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INTRODUÇÃO Sabe-se que por volta de 1.000 AEC a 800 AEC, as principais cidades micênicas da Grécia continental tinham sido destruídas e este período ficou conhecido como Idade das Trevas Grega. A escrita micênica se perdeu e durante este período não há indícios de que algum outro tipo de comunicação através da grafia fosse utilizada naquela região. Apesar de ainda existirem muitos debates sobre este assunto, acredita-se que a cultura era formulada e disseminada através da oralidade e, para que isso ocorresse, algumas técnicas mnemônicas de composição eram usadas e assimiladas de geração em geração. O presente trabalho recorre a doze histórias da mitologia grega, de conteúdo similar, que seguem um determinado padrão de enredo onde uma mulher sente uma enorme paixão por um rapaz que não corresponde ao seu sentimento e com isso decide se vingar dele. Este tema é universal e pode parecer bastante atual, mas a proposta do presente trabalho é mostrar que os pontos em comum talvez não sejam coincidências, mas uma prova de que os mitos eram longamente conhecidos, difundidos e reorganizados para trazer entretenimento à sociedade e talvez as semelhanças entre as histórias sejam originadas das técnicas tradicionais orais usadas por muito tempo e refletidas posteriormente nos trabalhos mais modernos. Os estudos sobre a composição dos versos de Homero e outros que culminaram no desenvolvimento da Teoria Oral foram essenciais para a melhor compreensão das histórias e não se poderia deixar de citar os estudos de Milman Parry, Albert Lord e John Foley. Através deles, foi possível observar que certos padrões existiam, mas eram maleáveis a ponto de não comprometer as características dos trabalhos artísticos nem a criatividade dos compositores. O objetivo deste trabalho é tentar despertar o interesse dos estudantes das obras clássicas, de letras, da filosofia e dos admiradores da Mitologia Grega de modo geral pelo estudo comparado das obras selecionadas. 1

INTRODUÇÃO - repositorio.ufba.br - Geovana... · oralidade e, para que isso ocorresse, algumas técnicas mnemônicas de composição eram usadas e assimiladas de geração em geração

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INTRODUO

Sabe-se que por volta de 1.000 AEC a 800 AEC, as principais cidades micnicas da Grcia

continental tinham sido destrudas e este perodo ficou conhecido como Idade das Trevas Grega. A

escrita micnica se perdeu e durante este perodo no h indcios de que algum outro tipo de

comunicao atravs da grafia fosse utilizada naquela regio. Apesar de ainda existirem muitos

debates sobre este assunto, acredita-se que a cultura era formulada e disseminada atravs da

oralidade e, para que isso ocorresse, algumas tcnicas mnemnicas de composio eram usadas e

assimiladas de gerao em gerao.

O presente trabalho recorre a doze histrias da mitologia grega, de contedo similar, que

seguem um determinado padro de enredo onde uma mulher sente uma enorme paixo por um rapaz

que no corresponde ao seu sentimento e com isso decide se vingar dele. Este tema universal e

pode parecer bastante atual, mas a proposta do presente trabalho mostrar que os pontos em

comum talvez no sejam coincidncias, mas uma prova de que os mitos eram longamente

conhecidos, difundidos e reorganizados para trazer entretenimento sociedade e talvez as

semelhanas entre as histrias sejam originadas das tcnicas tradicionais orais usadas por muito

tempo e refletidas posteriormente nos trabalhos mais modernos.

Os estudos sobre a composio dos versos de Homero e outros que culminaram no

desenvolvimento da Teoria Oral foram essenciais para a melhor compreenso das histrias e no se

poderia deixar de citar os estudos de Milman Parry, Albert Lord e John Foley. Atravs deles, foi

possvel observar que certos padres existiam, mas eram maleveis a ponto de no comprometer as

caractersticas dos trabalhos artsticos nem a criatividade dos compositores. O objetivo deste

trabalho tentar despertar o interesse dos estudantes das obras clssicas, de letras, da filosofia e

dos admiradores da Mitologia Grega de modo geral pelo estudo comparado das obras selecionadas.

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METODOLOGIA

Alguns poetas antigos tinham seus nomes acrescentados s suas composies e isto fazia com

que se tornassem imortais junto a elas. Hesodo e Safo, por exemplo, eram mencionados em suas

obras e as informaes sobre eles so mais amplas do que as que foram obtidas acerca de outros

artistas, cujas produes se perderam. Infelizmente, tanto a Ilada quanto a Odisseia no possuem

tal assinatura no corpo do poema, o que desencadeou os inmeros questionamentos a respeito de

quem as teria criado. Existem poucos exemplos na Ilada e na Odisseia de referncias do autor a ele

prprio e estas foram feitas sempre atravs de pronomes, o que no possibilitou a identificao do

responsvel pelos dois picos. Os antepassados acreditavam na existncia de Homero como uma

figura histrica qual a criao das duas histrias era atribuda. Alguns pesquisadores acreditam que

a omisso do nome de Homero em seus versos fosse justificada pelo desejo de torn-los atemporais,

de forma que pudessem ser entoados a qualquer tempo e em qualquer lugar. Apenas sculos depois,

um interesse pela vida de Homero comeou a surgir. Biografias foram traadas, mas as informaes

eram muitas vezes contraditrias. As divergncias diziam respeito ao nome de Homero, de seus pais,

da cidade onde ele teria nascido, entre outras. Todos os dilemas sobre ele faziam parte de duas

questes principais: se teria mesmo existido e se seria o nico compositor da Ilada e da Odisseia.

Esses questionamentos foram conhecidos como a Questo Homrica.

Os Homeristas por muito tempo fizeram parte de uma das duas correntes mais influentes

sobre o tema: a dos Analistas e a dos Unitaristas. O primeiro grupo considerava que ambas as obras

tinham sido concebidas por mais de uma pessoa. As discrepncias nos enredos eram entendidas como

provas de que as narrativas eram provenientes de diferentes perodos e teriam a autoria de mais de

uma pessoa. Uma espcie de editor as teria incorporado s pores principais, tornando os trabalhos

mais coesos e dando a impresso de uniformidade 1. Os Unitaristas, por sua vez, defendiam a

existncia de um nico responsvel pelas duas produes artsticas. As passagens dissonantes eram

vistas como lapsos naturais prprios do ato da criao. A expresso latina de Horcio Quandoque

bonus dormitat Homerus fazia referncia s incongruncias encontradas em ambas as epopeias 2.

Horcio, assim como os membros da escola alexandrina de Zoilo, indignava-se com a apario das

disparidades, mas as compreendia como provenientes das imperfeies humanas, que mesmo Homero

apresentava. Conforme os relatos dos antigos, os membros dessa corrente creditavam as glrias dos

dois trabalhos a Homero, um aedo singular, criador das obras mais antigas e impressionantes da

literatura ocidental 3.

A Questo Homrica direcionou majoritariamente os debates sobre a Ilada e a Odisseia at

que, no incio do sculo XX, uma teoria inovadora sobre a composio foi desenvolvida e a ateno

sobre as dvidas a respeito da autoria dos picos e do uso da escrita neles cederam lugar a uma nova

1 Cf. NUNES (2015) Introduo; SAD (2001) 7-45.2 FERNANDES (2012) 108.3 WHITMAN (1958).

2

reflexo sobre os procedimentos de elaborao aplicados para produzi-los. O responsvel pela

mudana de perspectiva relativa aos estudos da pica grega foi o classicista americano Milman Parry.

Em sua tese de mestrado, em 1925, e em outras duas de doutorado, em 1928, defendia a hiptese de

que Homero teria sido treinado para utilizar uma forma de composio tradicional e que esta tcnica

seria muito antiga, sendo que o legado homrico poderia ser considerado o pice de um processo

criativo, cuja origem remontava, pelo menos, ao perodo Micnico.

Foi atravs do exame das frases e nomes-eptetos que Parry comeou a observar que talvez

houvesse um propsito no estilo repetitivo de Homero. Em ambos os poemas muitas construes eram

conhecidas e recorrentes. Elas foram chamadas de frmulas. As frmulas apareciam sob as mesmas

condies mtricas e eram frequentes em muitos versos. Parry tambm definiu o que ele chamou de

sistema formular: expresses que eram formadas por uma parte fixa e outra mvel, que eram

flexveis o suficiente para expressar um nmero maior de informaes sem que a mtrica fosse

alterada. O uso de repeties de frases ajudava o aedo a trabalhar de modo mais dinmico, uma vez

que os versos eram compostos e entoados simultaneamente. Neste caso, a praticidade era

imprescindvel e a aplicao da linguagem tradicional permitia que os autores criassem suas obras

com mais agilidade. Esta linguagem era previamente estabelecida e tinha sido utilizada por geraes

de poetas que a aperfeioaram at que chegasse a Homero 4.

Os primeiros escritos de Parry foram relevantes porque mostravam que existia uma relao

entre o uso das frmulas e a manuteno da mtrica. Outra observao importante dizia respeito ao

dialeto usado por Homero. A linguagem empregada pelo poeta homrico e seus antepassados diferia

consideravelmente da lngua falada por seus contemporneos, o que talvez fosse um efeito da

necessidade de combinao entre as frases no verso, respeitando os limites do hexmetro.

A princpio, Parry no associava a tradio homrica oralidade, mas posteriormente foi

parecendo cada vez mais possvel que ela fizesse parte da tcnica e que tenha sido uma ferramenta

vivel na concepo dos poemas. Aps ter tido contato com relatos de outras culturas sobre tradies

orais, Parry comeou a considerar esta hiptese, em especial aps ter tomado conhecimento dos

escritos de Matija Murko sobre a pica eslava meridional e de V. V. Radlov sobre a pica da sia

Central 5. O linguista Antoine Meillet, orientador de Parry em Sorbone, sugeriu a ele que as frmulas

nas criaes de Homero eram uma caracterstica da composio oral. Esse argumento serviu de base

para o desenvolvimento de sua teoria que passou a ser denominada Hiptese Formulaica Oral. Meillet

apresentou Parry a Murko, fillogo esloveno que tinha estudado e registrado performances da pica

oral na Bsnia e estes escritos o levaram ao estudo da poesia oral e aos poemas eslavos, uma vez que

o tamanho reduzido do corpus homrico e dos picos gregos preservados o deixava sem outras opes

para realizar suas anlises. Em companhia de Albert Lord, seu assistente, viajou para a antiga

Iugoslvia para verificar se sua teoria se aplicava tambm a essas expresses artsticas, o que ele

pode comprovar pessoalmente atravs da pesquisa de campo.

Parry e Lord gravaram as performances de poesias orais ainda em vigor na Iugoslvia com a

4 FOLEY (1999) 108.5 FOLEY (1999) 14.

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ajuda de Nikola Vujnovic, o assiste nativo, e observaram o processo de formao delas. Notaram que

poetas eslavos usavam uma linguagem constituda por frases recorrentes, que em muitos aspectos se

assemelhava de Homero. Pareciam ter encontrado uma amostra atual de poesia oral que

confirmava as ideias propostas por Parry sobre os registros homricos de uma maneira inovadora e

elucidativa.

Devido sua morte prematura, Parry no pde dar prosseguimento s pesquisas, mas Lord se

encarregou de expandir a investigao e desenvolver a Teoria Oral. Entrevistou os musicistas eslavos

para tentar entender como conseguiam compor e expor as canes ao mesmo tempo. Descobriu que

muitas vezes frases inteiras eram apreendidas como uma nica partcula, o que facilitava a

memorizao delas. Quando o compositor recorria determinada palavra, ela aparecia junto a outras

como um bloco, por isso muitas frases se repetiam e palavras apareciam unidas e nas mesmas

posies. Alguns trechos eram frequentes como um refro. Esta estrutura pr-moldada atendia s

necessidades da mtrica, como Parry havia imaginado.

