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1 ADRIANA LEONIDAS DE OLIVEIRA “IRMÃOS, MEIO-IRMÃOS E CO-IRMÃOS”: A Dinâmica das Relações Fraternas no Recasamento DOUTORADO: PSICOLOGIA CLÍNICA PUC-SP 2005

Irmãos

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Psicologia da familia

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  • 1

    ADRIANA LEONIDAS DE OLIVEIRA

    IRMOS, MEIO-IRMOS E CO-IRMOS:

    A Dinmica das Relaes Fraternas no Recasamento

    DOUTORADO: PSICOLOGIA CLNICA

    PUC-SP

    2005

  • 2

    ADRIANA LEONIDAS DE OLIVEIRA

    IRMOS, MEIO-IRMOS E CO-IRMOS:

    A Dinmica das Relaes Fraternas no Recasamento

    Tese apresentada Banca Examinadora da

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,

    como exigncia parcial para obteno do ttulo

    de DOUTOR em Psicologia Clnica sob

    orientao da Prof Doutora Ceneide Maria de

    Oliveira Cerveny.

    DOUTORADO: PSICOLOGIA CLNICA

    PUC-SP

    2005

  • 3

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

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    Wilber e Victor

    Dedico a vocs este trabalho e agradeo pela forma carinhosa e compreensiva que perdoaram minhas ausncias neste momento e pela

    imensa alegria que me trazem todos os dias! Formar com vocs uma famlia minha grande conquista e minha maior

    felicidade!

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Ao longo deste trabalho pude contar com o apoio e a colaborao de pessoas especiais,

    as quais eu gostaria de agradecer nesse momento.

    Minha querida orientadora Dra. Ceneide Cerveny. Tenho por voc uma profunda

    admirao pela sua sabedoria, pela sua imensa generosidade em dividir conhecimento e pela

    sua capacidade de ser verdadeiramente uma ORIENTADORA. Ao longo deste trabalho, voc

    me permitiu escolher os caminhos, me permitiu caminhar no meu prprio ritmo, e acima de

    tudo, esteve do meu lado em todos os momentos. Agradeo pelo conhecimento transmitido,

    pelo apoio proporcionado e pela confiana. Sinto que no tenho palavras suficientemente

    completas para expressar o seu importante papel em minha vida profissional e pessoal! Muito

    obrigada!

    querida amiga Dra. Cristiana Berthoud. Gostaria de reafirmar nesse momento o

    quanto voc foi importante ao longo de todo esse trajeto. Como minha professora na

    graduao e na ps-graduao e como minha colega na vida acadmica, voc me mostrou o

    que fazer pesquisa com muita seriedade, tica e paixo! Voc para mim um modelo de

    profissionalismo e de competncia. uma grande honra ser hoje sua PARCEIRA de trabalho!

    Muito obrigada pelo apoio que sei que posso sempre contar!

    Dra. Rosa Macedo. Seu profundo conhecimento sobre as relaes familiares

    contemporneas, generosamente dividido ao longo das disciplinas cursadas no doutorado,

    muito contribuiu para que eu pudesse incorporar ao meu trabalho uma viso ainda mais

    atualizada e pertinente. Muito obrigada pela oportunidade de compartilhar conhecimento e

    pela confiana!

  • 6

    Dra. Ida Kublikowisky agradeo pela leitura cuidadosa de todo meu trabalho e

    pelas ricas contribuies oferecidas. Muito obrigada!

    Dra. Judy Dunn do Institute of Psychiatry, Kings College London (University of

    London), agradeo pela gentileza de ter me enviado seu artigo e pelas orientaes quanto ao

    uso da tcnica Five Field Map.

    s colegas psiclogas Fernanda e Renata Bertran, agradeo pela disponibilidade e

    dedicao na transcrio das fitas e auxlio na montagem e co-moderao do grupo focal.

    Por fim, gostaria de expressar minha imensa gratido a todos os irmos, meio-irmos

    e co-irmos que dividiram comigo suas histrias. Histrias ora felizes, ora tristes. Histrias

    que lhes fizeram rir ou chorar. Histrias, que ao serem rememoradas, permitiram sentir fortes

    emoes....Enfim, histrias de irmos, meio-irmos e co-irmos! Sem a colaborao de vocs

    a construo dessa tese no teria sido possvel! MUITO OBRIGADA!

  • 7

    RESUMO

    Este trabalho teve como objetivo compreender a dinmica das relaes fraternas em famlias

    recasadas. Foi realizado utilizando-se a metodologia da Teoria Fundamentada nos Dados

    (Grounded Theory Methodology). Participaram da pesquisa 14 adolescentes e adultos que

    vivem a experincia do recasamento do pai ou da me h no mnimo trs anos e que possuem

    pelo menos um irmo biolgico, meio-irmo ou co-irmo. Foram adotados como instrumentos

    para a coleta de dados a tcnica Mapa dos Cinco Campos, a entrevista no-estruturada e o

    grupo focal. A teoria que emergiu dos dados analisados foi denominada Compartilhando,

    Construindo e Re-significando as Relaes Fraternas na Famlia Recasada. Esta mostra

    o relacionamento fraterno como um processo dinmico e flexvel, com suas possibilidades de

    transformao ao longo do tempo, impulsionadas pela oportunidade de compartilhar

    experincias ao longo da convivncia. Explica de que maneira a vivncia do divrcio e

    recasamento dos pais modifica a relao entre irmos biolgicos, podendo contribuir para o

    fortalecimento do vnculo ou para o enfraquecimento da relao e evidencia como os irmos

    podem atuar, em alguns casos, como um fator de proteo ao outro, desempenhando um papel

    positivo e ativo no ajustamento ao divrcio e ao recasamento. Mostra como se estabelecem as

    relaes entre co-irmos e meio-irmos, apresentando suas caractersticas e os principais

    fatores que interferem na qualidade das mesmas. Tambm explica porque os vnculos afetivos

    se desenvolvem ou falham em se desenvolver entre os co-irmos e os meio-irmos. A teoria

    desenvolvida discutida sob a tica da Teoria do Apego e da Perspectiva Sistmica da

    Famlia e comparada literatura atual existente.

  • 8

    ABSTRACT

    The objective of this dissertation was to understand the dynamics of sibling relations in

    remarried families. It was developed applying the Grounded Theory Methodology. Fourteen

    adolescents and adults who have been experiencing the remarriage of their mother or father

    for at least three years and who have at least one sibling, half sibling or stepsibling

    participated in the study. The Five Field Map, open interviews and focus group were used as

    data collection techniques. The theory, which emerged from data, was named Sharing,

    Constructing and Re-meaning the Sibling Relationships in Remarried Family. It

    explains the sibling relationship as a dynamics and flexible process, with possibility of change

    throughout time, determined by the opportunity of sharing life experiences. It explains how

    established sibling relationships can change under conditions of divorce and remarriage,

    showing how they can be reinforced or weakened by these events. It also demonstrates that

    siblings can be, in some cases, important protective agents to each other, having a positive

    and active role in the adjustment to divorce and remarriage. I explains how stepsibling and

    half sibling relationships are developed, presenting their characteristics and the most

    important factors which could affect their quality. It also explains why sibling bonding

    develops or fails to develop between stepsiblings and halfsiblings. The developed theory is

    discussed by means of Attachment Theory and The Family Systems Perspective and

    compared to the current literature.

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................................................12

    CAPTULO 1- RECASAMENTO........................................................................................18

    1.1- O que uma Famlia Recasada?............................................................................19

    1.2- A Famlia Recasada numa perspectiva sistmica..................................................24

    1.2.1- A estrutura da famlia recasada...............................................................27

    1.2.2- Expectativas, crenas e mitos da famlia recasada..................................29

    1.2.3- Papis familiares.....................................................................................32

    1.2.4- Afetividade na famlia recasada..............................................................35

    1.2.5- Fronteiras................................................................................................37

    1.2.6- A famlia recasada formada aps a morte de um cnjuge......................40

    1.2.7- A vivncia do recasamento em diferentes fases do ciclo vital................41

    1.2.8- O Ciclo Vital da famlia recasada...........................................................43

    1.3-A Famlia Recasada como objeto de pesquisa: Trinta anos de Investigao.........48

    1.3.1- Literatura Estrangeira..............................................................................48

    1.3.1.1- APA (American Psychological Association)..................48

    1.3.2- Literatura Brasileira................................................................................61

    1.3.2.1- Portal de Teses e Dissertaes da CAPES e IBICT.........61

    1.3.2.2- Scielo (Scientific Electronic Library on Line).63

    1.3.2.3- Lilacs ...............................................................................64

    1.3.3- Comentrios gerais..................................................................................65

    CAPTULO 2- TEORIA DO APEGO: A BASE PARA COMPREENSO DOS

    VNCULOS AFETIVOS........................................................................................................68

    2.1- Relaes Vinculares Precoces: A Teoria do Apego..............................................69

    2.1.1- O Comportamento de Apego..................................................................69

    2.1.2- As Fases no Desenvolvimento do Apego................................................74

    2.1.3- Os Padres de Apego..............................................................................76

    2.1.4- Teoria de Apego e Teoria Sistmica da Famlia:

    Um encontro possvel........................................................................................81

    2.2- Os Vnculos Afetivos ao longo da vida.................................................................86

  • 10

    2.2.1- Os Relacionamentos Interpessoais e a Formao

    dos Vnculos Afetivos......................................................................................86

    2.2.2- Vnculos na Infncia e Adolescncia......................................................91

    2.2.3- Vnculos na Fase Adulta.........................................................................93

    CAPTULO 3- O VNCULO ENTRE IRMOS...............................................................100

    3.1- Irmo, meio-irmo e co-irmo: algumas definies............................................103

    3.2- Definindo o Vnculo fraterno...............................................................................104

    3.3- Irmos ao longo da Vida: Construindo uma memria compartilhada-

    compartilhando uma memria construda...................................................................109

    3.3.1- Formando Vnculos na Infncia............................................................111

    3.3.2- Relaes Transformadas na Adolescncia............................................122

    3.3.3- Seguindo seus caminhos na Fase Adulta..............................................125

    CAPTULO 4- IRMOS E O RECASAMENTO............................................................132

    4.1- Irmos Biolgicos, Divrcio e Recasamento......................................................137

    4.2- Meio-irmos e Co-irmos....................................................................................140

    CAPTULO 5- MTODO....................................................................................................144

    5.1-Reflexes sobre a Escolha Metodolgica.............................................................145

    5.2-A Escolha do Mtodo de Pesquisa........................................................................150

    5.2.1- Participantes..........................................................................................154

    5.2.2-Instrumentos e coleta de dados.............................................................158

