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Cidades visíveis, sujeitos invisíveis:
pescadores em Parnaíba nas décadas de 1970 e 1980
PEDRO VAGNER SILVA OLIVEIRA*
Introdução
As cidades estão para além de um emaranhado de ruas, construções e logradouros. Elas
configuram-se enquanto campos de lutas e conflitos sociais, espaços de projetos políticos e de
interesses múltiplos. Partindo desse mosaico de vários “lugares” dentro de um, que são as
cidades, esta comunicação tem como problemática analisar as relações dos pescadores da praia
de Pedra do Sal com a cidade de Parnaíba, no Piauí.
Esse estudo histórico busca reconstruir uma Parnaíba que a historiografia local pouco
tem explorado. Nos anos 1970 e 1980, ocorriam debates na imprensa sobre o desenvolvimento
que o turismo poderia trazer esta cidade. Buscamos, dessa maneira, compreender os modos
como Parnaíba era sentida e vivida pelos habitantes da praia e do continente.
Para a tessitura desse trabalho, foram utilizadas algumas edições dos jornais que
circulavam na cidade no período em questão. A partir da imprensa, podemos observar os
discursos, ideias e relações que a “cidade” tinha com a praia. Empregamos também a
metodologia da História Oral, usando os gêneros de história oral de vida e história oral temática.
A História Oral foi uma importante ferramenta para captarmos as experiências que os
pescadores tinham com a cidade, bem como seu cotidiano. Se por meio das fontes impressas
podemos observar as falas e a forma como a cidade se relacionava com a praia, por meio das
narrativas de pescadores entrevistados, fomos capazes de entender o movimento contrário, isto
é, da praia para a cidade.
Ao invés de confrontarmos as duas fontes - orais e impressas -, achamos mais interessante
analisá-las em conjunto, seguindo a recomendação de Alessandro Portelli, quando afirma que
“as fontes escritas e orais não são mutuamente excludentes” (PORTELLI, 1997: 26). Nossa
proposta foi usar a história oral não enquanto maneira de preencher lacunas, mas como uma
fonte que ajudaria a entender melhor as relações humanas na cidade de Parnaíba.
* EFLCH/UNIFESP. Mestrando em História, apoio CAPES/DS
2
1. Parnaíba, “Princesa do Igaraçu”
Situada no norte do estado do Piauí, a cerca de 350 quilômetros da capital,
Teresina, Parnaíba, na década de 1970, “apresentava-se como uma das principais cidades
do Estado” (MENDES, 2015: 244). Contudo, uma única cidade pode apresentar várias
outras dentro de si mesma, gerando contrastes por meio de marcas visíveis. Segundo
Sandra Jatahy Pesavento:
É pela materialidade das formas urbanas que encontramos sua representação
icônica preferencial, seja pela verticalidade das edificações, seja pelo perfil ou
silhueta do espaço construído, seja ainda pela malha de artérias e vias a
entrecruzar-se em uma planta ou mapa. Pela materialidade visível,
reconhecemos, imediatamente, estar em presença do fenômeno urbano,
visualizado de forma bem distinta da realidade rural (PESAVENTO, 2007:
13).
Se tomarmos a concepção de Pesavento, na qual a arquitetura e outras
materialidades “marcam”, ou melhor, definem o urbano, no caso de Parnaíba, o centro da
cidade e seu entorno é que seria, de fato, a sua parte urbana.
Nas fontes hemerográficas que temos sobre as décadas de 1970 e 1980,
observamos o louvor a essa Parnaíba urbana.
Os habitantes de Parnaíba estão concentrados na sua grande maioria na zona
urbana do município (uma realidade que vem de longos anos) devido à sua
tradição como centro comercial. Este aspecto, alias, a distingue no Piauí onde
até 1980 cerca de 52,09% de seu contingente populacional residia na zona rural
(Inovação. 1985, p.4).
