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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · Iracema, de Alencar2 e o poético3 em Tristão e Isolda, releitura de Joseph Bédier. Desta forma, reafirmo a idéia de que a pesquisa

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica

“Processos intersemióticos num mito da cultura amorosa

brasileira: Iracema de José de Alencar”

Leni Lourenço de Oliveira

PUC-SP São Paulo

2005

14

LENI LOURENÇO DE OLIVEIRA

“Processos Intersemióticos num mito da cultura amorosa brasileira: Iracema de José de Alencar”

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica – área de concentração Signo e Significação nas Mídias, sob a orientação da Profª. Drª Leda Tenório da Motta.

PUC-SP São Paulo, 2005

15

Banca Examinadora

______________________________________________

______________________________________________

______________________________________________

______________________________________________

______________________________________________

16

AUTORIZO, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução

total ou parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

____________________________ São Paulo, ____/____/____ .

17

À minha mãe Terezinha de Jesus Oliveira e a todos

os meus irmãos que não tiveram a oportunidade de

realizar um trabalho de tamanha envergadura e

importância, um grande abraço. Fica aqui registrado

meu protesto de compreensão.

18

Agradecimentos Antes de tudo, como bom cristão que sou, agradeço a Deus pela luz, graça e

discernimento.

À minha orientadora, Profª. Drª Leda Tenório da Motta, pelo estímulo, pela

compreensão, pela persistência, e apoio ilimitado em todos os momentos dessa aposta,

sobretudo, pela capacidade de livrar-me de alguns vícios lingüísticos: leu os escritos em sua

totalidade e fez importantes sugestões críticas que melhoraram consideravelmente meus

textos acadêmicos.

À minha esposa, Maria Anunciada Lopes, pela incessante paciência, e às minhas

filhas, Betânia, Patrícia e Jaqueline, que, mesmo em silêncio, sempre torceram,

positivamente, para a realização deste novo percurso da minha carreira acadêmica.

Aos professores (as) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

responsáveis por todos os conhecimentos adquiridos e acompanhamento durante o curso.

Às secretárias, Edna Conte Marcello e Maria Aparecida Ribeiro Bueno, do

Programa de Comunicação e Semiótica, pela calorosa e infindável ajuda na parte técnico-

administrativa que o curso requer.

À comunidade científica responsável pela parte técnico-acadêmica desta Tese de

Doutorado.

A todos os meus amigos, que direta ou indiretamente, torceram junto comigo para

a confecção deste estudo.

À Banca de Qualificação, composta pela Profª. Drª Marlise Vaz Bridi e ao Prof.

Drº Ricardo Araújo, pelas valiosas contribuições teóricas fornecidas ao aprimoramento desta

pesquisa.

À CAPES, pelos recursos que possibilitaram durante algum tempo o

desenvolvimento das pesquisas e dos estudos, para a concretização deste projeto de vida.

19

À Universidade de Amaro – UNISA – , que colaborou no empreendimento inicial

do referido trabalho.

À Aparecida L. A. Zuin e à Academia Editorial, pelo companheirismo e a

amizade firmada nos momentos finais desta tese; pelo apoio e contribuições para as

publicações dos meus livros –, que juntamente com esta tese foi mais um sonho realizado.

20

“O mito é uma fala” Naturalmente, não é uma fala qualquer. São necessárias condições especiais para que a linguagem se transforme em mito, vê-lo-emos em breve. Mas o que se deve estabelecer solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito, ou uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma. Será necessário, mais tarde, impor a esta forma limites históricos, condições de funcionamento, reinvestir nela a sociedade: isso não impede que seja necessário descrevê-la de início como uma forma.

(Mitologias: Roland Barthes)

21

Resumo

Partindo da clássica definição de Roland Barthes, segundo a qual o mito é

linguagem em plena ação ideológica, a presente Tese empenha-se em desvendar as figuras do

discurso amoroso que agem numa narrativa mítica brasileira: “Iracema”, de José de Alencar.

Tomado como corpus de análise, o texto “Iracema”, foi aqui apresentado e defendido sob a

perspectiva da Semiótica, contemplando-se especificamente os estudos das relações

intersemióticas que se estabelecem entre este discurso e as “falas” corteses de “Tristão e

Isolda” de Joseph Bédier, aí subentendidas.

As belas análises de Roland Barthes em Fragmentos de Um Discurso Amoroso

são também levadas em conta.

O objetivo ora proposto e defendido, por sua vez, além de ser semioticamente

desencadeador de uma discussão tratada na sociedade moderna, tenciona subsidiar uma

crítica do amor romântico e dos estereótipos dos gêneros e do casal. Nesse universo

romântico, buscamos apreender as relações inerentes que surgem atuantes nas ficções da

indústria cultural, mais especificamente expressas e manifestadas nos horários nobres

televisivos – as telenovelas

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Abstract

Departing of the Roland Barthes’ classic definition according to which the myth

is a language in complete ideological action, the present Doctorship Thesis pledges to

elucidate the shapes of the amorous speech that actuate in a brazilian mythical narrative:

“Iracema”, by José de Alencar. Taken like analysis corpus, the text “Iracema”, it was here

presented and defended under the view of the semiotic, considering specifically the studies

about intersemiotic relations that establish themselves between this speech and the courtesy

“voices” of Tristão and Isolda there understood.

The beautiful analysis of Roland Barthes in Fragmentos de Um Discurso Amoroso are, also, taken in consideration.

The purpose here proposed and defended, by its time, beyond being in semiotic

thermos, productive of a treated discussion in the modern society, looks for to subside a

criticism of the romantic love and of the stereotypes of the genders and of the couple. In this

romantic universe we search to apprehend the inherent relations that emerge in scene in the

fictions of the cultural industry more specifically expressed and manifest in the noble

timeable of the television through of the short novel.

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Sumário

Apresentação .....................................................................................13

1- Aldo Carotenuto ..............................................................................16

2- Roland Barthes ...............................................................................18

3- Georges Duby ..............................................................………….. 20

4- Denis de Rougemont .........................................................….....…26

5- Mircea Eliade .................................................................................29

Primeiro Capítulo

1- A mulher medieval ...........................................................................37

2- Heloísa e Isolda: dois perfis ............................................................46

3- Histórico Medieval ..........................................................................56 Segundo Capítulo

1- Tristão e Isolda: vista geral do problema ......................................59

2- Filtro: o indutor do conflito amoroso ............................................70

3- Curto mas curioso ...........................................................................77

4- Paralelo entre Tristão e Isolda e o Drama – Heloísa -Abelardo.............................................................79

Terceiro Capítulo

1- A fortuna crítica alencariana: Roberto Schwarz .........................85

24

2- Antônio Cândido: os três Alencares ..............................................97

3- Alfredo Bosi: dialética da Colonização .......................................101

4- Haroldo de Campos: uma arqueologia de vanguarda ..............104

Quarto Capítulo

1- Iracema – Apresentação Geral .....................................................107

2- Alencar sob o signo do amor-cortês .............................................113

3- Figuras de vassalagem ..................................................................131

4- O Mito ............................................................................................160

5- Papéis Masculinos ........................................................................ 193

Conclusão .........................................................................................205

Apêndices ........................................................................................212

Bibliografia

1 -ALENCAR, José de ........................................................................216

Obras de José de Alencar.........................................................216 Obras sobre José de Alencar....................................................216 Obras sobre o amor-cortês.......................................................217

Bibliografia Geral ..............................................................................................................220

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Apresentação

Traços, partículas, fragmentos de textos são extraídos de uma totalidade – como numa tomada sinedóquica – para serem analogados com outros retalhos de uma outra totalidade. A idéia é de compor, com esses retalhos e sobressaltos, uma espécie de constelação supra-histórica, em que os textos dialogantes exibem seu devir na mutação dessas partículas.1

(Lezama Lima)

A intertextualidade como objeto de estudo não é nova dentro da literatura.

Existem autores que trilharam seus caminhos procurando estabelecer relações entre os textos

da lírica trovadoresca e do Romantismo brasileiro. Servir-me-ei, do mesmo modo das

pesquisas sobre a intertextualidade, contudo, referente ao tema abordado, confirmo ser

inteiramente inédito para o universo literário e acadêmico. Juntos, adentraremos as florestas

batidas do sertão e do litoral cearenses habitados pelos indígenas, bem como, retomaremos o

elemento colonizador da época; os castelos medievais europeus e, por meio de uma descida

sucessiva às várias facetas da paixão, visualizaremos as mais variadas peripécias pelas quais

passam as personagens tão suscetíveis ao sofrimento (coita), na conjunção amorosa: razão

primeira da sobrevivência e por que não dizer, motivo principal do episódio romanesco em

Iracema, de Alencar2 e o poético3 em Tristão e Isolda, releitura de Joseph Bédier.

Desta forma, reafirmo a idéia de que a pesquisa na área da intertextualidade pode

contribuir para o aprofundamento dos principais problemas relacionados à comunicação

entre as literaturas utilizando-se dos instrumentos de pesquisa da Literatura Comparada, e

buscando apoio em outras áreas do conhecimento, tais como: a História, a Psicanálise, as

Ciências da Religião, a Filosofia, a Antropologia e a Semiótica. Estas ciências ajudam na

1 LIMA, Lezama. A Expressão Americana. Tradução, Introdução e Notas: Irlemar Chiampi. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 25. 2 GRIECCO, Agripino. Grande Alencar! Viu o Brasil total, de norte a sul, do mar ao planalto, viu a cidade, a selva e as coxilhas. E se tornou o grande poeta historiador, o grande pintor de nosso país. Lançou o que temos de mais impressionante em assuntos de cavalheirismo, de paixão romanesca. Talvez compreendesse como nenhum outro contemporâneo seu a política do coração das mulheres. Continua a ser uma espécie de contemporâneo nosso, e ante a variedade com que tratou da gente brasileira de norte a sul, uma espécie de conterrâneo de todos nós. Alencar é um desses famosos sítios brasileiros onde nos reunimos para melhor admirar o Brasil. 3 BARTHES, Roland. A Plenitude da Linguagem. O conjunto das teorias conhecidas até aqui assenta num postulado comum. Confrontam-se, desde a Antigüidade, consoante põem o acento no significante ou no significado. Mas em ambos os casos, convergem para aceitar como traço pertinente da diferença poesia/não-poesia (ou prosa) um caráter propriamente quantitativo. A poesia não é coisa diferente da prosa, ela é mais. R. Barthes exprime essa concepção, que critica, pela seguinte equação: Poesia=prosa+a+b+c. pp. 10-11.

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aquisição e compreensão dos mecanismos de construção do texto literário ao abordar

realidades no campo da linguagem enriquecedoras tanto do ponto de vista sincrônico, como

diacrônico. Neste sentido, levando-se em consideração os estudos de Mikhail Bakhtin, a

primeira condição da intertextualidade é que as obras sejam vistas como inacabadas, isto é,

que permitam e peçam para serem prosseguidas, pois a obra reescreve-se permanentemente.

Assim, a intertextualidade é definida como uma ação dialógica e simbólica dentro de uma

rede textual. Vale ainda lembrar que esta semiose ocorre muito mesmo antes da consciência,

são textos produzidos pela cultura e neles se enquadram a atividade onírica, a atividade

lúdica, os estados alterados de consciência, o êxtase, o transe, o delírio, a fantasia e as

variantes psicopatológicas.

Esse trabalho tem como objetivo o estudo das “relações de vassalagem amorosa e

a conseqüente morte voluntária das personagens” que protagonizam as duas produções

literárias em pauta, contrastando-as comparativamente, visto que o comparativismo nada

mais é que outro nome da intertextualidade.

“Assim compreendida, a literatura comparada é uma forma específica de

interrogar os textos literários na sua interação com outros textos, literários ou não, e outras

formas de expressão cultural e artística”4. Neste sentido, verificar-se-á o tipo de enfoque que

cada autor configura na tessitura organizacional de sua obra e as relações de transformação de

conteúdo que nelas produzem. Além do estudo comparativo de Iracema e Tristão e Isolda ,

nos apoiaremos, em episódios da vida selvagem, urbana e outros romances indianistas, bem

como outras fontes que nos auxiliem a esclarecer o contexto de nosso objeto de estudo.

Para isto, investigaremos a presentificação do ideário do amor cortês. Importa

dizer neste preâmbulo que o conteúdo da cortesia medieval, suas tendências e formas de

manifestação no tocante ao teor semântico e simbólico da rede de produção textual, são

também observadas na organização sentimental do homem contemporâneo, o que vale dizer

que sua forma de expressão não se restringe apenas a uma época nem tampouco a um único

período da história literária, e isso nos permite conceituá-lo como de caráter universal. O

amor cortês é na sua essencialidade sobrecarregado de um intenso sentimentalismo. É uma

arte do sentido, um cultivo da alma. As literaturas modernas são por si só uma evolução por

etapas das formas de consciência do amor.

4 CARVALHAL, Tânia. Literatura Comparada. 3ª Edição. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 74.

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Nos trovadores provençais, que são a fonte da poesia moderna, o amor reveste-se

de vassalagem feudal: nela a mulher é um simples objeto, sem vida própria, e o amante tem

de conquistá-la, não pela força, mas por uma espécie de aperfeiçoamento individual da

sensibilidade. Teremos ocasião de ampliar e completar estas poucas indicações preliminares,

mas é importante frisar, desde já, um fato que nos parece essencial: o mito do amor-cortês –

que atravessou os séculos revestindo-se de maior ou menor dose de lirismo – é um mito que

a língua perpetua.

Investigar a idealização da figura feminina, tendo como ponto de partida a

verificação da linguagem específica e a construção de herói e heroína posta em execução

pelos dois autores: Alencar e Bédier, de forma a visualizar o modo pelo qual cada um

abordou a temática em questão. Ao longo dessa pesquisa, verificar-se-á como os artistas da

palavra acionam sua fantasia em vôos extraordinários e a partir da organização de

informações extraídas do mundo sensível realizam uma obra nova e una.

As pesquisas anteriores empreendidas para a minha dissertação de Mestrado

apontaram relações basilares entre o texto romântico do século XIX e o da lírica

trovadoresca, chegando à conclusão de que as linhas fundamentais do Romantismo brasileiro

têm suas raízes na poesia trovadoresca, nas novelas de cavalaria – conseqüência da

prosificação das canções de gesta – e especialmente nas cantigas de amor. Diante disso, não

é demais afirmar que o Trovadorismo é a matriz da lírica romântica e pode-se dizer, em

termos literários, que o Romantismo é o renascimento do ideário da Idade Média européia. O

presente objetivo nesta nova fase da pesquisa é chegar a resultados mais amplos e concluí-lo

com um embasamento teórico consubstancial.

