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Psicologia da familia
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1
ADRIANA LEONIDAS DE OLIVEIRA
IRMOS, MEIO-IRMOS E CO-IRMOS:
A Dinmica das Relaes Fraternas no Recasamento
DOUTORADO: PSICOLOGIA CLNICA
PUC-SP
2005
2
ADRIANA LEONIDAS DE OLIVEIRA
IRMOS, MEIO-IRMOS E CO-IRMOS:
A Dinmica das Relaes Fraternas no Recasamento
Tese apresentada Banca Examinadora da
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,
como exigncia parcial para obteno do ttulo
de DOUTOR em Psicologia Clnica sob
orientao da Prof Doutora Ceneide Maria de
Oliveira Cerveny.
DOUTORADO: PSICOLOGIA CLNICA
PUC-SP
2005
3
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
___________________________________
___________________________________
___________________________________
___________________________________
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Wilber e Victor
Dedico a vocs este trabalho e agradeo pela forma carinhosa e compreensiva que perdoaram minhas ausncias neste momento e pela
imensa alegria que me trazem todos os dias! Formar com vocs uma famlia minha grande conquista e minha maior
felicidade!
5
AGRADECIMENTOS
Ao longo deste trabalho pude contar com o apoio e a colaborao de pessoas especiais,
as quais eu gostaria de agradecer nesse momento.
Minha querida orientadora Dra. Ceneide Cerveny. Tenho por voc uma profunda
admirao pela sua sabedoria, pela sua imensa generosidade em dividir conhecimento e pela
sua capacidade de ser verdadeiramente uma ORIENTADORA. Ao longo deste trabalho, voc
me permitiu escolher os caminhos, me permitiu caminhar no meu prprio ritmo, e acima de
tudo, esteve do meu lado em todos os momentos. Agradeo pelo conhecimento transmitido,
pelo apoio proporcionado e pela confiana. Sinto que no tenho palavras suficientemente
completas para expressar o seu importante papel em minha vida profissional e pessoal! Muito
obrigada!
querida amiga Dra. Cristiana Berthoud. Gostaria de reafirmar nesse momento o
quanto voc foi importante ao longo de todo esse trajeto. Como minha professora na
graduao e na ps-graduao e como minha colega na vida acadmica, voc me mostrou o
que fazer pesquisa com muita seriedade, tica e paixo! Voc para mim um modelo de
profissionalismo e de competncia. uma grande honra ser hoje sua PARCEIRA de trabalho!
Muito obrigada pelo apoio que sei que posso sempre contar!
Dra. Rosa Macedo. Seu profundo conhecimento sobre as relaes familiares
contemporneas, generosamente dividido ao longo das disciplinas cursadas no doutorado,
muito contribuiu para que eu pudesse incorporar ao meu trabalho uma viso ainda mais
atualizada e pertinente. Muito obrigada pela oportunidade de compartilhar conhecimento e
pela confiana!
6
Dra. Ida Kublikowisky agradeo pela leitura cuidadosa de todo meu trabalho e
pelas ricas contribuies oferecidas. Muito obrigada!
Dra. Judy Dunn do Institute of Psychiatry, Kings College London (University of
London), agradeo pela gentileza de ter me enviado seu artigo e pelas orientaes quanto ao
uso da tcnica Five Field Map.
s colegas psiclogas Fernanda e Renata Bertran, agradeo pela disponibilidade e
dedicao na transcrio das fitas e auxlio na montagem e co-moderao do grupo focal.
Por fim, gostaria de expressar minha imensa gratido a todos os irmos, meio-irmos
e co-irmos que dividiram comigo suas histrias. Histrias ora felizes, ora tristes. Histrias
que lhes fizeram rir ou chorar. Histrias, que ao serem rememoradas, permitiram sentir fortes
emoes....Enfim, histrias de irmos, meio-irmos e co-irmos! Sem a colaborao de vocs
a construo dessa tese no teria sido possvel! MUITO OBRIGADA!
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RESUMO
Este trabalho teve como objetivo compreender a dinmica das relaes fraternas em famlias
recasadas. Foi realizado utilizando-se a metodologia da Teoria Fundamentada nos Dados
(Grounded Theory Methodology). Participaram da pesquisa 14 adolescentes e adultos que
vivem a experincia do recasamento do pai ou da me h no mnimo trs anos e que possuem
pelo menos um irmo biolgico, meio-irmo ou co-irmo. Foram adotados como instrumentos
para a coleta de dados a tcnica Mapa dos Cinco Campos, a entrevista no-estruturada e o
grupo focal. A teoria que emergiu dos dados analisados foi denominada Compartilhando,
Construindo e Re-significando as Relaes Fraternas na Famlia Recasada. Esta mostra
o relacionamento fraterno como um processo dinmico e flexvel, com suas possibilidades de
transformao ao longo do tempo, impulsionadas pela oportunidade de compartilhar
experincias ao longo da convivncia. Explica de que maneira a vivncia do divrcio e
recasamento dos pais modifica a relao entre irmos biolgicos, podendo contribuir para o
fortalecimento do vnculo ou para o enfraquecimento da relao e evidencia como os irmos
podem atuar, em alguns casos, como um fator de proteo ao outro, desempenhando um papel
positivo e ativo no ajustamento ao divrcio e ao recasamento. Mostra como se estabelecem as
relaes entre co-irmos e meio-irmos, apresentando suas caractersticas e os principais
fatores que interferem na qualidade das mesmas. Tambm explica porque os vnculos afetivos
se desenvolvem ou falham em se desenvolver entre os co-irmos e os meio-irmos. A teoria
desenvolvida discutida sob a tica da Teoria do Apego e da Perspectiva Sistmica da
Famlia e comparada literatura atual existente.
8
ABSTRACT
The objective of this dissertation was to understand the dynamics of sibling relations in
remarried families. It was developed applying the Grounded Theory Methodology. Fourteen
adolescents and adults who have been experiencing the remarriage of their mother or father
for at least three years and who have at least one sibling, half sibling or stepsibling
participated in the study. The Five Field Map, open interviews and focus group were used as
data collection techniques. The theory, which emerged from data, was named Sharing,
Constructing and Re-meaning the Sibling Relationships in Remarried Family. It
explains the sibling relationship as a dynamics and flexible process, with possibility of change
throughout time, determined by the opportunity of sharing life experiences. It explains how
established sibling relationships can change under conditions of divorce and remarriage,
showing how they can be reinforced or weakened by these events. It also demonstrates that
siblings can be, in some cases, important protective agents to each other, having a positive
and active role in the adjustment to divorce and remarriage. I explains how stepsibling and
half sibling relationships are developed, presenting their characteristics and the most
important factors which could affect their quality. It also explains why sibling bonding
develops or fails to develop between stepsiblings and halfsiblings. The developed theory is
discussed by means of Attachment Theory and The Family Systems Perspective and
compared to the current literature.
9
SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................................12
CAPTULO 1- RECASAMENTO........................................................................................18
1.1- O que uma Famlia Recasada?............................................................................19
1.2- A Famlia Recasada numa perspectiva sistmica..................................................24
1.2.1- A estrutura da famlia recasada...............................................................27
1.2.2- Expectativas, crenas e mitos da famlia recasada..................................29
1.2.3- Papis familiares.....................................................................................32
1.2.4- Afetividade na famlia recasada..............................................................35
1.2.5- Fronteiras................................................................................................37
1.2.6- A famlia recasada formada aps a morte de um cnjuge......................40
1.2.7- A vivncia do recasamento em diferentes fases do ciclo vital................41
1.2.8- O Ciclo Vital da famlia recasada...........................................................43
1.3-A Famlia Recasada como objeto de pesquisa: Trinta anos de Investigao.........48
1.3.1- Literatura Estrangeira..............................................................................48
1.3.1.1- APA (American Psychological Association)..................48
1.3.2- Literatura Brasileira................................................................................61
1.3.2.1- Portal de Teses e Dissertaes da CAPES e IBICT.........61
1.3.2.2- Scielo (Scientific Electronic Library on Line).63
1.3.2.3- Lilacs ...............................................................................64
1.3.3- Comentrios gerais..................................................................................65
CAPTULO 2- TEORIA DO APEGO: A BASE PARA COMPREENSO DOS
VNCULOS AFETIVOS........................................................................................................68
2.1- Relaes Vinculares Precoces: A Teoria do Apego..............................................69
2.1.1- O Comportamento de Apego..................................................................69
2.1.2- As Fases no Desenvolvimento do Apego................................................74
2.1.3- Os Padres de Apego..............................................................................76
2.1.4- Teoria de Apego e Teoria Sistmica da Famlia:
Um encontro possvel........................................................................................81
2.2- Os Vnculos Afetivos ao longo da vida.................................................................86
10
2.2.1- Os Relacionamentos Interpessoais e a Formao
dos Vnculos Afetivos......................................................................................86
2.2.2- Vnculos na Infncia e Adolescncia......................................................91
2.2.3- Vnculos na Fase Adulta.........................................................................93
CAPTULO 3- O VNCULO ENTRE IRMOS...............................................................100
3.1- Irmo, meio-irmo e co-irmo: algumas definies............................................103
3.2- Definindo o Vnculo fraterno...............................................................................104
3.3- Irmos ao longo da Vida: Construindo uma memria compartilhada-
compartilhando uma memria construda...................................................................109
3.3.1- Formando Vnculos na Infncia............................................................111
3.3.2- Relaes Transformadas na Adolescncia............................................122
3.3.3- Seguindo seus caminhos na Fase Adulta..............................................125
CAPTULO 4- IRMOS E O RECASAMENTO............................................................132
4.1- Irmos Biolgicos, Divrcio e Recasamento......................................................137
4.2- Meio-irmos e Co-irmos....................................................................................140
CAPTULO 5- MTODO....................................................................................................144
5.1-Reflexes sobre a Escolha Metodolgica.............................................................145
5.2-A Escolha do Mtodo de Pesquisa........................................................................150
5.2.1- Participantes..........................................................................................154
5.2.2-Instrumentos e coleta de dados.............................................................158
5.2.3-Anlise dos dados...................................................................................162
CAPTULO 6-APRESENTANDO A TEORIA CONSTRUDA......................................171
6.1- Tendo a vida transformada: vivendo o divrcio e o recasamento dos pais.........174
6.2- Vivendo transformaes nas relaes fraternas: os irmos biolgicos................200
6.3- Avaliando ganhos e perdas- Construindo novas redes de relaes fraternas:
os co-irmos................................................................................................................216
6.4-Meio-irmos ou irmos por inteiro? Surgindo novas possibilidades
de relaes..................................................................................................................239
6.5- Irmos, Meio-Irmos e Co-Irmos: Compartilhando,
Construindo e Re-significando as relaes fraternas na famlia recasada..................260
11
CAPTULO 7- DISCUTINDO O CONHECIMENTO CONSTRUDO.........................264
7.1- A Perspectiva Sistmica da Famlia Recasada e os resultados obtidos...............265
7.2- A Teoria do Apego e os resultados obtidos.........................................................275
7.3- A Literatura sobre as Relaes Fraternas no Recasamento e os
resultados obtidos.......................................................................................................285
7.4- Concluindo...........................................................................................................295
CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................301
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................305
APNDICES..........................................................................................................................322
ANEXOS................................................................................................................................334
12
Introduo
13
INTRODUO
Dados dos ltimos censos revelam-nos uma realidade que no podemos desconsiderar:
o aumento do nmero de famlias recasadas no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE), o total de divrcios no pas cresceu 55% entre 1991 e 2002, o
nmero de separaes aumentou 30%, e a durao mdia dos casamentos de dez anos e
meio. Atrs desse crescente ndice de rompimentos vm as tambm crescentes taxas de
recasamento: mais da metade dos divorciados no Brasil partem para uma nova unio.