    5.2.3-Anlise dos dados...................................................................................162

    CAPTULO 6-APRESENTANDO A TEORIA CONSTRUDA......................................171

    6.1- Tendo a vida transformada: vivendo o divrcio e o recasamento dos pais.........174

    6.2- Vivendo transformaes nas relaes fraternas: os irmos biolgicos................200

    6.3- Avaliando ganhos e perdas- Construindo novas redes de relaes fraternas:

    os co-irmos................................................................................................................216

    6.4-Meio-irmos ou irmos por inteiro? Surgindo novas possibilidades

    de relaes..................................................................................................................239

    6.5- Irmos, Meio-Irmos e Co-Irmos: Compartilhando,

    Construindo e Re-significando as relaes fraternas na famlia recasada..................260

  • 11

    CAPTULO 7- DISCUTINDO O CONHECIMENTO CONSTRUDO.........................264

    7.1- A Perspectiva Sistmica da Famlia Recasada e os resultados obtidos...............265

    7.2- A Teoria do Apego e os resultados obtidos.........................................................275

    7.3- A Literatura sobre as Relaes Fraternas no Recasamento e os

    resultados obtidos.......................................................................................................285

    7.4- Concluindo...........................................................................................................295

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................301

    BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................305

    APNDICES..........................................................................................................................322

    ANEXOS................................................................................................................................334

  • 12

    Introduo

  • 13

    INTRODUO

    Dados dos ltimos censos revelam-nos uma realidade que no podemos desconsiderar:

    o aumento do nmero de famlias recasadas no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de

    Geografia e Estatstica (IBGE), o total de divrcios no pas cresceu 55% entre 1991 e 2002, o

    nmero de separaes aumentou 30%, e a durao mdia dos casamentos de dez anos e

    meio. Atrs desse crescente ndice de rompimentos vm as tambm crescentes taxas de

    recasamento: mais da metade dos divorciados no Brasil partem para uma nova unio.

    O nmero de recasamentos aumentou de 47 mil, em 1984, para 95 mil, em 2002

    (IBGE, 2004). Ademais, se levarmos em conta que uma quantidade significativa de

    recasamentos acontece de modo consensual, ou seja, sem o envolvimento de contrato ou de

    qualquer outro procedimento legal, esse nmero pode ser considerado ainda maior. Assim,

    podemos constatar que, a cada ano, o recasamento passa a se firmar como mais uma

    possibilidade de unio, em nossa sociedade, que tem caminhado para uma pluralidade de

    opes.

    O recasamento configura, de forma cada vez mais freqente em nosso contexto, uma

    possibilidade de reconquistar vnculos essenciais de intimidade, afeto e companheirismo,

    proporcionando o aparecimento de novos e diferenciados arranjos familiares.

    Embora cada vez mais presente, podemos afirmar que a Psicologia, em especial a

    Psicologia da Famlia, no Brasil, ainda busca respostas para compreender com maior

    profundidade e para atuar junto s famlias recasadas. Sua complexidade estrutural e

    relacional, indubitavelmente, faz configurar no cenrio cientfico e clnico um fenmeno com

    um vasto campo de estudo e com uma demanda de interveno, tanto primria, quanto

    secundria. Tal complexidade pode ser inicial e facilmente constatada pela simples anlise da

  • 14

    diversidade de configuraes possveis no recasamento, o que no nos permite falar de uma

    famlia recasada tpica.

    Beer (1989) lembra-nos que, se levarmos em conta fatores como gnero, casamentos

    anteriores de ambos os parceiros, a existncia de filhos residentes ou no, existem vinte e

    quatro configuraes possveis para famlias recasadas. Novos fatos, como o nascimento de

    um filho dentro do recasamento, aumentam esse nmero, e cada configurao apresenta sua

    especificidade.

    Carter e McGoldrick (1995; 1999) tambm enfatizam essa complexidade, apontando

    que o processo por meio do qual o sistema familiar recasado se estabiliza e recupera sua

    confiana desenvolvimental acrescentaria uma outra fase ao ciclo vital familiar para aqueles

    envolvidos. As autoras ressaltam a necessidade de um paradigma de famlia inteiramente

    novo, com o recasamento, que considere os novos relacionamentos e papis.

    Diante desse panorama, apresento o foco central desta tese: compreender a dinmica

    de uma das relaes familiares que se forma a partir do recasamento - a relao fraterna. O

    recasamento traz consigo a possibilidade de formao de diferentes configuraes de relaes

    fraternas: os co-irmos (crianas, adolescentes ou adultos que no so biologicamente

    relacionados, mas que adquirem tal status pelo fato de o pai de um e a me do outro terem se

    casado); os meio-irmos (irmos que possuem apenas um pai biolgico em comum); e os

    irmos biolgicos (irmos que compartilham a mesma me e o mesmo pai, e que, tanto

    podem ter nascido da primeira unio de seus pais, e terem vivido juntos o processo de

    divrcio e recasamento, como podem ter nascido aps o recasamento). Conforme se constata,

    complexas redes fraternas se formam, redes essas ainda pouco compreendidas no meio clnico

    e cientfico.

    Hoje se reconhece que os irmos desempenham papel importante na histria de

    desenvolvimento emocional, cognitivo e social das pessoas. O vnculo fraterno, que se inicia

  • 15

    na infncia e se prolonga durante nossas vidas, tem poder emocional para modelar a histria

    de quem ns somos e de quem ns nos tornamos. Entretanto, pouco se sabe sobre o papel dos

    diferentes tipos de relacionamentos fraternos que se inauguram a partir do recasamento.

    Neste trabalho, propus-me a responder ao seguinte problema de pesquisa: Qual a

    dinmica das relaes fraternas em famlias recasadas? Como se estabelecem, quais suas

    caractersticas e quais fatores interferem em sua qualidade?

    Para tal, os objetivos deste estudo foram configurados da seguinte forma:

    Objetivo geral: Compreender a dinmica das relaes fraternas em famlias recasadas, a fim de construir um modelo terico que explique esse fenmeno no

    contexto da famlia atual.

    Objetivos especficos:

    > Explicar como o vnculo fraterno entre irmos biolgicos afetado pelo divrcio e recasamento dos pais;

    > Compreender como se estabelecem as relaes entre os co-irmos e entre os meio-irmos, explicando suas caractersticas e quais os fatores que interferem na

    qualidade dessas relaes;

    > Explicar porque os vnculos afetivos e vnculos de apego se desenvolvem ou falham em se desenvolver entre os co-irmos e entre os meio-irmos no recasamento.

    Para atingir tal objetivo, desenvolvi uma pesquisa qualitativa por meio da Metodologia

    da Teoria Fundamentada nos Dados (Grounded Theory Methodology), utilizando a entrevista

    no-estruturada, a tcnica do Mapa dos Cinco Campos (Five Field Map) (STURGESS,

    DUNN & DAVIES, 2001; SAMUELSSON, THERNLUND & RINGSTRM, 1996) e o

    grupo focal como recursos para a coleta do material emprico. Este foi obtido numa amostra

    de irmos, meio-irmos e co-irmos adolescentes ou adultos, advindos de famlias recasadas.

  • 16

    Adoto duas perspectivas tericas que considero importantes na anlise das relaes

    fraternas no recasamento: a Teoria Sistmica e a Teoria do Apego. A Teoria Sistmica

    permite-me alcanar uma compreenso do funcionamento das famlias recasadas, medida

    que descreve sua estrutura, expectativas, crenas, mitos, papis, fronteiras e seu ciclo vital. A

    Teoria do Apego, uma vez que explica a raiz de nossos vnculos afetivos, possibilita-me

    compreender a construo de outros tipos de relacionamentos e vnculos que as pessoas

    desenvolvem ao longo de suas vidas, incluindo as relaes entre irmos, meio-irmos e co-

    irmos. Essas abordagens tericas permitiram-me criar um cenrio de fundo com base no qual

    pude refletir e estabelecer comparaes com a teoria emergente dos dados que foram

    sistematicamente coletados e analisados.

    Pude constatar, pelo levantamento bibliogrfico sobre o tema, que estudar a dinmica

    das relaes fraternas no recasamento mergulhar num mar de questionamentos, no qual

    ainda poucas respostas se fazem presentes. Assim, acredito que o conhecimento construdo

    nesta pesquisa possa contribuir para a compreenso terica e subsidiar a atuao prtica junto

    a essa populao.

    Este trabalho est organizado em sete captulos. Nos quatro primeiros, apresento a

    fundamentao terica que adoto para a compreenso do fenmeno em foco, assim como um

    panorama da literatura cientfica da rea.

    No captulo 1, totalmente dedicado ao tema recasamento, discuto a definio de

    famlia recasada e, em seguida, realizo uma leitura de suas principais caractersticas segundo a

    Abordagem Sistmica da Famlia. Ainda nesse captulo, mostro como o tema recasamento

    tem sido retratado na literatura nacional e internacional nas ltimas dcadas, a fim de se poder

    visualizar o contexto cientfico em que este trabalho est inserido.

    No captulo 2, apresento os aspectos principais da Teoria do Apego, proposta por

    John Bowlby (1984; 1985; 1990a; 1990b), enfocando como ocorre o desenvolvimento e a

  • 17

    manifestao do apego nos primrdios da vida. Sigo apresentando a extenso dos princpios

    da Teoria do Apego alm da infncia, diferenciando o vnculo de apego dos demais vnculos

    afetivos e demonstrando o seu papel na dinmica dos relacionamentos humanos. Busco, ainda

    nesse captulo, apresentar a integrao da Teoria Sistmica e a Teoria do Apego, as duas

    abordagens que considero importantes na anlise das relaes fraternas no recasamento.

    No captulo 3, focalizo o vnculo entre irmos, apresentando sua definio e suas

    caractersticas em cada fase do desenvolvimento humano.

    Por fim, no captulo 4, apresento e discuto os trabalhos cientficos publicados sobre

    irmos e recasamento.

    A partir do captulo 5, apresento meu trabalho de pesquisa de campo. Nesse captulo

    fao a apresentao do mtodo da pesquisa e, em seguida, no captulo 6, exponho meus

    resultados: a teoria que elaborei, fundamentada nos dados sistematicamente coletados e

    analisados.

    No captulo 7, fao a discusso da teoria emergente face literatura existente e

    apresento minhas concluses. Finalizando, apresento as consideraes finais desta tese.

  • 18

    Captulo 1

    RECASAMENTO

    As famlias recasadas devem ser vistas como unidades

    familiares possveis e viveis, de estrutura complexa, criadas

    pela integrao de antigas lealdades e novos laos, e no como

    cpias imperfeitas da famlia nuclear.