Com essa orientação, o objeto tomado como corpus nos possibilita abordar os

mecanismos e os procedimentos que podem suscitar questionamentos sobre tais

manifestações e expressões literárias, entre elas:

- Quais os fatores determinantes de diferenciação entre o texto medievo e o texto

oitocentista?

- É possível detectar uma mudança na visão de mundo de José de Alencar (ao

elaborar Iracema) quando ele reconstrói o episódio poético Tristão e Isolda?

- Como foi que se estabeleceu a influência do texto medieval sobre o texto

indianista?

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- Qual o final decoroso do enredo das obras justapostas partindo-se do

pressuposto de que em Tristão e Isolda morrem tanto o herói quanto a heroína e, que na obra

alencariana, Martim, par romântico da heroína, não teve a sensibilidade suficiente para

compreender que Iracema sacrificara ao amor conjugal, morrendo ao epílogo da lenda, e ele –

preso a compromissos morais incompatíveis com a dedicação devida ao amor conjugal e à

maternidade da infeliz esposa – permanece vivo e retorna a Portugal, seu lugar de origem?

Pretendemos ainda, apreender e justificar os elementos constituintes dessa

intertextualização ora proposta e para tal nos basearemos em análises feitas nesses campos do

conhecimento que se utilizam e procuram articular e determinar fundamentação teórica e

metodológica nas concepções de heróis e heroínas defendidas por estudiosos da

contemporaneidade.

Os embasamentos teóricos desta pesquisa pautam-se especificamente nas obras:

Eros e Pathos – Amor e Sofrimento – de Aldo Carotenuto (alguns conceitos básicos do

amor); Fragmentos de Um Discurso Amoroso, de Roland Barthes (onde o autor define os

vários estados de amor inerentes ao sujeito); História da vida Privada e As Damas do Século

XII, de George Duby (obras que traçam uma historiografia da sociedade medieval européia),

bem como outras congêneres, visto que boa parte delas versa sobre o século da cortesia; além

de: O Amor e o Ocidente, de Denis de Rougemont, aqui o crítico faz uma análise minuciosa

de Tristão e Isolda e Mito e Realidade, de Mircea Eliade, em que a autora estabelece as

fronteiras do mito na construção do pensamento do indivíduo no meio em que ele se insere.

1- Aldo Carotenuto

Gérard Lutte ao prefaciar a obra de Carotenuto Eros e Pathos: Amor e

Sofrimento, diz que: “a experiência amorosa está entre as mais significativas, a mais

considerável, da existência humana. Entretanto, são raras as análises psicológicas do amor e,

de qualquer maneira, para a maior parte são devidas a quem atua no campo clínico”5. É

impossível falar sobre o amor e suas implicações sem tê-lo vivido intensamente, de forma

que a elaboração científica de um conceito do amor é sempre uma releitura subjetiva da

realidade. Para o comentador, sua obra assemelha-se a Fragmentos de Um Discurso Amoroso

- de Roland Barthes, no tocante à forma, profundidade de abordagem e pela elegância de

5 LUTTE, Gerard. In: Eros e Pathos: Amor e Sofrimento – Aldo Carotenuto. São Paulo: Paulus, 1994, p.99.

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estilo: “as duas obras são obras densas, que se lêem e relêem lentamente, confrontando-se

com a própria experiência, meditando sobre aspectos obscuros da experiência pessoal”6.

Por sua natureza, o amor, grande tema da literatura de todos os tempos, pertence à

esfera do indizível, segundo Carotenuto. Ele descreve as relações pertinentes à casuística

amorosa, para isso fica atento às dimensões da individualidade, da interioridade e do

imaginário dessa experiência: o amor deve harmonizar o imaginário de nossos desejos com a

realidade e com o imaginário da pessoa amada. Desses ingredientes imanentes às estruturas

antropológicas do sujeito emergiriam os sentimentos, tais quais: o ciúme, a presença e a

ausência, fantasia e realidade, luz e sombra, força e vulnerabilidade, enfim, amor e

sofrimento. Sua obra não esgota a temática do amor, ao contrário, leva em consideração, em

especial, o amor erótico no qual o ser é escravizado por suas próprias paixões.

A questão do erotismo está interligada ao gozo e à febre do amor, o que constitui

para o sujeito apaixonado um grande dilema. Carotenuto, além de analisar “Eros”

(princípio de ação e símbolo de desejo) nas relações amorosas do “eu” e do “outro”, leva em

conta o tipo de amor governado pela ausência das paixões e dos apetites da carne (Ágape).

No corpus de nosso trabalho consideraremos apenas o primeiro, porque Carotenuto leva em

consideração principalmente o amor erótico, e porque toda atmosfera subjetiva que envolve

as personagens submetidas à análise se sustém sobre essa visão vertiginosa do amor.

As análises feitas por Carotenuto nos permitem confrontar o mistério do amor e

do senso da existência humana, porém o enigma subjacente ao amor não é revelado. O tom

intimista impregnado pelo autor denota uma capacidade de invenção da pessoa amada, de

idealizá-la, de idolatrá-la, enfim, faz o objeto amado “tornar-se o simples suporte do nosso

imaginário, com a conseqüência inevitável da instrumentalização do outro, da desilusão de

quando nos aparece na sua realidade ou de qualquer maneira despojada da aura da nossa

fantasia”7. Sabendo-se que fixar os olhos em uma única pessoa denota narcisismo, o autor

procura revelar que para se conhecer o cunho científico do desejo é necessário que o objeto

do desejo tenha dimensões cósmicas, tenha infinitude.

Entendendo o amor como uma necessidade individual de cada um dos parceiros,

todo amante representa a doença do outro: dessa forma, o autor diz:

6 Idem, p. 10. 7Idem, p. 13.

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o amor que une os amantes liga indissoluvelmente as partes ‘doentes’ dos dois indivíduos. Por isso podemos dizer que a relação de casal apresenta aspectos delinqüenciais que, se reforçados por um particular contexto ou por uma disposição patológica de ambas as pessoas, podem fazer emergir de modo dramático as zonas de sombra. 8

Nas relações amorosas forças ocultas ou desconhecidas são levadas à luz da

subversiva força da emoção. Pode-se dizer diante disso que o homem só conhece sua

verdadeira natureza a partir do instante em que se enamora, e faz vir à tona da zona das

sombras o estado de enamoramento; o mundo externo assume cores e matizes

surpreendentes, há uma necessidade emergente de completar-se no outro.

Carotenuto, no capítulo: “Um Acontecimento Imprevisto”, menciona que “captar

os mil matizes cambiantes com que encontramos o outro, penetrar no labirinto mundo

imaginário, significa abandonar toda perspectiva unilateral, para dar voz a todos os

‘daimones’ que nos habitam9”. A partir dessa afirmação, pode-se concluir que uma das faces

do amor é o confronto indubitável com o imprevisto e o inexplicável. Carotenuto, afirma

ainda que, o amante tendo o amado ausente experimenta um sentimento de privação e que,

em presença dele, passa a encontrar uma fonte inexaurível de prazer e bem-estar: é a

proximidade do objeto amado que causa a perturbação na interioridade do eu-lírico.

Em síntese, o objeto de desejo assume para nós um significado único, é

insubstituível porque somente ele pode evocar em nós dimensões interiores profundas e

particularíssimas. Este pressuposto teórico, parece-nos fundamental para analisar a casuística

amorosa dos pares românticos em Tristão e Isolda e em Iracema. Alguns recortes dessas

obras serão, a partir de um corte diacrônico utilizados em nossa análise.

2-Roland Barthes

Fragmentos de Um Discurso Amoroso, de Roland Barthes, que para Haroldo de

Campos, “é uma partitura eversiva de significados erotizados, levando de roldão o discurso

do método”, é um livro constituído de figura, ordem e referência. Nele, o crítico trata de

maneira perspicaz a questão do sujeito enamorado. Para a composição de sua obra, o autor

substitui a descrição do discurso amoroso pela sua simples simulação e devolve a esse

8Idem, p. 17. 9 Idem, p. 27.

31

discurso sua pessoa fundamental, que é o “eu”, de modo a pôr em cena uma enunciação10 e

não uma análise. As figuras são frações de discurso que não devem ser entendidas no sentido

retórico, mas, segundo ele, no sentido ginástico ou coreográfico. Para Barthes, aquilo que

aparece como título de cada figura no início de cada parte constitutiva da obra, não constitui

uma definição e sim um argumento, exposição, narrativa, sumário, pequeno drama, história

inventada. Enfim:

As figuras se destacam conforme se possa reconhecer, no discurso que passa, algo que tenha sido lido, ouvido, vivenciado. A figura é delimitada (como um signo) e memorável ( como a imagem de um conto ). Uma figura é fundada se pelo menos alguém puder dizer: “como isso é verdade!” “Reconheço essa cena de linguagem.” Para certas operações de sua arte, os lingüistas se servem de uma coisa vaga: o sentimento lingüístico, para constituir as figuras, não é preciso nada menos que este guia: o sentimento amoroso11.

Quanto à ordem do livro, Barthes, afirma:

Outra coisa é o discurso, “o” a parte que acompanha a história, sem nunca conhecê-la. É próprio mesmo desse discurso que suas figuras não possam se arrumar: se ordenar, fazer um caminho, concorrer para um fim (para uma instituição); não há primeiras nem últimas. Para fazer entender que não se trata de uma história de amor (ou da história de um amor), para desencorajar a tentação do sentido, era necessário escolher uma ordem totalmente insignificante. Submeteu-se assim a sucessão de figuras (inevitável pois o livro é condenado por seu próprio estatuto a fazer um caminho ) a dois arbitrários: o da nominalização e o do alfabeto.12

As referências são os fragmentos montados de origens diversas utilizados para

compor o sujeito apaixonado. Barthes afirma que suas referências provêm, ora de leitura

regulares, como : Werther, de Goethe; O Banquete de Platão; Nietzcshe etc, e também de

leituras ocasionais bem como referências à sua própria vida. “O autor empresta aqui ao

10 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia de Linguagem. Uma inscrição, como toda enunciação monológica, é produzida para ser compreendida, é orientada para uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento, isto é, no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante. São Paulo: Ed. Paulo Hucitec, 1997, p.88. 11BARTHES, Roland. Fragmentos de Um discurso Amoroso. 14ª Edição. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1998, p.14. 12 Idem, p. 18.

32

sujeito apaixonado a sua ‘cultura’, em troca o sujeito apaixonado lhe passa a inocência do seu

imaginário, indiferente aos bons costumes, indiferente aos bons costumes do saber”13.

Toda sua obra se constrói sob estes vórtices apresentados e nela estão inseridas

diversas personagens da vida real, e cada um desempenha um papel sui generis na

organização da obra. Barthes, preocupado com a interatividade do amor em toda sua

perplexidade acaba por enfocar a consciência da dor, a solidão, a dependência, o ciúme, a

ausência, o encontro, a ternura, etc, afinal todas as manifestações do espírito presentes no

universo pessoal do “eu” e do “outro”, na interiorização e exteriorização da trama amorosa.

Suas concepções ou definições do amor presentes na obra outrossim serão retomadas a

posteriori nos capítulos que tratam da descrição e análise de Tristão e Isolda, Iracema, e a

análise intertextual propriamente dita.

3-Georges Duby De Duby, interessa-nos, inicialmente, a apresentação da real condição da mulher

que não era, de modo geral, estilizada nos trabalhos literários dos artistas da Idade Média,

bem como nas do século XIX. Seus estudos apresentados no livro História da Vida Privada,

do período medieval, retrata o cenário espacial no qual a mulher esteve inserida ao longo de

alguns séculos de história. Da obra que utilizaremos para nossa fundamentação teórica nos

valeremos dos seguintes tópicos para construção e sedimentação do capítulo relacionado à

concepção da mulher: a) “A vida privada nas cortes aristocráticas da França Feudal, Convívio

e Parentesco”: Dominique Barthélem; b) “A Emergência do Indivíduo”: Philippe Contamine.

A - Explica Duby: O privado na era feudal, isto é, nos séculos XI e XII, não se deixa isolar facilmente daquilo que o cerca, que o penetra e lhe resiste. Para destacá-lo, é importante então conhecer bem em sua globalidade e em suas articulações a formação cultural e social em que ele se insere14.

Conhecer este tipo de organização da estrutura familiar na Idade Média parece-

nos fundamental para melhor compreendermos a problemática existente no espaço doméstico

13 Idem, p. 19. 14 DUBY, Georges. História da Vida Privada, da Europa Feudal e Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990a, p. 49.

33

das cortes aristocráticas, bem como, suas repercussões na vida pessoal de cada membro da

sociedade.

Quanto à problemática do “Convívio e Parentesco”, Duby afirma:

O mundo feudal não é um espaço lingüístico unificado: ‘a langue d’oil’ [falada no norte da França] tem suas variantes regionais, e as transposições latinas correm o risco de ser ao mesmo tempo variáveis e inadequadas. O historiador deve então apenas tomar nota da ausência de termos específicos aos diversos agrupamentos possíveis de parentes; o parentesco como relação e função social genérica é que é essencialmente percebido. A nós cabe examinar a maneira pela qual ela articula conjuntamente várias esferas.15

B – No tocante à emergência do indivíduo, o historiador francês acrescenta:

Proximidade, promiscuidade, por vezes multidão – na época feudal, o espaço, com efeito, jamais estava previsto, no interior das grandes moradas, para a solidão individual, senão no breve instante do trespasse, da grande passagem para outro mundo. Quando as pessoas se arriscavam fora da clausura doméstica, era ainda em grupo. Todas as viagens eram feitas em dupla, e se os companheiros não eram parentes, ligavam-se por pelos ritos da fraternidade, constituindo, pela duração do deslocamento, uma família artificial.16

Esta casuística da família é muito importante para compreender a aproximação de

membros secundários da família no ambiente doméstico palaciano e as relações de intimidade

que ali se desenvolviam. Exemplo indubitável destas relações de aproximação é a

personagem Tristão – o herói do episódio poético Tristão e Isolda – na relação familiar de

seu tio Marc. Sua infiltração na família alterou significativamente o curso dos acontecimentos

na vida do tio, a quem estava destinada a mão de Isolda, heroína dividida entre o amor do rei

e do cavaleiro Tristão. Estas relações de conjugalidade serão retratadas com mais riquezas de

detalhes no capítulo em que a mulher medieval será apresentada.