O nmero de recasamentos aumentou de 47 mil, em 1984, para 95 mil, em 2002
(IBGE, 2004). Ademais, se levarmos em conta que uma quantidade significativa de
recasamentos acontece de modo consensual, ou seja, sem o envolvimento de contrato ou de
qualquer outro procedimento legal, esse nmero pode ser considerado ainda maior. Assim,
podemos constatar que, a cada ano, o recasamento passa a se firmar como mais uma
possibilidade de unio, em nossa sociedade, que tem caminhado para uma pluralidade de
opes.
O recasamento configura, de forma cada vez mais freqente em nosso contexto, uma
possibilidade de reconquistar vnculos essenciais de intimidade, afeto e companheirismo,
proporcionando o aparecimento de novos e diferenciados arranjos familiares.
Embora cada vez mais presente, podemos afirmar que a Psicologia, em especial a
Psicologia da Famlia, no Brasil, ainda busca respostas para compreender com maior
profundidade e para atuar junto s famlias recasadas. Sua complexidade estrutural e
relacional, indubitavelmente, faz configurar no cenrio cientfico e clnico um fenmeno com
um vasto campo de estudo e com uma demanda de interveno, tanto primria, quanto
secundria. Tal complexidade pode ser inicial e facilmente constatada pela simples anlise da
14
diversidade de configuraes possveis no recasamento, o que no nos permite falar de uma
famlia recasada tpica.
Beer (1989) lembra-nos que, se levarmos em conta fatores como gnero, casamentos
anteriores de ambos os parceiros, a existncia de filhos residentes ou no, existem vinte e
quatro configuraes possveis para famlias recasadas. Novos fatos, como o nascimento de
um filho dentro do recasamento, aumentam esse nmero, e cada configurao apresenta sua
especificidade.
Carter e McGoldrick (1995; 1999) tambm enfatizam essa complexidade, apontando
que o processo por meio do qual o sistema familiar recasado se estabiliza e recupera sua
confiana desenvolvimental acrescentaria uma outra fase ao ciclo vital familiar para aqueles
envolvidos. As autoras ressaltam a necessidade de um paradigma de famlia inteiramente
novo, com o recasamento, que considere os novos relacionamentos e papis.
Diante desse panorama, apresento o foco central desta tese: compreender a dinmica
de uma das relaes familiares que se forma a partir do recasamento - a relao fraterna. O
recasamento traz consigo a possibilidade de formao de diferentes configuraes de relaes
fraternas: os co-irmos (crianas, adolescentes ou adultos que no so biologicamente
relacionados, mas que adquirem tal status pelo fato de o pai de um e a me do outro terem se
casado); os meio-irmos (irmos que possuem apenas um pai biolgico em comum); e os
irmos biolgicos (irmos que compartilham a mesma me e o mesmo pai, e que, tanto
podem ter nascido da primeira unio de seus pais, e terem vivido juntos o processo de
divrcio e recasamento, como podem ter nascido aps o recasamento). Conforme se constata,
complexas redes fraternas se formam, redes essas ainda pouco compreendidas no meio clnico
e cientfico.
Hoje se reconhece que os irmos desempenham papel importante na histria de
desenvolvimento emocional, cognitivo e social das pessoas. O vnculo fraterno, que se inicia
15
na infncia e se prolonga durante nossas vidas, tem poder emocional para modelar a histria
de quem ns somos e de quem ns nos tornamos. Entretanto, pouco se sabe sobre o papel dos
diferentes tipos de relacionamentos fraternos que se inauguram a partir do recasamento.
Neste trabalho, propus-me a responder ao seguinte problema de pesquisa: Qual a
dinmica das relaes fraternas em famlias recasadas? Como se estabelecem, quais suas
caractersticas e quais fatores interferem em sua qualidade?
Para tal, os objetivos deste estudo foram configurados da seguinte forma:
Objetivo geral: Compreender a dinmica das relaes fraternas em famlias recasadas, a fim de construir um modelo terico que explique esse fenmeno no
contexto da famlia atual.
Objetivos especficos:
> Explicar como o vnculo fraterno entre irmos biolgicos afetado pelo divrcio e recasamento dos pais;
> Compreender como se estabelecem as relaes entre os co-irmos e entre os meio-irmos, explicando suas caractersticas e quais os fatores que interferem na
qualidade dessas relaes;
> Explicar porque os vnculos afetivos e vnculos de apego se desenvolvem ou falham em se desenvolver entre os co-irmos e entre os meio-irmos no recasamento.
Para atingir tal objetivo, desenvolvi uma pesquisa qualitativa por meio da Metodologia
da Teoria Fundamentada nos Dados (Grounded Theory Methodology), utilizando a entrevista
no-estruturada, a tcnica do Mapa dos Cinco Campos (Five Field Map) (STURGESS,
DUNN & DAVIES, 2001; SAMUELSSON, THERNLUND & RINGSTRM, 1996) e o
grupo focal como recursos para a coleta do material emprico. Este foi obtido numa amostra
de irmos, meio-irmos e co-irmos adolescentes ou adultos, advindos de famlias recasadas.
16
Adoto duas perspectivas tericas que considero importantes na anlise das relaes
fraternas no recasamento: a Teoria Sistmica e a Teoria do Apego. A Teoria Sistmica
permite-me alcanar uma compreenso do funcionamento das famlias recasadas, medida
que descreve sua estrutura, expectativas, crenas, mitos, papis, fronteiras e seu ciclo vital. A
Teoria do Apego, uma vez que explica a raiz de nossos vnculos afetivos, possibilita-me
compreender a construo de outros tipos de relacionamentos e vnculos que as pessoas
desenvolvem ao longo de suas vidas, incluindo as relaes entre irmos, meio-irmos e co-
irmos. Essas abordagens tericas permitiram-me criar um cenrio de fundo com base no qual
pude refletir e estabelecer comparaes com a teoria emergente dos dados que foram
sistematicamente coletados e analisados.
Pude constatar, pelo levantamento bibliogrfico sobre o tema, que estudar a dinmica
das relaes fraternas no recasamento mergulhar num mar de questionamentos, no qual
ainda poucas respostas se fazem presentes. Assim, acredito que o conhecimento construdo
nesta pesquisa possa contribuir para a compreenso terica e subsidiar a atuao prtica junto
a essa populao.
Este trabalho est organizado em sete captulos. Nos quatro primeiros, apresento a
fundamentao terica que adoto para a compreenso do fenmeno em foco, assim como um
panorama da literatura cientfica da rea.
No captulo 1, totalmente dedicado ao tema recasamento, discuto a definio de
famlia recasada e, em seguida, realizo uma leitura de suas principais caractersticas segundo a
Abordagem Sistmica da Famlia. Ainda nesse captulo, mostro como o tema recasamento
tem sido retratado na literatura nacional e internacional nas ltimas dcadas, a fim de se poder
visualizar o contexto cientfico em que este trabalho est inserido.
No captulo 2, apresento os aspectos principais da Teoria do Apego, proposta por
John Bowlby (1984; 1985; 1990a; 1990b), enfocando como ocorre o desenvolvimento e a
17
manifestao do apego nos primrdios da vida. Sigo apresentando a extenso dos princpios
da Teoria do Apego alm da infncia, diferenciando o vnculo de apego dos demais vnculos
afetivos e demonstrando o seu papel na dinmica dos relacionamentos humanos. Busco, ainda
nesse captulo, apresentar a integrao da Teoria Sistmica e a Teoria do Apego, as duas
abordagens que considero importantes na anlise das relaes fraternas no recasamento.
No captulo 3, focalizo o vnculo entre irmos, apresentando sua definio e suas
caractersticas em cada fase do desenvolvimento humano.
Por fim, no captulo 4, apresento e discuto os trabalhos cientficos publicados sobre
irmos e recasamento.
A partir do captulo 5, apresento meu trabalho de pesquisa de campo. Nesse captulo
fao a apresentao do mtodo da pesquisa e, em seguida, no captulo 6, exponho meus
resultados: a teoria que elaborei, fundamentada nos dados sistematicamente coletados e
analisados.
No captulo 7, fao a discusso da teoria emergente face literatura existente e
apresento minhas concluses. Finalizando, apresento as consideraes finais desta tese.
18
Captulo 1
RECASAMENTO
As famlias recasadas devem ser vistas como unidades
familiares possveis e viveis, de estrutura complexa, criadas
pela integrao de antigas lealdades e novos laos, e no como
cpias imperfeitas da famlia nuclear.