Alm da verificao das frases recorrentes, Lord tambm detectou outras unidades comuns

nas narrativas que eram igualmente tradicionais: as cenas tpicas e os padres de enredo. Assim como

as frmulas, as cenas tpicas e os padres de enredo eram contnuos e tinham uma funo de tornar a

construo das canes mais dinmica, mas diferiam nos nveis da narrativa. Enquanto as frmulas

eram concernentes aos versos, as cenas tpicas e os padres de enredo correspondiam a partes mais

amplas do conjunto.Lord tambm descreveu a formao do poeta oral e acrescentou aos estudos

iniciados por Parry a anlise de outros trabalhos externos ao corpus homrico e s canes eslavas,

tais como Beowulf, Gilgamesh e A Cano de Rolando. As comparaes entre as diversas literaturas

mostraram semelhanas entre as composies orais de narrativas tradicionais, o que trouxe uma

abordagem mais abrangente Teoria Oral.

Dentre os cantores eslavos que entraram em contato com Lord, Avdo Medjedovic foi o que

mais se sobressaiu, tanto pelo tamanho de sua cano O Casamento de Smailagic Meho quanto

pela qualidade potica dela. Sua criao possua mais de doze mil versos, quase a mesma extenso

da Odisseia, o enredo era tpico da pica tradicional e a coeso do trabalho conferia justa

notoriedade a ele. A analogia entre Homero e Avdo Medjedovic revelou que, atravs da utilizao dos

mtodos de composio tradicionais, um autor talentoso poderia criar um poema memorvel, de

grandes propores e habilidade artstica. A comparao foi til, pois esclareceu questes sobre a

estrutura e o significado do registro potico, apesar de possuir seus limites naturais.

Posteriormente, John Miles Foley deu prosseguimento investigao sobre a Tradio Oral.

Assim como Parry e Lord, Foley tambm fez uso das amostras da poesia eslava para incorpor-las ao

corpus homrico, j que a Ilada e a Odisseia pertenciam a subgneros diferentes e por isso no

podiam ser comparadas. Na interpretao de Foley, Homero, ao invs de ser entendido unicamente

como o homem por detrs dos mais ilustres picos gregos, assimilado como um nome que

representava a prpria tradio potica, que abrangia outros artistas e que seria uma espcie de

smbolo para os melhores cantores, autores de trabalhos de excelncia. A tradio compreendida

4

pelo autor no como algo esttico, mas como uma linguagem especializada, com propsitos e

contextos particulares, que estava sempre em movimento, desenvolvendo-se e sendo enriquecida por

novos compositores e composies. A linguagem dependia daqueles que se utilizavam dela e no

existiria sem eles, mas apenas os que possuam talento tinham habilidade de criar obras memorveis.

Tanto a tradio quanto o indivduo eram elementos indispensveis para a composio de uma cano

de qualidade, o artista desenvolvia a cano e a tradio era o veculo que conduzia seu trabalho. A

poesia pica arcaica foi um tipo delicado de arte, singular em sua concepo, recepo e significado

e o estudo da Tradio Oral tem como objetivo desvendar tanto os aspetos da criao dos poemas

quanto as suas caractersticas da recepo pelas audincias antigas e atuais.

Foley tambm estudou as trs unidades tradicionais, mas, ao invs de examin-las como a

ferramenta que auxiliava a construo dos versos, como tinham feito Parry e Lord, Foley resolveu

investigar o significado das unidades para a recepo delas, tanto por aqueles que as escutavam no

momento em que eram apresentadas, como pelos leitores modernos. O padro de enredo era o maior

elemento tradicional que formava as obras e a partir dele eram compostas as cenas tpicas, que por

sua vez eram constitudas pelas frmulas.

As frmulas eram situadas nas linhas do poema. Embora fossem a menor das unidades

tradicionais, eram de grande valor porque potencializavam o exerccio dos compositores e

transmitiam mensagens amplas atravs de poucas palavras, uma vez que as frmulas eram

reconhecidas imediatamente pela audincia e faziam aluso a aspectos culturais que nem sempre se

limitavam ao sentido denotativo das frases. As frmulas eram colocadas junto a outras palavras, de

modo a concluir o hexmetro com mais preciso e rapidez. Como um quebra-cabea, as frases-

frmula e frases-epteto formavam uma grande poro do verso e ficavam disponveis para que o

cantor pudesse lig-las outra parte flexvel que completasse o hexmetro perfeitamente. Este

processo era uma soluo para o desafio da composio oral durante a performance. As frmulas

nome-epteto eram normalmente invariveis e se combinavam com outras palavras para constituir um

verso. O grande nmero de frmulas nome-epteto oferecia amplas possibilidades de combinao

entre personagens e aes. A plasticidade inerente, a estrutura idiomtica e os eventos recorrentes

guiavam o autor, no momento da composio, e a audincia ou o leitor, na recepo da histria.

As cenas tpicas eram certas situaes no poema que tinham ordenamento similar e

constante, onde eram usados sistemas formulares ou blocos de linguagem. Os eventos de um mesmo

grupo eram descritos de forma parecida, o que caracterizava um padro dentro das cenas de

temtica comum. Algumas delas tinham esquema e contedo aproximados, mas eram maleveis o

suficiente para que fossem moldadas conforme a vontade do compositor. As cenas tpicas eram

variadas e classificadas por categorias, sendo que as principais divises eram assentadas por

subgrupos de contedo equivalente.

O padro de enredo era a maior estrutura de todas. A partir da comparao entre

composies tornou-se possvel notar que o contedo que possuam muitas vezes era correlato e,

dessa forma, os padres foram detectados. As narrativas tinham desenvolvimento lgico semelhante,

5

independente do local ou do momento em que foram elaboradas. Essa unidade de expresso

contextualizava histrias diversas e demonstrava que elas possuam um pano de fundo similar. Este

instrumento de expresso, porm, era flexvel o bastante para oferecer ao artista oportunidades de

variao dentro de certos limites. O autor encontrava liberdade para modificar alguns aspectos do

enredo, sem descaracteriz-lo. A plasticidade das unidades tradicionais permitia que o compositor

fizesse ajustes necessrios no momento em que elaborava suas canes, sem deixar que as

modificaes as afastassem completamente dos modelos tradicionais.

Foley chama de sma todos os sinais, sempre tradicionais, que possuem um significado

idiomtico alm do literal. Quando se tratam de palavras ou expresses, os sinais transmitem valores

que ultrapassam o sentido denotativo do lxico, mas o sma pode estar presente tanto nas frases,

quanto nas cenas tpicas ou no padro de enredo e o conjunto destes smbolos especiais

denominado smata. Os smata eram transmitidos e decifrados com naturalidade e a poesia muitas

vezes conseguia reportar mais detalhes do que aparentava, pois os smbolos eram uma espcie de

veculo econmico que conseguia agrupar informaes importantes histria usando menos palavras

que o necessrio, uma vez que muito do que se queria dizer ficava implcito nas expresses e

unidades especiais. Os cdigos ocultos dos sinais eram importantes para a recepo dos poemas, por

isso o entendimento deles se tornava essencial para a compreenso da prpria obra, uma vez que isso

ajudava a decodificar as mensagens incutidas neles. Este sistema de comunicao era reconhecido

pela comunidade e preservado atravs das geraes. Foley utiliza a cama de Odisseu e Penlope

como metfora para explicar o funcionamento de um sma. O objeto tem uma caracterstica peculiar

que s o casal conhece e esse detalhe usado pela esposa para se certificar se o homem que aparece

em seu palcio mesmo seu marido. A cama possui um significado maior do que sua mera

correspondncia como parte da moblia da casa. A particularidade do objeto une o casal atravs de

um segredo compartilhado apenas pelos dois, pois quando Penlope pede a Odisseu que transfira a

cama em que dormiam para outro local da casa, apenas Odisseu seria capaz de saber que tal coisa

no seria possvel, uma vez que a cama era fixada no quarto e por esta razo no poderia ser

removida de onde se encontrava.

A audincia tambm j estaria acostumada com esse tipo de detalhe essencial histria, que

assegurava a reviravolta da trama e confirmava as palavras do heri sobre quem ele se dizia ser. O

mesmo acontece com a cicatriz na coxa de Odisseu, que tambm aparece de formas anlogas em

outras histrias de Cano de Retorno, como um elemento que comprova que o heri mesmo

aquele que volta ao seu lar e no um mero pretendente ao seu trono se passando por ele.

No nvel dos versos, algumas frases do corpus homrico podem ser citadas como exemplos de

smata, pois conseguem trazer ao imaginrio informaes que no so explcitas no verso, mas que

esto presentes na forma de comunicao tradicional. Quando Homero mencionava o medo verde

(chlron deos), a audincia, familiarizada com sua linguagem, imediatamente reconhecia que no se

tratava de um medo qualquer, mas de um sentimento de pavor intenso, possivelmente acometido por

uma situao sobrenatural. Da mesma forma, que o mar cor de vinho (oinops pontos) evocava uma

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imagem igualmente conotativa, que a sociedade ciente dos cdigos da tradio estava apta a

decifrar.

Sobre as cenas-padro, Foley menciona dois smata principais retirados da Odisseia: o

banquete e a lamento. Ambos os exemplos so constitudos por sequncias de eventos padronizadas,

que possuem certa flexibilidade de ao, dentro dos limites naturais de cada tipo. Os banquetes, por

exemplo, tm anfitries e hspedes variados, mas o modo como os personagens se convidam a sentar

em companhia, os verbos usados na construo do poema e a ordem dos acontecimentos costumam

ser similares, demonstrando assim que fazem parte de um encadeamento lgico aproximado.

Com relao ao padro de enredo, Foley verifica as equivalncias presentes nos poemas sobre

a Cano de Retorno, escolhendo comparar a Odisseia com alguns exemplos da poesia oral eslava

meridional que so anlogas obra de Homero. As amostras recolhidas por Foley apresentam

similaridades no desenvolvimento das histrias, o que o leva a crer que existe um propsito para que

o drama de Odisseu seja narrado fora de sua ordem cronolgica, assim como o comportamento ctico

de Penlope tem uma razo, no uma caracterstica puramente inerente sua personalidade.

A metodologia de anlise utilizada por Foley para descobrir os smata consistia na coleta de

exemplos de cada sinal e na verificao da presena ou ausncia de alguma implicao tradicional

que extrapolava seu significado literal. As mltiplas amostras eram comparadas atravs de resumos

de obras anlogas e, caso possussem estrutura recorrente, cada sma poderia ser detectado e

investigado em conjunto.