Estes tópicos mencionados – pertinentes à constituição da família –propõem

explicar como o interior ambiental palaciano nas cortes medievais, além de proporcionar

análises sobre o papel que a mulher desempenhava dentro dele, ressaltando que, embora a

família fosse de base patriarcalista, à mulher era dado direitos maiores ou menores de acordo

com a sua condição socioeconômica. Duby, explica-nos com detalhes e enfoques específicos

toda a problematização envolvendo a figura feminina quanto o tipo de sociedade a que ela

pertencia. Ainda dentro dessa linha de pensamento serão retratados: sua condição, sua função 15 Idem, 99. 16 Idem, 503.

34

no meio familiar, a atividade profissional, política, intelectual, exclusão, preconceito e

marginalidade. Espera-se, que esses estudos esclareçam alguns pontos obscuros da doutrina

amorosa da Idade Média e do século XIX.

Como em toda a abordagem da tese a mulher é o epicentro e o objeto principal da

exposição, far-se-á, portanto, a apresentação de algumas figuras de mulher da época medieval

tidas como menos indistintas na visão de Duby. O historiador relata o tratamento que a alta

nobreza dispensava à dama. A aristocracia acreditava que as mulheres tinham uma propensão

ao erro e à perversidade e, cabia-lhes, aos homens, o papel de elemento controlador dos

apetites profanos a que elas estavam submetidas constantemente.17

Na introdução de sua obra: As Damas do Século Doze, o historiador vai revelando

o comportamento destas mulheres, seu destino reservado no mundo marcado por degraus

superiores da autoritária e requintada sociedade feudal. Duby, apresenta a questão:

(...) as damas desses tempos longínquos, não têm rosto ou corpo; assiste-lhes o direito de as imaginar, por altura das grandes paradas da corte, trajadas com vestidos e mantos semelhantes aos que cobrem as virgens e as santas nos pórticos e nos vitrais da Igreja.18

O poeta ou artista pintava-lhe com as cores que ele queria já que a literatura

dava-lhe essa liberdade de recriação da realidade circundante. A literatura não é um retrato

fiel das coisas como elas são, vê-se o mundo não como ele é, mas sim como ele deveria ser (o

Romantismo brasileiro do século XIX vai reforçar ainda mais esse individualismo e

subjetivismo poéticos), consoante uma norma social convencionada por um determinado

segmento da elite ou das classes sociais dominantes. Isso destrói conclusões aéreas, crenças

fossilizadas pela tradição literária, revelando-nos que o sofrimento do poeta, distante de ser

uma confissão amorosa sincera, era um comportamento literário como outro qualquer. Disso

conclui-se que a fronteira entre a ficção literária e as realidades sociais constituem certo

empecilho para a determinação e compreensão dos valores éticos e ideológicos contidos na

lírica trovadoresca, e em especial, da forma como os troveiros da Idade Média reverenciavam

a figura da mulher na composição ideológica de seus trabalhos literários.

Becker, referindo-se à lírica francesa afirma que:

17 Este paternalismo patriarcal da sociedade européia da Idade Média pode ser observado com riquezas de detalhes em O Drama Abelardo-Heloísa. Heloísa, após ser seduzida por Abelardo e após toda a sucessividade dramática advinda disto, foi confinada em um convento sob a autoridade de seu tio Fulbert – espécie de carrasco à moda antiga. 18 DUBY, Georges. Heloisa, Isolda e outras damas do Século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.6.

35

Os trovadores provençais criaram poemas líricos cuja personagem central era a mulher. E o tema: o amor. Não um amor sensual, mas um sentimento romântico, de êxtase, quase místico. Um amor, por vezes, afetado, que terminou sendo convencional, insincero, ou platônico.19

Não existem documentos escritos que corroborem, de modo geral, para uma

confirmação real superioridade da mulher medieval20. O que se sabe é que os textos eram

escritos por homens que detinham o poder temporal de uma sociedade por demais

patriarcalista, restando, portanto, pouco espaço para a voz feminina conforme é atestado nos

trabalhos de historiadores medievais, em especial, Georges Duby, Jacques le Goff, Marc

Block, Erich Auerbach, Robert Ernest Curtius, Segismundo Spina, Octávio Paz, entre outros.

No começo da Idade Média, as atividades literárias foram escassas: comentários

religiosos, hinos sagrados, crônicas, eram escritos em latim. Os textos eram compilados para

serem declamados e cantados diante de um auditório. Com o surgimento do Humanismo, a

revolução no campo das Letras e a autonomia política de alguns países, principalmente

Portugal e Espanha, a música desvinculou-se da poesia. Romances, canções, contos satíricos

tinham, além da função de divertir, a função de ensinar. Dessa contemplação idealizada do

artista nasce uma concepção de amor e poesia ocidental distante anos-luz da realidade

vivida pelas mulheres. Como bem assinala Boccalato em A Invenção do Erotismo, ao analisar

o signo literário como jogo de espelhos, “as trovas corteses e o chamado amor provençal”,

esse material de que dispomos levanta a questão da representação, em imaginário, da

realidade concreta, de fato vivida pelos homens21. Esse enfoque será abordado no Primeiro

Capítulo – item 1 sobre a mulher medieval. O que se pode observar de antemão é que nesse

devastador charme com que são tratadas, pelos poetas, algumas voluptuosas, ingênuas,

poderosas e caprichosas mulheres virou as cabeças de homens, dando origens às obras

clássicas da literatura mundial.

Duby inicia sua obra, na introdução, fazendo as seguintes considerações a

respeito destas mulheres: 19 Idem, 286. 20 PEDRO, Antonio. História Antiga e Medieval. A poesia cortês representa uma acentuada mudança de mentalidade na passagem da Alta para a Baixa Idade Média, exprimindo forte noção de individualidade em uma sociedade solidamente estruturada em ordens e corporações, introduzindo uma nova concepção de mulher, posta muito acima do homem, como senhora a quem se deve servir, justamente o contrário do que tendia a acontecer na prática social. São Paulo: FTD, 1985, p. 363. 21 BOCCALATO, Marisa Mikhail. A Invenção do Erotismo: Tristão e Isolda e as Trovas Corteses. São Paulo: Experimento, 1996, p. 17.

36

Apresento aqui algumas notas. São frutos de uma investigação arriscada, longa e mesmo assim incompleta. Conduzi-a da melhor maneira que pude, querendo ver mais claramente, essas mulheres chamadas damas por terem desposado um senhor, conhecer a sorte que lhe estava reservada em seu mundo, o mundo da nobreza, nas camadas superiores da sociedade brutal e requintada que chamamos feudal. Permanece deliberadamente nessas alturas por serem as únicas iluminadas o suficiente. Mesmo aqui, no entanto, a obscuridade é espessa. O historiador avança penosamente num terreno difícil cujos limites não cessam de recuar diante de seus passos22.

Dentre estas mulheres que são emblemas de pureza e sedução, fragilidade e

erotismo, destacaram-se no período medievo: Leonor, Maria Madalena, Juette, Heloísa23 e

Isolda. Interessam-nos mais de perto estas duas últimas porque elas representam os

arquétipos, dois perfis de mulher inteiramente dessemelhantes quando são estudadas à luz da

História e da Literatura européia da Idade Média francesa. Por quê? Diferentemente de

Tristão e Isolda, uma lenda céltica24, Heloísa – personagem de O Drama Heloísa-Abelardo,

embora alguns estudiosos o considerem uma ficção literária, foi uma mulher que vivenciou

uma história real segundo nos relata os anais da historiografia moderna. Enquanto a lenda

céltica representa a fatalidade da paixão, Heloísa-Abelardo representa a encarnação da

paixão. Para que se tenha uma visão geral do conteúdo da obra O Drama Heloísa-Abelardo e

de sua importância em nosso estudo comparativo (ver Apêndice 1).

Na visão do padre Orlando Vilela – comentador das cartas trocadas por Abelardo

e Heloísa –, “depois de alguns anos de espetacular sucesso – esse homem realmente 22 DUBY, Georges. Idem, p. 9. 23 Heloise (1110-1154), medieval heroine. Raised in Paris by her uncle Fulbert, canon of Notre Dame, Heloise became part to one of the great romances of History. A brilliant student, she was seduced by her tutor, the renowed scholar Peter Abelard. Her subsequent marriage being destroyed by Fulbert’ emasculation of Abelard; she took the veil at Argenteuil. Later, as abbless of Paraclete, she lived an example religious life. (Encyclopedia International, 1970: p. 138) 24 MAY, Pedro Pablo. Os mitos Celtas. Tradução: Maria Elisabete F. Abreu. Os mitos celtas estão cheio de tamanha força e energia interior que encontraram caminho para perpetuarem-se na lembrança dos europeus até se transformar em uma tradição própria e inextinguível do Ocidente em geral. Sua explicação do mundo é vibrante, dinâmica e bela, e está profundamente ligada à natureza, vivendo por si mesma. Isto lhe permitiu cavalgar no tempo, sendo transmitida de avós para netos por gerações, até se instalarem em nosso inconsciente coletivo e passaram a fazer parte do que alguém, chamou de o “humo da memória”, a base de nosso sistema de valores e de nossa compreensão do que devem ser as coisas. Em uma época em que a espiritualidade e a moral ocidentais estão à deriva, esgotadas as possibilidades que o pensamento judaico-cristão nos impôs e com os olhos e coração voltados para os ideais orientais ou para qualquer outra cosmovisão sólida o bastante para que nos pareça merecer a pena entregar-se a ela, não é hora de nos reencontrarmos com nossa própria tradição, que nos foi um dia arrebatada por obra das armas e do fanatismo religioso? Quando o profano se aproxima das lendas celtas, de seus heróis, de seus druidas, de seus deuses e de sua magia tem a estranha impressão de “já ter ouvido isso antes”, em outra época, em alguma parte, mesmo sem saber exatamente onde e quando. São Paulo: Editora Angra, 2003, p. 12.

37

inteligente e culto, charmoso, admirado por todo mundo, dotado de sensibilidade poética e

bela voz, compositor e cantor, e, ainda por cima, clérigo e cônego – inicia com Heloísa seu

drama de amor, de labor e de dor”. Wilton Cardoso, na obra ora mencionada, no prefácio à

maneira de prólogo acrescenta a seguinte informação em relação à forma como Vilela aborda

O Drama Heloísa-Abelardo:

O autor vê no drama de Abelardo e Heloísa um reflexo do amor cortês, ou do amor sem retorno, que assim deixa de ser um amaneirado refinamento das cortes de amor para se converter em história real e drama intensamente vivido. Daí, como conseqüência fatal do culto da mulher, a mesura e mensagem com que se posta diante da heroína, de quem diz valer sozinha um punhado de Abelardo reunidos – “Abelardo fascina”, mas “Heloísa fascina mais ainda”.25

O Drama Heloísa-Abelardo abrange fatos pertinentes à Filosofia e à Teologia,

desta forma, ele se torna indispensável para fazermos a leitura da mulher sob o enfoque

histórico, mulher esta cuja paixão, piedade, erudição e nobreza de caráter podem aproximá-la

da heroicidade, embora sua história não constitua uma narrativa ficcionalizada como é o caso

deTristão e Isolda. Pode-se dizer que Heloísa transformou-se em um mito no contexto da

produção literária medieval, porque passa a simbolizar, no que tange à busca dos anseios,

desejos e realizações humanos, a perda e o amor decaído. A separação do par amoroso –

Abelardo e Heloísa – sob condições grotescas, e a longa correspondência mantida por meio

de cartas revelam a intensa paixão amorosa existente entre eles. Isto nos permite conceituar

que as paixões não são contentamentos ou desprazeres, nem opiniões, mas tendências, ou

antes, modificação da tendência, que vêm da opinião ou do sentimento, e que vem

acompanhada de prazer ou desprezo. Portanto, há um aspecto da dimensão amorosa que

precisa ser levado em consideração, pois ele atua sobre a sacralidade do corpo. Como bem

assevera Carotenuto:

Se alguém nos quer, a nossa existência subjetiva não coincide mais com a nossa individualidade, mas com o nosso ser carne e uma tal transformação ocorre mediante o desejo. Evidentemente essa experiência representa, outrossim, um grande perigo e se explica como nunca, pelo menos em nossa cultura, exista tanto medo de tornar-se objeto de avidez: no momento em que somos objetivados pela concupiscência, abandonamos nossa individualidade; o nosso ser é posto em crise, tanto é verdade que cada um

25 VILELA, Pe. Orlando. O Drama Heloísa-Abelardo, p. 56.

38

de nós pode reconhecer o próprio pavor nas palavras de Yourcenar (1957: p. 64), quando escreve: “Me Deus, entrego o meu corpo em tuas mãos!”

4- Denis de Rougemont

Denis de Rougemont na ‘advertência’ – página inicial da obra crítica: O Amor e

o Ocidente –, divide seu trabalho literário-científico em ‘livros’, porque o conteúdo de cada

uma de suas partes é mais ou menos o de um volume de tamanho comum. Segundo o autor, o

primeiro livro expõe o conteúdo oculto da lenda ou mito de Tristão. “O último livro indica

uma atitude humana diametralmente oposta e com isso remata a descrição da paixão, pois

somente se conhecem as coisas ultrapassadas ou, ao menos, aquelas cujos limites se pôde

tocar, sem, todavia transpô-los". Quanto aos livros intermediários, em especial o segundo,

explica que é uma tentativa de remontar às origens religiosas do mito e que os restantes tem

a função primeira de mostrar o efeito do mito nos diversos terrenos em que ele se manifesta

enquanto onipresente: na mística, na literatura, na arte da guerra ainda na moral do

casamento.

No tocante à questão amorosa, o autor argumenta que tenta descrever a relação

da casuística amorosa como um fenômeno propriamente religioso. Quanto à temática que

aborda revela:

Parti de um tipo de paixão tal como a vivem os ocidentais, de uma forma extrema, aparentemente excepcional: o mito de Tristão e Isolda. Precisamos dar referência fabulosa, deste exemplo brilhante e banal – como se diz que um forno é banal, logo único – se quisermos compreender o sentido e a finalidade da paixão em nossas vidas26.

O livro , intitulado: “O Mito de Tristão”, reúne tópicos do porquê do triunfo do

romance e tudo aquilo que ele esconde na sua dicção textual; procura-se assim por meio de

uma análise pormenorizada criar uma definição do mito aprofundando a análise do conteúdo

manifesto do romance. Dentro desta perspectiva, Rougemont relata os mistérios que o

episódio poético carrega consigo e procura inseri-los no contexto histórico da Idade Média,

para poder explicar os enigmas, a cavalaria contra o casamento; desta forma, procura-se

definir o amor do amor, o amor da morte, o amor recíproco e infeliz e a problemática do

filtro, assunto de que trataremos em um capítulo específico.