Visher e Visher (1988)
19
CAPTULO 1 - RECASAMENTO
No primeiro captulo desta tese, tenho como objetivo discorrer sobre a famlia
recasada. Busco, inicialmente, refletir e discutir sua definio e, posteriormente, analiso suas
principais caractersticas e sua especificidade com base em uma leitura sistmica. Para
finalizar, busco traar o estado da arte com relao ao tema, apresentando a maneira como o
recasamento tem sido retratado na literatura cientfica nacional e internacional, com base no
levantamento e na anlise das produes da rea nas dcadas de 70, 80, 90 at 2004,
pertencentes ao banco de dados da American Psychological Association (APA), da Scientific
Electronic Library on Line (Scielo), da Literatura Latino-Americana e do Caribe de Cincias
da Sade (Lilacs) e do Portal de Teses e Dissertaes da CAPES (Coordenao de
Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) e do IBICT (Instituto Brasileiro de
Informao em Cincia e Tecnologia).
1.1- O que uma famlia recasada?
A famlia recasada pode ser compreendida como aquela formada aps divrcio,
separao ou viuvez de um ou de ambos os cnjuges e posterior nova unio. A maioria dos
estudiosos da rea inclui a questo da paternidade, definindo a famlia recasada como aquela
em que dois adultos se unem formando uma nova famlia e para a qual um ou ambos trazem
pelo menos um filho de uma relao anterior (SAGER et al., 1983; WOODS, 1987; BEER,
1989; VISHER & VISHER, 1988; VISHER et al.,1996; VISHER et al 1997; CARTER &
McGOLDRICK, 1995, 1999; BRUN,1999; OLIVEIRA et al. 1999; WAGNER, 2002;
TRAVIS, 2003). Para Beer (1989, p.7), a forma mais simples de definir uma famlia recasada
...uma famlia na qual pelo menos um membro do casal adulto padrastro ou madrastra.
20
importante ressaltar que se incluem sob a mesma definio as unies legais e as
consensuais, ou seja, aquelas em que os parceiros co-habitam formando um novo casal,
mesmo sem a existncia de vnculos legais. Uma nova unio com as caractersticas de partilha
de residncia, atividades e responsabilidades comuns constituir um recasamento, mesmo sem
a formalizao perante a lei.
Podemos afirmar que, embora j haja um consenso quanto definio de famlia
recasada entre aqueles que a estudam, o mesmo no acontece quanto sua terminologia:
famlia refeita, reconstituda, reorganizada, reconstruda, reestruturada, mista, simultnea,
sinergtica, combinada, binuclear - estas so as vrias formas encontradas na literatura para
nomear a famlia recasada. No entanto, acredito que esta lista no pode ser considerada
acabada.
interessante analisarmos esses termos, uma vez que a linguagem adotada para
conceituar um fenmeno pode revelar uma srie de significados a ele atribudos. O que
primeiramente me chama ateno o fato de que a maioria das nomenclaturas utiliza o
prefixo re, na tentativa de criar um termo que denomine com maior preciso os ncleos
constitudos por uma nova unio. Segundo o Dicionrio Aurlio Bsico da Lngua Portuguesa
(1988), esse prefixo indicador de repetio, recomeo, mudana de status, entre outros
significados. Fica, portanto, evidente a idia de repetio, de reformulao e de recriao
inserida na denominao dessas famlias. Em especial, termos como refeita, reconstituda,
reorganizada, reconstruda e reestruturada do a idia de uma famlia que se desfez, se
desmontou, se quebrou ou se desorganizou e, posteriormente, voltou a se refazer em suas
condies originais, evocando o mito da famlia nuclear. Concordo com Brun (1999, p.24),
quando afirma que ainda no temos em nossa ou em outras lnguas um termo que expresse em
seu significado a singularidade de uma nova unio:
No existe nomenclatura especfica para este casamento em nenhuma lngua conhecida. S encontramos referncias que nos levem a pensar em remendo,
21
segunda mo, imitao, substituio, reconstituio, palavras e expresses com uma forte carga negativa. A famlia nuclear - me, pai e filhos - fica sendo vivenciada como a nica verdadeira, valorizada, boa e legtima. Tudo que for diferente dessa famlia-padro menos.
Assim, podemos concluir que a prpria terminologia remete a uma crena bastante
comum na organizao e funcionamento da famlia recasada: a de que esta deve funcionar
como uma famlia original e intacta. Estudiosos do recasamento (SAGER et al., 1983;
VISHER & VISHER, 1988; CARTER & McGOLDRICK, 1995, 1999; OLIVEIRA et al.,
1999, COLEMAN et al., 2000; WAGNER, 2002; TRAVIS, 2003) concordam em afirmar
que muitas das dificuldades enfrentadas pelos membros das famlias recasadas podem ser
atribudas ao fato de a sociedade geral e as prprias famlias recasadas utilizarem a famlia
nuclear intacta como um modelo a ser seguido ou alcanado.
Adoto neste trabalho o termo famlia recasada, pois considero que, na falta de outro
mais adequado, o que melhor atende o significado do fenmeno em estudo. Concordo com
Carter e McGoldrick (1995), quando afirmam que a nomenclatura recasada enfatiza o
vnculo conjugal que forma a base para o complexo arranjo de vrias famlias numa nova
constelao. E tambm concordo com Wagner (2002), quando afirma que o re-investimento
que caracteriza a nova unio conjugal, re-investimento que acredito dever se estender a todas
as demais relaes que se desenvolvero nesse novo ncleo, o que determinar em grande
parte a possibilidade de surgimento de vnculos afetivos saudveis. A possibilidade de
formao de vnculos afetivos estar na base para a construo e o desenvolvimento bem-
sucedido da famlia recasada, que tem, com a entrada dos novos membros, a criao de uma
complexa rede de relaes.
Tal complexidade j comea a ser evidenciada frente simples necessidade de nomear
esses novos membros. Conforme nos evidencia Brun (1999), falta em nossa cultura cdigos
lingsticos adequados para nomear as relaes criadas no recasamento, o que gera tenses e
prejudica a acomodao dos membros da famlia em seus novos papis. Vrios profissionais
22
que estudam e atuam junto a essas famlias (SAGER et al., 1983; VISHER & VISHER, 1988;
CARTER & McGOLDRICK, 1995, 1999; OSRIO, 1996; OLIVEIRA et al., 1999;
BERNSTEIN, 1999; BRUN, 1999; WAGNER, 2002; TRAVIS, 2003) concordam que
palavras como madrasta, padrasto e enteado, disponveis para se nomear a relao entre
pessoas que no possuem vnculo de consanginidade mas que passam a fazer parte da
famlia, vm carregadas de conotaes negativas e freqentemente suscitam associaes
como perversidade, maltrato, infelicidade, abuso, entre outras.
Alguns autores tambm enfatizam a influncia das histrias infantis clssicas no
imaginrio popular (BERNSTEIN, 1999; WAGNER, 2002). Em contos, como Joo e Maria,
A Branca de Neve e os Sete Anes, Cinderela, encontramos exemplos de madrastas malvadas,
invejosas e cruis e enteados infelizes.
Se, de um lado, encontramos termos altamente pejorativos para nomear as relaes na
famlia recasada, por outro, algumas novas relaes literalmente carecem de termos na nossa
lngua. E esse justamente o caso dos irmos. Para o termo do idioma ingls stepsibling,
ainda no temos um correlato oficial em portugus. Encontramos algumas tradues como
irmos de convivncia e irmos polticos (WAGNER & SARRIERA, 1999; WAGNER,
2002). Entretanto, optei por adotar o termo co-irmo, o qual foi mencionado por Cerveny
em sua experincia clnica no atendimento de famlias recasadas. O atendimento a tais
famlias tambm tem evidenciado algumas tentativas de superar as conotaes negativas que
as palavras madrasta e padrasto carregam, como, por exemplo, a criao de neologismos,
conforme nos apontam Wagner e Falck (2000, p.423): ....no incomum encontrar
adolescentes referindo-se a estas figuras como boadrasta, medrasta, me-cover, paidrasto,
pai-cover, entre outros. As autoras tambm afirmam que se observa freqentemente
adolescentes tratando essas figuras por tio ou tia, na tentativa de se apoiar em relaes j
conhecidas no modelo intacto original, assim como outros, no conseguindo estabelecer um
23
vnculo direto com essas personagens, referindo-se a elas por muito tempo como
namorada/mulher do pai ou namorado/marido da me.
O recasamento reconhecido por lei no Brasil um fenmeno relativamente novo.
Tornou-se possvel a partir de 1977, quando o divrcio foi institudo. At a dcada de 60 e
incio dos anos 70 no era socialmente bem aceito, em especial nas camadas sociais mdia e
alta, sendo simplesmente um ajuntamento (TRAVIS, 2003). Segundo Woods (1987), para
minimizar o preconceito social, os separados, chamados na poca de desquitados, casavam no
exterior, freqentemente no Uruguai, embora no houvesse reconhecimento legal no Brasil.
Tanto os indivduos desquitados quanto seus filhos sofriam preconceito e estigmatizao da
sociedade brasileira.
A partir de sua legitimao, a obteno do divrcio deveria ser precedida de dois anos
de separao judicial ou cinco anos de separao de fato. Atualmente, o divrcio tornou-se
um instrumento jurdico mais gil, facilitando a possibilidade de um recasamento legalmente
reconhecido (TRAVIS, 2003). Nesse contexto, apesar do prognstico do trmino da famlia,
podemos com certeza afirmar que este no se tornou realidade. Hoje, mais do que nunca, a
famlia continua com o papel central de ncleo responsvel pela promoo do
desenvolvimento e bem-estar de seus membros e, para cumprir esse papel, se transforma, se
adapta, se divide, se soma, enfim, se multiplica nas diferentes formas de organizao que
encontramos hoje.
E justamente entre as famlias recasadas que encontramos uma ampla variedade de
diferentes tipos de arranjos familiares, alguns deles simples e outros bastante complexos. O
tipo mais simples de famlia recasada aquele em que um cnjuge vivo ou divorciado, que
possui um filho da primeira unio, se recasa com um cnjuge que nunca havia sido casado e
que no possui filho. O tipo mais complexo aquele em que ambos os cnjuges se recasam
trazendo filhos da unio anterior, assim como tendo um filho em comum. So nesses
24
diferentes arranjos, dos mais simples aos mais complexos, que focalizarei o fenmeno em
estudo: a rede de relaes fraternas que se forma entre irmos, meio-irmos e co-irmos. A
seguir buscarei apresentar a partir de uma leitura sistmica, as principais caractersticas da
famlia recasada, o que muito contribuir para a compreenso do subsistema fraterno.