A deteco dos sinais pode trazer grandes avanos na interpretao das histrias, alm de

auxiliar a compreenso de seu papel na criao dos trabalhos artsticos. As estruturas composicionais

tradicionais eram essenciais para a construo dos trabalhos desse ramo, pois muitas vezes a

audincia j conhecia os mitos relatados, ento os detalhes geravam expectativa e contextualizavam

os ouvintes e, posteriormente, os leitores. O pblico da poca tinha uma oportunidade de contribuir

com a produo, trazendo para ela seu conhecimento das implicaes tradicionais. A fluncia no

registro e no significado permite que os sinais sejam identificados e claramente compreendidos. Os

smbolos podem ser lidos nas entrelinhas e o entendimento das obras enriquecido pela aquisio

dos detalhes tradicionais. Dessa maneira, as associaes adicionais so incorporadas na recepo dos

poemas e os estudiosos e entusiastas podem ter uma noo mais profunda de como os trabalhos

artsticos eram desenvolvidos e recebidos pelo pblico. O procedimento de coleta dos exemplos

ajuda a traar significados do padro de enredo, cena tpica ou frase. A abordagem funciona de

forma mais satisfatria com sinais recorrentes, que aparecem em situaes variadas. Do mesmo

modo, sinais raros no costumam solucionar dilemas, por causa da escassez de exemplos. Muitas

vezes os sinais ocorrem com pouca frequncia e o significado deles acaba no transparecendo no

mtodo da coleta. Nesses casos, a adio de trabalhos artsticos de estrutura similar ajuda a

aumentar o corpus e a comparao pode ser realizada.

Em resumo, a metodologia utilizada por Foley permitiu que a viso acerca das obras fosse

amplificada atravs da conscincia sobre as implicaes tradicionais. Apesar da desvantagem da

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limitao do corpus homrico, a abordagem pde ser aplicada com sucesso porque ele conseguiu

aumentar seu campo de pesquisa acrescentando ao corpus homrico as produes eslavas anlogas,

que foram fundamentais para o entendimento sobre a estrutura dos poemas e o significado dos sinais.

Da mesma maneira que Foley ampliou suas amostras adicionando Odisseia exemplos da

poesia eslava, este tipo de estudo pode ser aplicado a outras composies que apresentam estrutura

de enredo semelhante, como o caso das histrias que englobam um tipo especial de tringulo

amoroso, tema central deste trabalho. As narrativas que envolvem um tipo de conflito amoroso

envolvendo dois homens e uma mulher, que na maior parte das vezes casada com um homem mais

velho e deseja ter um enlace amoroso com outro mais jovem ou mais atraente, fazem parte da

temtica classificada como "A esposa de Potifar" ou o "Tema de Zuleica". Este um enredo tpico e

internacional bastante corrente, muitas lendas e histrias se assemelham ou poderiam at mesmo

terem sido baseadas na famosa histria Bblica.

A lenda hebraica da esposa de Potifar aparece em Gnesis 37-39. que foi traduzida para o

grego no sculo III EC. A histria faz parte do conjunto de episdios vividos por Jos, heri hebreu

que foi vendido como escravo pelos prprios irmos e acabou indo residir no Egito, onde conheceu

Potifar. Jos passou a administrar os bens deste, que era chefe da guarda real do fara. Apesar de

trabalhar sob a condio de escravo, Jos tinha grande prestgio com seu senhor, pois, atravs de sua

gesto, os negcios de seu patro sempre prosperavam. Jos era, alm de um administrador sbio,

bonito e vigoroso e a esposa de Potifar logo tomou conhecimento dele. Por diversas vezes, ela tentou

se deitar com ele, mas o jovem sempre tinha em mente a confiana que seu senhor lhe destinava e

isso, aliado a seu respeito a Deus, fazia com que ele sempre se esquivasse dela. Um dia, aps muitas

investidas, a esposa de Potifar tentou novamente convencer o escravo hebreu a ter relaes sexuais

com ela, no obtendo xito em sua empreitada. Ela, no entanto, conseguiu obter parte das vestes de

Jos, que a deixou para trs quando tentava fugir do assdio. A pea de vestimenta foi ento usada

como uma prova que atestaria um falso depoimento de que ele teria tentado desonrar sua senhora. A

calnia foi contada por ela aos empregados e ao prprio Potifar, que acreditou piamente em sua

consorte. Enraivado com Jos, aprisionou-o, mas no o condenou morte porque, de alguma forma,

talvez ainda sentisse alguma espcie de afeio por ele, gratido ou mesmo talvez por sentir que no

deveria punir o subordinado de uma forma irreversvel por um crime que parecia incompatvel com a

lealdade demonstrada por Jos at ento. Este foi apenas um dos eventos de injustia na trajetria

de Jos, que sempre conseguiu sobressair s suas adversidades e se destacar pelo seu prprio

talento.

O modelo da relao entre Potifar, sua esposa e Jos foi detectado em outras culturas, em

diferentes geraes e localidades. Muitas histrias gregas se encaixavam nesse tipo de enredo, apesar

de apresentarem variantes. De modo geral, porm, todas as histrias aqui coletadas so provenientes

da mitologia grega e, embora exibam detalhes diversos, fazem parte de um enredo que as coloca em

um mesmo grupo, pertencentes do mesmo gnero de tringulo amoroso onde um heri ntegro

injustiado em decorrncia da injria levantada contra ele por uma mulher apaixonada.

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Todas as histrias apresentam, atravs de pelo menos uma fonte, um enredo semelhante: um

heri cobiado por uma mulher, que normalmente casada, mas a paixo no correspondida

porque ele , acima de tudo, um homem virtuoso. Em grande parte dos relatos, o heri recusa a

mulher por ela ser comprometida com algum de seus parentes ou com um homem com quem ele tem

uma relao de subordinao ou respeito. Geralmente, ela se oferece ao jovem pessoalmente, mas

em outras verses uma criada a auxilia. Como o envolvimento amoroso no acontece, a paixo cede

lugar ao desejo de vingana e a mulher inventa alguma calnia grave sobre o rapaz, contando a

mentira ao marido, na esperana de que este, enfurecido, castigasse o jovem. O fim da histria

costuma variar, mas em muitos casos ele trgico e repleto de acontecimentos fatais.

Inicialmente, as obras apresentam o heri diante de uma mulher que se interessa por ele e

que tenta conquist-lo, sem sucesso. Na maioria das vezes, a personagem rejeitada procura

compensar sua dor atravs da vingana e, regularmente, manipula seu marido contra o homem por

quem se apaixonou, empregando um falso depoimento para convencer o primeiro de que o outro

cometeu um crime grave pelo qual merece ser punido. O marido, acreditando que a esposa tinha sido

ultrajada pelo jovem heri, procura castig-lo e o desfecho da histria muitas vezes marcado por

uma morte ou mais. A ordem dos eventos invarivel e os enredos costumam partilhar muitos

pormenores, ainda que alguns possam suprimir elementos comuns ou torn-los diferentes, de acordo

com o desejo de cada autor. As diferenas ocorrem respeitando limites que os mantm dentro do

mesmo padro.

O esquema costuma ocorrer na seguinte sequncia:

D (Desequilbrio) > A (Assdio) > R (Rejeio) > C (Calnia) > P (Punio) > M (Morte)

A chegada do heri acaba desencadeando um desequilbrio no oikos, o ncleo familiar. A

famlia desestruturada com a presena do visitante ou cativo de guerra que desperta a paixo na

matriarca. A partir do contato entre a senhora e o heri, iniciam-se as tentativas de seduo,

seguidas pela frustrao da recusa por parte do rapaz. O desprezo termina por dar origem ao rancor

ou ao medo de ser descoberta sendo infiel ao marido, o que faz com que a mulher tea uma calnia

sobre o homem por quem estava apaixonada, esperando que atravs disso ele sofra as consequncias

de seus atos. Normalmente o heri castigado de alguma forma, mas o desfecho da histria pode

variar, o que aparenta ser a parte mais plstica dos enredos.

Em alguns casos, o jovem virtuoso consegue superar seus obstculos, comprovando sua

inocncia por meio de seus atos intrpidos e sobrenaturais, e se vinga daqueles que o colocaram em

perigo, voltando-se contra a mulher ardilosa ou arrasando a cidade em que ela e seu marido viviam.

Em outras ocorrncias, o heri no consegue superar as armadilhas empregadas contra ele e

assassinado injustamente. Em situaes como estas, o heri posteriormente inocentado e muitas

vezes reconhecido por sua honra ou cultuado entre os cidados da sua cidade natal, que constroem

templos em sua homenagem.

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Mesmo quando o heri sobrevive punio imposta por seu hspede ou pelo homem com

quem tinha uma relao social, a histria pode ser repleta de mortes. Na maioria dos mitos, a esposa

desonesta acaba se matando, seja por remorso do que fez, seja por vergonha ou medo de ser

desmascarada perante seus compatriotas. Em alguns relatos, outros personagens tambm perecem

como o pai do jovem heri ou o esposo trado.

A seguir as histrias sero examinadas individualmente, em suas muitas verses, para que

todos os pontos sejam expostos de forma mais minuciosa e, dessa forma, as semelhanas e diferenas

entre os enredos possam ser notados, reforando a ideia de que fazem parte de um mesmo bloco

narrativo tradicional.

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ANTEU

Anteu / Cleobeia ou Filecme / Fbio

3.1.1 Enredo

Anteu deixa Halicarnasso e levado na condio de refm a Mileto para o palcio do rei

Fbio. A esposa do rei Cleobeia ou, em outras verses, Filecme se apaixona pelo rapaz, mas ele

rpido rejeita as suas investidas com a justificativa de que tem receio de ser apanhado em delito e

de que teme desagradar a Zeus e desrespeitar suas obrigaes de hospitalidade. A rainha, sentindo-se

ferida em seu orgulho, decide vingar-se. Fingindo superar sua paixo, ela busca uma reaproximao e

prepara uma emboscada: ela pede ao rapaz ajuda para pegar uma perdiz no fundo de um poo. Sem

desconfiar de nada, o jovem aceita ajud-la. Uma vez dentro do poo, Cleobeia empurra uma pedra

de moinho sobre a cabea de Anteu, que morre de imediato. A rainha, mais tarde, arrepende-se do

que fez e comete suicdio.

3.1.2 Variantes

As variantes encontradas nas diferentes verses da histria de Anteu esto no detalhe,

limitando-se ao nome da rainha e ao objeto colocado no fundo do poo como armadilha. Partnio de

Nicia chama a esposa de Fbio de Cleobeia, mas observa que outros autores chamavam-na Filecme.

No que concerne ao objeto colocado dentro do poo, Partnio conta que no se tratava de uma

perdiz, mas de um clice de ouro.

3.1.3 Fontes

A histria de Anteu encontrada em uma coletnea de amores no correspondidos escrita por

Partnio de Niceia e entitulada Erotika Pathemata, recentemente traduzida para o portugus sob o

ttulo Sofrimentos de Amor 6 e no poema Apolo atribudo a Alexandre da Etlia e econtrado na mesma

coleo. Partnio era natural de Niceia, viveu em Roma circa I EC, onde se destacou como professor

de gramtica e retrica; tambm teria sido tutor de Verglio. A coletnea supracitada foi seu nico

trabalho preservado e rene histrias tiradas de escritores gregos clssicos e helensticos, algumas

so claramente baseadas em mitos, outras em relatos histricos ou pseudo-histricos. A histria de

Anteu a dcima quarta histria de sua coletnea e leva este mesmo ttulo.

Segundo o prprio Partnio 7, as referncias do seu relato encontram-se em Aristteles e nos

escritores da Histria de Mileto. H dvidas de que esta histria esteja realmente em uma obra de

Aristteles e por isso alguns estudiosos propuseram que outro nome fosse lido em seu lugar, como

6 PEREIRA (2015).7 PEREIRA (2015) 73.

11

Aristdico 8. Por outro lado, alm dos filsofos empregarem com frequncia fbulas mitolgicas em

trabalhos mais srios, a histria pode ter aparecido na descrio das forma de governo de Mileto, j

que sabemos que Aristteles tinha interesse e organizara coletneas de "constituies" de diversas

cidades 9.