26 Idem, p. 12.

39

No Livro II, “As origens Religiosas do Mito”, apresenta as concepções ou

definições das formas de amor “Ágape” e “Eros”; esses tidos como símbolos dicotômicos de

oposição natural à consumação do desejo amoroso. Procura-se assim, revelar de maneira

dialética e conscienciosa a repercussão do Cristianismo nos costumes ocidentais e apresenta

um painel histórico das origens do amor cortês desde a sua implantação no solo francês;

percorre o itinerário da cortesia amorosa desde os místicos árabes para dar uma visão basilar

do conjunto do fenômeno cortês, do amor cortês ao amor bretão, dos mitos Celtas ao romance

bretão, do romance bretão a Wagner, passando por Gottfried e finaliza com as “Primeiras

conclusões”.

O livro III, “Paixão e Mística”, procura situar o problema da aventura mística de

Tristão e Isolda. Para isso, apresenta-nos as místicas ortodoxas e a linguagem da paixão e a

retórica cortês dos místicos espanhóis a fim de melhor compreender na sua contextualização

o problema exposto; faz uma apresentação muito perspicaz sobre a metáfora, linguagem

encarregada da demonstração do universo lírico do conteúdo de Tristão e finaliza fazendo

uma alusão sobre a libertação final dos místicos e o crepúsculo de amor-paixão,

desencadeador de toda atmosfera passional impregnadas no feitio da obra.

Já no livro IV, “O Mito na Literatura”, Rougemont faz uma viagem pelo universo

espacial e temporal da Literatura procurando explicar por meio da análise sui generis a

influência e evolução do romance bretão. Traça considerações do inferno de Dante

enfocando “Beatriz e Símbolo”, sobrevoa o território de Petrarca, Cervantes, Milton,

Shakespeare, Stendhal ou o fiasco do sublime, tendo como itinerário final Wagner onde fala

da vulgarização do mito e “A Paixão em Todos os Domínios”. No livro V, “Amor e Guerra”,

tece ponderações sobre as formas emblemáticas de construção do texto literário, explicando-

nos a maneira pela qual os fatos exteriores ou sociais são introduzidos no enredo da narrativa

episódica para falar sobre a linguagem da paixão.

Nos livros VI e VII, apresenta uma visão mais contemporânea do casamento,

inserindo pontos de vista a respeito da felicidade e da arte de amar para viver. Além disso,

percorre os caminhos da anarquia até o eugenismo para justificar o sentido da crise nas

tomadas das decisões, retorna à dicotomia sagrado/profano ou “Ágape” e “Eros”, os sentidos

da crise, a necessidade de uma tomada de posição. São ainda expostos os paradoxos do

Ocidente e problematiza um enfoque sobre “Além da Tragédia”. Alguns fragmentos de seus

apêndices e dos pós-escritos bem como do que foi supracitado serão recortados para

40

analisarmos o mito de Tristão e Isolda e sua relação intersemiótica com Iracema, de José de

Alencar.

Denis de Rougemont, ao analisar “O Mito de Tristão”, triunfo do romance e o

que ele esconde, em sua obra crítica, O Amor e o Ocidente, admite que o amor feliz não tem

história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, o amor ameaçado e condenado pela

própria vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda

do par amoroso. É menos o amor realizado, que a paixão de amor. E, paixão significa

sofrimento27. Em outras palavras: é essa experiência amorosa no plano físico e carnal, que

acabam desencadeando a queda no amoralismo e na degradação do ser que parece dar vida ao

episódio romanesco28.

O autor supra citado, afirma categoricamente:

...existe um mito europeu de adultério: O romance (sic) de Tristão e Isolda. Em meio à desordem extrema de nossos costumes, na confusão das morais e dos imoralismos daí decorrentes, nos momentos mais sublimes de um drama, certamente vemos transparecer em filigrana essa forma mítica. 29

O objetivo desse elemento teórico é traçar o perfil de uma forma de descrição do

fenômeno mítico e sua importância dentro da narrativa. Qual definição de mito se encaixa

dentro de nossa análise estrutural para que possamos compreender o mito de Tristão e Isolda?

Conforme Pageaux30 “o mito pode se tornar um elemento primordial da

organização de um texto literário, o elemento motor da produção textual”, ao mesmo tempo

poderá ser uma linguagem duplamente secundária pelo fato de o autor retirar dele elementos

que possam permitir a ampliação e o desenvolvimento desta mesma produção. O escritor

fundirá com esta história um elemento de explicação pertencente a ele, íntima. Em suma: o

mito assegura coerência que o aceita, dá coerência ao texto, torna-se um produtor textual nos

planos histórico, social e religioso.

27 Idem, p. 17. 28 Joyce Carol Oates do “New York Times” ao fazer a crítica ao episódio poético reforça esse enfoque do amor argumentado que para as mentes clássicas a intervenção dessa força nas relações entre os homens era sinal de “caos e desgraça”, mas que no entanto para as mentes modernas com a propensão ao toque do Romantismo “Eros” tornou-se a mola-propulsora que impulsiona a história da vida. Para a escritora, “Eros” é uma fonte aparentemente infindável de fantasias e de desejos, principalmente, de desejos heterossexuais. O Estado de São Paulo. “Quando Tristão conheceu Isolda”, Caderno dois, O Estado de São Paulo. São Paulo: 1999, p. 5. 29 ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Tradução de Paulo Brandi e Ethel B. Cacahpuz. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988, p. 9. 30 PAGEAUX, Daniel Henri; MACHADO, ÁLVARO Manuel. Literatura Portuguesa, Literatura Comparada e Teoria da Literatura. Rio de Janeiro: Edições 70, 1981, p. 96.

41

A antropologia, no entanto, interpreta o mito como sendo capaz de revelar o

pensamento de uma sociedade, assim como a sua concepção existencial e as relações que os

cerca. Sigmund Freud apresentou e interpretou os mitos, da mesma forma, Carl G. Jung;

Michel Foucault e Claude Lévi-Strauss, e tantos outros. E nós? Afinal, como seres sociais,

temos nossos próprios mitos. É necessário avançarmos e propormos respostas às dúvidas

inerentes ao tema do mito. O que se pretende nesta referida pesquisa é buscar a partir das

análises e abordagens apresentadas, eliminar as supostas dúvidas e trazer à luz da realidade,

pautada na teoria Semiótica e Literária, registrar em ato o que se buscou durante este

percurso. Nosso interesse recairá sobre as sociedades onde o mito é, ou foi, até recentemente

vivo – “vivo no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por

isso mesmo, significação e valor à existência”.31.

5 – Mircea Eliade Em “A Estrutura dos Mitos”, Eliade, como o próprio título denota revela a

importância do mito vivo, o interesse das mitologias primitivas, a tentativa de definição do

mito, histórias verdadeiras e histórias falsas; o que os mesmos revelam tendo como ponto de

partida a definição de que:

Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas de todos os acontecimentos primordiais em conseqüência dos quais o homem se converteu no que é hoje – um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regra.32.

Comenta ainda o que revelam os mitos bem como o que significa conhecê-los. Já

em “Prestígio Mágico das Origens”, a autora propõe a discussão acerca dos mitos de origens

e mitos cosmogônicos, e, que estes prolongam e completam os primeiros e de que maneira o

mito das origens relata como o mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido. Ainda,

trata da função dos mitos nas curas, a reiteração da cosmogonia, o retorno à origem e o

prestígio dos primórdios. Procura conceituar as relações existentes entre os mitos

cosmogônicos e os mitos de origem:

31 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 8. 32 Idem. p. 16.

42

(...) o mito de origem inicia em numerosos casos, por um esboço cosmogônico: o mito recorda brevemente os momentos essenciais da criação do mundo, para contar a seguir a genealogia da família real, ou a história tribal, ou a origem das enfermidades e dos remédios e assim por diante33.

Alguns destes conceitos apresentados retomaremos a fim de desvendar o mito de

Tristão e sua complexa interpretação dentro dos estudos comparativos e intertextuais. Espera-

se ao final, uma dedução pelas hipóteses e das variantes relevantes e definições empíricas

descobrir o motivo pelo qual o herói épico medieval foi, é, e continuará sendo, fonte de

inspiração para poetas, pesquisadores e estudiosos da vertente literária. A partir disto

questionaremos:

- Haveria no Romantismo brasileiro, no contraste com a lírica trovadoresca,

motivos intelectuais maiores para a reorganização do texto da Idade Média?

- O Trovadorismo e o Romantismo foram movimentos que abrigaram apenas o

desejo libertário, a repetição das fórmulas consagradas e uma visão individualista da

complexidade do mundo e da sociedade?

• Comentando Tristão e Isolda e Iracema

Estas duas produções literárias mantêm entre si uma relação de

intertextualidade conforme já apontada anteriormente e proposta no

desencadeamento da pesquisa. Como bem assevera Laurrent Jenny

comentando Harold Bloom: “o poeta sofre uma angústia de influência –

verdadeiro complexo de Édipo do criador – que o levaria a mitificar modelos

que o seduzem, segundo múltiplas figuras”.34 Já para Arthur Nestrovski A

Angústia da Influência, de Harold Bloom, é uma meditação prolongada

sobre os padrões de apropriação, ou melhor, de desapropriação (misprision)

entre poemas. Ora, a obra indianista de Alencar apresenta na sua

contextualização esta “angústia de influência” de que fala Bloom. De outro

modo: trata-se, por assim dizer, de um reaproveitamento, de um ‘des-vio’, do

ideário e modelo do amor cortês, o qual sofre algumas transformações

33 Ibidem. p. 36. 34 Poétique, Revista de Teoria e Análises Literárias. Número 27. Coimbra: Almedina, p. 8.

43

relativas a diacronicidade e à nova convenção e paradigma da escola literária

vigente no século XIX: o Romantismo brasileiro.

Esta relação semiótica da cultura da cortesia nos faz pensar que as sociedades,

mesmo após a sua desintegração, não perdem totalmente seus traços, mas projetam suas

formas em outras posteriores: restos do seu tipo de imaginação sobrevivem, reaparecem

transfigurados em outras eras imaginárias.

Tudo terá de ser reconstruído, invencionado de novo, e os velhos mitos, ao reaparecerem de novo, nos oferecerão seus conjuros e seus enigmas com um rosto desconhecido. Ora, que outro estatuto imaginário teria a nossa cultura senão o de reinventar e somar imaginários anteriores?35.

Isto define o devir: um ser e não ser ainda, em processo de mutação.

Esquadrinhando-se os fundamentos epistemológicos da semiótica da cultura,

pode-se verificar que eles nos oferecem a possibilidade de verificar nossos valores e ideais

culturais, o que nos é necessário para decidir melhor aquilo que pode ser feito da melhor

forma no melhor tempo; afinal, a semiótica da cultura permite ver a relação entre os valores,

ideais e nos fornece indicativos para intervir no processo e nos mostra o desenvolvimento real

da cultura até agora. Os mitos, por exemplo, que para Freud são restos deformados dos

desejos e anseios comuns a todos os povos, na relação da semiótica da cultura, percorrem um

itinerário específico que é a transformação diacrônica. No entanto, é necessário procurar

encontrar o conteúdo latente no conteúdo manifesto.

No tocante a Tristão e Isolda e Iracema as relações semióticas culturais possuem

uma estrutura analógica em geral. As duas obras (elas podem ser consideradas como um

somatório de imaginários poético-prosaico anteriores, não pretendendo, com isso,

desqualificar a veracidade da imagem, mas trazer o historicismo para o plano da linguagem e

mostrar que os textos dialogantes exibem o seu ‘devir’ na mutação de outros textos,

fragmentos, traços, partículas extraídas de uma totalidade) estruturam-se no enredo a partir

da dicotomia amor proibido & paixão + infelicidade & destino. Ambas constituem-se por

meio dos requintes da idealização. Nas duas narrativas o amor é concebido como agente de

subversão e a paixão é o entusiasmo da impossibilidade social de o amor triunfar, é esta

impossibilidade e exigência de administrabilidade do amor que parece dar vida a toda trama e

à fugacidade. Esta perspectiva nos ajuda a penetrar, historicamente, no conteúdo da tópica

35 LIMA, Lezama. A Expressão Americana. Tradução, introdução e notas: Irlemar Chiampi. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 29.

44

literária da cultura36 do amor-cortês para verificar como ela adentra em nosso movimento

romântico, mais especificamente em Iracema, e de que forma Alencar se apropria dela para

dar sentido específico à sua obra indianista – verdadeira obra-prima que fascinou e que ainda

fascina muitos por sua singularidade e pela carismática atuação da protagonista no

desdobramento da intriga amorosa.

No conflito da obra tristaniana, Isolda, após tomar o filtro, a poção mágica

destinada ao futuro marido, o rei Marc, tio de Tristão, enfeitiçada pela magia da bebida,

apaixona-se pelo até então fiel cavaleiro, e torna-se uma espécie de vassala amorosa do

sobrinho do rei, que por sua vez se transforma em seu vassalo amoroso. Em Tristão e Isolda

há a morte do par romântico; em Iracema, também é a influência de uma bebida mágica que

funciona como mola-propulsora na deflagração do conflito central, a causa da descoroação do

título de guardiã dos segredos da bebida de Tupã que a heroína ostentava. Há a morte da

heroína que empresta nome ao romance. As duas narrativas são marcadas pelo sinal da

morte. A questão que vem à tona com maior profundidade é o problema da morte de dentro e

da morte de fora de nossos heróis e heroínas.

Quanto a este aspecto envolvendo a problemática da morte literária, voluntária,

Rougemont, referindo-se ao “Amor da Morte” em Tristão e Isolda, faz a seguintes perguntas:

“O obstáculo do qual falamos freqüentemente, e a criação do obstáculo pela paixão dos dois heróis (confundindo aqui seus efeitos com os da exigência romanesca e da expectativa do leitor) – este obstáculo seria apenas um pretexto, necessário ao progresso da paixão, ou estaria ligado de uma maneira muito mais profunda? Não seria o próprio objeto da paixão – se descermos ao fundo do mito?. 37

Nas duas obras a morte não é platônica tal qual ocorre na lírica trovadoresca:

morre-se ‘realmente’ (fisicamente) um pelo outro, em decorrência das peripécias diversas.