1.2- A Famlia Recasada numa Perspectiva Sistmica
Para alcanarmos uma compreenso suficientemente abrangente e profunda da famlia
recasada devemos ter como ponto de partida uma idia central: a famlia nuclear intacta no
pode ser tomada como modelo, pois ambas apresentam estrutura e funcionamento distintos.
Conforme j mencionado anteriormente neste captulo, muitas das dificuldades das
famlias recasadas podem ser atribudas tentativa por parte da famlia e at mesmo daqueles
que lidam com a mesma, de utilizar como orientao os papis e normas da famlia
tradicional, ou seja, a tentativa de copiar a famlia nuclear intacta. Conforme nos apontam
Carter e McGoldrick (1999), a famlia recasada deve ser vista, estudada, compreendida e
tratada luz de um novo paradigma. Vrios outros autores corroboram essa idia, e pesquisas
mais recentes da rea preocupam-se com as diferenas estruturais entre famlias recasadas e
nucleares, no como uma comparao, mas para que a compreenso das diferenas possibilite
uma melhor interao entre os diversos membros da famlia e uma utilizao mais eficiente
dos recursos teraputicos. J em 1988, Visher e Visher, pioneiros no estudo e tratamento das
famlias recasadas, enfatizaram a idia de que as famlias recasadas devem ser vistas como
unidades familiares possveis e viveis, de estrutura complexa, criadas pela integrao de
antigas lealdades e novos laos, e no como cpias imperfeitas da famlia nuclear.
Deixando de lado a viso de que as famlias recasadas so atpicas, sempre
patognicas e disfuncionais, pesquisas atuais tm focalizado seus estudos para compreender a
25
diversidade de respostas e de fatores que podem facilitar ou dificultar o desenvolvimento de
tais famlias. Conforme nos falam Hetherington e Bray (1998), a transio da famlia a partir
do recasamento desencadeia uma srie de mudanas nos arranjos residenciais, nas
circunstncias econmicas e nos papis e relaes familiares, as quais tm grandes
implicaes para o ajustamento dos membros da famlia. Mas, apesar de o recasamento
confrontar as famlias com estresse e mudanas adaptativas, ele tambm pode oferecer
oportunidade para o crescimento pessoal e para relaes pessoais e familiares preenchedoras e
harmoniosas. Segundo os autores, a maneira como os membros da famlia se adaptam a essa
srie de reorganizaes familiares depende do tempo da transio, das caractersticas do
indivduo, das mudanas, dos estressores e dos desafios especficos associados a cada estgio
da transio e dos recursos familiares e extrafamiliares disponveis para promover adaptao
aos novos papis e relaes. So palavras de Hetherington e Bray (1998, p.3): ...o divrcio e
o recasamento podem envolver mudanas de vida tanto positivas quanto negativas que podem
minar ou promover o bem-estar psicolgico e social dos pais e dos filhos.
Fundamentados em um novo paradigma, Carter e McGoldrick (1999) propem-nos
que, embora seja extremamente difcil para a prpria famlia recasada abandonar a idia de
famlia nuclear, este modelo de famlia necessita alcanar trs tarefas bsicas para garantir seu
bom funcionamento:
1- desenvolver fronteiras permeveis em torno dos membros das diferentes famlias,
a fim de permitir aos filhos movimentarem-se facilmente e de forma flexvel entre
as casas de seus progenitores e de parentes. As famlias precisam permitir linhas de
comunicao abertas entre ex-cnjuges e entre os filhos, pais biolgicos, padrastos
e madrastas, avs e outros parentes. Conexes com a famlia extensa podem ser
muito importantes para o bem-estar da criana.
26
2- Aceitar as responsabilidades e sentimentos paternos do cnjuge, sem assumir essas
responsabilidades por ele ou tentar competir com o apego progenitor-filhos ou
combater o contato com o ex-cnjuge. A competio do padrasto/madrasta com
seus enteados pela primazia em relao ao cnjuge, como se as relaes parentais e
conjugais estivessem no mesmo nvel hierrquico, muitas vezes acontece porque,
no recasamento, o vnculo progenitor-filho antecede o vnculo conjugal. Assim,
reconhecer os laos de forma diferenciada, com base nas conexes histricas e na
diferente natureza das relaes um desafio importante a ser alcanado.
3- Rever os tradicionais papis de gnero na famlia. Tais papis tradicionais, quando
rigidamente colocados em prtica, exigem que a madrasta, por ser mulher, assuma
a responsabilidade pelo bem-estar emocional da famlia, colocando madrasta e
enteados em posies antagnicas e a ex-mulher e a nova mulher em posies
adversrias, em especial em relao aos filhos. Num sistema recasado funcional, as
responsabilidades pela criao e educao dos filhos devem ser distribudas de
forma a validar o vnculo com os pais biolgicos. Assim, cada cnjuge deve
assumir a responsabilidade primria por criar e disciplinar seu prprio filho
biolgico, sendo o relacionamento com padrasto e madrasta desenvolvido de
acordo com as circunstncias de cada famlia e o desejo dos envolvidos.
Hetherington, Mavis e Kathleen (1994) acrescentam mais tarefas bsicas famlia
recasada. As autoras acreditam que so cinco os principais desafios que a famlia deve superar
para alcanar um bom funcionamento:
1- Estabelecer e manter um relacionamento conjugal forte;
27
2- O segundo desafio envolve a tarefa do pai biolgico em, simultaneamente,
sustentar um relacionamento prximo com os filhos, construir uma relao
conjugal slida e resolver os conflitos de lealdade;
3- Estabelecer um relacionamento de madrasta/padrasto e enteado(a);
4- O quarto desafio envolve a adaptao da criana ao novo relacionamento conjugal
de seus pais biolgicos, presena de um padrasto/madrasta e s alteraes no seu
relacionamento com o pai biolgico que tem a custdia.
5- Manter ou construir um relacionamento de apoio, ou pelo menos no-destrutivo,
entre os irmos.
Tendo em vista essas complexas tarefas bsicas que a famlia recasada deve alcanar,
concordo facilmente com Carter e McGoldrick (1999), quando afirmam que o recasamento
uma das transies desenvolvimentais mais difceis para as famlias negociarem. Quando
pensamos que, diferentemente de um primeiro casamento, em que apenas duas famlias se
unem, num segundo casamento, trs, quatro ou at mais famlias tornam-se entrelaadas. Da,
compreendermos porque o recasamento um processo complexo e porque as famlias
recasadas so sistemas com caractersticas to peculiares e que merecem ser analisadas dentro
de sua especificidade.
Assim, passarei a focalizar a seguir alguns pontos que considero importantes para o
entendimento dessas famlias e que sero importantes subsdios para que possamos nos
centrar mais frente no estudo das relaes fraternas que se formam a partir do recasamento.
1.2.1- A estrutura da famlia recasada
Podemos afirmar que a famlia nuclear simples quanto sua estrutura, pois tem
essencialmente um padro tpico: pai, me e filhos, sendo estes, na maioria dos casos,
28
relacionados biologicamente aos pais. Nessas famlias, o pertencimento definido por laos
sanguneos, legais e espaciais, sendo suas fronteiras explcitas.
A estrutura da famlia recasada menos definida e menos clara. Devemos considerar
que h oito tipos de recasamento possveis:
1- homem divorciado com mulher solteira;
2- homem divorciado com mulher divorciada;
3- homem divorciado com mulher viva;
4- homem solteiro com mulher divorciada;
5-homem solteiro com mulher viva;
6- homem vivo com mulher solteira;
7-homem vivo com mulher viva;
8- homem vivo com mulher divorciada .
Devemos, ainda, considerar que, para cada um desses tipos h trs possibilidades de
padres parentais:
1- pai e filhos com madrasta;
2- me e filhos com padrasto;
3- pai e filhos com me e filhos .
Matematicamente, chegamos s vinte e quatro possveis configuraes de famlias
recasadas que mencionei no incio deste captulo. No se deve esquecer, ainda, que o novo
casal pode ou no ter um filho em comum, assim como os co-irmos podem morar juntos
permanentemente, podem se visitar regularmente ou podem ser totalmente ausentes um da
vida do outro, o que aumentaria o nmero de possveis configuraes de famlia recasada.
Travis (2003) lembra-nos que as fronteiras biolgicas, geogrficas, legais e o
pertencimento dos membros so claramente definidos na famlia de primeiro casamento, ao
passo que, na famlia recasada, isso no acontece, pois alguns filhos ou enteados podem ser
29
vistos como hspedes peridicos. Alguns membros da famlia recasada pertencem, portanto, a
mais de um sistema familiar, e isso aumenta a possibilidade de surgimento de sentimentos de
ambigidade, o que freqentemente resulta em conflitos de lealdade e sentimento de culpa.
Tambm as relaes de parentesco so diferenciadas na famlia recasada, pois o parente de
um irmo pode no ser do outro.
1.2.2- Expectativas, crenas e mitos da famlia recasada
Um casal quando se une leva consigo uma srie de expectativas, explcitas e no-
explcitas a respeito do cnjuge e da relao. No recasamento, essas expectativas podem
adquirir uma dimenso ainda maior, uma vez que s expectativas dos prprios parceiros so
acrescidas as expectativas dos filhos e da famlia extensa acerca das relaes que se formam e
das funes que cada um passar a exercer na famlia.
Estudiosos apontam que bastante comum nas famlias recasadas os cnjuges, assim
como os filhos, possurem crenas e criarem expectativas bastante irrealistas acerca da
construo e manuteno das relaes familiares (VISHER & VISHER, 1988, PLACTOR &
VELASCO, 1989; VISHER et al. 1996; BERNSTEIN, 1999; GENOVESE & GENOVESE,
1997; COLEMAN & GANONG, 1997, 2003; OLIVEIRA et al. 1999; TRAVIS, 2003).
