando todo o tempo que ele estava lendo o que realmente pretendeu ser a histria de umvelho prncipe pirata dinamarqus. Como um leitor no imaginaria de modo algum que aprocrastinao de Hamlet foi da parte da inteno do poeta. Ele diria somente: Quantotempo o heri de Shakespeare levou para matar seu inimigo. Ento diga que osarrasadores de Bblia sempre so, infelizmente, no fundo, veneradores de Bblia. Eles noentendem o tom especial e a inteno do Antigo Testamento; eles no entendem estamesma ideia, que a ideia de todo homem ser, felizmente, os instrumentos de um podermaior.

    Aqueles, por exemplo, que reclamam de atrocidades e armadilhas dos juzes e profetas deIsrael realmente tiveram a noo em suas cabeas de que nada se podia fazer sobre oassunto. Eles tambm so cristos. Eles esto voltando a ler nas escrituras pr-crists umapura ideia crist - a ideia de santos, a ideia de que os instrumentos de comando de Deusso, muito particularmente, homens bons. Isso uma mais profunda, mais ousada, e maisinteressante ideia do que a de um velho judeu. Esta a ideia de que a inocncia tem sobreisso algo de terrvel, que na longa corrida faz e refaz imprios e o mundo. Mas a ideia doAntigo Testamento era muito mais o que se poderia chamar ideia do senso comum, quefora fora, que astcia astcia, que mundialmente sucesso mundialmente sucesso, eque Jeov usa estas coisas para Seu ltimo propsito, como Ele usa foras naturais ouelementos fsicos. Ele usa a fora de um heri como usa a de um Mamute com nenhumrespeito particular ao Mamute. Eu no posso compreender como que tantos cticossimplistas leram estas histrias, como a fraude de Jac, e supuseram que o homem que

    escreveu isso (seja quem for) no sabia que Jac era um vagabundo to bom quanto nssomos. O senso de humor primordial do homem no muda tanto assim. Mas estes cticossimplistas so, como a maioria dos cticos modernos, Cristos. Eles imaginam que ospatriarcas deveriam ser significados como paternais; eles imaginam que Jac estava sendoelevado como um tipo de santo; e neste caso eu no penso que estejam um pouco surpresos.Esta no a atmosfera de todo o Antigo Testamento. Os heris do Antigo Testamento noso os filhos de Deus, mas os escravos de Deus, gigantescos e terrveis escravos, como osgnios, que so escravos de Aladdim.A idia central de grande parte do Antigo Testamento pode ser chamada de idia da solidode Deus. Deus no somente o principal personagem do Antigo Testamento; Deus propriamente o nico personagem do Antigo Testamento. Comparado com sua clareza depropsitos, todas as outras vontades so pesadas e automticas, como aquelas dos animais;

    comparados com Sua realidade, todos os filhos da carne so sombras. Continuamente anota tocada, Com quem tomou Ele conselho (Is. 40:14). Eu pisei sozinho no lagar, enenhum homem entre os povos estava comigo (Is. 63:3). Todos os patriarcas e profetas someramente seus instrumentos ou armas; pois o Senhor um homem de guerra. Ele usaJosu como um machado ou Moiss como uma rgua. Para Ele, Sanso somente umaespada e Isaias uma trombeta. Supe-se que os santos da cristandade so como Deus, comose fossem pequenas estatuetas Dele. O heri do Antigo Testamento comparvel a Deusassim como um martelo comparvel ao carpinteiro. Esta a chave principal ecaracterstica das escrituras hebraicas como um todo. H, de fato, nessas escriturasinumerveis exemplos de um tipo de humor spero, agudas emoes, e poderosaindividualidade, que no so desejveis nas grandes obras primitivas em prosa ou empoesia. No entanto, a principal caracterstica permanece: o sentimento de que no somenteDeus mais forte que o homem, no somente Deus mais secreto que o homem, mas queEle significa mais, que Ele sabe mais o que Ele est fazendo, que comparado a Ele, temossomente incerteza, irracionalidade e a vadiagem das bestas que perecem. Ele o que est

  • 7/30/2019 Introduo ao LIVRO DE J-Chesterton

    3/6

    sentado sobre a redondeza da terra, e os habitantes dela so como gafanhotos (Is. 40:22).Quase podemos afirmar o seguinte. O livro insiste tanto na personalidade de Deus que elequase insiste na impessoalidade do homem. A menos que esse gigantesco crebro csmicotenha concebido alguma coisa, esta coisa incerta e vazia; o homem no tem tenacidadesuficiente para assegurar sua continuidade. Se o Senhor no edificar a casa, em votrabalham os que a edificam. Se o Senhor no guardar a cidade, inutilmente se desvela a

    sentinela (Sl. 127:1).