Alexandre da Etlia era da cidade de Pleuron, contemporneo de Arato e Filetas. Viveu entre

os sculos IV e III AEC e passou a maior parte da sua vida em Alexandria. Assim como Partnio, alm

de poeta foi gramtico, sendo que considerado o nico representante da poesia da Etlia. Acredita-

se que o trecho, citado por Partnio no Sofrimentos do Amor, faz parte do seu poema Apolo, em que

o deus profetiza o destino de vrias vtimas de relacionamentos amorosos infelizes 10.

3.1.4 Partnio de Niceia

Um jovem chamado Anteu, de linhagem real, enviado de Mileto a Halicarnasso na

condio de refm com vistas a se instalar na corte do rei Fbio. Este rei pertence raa de Neleu e

o governante da cidade. Sua esposa Cleobeia (ou Filecme) sente-se atrada pelo rapaz e emprega

todos os meios possveis para despertar seu interesse. Entretanto, seus esforos so sempre em vo,

uma vez que o rapaz continuamente repele suas investidas. Anteu justifica-se dizendo que teme ser

descoberto caso se dobre s vontades de Cleobeia. Em outras ocasies, o jovem mostra respeito a

Zeus, o deus que guarda as obrigaes de hopitalidade (xenia), e mesa do rei em que ambos se

sentavam para partilhar o po. Cleobeia no razovel e considera Anteu orgulhosa, desprovido de

piedade. Sua paixo toma um rumo nefasto quando ela decide vingar-se do jovem. Meticulosamente,

ela espera o tempo passar e finge que est livre da paixo pelo rapaz. Ento, um certo dia, pede que

Anteu desa at o fundo de um poo para apanhar uma perdiz colacada no lugar propositalmente, um

engano usado para pr o plano de vingana em prtica. Anteu consente, sem suspeitar de nenhuma

maldade. Quando chega ao fundo do poo, a mulher empurra uma enorme pedra de moinho sobre ele

que morre instantaneamente. S ento que ela compreende quo terrvel seu crime. Ainda sentindo

queimar sua paixo por Anteu, a rainha Cleobeia resolve pr fim a tudo enforcando-se. Diante da

tragdia familiar, Fbio se considera sob uma maldio e entrega o seu reino a Frgio.

3.1.5 Alexandre da Etlia

Fbio, filho de Hpocles, proveniente da nobre estirpe de Neleu, ganha uma jovem esposa,

contente por sentar-se em casa, nos cmodos internos no palcio, para fiar. Posteriormente, Anteu,

um belo jovem da realeza, querido por Hermes, encaminhado at Mileto como refm. A jovem

esposa de Fbio logo sente por ele um amor proibido. Agarrando-se aos joelhos de Anteu, ela implora

que a tome nos braos, mas ele recusa o pedido temendo punio. Ele afirma que Zeus, deus da

8 GASELEE & THORNLEY(2008) 3009 GASELEE & THORNLEY(2008) 300-110 PEREIRA (2015) 73 n. 133, GANSELEE & THORNLEY (1916) 302.

12

hospitalidade e o po e o sal do anfitrio sero ultrajados dessa forma; no desonraria a confiana de

Fbio e, ento, lana ao mar e ao rio o pensamento de luxria, lavando em fontes e rios a palavra

indecorosa. A jovem desprezada, ento, inventa um estratagema malgino: mente, pedindo a Anteu

para buscar seu clice de ouro para fora de um poo, quando a corda se rompeu e o objeto foi para

o fundo. Ela pergunta se ele desceria e pegaria o objeto para ela, pois que assim ganharia sua

gratido. Sincero em seu propsito, Anteu remove sua tnica, presente de sua me, e inicia a

descida. A perversa rainha ento rola sobre ele uma imensa pedra de moinho. O poo se torna para

Anteu uma cova designada pelo destino. Depois, a mulher faz um n em torno do prprio pescoo e

encontra a morte e as sombras do Hades.

3.1.6 Concluso

O enredo da histria de Anteu algo diferente das outras narrativas sobre tringulos amorosos

apresentadas nesse trabalho. Em sua maioria, a personagem principal do enredo, o heri da histria,

enteado da mulher que por ele se apaixona 11. Apenas em outras duas narrativas do corpus o heri

no tem vnculos de parentesco com o casal principal, mas so recebidos como hspedes. Anteu, por

sua vez, o nico exemplo de jovem que reside na casa de estranhos na condio de refm ilustre.

Nas duas verses, a rainha e jovem esposa de Fbio apresentada vivendo harmoniosamente

com seu marido at a chegada do belo rapaz fazer com que ela deseje ingressar em uma relao

extraconjugal. A chegada de Anteu corte de Mileto assinala uma mudana permanente no ncleo

familiar (oikos) no que a rainha se suicida e o rei abre mo dos seus domnios aps sentir que se

encontra amaldioado.

Outros dois detalhes que tornam o enredo dessa histria singular so as abordagens da rainha

e os motivos dados por Anteu para se afastar dela. Tanto o relato de Partnio, quanto o de Alexandre

da Etlia demonstram que as tentativas de seduo eram frequentes e infrutferas. O ato de Cleobeia

de abraar os joelhos de Anteu no intuito de convenc-lo a se deitar com ele retrata uma attude de

splica, tal como Ttis tenta obter a ajuda de Zeus na Ilada, por exemplo 12. Diferente da Fedra da

verso euripidiana e de Gidica, Cleobeia mantm contato pessoal com o jovem heri de forma muito

insistente 13.

Anteu explica que no poderia se deitar com ela, pois temia ser apanhado em delito. O medo

se justifica diante das consequncias que poderia sofrer, especialmente por sua posio de refm em

uma corte estrangeira. Outras vezes Anteu diz que deitar-se com a rainha seria quebrar a confiana

do dono da casa em que vive, ultrajando o prprio Fbio e a Zeus, o deus que guarda a hospitalidade.

A infrao de Anteu seria tanto terrena, quanto divina, e os resultados da transgresso no seriam

bons em nenhum dos dois planos.

11 O heri o enteado da antagonista: Comnio, Etocles & Polinicies, Fnix, Hiplito, Pndion & Plexipo, e Tenes. 12 HOMERO, Ilada 1.500.13 A postura de Cleobeia se assemelha da esposa de Potifar, que sempre tentava se deitar com Jos, escravo de seu marido. Suas

investidas eram to frequentes e intensas que certa vez ela conseguiu arrancar parte das vestes dele e as usou para incrimin-lo.Gnesis 37-39.

13

Outro aspecto original do mito de Anteu que a mulher desprezada no utiliza o artifcio da

mentira da mesma forma que as outras para lograr vingar-se do jovem virtuoso. Cleobeia a nica

antagonista que, em vez de contar mentiras e persuadir o marido, age por conta prpria: suas

mentiras so dirigidas ao prprio rapaz e fazem parte do seu plano de vingana. Seus atos no so

decorrentes de raiva sbita, mas friamente calculados: ela espera o tempo passar e finge que sua

paixo por Anteu arrefecera para que, enganado, o jovem lhe ajudasse. A punio arquitetada pela

prpria Cleobeia e ela a realiza com suas prprias mos. O heri, como muitos outros 14, no escapa

armadilha em que foi colocado e morre. Mesmo aps a morte de Anteu, Cleobeia no consegue

esquec-lo e por isso resolve se suicidar. Os motivos no so claro em nenhuma das verses.

Alexandre da Etlia descreve Cleobeia e Anteu como jovens belos e a beleza e a juventude do

refm parecem constituir a possvel razo do encantamento que a rainha sentiu. De todos os outros

este o enredo em que o heri aparenta estar mais susceptvel s investidas e tentao da mulher,

pois que apenas aqui a personagem principal da histria lava-se em fontes na tentativa de lavar seu

pensamento impuro.

14 O mesmo acontece com Comnio, Eunosto, Hiplito e Mirtilo.

14

BELEROFONTE

Belerofonte / Anteia ou Estenebeia / Preto

3.2.1 Enredo

O mito de Belerofonte foi contado por Homero e Hesodo nos Perodo Arcaico e recontado por

poeta trgicos e mitgrafos ao longo do Perodo Clssico. O heri descrito como um jovem valoroso,

bem-apessoado, afvel e habilidoso, que se destaca entre os mortais e tem a graa dos deuses a seu

favor. Ao ser enviado corte do rei Preto em exlio 15, a rainha tomada de uma forte paixo e tenta

seduzi-lo exaustivamente. Como o heri justo e casto, no sucumbe s investidas dela. A esposa de

Preto decide que, por no satisfaz-la, o hspede deve ser punido. Por esta razo inventa que ele

tentou molest-la sexualmente e conta a mentira ao marido, criando um celeuma entre eles. Preto

no se dispe a enfrentar Belerofonte 16, mas decide mand-lo ao sogro, para que sua vingana possa

ser realizada em outro territrio, pela mo de terceiros. Por Belerofonte Preto envia uma mensagem

em que constam instrues para que o portador do comunicado seja morto na corte estrangeira. O

sogro de Preto, com o intuito de ajudar o genro, manda o heri enfrentar a Quimera, os Slimos, as

Amazonas e, finalmente, um apanhado dos melhores guerreiros locais em emboscada. Com todos os

oponentes derrotados, o rei percebe afinal que o hspede possui qualidades sobrenaturais e resolve

ficar ao seu lado, honrando-o com uma parte do seu reino e a mo de uma de suas filhas 17.

Aps o perodo de prosperidade, Belerofonte sofre algum infortnio que faz com os deuses o

reprovem. Ele passa o restante dos seus dias vagando sozinho e amargurado pelos campos Aleios 18. O

motivo para o desfecho infeliz de Belerofonte podem variar, assim como o fim de alguns dos outros

personagens envolvidos na histria 19.

3.2.2 Variantes

H algumas diferenas nas fontes que contam o mito de Belerofonte. A narrativa homrica e

as outras mais recentes variam no que diz respeito filiao, ao local em que se passa a histria, ao

nome da esposa de Preto, ao nome de sua prpria esposa, tentativa de chegar ao Olimpo e outras.

15 Na Estenebeia de EURPIDES (frg. 661.6) Belerofonte enviado a Preto para ser purificado pelo assassinato de um parente, talcomo Teseu no Hiplito do mesmo autor. Esse tambm o motivo do exlio de Belerofonte segundo o escoliasta de Ilada 6.155.

16 No comentrio de TZETZES a LCOFRON 17 (apud CABRAL 2013: 9), um antigo costume impedia que uma pessoa assassinasse oufizesse o mal contra outra pessoa com quem tinha partilhado uma refeio. Isso teria impedido que Preto matasse Belerofonte.Para GRAZIOSI & HAUBOLD (2010: 124), que citam como paralelo a vingana de Odisseu contra os pretendentes, o estratagemade Preto implica em fraqueza ou indeciso. Ademais, para eles, Preto aplica em Belerofonte a punio merecida por Anteia, jque no perodo clssico o marido trado normalmente devolvia a esposa adltera casa do seu sogro.

17 Em um esclio s Rs de ARISTFANES 1043, 1051 (apud GANTZ 1993: 215) encontramos a informao de que Belerofonteconsegue provar na corte do sogro de Preto a sua inocncia e Estenebeia, envergonhada por ter sido desmascarada, resolvetomar veneno.

18 Literalmente, "os campos da solido" em grego. Em um esclio Ilada 6.200-205 encontramos que a tristeza de Belerofonte decorrente da morte dos seus filhos (apud GANTZ 1993: 854)

19 Por exemplo, os epigramas que descrevem o relevo dos pilares do Templo de Apolnis em Czico (Antologia Grega 3.15), Glauco,neto de Belerofonte, salva o heri de um combate contra Megapente, filho de Preto e Estenebeia. Talvez esse enfrentamentopossa ser explicado pela morte de Estenebeia (JESUS 2015: 64-65).