O artigo extraído do Jornal Inovação mostra como a imprensa retratava Parnaíba,
cidade que se distinguia das demais do estado por ser considerada urbana em certa
medida. Contudo, observa-se o limite da urbes. Parnaíba nos anos 1970 e 1980 não era
totalmente urbana. Em 1980, cerca de 22,37% da população parnaibana morava na zona
rural2.
Ainda são poucos os estudos na área de história sobre Parnaíba que se preocupam
com outras áreas dessa cidade que não a denominada parte urbana. Dessa maneira, os
habitantes de lugares mais afastados têm sido – ainda que timidamente - contemplados
pela historiografia local3, deixando a condição de sujeitos “invisíveis” pela escrita da
2Batista Teles. Parnaíba: crescimento populacional In: Jornal Inovação. Março-Abril Maio de 1985, p.4. 3Aos poucos, estudantes de História do Campus de Parnaíba da Universidade Estadual do Piauí, têm
mostrado preocupação em investigar essa outra Parnaíba em algumas monografias. São eles: BRAGA,
Daniel Souza. Catadores de Caranguejo do delta: história e memória (1960-2010); GOMES, Luana
Bittencourt. Ilha de brancas dunas: história e memória do bairro Tatus em Ilha Grande do Piauí (1975-
2015); OLIVEIRA, Pedro Vagner Silva. Correndo na vela: experiências e modos de vida de trabalhadores
3
história de Parnaíba. Tendo isso em vista, nosso intento é iluminar um pouco esses
sujeitos e lugares pouco analisados, inserindo-os na historiografia parnaibana.
Um dos problemas que enfrentamos diz respeito a como proceder para delinear
Parnaíba. A geografia oficial é uma classificação bastante proveitosa, contudo, talvez
apresente problemas. Desse modo, devido a especificidade de cada lugar e dos seus
moradores, preferimos4 esmiuçar Parnaíba da seguinte maneira: centro, subúrbio e
povoados insulares5. Seriam esses os espaços, ou melhor, as muitas cidades que
comporiam Parnaíba.
O centro da cidade e suas imediações são sempre descritos na historiografia local
pelos seus espaços de sociabilidade, pelos casarios de diversos períodos, localizados ao
longo da atual avenida Presidente Vargas e pelo seu entorno, pela Praça da Graça e as
duas igrejas, enfim, por logradouros, ruas e casas que contam “a história” de Parnaíba.
Os subúrbios seriam os bairros mais afastados do centro, mas que se localizam no
continente. Apesar de não usarmos o termo zona rural, ela estaria englobada em nossa
classificação como subúrbio, pois estamos levando em conta o espaço físico, não só a
paisagem e sua constituição.
Subúrbio indica uma área pouco assistida pelo poder governamental, o que não
parece ser tão diferente para zona rural parnaibana ou mesmo dos povoados insulares.
Contudo, devido a especificidade desse último, preferimos adotar outra nomenclatura.
Os povoados insulares localizavam-se na outra margem do Igaraçu, no acidente
geográfico chamado Ilha Grande de Santa Isabel. Eram alguns desses povoados insulares:
Morros da Mariana, Canto do Igarapé, Cal, Tatus e Pedra do Sal. Lugares pobres e que
funcionavam como provedores6 de alimentos para Parnaíba. Dentre estes povoados,
do Delta (1975-2014) e SOUZA, Matheus Oliveira. A URBE, O RIO E A ILHA: Parnaíba através de suas
relações com os trabalhadores ribeirinhos do Delta do Rio Parnaíba (1975-2015).
4Classificação feita a partir do “Livro do Centenário da Parnaíba”, em que se afirma que o censo de 1940
acusou que a população parnaibana estaria distribuída nos quadros urbano, suburbano e rural, conf.