    Em todos os outros lugares, ento, o Antigo Testamento positivamente regozija-se naobliterao do homem em comparao com o propsito divino. O livro de J permanecesolitrio porque o livro de J pergunta definitivamente: Mas, qual o propsito de Deus?Ele vale mesmo o sacrifcio de nossa miservel humanidade? claro que fcil anularnossa prpria e desprezvel vontade por uma vontade que seja mais forte e mais gentil. Mas ela maior e mais gentil? Deixemos Deus usar Seus instrumentos; deixemo-Lo quebrarSeus instrumentos. Mas o que Ele est fazendo e para que estamos sendo quebrados? por causa desta questo que temos de atacar, como um enigma filosfico, o enigma do livrode J.A importncia atual do livro de J no pode ser expressa adequadamente mesmo se se

    disser que ele o mais interessante dentre os livros antigos. Podemos quase dizer que ele o mais importante dos livros modernos. Na verdade, nenhuma das duas frases cobre amatria, pois a religio humana fundamental e a irreligio humana fundamental so ambas,ao mesmo tempo, antigas e modernas; a filosofia ou eterna ou no filosofia. O hbitomoderno de dizer Isso minha opinio, mas posso estar enganado inteiramenteirracional. Se digo que posso estar enganado, digo que isso no minha opinio. O hbitomoderno de dizer Todo homem tem uma filosofia diferente; esta minha filosofia e estousatisfeito com ela o hbito de dizer isso meramente uma fraqueza mental. Uma filosofiacsmica no construda para satisfazer um homem; uma filosofia csmica construdapara satisfazer o cosmos. Um homem pode tanto possuir uma religio privada quanto podepossuir um sol ou uma lua privados.

    A primeira das belezas intelectuais do livro de J que ele se preocupa totalmente com esse

    desejo de conhecer a realidade; o desejo de conhecer o que , e no meramente o que pareceser. Se os modernos estivessem escrevendo o livro, encontraramos provavelmente J eseus amigos dando-se muito bem por meio da simples operao de considerar suasdiferenas apenas como questes de temperamento, seus amigos sendo, por natureza,otimistas e J sendo, por natureza, pessimista. E eles estariam muito confortveis,como acontece freqentemente, por algum tempo pelo menos, concordando com o que obviamente uma inverdade. Pois se a palavra pessimista significa alguma coisa, entoenfaticamente J no pessimista. Seu caso suficiente para se refutar a absurdidademoderna se considerar tudo uma questo de temperamento fsico. J no v a vida, emnenhum sentido, de forma depressiva. Se desejar ser feliz e estar bem preparado para s-lofor ser otimista, J um otimista. Ele um otimista perplexo; ele um otimistaexasperado; ele um ultrajado e insultado otimista. Ele deseja que o universo se justifique a

    si mesmo, no porque ele deseja flagr-lo, mas porque realmente deseja que ele sejustifique. Ele exige uma explicao de Deus, mas ele no faz isso, em absoluto, com omesmo esprito em que [John] Hampden demandaria uma explicao de Carlos I. Ele o fazcom o mesmo esprito com que uma esposa exige uma explicao do seu marido a quem elarealmente respeita. Ele protesta com seu Criador porque ele tem orgulho de seu Criador.Ele fala do Onipotente at mesmo como inimigo, mas ele nunca duvida, no ntimo docorao, que seu inimigo possui algo que ele no entende. Numa refinada e famosablasfmia ele diz, , que meu adversrio escreva um livro! (31:35).1] Nunca ocorreurealmente a ele que pudesse ser um livro ruim. Ele est ansioso para ser convencido, isto ,ele pensa que Deus poderia convenc-lo. Em resumo, podemos dizer novamente que se apalavra otimista significa algo (o que duvido), J um otimista. Ele abala os pilares domundo e ataca insanamente os cus; ele chicoteia as estrela, mas no para silenci-los; para faz-los falar.

