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  • 7/25/2019 Isolda

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    histria da RedeXique-Xique deComercializao

    Solidria1confunde-se com a hist-ria da organizao das mulheres naregio oeste do Rio Grande do Nor-te. Sua fundao teve a participa-o de vrios grupos com experin-cia de produo coletiva e que bus-cavam um espao de comerciali-zao que atendesse s necessida-

    des de seus projetos produtivos.

    Em 1999, o Grupo de Mulheres Decididas aVencer, do Assentamento Mulungunzinho, de Mossor(RN), aps avaliar vrias idias para gerar renda por meio

    A construo daeconomia feminista na

    Rede Xique-Xiquede Comercializao SolidriaIsolda Dantas*

    A

    de um projeto produtivo, dentre eles, fbricas de doces ecriao de galinhas, optou pelo cultivo de hortalias org-

    nicas. A agricultura fazia parte das razes e do dia-a-dia decada uma delas, familiarizadas com a terra e seus humores.Pratic-la agora com base nos princpios da agroecologiaera converter o aprendizado que tinham acumulado emuma obra concreta.

    Convencidas da idia de cultivar hortaliasagroecolgicas, era necessrio averiguar formas decomercializao coerentes com as da produo, que fos-sem justas, solidrias, o que significa tambm escapar

    Agricultoras participando da Feira de Economia Solidria

    1A Rede Xique-Xique de Comercializao Solidria tem sede na cidade de Mossor

    (RN), situada na regio oeste do estado do Rio Grande do Norte. fruto de um amploprocesso de construo coletiva dos grupos produtivos, com a contribuio de umconjunto de organizaes da sociedade civil que, atuando em diferentes reas, lutampela autonomia e melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras docampo e da cidade. A Rede comercializa e produz dentro dos princpios da agroecologiae da economia solidria. Contatos: [email protected].

    Foto:Arqu

    ivoCf8eRedeXique-xique

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    explorao exercida pelos atravessa-dores. Pensando nisso, foi criada a As-sociao de Parceiros e Parceiras daTerra (APT). Nesse espao, reuniam-se produtoras e consumidores(as), e

    todo o processo de venda e entrega deprodutos era feito de forma direta.Aps trs anos, outros gru-

    pos de reas de assentamentos rurais eurbanos, na sua maioria mulheres, queproduziam mel de abelha, castanha, ar-tesanatos de palha e sementes, deriva-dos da caprinocultura e hortigrangeirosem vrios municpios da regio, tam-bm passaram a demandar meios paraa comercializao de sua produo.

    Com isso, grupos produti-vos, entidades de assessoria e movimen-tos tinham uma preocupao que eranorteada pela certeza de que precisa-vam estender a comercializao a to-dos os envolvidos, conservando osmesmos compromissos afirmados paraa produo e organizao, que estiveram presentes noprocesso de construo da Rede e que integram, hoje, acarta de princpios do Espao Xique-Xique: aproduo, acomercializao e o consumo devem se distanciar de to-

    das as formas de explorao do trabalho, incluindo o tra-balho infantil, ausncia de salrio digno, desigualdade sa-

    larial entre homens e mulheres, presena da figura do

    atravessador entre a produo e comercializao, dentre

    outras.Buscamos, ento, dar um passo alm, soman-

    do esforos na constituio da trade organizao, produ-o e comercializao e ampliando assim a idia da APT,iniciada pelo Grupo de Mulheres Decididas a Vencer. Em2003, criou-se o Espao de Comercializao SolidriaXique-Xique, em Mossor (RN).

    A construo da Rede

    O Espao de Comercializao Solidria tornou-se rede quando reuniu 50 grupos participantes, de oitomunicpios. Atualmente, a Rede tem dois ncleos funcio-nando, em Mossor e Barana. Alm de potencializar eparticipar de feiras, promover seminrios de formao, ar-ticular-se com outras redes, segue avanando no processode certificao participativa e na construo de novosncleos e feiras agroecolgicas semanais.

    A idia que o objetivo final no expresse ape-

    nas uma troca mercadolgica de produtos, mas se situe nacontinuidade do processo de conscientizao feito de for-ma participativa entre produtoras e produtores, consumi-doras e consumidores, guiados pela premissa daautogesto.

    Promover a articulao dessas trs etapas sig-nifica acreditar na construo de um instrumento concre-to que garanta que os princpios e valores presentes naorganizao permaneam tambm nos momentos da pro-duo e comercializao. Quem se organiza tambm querproduzir, quem produz quer se organizar e comercializar.E produzir com organizao exige uma comercializao

    justa e solidria.

    Afirmando a conscincia feminista

    No caso particular dos projetos desenvolvidosdentro de uma conscincia feminista, sabamos que a bus-ca desse novo horizonte transcendia a afirmao de pre-ceitos ticos e solidrios ao longo do processo de forma-o, pois necessitvamos, antes de tudo, que as mulheres

    estivessem presentes de forma real e efetiva em todos osespaos, sendo sujeitos da ao nessa construo.