CORREIA, Benedito Jonas; LIMA, Benedito dos Santos (orgs.). O livro do centenário da Parnaíba: 1844-
dezembro - 1944. Parnaíba: Gráfico Americana, 1945. Ainda que essa fonte não contemple nosso recorte
temporal, achamos oportuno adaptar essa classificação. 5 Povoado insular é uma classificação nossa, dada para os núcleos populacionais que se localizavam na Ilha
Grande de Santa Isabel, território pertencente à Parnaíba. Ainda que a imprensa da época considere esses
povoados como pertencentes à zona rural, achamos melhor criar uma nomenclatura distinta, pois
acreditamos que as experiências dos moradores, bem como a paisagem do lugar são peculiares devido ao
local que habitam e também pela complexidade do contexto insular, bem como as próprias relações com
Parnaíba. 6Nos jornais que circulavam no final dos anos 1970, encontramos algumas matérias em que os povoados
insulares eram denominados de “celeiros”. Para além, há um livro de crônicas de autoria da professora
parnaibana Maria da Penha Fonte e Silva, publicado no ano de 1987, que elogia a Ponte Simplício Dias,
4
encontra-se nosso lócus de pesquisa. Os elos em comum desse lugar com os demais
povoados são vários, desde sua função econômica até as necessidades mais básicas da
população e a riqueza da paisagem natural. Porém, a característica mais marcante de
Pedra do Sal, inexistente nos demais povoados insulares, era e ainda é o mar.
Continuemos nossa visitação pela “Princesa do Igaraçu”. Nos anos 1970, Parnaíba
ganhou o título de 3º Pólo Turístico Nacional. Segundo Mendes, os jornalistas que faziam
parte do Jornal Inovação afirmavam que “os administradores da cidade deveriam intervir
no espaço público a fim de torná-la mais atrativo” (MENDES: 2015, 263). Interessaria
criar infraestrutura para acomodar os visitantes, bem como propiciar o deslocamento
deles para os pontos turísticos.
Anos antes do Inovação circular, haviam sido construídas a ponte Simplício Dias
e a estrada ligando Parnaíba aos Morros da Mariana (sede da Ilha Grande de Santa Izabel)
e à Pedra do Sal. Ambos os empreendimentos tinham como intenção integrar as partes
continental e insular da cidade. Com a ponte e a estrada, se tornaria mais fácil o trânsito
diário de veículos e pessoas para os dois lados do Igaraçu.
A valorização da paisagem não era simplesmente apego à natureza, mas devido às
concepções dadas à paisagem natural nesse período. Estava em pauta nessa época o
incentivo ao turismo no país. Segundo Maria Majaci Moura Silvia, “para atuar no âmbito
regional, o turismo foi inserido no II Plano Nacional de Desenvolvimento – PND, já na
década de 1970, como uma nova “indústria” a ser fomentada” (SILVIA, 2013: 146).
Dado o contexto de fomento ao turismo nesse período e de sua imagem enquanto
gerador de capital, é provável que a ponte e a estrada possuíssem como foco, favorecer
não só o percurso diário dos trabalhadores insulares para o centro da cidade, mas
possibilitar também o fluxo de turistas para a Ilha. Provavelmente, interessaria mais à
prefeitura e ao governo estadual proporcionar condições para os visitantes de Parnaíba
irem à Ilha desfrutar dos seus pontos turísticos, dentre eles a praia de Pedra do Sal.
Dessa maneira, a valorização da paisagem parnaibana decorria do interesse
econômico pelo turismo. O mar surgia como atrativo turístico que, em tese, traria
benefícios sociais e econômicos para a cidade, ou melhor, para parte dela. Mas é intrigante
que, ao se forjar essa imagem, os pescadores que moravam em Pedra do Sal não eram
“ligando estreitamente, num braço fraternal e perene amplexo Parnaíba à Ilha Grande Santa Izabel, o celeiro
da região a Rainha do delta Parnaibano”. SILVA, Maria da Penha Fonte e. Parnaíba, Minha Terra:
crônicas. Parnaíba. 1987, p.26
5
sequer mencionados, sendo dessa maneira, sujeitos “invisíveis” da cidade – ainda que
protagonizassem uma atividade econômica relevante.