    Visher e Visher (1988)

  • 19

    CAPTULO 1 - RECASAMENTO

    No primeiro captulo desta tese, tenho como objetivo discorrer sobre a famlia

    recasada. Busco, inicialmente, refletir e discutir sua definio e, posteriormente, analiso suas

    principais caractersticas e sua especificidade com base em uma leitura sistmica. Para

    finalizar, busco traar o estado da arte com relao ao tema, apresentando a maneira como o

    recasamento tem sido retratado na literatura cientfica nacional e internacional, com base no

    levantamento e na anlise das produes da rea nas dcadas de 70, 80, 90 at 2004,

    pertencentes ao banco de dados da American Psychological Association (APA), da Scientific

    Electronic Library on Line (Scielo), da Literatura Latino-Americana e do Caribe de Cincias

    da Sade (Lilacs) e do Portal de Teses e Dissertaes da CAPES (Coordenao de

    Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) e do IBICT (Instituto Brasileiro de

    Informao em Cincia e Tecnologia).

    1.1- O que uma famlia recasada?

    A famlia recasada pode ser compreendida como aquela formada aps divrcio,

    separao ou viuvez de um ou de ambos os cnjuges e posterior nova unio. A maioria dos

    estudiosos da rea inclui a questo da paternidade, definindo a famlia recasada como aquela

    em que dois adultos se unem formando uma nova famlia e para a qual um ou ambos trazem

    pelo menos um filho de uma relao anterior (SAGER et al., 1983; WOODS, 1987; BEER,

    1989; VISHER & VISHER, 1988; VISHER et al.,1996; VISHER et al 1997; CARTER &

    McGOLDRICK, 1995, 1999; BRUN,1999; OLIVEIRA et al. 1999; WAGNER, 2002;

    TRAVIS, 2003). Para Beer (1989, p.7), a forma mais simples de definir uma famlia recasada

    ...uma famlia na qual pelo menos um membro do casal adulto padrastro ou madrastra.

  • 20

    importante ressaltar que se incluem sob a mesma definio as unies legais e as

    consensuais, ou seja, aquelas em que os parceiros co-habitam formando um novo casal,

    mesmo sem a existncia de vnculos legais. Uma nova unio com as caractersticas de partilha

    de residncia, atividades e responsabilidades comuns constituir um recasamento, mesmo sem

    a formalizao perante a lei.

    Podemos afirmar que, embora j haja um consenso quanto definio de famlia

    recasada entre aqueles que a estudam, o mesmo no acontece quanto sua terminologia:

    famlia refeita, reconstituda, reorganizada, reconstruda, reestruturada, mista, simultnea,

    sinergtica, combinada, binuclear - estas so as vrias formas encontradas na literatura para

    nomear a famlia recasada. No entanto, acredito que esta lista no pode ser considerada

    acabada.

    interessante analisarmos esses termos, uma vez que a linguagem adotada para

    conceituar um fenmeno pode revelar uma srie de significados a ele atribudos. O que

    primeiramente me chama ateno o fato de que a maioria das nomenclaturas utiliza o

    prefixo re, na tentativa de criar um termo que denomine com maior preciso os ncleos

    constitudos por uma nova unio. Segundo o Dicionrio Aurlio Bsico da Lngua Portuguesa

    (1988), esse prefixo indicador de repetio, recomeo, mudana de status, entre outros

    significados. Fica, portanto, evidente a idia de repetio, de reformulao e de recriao

    inserida na denominao dessas famlias. Em especial, termos como refeita, reconstituda,

    reorganizada, reconstruda e reestruturada do a idia de uma famlia que se desfez, se

    desmontou, se quebrou ou se desorganizou e, posteriormente, voltou a se refazer em suas

    condies originais, evocando o mito da famlia nuclear. Concordo com Brun (1999, p.24),

    quando afirma que ainda no temos em nossa ou em outras lnguas um termo que expresse em

    seu significado a singularidade de uma nova unio:

    No existe nomenclatura especfica para este casamento em nenhuma lngua conhecida. S encontramos referncias que nos levem a pensar em remendo,

  • 21

    segunda mo, imitao, substituio, reconstituio, palavras e expresses com uma forte carga negativa. A famlia nuclear - me, pai e filhos - fica sendo vivenciada como a nica verdadeira, valorizada, boa e legtima. Tudo que for diferente dessa famlia-padro menos.

    Assim, podemos concluir que a prpria terminologia remete a uma crena bastante

    comum na organizao e funcionamento da famlia recasada: a de que esta deve funcionar

    como uma famlia original e intacta. Estudiosos do recasamento (SAGER et al., 1983;

    VISHER & VISHER, 1988; CARTER & McGOLDRICK, 1995, 1999; OLIVEIRA et al.,

    1999, COLEMAN et al., 2000; WAGNER, 2002; TRAVIS, 2003) concordam em afirmar

    que muitas das dificuldades enfrentadas pelos membros das famlias recasadas podem ser

    atribudas ao fato de a sociedade geral e as prprias famlias recasadas utilizarem a famlia

    nuclear intacta como um modelo a ser seguido ou alcanado.

    Adoto neste trabalho o termo famlia recasada, pois considero que, na falta de outro

    mais adequado, o que melhor atende o significado do fenmeno em estudo. Concordo com

    Carter e McGoldrick (1995), quando afirmam que a nomenclatura recasada enfatiza o

    vnculo conjugal que forma a base para o complexo arranjo de vrias famlias numa nova

    constelao. E tambm concordo com Wagner (2002), quando afirma que o re-investimento

    que caracteriza a nova unio conjugal, re-investimento que acredito dever se estender a todas

    as demais relaes que se desenvolvero nesse novo ncleo, o que determinar em grande

    parte a possibilidade de surgimento de vnculos afetivos saudveis. A possibilidade de

    formao de vnculos afetivos estar na base para a construo e o desenvolvimento bem-

    sucedido da famlia recasada, que tem, com a entrada dos novos membros, a criao de uma

    complexa rede de relaes.

    Tal complexidade j comea a ser evidenciada frente simples necessidade de nomear

    esses novos membros. Conforme nos evidencia Brun (1999), falta em nossa cultura cdigos

    lingsticos adequados para nomear as relaes criadas no recasamento, o que gera tenses e

    prejudica a acomodao dos membros da famlia em seus novos papis. Vrios profissionais

  • 22

    que estudam e atuam junto a essas famlias (SAGER et al., 1983; VISHER & VISHER, 1988;

    CARTER & McGOLDRICK, 1995, 1999; OSRIO, 1996; OLIVEIRA et al., 1999;

    BERNSTEIN, 1999; BRUN, 1999; WAGNER, 2002; TRAVIS, 2003) concordam que

    palavras como madrasta, padrasto e enteado, disponveis para se nomear a relao entre

    pessoas que no possuem vnculo de consanginidade mas que passam a fazer parte da

    famlia, vm carregadas de conotaes negativas e freqentemente suscitam associaes

    como perversidade, maltrato, infelicidade, abuso, entre outras.

    Alguns autores tambm enfatizam a influncia das histrias infantis clssicas no

    imaginrio popular (BERNSTEIN, 1999; WAGNER, 2002). Em contos, como Joo e Maria,

    A Branca de Neve e os Sete Anes, Cinderela, encontramos exemplos de madrastas malvadas,

    invejosas e cruis e enteados infelizes.

    Se, de um lado, encontramos termos altamente pejorativos para nomear as relaes na

    famlia recasada, por outro, algumas novas relaes literalmente carecem de termos na nossa

    lngua. E esse justamente o caso dos irmos. Para o termo do idioma ingls stepsibling,

    ainda no temos um correlato oficial em portugus. Encontramos algumas tradues como

    irmos de convivncia e irmos polticos (WAGNER & SARRIERA, 1999; WAGNER,

    2002). Entretanto, optei por adotar o termo co-irmo, o qual foi mencionado por Cerveny

    em sua experincia clnica no atendimento de famlias recasadas. O atendimento a tais

    famlias tambm tem evidenciado algumas tentativas de superar as conotaes negativas que

    as palavras madrasta e padrasto carregam, como, por exemplo, a criao de neologismos,

    conforme nos apontam Wagner e Falck (2000, p.423): ....no incomum encontrar

    adolescentes referindo-se a estas figuras como boadrasta, medrasta, me-cover, paidrasto,

    pai-cover, entre outros. As autoras tambm afirmam que se observa freqentemente

    adolescentes tratando essas figuras por tio ou tia, na tentativa de se apoiar em relaes j

    conhecidas no modelo intacto original, assim como outros, no conseguindo estabelecer um

  • 23

    vnculo direto com essas personagens, referindo-se a elas por muito tempo como

    namorada/mulher do pai ou namorado/marido da me.

    O recasamento reconhecido por lei no Brasil um fenmeno relativamente novo.

    Tornou-se possvel a partir de 1977, quando o divrcio foi institudo. At a dcada de 60 e

    incio dos anos 70 no era socialmente bem aceito, em especial nas camadas sociais mdia e

    alta, sendo simplesmente um ajuntamento (TRAVIS, 2003). Segundo Woods (1987), para

    minimizar o preconceito social, os separados, chamados na poca de desquitados, casavam no

    exterior, freqentemente no Uruguai, embora no houvesse reconhecimento legal no Brasil.

    Tanto os indivduos desquitados quanto seus filhos sofriam preconceito e estigmatizao da

    sociedade brasileira.

    A partir de sua legitimao, a obteno do divrcio deveria ser precedida de dois anos

    de separao judicial ou cinco anos de separao de fato. Atualmente, o divrcio tornou-se

    um instrumento jurdico mais gil, facilitando a possibilidade de um recasamento legalmente

    reconhecido (TRAVIS, 2003). Nesse contexto, apesar do prognstico do trmino da famlia,

    podemos com certeza afirmar que este no se tornou realidade. Hoje, mais do que nunca, a

    famlia continua com o papel central de ncleo responsvel pela promoo do

    desenvolvimento e bem-estar de seus membros e, para cumprir esse papel, se transforma, se

    adapta, se divide, se soma, enfim, se multiplica nas diferentes formas de organizao que

    encontramos hoje.

    E justamente entre as famlias recasadas que encontramos uma ampla variedade de

    diferentes tipos de arranjos familiares, alguns deles simples e outros bastante complexos. O

    tipo mais simples de famlia recasada aquele em que um cnjuge vivo ou divorciado, que

    possui um filho da primeira unio, se recasa com um cnjuge que nunca havia sido casado e

    que no possui filho. O tipo mais complexo aquele em que ambos os cnjuges se recasam

    trazendo filhos da unio anterior, assim como tendo um filho em comum. So nesses

  • 24

    diferentes arranjos, dos mais simples aos mais complexos, que focalizarei o fenmeno em

    estudo: a rede de relaes fraternas que se forma entre irmos, meio-irmos e co-irmos. A

    seguir buscarei apresentar a partir de uma leitura sistmica, as principais caractersticas da

    famlia recasada, o que muito contribuir para a compreenso do subsistema fraterno.