    Da mesma forma, podemos falar de otimistas oficiais, os amigos de J. De novo, se a

  • 7/30/2019 Introduo ao LIVRO DE J-Chesterton

    4/6

    palavra pessimista significa algo (o que duvido), os amigos de J podem ser chamados depessimistas e no otimistas. O que eles realmente acreditam no que Deus bom, masque Deus to forte que nos mais recomendvel cham-Lo de bom. Seria um exagerocham-los de evolucionistas; mas eles possuem algo do erro vital do otimismoevolucionrio. Eles continuaro a dizer que tudo no universo se adequa a tudo o mais; comose houvesse alguma coisa confortadora num nmero de coisas srdidas se adequando umas

    s outras. Veremos mais tarde como Deus, no grande clmax do poema, vira esse argumentode ponta cabea.

    Quando, ao final do poema, Deus entra (abruptamente), uma nota repentina e esplndida tocada, que faz a coisa to grande quanto ela . Todos os seres humanos na estria, e Jespecialmente, fizeram perguntas a Deus. Um poeta mais trivial teria feito Deus participar,de uma forma ou de outra, para responder Ele prprio um nmero de questes. Num toqueverdadeiramente inspirado, quando Deus entra, para perguntar Ele prprio um nmeromaior de questes. Nesse drama de ceticismo, o prprio Deus toma o papel de ctico. Elefaz o que todas as grandes vozes defensoras da religio sempre fizeram. Ele faz, porexemplo, o que Scrates fez. Ele vira o racionalismo contra si mesmo. Ele parece dizer quese for para fazer perguntas, ele pode formular questes que lanaro ao cho e achataro

    qualquer questionador humano. O poeta, por uma soberba intuio, fez Deus aceitar umtipo de igualdade na controvrsia com seus acusadores. Ele est disposto a consider-lacomo se fosse um duelo intelectual justo. Cinge teus lombos como um homem; interrogar-te-ei e responde-me (38:3). O Ser Eterno adota uma enorme e sarcstica humildade. Eleest disposto a ser processado. Ele apenas demanda o direito que todo processado tem; Eledemanda que Lhe seja permitido interrogar a testemunha de acusao. E Ele vai ainda maislonge na comparao com o processo legal. Essencialmente, a primeira questo que Ele faza J a que qualquer acusado por J teria o direito de fazer. Ele pergunta a J quem Ele .E J, sendo um homem sincero, leva um pouco de tempo para pensar e chega conclusode que ele no sabe.

    Esse o primeiro grande fato a se notar sobre o discurso de Deus, que a culminao doinqurito. Ele representa todos os cticos tomados do mais alto ceticismo. Esse o mtodo,

    usado algumas vezes por mentes brilhantes e algumas vezes por mentes medocres, que temsido, desde ento, a arma lgica de todo verdadeiro mstico. Scrates, como eu disse,utilizava-o quando ele mostrava que se voc o permitisse usar sofismas suficientes, elepoderia destruir todos os sofistas. Jesus Cristo utilizou-o quando ele lembrou aos saduceus,que no conseguiam imaginar a natureza do casamento no paraso, que se fosse assim elesno conseguiriam imaginar a natureza do casamento em absoluto. No desmoronamento daTeologia Crist no sculo XVIII, [Joseph] Butler utilizou-o, quando ele alertou queargumentos racionalistas poderiam ser usados tanto contra religies vagas quanto contrareligies doutrinrias, tanto contra a tica racionalista quanto contra a tica crist. Essemtodo a razo e a raiz do fato de que homens que tm f tm tambm dvida filosfica.Esses so os pequenos cursos dgua do delta; o livro de J a primeira grande catarata quecria o rio. Ao lidar com o arrogante defensor da dvida, dizer a ele para parar de duvidar

    no o melhor mtodo. O correto sugeri-lo que continue a duvidar, a duvidar um poucomais, a duvidar todo dia de coisas novas e mais amplas no universo, at que finalmente, poralguma estranha iluminao, ele comece a duvidar de si mesmo.