Se nos jornais, os pescadores pouco “apareciam” na cidade, na praia, seu trabalho e
presença eram também invisibilizados. Pode-se supor que as pessoas que escreviam para
o jornal tinham por interesse “vender” aos seus leitores a praia como lugar de descanso e
lazer. O pescador, pela simplicidade de suas moradias, poderia comprometer a imagem
que a imprensa estava construindo da praia. Veremos agora como eram as vivências desse
grupo de trabalhadores de uma Parnaíba pouco estudada.
2. Pedra do Sal e Parnaíba: pescadores, visitantes e (a) circulação de pessoas
Em Parnaíba, havia pescadores marítimos, sujeitos “invisíveis”, mas que se faziam
presentes. “Invisíveis”, pois, pela imprensa do período em questão, não eram notados seus
problemas sociais, ou pouco eram levados em consideração quanto as suas condições de
vida e trabalho. Contudo, esses personagens históricos existiam, uma vez que os frutos
do seu suor, isto é, da sua força de trabalho, fazem parte da economia local.
As cidades podem ser percebidas também pelos silenciamentos das fontes e dos
sujeitos de sua história. Sabe-se que existiam indivíduos que moravam na parte praiana
de Parnaíba. Devido a esse silêncio, achamos oportuno usar a história oral como
metodologia para captar as experiências dos moradores de Pedra do Sal e analisar as
relações destes com Parnaíba. Observamos os movimentos destes trabalhadores nas duas
partes da cidade, isto é, no centro e no povoado insular chamado de Pedra do Sal.
Pedra do Sal era até as décadas de 1970 e 1980, um povoado de pescadores. Segundo
as narrativas dos colaboradores7, possuía baixa densidade demográfica, sendo composto
por algumas poucas famílias. As casas dos pescadores eram simples:
As casas da Pedra do Sal todas eram de palha. Palha em cima, e arrudiada,
coberta de palha também. As casas da gente sempre foram assim. Quando eu
me entendi eram assim. Poucas casas eram tapadas de barro nas paredes
(Pescada, 2015).
7Colaborador é um termo sugerido por José Carlos Sebe Bom Meihy (2005) para diferenciar o entrevistado
do depoente ou da característica de informante. Segundo o autor é preferível usar colaborador, pois, “afinal
o trabalho da entrevista é algo que demanda dos dois lados pessoais e humanos” (MEIHY: 2005, 124).
Desse modo, o narrador não seria apenas um mero informante e o “entrevistador” o informado. A narrativa
seria construída por ambos os lados.
6
Vivendo em condições precárias – como se pode perceber pela descrição de suas
moradias -, os habitantes de Pedra do Sal tinham tradicionalmente a pesca marítima como
uma das principais atividades. Trabalho, ao que parece, efetivamente masculino.
A pescaria no mar era uma atividade árdua, praticada individualmente ou em
pequenos grupos. Do mar, os pescadores traziam “o peixe que é [era] servido nos poucos
bares e restaurantes” (A Libertação. 14/05/1983, p.4). Para além da pesca marítima, havia
outras atividades, tais como: a pescaria em lagoas que se formavam no inverno e a
extração de frutos silvestres. Nessas atividades havia maior participação feminina,
principalmente a coleta de frutas.
Há que se entender que uma mesma cidade é formada por realidades diversas, cada
espaço de uma mesma cidade, possui dinâmicas diferentes. Nossa intenção não é enfatizar
alguma dicotomia entre os povoados insulares, nesse caso Pedra do Sal e o centro de
Parnaíba, mas pensar esses dois lugares como espaços de uma mesma cidade, que é
vivenciada de formas diversas.