    Essa compreenso fundamenta a atuao daRede, que em sua carta de princpios traz expressa a preo-cupao em garantir a valorizao do trabalho das mulhe-res e jovens, reforando sua participao, atravs de uma

    poltica de ao afirmativa em todas as etapas do processo

    (buscando instrumentos que viabilizem a socializao do

    trabalho domstico), respeitando suas diferenas sem ge-

    rar desigualdades de gnero e gerao.Como conseqncia desse enfoque de forma-

    o, a Rede Xique-Xique tem atualmente em suas instn-cias uma presena feminina significativa. No ConselhoDiretor, composto por sete membros, seis so mulheres.A associao, gestora jurdica da Rede, diretoria e coorde-nao tambm contam com 90% de mulheres. Alm da

    Produtos comercilizado na Rede Xique-xique

    Foto:ArquivoCf8eRedeXique-xique

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    ocupao dos cargos de direo, elas participam na Redeatravs dos grupos de mulheres organizados nos assenta-mentos e/ou nas comunidades, somando 35 grupos pro-dutivos, num total de cinqenta grupos.

    A produo das mulheres a principal respon-svel pela grande diversidade de produtos comercializadosno ncleo de Mossor e nas feiras livres. Hoje, so produ-zidos por elas, de forma agroecolgica, uma pauta diversi-ficada de produtos transformados e in natura: doces, melde abelha, rapadura de leite de cabra, produtos de higienepessoal base de mel, artesanato de palha, sisal e semen-tes, hortalias e mariscos.

    Na busca por construir alternativas comuns parafacilitar a comercializao dentro da Rede, alguns gruposde mulheres optaram por confeccionar uma rotulagemnica para produtos semelhantes. Isso garante uma iden-tidade aos produtos das mulheres integrantes da Rede.

    Alm disso, so realizadas compras de matria-prima en-tre os grupos: compra-se mel das apicultoras para produ-tos base de mel; vende-se cenoura para o outro grupoproduzir bolos. Nessa perspectiva, garante-se a circulaodos produtos das mulheres fora e dentro da Rede.

    Como j falamos anteriormente, a Rede tam-bm um espao de organizao e articulao. Os gruposde mulheres, alm de pertencerem Rede, participam domovimento feminista, por meio da Marcha Mundial dasMulheres e da Coordenao Oeste de Mulheres, retro-alimentando o conjunto do movimento e a Rede com ques-

    tes referentes luta contra transgnicos, luta contra oacordo da rea de Livre Comrcio das Amricas (Alca),pelo acesso a crdito, acesso a gua, dentre outras.

    Limites e desafios para as mulheres

    A ocupao desses espaos, a produo e acomercializao feitas pelas mulheres representam avan-os. Basta olharmos os diversos depoimentos das envolvi-das na rede: Aos poucos, conscientizvamos nossos mari-dos das vantagens que a associao das mulheres traria

    para toda a famlia. Como associadas, somaramos os nos-sos benefcios e direitos aos deles, mas s conseguiramos

    atravs da organizao, conta Neneide Viana, presidenteda Associao Xique-Xique. Ela procura ainda evidenciarque os resultados alcanados esto inter-relacionados, sejana diviso das tarefas domsticas, seja no seu reconheci-mento na esfera pblica: Recebemos pesquisadores, as-sistentes sociais e equipes de avaliao do governo. Todos

    no assentamento encaminham at a gente, dizendo: Vo

    at s mulheres, elas que so responsveis pela organiza-

    o aqui.

    Alm dos ganhos relativos autodeterminaodas mulheres no mundo pblico e privado, podemos cons-tatar o despertar para o conhecimento, construindo no-vas tecnologias, tanto no processo de produo como nagesto de seus projetos: Em nossa plantao, os sapos

    passeiam livremente, desde que descobrimos que eles eram

    nossa melhor arma para expulsar os gafanhotos, explicaAna Lcia, produtora de hortalias agroecolgicas do Pro-

    jeto de Assentamento de Mulungunzinho. Quem visitanosso projeto v uma coisa engraada. L tem bero, tem

    rede e muito menino. Assim como as tarefas da produo,

    o cuidado com as crianas tambm dividido entre ns,observa Liana, presidente da Associao do Assentamen-to e produtora da Rede Xique-Xique.

    Mesmo destacando os avanos, im-portante refletir sobre algumas questes:Como provocar e efetivar nesse proces-so de economia solidria questes refe-rentes socializao do trabalho emtodos os espaos? A participao emexperincias solidrias no assegura a

    justa diviso de tarefas domsticas nocotidiano das mulheres, pois o custo dareproduo da fora de trabalho no ca-pitalismo tem sido pago apenas pelasmulheres em suas famlias. (Nobre,2003, p.210).