Analisando detidamente os dois autores tão distantes no tempo e no espaço e o imaginário

poético subjacente, verifica-se que ambos recorrem ao mesmo fim decoroso no epílogo de

seus escritos: a morte tem um caráter de nobreza, é capaz de superar todos os obstáculos. A

36 ______ Há um investimento para a autora sobre o seu conceito da história e da cultura como era imaginária: ela não evolui como o logos hegeliano e tampouco repete como o organismo biológico spengleriano. A nova causalidade que o sujeito metafórico ali imprime mostra, mais uma vez, uma forma em devir – que vai sendo, que é re-corrente, que é semelhante sendo diferente, exatamente como uma metáfora. p. 31. 37 ROUGEMONT, Denis de. Idem, pp. 35-36.

45

vida é como uma aventura audaz enfrentando toda a sorte de perigo, no encalço de um

objetivo quase sempre inacessível ou acima da própria condição humana. A configuração do

sentimento amoroso, as condutas por ela inspirada trazem à tona a temática do amor

cortesão38 – essa relação ideal aparece como verdadeiro objeto cultural e seus testemunhos

são sempre de textos ditos literários. O amor, vínculo entre dois indivíduos, assegura a

passagem da ordem natural à ordem poética, o sentimento implica uma afinidade espiritual

pactuada entre os parceiros como eterna. Quando todos os anseios não consolidam a

conjunção amorosa do ser enamorado, resta apenas ao eu-lírico a fuga da realidade – válvula

de escape para a contenção do drama vivido.

O caso clássico de O Drama Heloísa-Abelardo reforça o que estamos afirmando.

O Padre Vilela – comentador da história tal como se depreende das cartas trocadas pelos

amantes – explicita, através de uma imagem metafórica, que Abelardo no seu esquife

aguardava de braços abertos o corpo de sua preferida em vida. No final da narrativa de

Tristão e Isolda há uma imagem metafórica semelhante. A temática da experiência amorosa

revestida da constância e da fidelidade, características intimamente ligadas à lenda de Tristão

e Isolda, percorre um itinerário vital: até após a morte física eles se reencontram quando,

segundo a lenda, cresce na morada derradeira do casal apaixonado, duas árvores unidas por

uma força descomunal sem que haja nada que possa desatá-los ou separá-los, anunciando-nos

pelo símbolo a prerrogativa de que morrer de amor e por amor supera quaisquer barreiras

impostas pelo meio social, como se verá mais adiante. Como nota Bakhtin, é necessário não

abrirmos mãos das diretrizes metodológicas e da necessidade prioritária de conquista do

objeto autêntico de pesquisa em voga, isolá-la de seu contexto e delimitar suas fronteiras. No

nosso caso, o objeto é a vassalagem amorosa geradora da morte em função de desencontro

entre os heróis e as heroínas.

Para atingir o objetivo proposto o corpus analisado será composto de três partes

distintas. O assunto de que trataremos situa-se no âmbito da Literatura Comparada e seu

objeto de estudo é a intertextualidade. Nitrini, abordando os percursos históricos da Literatura

Comparada, afirma:

38 GOFF, Jacques le & SCHIMITT. Dicionário Temático do Ocidente Medieval: “A expressão , “amor cortesão”, designando a relação entre um homem e uma mulher, foi usada pela primeira vez por Gaston Paris, em 1883, em um artigo sobre O Cavaleiro da Charrete, de Chrétien de Troyes, romance que relata o amor mais que perfeito de Lancelote por Guinevere, esposa do rei Arthur. Esse laço o faz praticar proezas espantosas e prestar ilimitada obediência às ordens de sua dama. Trata-se da fine amour na produção lírica, trovadores e trouvères usavam o termo vraie amour e fine amour para falar do amor perfeito e acabado, depurado como o ouro mais “fino”. Vol. I, p. 47.

46

(...) bastou existirem duas literaturas para se começar a compará-las, com o intuito de se apreciar seus respectivos méritos, embora se estivesse longe ainda de um projeto de comparativismo elaborado, que fugisse a uma mera inclinação empírica.39

No primeiro capítulo abordaremos a concepção da mulher medieval. Dentro deste

panorama histórico retrataremos dois perfis de mulher: Heloísa e Isolda. Pretende-se, com

isso investigar o episódio histórico em Heloísa e o literário em Isolda, paralelo importante

para a compreensão das duas formas tão díspares de concepção amorosa. Ainda far-se-á um

histórico medieval a fim de se compreender à luz da história certos fenômenos sociais.

No segundo capítulo, verificar-se-á o contexto situacional de Tristão e Isolda,

inserindo-o no conjunto das produções medievais de caráter lendário como a narrativa

episódica o é. Para discorrermos sobre o assunto contido na obra, falar-se-á do herói e da

heroína e o percurso traçado por eles durante a narrativa enfatizando, nesse ínterim, a

problemática do ‘filtro’, fio condutor e elemento essencial ao desenvolvimento da intriga.

Além disso, procuraremos delimitar em que sentido a narrativa traz as marcas primordiais do

mito do amor sem retorno ou amor impossível. Nesse contexto, o mito de Tristão e Isolda

difere do mito de Iracema, porque este está relacionado ao mito das origens, o autor procura

situá-lo no cronótipo do mito da jovem nação brasileira, assunto de que trataremos no terceiro

capítulo. Procurar-se-á, também, ainda neste segundo capítulo, estabelecer um paralelo entre

Tristão e Isolda e Heloísa-Abelardo.

No terceiro capítulo, contextualizaremos José de Alencar no tempo e no espaço,

inserindo-o no Romantismo brasileiro do século XIX. Neste sentido, far-se-á uma exposição

da fortuna crítica, as influências recebidas pelos autores europeus na sua formação literária,

bem como a forma como a crítica literária luso-brasileira encarava em seu projeto literário a

importação da forma e conteúdo dos romances de origem européia, bem como de sua

independência no processo formador da língua brasileira. Quando a crítica aponta as

contradições nos romances alencarianos, ele reage friamente à aspereza da crítica lançando

mãos de uma retórica voltada para a defesa do nacional e da valorização localista, papel

decisivo de seu empreendimento de criação de uma literatura desvinculada do cânon europeu.

Para desenvolver o objeto da crítica esboçaremos um estudo de Senhora, um de

seus perfis de mulher, escrito por Roberto Schwarz, onde o crítico da Modernidade aponta a

39 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: Edusp, 1997, p. 9.

47

importação do romance e suas contradições em Alencar. Assim, tentaremos elucidar o

Alencar que buscou motivos textuais na Normandia. De certa forma, este grifo nosso, é uma

forma de romper com o dogma schwarziano de que Alencar é um autor de segunda

categoria. Segue-se a crítica com o estudo do crítico Antônio Cândido: “Os Três Alencares”;

a “Dialética da Colonização”, de Alfredo Bosi; e “Uma Arqueologia de Vanguarda”, de

Haroldo de Campos.

No quarto capítulo, apresentaremos o problema geral em Iracema, interpolando-a

no cronótipo do mito de origem; trataremos da heroína idealizada, falaremos da harmonia

rompida na lenda do Ceará, mais especificamente sua queda diante do par romântico Martim,

o jovem guerreiro branco que se deixou seduzir pelos encantos da índia brasileira; far-se-á

também uma análise estrutural do conteúdo da obra a fim de nos familiarizar e nos identificar

com sua tessitura organizacional. Em seguida, será analisado José de Alencar sob o signo do

amor-cortês, as figuras de vassalagem, o mito e os papéis masculinos.

Ainda, pretende-se investigar as relações de hiper e intertextualidade

presentificadas nos dois textos, de que mencionamos, procurando revelar o objeto principal

de nossa tese: ‘a morte voluntária do herói e heroína e a questão da vassalagem amorosa’.

Nossa intenção, portanto, é fazer a verificação e investigação do preito amoroso da mulher

em relação ao homem e vice-versa, a fim de que possamos visualizar de que forma as idéias e

ideais dos antigos textos medievais são recuperados na tessitura e organização do texto

romântico indianista do século XIX, e, por extensão, demonstrar, se possível, pela análise

comparativa os graus de semelhanças intrínsecas às duas produções literárias, fastígio a que

queremos chegar através de suas relações intersemióticas.

Em síntese: através dos olhos do artista, ao pintar uma paisagem, o artista

transmite algo bem diferente do que a maioria vê. Ele rearruma, simplifica, destaca, modifica

a fim de fixar o que sua própria óptica apreende. Assim como um quadro difere de uma cena

real, uma fotografia, o texto literário, pela sua peculiaridade, é gerador de processos

metamorfoseantes. Ao longo de nossa argumentação tentaremos delinear, afinal, os recursos

de que valem os artistas da palavra para a construção de sua arte de criar imagens, de sugerir

emoções por meio de uma linguagem em que se combinam sons, ritmos e significados e, em

que medida sua arte se diferencia de uma outra por seu conteúdo intertextual e dialogador: o

caráter do que emociona, toca a sensibilidade do eu.

48

Assim, considerando que não existe linguagem independente da sua forma

instrumental é certo afirmar que a apreensão que se queira na sua globalidade necessita – pela

análise textual – descer à fonte do sistema de signos, à estrutura geradora da mensagem de

sorte que ela se abre às novas perspectivas de entendimento do complexo fenômeno literário

bem como a sintaxe combinatória das intersemioses. Como bem assinala Bakhtin em

Marxismo e Filosofia da Linguagem

Quando a atividade mental se realiza sob a forma de uma enunciação, a orientação social à qual ela se submete adquire maior complexidade graças à exigência de adaptação ao contexto social imediato do ato da fala e, acima de tudo, aos interlocutores concretos.40

40 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8ª Edição. Editora Paulo Hucitec, 1997, p. 117.

49

Primeiro Capítulo

1 - A Mulher Medieval

A mulher casta e de reputação irrepreensível nunca exerce atração que a possa levar à condição de objeto amoroso, mas apenas a mulher que é, de uma forma ou outra sexualmente de má reputação, cuja fidelidade e integridade estão expostas a alguma dúvida. Os homens não se satisfazem sem algo dessa espécie: amor à prostituta41.

Para se ter uma visão ampla do papel da mulher na sociedade medieval, importa

ressaltar alguns aspectos de sua condição real e situação no meio familiar, na atividade

profissional, intelectual, e observar os preconceitos da época a seu respeito. Certos

comportamentos, certos hábitos e costumes só poderão ser compreendidos na sua totalidade e

complexidade à luz da História42. Georges Duby, ao retratar a História da Vida Privada,

especificamente a mulher da Idade Média, diz que o espaço privado na era feudal não deixa

de isolar daquilo que o cerca, que o penetra e lhe resiste. Para o historiador “é importante

então conhecer bem em sua globalidade e em suas articulações a formação cultural e social

em que ela se insere”.43

Os membros das famílias eram acolhidos pelo chefe da casa mediante uma

relação de convívio e outras de parentesco. Nesse complexo sistema, não era evidentemente o

gosto pessoal, e sim, as conveniências de família que determinavam qual a mulher que mais

convinha. Pode-se dizer, na prática: se havia alguma coisa inconcebível para as classes

dominantes era que a inclinação mútua dos interessados pudesse ser a razão por excelência do

41 FREUD,Sigmund. Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (Contribuições à psicologia do amor). 42 LIMA, Lezama. A Expressão Americana: - “todo discurso histórico é, pela própria impossibilidade de reconstruir a verdade dos fatos uma ficção, uma exposição poética, um produto necessário da imaginação do historiador. Encontra-se afetado, poderíamos dizer, por aquele próton pseudós, o erro fundador de toda a história que consiste em valorizar o passado com os pontos de vista do presente. Assim, se a história e a poesia [ pensemos, neste contexto, no episódio poético-romanesco-ficcional Tristão e Isolda e em O Drama Heloísa Abelardo, então entenderemos a impossibilidade de reconstruir a verdade dos fatos históricos de que fala Lezama] se confundem na mesma ‘mentira’ poética, o que pode restar de verdade à operação do logos poético? pp. 24-25. 43 DUBY, Georges. Idem, p. 49.

50

matrimônio. Mais: isto só se passava nos romances ou entre as classes oprimidas que não

contavam para nada. Não cabia ao amor a última palavra na determinação dos casamentos.

A idéia predominante era a da inferioridade natural da mulher, uma vez excluída

das funções públicas, políticas e administrativas. Sabe-se que suas relações limitavam-se a

domus, Igreja, enquanto a casa era governada pelo pai, pelo marido ou pelo sogro. Os

casamentos se efetuavam, via de regra, não por escolha pessoal, mas por decisão das famílias,

que no propósito de promover uma união conveniente e segura, firmavam os compromissos

sem mesmo consultar as partes diretamente interessadas, realizava um contrato não firmado

pelas partes interessadas.

A princípio, vinha-se ao mundo já casado com todo um grupo de seres do outro sexo. Depois, na forma posterior de matrimônios por grupos, é de crer-se que as condições fossem análogas, mas com estreitamento progressivo do circulo.44

As mulheres costumavam ser dadas como esposas aos preferidos de seus pais,

quase sempre mais velhos que elas. Devido aos padrões da época, tornava-se quase

impossível casamento entre pessoas de classes sociais diferentes.

A uma jovem sem condições, de família modesta, não haveria a mínima

possibilidade de qualquer sucesso futuro junto aos herdeiros ricos e poderosos das hierarquias

aristocráticas. Ambas presas aos interesses familiares, não dispunham da liberdade de

escolherem o próprio marido. As Instituições do Estado, criadas pela nobreza e amparada

pela Instituição Eclesiástica, definiam o casamento e selavam o destino das pessoas. Era a

época em que as mulheres não podiam exercer cargos públicos, nem tampouco religiosos: nos

cultos eram impedidas até mesmo de falar em sinal de subordinação. Na Europa Ocidental,

somente entre os Celtas (antigo povo de raça indo-germânica), a mulher desfrutou de

considerável independência e, juridicamente, existia uma certa equiparação entre os dois

sexos.

Tal independência dependia do grupo social do qual fazia parte e da riqueza que

possuía, isto é, seus direitos eram diretamente proporcionais à sua condição socioeconômica.

No que concerne ao poder econômico, as leis irlandesas (a Irlanda é palco espacial onde

ocorrem muitas das aventuras do cavaleiro errante Tristão) vigentes na alta Idade Média

44 ENGEL, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de H. Chaves. 4ª Ed. Lisboa: Editora Presença Ltda, 1980, p. 103.