Os peixes do mar de Pedra do Sal, além de serem vendidos nos bares praianos, assim
como os pescados provenientes de lagoas e os frutos colhidos, tinham como destino
Parnaíba, mais precisamente o mercado Central, no centro da cidade, e para o de Fátima,
localizado no bairro de mesmo nome.
De acordo com as narrativas dos colaboradores, havia circulação, tanto de moradores
da praia para a cidade como vice-versa. Nos períodos das férias escolares, antes mesmo
do turismo aparecer como política desenvolvimentista, era costume que algumas famílias
que moravam na cidade fossem desfrutar da temporada de férias em Pedra do Sal.
Nesse tempo, vinham o pessoal passar para cá no mês de julho, que era as
férias. Eles vinham passar o mês de julho. Eles vinham comprar o peixe nosso
para eles. Tinha o seu Raimundo Pinto, o senhor José Araujo, os Silvas, e
muitos outros. Eles pagavam depois, era aquele negócio, e era assim. Eles
ficavam ali na frente. Ali na frente era uma ruazinha de casa que era só para
alugar para eles. Era bom quando vinham para cá (Caraca, 2015).
A fala de Antônio Caraca indica circulação. Segundo a narrativa, não era comum
apenas os moradores de Pedra do Sal irem para o centro da cidade. O inverso também
acontecia. Contudo, os movimentos desses grupos de pessoas possuíam singularidades.
Enquanto o pescador ia para a “cidade” vender o peixe, alguns dos citadinos iam à praia
desfrutar o mar e a calmaria da vila de pescadores.
A história oral não é a verdade em si, cristalizada. Mas uma versão. Não estamos
contestando a memória do velho pescador, tampouco é nosso intento desconsiderar sua
7
narrativa. Contudo as narrativas na história oral são fontes e como tais devem ser
analisadas.
Portelli observa que a história oral tem sua especificidade por causa das
subjetividades contidas nas narrativas: “a primeira coisa que torna a história oral
diferente, portanto, é aquela que nos conta menos sobre eventos que sobre significados”
(PORTELLI: 1997, 31). Desse modo é importante analisar com mais atenção esse trecho
da narrativa. O narrador contou que existiam casas que eram alugadas para esses
visitantes. Caraca afirmou ainda, que era “bom” quando essas pessoas iam para lá.
A vinda de grupos que moravam no centro de Parnaíba e mesmo em outras cidades
do Piauí e/ou de fora, trazia algumas vantagens: os pescadores teriam lucro maior e certa
comodidade, pois poderiam vender seus produtos aos veranistas que estavam instalados
na praia. Haveria também emprego para as mulheres. Estas, nos meses de julho, lavavam
as roupas dos visitantes. Assim, julho, antes mesmo do “surto” do turismo como política
de desenvolvimento, era um mês que trazia alterações no cotidiano do pescador e dos
demais moradores da praia.
Se os moradores - ou parte deles - do continente vinham para a área praiana no
mês de julho, ou aos finais de semana, os pescadores iam para o centro quase todos os
dias vender peixes. Enquanto a praia era espaço de lazer para o visitante, para o pescador,
se configurava como local de trabalho. Parnaíba, por sua vez, era o lugar em que se vendia
peixe ou em que se buscava tratamento ante alguma doença que acometia algum morador
da praia.
Pedra do Sal, antes dos anos 1980, era carente de educação formal. Antônio
Pescada rememora: “eu comecei a pescar com oito anos de idade. Muito criança. Muito
jovem. Não estudei! Vim aprender a ler com a idade de 48 anos” (PESCADA, 2015).
Nascido em 1953, Pescada, quando criança, possivelmente não frequentou a escola pela
situação de seu pai, pescador cuja visão estava comprometida devido uma doença.
O velho pescador explica: “eu não estudei. Meu pai, só me ensinou a trabalhar na
pesca e com isso eu trabalhando sempre para sustentar a família” (PESCADA, 2015). Se
concordarmos com o que Ecléa Bosi entende sobre história oral - “a fonte oral sugere
mais que afirma, caminha em curvas e desvios obrigando a uma interpretação sutil e
rigorosa” (BOSI, 2003: 20) -, poderemos compreender melhor os significados desse
trecho da narrativa do velho pescador.