    Nesse sentido, a economia feminista, que inau-gura uma nova discusso na economia, coloca a reprodu-o humana na centralidade do debate econmico, envol-vendo a diviso sexual do trabalho e a necessidade de cons-truir valores sociais para a produo do viver. Essa for-

    ma de abordagem feminista trouxe para a Rede Xique-Xique a necessidade de aprofundar tais questes e pratic-las no interior de cada grupo integrante da Rede: Oaporte da economia feminista tornar visvel a contribui-o das mulheres economia. So pesquisas que conside-

    Alm dos ganhos relativos

    autodeterminao das mulheres

    no mundo pblico e privado,

    podemos constatar o despertar

    para o conhecimento,

    construindo novas tecnologias,

    tanto no processo de produo

    como na gesto

    de seus projetos.

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    Referncias:

    FARIA, Nalu & NOBRE, Miriam (Orgs). A produ-o do viver. SOF, 2003.

    Economia Feminista. SOF, 2002.

    NOBRE, M. Mulheres na economia solidria. In:CATTANI, A. David (Org.). A outra economia.

    Ed. Veraz, 2003.CARRASCO, C. Introduccin: hacia unaeconoma feminista. In: CARRASCO (Ed.).Mujeres y economa.

    ram o trabalho de forma mais ampla, incluindo o mercadoinformal, o trabalho domstico, a diviso sexual do traba-lho na famlia, e integram a reproduo como fundamen-tal a nossa existncia, incorporando sade, educao eoutros aspectos relacionados com temas legtimos da eco-nomia (FARIA e NOBRE, 2003, p.13).

    necessrio seguir provocando essa reflexono interior dos grupos de mulheres em cada comunidade eassentamento. So em reunies quinzenais dos grupos demulheres que as questes do cotidiano so formuladas e,a partir de cada grupo, so repassadas para a Rede. Sabe-mos que as alternativas s questes estruturais, como a dadiviso sexual do trabalho, s sero criadas com uma realmudana na sociedade, provocada pelas prprias mulhe-res. Estamos falando de transformao e, sem dvida, eladeve ser cotidiana.

    Outro desafio est relacionado ao fato de lidar-mos tambm com experincias mistas, nas quais a deter-minao da presena das mulheres precisa ser constante-mente reafirmada. De fato, o que observamos quando setrata de trabalho coletivo misto que as mulheres perdemseu poder de participao medida que os resultados po-sitivos aparecem.

    Apesar da constante busca pela autodetermi-nao, o nmero expressivo de grupos produtivos de mu-lheres atualmente existente na Rede Xique-Xique enfren-ta os mais corriqueiros limites, como, por exemplo, a nopermisso pelo marido para participar de atividades exter-nas regio. Uma outra manifestao dessas restries adesvalorizao do trabalho das mulheres na famlia. Mes-mo quando a renda oriunda do trabalho da mulher repre-senta quase 100% do oramento familiar, o marido aindao trata como ajuda. H ainda as barreiras da distnciafsica e poltica, quando as mulheres produzem, mas noconseguem chegar ao ncleo da Rede para comercializar.

    Reconhecer a existncia desses limites e trat-los com a devida relevncia parte de nossa luta pelofortalecimento da organizao e da economia das mulhe-res, no intuito de super-los, resistindo cmoda rendi-o ao discurso mascarado de que existe transversalidade

    e participao das mulheres quando se fala em economiasolidria.

    importante ter claro que, mesmo as experin-cias de economia solidria, ao serem desenvolvidas em umaeconomia hegemnica capitalista, so passveis de inme-ras contradies. Cientes disso, podemos dispor de novaspossibilidades de constituir formas alternativas de produ-o e comercializao, questionando o modelo concen-trador e excludente, desnaturalizando-o de sua propagan-da de ideal e eficiente.

    A criao da Rede Xique-Xique tem mostrado

    que possvel garantir, mesmo diante dos limites apresen-tados, que as mulheres sejam protagonistas de um proces-so que envolve e entrelaa diversos temas, como agro-ecologia, feminismo e economia solidria. A Rede Xique-Xique a prova de que podemos construir espaos deproduo e de comercializao da agricultura familiar fun-dada na articulao desses pressupostos.

    *Isolda Dantas:

    militante da Marcha Mundial das Mulheres e da Rede de

    Economia e Feminismo; assessora da Rede Xique-Xique

    de Comercializao [email protected]

    Mutiro de preparao de rea produtiva

    Reconhecer a existncia desses limites

    e trat-los com a devida relevncia

    parte de nossa luta pelo

    fortalecimento da organizao e da

    economia das mulheres, no intuito de

    super-los, resistindo cmoda

    rendio ao discurso mascarado de

    que existe transversalidade eparticipao das mulheres quando se

    fala em economia solidria.

    Foto:Arqu

    ivoCf8eRedeXique-xique