    1.2- A Famlia Recasada numa Perspectiva Sistmica

    Para alcanarmos uma compreenso suficientemente abrangente e profunda da famlia

    recasada devemos ter como ponto de partida uma idia central: a famlia nuclear intacta no

    pode ser tomada como modelo, pois ambas apresentam estrutura e funcionamento distintos.

    Conforme j mencionado anteriormente neste captulo, muitas das dificuldades das

    famlias recasadas podem ser atribudas tentativa por parte da famlia e at mesmo daqueles

    que lidam com a mesma, de utilizar como orientao os papis e normas da famlia

    tradicional, ou seja, a tentativa de copiar a famlia nuclear intacta. Conforme nos apontam

    Carter e McGoldrick (1999), a famlia recasada deve ser vista, estudada, compreendida e

    tratada luz de um novo paradigma. Vrios outros autores corroboram essa idia, e pesquisas

    mais recentes da rea preocupam-se com as diferenas estruturais entre famlias recasadas e

    nucleares, no como uma comparao, mas para que a compreenso das diferenas possibilite

    uma melhor interao entre os diversos membros da famlia e uma utilizao mais eficiente

    dos recursos teraputicos. J em 1988, Visher e Visher, pioneiros no estudo e tratamento das

    famlias recasadas, enfatizaram a idia de que as famlias recasadas devem ser vistas como

    unidades familiares possveis e viveis, de estrutura complexa, criadas pela integrao de

    antigas lealdades e novos laos, e no como cpias imperfeitas da famlia nuclear.

    Deixando de lado a viso de que as famlias recasadas so atpicas, sempre

    patognicas e disfuncionais, pesquisas atuais tm focalizado seus estudos para compreender a

  • 25

    diversidade de respostas e de fatores que podem facilitar ou dificultar o desenvolvimento de

    tais famlias. Conforme nos falam Hetherington e Bray (1998), a transio da famlia a partir

    do recasamento desencadeia uma srie de mudanas nos arranjos residenciais, nas

    circunstncias econmicas e nos papis e relaes familiares, as quais tm grandes

    implicaes para o ajustamento dos membros da famlia. Mas, apesar de o recasamento

    confrontar as famlias com estresse e mudanas adaptativas, ele tambm pode oferecer

    oportunidade para o crescimento pessoal e para relaes pessoais e familiares preenchedoras e

    harmoniosas. Segundo os autores, a maneira como os membros da famlia se adaptam a essa

    srie de reorganizaes familiares depende do tempo da transio, das caractersticas do

    indivduo, das mudanas, dos estressores e dos desafios especficos associados a cada estgio

    da transio e dos recursos familiares e extrafamiliares disponveis para promover adaptao

    aos novos papis e relaes. So palavras de Hetherington e Bray (1998, p.3): ...o divrcio e

    o recasamento podem envolver mudanas de vida tanto positivas quanto negativas que podem

    minar ou promover o bem-estar psicolgico e social dos pais e dos filhos.

    Fundamentados em um novo paradigma, Carter e McGoldrick (1999) propem-nos

    que, embora seja extremamente difcil para a prpria famlia recasada abandonar a idia de

    famlia nuclear, este modelo de famlia necessita alcanar trs tarefas bsicas para garantir seu

    bom funcionamento:

    1- desenvolver fronteiras permeveis em torno dos membros das diferentes famlias,

    a fim de permitir aos filhos movimentarem-se facilmente e de forma flexvel entre

    as casas de seus progenitores e de parentes. As famlias precisam permitir linhas de

    comunicao abertas entre ex-cnjuges e entre os filhos, pais biolgicos, padrastos

    e madrastas, avs e outros parentes. Conexes com a famlia extensa podem ser

    muito importantes para o bem-estar da criana.

  • 26

    2- Aceitar as responsabilidades e sentimentos paternos do cnjuge, sem assumir essas

    responsabilidades por ele ou tentar competir com o apego progenitor-filhos ou

    combater o contato com o ex-cnjuge. A competio do padrasto/madrasta com

    seus enteados pela primazia em relao ao cnjuge, como se as relaes parentais e

    conjugais estivessem no mesmo nvel hierrquico, muitas vezes acontece porque,

    no recasamento, o vnculo progenitor-filho antecede o vnculo conjugal. Assim,

    reconhecer os laos de forma diferenciada, com base nas conexes histricas e na

    diferente natureza das relaes um desafio importante a ser alcanado.

    3- Rever os tradicionais papis de gnero na famlia. Tais papis tradicionais, quando

    rigidamente colocados em prtica, exigem que a madrasta, por ser mulher, assuma

    a responsabilidade pelo bem-estar emocional da famlia, colocando madrasta e

    enteados em posies antagnicas e a ex-mulher e a nova mulher em posies

    adversrias, em especial em relao aos filhos. Num sistema recasado funcional, as

    responsabilidades pela criao e educao dos filhos devem ser distribudas de

    forma a validar o vnculo com os pais biolgicos. Assim, cada cnjuge deve

    assumir a responsabilidade primria por criar e disciplinar seu prprio filho

    biolgico, sendo o relacionamento com padrasto e madrasta desenvolvido de

    acordo com as circunstncias de cada famlia e o desejo dos envolvidos.

    Hetherington, Mavis e Kathleen (1994) acrescentam mais tarefas bsicas famlia

    recasada. As autoras acreditam que so cinco os principais desafios que a famlia deve superar

    para alcanar um bom funcionamento:

    1- Estabelecer e manter um relacionamento conjugal forte;

  • 27

    2- O segundo desafio envolve a tarefa do pai biolgico em, simultaneamente,

    sustentar um relacionamento prximo com os filhos, construir uma relao

    conjugal slida e resolver os conflitos de lealdade;

    3- Estabelecer um relacionamento de madrasta/padrasto e enteado(a);

    4- O quarto desafio envolve a adaptao da criana ao novo relacionamento conjugal

    de seus pais biolgicos, presena de um padrasto/madrasta e s alteraes no seu

    relacionamento com o pai biolgico que tem a custdia.

    5- Manter ou construir um relacionamento de apoio, ou pelo menos no-destrutivo,

    entre os irmos.

    Tendo em vista essas complexas tarefas bsicas que a famlia recasada deve alcanar,

    concordo facilmente com Carter e McGoldrick (1999), quando afirmam que o recasamento

    uma das transies desenvolvimentais mais difceis para as famlias negociarem. Quando

    pensamos que, diferentemente de um primeiro casamento, em que apenas duas famlias se

    unem, num segundo casamento, trs, quatro ou at mais famlias tornam-se entrelaadas. Da,

    compreendermos porque o recasamento um processo complexo e porque as famlias

    recasadas so sistemas com caractersticas to peculiares e que merecem ser analisadas dentro

    de sua especificidade.

    Assim, passarei a focalizar a seguir alguns pontos que considero importantes para o

    entendimento dessas famlias e que sero importantes subsdios para que possamos nos

    centrar mais frente no estudo das relaes fraternas que se formam a partir do recasamento.

    1.2.1- A estrutura da famlia recasada

    Podemos afirmar que a famlia nuclear simples quanto sua estrutura, pois tem

    essencialmente um padro tpico: pai, me e filhos, sendo estes, na maioria dos casos,

  • 28

    relacionados biologicamente aos pais. Nessas famlias, o pertencimento definido por laos

    sanguneos, legais e espaciais, sendo suas fronteiras explcitas.

    A estrutura da famlia recasada menos definida e menos clara. Devemos considerar

    que h oito tipos de recasamento possveis:

    1- homem divorciado com mulher solteira;

    2- homem divorciado com mulher divorciada;

    3- homem divorciado com mulher viva;

    4- homem solteiro com mulher divorciada;

    5-homem solteiro com mulher viva;

    6- homem vivo com mulher solteira;

    7-homem vivo com mulher viva;

    8- homem vivo com mulher divorciada .

    Devemos, ainda, considerar que, para cada um desses tipos h trs possibilidades de

    padres parentais:

    1- pai e filhos com madrasta;

    2- me e filhos com padrasto;

    3- pai e filhos com me e filhos .

    Matematicamente, chegamos s vinte e quatro possveis configuraes de famlias

    recasadas que mencionei no incio deste captulo. No se deve esquecer, ainda, que o novo

    casal pode ou no ter um filho em comum, assim como os co-irmos podem morar juntos

    permanentemente, podem se visitar regularmente ou podem ser totalmente ausentes um da

    vida do outro, o que aumentaria o nmero de possveis configuraes de famlia recasada.

    Travis (2003) lembra-nos que as fronteiras biolgicas, geogrficas, legais e o

    pertencimento dos membros so claramente definidos na famlia de primeiro casamento, ao

    passo que, na famlia recasada, isso no acontece, pois alguns filhos ou enteados podem ser

  • 29

    vistos como hspedes peridicos. Alguns membros da famlia recasada pertencem, portanto, a

    mais de um sistema familiar, e isso aumenta a possibilidade de surgimento de sentimentos de

    ambigidade, o que freqentemente resulta em conflitos de lealdade e sentimento de culpa.

    Tambm as relaes de parentesco so diferenciadas na famlia recasada, pois o parente de

    um irmo pode no ser do outro.

    1.2.2- Expectativas, crenas e mitos da famlia recasada

    Um casal quando se une leva consigo uma srie de expectativas, explcitas e no-

    explcitas a respeito do cnjuge e da relao. No recasamento, essas expectativas podem

    adquirir uma dimenso ainda maior, uma vez que s expectativas dos prprios parceiros so

    acrescidas as expectativas dos filhos e da famlia extensa acerca das relaes que se formam e

    das funes que cada um passar a exercer na famlia.

    Estudiosos apontam que bastante comum nas famlias recasadas os cnjuges, assim

    como os filhos, possurem crenas e criarem expectativas bastante irrealistas acerca da

    construo e manuteno das relaes familiares (VISHER & VISHER, 1988, PLACTOR &

    VELASCO, 1989; VISHER et al. 1996; BERNSTEIN, 1999; GENOVESE & GENOVESE,

    1997; COLEMAN & GANONG, 1997, 2003; OLIVEIRA et al. 1999; TRAVIS, 2003).