51

previam, por exemplo, três tipos de relação conjugal. 1)- Quando a esposa provinha de

família tão abastada quanto à do marido, desfrutava da relação em completa igualdade com o

companheiro, tinha liberdade nas suas decisões; quando inferior, seus direitos eram bastante

reduzidos. 2)- Quando a fortuna fosse superior, ela era incontestavelmente o chefe da família,

eliminando quase que totalmente a autoridade do companheiro. 3)- Já na sociedade

germânica, governada pelas leis dos lombardos, era permitido à mulher viver de acordo com

a sua vontade, contudo, sob o poder de um homem ou um rei. Em relação a esse fato o

pesquisador medieval Macedo acrescenta que:

Entre os séculos X e XI, quando as relações feudo-vassálicas condicionavam o tecido social de áreas importantes da Europa, houve uma transformação substancial nas estruturas familiares visando à manutenção do patrimônio. Até o século IX o parentesco era definido horizontalmente, configurando-se até duas ou três gerações pelos parentes consangüíneos e pelos parentes de aliança. Lentamente, esse conjunto foi substituído por outro, definido verticalmente, onde as relações familiares passaram a ser ordenadas por uma descendência direta, por uma linhagem.45

Este sistema de linhagem alterou de maneira significativa a camada aristocrática.

Como a linhagem favorecia os componentes do sexo masculino nas regras de sucessão

familiar, restavam à mulher as virtudes da obediência e da submissão, dentro e fora do

casamento (os documentos não revelam basicamente nada a respeito do ritual de casamento

entre pessoas pobres do campo ou das cidades). Quanto a esse aspecto Lacan em “O Amor

Cortês em Anamorfose, no Seminário 7” acrescenta que, “as estruturas elementares de

parentesco indicam mais que um correlato das funções de troca social, o suporte de um certo

número de bens e sinais de potência”.46 Nesse sentido, a mulher é identificada com uma

função social que não lhe deixa direito algum, seja para sua pessoa, seja para sua liberdade,

exceto, como já foi dito, ao direito religioso.

O sistema de linhagens favorecia sobremaneira a profanação do casamento; em

Heloísa, Isolda e Outras Damas do Século Doze, Duby, afirma:

(...) a orientação da política familiar das dinastias aristocráticas, o cuidado que se tinha de casar apenas um filho homem a fim de evitar por ocasiões das sucessões o fracionamento dos patrimônios privavam a grande maioria dos homens adultos de uma mulher legítima47.

45 MACEDO, J. R. A mulher na Idade Média. 3ª Ed. São Paulo: Contexto, 1997, p. 11. 46 LACAN, Jacques. Seminário 7. 47 DUBY, Georges. Idem, p. 85.

52

Nas estruturas de parentesco matrimonial é possível constatar que, após o

casamento, a mulher passava a fazer parte da família do marido. Excluída da sucessão, não

punha em risco a riqueza da família do esposo. Na sua nova família caso ficasse viúva, não

tinha direito à herança e isso, segundo Duby, ao analisar o poder público e privado das

sociedades medievais revela uma das arbitrariedades da Igreja em torno de um legado

funerário: “Si absque herede obirent and monasterium plubicatur praedia vel quid haberent

hereditario jure”, isto é, se os doadores morressem sem herdeiros, tudo o que eles possuíam

como direito hereditário seria retirado e atribuído ao monastério. Ora, a mulher era uma

herdeira direta do marido doador, porém, era-lhe negado esse direito.

Sabe-se que algumas mulheres pagavam altas somas aos servos do rei para

poderem escolher seus maridos; isto seria possível, desde que tal escolha não colocasse em

perigo a estabilidade do patrimônio familiar. A filha sempre constituía um ônus para o pai,

que, ao dá-la em casamento, deveria oferecer um dote ao futuro marido. Uma das estratégias

paternas para evitar esse ônus era enviar a filha ao mosteiro e torná-la esposa do Senhor: às

vezes, era mais barato dotá-la para a união mística com Cristo do que para a relação

matrimonial. Dessa forma, os processos de transmissão dos bens determinavam o destino das

mulheres na hierarquia aristocrática. Sob essa perspectiva, percebe-se que a sociedade não

reservava espaço para a paixão, a fantasia ou o prazer; porém, nada impedia que o marido

encontrasse esse último fora do leito conjugal. Outro fato de que se tem conhecimento é de

que o marido tinha o direito de castigar a mulher, tal qual castigava uma criança, um mau

súdito ou um escravo. Os séculos XIII e XIV foram marcados, notadamente, nas

comunidades rurais da fronteira meridional da França, pelo poder masculino e pela sujeição

feminina.

No mundo rural, a camponesa, quando casada, participava de todas as atividades

nos domínios senhoriais; viúva, trabalhava com os filhos. Nas sociedades rurais, exigia-se da

mulher muita habilidade e senso de organização. O suprimento de alimentos e vestimentas da

família estava sob sua responsabilidade. Ademais, a ausência constante do marido em

peregrinações, cruzadas e guerras, obrigavam as mulheres a exercerem os trabalhos e as

atividades reservadas aos homens, como também a cuidar da administração das posses das

53

famílias. Assim, podemos dizer, sem muito receio de contradição efetiva, que nesse caso, a

mulher exercia as funções de um senhor feudal, sim, mas no plano doméstico48.

No final da Idade Média, na Península Ibérica, no sul da França e em algumas

cidades italianas havia um contingente elevadíssimo de mulheres servas. Havia obrigações

mútuas entre amo e serva. Esta arrumava a casa, cuidava da prole, acompanhava seu senhor e

era-lhe fiel; em contrapartida, a ele cabia protegê-la como protegia os vassalos que lhes

prestavam obediência. Entre as mulheres ocidentais, muitas eram escravas, vindas das regiões

gregas, africanas, orientais, sendo exploradas pelas mulheres livres. Quase todas as mulheres

possuíam uma escrava trazida da casa paterna como dote. Quanto às mulheres que viviam à

margem da sociedade por serem consideradas prostitutas ou seguidoras de seitas heréticas e

bruxarias, eram castigadas ou punidas com a morte em conseqüência de seus atos. Como a

mulher era tida como símbolo indefectível do pecado original e como propensa ao pecado, o

poder patriarcal via-se reforçado, porque essa feminilidade representava o perigo. O

dever primeiro do chefe da casa era vigiar, corrigir, matar, se preciso, sua mulher, suas irmãs,

suas filhas, as viúvas e as filhas órfãs de seus irmãos, de seus irmãos, de seus primos e de

seus vassalos.

A prostituição existia tanto no mundo rural quanto no urbano. No primeiro,

apesar da escassa documentação a respeito, sabe-se que existiu de maneira organizada e fora

do controle das autoridades. No mundo urbano, essa prática é igualmente registrada,

entretanto não com tanta precariedade documental quanto o primeiro modelo, mas com

riquezas de informações. Na França, centro irradiador da cultura trovadoresca, o meretrício

não só era aceito, como ainda havia locais específicos, alugados e administrados pelos

burgueses ricos. Nesse ambientes promíscuos, a prostituição tinha o consentimento e

aprovação das autoridades locais. Havia zonas de baixo meretrício na Alemanha, na Itália e

em outras cidades européias. Diz Macedo:

(...) malgrado a existência dessa prostituição urbana, organizada, canalizada e controlada pelas autoridades, nada indica o desaparecimento da prostituição nômade e sazonal praticada nas feiras, nas esteiras das

48 SPINA, Segismundo. A Lírica Trovadoresca. Compreender este aspecto da figura da mulher torna-se muito importante porque há muita contradição entre o histórico e literário. Segismundo Spina, por exemplo, em A Lírica Trovadoresca, ao fazer a análise das cantigas, põe em discussão esta dicotomia que contraria qualquer tentativa de compreensão racional dos pesquisadores medievalistas contemporâneos. Convém ler para entender o paralelo que o historiador faz. 4ª Edição. São Paulo: Edusp, 1996.

54

tropas, ao sabor das necessidades que impulsionavam os homens às deslocações constantes.49

Para Jacques Rossiaud:

Tentar compreender a amplitude e o significado social da prostituição é defini-la frente às estruturas demográficas e matrimoniais, às anormalidades e desvios sexuais, aos valores culturais e às mentalidades coletivas dos grupos sociais que a toleram ou a reprimem. Tarefa ambiciosa, mas a única que permite explorar a vasta zona escura que separa os dois níveis até então privilegiados pelos historiadores da sexualidade: o das ideologias e da moral, o dos comportamentos demográficos50.

Sabe-se que a prostituição51 institucionalizada era aceita porque contribuía, de

certa maneira, para a não disseminação de arruaças e violências generalizadas praticadas por

organizações e agremiações juvenis. Além disso, servia para acalmar os desejos mais

recônditos dos clérigos condenados ao celibato, que mantinham em segredo relações sexuais

com concubinas (um caso clássico desse concubinato presente em O Drama Abelardo-

Heloísa foi a relação de Abelardo com Heloísa antes do casamento em segredo...). Havia um

comércio da carne entre religiosos e prostitutas. Esse fato não é novo na História. Gil

Vicente, em seus autos, ataca de modo veemente a vida desregrada desses supostos homens

de Deus...

Paralelamente à condição da mulher prostituta tem-se, a mulher extremamente

religiosa cuja devoção propiciou a implantação e sedimentação do Cristianismo. Muitas se

tornaram santas veneradas nessa sociedade patriarcal. Diante desse quadro paradoxal, muitas

perguntas poderiam ser feitas em relação a essa devoção desenfreada ou aos motivos que,

nesse caso, possibilitariam elevar a mulher a essa condição de superioridade em relação ao

homem, uma vez que, socialmente, era inferior ao mesmo. Em relação à religiosidade

feminina, Duby aponta, categoricamente uma forte discriminação a que estavam sujeitas as

mulheres no espaço monástico:

49 MACEDO, J. R. A mulher na Idade Média. 3ª Ed. São Paulo: Contexto, 1997, p. 72. 50 ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 19. 51 Em meados do século XIII, na França, o mundo da prostituição apresenta traços estranhos. Há muito tempo a “meretrix” é uma figura familiar da rua ou da taberna; as prostitutas de Provins ou de Troyes são célebres em todo o Ocidente; as prostitutas parisienses freqüentam os bairros das escolas, e principalmente a rua vizinha do claustro de Notre-Dame, dos Halles e da Grève; a Igreja aceita as suas esmolas, os universitários refletem sobre a sua condição e os autores das trovas fazem-na surgir astutas porém compassivas, como cúmplices indispensáveis da comédia cidadã. Idem, p. 59.

55

As mulheres sós, e especialmente as viúvas, que decidiam terminar seus dias junto a uma comunidade religiosa, eram admitidas por um momento na Igreja para os ofícios principais, mas residiam no exterior do recinto, em sua própria morada, como Ide, condessa de Boulogne, em meio ao seu séqüito de protegidas e de criadas, ou ainda como a mãe de Guibert de Nogent, à porta do mosteiro de Saint-Germer-de Fly. E se os estranhos tinham acesso em certas horas até a área preparada para essa festa suntuosa e semipública que pretendia ser a liturgia clunisiana, para o que pode aparecer como o equivalente, no palácio, das cerimônias de coroação, eles sempre estritamente mantidos à distância desse âmbito privado reforçado onde habitavam os senhores, o núcleo da “família”, a fraternidade agrupada atrás de seu pai.52

Um outro aspecto que merece destaque é o mecenato feminino. Durante o

desenvolvimento da lírica trovadoresca, mulheres nobres do sul da França, em meados do

século XII, incentivavam e protegiam os poetas. Constata-se também que as mulheres

letradas (mulheres letradas havia muitas nas abadias, e algumas nos palácios senhoriais,

quase sempre religiosas), se dedicavam à arte dos copistas e também à criação literária,

desenvolvendo temas religiosos. Surgiram nessa época gêneros considerados femininos,

dentre eles, “a canção da malcasada”53 do norte da França, e “a canção da tela”54, versos que

as mulheres cantavam enquanto bordavam ou fiavam. No Languedócio, algumas poetisas, e

em especial, Maria da França, ressaltavam em suas composições a independência de suas

heroínas, contrariando o que ocorria nos poemas trovadorescos. Esses poemas femininos

tinham, grosso modo, características, estruturação e conteúdo semelhantes aos da cantiga de

amigo; nele, a mulher se sente desejada, luta pelo seu homem ou aguarda o retorno de seu

amante.

Na França Meridional, destacou-se a poetisa chamada Condessa Die, que

conseguiu exprimir nas suas obras concepções próprias da ética cortês e, introduziu o

discurso feminino nos temas essenciais da cortesania. Subverteu a convenção literária:

quando a voz feminina passa a ser ouvida, os dados tradicionais são alterados de forma que a

fala da trovadora equivalha à voz das senhoras. De um modo geral, as mulheres européias

não tinham acesso a nenhum tipo de educação formal; pobre, trabalhavam ao lado do

marido, e nobres só aprendiam alguma coisa caso tivessem preceptores em seu próprio

52 DUBY, Georges. O Modelo Cortês. In: História das mulheres na Idade Média. Porto: Porto, 1990b. p. 80. 53 Idem. p. 80. 54 Ibidem.

56

castelo. Neste caso, estudavam música e, às vezes, alguns rudimentos das artes liberais, além

dos trabalhos manuais tipicamente femininos55.

A partir do século IX, são fundados os conventos, onde as mulheres começam a

aprender o latim e as artes de miniatura. Se do ponto de vista histórico, a mulher foi sempre

inferior ao homem, por que ocorre a glorificação da mulher na lírica trovadoresca?56 A

valorização seria uma arma contra a autoridade que oprime o livre exercício da

individualidade? Seria apenas um pretexto para a criação literária. Quanto a isso, Correia, em

Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses57 afirma: “quer o Trovadorismo quer o

Romantismo que retoma daquele o tema da liberdade através da ascese amorosa, doutrina que

tem por núcleo a mulher, são reações contra uma identificação paterna, na medida em que

esta representa o princípio da autoridade, o espírito das leis mediante os quais exercem os

imperativos de um mundo patriarcalmente organizado”.

Nesse ponto, está posta a questão da ambivalência: a mulher é ao mesmo tempo

elevada e rebaixada, logo, um objeto perturbador, um objeto inadministrável como observa

Lacan no capítulo “O Amor Cortês em Anamorfose”, do Seminário 7.