15

Segundo Hesodo, Beleronfonte filho de Eurnome e Poseidon, que lhe presenteia o Pgaso.

Encontramos a mesma filiao em Pseudo-Higino. Pndaro tambm est de acordo com Hesodo,

entretanto nos conta que Belerofonte captura o cavalo alado com a ajuda das intrues de Atena.

Pseudo-Apolodoro d Glauco como sendo o pai de Belerofonte. Uma possibilidade Glauco ser o pai

de criao, Poseidon o pai biolgico 20. Em Homero e Asclepades a histria se desenrola em Argos,

Hesodo, Eurpides e Pseudo-Apolodoro, por sua vez, fazem meno cidade de Tirinto 21. O nome da

esposa de Preto em Homero Anteia. Em Hesodo encontramos o nome Estenebeia e este o nome

mais recorrente entre os autores, inclusive para Eurpides que escreveu uma pea com este mesmo

ttulo. Pseudo-Higino refere-se a ela como Estenebeia e Antia, este ltimo possivelmente uma

variao do nome encontrado na Ilada. Pseudo-Apolodoro emprega ambos os nomes 22.

O motivo da ida de Belerefonte corte de Preto uma unanimidade nos autores, as variaes

esto nos detalhes: na Estenebeia de Eurpides, a razo a purificao pelo homicdio de um parente

em Corinto. Asclepades informa que a causa o homicdio de Blero, governante de Corinto. J em

Pseudo-Apolodoro encontramos a informao de que Belerofonte vai corte de Preto buscando

purificao pelo assassinato involuntrio de um irmo. Diodoro da Siclia tambm confirma a verso

de homicdio involuntrio 23.

Em alguns autores, o casamento de Belerofonte apresenta ligaes com o enredo de tringulo

amoroso apresentado neste trabalho. Em Hesodo, a noiva de Belerofonte filha de Iobates, mesma

informao encontrada em Asclepades, que lhe d ainda o nome de Cassandra ou Passandra. Pseudo-

Higino afirma que a jovem irm de Estenebeia e que ela se suicida ao ficar sabendo da suposta

unio entre Belerofonte e Estenebeia. Em Pseudo-Apolodoro encontramos a verso de que ambas as

esposas, de Preto e de Belerofonte, so filhas de Iobates, mas para ele, o nome da ltima Filone.

Finalmente, em um esclio a Pndaro encontramos o nome Anticleia, e num esclio Ilada

encontramos Cassandra 24.

3.2.3 Fontes

Existem pelo menos seis fontes importantes para a histria de Belerofonte. Desde a Ilada,

seus feitos j eram mencionados e este mito foi tema de muitas outras obras. A Ilada um pico de

mais de 15 mil versos, atribuda a Homero 25 e composta no grego homrico, atravs de hexmetros

datlicos. Junto Odisseia, as duas obras so consideradas as mais antigas e importantes da literatura

ocidental.

Eurpides escreveu dois poemas trgicos sobre a personagem: Estenebeia e Belerofonte,

ambos perdidos. Os dois trabalhos devem ter tido elementos em comum com as peas produzidas

entre 420 e 430 AEC, que examinam as obrigaes e transgresses de anfitries, hspedes, amigos e

20 HESODO Catlogo das Mulheres 7.1-21; PNDARO Olmpica 13.69; PSEUDO-HIGINO Fbulas 157; esclio Ilada 6.191.21 HESODO Catlogo das Mulheres 18; EURIPIDES Estenebeia fr.661.6; PSEUDO-APOLODORO Biblioteca 2.2.1-3.2.22 PSEUDO-APOLODORO Biblioteca 2.2.1.23 DIODORO DA SICLIA Biblioteca Histrica 6.9.24 Esclio Ilada 6.155 apud CABRAL (2013) 70. 25 SAD (2011).

16

aliados 26. Belerofonte certamente anterior a 425, o ano em que a pea parodiada por Aristfanes

em seu Acarnianos. A hiptese da Estenebeia foi preservada pelo estudioso bizantino Joo Logoteta,

de XII EC, que tambm conservou um longo fragmento do prlogo, um discurso de Belerofonte.

Acredita-se que o resumo da histria desse heri encontrado nos esclios da Ilada seja

proveniente de Asclepades e que ele baseado nas verses trgicas da histria 27. Asclepades de

Trgilo viveu no sculo IV AEC e foi um mitgrafo e crtico literrio da Grcia Antiga. Ficou conhecido

por ter escrito a Tragodoumena, onde ele supostamente examinava os mitos nas tragdias gregas,

mas seus trabalhos no sobreviveram. Essa deveria ser uma obra riqussima, pois considerada a

primeira tentativa sistemtica de registro dos mitos e dito que estes eram preservados atravs do

resumo dos enredos presentes nas tragdias, assim como seus detalhes e variantes. A obra conhecida

como A Biblioteca de Pseudo-Apolodoro cita o autor duas vezes como uma de suas referncias. Este

relato transparecia tanta fidelidade em sua reproduo de outros escritos que suas declaraes sobre

autores cujas obras desapareceram, como Fercides de Leros, Acusilau e Asclepades, so aceitas e

consideradas seguras 28.

Diodoro da Siclia viveu no sculo I AEC e foi um historiador grego conhecido por ter escrito

uma nica obra, intitulada Biblioteca Histrica, o mais extenso relato sobre a histria da Grcia e de

Roma que chegou at a atualidade e que abrange desde as origens mticas at as ltimas dcadas da

Repblica Romana. A Biblioteca Histrica era composta por quarenta livros, mas somente os livros do

intervalo de um a cinco e de onze a vinte sobreviveram, dos outros restaram apenas alguns

fragmentos. Diodoro teve acesso ao trabalho de outros autores para compor sua obra.

Pseudo-Higino como alguns estudiosos chamam o suposto autor das Fbulas que outros

dizem pertencer a Caio Jlio Higino. A divergncia tem origem no estilo e na linguagem da obra, que

alguns especialistas julgam ser muito inferiores ao que Higino estaria habituado a demonstrar atravs

de sua erudio 29. Fbulas uma compilao de mitos e lendas contendo em torno de trezentas

histrias breves e escritas com bastante simplicidade.

Pseudo-Apolodoro a alcunha do autor de Biblioteca, anteriormente atribuda a Pseudo-

Apolodoro de Atenas. No existem informaes a seu respeito ou sobre outras obras que tenha

escrito, mas acredita-se que a Biblioteca tenha sido finalizada no sculo I ou II d.C.. A obra uma

compilao de textos sobre Mitologia Grega e tm-se a impresso de que o autor era muito fiel s

suas fontes, sendo a principal delas Fercides de Leros ou Fercides de Atenas, mitgrafo do sculo V

a.C. O tratado uma das referncias mais completas sobre o assunto, apesar de seu texto ser, em

parte, fragmentrio. James Frazer escreveu a Eptome a partir de dois manuscritos, procurando

preencher as lacunas do texto original.

3.2.4 Homero 30

26 COLLARD & CROPP (2008) 293 .27 ASCLEPADES 12F13.28 FRAZER (1995) 18-19 apud CABRAL (2013) 22.29 ALVES (2003) 10-17.30 HOMERO, Ilada 1.44-231.

17

Na Ilada, Diomedes e Glauco encontram-se em campo de batalha. Os dois tem uma longa

conversa em que Glauco tem oportunidade de anunciar sua linhagem e contar a sua histria dela. Sua

linhagem tem origem no deus olo, que gera Ssifo, que gera Glauco, que gera Belerofonte, o centro

das atenes nessa narrativa.

Glauco conta que Belerofonte agraciado pelos deuses com qualidades de beleza e virilidade

amvel, (Ilada 6.156). Segundo GRAZIOSI & HAUBOLD (2010: 121) a beleza na

Ilada uma qualidade direta e positiva, mas potencialmente destrutiva, como nos casos de Paris, de

Helena e, finalmente, dos enredos que constituem o objeto deste trabalho. Os estudiosos notam

ainda que o adjetivo que qualifica a virilidade de Belerofonte, "amvel", nunca predicado

de homens no contexto dos poemas homricos e deve ser responsvel por inspirar a paixo de Anteia.

Anteia, a esposa de Preto deseja Belerofonte intensamente e anseia por se deitar em segredo

com ele (Ilada 6.161). A frmula homrica usada nesse verso, , segundo

GRAZIOSI & HAUBOLD (2010: 123), apesar de no ter paralelos em Homero, usada em outros

autores no contexto do homem que comete adultrio e do deus que se une com mulheres mortais 31.

Isso sugere uma caracterizao masculina de Anteia, que reaparece outras vezes nessa passagem: no

nome, que parece sugerir "oposio" ou "contrariedade", , em vez da submisso feminina; em

seu nome alternativo Estenebeia, que significa em grego "fora de touro"; na indeciso de Preto, que

sugere sua submisso mulher 32; alm de tomar a iniciativa para deitar-se com o jovem estrangeiro,

a iniciativa para tirar vingana e a linguagem usada, para GRAZIOSI & HAUBOLD (2010: 123).

O jovem rapaz se mantm inabalvel e recusa as investidas romnticas de Anteia. Ele

prudente e cultiva pensamentos castos 33. A consorte de Preto ento procura o marido e inventa a

histria de que seu hspede teria tentado ter relaes sexuais fora com ela. O rei fica enfurecido,

mas evita o confronto direto, pois intimamente teme o rival. Resolve ento enviar o rapaz Lcia e

junto com ele uma tabuleta contendo "sinais funestos", instrues para que ele seja executado. O

jovem segue para a Lcia e l recebido pelo sogro de Preto. Por nove dias o heri entretido, mas

no dcimo o sogro de Preto v os sinais e manda Belerofonte para os enfrentamentos: a Quimera, os

Slimos, as Amazonas; e como ltimo recurso preparam uma emboscada para ele. Aps o fracasso de

tantos adversrios, o rei compreende que Belerofonte deve ser filho de algum deus e decide que

melhor mant-lo na Lcia. Oferece-lhe uma parte do seu reino e a mo de uma de suas filhas em

casamento.

3.2.5 Eurpides

Belerofonte parece retratar o momento anterior ao perodo de infelicidade do heri. H um

31 HESODO, Trabalhos & Dias 328-9; Odisseia 11.244.32 Ver nota 11. Ainda segundo GRAZIOSI & HAUBOLD (2010: 123), Preto s recebe o epteto que o descreve como rei, quando ele

est obedecendo s ordens de sua esposa. Esse uso irnico do epteto sublinharia sua submisso (Ilada 6.163).33 HOMERO, Ilada 6.162.

18

questionamento sobre a existncia dos deuses, seguido de reflexo sobre os atos vergonhosos

cometidos por eles 34. Belerofonte afirma que se deuses fazem semelhantes coisas, no so deuses 35.

Outros fragmentos da pea abordam dificuldades e abordam temas diversos como coragem, batalhas,

sofrimento, guerras, necessidade, oponentes, homens favorecidos injustamente, desprezo, injustia,

inveja, covardia, fraqueza, etc. Aparentemente, Belerofonte morre em palco e sua morte o redime

perante os deuses. Nesses fragmentos no h nenhuma meno importante Anteia e Preto.