    Na opinio dos autores e de profissionais que atuam junto s famlias recasadas, as

    crenas irrealistas, tambm chamadas de mitos, so muitas vezes desencadeadoras de

    frustraes e conflitos e, por isso, bastante importante que membros da famlia e

    profissionais conheam tais crenas, para assim ser possvel reformular as expectativas

    ligadas a elas de forma mais realista. Buscarei a seguir analisar as principais crenas ou mitos

    presentes nas famlias recasadas, conforme apontado na literatura:

  • 30

    Crena de que as famlias recasadas so iguais s famlias nucleares Essa crena gera a expectativa de que a famlia recasada possua um funcionamento

    igual ao das famlias nucleares. Visher e Visher (1988) lembram-nos que toda famlia possui

    um sistema prprio e completo de crenas de como a famlia deve ser, e, no caso da famlia

    recasada, esse sistema parece ser o menos congruente com a realidade vivida. Isso se justifica

    pelo fato de a famlia recasada nascer de inmeras perdas; primeiramente a perda da famlia

    nuclear, que seguida por vrias outras perdas emocionais, inclusive perdas materiais. Isso

    confere famlia a necessidade de identificar e elaborar tais perdas para que novos projetos

    possam ser realizados. Na viso de Placter e Velasco (1989), quando as perdas sofridas no

    so elaboradas adequadamente, o modelo idealizado de famlia nuclear pode ser usado como

    uma tentativa de refazer o que foi desfeito pelo divrcio, o que sem dvidas gerar uma srie

    de expectativas impossveis de serem alcanadas, associadas ao desejo de constituir uma

    famlia perfeita.

    Crena de que a adaptao da famlia recasada acontecer rapidamente O mito da adaptao instantnea mais freqente entre homens do que entre mulheres

    (VISHER & VISHER, 1988; TRAVIS 2003). Esse tipo de expectativa responsvel por uma

    srie de decepes e at mesmo nova separao.

    Crena de que o amor e o carinho entre os membros da nova famlia sero desenvolvidos automaticamente

    O mito do amor instantneo, apontado por Visher e Visher (1988) e Placter e Velasco

    (1989), explica a expectativa de que, pelo fato de os cnjuges se amarem, eles podero amar

    tambm seus filhos instantaneamente. como se os cnjuges combinassem que gostaro dos

    filhos do outro como se fossem seus. Visher e Visher (1988) explicam que a tentativa de

    forar o aparecimento de sentimentos de amor e carinho que ainda no existem entre os

    membros da famlia recasada pode gerar ressentimentos que dificultam a formao de laos

  • 31

    afetivos. Podemos pensar que essa idia tambm se aplica formao do vnculo entre os co-

    irmos.

    Crena de que deve haver um esforo intenso por parte da madrasta em agradar os enteados para no ser percebida como a madrasta malvada.

    Esse mito apontado por Visher e Visher (1988) diz respeito tentativa da madrasta de

    demonstrar que seu papel diferente daquele suscitado no imaginrio popular. A mulher

    busca esforar-se para fazer a famlia feliz, a fim de no se enquadrar no esteretipo negativo

    de madrasta. Tal comportamento pode acabar por gerar tenso familiar. Relacionado a essa

    crena est o mito da responsabilidade sem direito (PLACTER & VELASCO, 1989). Este se

    refere crena de que a madrasta pode e deve assumir toda e qualquer responsabilidade em

    relao aos enteados, mas no pode limit-los ou frust-los.

    Crena de que o afastamento da criana de seu pai ou me biolgica no- residente pode reforar a sua relao com o padrasto/madrasta.

    A idia de que o afastamento da criana do seu pai/me biolgico pode fazer com que

    ela se apegue ao padrasto/madrasta do mesmo sexo est relacionada tentativa de recriar a

    familiar nuclear, uma vez que busca excluir aquele que pode interferir no processo.

    Entretanto, estudos mostram que essa tentativa fracassada, pois, ao contrrio, uma relao

    harmoniosa entre os pais biolgicos no-residentes e a famlia recasada tende a fortalecer o

    vnculo entre enteado e madrasta/padrasto e facilitar a adaptao da criana. (VISHER &

    VISHER, 1988; HETHERINGTON et al, 1998; BERNSTEIN, 1999, ISAACS, 2002;

    DUNN, 2002; TRAVIS, 2003; COLEMAN & GANONG, 2003).

    Crena de que qualquer evento familiar negativo acontece porque so membros de uma famlia recasada.

    Visher e Visher (1988) explicam que freqente que os membros da famlia atribuam

    qualquer evento negativo em suas vidas ao fato de eles fazerem parte de uma famlia

  • 32

    recasada, como, por exemplo, dificuldades escolares do filho, problemas de relacionamento

    do filho fora de casa ou qualquer outra dificuldade ser atribuda ao recasamento.

    1.2.3- Papis Familiares

    Embora em nossa sociedade os papis de pai, me e filhos sejam relativamente bem

    definidos na famlia intacta que vive o primeiro casamento, o mesmo no pode ser dito quanto

    aos papis na famlia recasada.

    No h uma clara definio para as funes de padrasto, madrasta e enteado. Tal

    indefinio e falta de clareza podem ser facilmente e inicialmente constatadas quando se

    busca nomear essas novas relaes. Embora os pesquisadores dos Estados Unidos, Canad e

    de outros pases que falam lngua inglesa apontem inadequao na nomeao nas relaes no

    recasamento, o cenrio ainda mais obscuro no Brasil, pois muitas dessas relaes no so

    sequer nomeadas, em especial os irmos, os avs e demais parentes da famlia extensa (tios e

    primos). Vrios estudiosos (VISHER & VISHER, 1988; CARTER & McGOLDRICK, 1995,

    1999; OSRIO, 1996; OLIVEIRA et al., 1999; BERNSTEIN, 1999; BRUN, 1999;

    WAGNER, 2002; TRAVIS, 2003) apontam que a falta de nomeao dificulta o

    reconhecimento dos papis familiares, e, inclusive, denota efetivamente a falta de expectativa

    social com relao a essas relaes, e eu concordo com tal opinio.

    interessante o dado que nos traz Travis (2003): a palavra stepfamily s foi includa

    no Oxford Dictionary em julho de 1995, depois de uma representao feita pela National

    Stepfamily Association. No Brasil, o termo recasamento no configura ainda nos principais

    dicionrios da Lngua Portuguesa: Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, Michaelis -

    Moderno Dicionrio da Lngua Portuguesa e Dicionrio Aurlio Bsico da Lngua

    Portuguesa, o que efetivamente demonstra a nossa pouca familiaridade lingstica com o

    assunto.

  • 33

    Outro aspecto relevante a ser observado com relao aos papis na famlia recasada,

    especificamente com relao aos papis conjugais e parentais, diz respeito s rpidas

    transformaes vividas nas funes familiares, exigindo que mltiplos papis sejam

    assumidos aps a unio, sem um tempo suficiente de adaptao. Este aspecto comentado,

    tanto por Genovese e Genovese (1997), como por Carter e McGoldrick (1995), que comparam

    a experincia do primeiro casamento e do recasamento. Em famlias de primeiro casamento,

    h uma progresso passo a passo na aquisio de papis, haja vista que nele se vivencia o

    namoro, o casamento e a paternidade. H nesse caso, a possibilidade de os cnjuges

    desfrutarem um tempo para adaptao vida a dois, possibilitando ao casal funcionar como

    uma unidade. Com a chegada do primeiro filho, eles vivenciam juntos a passagem para a

    parentalidade e assumem os papis de pai e me. No recasamento, um dos membros do casal

    dever assumir simultaneamente os papis de madrasta/padrasto e de cnjuge, sem dispor de

    tempo ou privacidade suficiente para assimilar as novas funes.

    Para Carter e McGoldrick (1999), um dos principais fatores a que podemos associar a

    complexidade, o conflito e a ambigidade dos papis de padrasto e madrasta na famlia

    recasada justamente a falta de diferenciao das funes de pai/me e de

    padrastro/madrasto. Com relao madrasta, a ambigidade sobre o seu papel parental

    particularmente acentuada quando o enteado criana e permanece na custdia da ex-esposa

    de seu marido. Nessa situao, que a mais freqente, a madrasta sente-se menos envolvida e

    apegada emocionalmente criana e tem de lidar com o fato de seu marido ser parceiro de sua

    ex-esposa e no dela na funo de co-parentar. Com relao ao padrasto, este freqentemente

    se v no duplo e ambivalente lugar de intruso e de heri que resgata a famlia. Muitas vezes

    solicitado a ajudar a disciplinar o enteado, mas tambm criticado pelo prprio enteado e/ou

    pela me pela interveno.

  • 34

    Sobre a questo disciplinar, Genovese e Genovese (1997) reforam o quanto esta

    pouco clara e indefinida em famlias recasadas. Tanto madrastas quanto padrastos podem se

    ver diante de situaes em que a imposio de limites se faz necessria, mas que sua

    interveno seguida de afirmaes do tipo voc no manda em mim, voc no da

    minha famlia, o que faz acentuar a ambigidade e o conflito. As autoras lembram que os

    conflitos entre os membros do casal sobre o estilo de educar os filhos esto associados ao

    insucesso das relaes conjugais.

    Sobre a diviso de tarefas relacionadas ao bem-estar dos filhos, esta geralmente feita

    por gnero, ou seja, os homens so tradicionalmente responsveis pelas despesas e as

    mulheres pelos cuidados com os filhos. Wagner e Sierra (1999) realizaram um estudo

    comparativo entre adolescentes provenientes de famlias de primeiro casamento e de famlias

    recasadas e identificaram que, mesmo nas famlias recasadas, as funes culturalmente

    associadas ao gnero masculino e ao gnero feminino se mantm. As autoras concluem que

    ... os valores, as atitudes e as funes ditas novas e modernas esto convivendo com

    concepes arcaicas nos ncleos familiares de hoje em dia (WAGNER & SIERRA, 1999,

    p.26).

    Carter e McGoldrick (1999) e Travis (2003) afirmam que essa diviso tradicional de

    papis, feita a partir de diferenas de gnero, pode gerar conflitos na famlia recasada, pois

    tanto o padrasto quanto a madrasta podem no concordar com a idia de cumprir as

    responsabilidades parentais que lhe so atribudas (seja a de pagar as despesas, seja a de

    cuidar dos enteados), o que exigir da famlia uma reviso na diviso de papis.

    Outro aspecto a ser evidenciado quanto aos papis na famlia recasada refere-se

    modificao na posio dos filhos. Mudanas na posio acarretaro, como conseqncia,

    mudanas hierrquicas e de funes dentro da famlia, pois podemos encontrar, por exemplo,

    casos em que o filho caula, o filho mais velho ou o filho nico perdem tais papis, devido

  • 35

    nova configurao familiar. As fratrias passam por transformaes, ampliam-se para incluir

    novos membros e, a partir da, novas negociaes, novas relaes e novos vnculos sero

    formados, o que se constitui o foco deste estudo. Esse tpico ser retomado e aprofundado no

    captulo quatro (Irmos e Recasamento) e ser objeto de investigao na pesquisa de campo.