    Esse, digo, o primeiro fato sobre o discurso; a refinada inspirao por meio da qual Deusse apresenta no final, no para responder enigmas, mas para prop-los. O outro grande fatoque, tomado em conjunto com este, torna todo o livro religioso e no apenas filosfico essa outra grande surpresa que faz J repentinamente satisfeito com a mera apresentaode algo impenetrvel. Literalmente, os enigmas de Jeov parecem mais obscuros edesolados que os enigmas de J; mesmo assim, J estava desconsolado antes do discurso deJeov e mais confortado depois dele. A ele no foi dito nada, mas ele sente a terrvel eassustadora atmosfera de algo que excessivamente bom para ser verbalizado. A recusa deDeus em explicar seu projeto , em si, uma flamejante aluso ao Seu projeto. Os enigmas deDeus so mais satisfatrios que as solues do homem.

  • 7/30/2019 Introduo ao LIVRO DE J-Chesterton

    5/6

    Em terceiro lugar est uma das esplndidas tiradas em que Deus rebate tanto o homem queo acusa quanto os homens que O defendem; em que Ele leva a nocaute tanto pessimistascomo otimistas, com o mesmo martelo. E em relao aos arrogantes e perfunctriosamigos de J que ocorre uma inverso ainda mais profunda e refinada de que falei. Astentativas mecnicas otimistas de justificar o universo irrestritamente sob o fundamento deque ele tem um padro racional e conseqente. Essas tentativas apontam que a coisa boa a

    respeito do mundo que ele pode ser explicado totalmente. Esta uma questo, se assimposso dizer, sobre a qual Deus, em resposta, explcito a ponto de ser violento. Deus diz, defato, que se h uma coisa boa a respeito do mundo, no que toca ao homem, que ele nopode ser explicado. Ele insiste sobre a inexplicabilidade de tudo. Quem o pai dachuva?... (38:28) De que seio saiu a geada? (38:29). Ele vai ainda mais longe, e insistena irracionalidade positiva e palpvel das coisas; [Quem marcou o curso tempestadeimpetuosa] para fazer chover sobre uma terra sem habitantes, num deserto, onde no moramortal?(38:26). Deus far o homem ver as coisas, nem que seja contra o fundo negro donada. Deus far J ver o surpreendente universo se Ele puder pelo menos faz-lo ver umuniverso idiota. Para surpreender o homem, Deus se torna, por um instante, umblasfemador; pode-se quase dizer que Deus se torna, por um instante, ateu. Ele descortinapara J um amplo panorama das coisas criadas, o cavalo, a guia, o corvo, o asno selvagem,

    o pavo, a avestruz, o crocodilo. Ele descreve cada um deles como se fossem monstroscaminhando sob o sol. O que se v um tipo de salmo ou rapsdia do sentimento deespanto. O criador de todas as coisas est impressionado com as coisas que Ele prpriocriou.

    Esse , podemos dizer, o terceiro ponto. J emite uma nota de interrogao; Deus respondecom uma nota de exclamao. Ao invs de provar a J que um mundo explicvel, Eleinsiste que um mundo muito mais estranho do que J jamais imaginou ser. Finalmente, opoeta atingiu nesse discurso, com a preciso inconsciente encontrada em tantos picos maissimples, uma coisa muito mais delicada. Sem relaxar uma vez sequer a rgidaimpenetrabilidade de Jeov em Sua deliberada declarao, ele conseguiu, aqui e ali, deixarantever nas metforas, em imagens distorcidas, sugestes repentinas e esplndidas de que osegredo de Deus brilhante e no triste sugestes quase acidentais, como um raio de luz

    visto, por um instante, pela rachadura de uma porta fechada.

    Seria difcil louvar excessivamente, num sentido puramente potico, a exatido instintiva ea facilidade com que insinuaes mais otimistas foram deixadas em outras partes, como seo prprio Onipotente estivesse consciente de que Ele as estava espalhando. Por exemplo, haquela famosa passagem onde Jeov, com um sarcasmo devastador, pergunta a J onde eleestava quando as fundaes do mundo foram lanadas, e ento (como se apenas fixandouma data) menciona o tempo quando os filhos de Deus estavam transportados de jbilo(38:4-7). No se pode deixar de sentir, mesmo a partir de parcas informaes, que elesdevem ter tido algo para justificar o jbilo. Ou novamente, quando Deus fala sobre a neve eo granizo num simples catlogo do cosmos fsico, Ele fala deles como um tesouro que Elelanou no dia da batalha uma aluso a algum enorme Armagedon em que o mal dever,