A hiptese da Estenebeia foi preservada pelo estudioso bizantino Joo Logoteta, de XII EC,

que tambm conservou um longo fragmento do prlogo, um discurso de Belerofonte. Nesse drama,

Eurpides, assim como Hesodo, considera Preto governante de Tirinto. Belerofonte encontra-se no

palcio de Preto para ser purificado pelo assassinato de um parente cometido em Corinto. O detalhe

pode ser criao do dramaturgo. Nessa pea encontramos o nome Estenebeia. Ela tenta seduzir seu

hspede com o auxlio da ama, mas o jovem tenta escapar dela e da atribulada corte de Preto. Aqui o

pai de Estenebeia chama-se Iobates, mesmo nome encontrado em Hesodo.

No prlogo da pea, Belerofonte conta como Estenebeia tentou seduzi-lo com a ajuda da ama

e como ele tentou escapar das investidas da rainha e da atribulada corte de Tirinto. No encontramos

meno s mentiras de Estenebeia e s instrues de Preto a Iobates, presentes na verso homrica,

mas ficamos sabendo que Belerofonte derrotou a Quimera e encontra-se de retorno a Tirinto.

Quanto ao restante da pea, Estenebeia revela a Belerofonte que Preto tem novos planos de

vingana, porm o jovem consegue engan-la levando-a consigo para voar no Pgaso, e a empurra de

cima do animal. Ela cai no mar e se afoga. O cadver da rainha encontrado por pescadores, que

anunciam sua morte. Ele levado para Preto e Belerofonte reaparece em palco para justificar sua

punio contra ambos os governantes.

3.2.6 Asclepades

Acredita-se que o resumo da histria de Belerofonte encontrado nos esclios da Ilada seja

proveniente de Asclepades e que ele baseado nas verses trgicas da histria 36. Nesse resumo,

Belerofonte, originalmente Hipono, ganha a alcunha aps matar Blero, o governante de Corinto. Isso

causa seu exlio e partida para Argos. O rei Preto realiza a purificao e ele enfrenta os trabalhos j

mencionados. Posteriormente toma a filha de Iobates como esposa, Cassandra ou Passandra. Ento

Belerofonte tenta alcanar o Olimpo, mas Zeus envia um moscardo atacar Pgaso 37. Com a queda do

cavalo, Belerofonte fica aleijado e passa a vagar sem rumo como na verso encontrada em Homero.

Zeus entrega Pgaso a Aurora para ajud-la em seus deveres celestiais.

34 EURPIDES, Belerofonte fr. 286a.35 EURPIDES, Belerofonte fr. 286b.36 ASCLEPADES 12F13.37 Os esclios a PNDARO, Olmpica 13.130 e a LCORFON 17 tambm fazem meno a esse episdio.

19

3.2.7 Diodoro da Siclia 38

Belerofonte procura a ajuda de Preto, com quem tem laos de hospitalidade, por causa de um

assassinato cometido involuntariamente. Na casa do anfitrio, porm, a rainha apaixona-se por ele

em virtude de sua beleza. Uma vez que no consegue faz-lo subir ao seu leito, a mulher conta a

Preto que o jovem a tratou com violncia, um eufemismo para o estupro. Preto, hesitando matar seu

hspede, envia-o para a Lcia com uma carta para o rei Iobates, instruindo-o a matar Belerofonte o

mais depressa possvel. Sem disposio para dar fim ao visitante, o rei Iobates manda ele enfrentar a

Quimera.

3.2.8 Pseudo-Higino

Pseudo-Higino nos conta que Belerofonte filho de Netuno e Eurnome, filha de Niso 39. A

mulher de Preto, Estenebeia, tenta se aproximar de Belerofonte, mas como ele no demonstra

interesse, ela decide dizer ao esposo que foi violentada pelo hspede. Preto escreve uma carta ao

sogro, Iobates, que manda Belerofonte enfrentar a Quimera. Como auxlio de Pgaso, o monstro

derrotado, mas o heri cai nos campos Aleios e rompe o quadril. O rei, impressionado com o

visitante, decide oferecer a mo de sua filha em casamento. Estenebeia se suicida ao saber que sua

irm se casaria com ele 40.

Em sua Astronmica, Pseudo-Higino conta que Belerofonte encontra-se com Preto, filho de

Abas e rei dos Argivos. A rainha, aqui chamada de Antia, sorri com amor para o convidade,

implorando para que ele visite seu quarto, prometendo em troca o reino do marido. Ao perceber que

seu pedido no ser atendido e com medo de que o jovem conte tudo ao marido, Antia antecipa-se e

conta ao marido a mentira de que foi violentada pelo hspede. Preto, que sente afeio por

Belerofonte, reluta puni-lo com as prprias mos, mas o envia ao pai da rainha Antia, para que ele

defenda a castidade da filha e o envie para lutar contra a Quimera, que na poca assolava a Lcia.

Belerofonte consegue a vitria e depois tenta voar at a morada dos deuses, mas fica aterrorizado ao

olhar para baixo, cai e morre. Diz-se que o cavalo alado transformado por Zeus em uma

constelao. Ademais, Pseudo-Higino nos conta que outros autores dizem que Belerofonte vai embora

de Argos no por causa das acusaes de Antia, mas para no ouvir suas propostas desagradveis ou

para evitar ser afligido pelas splicas dela 41.

3.2.9 Pseudo-Apolodoro

Pseudo-Apolodoro conta que, ainda no ventre da mo, Preto e seu irmo j brigavam. Quando

adultos continuaram a se desentender at que Acrsio expulsa Preto de Argos. Da Preto segue para a

38 DIODORO DA SICLIA 6.9.39 PSEUDO-HIGINO, Fbulas 157.40 PSEUDO-HIGINO, Fbulas 57.41 PSEUDO-HIGINO, Astronmica 2.18.

20

corte de Iobates na Lcia. Preto se casa com a filha de Iobates. Pseudo-Apolodoro observa que o

nome dela Anteia em Homero, enquanto que os poetas trgicos a chamavam Estenebeia. Agora com

o apoio de um rei e de seu exrcito, Preto torna-se o governante de Corinto.

Segundo Pseudo-Apolodoro, Belerofonte vai corte de Preto para receber purificao pelo

assassinato involuntrio de seu irmo. Pseudo-Apolodoro registra trs nomes para o irmo de

Belerofonte: Delade, Pren ou Alcmenes. Anteia tenta se relacionar com ele sem sucesso. Como

vingana, ela conta ao marido que Belerofonte tentou seduzi-la. Preto acredita em sua esposa e

manda Belerofonte ao sogro Iobates com uma mensagem contendo instrues para que seja

liquidado. Montado no Pgaso ele luta contra a Quimera, que morta a flechadas. Em seguida

derrota os Slimos, as Amazonas, e os homens mais corajosos dos Lcios. Iobates, ento, revela para

Belerofonte a mensagem de Preto, mas pede a ele que permanea em seu reino, oferece-lhe a filha

Filnoe em casamento e torna-o seu sucessor.

3.2.10 Concluso

Belerofonte, assim como Peleu e Tenes, um dos poucos personagens que aps ser ultrajado

por uma mulher, consegue se reerguer e superar as adversidades. Ademais, o heri no tem vnculos

de parentesco com o casal principal, mas recebido como hspede, o que acontece em apenas uma

outra narrativa do corpus 42.

Em muitas verses e nas verses mais antigas encontramos meno relao estreita do heri

com as divindades. O motivo da estadia de Belerofonte na casa de Preto e Anteia (ou Estenebeia)

parece ser o exlio por um assassinato e a necessidade de purificao, o mesmo caso de Peleu, muito

embora as diferentes verses apresentem diferenas nos detalhes 43.

A mentira da esposa de Preto conhecida desde a verso homrica da histria e parece uma

acusao grave, de teor sexual. A variao de nomes da esposa tambm antiga: Anteia em Homero,

Estenebeia em Hesodo. Assim como Belerofonte se encaixa perfeitamente no padro do jovem heri,

Anteia parece ser a tpica antagonista. Se por um lado, as fontes estudadas costumam marcar muito

mais as qualidades atrativas do jovem, em especial o potencial destrutivo de sua beleza, ignorando

uma possvel lascvia de Anteia ou um carter vilanesco inerente; por outro lado, marca-se sempre a

dominao que a esposa adltera exerce sobre o marido hesitante. A mulher de Preto tenta persuadir

Belerofonte a deitar-se com ela.

Como o tpico heri do enredo, Belerofonte no aceita a proposta, porque justo e leal.

sua virtude que o afasta da mulher de Preto. Belerofonte no misgino como o Hiplito da pea

homnima de Eurpides. Ele to ricamente descrito, como um heri belo, viril e honrado, que

certamente chama a ateno pelos seus predicados. Auxiliado pelos deuses, fisicamente atraente e

42 Peleu, assim como Belerofonte, recebido como um hspede na casa de Acasto e Astidmia. Anteu tambm recebido na casade um casal que no faz parte de sua famlia, todavia, muito embora ele v a Mileto como refm, tratado como um hspede.Mirtilo um caso parte, pois no participa de um tringulo amoroso que envolva parentes, mas pessoas que so de uma classesocial superior sua.

43 interessante notar que o assassinato e a necessidade de exlio tambm esto por detrs do enredo do Hiplito de Eurpides,mas aqui no encontramos o jovem heri em exlio, mas o rei Teseu necessitando purificao.

21

de boa ndole, desperta rapidamente e com grande intensidade a paixo da rainha. Mas, com a

mesma velocidade com que se apaixona, ela resolve se vingar dele quando repelida e sua acusao

grave e custaria a vida dele se fosse um mortal qualquer.

Belerofonte enfrenta inimigos terrveis, mas derrota todos eles, assim como nos mitos de

Peleu e Fnix, o encontro com uma mulher maligna parece ser apenas mais um episdio na vida de

aventuras do heri, que rapidamente superam este entrave. As dificuladades que Belerofonte

enfrenta posteriormente no tem relao com a casa real de Tirinto, so consequncia dos seus atos

excessivos contra os deuses.

22

COMNIO

Comnio II / Gidica / Comnio I

3.3.1 Enredo

Comnio I teve duas esposas. Com a primeira delas, a ninfa Egeria, teve um filho, Comnio II.

Ao casar-se com sua segunda esposa, Gidica, que desenvolve por Comnio II uma paixo incestuosa e,

sem conseguir conquist-lo, ps fim prpria vida, enforcando-se. Antes, porm, deixou uma carta

para Comnio I em que fazia acusaes falsas contra Comnio II. Indignado, Comnio I invocou Netuno

e o deus colocou um touro no caminho do jovem, no momento em que dirigia uma biga. Os cavalos

de Comnio II se agitaram e fugiram, levando o jovem junto, arrastado pelo cho. Pseudo-Plutarco

cita como fonte para esse relato pseudo-histrico o terceiro livro da Histria da Itlia de Dositeu.

3.3.2 Fontes

Pseudo-Plutarco a forma usada para designar o autor de obras anteriormente atribudas

equivocadamente a Plutarco, mas que hoje acredita-se serem de outro autor, de identidade ainda

desconhecida. Aparentemente, existe apenas um relato sobre a histria de Comnio, perservado por

Pseudo-Plutarco na Parallela Graeca et Romanae ou Histrias Paralelas Gregas e Romanas 44.

3.3.3 Concluso

A histria de Comnio parece a reproduo do enredo do Hiplito de Eurpides. So numerosas

as coincidncias e perpassam toda a narrativa. No Hiplito de Eurpides, o personagem-ttulo filho

de uma figura mitolgica: uma amazona. Comnio II tambm era filho de uma entidade sobrenatural:

uma ninfa. Por algum motivo o pai de ambos casa por uma segunda vez com outras mulheres, que se

apaixonam por seus filhos, o que provoca o desequilbrio no seio da famlia.