Na opinio dos autores e de profissionais que atuam junto s famlias recasadas, as
crenas irrealistas, tambm chamadas de mitos, so muitas vezes desencadeadoras de
frustraes e conflitos e, por isso, bastante importante que membros da famlia e
profissionais conheam tais crenas, para assim ser possvel reformular as expectativas
ligadas a elas de forma mais realista. Buscarei a seguir analisar as principais crenas ou mitos
presentes nas famlias recasadas, conforme apontado na literatura:
30
Crena de que as famlias recasadas so iguais s famlias nucleares Essa crena gera a expectativa de que a famlia recasada possua um funcionamento
igual ao das famlias nucleares. Visher e Visher (1988) lembram-nos que toda famlia possui
um sistema prprio e completo de crenas de como a famlia deve ser, e, no caso da famlia
recasada, esse sistema parece ser o menos congruente com a realidade vivida. Isso se justifica
pelo fato de a famlia recasada nascer de inmeras perdas; primeiramente a perda da famlia
nuclear, que seguida por vrias outras perdas emocionais, inclusive perdas materiais. Isso
confere famlia a necessidade de identificar e elaborar tais perdas para que novos projetos
possam ser realizados. Na viso de Placter e Velasco (1989), quando as perdas sofridas no
so elaboradas adequadamente, o modelo idealizado de famlia nuclear pode ser usado como
uma tentativa de refazer o que foi desfeito pelo divrcio, o que sem dvidas gerar uma srie
de expectativas impossveis de serem alcanadas, associadas ao desejo de constituir uma
famlia perfeita.
Crena de que a adaptao da famlia recasada acontecer rapidamente O mito da adaptao instantnea mais freqente entre homens do que entre mulheres
(VISHER & VISHER, 1988; TRAVIS 2003). Esse tipo de expectativa responsvel por uma
srie de decepes e at mesmo nova separao.
Crena de que o amor e o carinho entre os membros da nova famlia sero desenvolvidos automaticamente
O mito do amor instantneo, apontado por Visher e Visher (1988) e Placter e Velasco
(1989), explica a expectativa de que, pelo fato de os cnjuges se amarem, eles podero amar
tambm seus filhos instantaneamente. como se os cnjuges combinassem que gostaro dos
filhos do outro como se fossem seus. Visher e Visher (1988) explicam que a tentativa de
forar o aparecimento de sentimentos de amor e carinho que ainda no existem entre os
membros da famlia recasada pode gerar ressentimentos que dificultam a formao de laos
31
afetivos. Podemos pensar que essa idia tambm se aplica formao do vnculo entre os co-
irmos.
Crena de que deve haver um esforo intenso por parte da madrasta em agradar os enteados para no ser percebida como a madrasta malvada.
Esse mito apontado por Visher e Visher (1988) diz respeito tentativa da madrasta de
demonstrar que seu papel diferente daquele suscitado no imaginrio popular. A mulher
busca esforar-se para fazer a famlia feliz, a fim de no se enquadrar no esteretipo negativo
de madrasta. Tal comportamento pode acabar por gerar tenso familiar. Relacionado a essa
crena est o mito da responsabilidade sem direito (PLACTER & VELASCO, 1989). Este se
refere crena de que a madrasta pode e deve assumir toda e qualquer responsabilidade em
relao aos enteados, mas no pode limit-los ou frust-los.
Crena de que o afastamento da criana de seu pai ou me biolgica no- residente pode reforar a sua relao com o padrasto/madrasta.
A idia de que o afastamento da criana do seu pai/me biolgico pode fazer com que
ela se apegue ao padrasto/madrasta do mesmo sexo est relacionada tentativa de recriar a
familiar nuclear, uma vez que busca excluir aquele que pode interferir no processo.
Entretanto, estudos mostram que essa tentativa fracassada, pois, ao contrrio, uma relao
harmoniosa entre os pais biolgicos no-residentes e a famlia recasada tende a fortalecer o
vnculo entre enteado e madrasta/padrasto e facilitar a adaptao da criana. (VISHER &
VISHER, 1988; HETHERINGTON et al, 1998; BERNSTEIN, 1999, ISAACS, 2002;
DUNN, 2002; TRAVIS, 2003; COLEMAN & GANONG, 2003).
Crena de que qualquer evento familiar negativo acontece porque so membros de uma famlia recasada.
Visher e Visher (1988) explicam que freqente que os membros da famlia atribuam
qualquer evento negativo em suas vidas ao fato de eles fazerem parte de uma famlia
32
recasada, como, por exemplo, dificuldades escolares do filho, problemas de relacionamento
do filho fora de casa ou qualquer outra dificuldade ser atribuda ao recasamento.
1.2.3- Papis Familiares
Embora em nossa sociedade os papis de pai, me e filhos sejam relativamente bem
definidos na famlia intacta que vive o primeiro casamento, o mesmo no pode ser dito quanto
aos papis na famlia recasada.
No h uma clara definio para as funes de padrasto, madrasta e enteado. Tal
indefinio e falta de clareza podem ser facilmente e inicialmente constatadas quando se
busca nomear essas novas relaes. Embora os pesquisadores dos Estados Unidos, Canad e
de outros pases que falam lngua inglesa apontem inadequao na nomeao nas relaes no
recasamento, o cenrio ainda mais obscuro no Brasil, pois muitas dessas relaes no so
sequer nomeadas, em especial os irmos, os avs e demais parentes da famlia extensa (tios e
primos). Vrios estudiosos (VISHER & VISHER, 1988; CARTER & McGOLDRICK, 1995,
1999; OSRIO, 1996; OLIVEIRA et al., 1999; BERNSTEIN, 1999; BRUN, 1999;
WAGNER, 2002; TRAVIS, 2003) apontam que a falta de nomeao dificulta o
reconhecimento dos papis familiares, e, inclusive, denota efetivamente a falta de expectativa
social com relao a essas relaes, e eu concordo com tal opinio.
interessante o dado que nos traz Travis (2003): a palavra stepfamily s foi includa
no Oxford Dictionary em julho de 1995, depois de uma representao feita pela National
Stepfamily Association. No Brasil, o termo recasamento no configura ainda nos principais
dicionrios da Lngua Portuguesa: Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, Michaelis -
Moderno Dicionrio da Lngua Portuguesa e Dicionrio Aurlio Bsico da Lngua
Portuguesa, o que efetivamente demonstra a nossa pouca familiaridade lingstica com o
assunto.
33
Outro aspecto relevante a ser observado com relao aos papis na famlia recasada,
especificamente com relao aos papis conjugais e parentais, diz respeito s rpidas
transformaes vividas nas funes familiares, exigindo que mltiplos papis sejam
assumidos aps a unio, sem um tempo suficiente de adaptao. Este aspecto comentado,
tanto por Genovese e Genovese (1997), como por Carter e McGoldrick (1995), que comparam
a experincia do primeiro casamento e do recasamento. Em famlias de primeiro casamento,
h uma progresso passo a passo na aquisio de papis, haja vista que nele se vivencia o
namoro, o casamento e a paternidade. H nesse caso, a possibilidade de os cnjuges
desfrutarem um tempo para adaptao vida a dois, possibilitando ao casal funcionar como
uma unidade. Com a chegada do primeiro filho, eles vivenciam juntos a passagem para a
parentalidade e assumem os papis de pai e me. No recasamento, um dos membros do casal
dever assumir simultaneamente os papis de madrasta/padrasto e de cnjuge, sem dispor de
tempo ou privacidade suficiente para assimilar as novas funes.
Para Carter e McGoldrick (1999), um dos principais fatores a que podemos associar a
complexidade, o conflito e a ambigidade dos papis de padrasto e madrasta na famlia
recasada justamente a falta de diferenciao das funes de pai/me e de
padrastro/madrasto. Com relao madrasta, a ambigidade sobre o seu papel parental
particularmente acentuada quando o enteado criana e permanece na custdia da ex-esposa
de seu marido. Nessa situao, que a mais freqente, a madrasta sente-se menos envolvida e
apegada emocionalmente criana e tem de lidar com o fato de seu marido ser parceiro de sua
ex-esposa e no dela na funo de co-parentar. Com relao ao padrasto, este freqentemente
se v no duplo e ambivalente lugar de intruso e de heri que resgata a famlia. Muitas vezes
solicitado a ajudar a disciplinar o enteado, mas tambm criticado pelo prprio enteado e/ou
pela me pela interveno.
34
Sobre a questo disciplinar, Genovese e Genovese (1997) reforam o quanto esta
pouco clara e indefinida em famlias recasadas. Tanto madrastas quanto padrastos podem se
ver diante de situaes em que a imposio de limites se faz necessria, mas que sua
interveno seguida de afirmaes do tipo voc no manda em mim, voc no da
minha famlia, o que faz acentuar a ambigidade e o conflito. As autoras lembram que os
conflitos entre os membros do casal sobre o estilo de educar os filhos esto associados ao
insucesso das relaes conjugais.
Sobre a diviso de tarefas relacionadas ao bem-estar dos filhos, esta geralmente feita
por gnero, ou seja, os homens so tradicionalmente responsveis pelas despesas e as
mulheres pelos cuidados com os filhos. Wagner e Sierra (1999) realizaram um estudo
comparativo entre adolescentes provenientes de famlias de primeiro casamento e de famlias
recasadas e identificaram que, mesmo nas famlias recasadas, as funes culturalmente
associadas ao gnero masculino e ao gnero feminino se mantm. As autoras concluem que
... os valores, as atitudes e as funes ditas novas e modernas esto convivendo com
concepes arcaicas nos ncleos familiares de hoje em dia (WAGNER & SIERRA, 1999,
p.26).
Carter e McGoldrick (1999) e Travis (2003) afirmam que essa diviso tradicional de
papis, feita a partir de diferenas de gnero, pode gerar conflitos na famlia recasada, pois
tanto o padrasto quanto a madrasta podem no concordar com a idia de cumprir as
responsabilidades parentais que lhe so atribudas (seja a de pagar as despesas, seja a de
cuidar dos enteados), o que exigir da famlia uma reviso na diviso de papis.
Outro aspecto a ser evidenciado quanto aos papis na famlia recasada refere-se
modificao na posio dos filhos. Mudanas na posio acarretaro, como conseqncia,
mudanas hierrquicas e de funes dentro da famlia, pois podemos encontrar, por exemplo,
casos em que o filho caula, o filho mais velho ou o filho nico perdem tais papis, devido
35
nova configurao familiar. As fratrias passam por transformaes, ampliam-se para incluir
novos membros e, a partir da, novas negociaes, novas relaes e novos vnculos sero
formados, o que se constitui o foco deste estudo. Esse tpico ser retomado e aprofundado no
captulo quatro (Irmos e Recasamento) e ser objeto de investigao na pesquisa de campo.