    finalmente, ser vencido.Nada poderia ser melhor, artisticamente falando, do que esse otimismo que rompe oagnosticismo qual ouro flamejante nas bordas de uma nuvem negra. Aqueles que olhamsuperficialmente para as origens brbaras do pico podem considerar que sejaextraordinrio ler tanta significao artstica em suas frases metafricas e acidentais. Masningum que conhea bem os grandes exemplos da poesia semi-brbara, como A Cano deRolando ou as antigas baladas, cometer esse engano. Ningum que conhea o que apoesia primitiva pode deixar de perceber que enquanto sua forma consciente simples,alguns de seus refinados efeitos so sutis. A Ilada consegue expressar a idia de que Heitore Sarpdone tm um certo tom ou toque de resignao triste e cavalheiresca, nem tantoamarga para ser chamada de pessimismo e nem tanto jovial para ser chamada de otimismo;Homero nunca poderia ter dito isso em frases elaboradas. Mas, de alguma forma, eleconsegue diz-lo em frases simples. A Cano de Rolando consegue expressar a idia de queo cristianismo imps sobre seus heris um paradoxo; um paradoxo de uma grande

  • 7/30/2019 Introduo ao LIVRO DE J-Chesterton

    6/6

    humildade em relao aos seus pecados, combinada a uma grande ferocidade em relao asuas idias. claro que A Cano de Rolando no poderia dizer isso; mas ela transmite isso.Da mesma forma, ao livro de J deve ser creditado muitos efeitos sutis que estavam naalma do autor sem que estivessem, talvez, na mente do autor. E dentre esses, de longe omais importante ainda est por ser apresentado.

    No sei, e duvido que qualquer estudioso saiba, se o livro de J teve um grande efeito, oumesmo algum efeito, sobre o desenvolvimento posterior do pensamento judeu. Mas se eleteve qualquer efeito, deve ter sido o de salv-los de um enorme colapso e decadncia. Nestelivro a questo que realmente formulada se Deus invariavelmente pune o vcio comcastigos terrenos e recompensa a virtude com prosperidade terrena. Se os judeus tivessemrespondido erradamente a essa pergunta, eles poderiam ter perdido toda a sua influnciana histria humana. Eles poderiam ter afundado ainda mais que a instruda sociedademoderna. Pois uma vez que as pessoas comecem a acreditar que a prosperidade arecompensa da virtude, a sua prxima calamidade bvia. Se prosperidade consideradacomo recompensa da virtude, ela ser considerada sintoma da virtude. Os homensabandonaro a difcil tarefa de fazer dos homens bons, homens de sucesso. Eles adotaro atarefa mais fcil de estabelecer que so bons os homens de sucesso. Isso, que tem

    acontecido atualmente no comrcio e no jornalismo, a Nmesis ltima do mau otimismodos amigos de J. Se os judeus precisassem ser salvos disso, o livro de J os teria salvado.

    O livro de J principalmente importante, como tenho insistido, pelo fato de que ele notermina da maneira que possa ser considerada satisfatria. No afirmado a J que suasmisrias tenham sido devidas a seus pecados ou uma parte de algum plano para seuaprimoramento. Mas no prlogo, vemos J atormentado, no porque ele fosse o pior doshomens, mas porque ele era o melhor. Essa a lio de todo o livro, que o homem maisbem confortado por paradoxos. Aqui est o mais obscuro e estranho dos paradoxos; e ele ,por todos os testemunhos humanos, o mais encorajador. No preciso sugerir que elevada eestranha histria estava reservada a esse paradoxo, do melhor homem com a pior sorte.No preciso dizer que, num sentido mais livre e filosfico, h uma figura no AntigoTestamento que verdadeiramente um modelo; nem tampouco preciso dizer o que est

    prefigurado nas feridas de J.

    [1] Em todas as outras passagens bblicas, uso a traduo do Pe. Matos Soares (BbliaSagrada, Edies Paulinas, 37 edio, 1980). L-se nesta edio, para este versculo,Quem me dera um que me ouvisse, e que o Onipotente escutasse meus desejos, e queescrevesse o processo aquele mesmo que julga. Preferi traduzir a partir da citao deChesterton, pois que ela est mais de acordo com o contexto estabelecido pelo autor. (N. doT.)

    Publicado originalmente pelaThe American Chesterton Society

    http://www.chesterton.org/gkc/theologian/job.htmhttp://www.chesterton.org/gkc/theologian/job.htmhttp://www.chesterton.org/gkc/theologian/job.htm