Em decorrncia do insucesso de obter o amor do enteado, as madrastas se suicidam, mas

antes escrevem cartas maldizendo os jovens. Tanto Teseu quanto Comnio I acreditam que as esposas

foram ultrajadas por seus filhos e invocam o deus dos mares Poseidon/Netuno para que aplique uma

punio nos jovens rapazes. Nas duas histrias o deus envia um monstro-touro que assusta os cavalos

do heri que acaba morrendo por esta razo. Tanto Hiplito, quanto Comnio II representam heris

cuja integridade os afastou de suas madrastas incestuosas e que acabaram injustamente condenados

morte pelo equvoco de seus prprios pais.

44 BABBITT (1936).

23

ETOCLES & POLINICES

Etocles / Polinices / Astimedusa / dipo

3.4.1 Enredo

A histria de dipo bastante conhecida, especialmente em sua verso sofocleana, que acaba

por eclipsar as demais. Sua histria comea quando Laio, rei de Tebas e seu pai, toma conhecimento

de uma profecia que revelava que o seu filho seria o causador de sua morte. Sua esposa engravida

inesperadamente e, para evitar seu destino funesto, Laio entrega a criana a um pastor, que deveria

se livrar dela. O pastor, porm, no cumpre com sua promessa e entrega a criana a Polbio e sua

esposa, da casa real de Corinto. Mais tarde, o jovem toma conhecimento do orculo a seu respeito e,

tomado de horror, resolve nunca mais retornar quela que presumia ser a sua casa.

Em suas andanas Laio cruza seu caminho, junto com alguns criados, e ignorando tratar-se de

seu pai, dipo acaba matando todos depois de uma discusso, com a exceo de um nico servo. Ao

mesmo tempo a Esfinge causa muitas mortes em Tebas e dipo logra derrot-la ao resolver o enigma

proposto. Creonte, governante regente de Tebas, tinha prometido entregar o reino da cidade e a mo

de sua irm, rainha e viva de Laio, quele que conseguisse livrar os tebanos da criatura. Assim,

dipo torna-se o rei de tebas e marido de sua prpria me, sem que nenhum dos dois soubesse disso.

Uma peste ento passa a assolar a cidade. dipo descobre que a causa da peste a presena

do assassno de Laio entre os Tebanos. Com a morte de Polbio, seu pai adotivo, e de revelaes sobre

o local da morte de Laio, dipo passa a desconfiar da verdade do crime e convoca o sobrevivente do

ataque. Ele acaba descobrindo a verdade, mas antes que pudesse conversar com Jocasta, a rainha se

enforca e morre. dipo, desesperado por causa de sua sorte terrvel, arranca um dos broches da me

e fura os prprios olhos. Em algumas verses ele parte para o exlio, acompanhado de Antgona.

As verses que nos interessam podem ser encontradas em Frecides e notas de escoliastas.

Nessa verso dipo casa mais de uma vez e, em uma delas, sua nova esposa levanta calnias contra

os filhos do primeiro casamento, o que leva dipo a lanar uma maldio contra seus filhos e provoca

a morte deles.

3.4.2 Variantes

Em resumo, so as seguintes as variaes possveis para a histria de dipo: 1) Existem duas

possibilidades para o desfecho: ou dipo parte em exlio, como registram os mais recentes relatos e

os poemas trgicos; ou dipo permanece em Tebas, como indicam nossas fontes mais antigas 45. 2)

dipo pode ter se casado com Jocasta, Euriganeia e Astimedusa. Essa verso encontrada em

Fercides e nos comentrios do escoliasta em As Fencias de Eurpides. O escoliasta da Ilada tambm

45 HOMERO, Ilada 23.680 e HESODO, Trabalhos & Dias 154-63 contam que o funeral de dipo ocorre em Tebas.

24

apresenta esta mesma verso, pois ele registra que dipo se casa com Astimedusa, mas a diferena

deste relato est no fato de dipo abandonar a primeira esposa, Jocasta, para assim ingressar em um

novo relacionamento amoroso com Astimedusa. A partir daqui o enredo da histria segue o padro

dos enredos de tringulo amoroso: Astimedusa acusa (presume-se que falsamente) os dois filhos do

primeiro casamento, Etocles e Polinices, de violncia sexual e o marido enganado, dipo, promove

uma punio, aqui na forma de maldio, como no Hiplito de Eurpides. 3) dipo tem filhos com a

me, com outra mulher ou com ambas, segundo nossas fontes.

Com relao aos filhos de dipo, algumas fontes negam que eles tenham sido fruto da relao

incestuosa com Jocasta; outros afirmam que Jocasta me de dois ou quatro deles. Pausnias, que

se baseia em Homero, diz que no acredita que os filhos de dipo so de Jocasta. Ele sugere como

possvel me Euriganeia, citando o escritor do pico Edipodeia 46.Fercides registra que dipo casara

trs vezes. Com Jocasta, sua me, tem dois filhos: Frastor e Laonito. Aps a morte de Jocasta, dipo

casa-se com Euriganeia, com a qual gera quatro filhos. Ao tornar-se mais uma vez vuvo, dipo casa-

se com Astimedusa. A nota do escoliasta para As Fencias de Eurpides tambm nos conta que dipo se

casa com Euriganeia depois da morte de Jocasta 47. em um comentrio do escoliasta Ilada que

encontramos a histria inusitada, sem autoria, de que dipo abandona Jocasta para casar-se com

Astimedusa. Ela acusa os dois filhos do primeiro casamento de terem-na violentado sexualmente,

fazendo com que dipo os amaldioasse 48.

3.4.3 Fontes

Fercides de Leros reconhecia o casamento entre dipo e Astimedusa, a mulher que

supostamente seria a madrasta apaionada por um dos filhos dele ou ambos. A histria de dipo era

muito antiga e foi mencionada por Homero, tanto na Ilada como na Odisseia, sendo que nesta ltima

obra sua me se chamava Epicasta e no Jocasta. Hesodo, em Os Trabalhos e os Dias dizia que houve

uma disputa pelos bens de dipo aps sua morte. Outros autores tambm falavam sobre dipo:

Pndaro, squilo, Sfocles e Eurpides. Apenas uma fonte, porm, parecia abordar o dilema entre os

descendentes do rei de Tebas e a madrasta deles. Um esclio a Ilada oferecia esta verso, mas de

modo bastante breve, como se pode ver a seguir.

3.4.4 Fercides

Segundo o relato de Fercides 49, os filhos de dipo e Jocasta eram Frastor e Lanito. Depois

de um ano sem Jocasta, dipo se casou com Euriganeia, que lhe deu quatro filhos. Quando Euriganeia

morreu, dipo se casou com Astimedusa, filha de Estnelo.

46 PAUSNIAS 9.5.10.2.47 Esclio a As Fencias 1760 apud GANTZ (1993) 501.48 Esclio Ilada 4.376 apud GANTZ (1993) 502.49 FERCIDES 3F95.

25

3.4.5 Eurpides

N' As Fenncias, Jocasta conta a trajetria de dipo e de modo geral a pea se assemelha a Os

Sete contra Tebas e Antgona. Ela difere com relao a um desentendimento entre Laio e dipo. O rei

de Tebas tinha ordenado que dipo lhe cedesse passagem na estrada, mas este tinha se recusado, o

que tinha originado a briga entre os dois. Jocasta no se suicida nesta verso com a descoberta de

seu incesto, nem dipo foge para o exlio. Eles ficam em Tebas at o duelo fatal dos dois filhos,

Etocles e Polinices. Jocasta comete suicdio por cima de cadveres dos filhos e Antgona acompanha

dipo no exlio.

3.4.6 Concluso

Em praticamente todos os relatos sobre a famlia de dipo, o motivo da briga entre o

patriarca e seus descendentes poltico. Em apenas um relato 50, h o problema entre Astimedusa e

os enteados. O escoliasta da Ilada conta que dipo se separa de Jocasta para viver com a nova

mulher e que esta denuncia os jovens por supostamente terem abusado dela. dipo amaldioa os

filhos e eles morrem em decorrncia disso.

No se sabe de onde o escoliasta tirou esta verso, pois nos relatos mais conhecidos, Jocasta

no abandonada, mas se suicida aps saber que se casou com o prprio filho. Deixando de lado as

contradies e considerando que o relato do escoliasta pode ter vindo de alguma outra verso da

histria, o depoimento pode ser classificado como um exemplo de narrativa sobre tringulos

amorosos trgicos, uma vez que segue alguns pontos em comum com outras obras.

O desequilbrio no oikos causado pela chegada da nova companheira, que faz com que dipo

termine seu relacionamento anterior com a me de seus filhos. A relao entre a madrasta e os

rapazes hostil, mas no dito se ela se sente atrada por um deles ou no. Tambm no dito se o

crime realmente acontece ou se ela inventa a acusao para rebaix-los, mas os jovens so punidos

com a maldio e o desfecho trgico, pois acabam morrendo um pelas mos do outro.

50 Esclio Ilada 4.376 apud GANTZ (1993) 502.

26

EUNOSTO

Eunosto / Ocna / quemo / Leonte / Bcolo

3.5.1 Enredo

Eunosto de Tnagra, na Becia, filho de Elieu. Ele recebe seu nome da ninfa pela qual foi

criado, Eunosta. Como belo, justo, casto e austero, sua sobrinha Ocna acaba se apaixonando, mas

sua tentativa de seduzir o jovem fracassada. Eunosto procura os irmos de Ocna, quemo, Leonte e

Bcolo para prestar-lhes queixa, mas Ocna antecipa-se e conta aos irmos a mentira de que Eunosto

a teria estuprado. Dessa forma, atravs de uma falsa acusao, Ocna enfurece os seus irmos, que

preparam uma emboscada e assassinam Eunosto.

Mais tarde, Elieu consegue capturar os assassinos e Ocna, cheia de remorso, conta a verdade.

Elieu ento procura pelo pai dos jovens, Colono, para relatar toda a histria. Colono condena os seus

prprios filhos, que so exilados. Ocna morre ao se atirar de um penhasco.

Um bosque e santurio so dedicados a Eunosto em que vedada a entrada de mulheres. Os

habitantes de Tnagra costumavam fazer buscas minuciosas aps terremotos, secas e outros eventos

desse tipo, muito frequentes na regio, para verificar se nenhuma mulher no havia sorrateiramente

penetrado nos logais proibidos.

3.5.2 Fontes

Plutarco, em sua Moralia, na resposta de nmero quarenta nas suas Questes Gregas, afirma

que se baseou no relato de Mirtis para contar a histria de Eunosto. Mirtis teria sido uma poetisa da

pequena cidade de Antdon, na Becia, mencionada por Homero no Catlogo das Naus 51. Segundo o

Suda, Corina e Pndaro teriam sido alunos dela, mas essa informao certamente no passa muito de

especulao biogrfica com vistas a organizar uma determinada cronologia entre poetas. Ela teria

vivido por volta de VI AEC e seria uma mulher habilidosa e dotada de voz doce.

3.5.3 Concluso

A histria tem alguns atenuantes apesar da mentira e do desfecho trgico. No enredo deste

mito no h tringulo amoroso entre os personagens: Ocna se apaixona por um parente, mas nem

ela, nem Eunosto so casados. De modo que o enredo dessa histria no envolve o adultrio, embora

sua acusao seja mais chocante, por se tratar de algum de sua prpria famlia. Aqui so os irmos

de Ocna que vo tentar defender sua honra, ao invs do marido ludibriado.