1.2.4- Afetividade na famlia recasada
A afetividade na famlia recasada um aspecto que merece especial ateno, pois,
conforme indicam pesquisadores e terapeutas (TRAVIS, 2003; CARTER & MCGOLDRICK,
1999; WAGNER & SIERRA, 1999; GENOVESE & GENOVESE, 1997; ROBINSON, 1993;
VISHER & VISHER, 1988; SAGER et al., 1983), intensos sentimentos conflitantes so
comuns no recasamento. A ambigidade de sentimentos gera conflitos de lealdade, os quais
perpassam os membros da famlia recasada em diferentes momentos de seu convvio, assim
como gera triangulaes familiares.
Um conflito de lealdade comum desencadeado pela percepo dos filhos de que sua
participao numa nova famlia exclui membros de sua famlia biolgica, assim como a
vivncia de sentimentos positivos em relao sua nova famlia. Conforme nos lembram
Carter e McGoldrick (1999), os filhos sempre sero leais aos pais biolgicos e uma das
maiores dificuldades para os pais deixar seus filhos sentirem e expressarem sentimentos
negativos e positivos em relao a pais e padrastos. O conflito pode estar presente em vrios
sentidos, conforme nos evidenciam as autoras:
Um progenitor pode proibir um filho de expressar sentimentos negativos em relao a um progenitor que morreu ou proibir de expressar sentimentos positivos em relao a
um progenitor que se divorciou ou abandonou ou ainda exigir a total lealdade dos
filhos;
36
A criana, por sua vez, pode sentir que se amar um dos pais ir de alguma forma magoar o outro; pode sentir que se no amar o padrasto ou madrasta poder magoar e
despertar raiva de um progenitor ou pode sentir que se amar realmente o padrasto ou
madrasta estar sendo desleal em relao ao progenitor.
Visher e Visher (1988), em sua obra em que focalizam justamente os novos laos e
as velhas lealdades, apontam que sentimentos como culpa, cimes, raiva e depresso,
gerados por conflitos de lealdade interpessoais, sempre surgem entre os membros da famlia
recasada. Segundo os autores, na famlia nuclear intacta o compromisso fundamental de
lealdade refere-se manuteno do prprio grupo.
No caso da famlia recasada, os membros levam para o novo grupo familiar, por um
lado, o sentimento de lealdade relacionado ao passado e, por outro, pouca lealdade em relao
aos novos membros da famlia. Esses sentimentos acabam por gerar triangulaes familiares.
Essas triangulaes so criadas pelos conflitos de lealdade que acabam por dividir a famlia
em times ou lados. Os autores afirmam que os conflitos de lealdade afligem tanto as
crianas quanto os adultos. Sobre os conflitos de lealdade dos filhos, seus apontamentos so
semelhantes aos de Carter e McGoldrick (1999): o principal conflito diz respeito relao
com seus pais biolgicos, conforme explicitado anteriormente. Com relao aos adultos, os
dois principais conflitos do cnjuge recasado referem-se ao sentimento de diviso entre seu
novo par e seus filhos e ao sentimento de diviso entre seus filhos biolgicos e os enteados.
Tanto Visher e Visher (1988) como Sager (1983) afirmam que o conflito interno dos
pais entre o amor pelos filhos e o amor pelo novo cnjuge a maior fonte de tenso na famlia
recasada. Acreditam que os pais podem vivenciar um sentimento de culpa, como se
estivessem traindo suas relaes com os filhos. O segundo tipo de conflito de lealdade
apontado por Visher e Visher (1993), tambm discutido por Carter e McGoldrick (1999),
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pode ocorrer quando ambos os parceiros tm filhos, gerando, portanto, ambigidade com
relao aos sentimentos direcionados aos filhos e aos enteados. Gostar mais ou gostar menos,
cuidar dos enteados quando deveria estar cuidando dos seus filhos biolgicos, exercer tarefas
parentais para os enteados enquanto os filhos biolgicos moram em outra casa, enfim, esses e
outros dilemas podem gerar sentimentos de culpa e raiva.
Segundo Travis (2003), a famlia extensa tambm pode ser geradora de conflitos de
lealdade. Os avs, por exemplo, podem ter dificuldade em aceitar uma nova nora ou genro.
Podem, ainda, tentar manter uma relao muito prxima com a me ou o pai biolgico de seus
netos, fazendo com que o novo cnjuge se sinta excludo da famlia. O mesmo pode acontecer
com tios, cunhados e primos.
1.2.5- Fronteiras
As fronteiras familiares remetem-nos ao processo de incluso e excluso familiar. De
acordo com Sager (1983), o termo refere-se aos fatores que contribuem para o senso de
identidade da famlia. Para o autor, as fronteiras podem ser objetivas, como as paredes ou
muros de uma residncia que nos separam de nossos vizinhos, ou podem ser subjetivas, tais
como as fronteiras que definem o grau de intimidade e proximidade fsica que os membros da
famlia tm uns com os outros.
Boss (1980) conjuga dessa idia e afirma que as fronteiras abarcam um fenmeno
tanto fsico quanto psicolgico, cuja funo promover um senso de identidade que
diferencia os membros de um grupo familiar de outro, assim como de outros grupos. De
acordo com Minuchin (1982), as fronteiras dentro do sistema familiar constituem-se regras
que definem quem participa da famlia e como.
Ao abordar a questo das fronteiras na famlia recasada, tem-se como aspecto central a
ambigidade. Para Genovese e Genovese (1997), a ambigidade fruto da incerteza em
38
relao a quem considerado membro da famlia ou no e que funes deve desempenhar na
nova estrutura. Segundo as autoras, a reorganizao de funes e papis dificultada pelo fato
de que a ausncia fsica de familiares no implica, necessariamente, sua ausncia psicolgica.
Boss e Greenberg (1984) tambm apontam que a as fronteiras ambguas so fruto da falta de
clareza sobre quem pertence ou no famlia e sobre as tarefas e papis a serem
desempenhados por cada um. Para ele, a ambigidade nas fronteiras tem sido associada a um
aumento no estresse familiar e disfuno da famlia.
Estudiosos como Boss e Greenberg (1984), Robinson (1993), Pasley (1987) e Travis
(2003) apontam que fronteiras ambguas so mais comuns em famlias recasadas do que em
famlias de primeiro casamento. Em famlias de primeiro casamento, a ligao entre as
pessoas definida biologicamente, legalmente e espacialmente e caracterizada por fronteiras
explcitas. As famlias recasadas so geralmente caracterizadas por fronteiras determinadas
mais subjetivamente, considerando-se tanto a freqncia de contato quanto a natureza
voluntria das relaes.
Podemos pensar em alguns exemplos dessa subjetividade e falta de clareza presente na
formao das fronteiras familiares: a residncia e o sobrenome comum de pais biolgicos e
seus filhos em famlias de primeiro casamento so marcos fsicos de fronteiras indisponveis
em famlias recasadas; os filhos, no recasamento, mantm relaes em duas residncias,
simultaneamente; dependendo do tipo de guarda e dos arranjos de visita, os filhos podem no
considerar os co-irmos como membros da famlia recasada; enquanto o pai/me biolgico
pode considerar o filho como membro familiar, a madrasta/padrasto pode ter alguma dvida
sobre seu pertencimento nova famlia; geralmente pai biolgico e padrasto podem dividir
responsabilidade econmica pelo filho assim como algum grau de autoridade parental em
termos de cuidados dirios, mas os direitos legais dos padrastos so inexistentes. Esses e
outros exemplos evidenciam a definio complexa e pouca clara das fronteiras.
39
Pasley (1987), em pesquisa realizada com 272 casais americanos recasados,
identificou que o local de residncia um fator determinante na ambigidade de fronteiras.
Cada cnjuge identificou separadamente os membros de sua famlia, e a situao ambgua
fica evidente em relao aos filhos. Quando o filho ou filha do marido morava com a me
biolgica, ele(a) no era considerado um membro da famlia recasada por muitas das esposas
e at mesmo por alguns pais biolgicos. No mesmo ano, Furstenberg (apud TRAVIS, 2003)
realizou uma pesquisa de mbito nacional nos Estados Unidos, abrangendo 1747 residncias,
e concluiu que havia discordncia entre pais e filhos quanto incluso dos membros das
famlias recasadas, mesmo quando moravam no mesmo domiclio, no sendo este, portanto, o
fator central na definio do pertencimento. Quinze por cento dos homens que possuam
enteados morando na mesma casa no os listaram como membros da famlia e 31% dos
enteados deixaram de mencionar padrastos e madrastas residentes. Apenas 1% dos pais
biolgicos deixou de mencionar seus filhos (mesmo quando no residentes); 9% dos filhos
biolgicos no mencionaram o pai e 7% no mencionaram a me. Travis (2003) aponta que
essas opinies permaneceram inalteradas ao longo do tempo. Dados como esses nos
evidenciam a necessidade de mais pesquisas sobre a formao de fronteiras, por ser este um
fator muito importante para o funcionamento saudvel das famlias recasadas.