    1.2.4- Afetividade na famlia recasada

    A afetividade na famlia recasada um aspecto que merece especial ateno, pois,

    conforme indicam pesquisadores e terapeutas (TRAVIS, 2003; CARTER & MCGOLDRICK,

    1999; WAGNER & SIERRA, 1999; GENOVESE & GENOVESE, 1997; ROBINSON, 1993;

    VISHER & VISHER, 1988; SAGER et al., 1983), intensos sentimentos conflitantes so

    comuns no recasamento. A ambigidade de sentimentos gera conflitos de lealdade, os quais

    perpassam os membros da famlia recasada em diferentes momentos de seu convvio, assim

    como gera triangulaes familiares.

    Um conflito de lealdade comum desencadeado pela percepo dos filhos de que sua

    participao numa nova famlia exclui membros de sua famlia biolgica, assim como a

    vivncia de sentimentos positivos em relao sua nova famlia. Conforme nos lembram

    Carter e McGoldrick (1999), os filhos sempre sero leais aos pais biolgicos e uma das

    maiores dificuldades para os pais deixar seus filhos sentirem e expressarem sentimentos

    negativos e positivos em relao a pais e padrastos. O conflito pode estar presente em vrios

    sentidos, conforme nos evidenciam as autoras:

    Um progenitor pode proibir um filho de expressar sentimentos negativos em relao a um progenitor que morreu ou proibir de expressar sentimentos positivos em relao a

    um progenitor que se divorciou ou abandonou ou ainda exigir a total lealdade dos

    filhos;

  • 36

    A criana, por sua vez, pode sentir que se amar um dos pais ir de alguma forma magoar o outro; pode sentir que se no amar o padrasto ou madrasta poder magoar e

    despertar raiva de um progenitor ou pode sentir que se amar realmente o padrasto ou

    madrasta estar sendo desleal em relao ao progenitor.

    Visher e Visher (1988), em sua obra em que focalizam justamente os novos laos e

    as velhas lealdades, apontam que sentimentos como culpa, cimes, raiva e depresso,

    gerados por conflitos de lealdade interpessoais, sempre surgem entre os membros da famlia

    recasada. Segundo os autores, na famlia nuclear intacta o compromisso fundamental de

    lealdade refere-se manuteno do prprio grupo.

    No caso da famlia recasada, os membros levam para o novo grupo familiar, por um

    lado, o sentimento de lealdade relacionado ao passado e, por outro, pouca lealdade em relao

    aos novos membros da famlia. Esses sentimentos acabam por gerar triangulaes familiares.

    Essas triangulaes so criadas pelos conflitos de lealdade que acabam por dividir a famlia

    em times ou lados. Os autores afirmam que os conflitos de lealdade afligem tanto as

    crianas quanto os adultos. Sobre os conflitos de lealdade dos filhos, seus apontamentos so

    semelhantes aos de Carter e McGoldrick (1999): o principal conflito diz respeito relao

    com seus pais biolgicos, conforme explicitado anteriormente. Com relao aos adultos, os

    dois principais conflitos do cnjuge recasado referem-se ao sentimento de diviso entre seu

    novo par e seus filhos e ao sentimento de diviso entre seus filhos biolgicos e os enteados.

    Tanto Visher e Visher (1988) como Sager (1983) afirmam que o conflito interno dos

    pais entre o amor pelos filhos e o amor pelo novo cnjuge a maior fonte de tenso na famlia

    recasada. Acreditam que os pais podem vivenciar um sentimento de culpa, como se

    estivessem traindo suas relaes com os filhos. O segundo tipo de conflito de lealdade

    apontado por Visher e Visher (1993), tambm discutido por Carter e McGoldrick (1999),

  • 37

    pode ocorrer quando ambos os parceiros tm filhos, gerando, portanto, ambigidade com

    relao aos sentimentos direcionados aos filhos e aos enteados. Gostar mais ou gostar menos,

    cuidar dos enteados quando deveria estar cuidando dos seus filhos biolgicos, exercer tarefas

    parentais para os enteados enquanto os filhos biolgicos moram em outra casa, enfim, esses e

    outros dilemas podem gerar sentimentos de culpa e raiva.

    Segundo Travis (2003), a famlia extensa tambm pode ser geradora de conflitos de

    lealdade. Os avs, por exemplo, podem ter dificuldade em aceitar uma nova nora ou genro.

    Podem, ainda, tentar manter uma relao muito prxima com a me ou o pai biolgico de seus

    netos, fazendo com que o novo cnjuge se sinta excludo da famlia. O mesmo pode acontecer

    com tios, cunhados e primos.

    1.2.5- Fronteiras

    As fronteiras familiares remetem-nos ao processo de incluso e excluso familiar. De

    acordo com Sager (1983), o termo refere-se aos fatores que contribuem para o senso de

    identidade da famlia. Para o autor, as fronteiras podem ser objetivas, como as paredes ou

    muros de uma residncia que nos separam de nossos vizinhos, ou podem ser subjetivas, tais

    como as fronteiras que definem o grau de intimidade e proximidade fsica que os membros da

    famlia tm uns com os outros.

    Boss (1980) conjuga dessa idia e afirma que as fronteiras abarcam um fenmeno

    tanto fsico quanto psicolgico, cuja funo promover um senso de identidade que

    diferencia os membros de um grupo familiar de outro, assim como de outros grupos. De

    acordo com Minuchin (1982), as fronteiras dentro do sistema familiar constituem-se regras

    que definem quem participa da famlia e como.

    Ao abordar a questo das fronteiras na famlia recasada, tem-se como aspecto central a

    ambigidade. Para Genovese e Genovese (1997), a ambigidade fruto da incerteza em

  • 38

    relao a quem considerado membro da famlia ou no e que funes deve desempenhar na

    nova estrutura. Segundo as autoras, a reorganizao de funes e papis dificultada pelo fato

    de que a ausncia fsica de familiares no implica, necessariamente, sua ausncia psicolgica.

    Boss e Greenberg (1984) tambm apontam que a as fronteiras ambguas so fruto da falta de

    clareza sobre quem pertence ou no famlia e sobre as tarefas e papis a serem

    desempenhados por cada um. Para ele, a ambigidade nas fronteiras tem sido associada a um

    aumento no estresse familiar e disfuno da famlia.

    Estudiosos como Boss e Greenberg (1984), Robinson (1993), Pasley (1987) e Travis

    (2003) apontam que fronteiras ambguas so mais comuns em famlias recasadas do que em

    famlias de primeiro casamento. Em famlias de primeiro casamento, a ligao entre as

    pessoas definida biologicamente, legalmente e espacialmente e caracterizada por fronteiras

    explcitas. As famlias recasadas so geralmente caracterizadas por fronteiras determinadas

    mais subjetivamente, considerando-se tanto a freqncia de contato quanto a natureza

    voluntria das relaes.

    Podemos pensar em alguns exemplos dessa subjetividade e falta de clareza presente na

    formao das fronteiras familiares: a residncia e o sobrenome comum de pais biolgicos e

    seus filhos em famlias de primeiro casamento so marcos fsicos de fronteiras indisponveis

    em famlias recasadas; os filhos, no recasamento, mantm relaes em duas residncias,

    simultaneamente; dependendo do tipo de guarda e dos arranjos de visita, os filhos podem no

    considerar os co-irmos como membros da famlia recasada; enquanto o pai/me biolgico

    pode considerar o filho como membro familiar, a madrasta/padrasto pode ter alguma dvida

    sobre seu pertencimento nova famlia; geralmente pai biolgico e padrasto podem dividir

    responsabilidade econmica pelo filho assim como algum grau de autoridade parental em

    termos de cuidados dirios, mas os direitos legais dos padrastos so inexistentes. Esses e

    outros exemplos evidenciam a definio complexa e pouca clara das fronteiras.

  • 39

    Pasley (1987), em pesquisa realizada com 272 casais americanos recasados,

    identificou que o local de residncia um fator determinante na ambigidade de fronteiras.

    Cada cnjuge identificou separadamente os membros de sua famlia, e a situao ambgua

    fica evidente em relao aos filhos. Quando o filho ou filha do marido morava com a me

    biolgica, ele(a) no era considerado um membro da famlia recasada por muitas das esposas

    e at mesmo por alguns pais biolgicos. No mesmo ano, Furstenberg (apud TRAVIS, 2003)

    realizou uma pesquisa de mbito nacional nos Estados Unidos, abrangendo 1747 residncias,

    e concluiu que havia discordncia entre pais e filhos quanto incluso dos membros das

    famlias recasadas, mesmo quando moravam no mesmo domiclio, no sendo este, portanto, o

    fator central na definio do pertencimento. Quinze por cento dos homens que possuam

    enteados morando na mesma casa no os listaram como membros da famlia e 31% dos

    enteados deixaram de mencionar padrastos e madrastas residentes. Apenas 1% dos pais

    biolgicos deixou de mencionar seus filhos (mesmo quando no residentes); 9% dos filhos

    biolgicos no mencionaram o pai e 7% no mencionaram a me. Travis (2003) aponta que

    essas opinies permaneceram inalteradas ao longo do tempo. Dados como esses nos

    evidenciam a necessidade de mais pesquisas sobre a formao de fronteiras, por ser este um

    fator muito importante para o funcionamento saudvel das famlias recasadas.