O ambiente aristocrático estava envolvido por uma onda de relações

extraconjugais que parece refletir bem e ratificar com riqueza de detalhes, a luxúria que

estava mergulhada a dissoluta Corte Medieval, e este fato desmistifica efetivamente o dogma

de que este tipo de literatura [a literatura cortesã] criada para acalmar os ânimos desenfreados

dos cavaleiros não permitia sua ruptura no jogo das relações amorosas. Nesse contexto, vê-se

55 No Brasil, eram comuns no século XIX, durante o Romantismo, os trabalhos manuais femininos, como o tecer e o fiar. Não são poucos os romances desse período que retratam uma mãe, uma filha ou uma serviçal dedicando-se a trabalhos de prenda doméstica, principalmente a costura. Ressalta-se que, como na Idade Média, o século XIX, também é um período de preponderância da voz masculina sobre a feminina. Para Georges Duby a ocupação feminina, na Idade Média e em especial durante o Feudalismo, as tarefas específicas funcionavam como um mecanismo ideológico controlador dos apetites profanos a que as mulheres estavam predispostas o tempo inteiro: daí o ideal de uma divisão equilibrada entre oração e trabalho, o trabalho do tecido. 56 Paradoxo da vassalagem: contradição do testemunho. Para além dos problemas específicos, tão numerosos que levanta a história da vassalagem européia, existe um grande problema humano que os domina a todos: qual foi, nos actos e nos corações, a verdadeira força deste cimento social? Na verdade, a primeira impressão acerca disso nos dão os documentos é a de uma contradição perante a qual não convém “targiversar”. Não é preciso procurar muito nos textos para recolher uma impressionante antologia em louvor da instituição vassálica. Desta, eles celebram, em primeiro lugar, um vínculo muito precioso.<<vassalo>>, tem por sinônimo freqüente, <<amigo>> e, mais vezes ainda, o velho substantivo, provavelmente celta, <<dru>>, mais ou menos equivalente, mas cujo significado incluía, no entanto, um matiz mais preciso, de escolha; se se deixou por vezes à escolha vassálica, não parece ter-se aplicado alguma vez às relações de parentesco, ao contrário de amigo. (...) Dirão talvez os historiadores que só tem ouvidos para a aridez de seus documentos: nada disso! A Sociedade Medieval, 1987: p. 245. 57 COREIA, Natalia. Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses. 3ª Ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p.23.

57

a presentificação número um do mandamento do jogo amoroso que impõe ao jogador a

tendência a querer ganhar. Quanto a esse jogo, tomemos,Johan Huizinga:

A vida medieval estava saturada de jogo. Ora são jogos populares desenfreados, permeados de elementos pagãos que haviam perdido seu significado sagrado para se transformarem em puro amor e bufonaria, ora os solenes e pomposos jogos de cavalaria, os jogos sofisticados do amor-cortês, etc. Poucas dessas formas possuíam ainda alguma força criadora autêntica, a não ser no caso do ideal do amor-cortês, que conduziu ao ‘dolce stil nuevo’ e à ‘vita nuova’ de Dante.58

Enfim, para explicar convenientemente a verdadeira natureza e o caráter próprio

da sociedade medieval, e em especial, da mulher deste momento histórico, é indispensável ter

uma visão geral sobre a marcha do progresso e do espírito humano, considerado em seu

conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida por sua história. A

explicação dos fatos reduzida então a seus termos reais se resume de agora em diante na

ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares observáveis como casos

particulares de um único fato real. “A Idade das Trevas” foi marcada por algumas

singularidades e, para conhecê-la um pouco mais se faz necessário compreender a estrutura

da sociedade medieval para vincularmos de imediato algum princípio que a regia. Esta

necessidade, torna-se ainda mais sensível tendo em vista que Tristão e Isolda – personagens

ficcionais –, e Heloísa e Abelardo – personagens da vida real – são protagonistas de histórias

de amor oriundas deste período, cada qual com suas peculiaridades e retratando no trabalho

de linguagem impregnado pelos escritores uma visão singular de mundo e de sociedade.

Nossa atividade intelectual estimula-se com a pura esperança de descobrir as leis dos

fenômenos com o simples intuito de confirmar ou afirmar uma teoria.

Depois de ter assim estabelecido os princípios estruturalizantes da sociedade

feudal sem entrar (o que não é nosso interesse) em uma discussão especial que estaria

desfocada neste momento, será mais fácil determinar com certo grau de precisão a própria

natureza da mulher no meio de uma sociedade solidamente enraizada por princípios

patriarcais. Levando-se em consideração que a cultura de um grupo ou um povo – em sua

espacialidade e temporalidade – se resume em seu sistema de idéias, conhecimentos, técnicas,

religião, normas de conduta, visto que tais fatos existem sob a forma de linguagem e, entre as

58 HIUZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da Cultura. 5ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 200.

58

linguagens da cultura, a língua ocupa lugar e relevo, pois é ela que será a responsável pelo

entendimento de todo e qualquer processo histórico.

Por fim, a interpenetração de certos hábitos dos celtas, romanos e germânicos

com a cultura cristã teve peso considerável na concepção da mulher medieval da sociedade

européia.

2 – Heloísa e Isolda: dois perfis Antes dos escritos que se seguem a respeito de Heloísa cumpre-nos afirmar que a

amante de Abelardo não era uma santa. Nos verdes anos de sua adolescência foi acometida de

uma grande sensualidade. O que se sabe como se verá no seu devido tempo é que, o conflito

existente entre ela e o mestre Abelardo, a empurrou para um convento para se transformar em

uma “esposa do Senhor”:

Está o espírito humano exposto às mais surpreendentes injunções. Sem cessar, a si próprio se teme. Seus movimentos eróticos aterram-no. É com horror que a santa se afasta do voluptuoso, ignorando a unidade que existe entre as inconfessáveis paixões e as suas. 59

Heloísa, notória figura do século XII, pertencia à alta aristocracia da Ilê-de-

France e estava ligada a um dos clãs que disputavam o poder no séqüito do rei Luís VI.

Ocupou posição importante como priora da abadia de mulheres de Argenteuil, e, sabe-se que

conduziu um grupo de monjas. Abelardo compõe para estas hinos e sermões, o que constitui

um elogio à castidade. Heloísa submete a Abelardo 42 questões, na última, ela indaga “se

alguém pode pecar fazendo o que é permitido e mesmo ordenado por Deus”.60 Não é demais

reafirmar que a condição de Heloísa e a sua autoridade moral aproximavam-se à do Papa.

Uma carta escrita em 1142 refere-se à Heloísa, ao abade de Cluny e a Abelardo.

A carta é endereçada à heroína. Essa missiva continha um conteúdo moral; admoestava

homens e mulheres a ficar separados das turbulências mundanas. Em outra carta o conde de

Champagne envia uma carta a Heloísa relatando o estado de Abelardo. Abelardo morreu

primeiro que Heloísa, segundo o conde ele tivera uma morte bela destituída de todos os

pecados. Para Duby, o documento revela que Heloísa pertencia a Abelardo uma vez que se

59 BATAILLE, Georges. Tradução: João Bernard da Costa. 2ª Ed. Portugal: Moraes Editora, 1980, O Erotismo, o Proibido e a Transgressão, p. 9. 60 Idem, p. 55.

59

dedicara de modo fervoroso à vida religiosa. Para o autor Heloísa será entregue a Abelardo

no “Juízo Final”.

A carta revela uma Heloísa recatada, elogiosa, fora tida como “o bom capitão de

um esquadrão de mulheres”. A amante de Abelardo desde a juventude só pensava nos

estudos, desprezando os prazeres. Consegue consoante Duby ultrapassar quase todos os

homens. Ao se converter, transformou-se totalmente, metamorfoseando-se em esposa de

Cristo, tornando-se uma mulher filosófica. Heloísa ancorou solidamente no imaginário

europeu e não foi como uma religiosa modelo como a pintaram Pierre de Cluny e Bernard de

Clairvaux. Jean de Meung – autor do Romance da Rosa – não cantou sua sabedoria e sim sua

loucura. Petrarca maravilhou-se dessa loucura que tocou Rousseau, Diderot e até Voltaire.

Atingiu os românticos: todos movidos pela casuística e arrebatamento da paixão amorosa.

Para Duby:

Desde Jean de Meung, a Heloísa de nossos sonhos é a campeã do amor livre que rejeitou o casamento porque ele acorrenta e transforma em dever o dom gratuito dos corpos; é a apaixonada ardendo de sensualidade sob seu hábito, é a rebelde que enfrenta Deus; é a heroína muito precoce de uma liberação da mulher61.

Abelardo e Heloísa fizeram parte de famílias poderosas. Após ser castrado,

recolheu-se no mosteiro Saint-Denis para isolar-se do mundo. Seus carrascos tiveram a

mesma sorte, os olhos vazados, e o mandante Fulbert teve os bens confiscados. A queda de

Abelardo foi o amor, o desejo inato dos homens. Segundo consta, Abelardo fora movido por

três estados de espírito: o orgulho, a avareza e a luxúria. Dir-se-ia que o pensamento é a parte

que o corpo constrói a fim de se chegar ao objeto de seu desejo. “Tudo o que podias ganhar

vendendo o teu saber, era consumido num sorvedouro, gasto em fazer amor. A ávida

rapacidade das mulheres te arrebatava tudo”62. Eis assim curado, e pela simples ablação de

uma “partícula” de teu corpo. O autor dessa missiva, Fouque – prior da abadia de Deuil –

afirma que a castração de Abelardo é uma liberação de todos os átimos e desejos libidinosos.

Roscelin – ex-mestre de Abelardo – escreveu uma carta invectiva. Nela o mestre

critica o ex-discípulo dizendo que o viu ser bem-recebido na casa do cônego Fulbert para

ensinar Heloísa, em troca do respeito mútuo foi animado por um espírito de luxúria

desenfreado, não ensinou as regras da racionalidade, mas sim o fazer-amor. Culpa-o de 61 DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e Outras Damas do Século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.58. 62 Idem, p. 59.

60

traição e de ter deflorado uma virgem. Sem dúvida Abelardo foi um mulherengo e na época

as circunstâncias favoreceram sua atuação. “A ocasião faz o ladrão” diz o axioma popular. O

local, a jovem, enfim, toda atmosfera subjacente tornara a sobrinha do patrão Fulbert

disponível. Fulbert após mandar castrar Abelardo, ofendido pelo caso, desaparece da lista de

cônego de Notre-Dame por cinco anos. O caso teve repercussão e criou um rebuliço em Paris

e foi comentado durante muito tempo. Para a intelectualidade da região setentrional francesa

o caso propiciava a elaboração de um tratado de história moral tendo como tema a vaidade do

mundo, o orgulho, a cupidez, o sexo63.

Diante desses fatos Abelardo sofreu duas perdas: no espírito a condenação e a

destruição de sua obra, na carne a emasculação. Duby explica a entrega amorosa dos

amantes:

No conforto mundano, o vigor da alma como sabemos, se estiola, se dissolve facilmente entre os prazeres da carne [...] Por me acreditar o único filósofo no mundo, começava a relaxar o freio do desejo, eu que até então me continha. Na casa de Fulbert, Heloísa o tentou. Muito bela, mas sobretudo superior a todas pela superabundância de seu saber. Ela caiu em seus braços. Ele a desfrutou, com requinte: se algo de novo podia ser inventado no amor nós o acrescentávamos. Escravo do prazer, transformado, conforme observou Étinne Gilson, num folgazão, como Érec do romance, esquecido dos deveres de sua condição, abandonando o estudo, passando as noites em vigílias amorosas.64

Após ter engravidado Heloísa, fogem para a Bretanha, sua terra natal. Lá, ela deu

a luz a um filho; o tio queria reparar a honra perdida. Heloísa não consente no casamento,

forçam-na; após as núpcias, Abelardo, envergonhado, encerrou-a num convento em

Argenteuil. O amante se tornou monge e obrigou sua esposa a se tornar freira e religiosa

como ele. Quando a instalou no Paráclito redigiu sua autobiografia. Heloísa escreve-lhe uma

carta, tratando-o de marido. Após recusar o casamento e apaixonada por Abelardo acaba

aceitando ser freira. Após a separação, o marido não se preocupa mais com Heloísa. Ela, por

sua vez, permanece prisioneira do amor, do amor verdadeiro, do corpo e da alma. Da mesma

63 FOUCAULT, Michel. In: História da Sexualidade. O uso dos prazeres. Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque,; J. A. Guilhon Albuquerque. Na cultura cristã e moderna essas mesmas questões – da verdade, do amor e do prazer – serão relacionadas muito mais facilmente com os elementos constitutivos da relação homem-mulher: os temas da virgindade, das bodas espirituais, da alma esposa marcarão bem cedo o deslocamento efetuado de uma paisagem essencialmente masculina – habitada pelo erasta e pelo erômeno – para uma outra, marcada pelas figuras da feminilidade e da relação entre os dois sexos. Muito mais tarde, o “Fausto” será um exemplo da maneira pela qual a questão do prazer e a do acesso ao conhecimento se encontram ligadas ao tema do amor pela mulher, de sua virgindade, de sua pureza, de sua queda e de seu poder redentor. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1994, pp. 201-202. 64 Idem. p, 63.

61

forma como Abelardo a ensinara a arte de amar, ela pede agora que ele a ensine a se apropriar

de Deus. Abelardo não responde ao pedido e pede às monjas do Paráclito que rezem por sua

aluna, pois muitos não tencionavam fazer isto. Heloísa se transforma decididamente numa

‘esposa do senhor’; responde as cartas de Abelardo; teme que o marido morra antes dela; não

culpa Deus pelo que aconteceu, contudo, pergunta a si mesma o motivo pelo qual Deus só

castigara Abelardo.

Segundo Duby, ela se impõe penitência, mas não por Deus, mas como reparação

pelo que Abelardo sofreu. Permanece ainda obcecada pela lembrança das volúpias perdidas,

mesmo agora que é devota. As cartas de Abelardo, tal qual o grande canto cortês dos

trovadores, não faziam confidências, nelas não havia efusões artísticas, procura-se

demonstrar a virtuosidade através de uma linguagem enxuta e acadêmica.

Os dois sofreram as conseqüências inexoráveis de seus atos interditos: nas cartas,

as lamentações revelam o arrependimento. No seu conjunto revelam que a mulher é capaz de

salvar sua alma. As cartas têm na sua interioridade um elogio ao casamento. Crê-se que a

mulher tem a necessidade de um marido na ausência de um pai, tio ou irmão. Nas cartas

considera que alguns casamentos são maus como o de Abelardo, por ter sido celebrado em

segredo, sem as homenagens públicas que o ato requer, as núpcias e os ritos consagrados.

Abelardo concorda que suas intenções não eram boas, desejava possuir Heloísa para que

outro não a possuísse. A autoridade eclesiástica da época dizia que o consentimento

matrimonial devia ser mútuo, Heloísa o recusara.

“A fraqueza de Heloísa, a fraqueza das mulheres que as tornam perigosas exige

um firme controle, decorre primeiramente da languidez da carne que as incita à luxúria”65.