Carter e McGoldrick (1995) tambm apontam que as dificuldades de fronteiras so
freqentes e centrais na famlia recasada e incluem questes de associao (quem so os
verdadeiros membros da famlia?); espao (qual o meu espao? A qual lugar eu realmente
perteno?); autoridade (quem est realmente no comando da disciplina, do dinheiro, das
decises, etc?); tempo (a quem dedicar meu tempo e quanto tempo eu recebo deles?). As
autoras apontam que esse grupo de questes central e deve ser negociado pelas famlias:
necessria uma grande flexibilidade para que a famlia constantemente expanda e contraia suas fronteiras, inclua as crianas em visita e depois as deixe partir, ao mesmo tempo em que se estabelece o estilo de vida saudvel. (p.350)
40
1.2.6- A famlia recasada formada aps a morte de um cnjuge
A maior parte das pesquisas sobre o recasamento tem como foco a famlia que se
forma aps o divrcio dos cnjuges. Conhecer a dinmica da famlia recasada que se forma
aps a morte de um cnjuge recebeu menos ateno dos estudiosos da rea. Podemos
encontrar contribuies de Carter e McGoldrick (1999) e de McGoldrick (1996 apud
CARTER & MCGOLDRICK ,1999) sobre o tema. As autoras nos apontam algumas questes
diferentes encontradas nas famlias recasadas que so formadas aps a morte prematura de um
dos cnjuges. Essas questes esto ligadas a questes de gnero, ou seja, se o recasamento
da me ou do pai. O recasamento do pai aps a morte da me parece ser o mais difcil em
termos de aceitao dos filhos; entretanto, Carter e McGoldrick (1999) afirmam que os filhos
podem aceitar uma madrasta, se o pai os ajudar a elaborar o luto pela perda da me antes de
confront-los com a nova mulher, pois, caso contrrio, se uma ateno insuficiente for dada
ao luto infantil, eles podero nunca aceit-la. As autoras tambm apontam que o pai deve
ajudar as crianas a aceitar a nova pessoa do jeito que ela , em vez de se juntar s crianas
na tentativa e no desejo de que a famlia continue exatamente do mesmo jeito que era quando
a me era viva. As autoras afirmam que, quando o recasamento da me, o padrasto pode ser
visto em alguns casos como uma pessoa que resgata a famlia de um desamparo financeiro.
Carter e McGoldrick (1999) lembram-nos que, embora parea haver certas vantagens
em se formar uma famlia recasada aps a morte de um dos cnjuges, por no haver um ex-
cnjuge por perto para interferir, os fantasmas podem ainda ser mais poderosos,
principalmente pelo fato de as pessoas apresentarem a tendncia de idealizar algum que
morre prematuramente. Dentre todos os tringulos que podem se formar na famlia recasada,
um dos mais difceis de reconhecer e lidar aquele em que uma das pessoas envolvidas no
tringulo uma pessoa morta, mas, conforme ensinam as autoras, Conversar, lembrar e
reconhecer as falhas e virtudes da pessoa que se foi, ajuda a exorcizar o fantasma, mas nada
41
pode ser feito sem a liderana ativa do pai/me biolgico que permaneceu (CARTER &
MCGOLDRICK,1999, p.422)
1.2.7- A vivncia do recasamento em diferentes fases do ciclo vital
bastante til compreenso da dinmica e da estrutura das famlias recasadas inclu-
las na perspectiva do ciclo vital familiar. Carter e McGoldrick (1999) afirmam que bastante
difcil localizar a famlia recasada numa determinada fase do ciclo, uma vez que dois
subsistemas, agora unidos pelo recasamento, podem vir de fases bastante diferentes. Cerveny
e Berthoud, (1997), entretanto, nos oferecem uma viso diferente, com a qual compartilho,
quando apontam que, embora cada parceiro venha de experincias diferentes e de fases
diferentes do ciclo vital, ao se unirem pelo recasamento, vivero juntos a Fase de Aquisio, a
primeira fase do ciclo vital, segundo proposta terica de Cerveny (1997). Esta uma fase em
que h o predomnio da tarefa de adquirir, seja essa aquisio material, emocional ou
psicolgica. Assim, aqueles casais que se unem pela segunda ou terceira vez, j estabelecidos
profissionalmente muitas vezes e com a responsabilidade de cuidar e/ou sustentar os filhos de
unies anteriores, tambm se constituem famlias em fase de aquisio. Tais casais talvez no
tenham que se preocupar com bens materiais ou com ascenso profissional, mas certamente
passaro pelo processo de aquisio e construo de vnculos com os sistemas familiares de
origem de ambos, com os sistemas familiares de seus ex-parceiros e com os filhos e enteados,
buscando a adaptao, a integrao e a verdadeira formao da nova famlia.
Carter e McGoldrick (1999) afirmam que, em geral, quanto maior a discrepncia em
experincia no ciclo vital dos novos cnjuges (cnjuges que vivenciavam fases diferentes na
primeira unio), maior ser a dificuldade de transio e mais demoradas sero a adaptao e a
integrao da famlia. Quando os cnjuges no recasamento apresentam tal caracterstica, a
unio deve ser vivida como um processo em que ambos precisam aprender a funcionar em
42
fases distintas simultaneamente e fora de sua seqncia normal. Como exemplo, podemos
imaginar uma famlia em que uma nova esposa deve assumir o papel de madrasta de um
adolescente sem antes ter se tornado uma esposa experiente e me de seus prprios filhos, e
cujo marido ter que reviver com ela fases que j viveu: lua-de-mel, nascimento dos filhos
deles, etc. Quando os cnjuges vivenciaram anteriormente a fase do ciclo vital, possuem a
vantagem de trazer nova famlia as mesmas tarefas de ciclo de vida e a mesma experincia
prvia em geral.
Segundo Cerveny e Berthoud (2002), no recasamento, o processo de formao do
casal caracterstico da fase de aquisio diferenciado, uma vez que apresenta elementos
emocionais e relacionais diferentes do processo de primeira unio. O processo de adaptao
pode ser facilitado pela maturidade, porm pode ser dificultado pela excessiva autonomia
pessoal, o que gera dificuldades de negociar padres de rotina de vida e de regras de
convivncia. A adaptao dos filhos de unies anteriores tambm apontada como um
aspecto que dificulta a adaptao. Essa idia vem ao encontro da de Carter e McGoldrick
(1999), pois afirmam que as famlias recasadas mais complexas so na maioria aquelas em
que um ou ambos os filhos tem menos de dezoito anos.
Para Visher e colaboradores (1997), as principais questes dos filhos no recasamento
so lidar com as perdas e com as lealdades divididas, fazer parte de duas famlias e lidar com
as questes de fronteiras (a que famlia perteno?), lidar com fantasias sobre a re-unio dos
pais biolgicos e a culpa de ter provocado o divrcio. Para os filhos adolescentes, acrescenta-
se lidar com a identidade e sexualidade. Os autores apontam que os filhos em idade pr-
escolar podem se adaptar mais facilmente nova famlia, desde que sejam ajudados a lidar o
luto pelas perdas anteriores, e que o ajustamento dos adolescentes o mais difcil.
Quando o recasamento ocorre estando os cnjuges numa fase posterior criao dos
filhos (fase madura ou fase ltima), embora no haja a tenso tpica da convivncia diria
43
entre enteados e padrastos, ser exigido dos cnjuges um ajustamento significativo nos
relacionamentos dos dois sistemas familiares, especialmente porque h agora a presena no
apenas dos filhos adultos, mas tambm de noras, genros e netos. Carter e McGoldrick (1999)
descrevem que a aceitao facilitada quando o recasamento ocorre aps a viuvez, uma vez
que os filhos se sentem aliviados pelo fato de o pai/me ter encontrado um companheiro numa
fase tardia, ao passo que o divrcio geralmente provoca preocupao e espanto.
1.2.8- O Ciclo Vital da famlia recasada
Diferentes estudiosos do recasamento propem que analisemos a famlia recasada com
base na perspectiva do seu prprio ciclo vital (CARTER & MCGOLDRICK, 1995, 1999;
VISHER & VISHER, 1988; ROBINSON, 1993; PAPERNOW, 1984 apud ROBINSON,
1993) . Aps a leitura dos esquemas de desenvolvimento apresentados pelos autores citados,
considerei bastante abrangentes e complementares as propostas de Robinson (1993) e de
Carter e McGoldrick (1999), que nos levam a refletir sobre todo o ciclo de transformao da
famlia durante o recasamento e que integram todos os aspectos analisados ao longo deste
tpico (A Famlia Recasada numa Perspectiva Sistmica).
Para Robinson (1993), mudanas de segunda ordem (aquelas que resultam em
mudanas no corpo das regras que governam a estrutura ou ordem interna do sistema) so
exigidas na estrutura e funcionamento da famlia recasada, a fim de se restabelecer o
funcionamento familiar. O ciclo vital da famlia recasada proposto pela autora apresenta sete
fases, cada uma com suas tarefas emocionais prprias, relacionadas ao processo de transio e
as mudanas de segunda ordem necessrias para se mover para a fase seguinte. As fases no
so vistas como estanques e distintas, mas, ao contrrio, as interaes que as compem so
circulares ao invs de lineares e precisam ser trabalhadas pela famlia nos sete nveis
simultaneamente. As fases so: novos recomeos, esforos de assimilao, conscincia,
44
reestruturando, ao, integrando e resoluo. Pode-se perceber que a maior tarefa ao longo de
todo o ciclo de desenvolvimento do sistema familiar recasado o reconhecimento e a
aceitao de que a famlia recasada no uma famlia nuclear e que a tentativa de funcionar
como um sistema relativamente fechado pode provavelmente lev-la ao fracasso.
Representarei abaixo o quadro proposto por Robinson (1993, p.126-127) para a
compreenso do ciclo vital da famlia recasada.
Fase Processo Emocional de
transio do casal
Mudanas de segunda ordem exigidas do
status familiar para prosseguir
desenvolvimentalmente
Novos recomeos
Reconhecimento dos mitos e
fantasias sobre famlias
recasadas.
Reconhecimento da necessidade de co-
parentar enquanto se resolve o divrcio
emocional;
Reconhecimento que os vnculos entre pais e
filhos precedem os vnculos do recasamento.
Esforos de
assimilao
Dar tempo e espao para o
padrasto ou madrasta e o enteado
desenvolverem seus prprios
relacionamentos.
Reconhecimento do luto, do cime e dos
conflitos de lealdade pela perda do sistema
familiar original intacto.
Conscincia Reafirmar as fronteiras
generacionais e de co-habitao
Reconhecimento da posio e da autoridade
do pai biolgico;
Reconhecimento do lugar do
padrasto/madrasta.
Reestruturando Mobilizao e levantamento das
dificuldades
Aceitao de que as mudanas so
necessrias para a famlia recasada tornar-se
funcional.
Ao Comeando a trabalhar junto
Criao de novas regras, rituais e fronteiras
que so alcanadas atravs de renegociaes
na rede familiar.
Integrao Alcanar contato e intimidade na
famlia recasada
Padrasto/madrasta deve alcanar um papel
nico em que no haja competio ou
usurpao do papel dos pais biolgicos. Os
papis devem incluir fronteiras generacionais
entre padrastos/madrastas e crianas.