    Carter e McGoldrick (1995) tambm apontam que as dificuldades de fronteiras so

    freqentes e centrais na famlia recasada e incluem questes de associao (quem so os

    verdadeiros membros da famlia?); espao (qual o meu espao? A qual lugar eu realmente

    perteno?); autoridade (quem est realmente no comando da disciplina, do dinheiro, das

    decises, etc?); tempo (a quem dedicar meu tempo e quanto tempo eu recebo deles?). As

    autoras apontam que esse grupo de questes central e deve ser negociado pelas famlias:

    necessria uma grande flexibilidade para que a famlia constantemente expanda e contraia suas fronteiras, inclua as crianas em visita e depois as deixe partir, ao mesmo tempo em que se estabelece o estilo de vida saudvel. (p.350)

  • 40

    1.2.6- A famlia recasada formada aps a morte de um cnjuge

    A maior parte das pesquisas sobre o recasamento tem como foco a famlia que se

    forma aps o divrcio dos cnjuges. Conhecer a dinmica da famlia recasada que se forma

    aps a morte de um cnjuge recebeu menos ateno dos estudiosos da rea. Podemos

    encontrar contribuies de Carter e McGoldrick (1999) e de McGoldrick (1996 apud

    CARTER & MCGOLDRICK ,1999) sobre o tema. As autoras nos apontam algumas questes

    diferentes encontradas nas famlias recasadas que so formadas aps a morte prematura de um

    dos cnjuges. Essas questes esto ligadas a questes de gnero, ou seja, se o recasamento

    da me ou do pai. O recasamento do pai aps a morte da me parece ser o mais difcil em

    termos de aceitao dos filhos; entretanto, Carter e McGoldrick (1999) afirmam que os filhos

    podem aceitar uma madrasta, se o pai os ajudar a elaborar o luto pela perda da me antes de

    confront-los com a nova mulher, pois, caso contrrio, se uma ateno insuficiente for dada

    ao luto infantil, eles podero nunca aceit-la. As autoras tambm apontam que o pai deve

    ajudar as crianas a aceitar a nova pessoa do jeito que ela , em vez de se juntar s crianas

    na tentativa e no desejo de que a famlia continue exatamente do mesmo jeito que era quando

    a me era viva. As autoras afirmam que, quando o recasamento da me, o padrasto pode ser

    visto em alguns casos como uma pessoa que resgata a famlia de um desamparo financeiro.

    Carter e McGoldrick (1999) lembram-nos que, embora parea haver certas vantagens

    em se formar uma famlia recasada aps a morte de um dos cnjuges, por no haver um ex-

    cnjuge por perto para interferir, os fantasmas podem ainda ser mais poderosos,

    principalmente pelo fato de as pessoas apresentarem a tendncia de idealizar algum que

    morre prematuramente. Dentre todos os tringulos que podem se formar na famlia recasada,

    um dos mais difceis de reconhecer e lidar aquele em que uma das pessoas envolvidas no

    tringulo uma pessoa morta, mas, conforme ensinam as autoras, Conversar, lembrar e

    reconhecer as falhas e virtudes da pessoa que se foi, ajuda a exorcizar o fantasma, mas nada

  • 41

    pode ser feito sem a liderana ativa do pai/me biolgico que permaneceu (CARTER &

    MCGOLDRICK,1999, p.422)

    1.2.7- A vivncia do recasamento em diferentes fases do ciclo vital

    bastante til compreenso da dinmica e da estrutura das famlias recasadas inclu-

    las na perspectiva do ciclo vital familiar. Carter e McGoldrick (1999) afirmam que bastante

    difcil localizar a famlia recasada numa determinada fase do ciclo, uma vez que dois

    subsistemas, agora unidos pelo recasamento, podem vir de fases bastante diferentes. Cerveny

    e Berthoud, (1997), entretanto, nos oferecem uma viso diferente, com a qual compartilho,

    quando apontam que, embora cada parceiro venha de experincias diferentes e de fases

    diferentes do ciclo vital, ao se unirem pelo recasamento, vivero juntos a Fase de Aquisio, a

    primeira fase do ciclo vital, segundo proposta terica de Cerveny (1997). Esta uma fase em

    que h o predomnio da tarefa de adquirir, seja essa aquisio material, emocional ou

    psicolgica. Assim, aqueles casais que se unem pela segunda ou terceira vez, j estabelecidos

    profissionalmente muitas vezes e com a responsabilidade de cuidar e/ou sustentar os filhos de

    unies anteriores, tambm se constituem famlias em fase de aquisio. Tais casais talvez no

    tenham que se preocupar com bens materiais ou com ascenso profissional, mas certamente

    passaro pelo processo de aquisio e construo de vnculos com os sistemas familiares de

    origem de ambos, com os sistemas familiares de seus ex-parceiros e com os filhos e enteados,

    buscando a adaptao, a integrao e a verdadeira formao da nova famlia.

    Carter e McGoldrick (1999) afirmam que, em geral, quanto maior a discrepncia em

    experincia no ciclo vital dos novos cnjuges (cnjuges que vivenciavam fases diferentes na

    primeira unio), maior ser a dificuldade de transio e mais demoradas sero a adaptao e a

    integrao da famlia. Quando os cnjuges no recasamento apresentam tal caracterstica, a

    unio deve ser vivida como um processo em que ambos precisam aprender a funcionar em

  • 42

    fases distintas simultaneamente e fora de sua seqncia normal. Como exemplo, podemos

    imaginar uma famlia em que uma nova esposa deve assumir o papel de madrasta de um

    adolescente sem antes ter se tornado uma esposa experiente e me de seus prprios filhos, e

    cujo marido ter que reviver com ela fases que j viveu: lua-de-mel, nascimento dos filhos

    deles, etc. Quando os cnjuges vivenciaram anteriormente a fase do ciclo vital, possuem a

    vantagem de trazer nova famlia as mesmas tarefas de ciclo de vida e a mesma experincia

    prvia em geral.

    Segundo Cerveny e Berthoud (2002), no recasamento, o processo de formao do

    casal caracterstico da fase de aquisio diferenciado, uma vez que apresenta elementos

    emocionais e relacionais diferentes do processo de primeira unio. O processo de adaptao

    pode ser facilitado pela maturidade, porm pode ser dificultado pela excessiva autonomia

    pessoal, o que gera dificuldades de negociar padres de rotina de vida e de regras de

    convivncia. A adaptao dos filhos de unies anteriores tambm apontada como um

    aspecto que dificulta a adaptao. Essa idia vem ao encontro da de Carter e McGoldrick

    (1999), pois afirmam que as famlias recasadas mais complexas so na maioria aquelas em

    que um ou ambos os filhos tem menos de dezoito anos.

    Para Visher e colaboradores (1997), as principais questes dos filhos no recasamento

    so lidar com as perdas e com as lealdades divididas, fazer parte de duas famlias e lidar com

    as questes de fronteiras (a que famlia perteno?), lidar com fantasias sobre a re-unio dos

    pais biolgicos e a culpa de ter provocado o divrcio. Para os filhos adolescentes, acrescenta-

    se lidar com a identidade e sexualidade. Os autores apontam que os filhos em idade pr-

    escolar podem se adaptar mais facilmente nova famlia, desde que sejam ajudados a lidar o

    luto pelas perdas anteriores, e que o ajustamento dos adolescentes o mais difcil.

    Quando o recasamento ocorre estando os cnjuges numa fase posterior criao dos

    filhos (fase madura ou fase ltima), embora no haja a tenso tpica da convivncia diria

  • 43

    entre enteados e padrastos, ser exigido dos cnjuges um ajustamento significativo nos

    relacionamentos dos dois sistemas familiares, especialmente porque h agora a presena no

    apenas dos filhos adultos, mas tambm de noras, genros e netos. Carter e McGoldrick (1999)

    descrevem que a aceitao facilitada quando o recasamento ocorre aps a viuvez, uma vez

    que os filhos se sentem aliviados pelo fato de o pai/me ter encontrado um companheiro numa

    fase tardia, ao passo que o divrcio geralmente provoca preocupao e espanto.

    1.2.8- O Ciclo Vital da famlia recasada

    Diferentes estudiosos do recasamento propem que analisemos a famlia recasada com

    base na perspectiva do seu prprio ciclo vital (CARTER & MCGOLDRICK, 1995, 1999;

    VISHER & VISHER, 1988; ROBINSON, 1993; PAPERNOW, 1984 apud ROBINSON,

    1993) . Aps a leitura dos esquemas de desenvolvimento apresentados pelos autores citados,

    considerei bastante abrangentes e complementares as propostas de Robinson (1993) e de

    Carter e McGoldrick (1999), que nos levam a refletir sobre todo o ciclo de transformao da

    famlia durante o recasamento e que integram todos os aspectos analisados ao longo deste

    tpico (A Famlia Recasada numa Perspectiva Sistmica).

    Para Robinson (1993), mudanas de segunda ordem (aquelas que resultam em

    mudanas no corpo das regras que governam a estrutura ou ordem interna do sistema) so

    exigidas na estrutura e funcionamento da famlia recasada, a fim de se restabelecer o

    funcionamento familiar. O ciclo vital da famlia recasada proposto pela autora apresenta sete

    fases, cada uma com suas tarefas emocionais prprias, relacionadas ao processo de transio e

    as mudanas de segunda ordem necessrias para se mover para a fase seguinte. As fases no

    so vistas como estanques e distintas, mas, ao contrrio, as interaes que as compem so

    circulares ao invs de lineares e precisam ser trabalhadas pela famlia nos sete nveis

    simultaneamente. As fases so: novos recomeos, esforos de assimilao, conscincia,

  • 44

    reestruturando, ao, integrando e resoluo. Pode-se perceber que a maior tarefa ao longo de

    todo o ciclo de desenvolvimento do sistema familiar recasado o reconhecimento e a

    aceitao de que a famlia recasada no uma famlia nuclear e que a tentativa de funcionar

    como um sistema relativamente fechado pode provavelmente lev-la ao fracasso.

    Representarei abaixo o quadro proposto por Robinson (1993, p.126-127) para a

    compreenso do ciclo vital da famlia recasada.

    Fase Processo Emocional de

    transio do casal

    Mudanas de segunda ordem exigidas do

    status familiar para prosseguir

    desenvolvimentalmente

    Novos recomeos

    Reconhecimento dos mitos e

    fantasias sobre famlias

    recasadas.

    Reconhecimento da necessidade de co-

    parentar enquanto se resolve o divrcio

    emocional;

    Reconhecimento que os vnculos entre pais e

    filhos precedem os vnculos do recasamento.

    Esforos de

    assimilao

    Dar tempo e espao para o

    padrasto ou madrasta e o enteado

    desenvolverem seus prprios

    relacionamentos.

    Reconhecimento do luto, do cime e dos

    conflitos de lealdade pela perda do sistema

    familiar original intacto.

    Conscincia Reafirmar as fronteiras

    generacionais e de co-habitao

    Reconhecimento da posio e da autoridade

    do pai biolgico;

    Reconhecimento do lugar do

    padrasto/madrasta.

    Reestruturando Mobilizao e levantamento das

    dificuldades

    Aceitao de que as mudanas so

    necessrias para a famlia recasada tornar-se

    funcional.

    Ao Comeando a trabalhar junto

    Criao de novas regras, rituais e fronteiras

    que so alcanadas atravs de renegociaes

    na rede familiar.

    Integrao Alcanar contato e intimidade na

    famlia recasada

    Padrasto/madrasta deve alcanar um papel

    nico em que no haja competio ou

    usurpao do papel dos pais biolgicos. Os

    papis devem incluir fronteiras generacionais

    entre padrastos/madrastas e crianas.