A educação formal em uma vila pesqueira, longe do centro da cidade, de certa
maneira era um saber que teria pouco significado na subsistência desse grupo. Nesse
8
contexto, não parece absurdo dizer que em Pedra do Sal, ter ciência sobre o regime das
marés, os hábitos dos diversos tipos de pescados e os lugares mais piscosos, teriam maior
significado na vida desses trabalhadores que os saberes escolares transmitidos pela
educação formal.
Mesmo que no centro houvesse escola e outros serviços públicos, como hospitais,
devido a inexistência de estrada entre o povoado e a “cidade”, bem como a distância, era
difícil o deslocamento dos praianos para o centro de Parnaíba.
Para além do problema da educação formal, havia ainda a inexistência do
atendimento de saúde pública e a falta de integração dos povoados insulares com o centro.
Quando alguém adoecia, era transportado para os hospitais na “cidade”. Antônio Caraca
rememorou como faziam em situações como essa:
Levava numa rede! Assim no ombro. Eu ainda levei, eu ainda levei uns ainda.
Ajudei levar, ajudei trazer, era assim. Não tinha estrada, não tinha nada.
Estrada foi feita no tempo que o doutor Alberto Silva foi governador. (Caraca,
2015)
O que chama a atenção não é a informação dada pelo colaborador. Mas sim, a sua
condição de saúde. Pescador aposentado, com 83 anos na época da entrevista, Caraca
atualmente sofre do mal de Alzheimer. Para José Carlos Sebe Bom Mehy, “a velhice,
debilidade física, circunstâncias traumáticas afetam diretamente as narrativas que se
baseiam na memória” (MEHY: 2005, 63).
Apesar da idade avançada e do mal que o aflige, o Alzheimer não apagou de sua
memória o governador piauiense que “fez” a estrada - Alberto Silva - e o que “trouxe”
energia elétrica para o povoado de Pedra do Sal, o governador Hugo Napoleão, que estava
à frente do estado do Piauí de 1982 a 1986.
Alberto Silva governou o Piauí no início dos anos 1970. Nesse período, houveram
mudanças significativas tanto em Parnaíba quanto em Pedra do Sal, especialmente no que
tange ao turismo. Paulatinamente, vieram as melhorias, dentre elas a ponte Simplício Dias
e a estrada.
Chamou nossa atenção o “esquecimento” dos colaboradores referente ao interesse
do Estado em desenvolver a “praia parnaibana” por meio do turismo. Dos seis pescadores
entrevistados, Antônio Batista, mais conhecido como Batista, foi o único que em sua
narrativa fez menção sobre Pedra do Sal nos anos 1970 e os debates sobre o turismo.
9
Pedra do Sal é um lugar bonito. O lugar mais bonito é Pedra do Sal. Mas os
governos não querem levantar a Pedra do Sal. O doutor Alberto, quando
ganhou para governo me disse que se ele levantasse a Pedra do Sal, nós iríamos
morar muito longe da praia, porque os turistas iam invadir. (Batista, 2015)
A narrativa desse pescador, assim como a dos demais - excetuando-se a de
Fernando e a de Irineudo –, é toda factual, isto é, tendo os fatos como fios condutores.
Apesar de ser factual e do narrador não ter mencionado nenhum ano preciso nesse trecho,
pode-se deduzir o “tempo” ou período em que aconteceu este fato.
Alberto Silva foi governador do estado do Piauí na primeira metade da década de
1970. Nesse período, Pedra do Sal começava a ser vista como ponto turístico. “Levantar”
na fala do pescador indica promover, desenvolver, melhorar. Parte da narrativa de Batista
teve o ex-governador como um dos temas na entrevista que fizemos. Aliás, o colaborador
lembrou-se de um dos “feitos” de Alberto Silva: a ponte Simplício Dias da Silva.