No podemos afirmar que a desestabilizao do oikos causada pela chegada de um hspede

51 Homero, Ilada 2.508.

27

ou de um enteado, mas esse no parece ser o caso. Embora Eunosto tenha sido criado por uma ninfa,

o que pode ter acontecido em um local isolado (como, Paris, por exemplo), somos informados apenas

da paixo que a mulher sente por algum com quem tem, ao que parece, um certo convvio. Tambm

no podemos afirmar que Eunosto passa a viver no mesmo recinto que a famlia da mulher, de forma

que a reunio entre os personagens no algo to inevitvel como nos outros enredos semelhantes,

muito embora a famlia seja no fim destruda da mesma forma.

possvel assumir que o assdio de Ocna se deu pessoalmente, j que nenhum outro veculo

de comunicao ou intermedirios so mencionados e como costuma ser em geral o caso desse tipo

de enredo. No sabemos se o assdio um evento nico ou se acontece repetidas vezes. A rejeio

de Eunosto tem como motivo sua prpria personalidade, avesso investida de Ocna, ele pretende

procurar os irmo da mulher para censurar o seu comportamento. O heri descrito como virtuoso e

grave.

a possibilidade de censura pblica, como em outros enredos, que pode ter motivado Ocna a

levantar falsos testemunhos contra o jovem, uma vez que no ficamos sabendo se ela age puramente

com vingana ou se tinha medo do que os irmos poderiam pensar ou para se proteger de humilhao

pblica caso sua tentativa de seduo fosse revelada. Diferente dos outros mitos, em que a mulher

espera simplesmente se vingar do desprezo do amado, na histria de Eunosto e Ocna no ficamos

sabendo o motivo que a leva a mentir, apesar de ser possvel que ela quisesse apenas prejudic-lo.

A acusao de Ocna sria e a emboscada fatal para Eunosto. Ele porm no sofre sozinho,

a famlia da mulher desfeita. Colono toma conhecimento da vilania de seus filhos e condena-os ele

mesmo ao exlio. A perda de Eunosto, o sofrimento de Colono e o exlio de quemo, Leonte e Bcolo

ocasionam o fim de Ocna. Ela acaba confessando seu crime e depois se suicida, tomada de desgosto.

Em muitos enredos a mulher retratada agindo com frieza e de forma premeditada, mas no

caso de Ocna talvez o remorso e sua confisso revelem um verdadeiro arrependimento pela desgraa

causada a todos e a si mesma.

28

FNIX

Fnix / Ftia ou Cltia / Amintor

3.6.1 Enredo

A verso mais antiga do enredo a seguinte: aparentemente, Fnix vive em harmonia com

sua famlia at que seu pai, Amntor, arranja concubina. Ultrajada pela traio, a me de Fnix o

procura para pedir-lhe ajuda. O comportamento do marido a desagrada e ela espera obter retaliao

atravs do filho, que deve seduzir a amante do pai. Dessa forma, esse parece ser o seu plano, a

concubina deixaria de gostar de Amntor e a relao entre ambos ficaria arruinada. Fnix, ento,

concorda com o plano de sua me e procede da forma combinada. Quando o pai toma conhecimento

dos seus feitos, lana sobre ele uma maldio que o torna estril. Fnix deseja agredir o prprio pai,

mas refreia o impulso e decide deixar a casa onde mora. Seus parentes o vigiam por um tempo,

tentando impedi-lo, mas ele finalmente consegue escapar e foge para Ftia.

3.6.2 Variantes

A histria de Fnix parece ter sofrido adaptaes ao longo do tempo. Na verso de Homero,

nossa verso mais antiga, Fnix responsvel por seduzir a amante do pai, ainda que estivesse

agindo a pedido da me, e por esta razo punido pelas Ernias, que atendem os apelos de Amntor e

o deixam estril 52. A verso homrica tem continuidade em Lcofron, ele descreve Fnix como sendo

o homem mais odiado pelo pai, aps seduzir Cltia. O episdio teria motivado Amntor a deixar o filho

cego 53. MAIR (1921: 528) observa em nota ao poema que Amintor tem cimes da concubina e isso o

impulsiona a arrancar os olhos de seu filho.

Eurpides, por outro lado, em seu Fnix, apresenta uma verso mais prxima dos enredos

estudados nesse trabalho 54: Em sua verso, Fnix no aceita participar do plano sugerido por sua

me, mas a concubina, por algum motivo no revelado, acaba mentindo e o acusa de estupro. A

intriga coloca Amntor contra o filho e faz com que ele o deixe cego. Na pea Fnix uma pessoa

honesta que injustiada e sofre as consequncias por um crime que no cometeu. Como a pea no

se manteve intacta, no possvel analisar outros detalhes, mas como o autor j abordara

semelhante temtica, talvez a concubina levantasse o falso relato contra o jovem aps ter sido

desprezada por ele.

Essa verso euripideana pode ser encontrada tambm em Pseudo-Apolodoro 55, que conta que

Fnix acusado injustamente por Ftia, amante de seu pai, de t-la seduzido. Amintor o deixa cego,

mas Quron restitui sua viso quando Peleu o leva at ele. Depois de voltar a enxergar, Fnix recebe

52 HOMERO, Ilada 9.434-495.53 LCOFRON, Alexandra 417-423; nessa verso que encontramos o nome Cltia.54 COLLARD & CROPP (2009) 405-421.55 PSEUDO-APOLODORO Biblioteca 3.13.8; nessa verso que encontramos o nome Ftia.

29

de Peleu o governo dos Dlopes.

A rigor, a verso homrica do enredo no pode ser enquadrada dentro do tema da Esposa de

Potifar por no apresentar as caractersticas elementares da construo narrativa: Assdio, Rejeio

e Calnia. Pelo fato do enredo encontrado na pea de Eurpides apresentar semelhante estrutura,

HANSEN (2002: 343) acredita que a histria de Fnix aos poucos foi assimilada pelo tema da Esposa

de Potifar. Contudo, impossvel saber se essas modificaes so de fato introduzidas por Eurpides

como COLLARD & CROPP (2009: 415) observam ou se o dramaturgo ateniense apenas recorre a uma

verso original mais antiga que o poeta homrico tambm teria utilizado e modificado 56.

3.6.3 Fontes

A histria de Fnix era bem antiga e j era registrada desde Homero, atravs da Ilada.

Lcofron tambm falava sobre o heri em seu poema Alexandra. Sfocles escreveu ao menos uma

pea sobre ele, assim como Eurpides. A Fnix de Eurpides anterior a Os Acarnianos, de

Aristfanes, escrita em 425 AEC. Embora o critrio mtrico no possa fornecer uma data mais precisa

para a primeira pea, sabe-se que ela faz parte do perodo mais antigo das produes de Eurpides,

em que o autor usava frequentemente a temtica das mulheres desonestas, similar ao modelo da

Esposa de Potifar, popular nas tragdias desde Sfocles, no sculo V AEC at Astidamas II, no sculo IV

AEC. Outros autores mais recentes tambm mencionam as aventuras de Fnix, como Higino, na sua

fbula de nmero 173 e Pseudo-Apolodoro, em sua Biblioteca.

3.6.4 Homero

Fnix s aparece na Ilada para tentar convencer Aquiles a voltar para a batalha, relembrando

os laos de amizade que os dois tinham desde muito cedo. Demonstra afeio paternal pelo heri e

diz que no poderia deix-lo, ainda que algum deus o fizesse jovem novamente. Fnix acompanha

Aquiles em Tria a mando de Peleu, em sinal de gratido por receb-lo quando deixa sua terra natal,

aps se desentender com Amntor. A desavena entre pai e filho ocorre por causa de uma amante.

A amante de Amntor o afasta de sua esposa, por isso a me de Fnix, abraada aos joelhos do

filho, pede que ele conquiste a bela concubina para que esta passe a no gostar de Amntor. O plano

executado e tudo ocorre como esperado, exceto pela maldio que Amintor lana contra Fnix: ele

invoca as Ernias, desejando que seu filho nunca tenha descendentes. Os deuses realizam seu desejo

e Fnix se enfurece. Pensa em matar o pai, mas um deus aplaca sua ira, pois tal crime repudiado

pela sociedade. Parentes tentam mant-lo no palcio, mas Fnix no deseja permanecer, por ainda

sentir raiva do pai. Por nove dias vigiado, mas no dcimo consegue fugir para a Ftia. Peleu o recebe

56 HANSEN (2009: 339) aponta uma tradio que apresenta enredo similar: um homem inadvertidamente cortara rvores do bosquesagrado do heri Angiro. Enfurecido, Angiro faz com que a concubina do homem se apaixone por seu filho. O enredo prosseguetipicamente: o filho rejeita a concubina, que levanta falsas acusaes contra o jovem. A sequncia final da histria terrvel: opai mutila e encarcera seu prprio filho e, em seguida, enforca-se. A concubina se joga dentro de um poo. A histria foipreservada por APOSTLIO 9.29 (Corpus Paroemiographorum Graecum 2:479).

30

gentilmente, cede-lhe o comando dos Dlopes e deixa Aquiles sob seus cuidados. Este se torna para

ele o filho que no pde ter.

3.6.5 Lcofron

Fnix, tutor de Aquiles, morre idoso, partindo de Tria a caminho de casa. No poema

Alexandra, atribudo a Lcofron, consta que ele o homem mais odiado pelo pai, Amintor. Este,

tomado por um grande cime de Cltia e do filho, que tinha adentrado o quarto da moa, acaba por

furar seus os olhos. MAIR (1921: 528) explica em nota que Amintor arrancou os olhos do filho.

3.6.6 Sfocles

Sfocles pode ter escrito uma pea chamada Os Dlopes, que teria como tema esta tribo da

Tesslia que foi regida por Fnix, por intermdio de Peleu. A pea, no entanto, pode ter sido idntica

a Fnix, que provavelmente precedeu a pea de Eurpides, mas seu contedo desconhecido 57.

3.6.7 Eurpides

Em Fnix, o personagem principal surge como um homem inocente que caluniado, aps

supostamente ter se negado a desempenhar o papel traado por sua me em um plano de vingana. A

concubina amante de seu pai o teria acusado falsamente de estupro. No se sabe se Eurpides foi o

autor dessa verso, mas ela se tornou to dominante nas releituras mais recentes que o texto de

Homero foi alterado para acomod-la 58. Aparentemente, Eurpides foi responsvel pela insero da

cegueira de Fnix histria. O heri segue para o exlio, mas no dito se parte voluntariamente ou

no.

Aristodemo de Nisa, um estudioso de retrica e literatura elaborou uma autodefesa para

Fnix, provavelmente em uma performance retrica, e foi absolvido pela audincia e honrado por

mostrar Fnix sendo justo. Antes dele Sosfanes, possivelmente um tragedigrafo de Siracusa, tinha

inventado uma leitura semelhante e esses detalhes foram atestados por Harpocration. Muitos dos

fragmentos de Fnix se referem velhice. Amntor diz que crianas so penosas para um homem

velho e comenta sobre algum que se casa quando no est mais no apogeu de sua vida. Dessa forma,

uma esposa manda no noivo envelhecido 59. Depois, o personagem volta ao assunto, dizendo que a

velhice que um mal para aqueles que a tm 60. No framento 807 encontramos a afirmao de que

um marido velho amargo para uma esposa jovem. O fragmento 808 fala de uma mulher que o mal

mais selvagem de todos.