  • 45

    Fase Processo Emocional de

    transio do casal

    Mudanas de segunda ordem exigidas do

    status familiar para prosseguir

    desenvolvimentalmente

    Resoluo:

    Tornando-se uma

    famlia binuclear

    Acolhendo e deixando partir

    Abandonar as ltimas esperanas de viver

    como uma famlia nuclear;

    Desenvolver habilidades de negociar rituais

    familiares e mudanas de acesso e custdia.

    Figura 1- O ciclo vital da famlia recasada: transformao da famlia durante o recasamento (ROBINSON, 1993, p.126-127)

    Carter e McGoldrick (1999) propem um sumrio desenvolvimental, enfatizando que

    o processo emocional para a transio para o recasamento inicia-se j com a luta da pessoa, do

    novo parceiro e dos filhos contra os medos em investir em uma nova famlia. Para as autoras,

    a famlia recasada leva no mnimo dois anos para se estabilizar, dado que foi constatado em

    observao clnica com essa populao. Apontam trs etapas a serem vivenciadas at essa

    estabilizao, indicando as atitudes essenciais envolvidas e as questes desenvolvimentais

    referentes, as quais podem ser observadas no quadro abaixo:

    Etapas Atitude Essencial Questes Desenvolvimentais

    Iniciando o novo

    relacionamento

    Recuperao em relao perda do

    primeiro casamento (divrcio

    emocional adequado).

    Recomprometimento com o

    casamento e com a formao de uma

    famlia, com disposio para lidar

    com a complexidade e a

    ambigidade.

    Conceitualizando e

    planejando o novo

    casamento e a nova

    famlia

    Aceitar os prprios medos e os do

    cnjuge e dos filhos em relao ao

    recasamento e formao de uma

    famlia por segundo casamento.

    Aceitar a necessidade de tempo e

    pacincia para o ajustamento

    complexidade e ambigidade de:

    1- Mltiplos papis novos;

    2- Fronteiras: espao, tempo,

    condio de fazer parte da famlia,

    a- Trabalhar a honestidade nos novos

    relacionamentos para evitar

    pseudomutualidade.

    b- Planejar a manuteno de

    relacionamentos financeiros e de co-

    paternidade cooperativos com os ex-

    cnjuges.

    c- Planejar como ajudar os filhos a

    lidarem com seus medos, conflitos de

    lealdade, e condio de fazer parte de

  • 46

    autoridade;

    3- Questes afetivas: culpa, conflitos

    de lealdade, desejo de mutualidade,

    mgoas passadas no resolvidas.

    dois sistemas.

    d- Realinhamento dos

    relacionamentos com a famlia

    ampliada para incluir o novo cnjuge

    e filhos.

    Planejar a manuteno da conexo

    das crianas com a famlia do ex-

    cnjuge.

    Recasamento e

    reconstituio da famlia

    Resoluo final do apego ao cnjuge

    anterior e ao ideal da famlia intacta;

    Aceitao de um modelo diferente

    de famlia com fronteiras

    permeveis.

    a- Reestruturao das fronteiras

    familiares para permitir a incluso do

    novo cnjuge-padrasto ou madrasta;

    b- Realinhamento dos

    relacionamentos e arranjos

    financeiros em todos os subsistemas

    para permitir o entrelaamento de

    vrios sistemas;

    c- Criar espao para os

    relacionamentos de todos os filhos

    com os pais biolgicos sem custdia,

    avs e o restante da famlia ampliada;

    d- Compartilhar lembranas e

    histrias para aumentar a integrao

    da famlia por segundo casamento.

    Figura 2- Formao da Famlia Recasada: Um Sumrio Desenvolvimental. (CARTER & MCGOLDRICK, 1999, 377)

    Uma sinttica visita por todo o ciclo proposto por Robinson (1993) e Carter e

    McGoldrick (1999) permite-nos concluir que as idias centrais e que permeiam o ciclo de

    desenvolvimento da famlia recasada apontadas por ambas so bastante semelhantes, embora

    Robinson (1993) divida o ciclo em sete etapas e Carter e McGoldrick (1999) em trs. Fica

    evidente para mim que os processos chaves enfatizam fenmenos psicolgicos que apontam

    para a necessidade de se lidar com a ambigidade da nova estrutura, de renegociar as novas

    relaes familiares e especialmente de reconhecer e viver essa nova famlia como diferente da

    famlia tradicional intacta. Acredito que esses sejam pontos fundamentais para o

  • 47

    funcionamento saudvel da famlia recasada e que contribuam para o desenvolvimento de

    relaes positivas entre seus membros. No poderia deixar de apontar a necessidade de

    realizao de uma pesquisa nacional sobre o ciclo vital da famlia recasada, pois,

    indubitavelmente, nosso contexto sociocultural marca diferenas importantes no

    desenvolvimento dessas famlias, que precisam ser conhecidas com maior profundidade pelos

    profissionais da rea.

  • 48

    1.3- A Famlia Recasada como objeto de Pesquisa: 30 anos de Investigao

    Meu objetivo nesta subseo apresentar como o tema recasamento tem sido

    retratado na literatura cientfica nacional e internacional, com base no levantamento e anlise

    das produes da rea nas dcadas de 70, 80, 90 at 2004, pertencentes aos bancos de dados

    da APA (American Psychological Association), do Portal de Teses e Dissertaes da CAPES

    (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior) e do IBICT (Instituto

    Brasileiro de Informao em Cincia e Tecnologia), da Scielo (Scientific Electronic Library

    on Line) e da Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe de Cincias da Sade).

    Considero importante esse tipo de anlise para elucidar reas suficientemente exploradas e

    que apresentam conhecimento consolidado por pesquisas ao longo das dcadas, assim como

    para explicitar possveis lacunas, que se constituem temas que necessitam de maior

    investimento terico e prtico. Os bancos de dados apresentados acima foram escolhidos pela

    sua notvel confiabilidade e representatividade na Psicologia, considerando que os trabalhos

    nele encontrados representam seguramente o cenrio cientfico existente, tanto nacional como

    internacional.

    1.3.1- Literatura Estrangeira

    1.3.1.1- APA (American Psychological Association)

    No banco de dados da APA, composto por livros, artigos, teses e dissertaes, em sua

    grande maioria, produzidos nos Estados Unidos, foram encontradas 566 publicaes sobre o

    assunto stepfamily, tendo sido 24 delas descartadas por no apresentarem o recasamento

    como tema central.

    Uma anlise global permite constatar que, embora o tema tenha surgido no cenrio

    cientfico na dcada de 70, e que a dcada de 80 tenha sido um perodo produtivo na rea, foi

  • 49

    na dcada de 90 que ocorreu o maior nmero de pesquisas sobre o recasamento, e, ao longo

    dos ltimos anos, uma ampla gama de novas temticas foi surgindo em torno do assunto, o

    que reflete justamente a demanda de uma sociedade em constante transformao.

    Para facilitar a anlise e a exposio, agrupei as publicaes em sete categorias,

    apresentadas na tabela abaixo:

    Nmero de publicaes Categorias Subcategorias Dcada

    de 70 Dcada de 80

    Dcada de 90

    2000-2004

    Total

    1.1- Processos da famlia recasada 2 35 73 30 140

    1.2- Relacionamento entre pais, mes, padrastos , madrastas e filhos

    0 14 34 22 70

    1.3- Relacionamento entre irmos, meio-irmos e co-irmos

    0 3 8 4 15

    1- Dinmica da famlia Recasada

    1.4- Relacionamento entre avs e netos

    0 0 7 2 9

    2- Interveno junto famlia Recasada 1 32 58 14 105

    3- Efeitos do Recasamento 0 16 64 20 100

    4- Viso sobre a famlia recasada 0 7 22 7 36

    5- Recasamento e questes diversas 0 5 15 10 30

    6- Reviso de Literatura 0 7 11 5 23

    7- Dados demogrficos, polticas pblicas e questes legais 0 4 8 2 14

    Total 3 122 300 116 542

    Figura 3- Publicaes sobre Recasamento nos ltimos 30 anos da APA (American Psychological Association)

    CATEGORIA 1- DINMICA DA FAMLIA RECASADA

    Com um total de 234 publicaes, a dinmica da famlia recasada tm sido a temtica

    mais pesquisada da rea. Nessa categoria esto includas as pesquisas sobre os processos da

    famlia recasada (dinmica, qualidade e estabilidade da relao conjugal, fronteiras,

    triangulaes, papis, tenses, identidade da famlia, fases da famlia recasada, recasamento e

    ciclo vital); relacionamento entre pais, mes, padrastos e madrastas; relacionamento

  • 50

    entre irmos, meio-irmos e co-irmos; e relacionamento entre avs e netos. Tais

    subcategorias foram criadas para facilitar a visualizao dos estudos, conforme suas nfases.

    1.1- Processos da famlia recasada

    O interesse em se compreender os processos vivenciados pela famlia recasada j fica

    evidenciado desde a dcada de 70, quando foram escritos dois trabalhos. Um deles, intitulado

    Divrcio e Recasamento: um novo comeo, uma nova srie de problemas (JONES &

    SHIRLEY, 1978), alerta que esta uma era de divrcios e recasamentos, mas que nem os

    indivduos envolvidos nem a sociedade em geral encontram-se preparados para lidar com o

    recasamento. Aponta que a sociedade americana apresenta uma tendncia em glorificar a

    famlia nuclear, estigmatizando a famlia recasada, o que dificulta a adaptao e as relaes.

    Partindo dessa constatao, discute as tenses e problemas vividos.

    Um segundo trabalho da dcada, de autoria de Visher e Visher (1978), tambm

    enfatiza as reas de maiores dificuldades para os casais recasados: problemas relacionados aos

    filhos, dificuldades financeiras e desentendimentos conjugais.

    Da nfase exclusiva nas dificuldades da famlia recasada na dcada de 70, j

    encontramos na dcada de 80 alguns trabalhos que enfocam no apenas os aspectos negativos,

    mas tambm as possibilidades de funcionamento saudvel desse tipo de famlia

    (SIRULNICK, 1981; PITTMAN, 1983; HARTELL & GAY, 1985; MAJOR, 1989; RIGGS,

    1989). Outros temas que despontam so: papis dos membros da famlia e suas respectivas

    autoridades e responsabilidades; questes financeiras da famlia recasada; coeso e

    adaptabilidade da famlia; formao de identidade familiar; funo dos rituais familiares;

    fronteiras e ambigidade; ciclo vital da famlia recasada. De forma geral, percebe-se o

    interesse na poca e a demanda de se compreender de forma global o funcionamento e a

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    dinmica da famlia que se formava a partir do recasamento e que se fazia cada vez mais

    presente na sociedade americana, conforme indicavam os estudos demogrficos.

    Na dcada de 90, os nmeros indicam que houve investimento ainda