45
Fase Processo Emocional de
transio do casal
Mudanas de segunda ordem exigidas do
status familiar para prosseguir
desenvolvimentalmente
Resoluo:
Tornando-se uma
famlia binuclear
Acolhendo e deixando partir
Abandonar as ltimas esperanas de viver
como uma famlia nuclear;
Desenvolver habilidades de negociar rituais
familiares e mudanas de acesso e custdia.
Figura 1- O ciclo vital da famlia recasada: transformao da famlia durante o recasamento (ROBINSON, 1993, p.126-127)
Carter e McGoldrick (1999) propem um sumrio desenvolvimental, enfatizando que
o processo emocional para a transio para o recasamento inicia-se j com a luta da pessoa, do
novo parceiro e dos filhos contra os medos em investir em uma nova famlia. Para as autoras,
a famlia recasada leva no mnimo dois anos para se estabilizar, dado que foi constatado em
observao clnica com essa populao. Apontam trs etapas a serem vivenciadas at essa
estabilizao, indicando as atitudes essenciais envolvidas e as questes desenvolvimentais
referentes, as quais podem ser observadas no quadro abaixo:
Etapas Atitude Essencial Questes Desenvolvimentais
Iniciando o novo
relacionamento
Recuperao em relao perda do
primeiro casamento (divrcio
emocional adequado).
Recomprometimento com o
casamento e com a formao de uma
famlia, com disposio para lidar
com a complexidade e a
ambigidade.
Conceitualizando e
planejando o novo
casamento e a nova
famlia
Aceitar os prprios medos e os do
cnjuge e dos filhos em relao ao
recasamento e formao de uma
famlia por segundo casamento.
Aceitar a necessidade de tempo e
pacincia para o ajustamento
complexidade e ambigidade de:
1- Mltiplos papis novos;
2- Fronteiras: espao, tempo,
condio de fazer parte da famlia,
a- Trabalhar a honestidade nos novos
relacionamentos para evitar
pseudomutualidade.
b- Planejar a manuteno de
relacionamentos financeiros e de co-
paternidade cooperativos com os ex-
cnjuges.
c- Planejar como ajudar os filhos a
lidarem com seus medos, conflitos de
lealdade, e condio de fazer parte de
46
autoridade;
3- Questes afetivas: culpa, conflitos
de lealdade, desejo de mutualidade,
mgoas passadas no resolvidas.
dois sistemas.
d- Realinhamento dos
relacionamentos com a famlia
ampliada para incluir o novo cnjuge
e filhos.
Planejar a manuteno da conexo
das crianas com a famlia do ex-
cnjuge.
Recasamento e
reconstituio da famlia
Resoluo final do apego ao cnjuge
anterior e ao ideal da famlia intacta;
Aceitao de um modelo diferente
de famlia com fronteiras
permeveis.
a- Reestruturao das fronteiras
familiares para permitir a incluso do
novo cnjuge-padrasto ou madrasta;
b- Realinhamento dos
relacionamentos e arranjos
financeiros em todos os subsistemas
para permitir o entrelaamento de
vrios sistemas;
c- Criar espao para os
relacionamentos de todos os filhos
com os pais biolgicos sem custdia,
avs e o restante da famlia ampliada;
d- Compartilhar lembranas e
histrias para aumentar a integrao
da famlia por segundo casamento.
Figura 2- Formao da Famlia Recasada: Um Sumrio Desenvolvimental. (CARTER & MCGOLDRICK, 1999, 377)
Uma sinttica visita por todo o ciclo proposto por Robinson (1993) e Carter e
McGoldrick (1999) permite-nos concluir que as idias centrais e que permeiam o ciclo de
desenvolvimento da famlia recasada apontadas por ambas so bastante semelhantes, embora
Robinson (1993) divida o ciclo em sete etapas e Carter e McGoldrick (1999) em trs. Fica
evidente para mim que os processos chaves enfatizam fenmenos psicolgicos que apontam
para a necessidade de se lidar com a ambigidade da nova estrutura, de renegociar as novas
relaes familiares e especialmente de reconhecer e viver essa nova famlia como diferente da
famlia tradicional intacta. Acredito que esses sejam pontos fundamentais para o
47
funcionamento saudvel da famlia recasada e que contribuam para o desenvolvimento de
relaes positivas entre seus membros. No poderia deixar de apontar a necessidade de
realizao de uma pesquisa nacional sobre o ciclo vital da famlia recasada, pois,
indubitavelmente, nosso contexto sociocultural marca diferenas importantes no
desenvolvimento dessas famlias, que precisam ser conhecidas com maior profundidade pelos
profissionais da rea.
48
1.3- A Famlia Recasada como objeto de Pesquisa: 30 anos de Investigao
Meu objetivo nesta subseo apresentar como o tema recasamento tem sido
retratado na literatura cientfica nacional e internacional, com base no levantamento e anlise
das produes da rea nas dcadas de 70, 80, 90 at 2004, pertencentes aos bancos de dados
da APA (American Psychological Association), do Portal de Teses e Dissertaes da CAPES
(Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) e do IBICT (Instituto
Brasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia), da Scielo (Scientific Electronic Library
on Line) e da Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe de Cincias da Sade).
Considero importante esse tipo de anlise para elucidar reas suficientemente exploradas e
que apresentam conhecimento consolidado por pesquisas ao longo das dcadas, assim como
para explicitar possveis lacunas, que se constituem temas que necessitam de maior
investimento terico e prtico. Os bancos de dados apresentados acima foram escolhidos pela
sua notvel confiabilidade e representatividade na Psicologia, considerando que os trabalhos
nele encontrados representam seguramente o cenrio cientfico existente, tanto nacional como
internacional.
1.3.1- Literatura Estrangeira
1.3.1.1- APA (American Psychological Association)
No banco de dados da APA, composto por livros, artigos, teses e dissertaes, em sua
grande maioria, produzidos nos Estados Unidos, foram encontradas 566 publicaes sobre o
assunto stepfamily, tendo sido 24 delas descartadas por no apresentarem o recasamento
como tema central.
Uma anlise global permite constatar que, embora o tema tenha surgido no cenrio
cientfico na dcada de 70, e que a dcada de 80 tenha sido um perodo produtivo na rea, foi
49
na dcada de 90 que ocorreu o maior nmero de pesquisas sobre o recasamento, e, ao longo
dos ltimos anos, uma ampla gama de novas temticas foi surgindo em torno do assunto, o
que reflete justamente a demanda de uma sociedade em constante transformao.
Para facilitar a anlise e a exposio, agrupei as publicaes em sete categorias,
apresentadas na tabela abaixo:
Nmero de publicaes Categorias Subcategorias Dcada
de 70 Dcada de 80
Dcada de 90
2000-2004
Total
1.1- Processos da famlia recasada 2 35 73 30 140
1.2- Relacionamento entre pais, mes, padrastos , madrastas e filhos
0 14 34 22 70
1.3- Relacionamento entre irmos, meio-irmos e co-irmos
0 3 8 4 15
1- Dinmica da famlia Recasada
1.4- Relacionamento entre avs e netos
0 0 7 2 9
2- Interveno junto famlia Recasada 1 32 58 14 105
3- Efeitos do Recasamento 0 16 64 20 100
4- Viso sobre a famlia recasada 0 7 22 7 36
5- Recasamento e questes diversas 0 5 15 10 30
6- Reviso de Literatura 0 7 11 5 23
7- Dados demogrficos, polticas pblicas e questes legais 0 4 8 2 14
Total 3 122 300 116 542
Figura 3- Publicaes sobre Recasamento nos ltimos 30 anos da APA (American Psychological Association)
CATEGORIA 1- DINMICA DA FAMLIA RECASADA
Com um total de 234 publicaes, a dinmica da famlia recasada tm sido a temtica
mais pesquisada da rea. Nessa categoria esto includas as pesquisas sobre os processos da
famlia recasada (dinmica, qualidade e estabilidade da relao conjugal, fronteiras,
triangulaes, papis, tenses, identidade da famlia, fases da famlia recasada, recasamento e
ciclo vital); relacionamento entre pais, mes, padrastos e madrastas; relacionamento
50
entre irmos, meio-irmos e co-irmos; e relacionamento entre avs e netos. Tais
subcategorias foram criadas para facilitar a visualizao dos estudos, conforme suas nfases.
1.1- Processos da famlia recasada
O interesse em se compreender os processos vivenciados pela famlia recasada j fica
evidenciado desde a dcada de 70, quando foram escritos dois trabalhos. Um deles, intitulado
Divrcio e Recasamento: um novo comeo, uma nova srie de problemas (JONES &
SHIRLEY, 1978), alerta que esta uma era de divrcios e recasamentos, mas que nem os
indivduos envolvidos nem a sociedade em geral encontram-se preparados para lidar com o
recasamento. Aponta que a sociedade americana apresenta uma tendncia em glorificar a
famlia nuclear, estigmatizando a famlia recasada, o que dificulta a adaptao e as relaes.
Partindo dessa constatao, discute as tenses e problemas vividos.
Um segundo trabalho da dcada, de autoria de Visher e Visher (1978), tambm
enfatiza as reas de maiores dificuldades para os casais recasados: problemas relacionados aos
filhos, dificuldades financeiras e desentendimentos conjugais.
Da nfase exclusiva nas dificuldades da famlia recasada na dcada de 70, j
encontramos na dcada de 80 alguns trabalhos que enfocam no apenas os aspectos negativos,
mas tambm as possibilidades de funcionamento saudvel desse tipo de famlia
(SIRULNICK, 1981; PITTMAN, 1983; HARTELL & GAY, 1985; MAJOR, 1989; RIGGS,
1989). Outros temas que despontam so: papis dos membros da famlia e suas respectivas
autoridades e responsabilidades; questes financeiras da famlia recasada; coeso e
adaptabilidade da famlia; formao de identidade familiar; funo dos rituais familiares;
fronteiras e ambigidade; ciclo vital da famlia recasada. De forma geral, percebe-se o
interesse na poca e a demanda de se compreender de forma global o funcionamento e a
51
dinmica da famlia que se formava a partir do recasamento e que se fazia cada vez mais
presente na sociedade americana, conforme indicavam os estudos demogrficos.
Na dcada de 90, os nmeros indicam que houve investimento ainda