Erguida em 1975, a construção de concreto sobre o Igaraçu ligava o continente à
ilha. Ir e vir de Parnaíba tornava-se mais fácil. Essa edificação na imprensa aparecia com
a função de integrar o centro aos povoados insulares. Essa intervenção promovida pelo
poder público na cidade precisa ser desnaturalizada.
Segundo a historiadora Raquel Rolnik, “a lógica capitalista passa a ser então um
parâmetro essencial na condição de uma política de ocupação da cidade, que se expressa
também na intervenção do Estado” (ROLNIK: 1995, 54-55). A ponte Simplício Dias
favorecia sim a ocupação, mesmo que temporária - pelo turismo -, de outras partes da
cidade de Parnaíba, nesse caso, os povoados insulares, dentre eles, Pedra do Sal. Vejamos
agora o significado da obra na vida dos pescadores entrevistados.
Antes da ponte, os pescadores tinham que ir caminhando de Pedra do Sal até uma
das margens do rio e posteriormente atravessá-lo de canoa para vender o peixe. O
pescador e terceirizado da empresa Águas e Esgotos do Piauí S.A, Fernando, embora não
tenha vivido em Pedra do Sal antes dessas transformações, narrou o seguinte:
Eu não alcancei os primeiros ônibus para levar o pescado. Mas muitas pessoas
aqui, dizem que quando não tinham estradas, elas iam levar o peixe no ombro,
no calão como chamava, ou de animal. Eles chegavam do mar até 6, 7 horas
da tarde. Aí, iam tratar o peixe. Às 10 horas da noite iam vender o peixe em
Parnaiba. O peixe era salgado, né?! Antes, na fundação da Pedra do Sal, não
existia negócio de gelo. (NASCIMENTO, 2015)
Apesar de não ter vivenciado essas experiências, pois veio morar em Pedra do Sal
somente nos anos 1990, o pescador se “lembra” de como era o cotidiano dessas pessoas
antes da estrada ou da energia elétrica.
10
A memória não diz respeito somente à nossa vida, mas também ao grupo que
estamos ligados, é o que Michel Pollak chama de memória herdada ou por tabela. “A
memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa” (POLLAK,
1992: 204). Fernando possui essa “memória”, pois é casado com uma das filhas de
Antônio Caraca, um dos pescadores mais antigos do povoado. É possível que a memória
dos “outros” tenha sido transmitida a ele, seja por causa de sua família ou por causa de
seus colegas de trabalho.
Enquanto Fernando delineia sobre os pescadores que iam vender os pescados no
centro de Parnaíba, seu sogro, Antônio Caraca, descreve como faziam quando precisavam
comprar algo na “cidade”,
Saía daqui, de Pedra do Sal e ia para Parnaíba. Quando era de manhanzinha, a
gente ia chegando lá. Fazia as comprinhas, comprava umas coisinhas e ai uma
hora dessas, 17: 00 em diante, a gente ia chegando. Vinha gente chegando até
de noite. Voltando a pé, todo tempo (CARACA, 2015).
Pelas narrativas citadas anteriormente, pode-se observar certo nível de
dependência do povoado pesqueiro, bem como de seus habitantes com Parnaíba. Segundo
Antônio Carlos Diegues, “para os pescadores artesanais a cidade é o mercado por
excelência, onde dia a dia eles se defrontam com os atravessadores no momento de vender
o peixe. É ali também que vão procurar o combustível, o gelo, o óleo” (DIEGUES,
1983:221). Afinal, Parnaíba “comprava” tanto o peixe oriundo de Pedra do Sal, quanto
vendia alimentos, linhas e vestimentas para os pescadores e suas famílias. Dessa maneira,
havia uma dependência mútua – ainda que não equivalente – dos habitantes de Pedra do
Sal com o centro da cidade e vice-versa.
Conclusões
As cidades são espaços de conflitos e de lutas sociais pela sobrevivência, não
somente de discursos. As relações dos pescadores de Pedra do Sal com a cidade de
Parnaíba eram muitas, mas principalmente de dependência. Era para os mercados da
cidade que iam pescados trazidos do mar pelos homens. A falta de estrutura que
caracterizava a área praiana, obrigava os pescadores e os demais moradores de Pedra do
Sal a se deslocarem para o continente em situações diferentes: tratamentos de saúde,
compras, estudos, venda de pescado e do que produziam.
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Espaço de experiências humanas, a cidade é um lócus complexo e, como tal,
observamos que havia circulação de pessoas motivadas por singularidades próprias. O
pescador, ou mesmo o morador de Pedra do Sal, buscava a cidade para vender o peixe,
trabalhar ou curar-se de alguma enfermidade. Por sua vez, o morador de Parnaíba ia ao
povoado praiano desfrutar da paisagem litorânea para o lazer. Movimento esse que,
possivelmente, aumentou devido a estrutura implantada e que favorecia o deslocamento
de pessoas para ambos os lados do Igaraçu.
Não estamos afirmando, nem queremos indicar que os habitantes do centro e do
entorno de Parnaíba eram ricos, exploradores, e que os moradores de Pedra do Sal eram
pobres e explorados. Por ora, o que se pretende enfatizar é a importância de uma parte de
Parnaíba pouco estudada pela historiografia local, ao invés de fomentar uma dicotomia
estéril ou mesmo algum juízo de valor. Nossa intenção é perceber como os habitantes dos
povoados insulares, mais especificamente de Pedra do Sal, se relacionavam com a cidade
e como estes viviam em um período em que o lugar onde moravam passava por
valorizações e transformações. Nosso objetivo é, antes de tudo, compreender e conferir
visibilidade a sujeitos históricos cuja existência tem sido menosprezada. Como
historiador oriundo dessa região, não posso me furtar a essa tarefa.
Colaboradores:
Antônio Nonato dos Santos (Antônio Caraca), pescador aposentado, 85 anos e Rosangela
dos Santos, dona de casa, 40 anos. Entrevista realizada em 10/02/2015, em Pedra do Sal,
concedida a Pedro Vagner Silva Oliveira e Láila Daniela da Silva Santos.
Antônio Severo do Nascimento (Antônio Pescada). Pescador em atividade, 62 anos.
Entrevista realizada em 02/02/2015, em Pedra do Sal, concedida a Pedro Vagner Silva
Oliveira.
Antonio Raimundo Martins de Oliveira. Pescador em atividade, 62 anos. Entrevista
realizada em 17/07/2014, em Pedra do Sal, concedida a Pedro Vagner Silva Oliveira e
Láila Daniela da Silva Santos.
Antônio Batista dos Santos, pescador em atividade, 65 anos. Entrevista realizada em
04/08/2015, em Pedra do Sal, concedida a Pedro Vagner Silva Oliveira e Láila Daniela
da Silva Santos.
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Carlos Fernando Silva do Nascimento. Terceirizado da empresa Águas e Esgotos do Piauí
S/A e pescador, 49 anos. Entrevista realizada em 20/01/2015, em Pedra do Sal, concedida
a Pedro Vagner Silva Oliveira.
Irineudo Nascimento dos Santos, pescador, 36 anos. Entrevista realizada em 14/04/2014,
em Ilha Grande-PI, concedida a Pedro Vagner Silva Oliveira.
Referências bibliográficas:
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Companhia das Letras, 1994.
BOTELHO, Denílson (org.). História e cultura urbana: a cidade como arena de conflitos.
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CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. Tradução Paulo Neves.
CARVALHO, José Murilo de. Passo atrás, passo adiante (1964-1985) In Cidadania no
Brasil: o longo caminho, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 155- 195.
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