Heloísa foi despertada para o prazer por seu sedutor, mas nada indica que ela tenha oferecido

resistência66, não se mostrou esquiva como as donzelas complacentes dos suseranos. Torna-se

não uma vítima, mas uma escrava do prazer e da concupiscência. Heloisa deixa sua condição

e é possuída desde as primeiras experiências. Mesmo tendo se transformado em religiosa,

sente ainda a pulsão sexual fervilhar-lhes as veias e sobretudo o coração. Na concepção de

Duby,

65 Idem, p. 74. 66 Contrariamente a esta afirmação de Duby, o Padre Orlando Vilela (1986: p. 70) em O Drama Heloísa-Abelardo afirma: “que Heloísa se tenha deixado seduzir é um fato. Mas que tenha havido relutâncias, por parte dela, em certos momentos e diante de certas atitudes de Abelardo, é também um fato pois é o próprio Abelardo que dá disso testemunho: “Tu sabes, diz ele, a que torpezas minha paixão desenfreada levou nossos corpos... às vezes, tu não querias, tu resistias com todas as suas forças e tentavas me dissuadir. Mas tu eras naturalmente a parte mais fraca. E eu muitas vezes venci tua resistência com ameaças e golpes”.

62

(...) é exatamente nessa sensualidade exigente, da qual o corpo das mulheres está impregnado, que jaz o perigo para os homens. Ela os conduz à perdição. Bastou que mestre Abelardo gozasse com a adolescente para cair prisioneiro, totalmente submetido ao prazer67.

Heloísa, chamada de concubina ou meretriz e não esposa, humilhou-se. Na

segunda carta de suas correspondência relata ter preferido o amor ao casamento por ele ser

livre e desinteressado, desejou o belo amor à cobiça. Para ela o casamento convertia, se

transfigurava, se transformava, sem nada perder, enfim, é um impulso purificador da alma:

dilectio. O desejo violento que Abelardo sentia por Heloísa sofre uma transformação,

amicitia, doação de si, livre, generosa, gratuita, pelo amor de Deus. Ela aspirava isso dele, a

reverência mútua, a fidelidade, a abnegação:

Abelardo, diretor da consciência, irá aceitar na carta V, respondendo à expectativa, chamar de “amiga” aquela que lhe clama ser chamada sua mulher. Ele emprega essa palavra para persuadi-la de que é certamente sua esposa mas que seu amante é agora Cristo, e que ele, o marido carnal, só está ali para servi-la como o bom cavaleiro serve sua dama. Emprega essa palavra para afirmar que os dois estão unidos, como dirá em sua carta Pierre, o Venerável, pela “caridade divina”, e que estão “ligados mais estreitamente agora por um amor que se tornou espiritual”, que encontra sua realização na amizade68.

Com a transformação operada em Abelardo, Heloísa cessa os seus gritos

apaixonados. Consta nos registros que Heloísa conseguiu castrar-se a si mesma, proibiu-se de

todo prazer para obedecê-lo; abandona os prazeres que torna as mulheres frágeis e perigosas.

Dir-se-ia que se vê agora em Heloísa uma alegoria da alma pecadora resgatada pela graça

quando aceita enfim, humilhar-se. Ao renunciar às volúpias e às concupiscências da carne,

Heloísa se transforma em modelo exemplar e de certa forma refrigério e consolação para

todas as mulheres nobres que sob a imposição de seus maridos são enclausuradas num

convento no fim de seus dias, mesmo lamentando a orgia e os prazeres que já haviam

desfrutado um dia no leito do cônjuge. Em O Drama de Heloísa-Abelardo, a poesia do amor

cortês ou amor sem retorno se fez carne, de certa maneira, em Abelardo. Ou seja: no seu

caso, a estória se fez história69.

67 DUBY, Georges. Idem, p. 75. 68 Ibidem, p. 80. 69 Idem, p. 70.

63

Quanto a Isolda, além de Denis de Rougemont, muitos outros estudiosos e

pesquisadores da vertente literária estiveram em conformidade e todos chegaram a uma

conclusão em comum: a região européia na Idade Média, mais especificamente, do século

XII descobriu o amor tanto voltado para a materialidade (profano), quanto para a

espiritualidade (sacro). São contingências:

(...) mínimos acontecimentos, incidentes, entraves, bagatelas, mesquinharias, rugas da existência; todo miolo fatual de um acontecimento que vem dificultar a ambição de felicidade do sujeito apaixonado, como se o acaso intrigasse contra ele70.

Enquanto ocorre na Europa uma grande transformação social em todos os setores

e em todas as matérias e assuntos, prescrevia-se por sua vez, o desenvolvimento progressivo e

imediato nas práticas e hábitos geralmente observados. Por conseguinte, nas camadas sociais

superiores, surgiu uma questão que requeria solução e que estava intimamente ligada com a

figura da mulher e, em especial, ao problema da conjunção amorosa. Sabe-se que ao passo

que a nobreza perdia sua brutalidade, concomitantemente, havia a instauração de uma nova

ordem. Diante destes acontecimentos que emergiram da organização estrutural da sociedade

medieval européia do século XII, começou-se a questionar: qual seria o espaço destinado ao

amor físico, mais propriamente ao amor carnal? De que maneira se deu essa nova ordem, e os

meios para se obterem os fins? Essa nova ordem não fosse perturbada, qual seria o lugar

reservado à manifestação do desejo e à sua realização permissível? Dados expõem adversas e

algumas respostas entre, as quais, pode-se pensar que isso se dava porque cavaleiros

medievais voltavam embrutecidos da guerra (v. microfísica do poder: Foucault), e

discorrendo antecipadamente sobre a problemática moralização, a literatura cortês exercia a

função pedagógica de acalmar seus ânimos no seio aristocrático.

No noroeste francês esse problema emergiu prematuramente movido por duas

razões: a primeira, ligava-se à problemática do fracionamento patrimonial por ocasião do

casamento, como já foi exposto. Por conseguinte, os homens invejosos daqueles que

possuíam mulher pensavam também em ter sua própria esposa ou senão tomá-la à força.

Homens envelheciam sempre atentos a realizar seus desejos e capturar sua presa. Neste

sentido, eis a visão de Jacques le Goff, historiador da época medieval:

70 ROUGEMONT, Denis de. Fragmentos de Um Discurso Amoroso, p. 92.

64

(...) o objetivo do casamento parece na verdade comandar todo o comportamento do jovem, leva-o a pôr-se em evidência no combate, a desfilar nas reuniões desportivas. Casamento tanto mais difícil quanto os interditos lançados pela Igreja o tornavam muitas vezes quase impossível. 71

A situação era preocupante porque com o fortalecimento das estruturas políticas,

a Corte reunia em torno dela pretendentes que se misturavam e se infiltravam no ambiente,

real entre as damas e donzelas. Isto constituía um fator de desordem que deveria ser evitado

de todas as formas e com os mecanismos necessários: eis a segunda razão.

Na segunda metade do século XII, a Igreja empenhada no processo de

cristianização da classe dominante, condenava o incesto e a poligamia; desta feita, tentava

fazer com que a nobreza aderisse à sua própria concepção acerca do casamento. Impunha ao

clero a total continência e procurava, por extensão, entre os leigos a contenção da prática do

sexo: inevitável, pois a sobrevivência da espécie depende disso – no quadro de uma

conjugalidade fechada e sacralizada. Essa situação era extremamente contraditória visto que o

casamento era negado à maioria dos homens. Segundo Duby,

(...) essa contradição alimentava no espírito de todos os machos, fossem eles guerreiros ou padres, a convicção de que a mulher é perigosa, que é o fermento da desordem e que era urgente conjurar esse perigo elaborando um código de comportamento que regulasse da melhor maneira as relações entre o masculino e o feminino.72

Nesse contexto, a literatura de cortesia em romanço, obra de entretenimento da

Corte, funcionava como um mecanismo pedagógico de fundo moralizador. Estes escritos

revelam o espírito profano dos homens da Idade Média, são espelhos das atividades de seus

ouvintes. Assim como o pensamento religioso tinha por objetivo o bem, os heróis dos

romances embora ultra-idealizados, não deveriam ser muito dessemelhantes dos homens e

deveriam ser imitáveis. Daí o caráter moralizador: os leitores enamorados por esse tipo de

literatura deveriam, por catarse e por assimilação interior, passar por essa “lavagem cerebral”

da classe dominante, imitar as maneiras de pensar, de sentir e de agir das personagens das

narrativas romanescas. Quanto a esse aspecto moralizador, Jacques le Goff (1983) afirma:

G. Duby foi quem fez a aproximação que se impõe com a literatura cortês: a presença de um tal grupo no âmago da sociedade aristocrática mantém

71GOFF, Jacques le. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Tradução de Antonio José Pinto Ribeiro. Rio de Janeiro: Edições 70, 1983, p. 133. 72 DUBY, Georges. Idem, p. 84.

65

certas atitudes mentais, certas representações da psicologia colectiva, certos mitos, de que se encontram ao mesmo tempo o reflexo e os modelos nas obras literárias escritas no século XII pela aristocracia, e nas figuras exemplares que elas propunham, as quais sustentaram, prolongaram, estilizaram as reações afectivas e intelectuais espontâneas73.

Nas oficinas de criação literária os mecenas tinham a seu serviço os poetas cuja

função era, nos seus poemas, moralizar, alegrar, educar, enfim, desenvolver o ponto de vista

da classe dominante sobre temas comuns a todos: conflitos, a cobiça masculina e seu objeto –

a mulher, em especial, a mulher bem-nascida, isto é, a dama. O tema era tratado com a arte

do fino amor ou amor-cortês. O material impregnado nas narrativas era assimilado de autores

clássicos celebrando à maneira deles as aventuras amorosas, seja na organização do “material

da Bretanha”, um conjunto de lendas oriundas das tradições célticas. Bataille, discorrendo

sobre esse tema,menciona:

A Idade Média, nas produções literárias, foi uma época povoada de fadas, dragões e outros seres maravilhosos que submergiam da imaginação popular. É uma história situada entre o material e o simbólico, a única que nos pode oferecer autenticamente aquilo que existe efetivamente de nossos ascendentes medievalescos74.

Essas narrativas falavam de louco amor, o desejo de união entre dois corpos, tudo

avesso a qualquer controle. As mortes eram explicáveis em decorrência de sortilégios, da

atuação de uma poção mágica:

No centro figuram o filtro , as misturas, as infusões, o ‘vinho com ervas’, preparados segundo receitas cujo segredo as mulheres transmitem uma às outras. Se por acaso se vier a beber dessa poção, fica-se prisioneiro dela. Contra sua força nada é capaz enquanto suas virtudes não tiverem se evaporado. Mostrar os efeitos nefastos de um desejo nascido dessa maneira, e portanto ingovernável, destinava-se a alimentar, na sociedade cortês, salutares reflexões sobre a ordem e a desordem, e em especial sobre essa perturbação cuja causa são as turbulências da sexualidade.75

Pensando dessa forma o filtro representa uma tentativa fantasiosa de se fazer

refletir acerca de certos hábitos pertinentes à vida social da sociedade cortês. É aqui que entra

a lenda de Tristão, fruto da cristalização de elementos esparsos da lenda. Um herói

73 GOFF, J. le. O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval, p. 133. 74 BATAILLE, Georges. O Erotismo, O proibido e Transgressão. Tradução de João Bernard da Costa.2ª Edição. Portugal: Moraes Editora, 1980, p. 30 75 DUBY, Georges. Heloisa, Isolda e outras Damas do Século Doze: São Paulo:Companhia das Letras, 1995, pp. 86-87.

66

masculino, um homem. Feita por homens, a literatura cavaleiresca era destinada aos homens.

Seus homens são “masculinos”, às mulheres cabiam-lhes o papel de figurantes secundárias.

Como bem assinala Auerbach:

A ética feudal, a representação ideal do cavaleiro perfeito, conseguiu para si, portanto, um efeito muito grande e de vida muito longa. As idéias coerentes com ela, as idéias de valentia, honra, fidelidade, respeito mútuo, nobres costumes e dos serviços devidos às damas encantaram, ainda, homens de culturas muito diferentes76.

As aventuras e peripécias de Tristão têm início com a lembrança à história do

homem Rivalino (pai de Tristão), e da mulher Brancaflor, que se unem matrimonialmente

para gerar o herói. Daí em diante, narra-se o nascimento do herói até sua morte. O herói luta

duas vezes contra adversários monstruosos e sai vencedor nas duas vezes, é ferido e do

mesmo jeito é por duas vezes curado por Isolda - uma mulher. Após tomar o “lovedrink” fica

ardente de paixão por Isolda. O conteúdo das aventuras romanescas revela na sua

interioridade os acontecimentos perturbadores entre um homem e uma mulher possuídos por

um louco amor, capazes de emocionar qualquer ouvinte ávido pelos incidentes e

desdobramento da aventura amorosa do herói e heroína.

Isolda é a personagem feminina que ocupa maior parte do tempo na intriga. A

personagem é descrita com discernimento, sutileza e acariciada pelas palavras que o autor

escolheu. A heroína subverteu toda uma estrutura. Diz Duby:

Isolda deve essa posição eminente aos efeitos do filtro. Também ela bebeu dessa poção. Partilhou-a com Tristão, o que não apenas a precipitou nos braços do herói, mas – e eis o que torna a aventura desconcertante – colocou ambos diante do desejo, numa igualdade que negava então todo um sistema de valores que subordinava obstinadamente o feminino e o masculino77.

Isolda apresenta uma imagem exemplar de feminilidade, uma dama, uma rainha,

na flor da juventude, senta-se no trono ao lado de seu senhor, lugar central da Corte

principesca para onde convergem todos os olhares, devoções e todas as cobiças. A história

não faz nenhuma alusão à possível fecundidade de Isolda, estava excluído que se falasse

disso. Como bem assinala Duby:

76 AUERBACH, Erich. Mimesis, a representação da realidade na literatura ocidental. In: A saída do cavaleiro cortês. São Paulo: Perspectiva, 1971, p.117. 77 DUBY, Georges. Idem, p. 90.

67

A estrutura da intriga o proibia assim como a opinião comum, que desejava ardentemente que a mulher adúltera fosse estéril tanto para sua punição como para evitar a bastardia, cujo temor obsessivo habitava então o espírito de todos os chefes de família78.

Isolda, como toda a estrutura narrativa revela, foi uma mulher que cometeu a

infidelidade conjugal enquanto convivia com o rei Marc. O seu senhor não era o único a ter

posse do seu corpo e este fato por si só representava, aos olhos daqueles a quem ela não fora

dada como esposa, uma representação ou imagem capaz de seduzi-los. De tal forma que ela,

se encaixava como parceira perfeita no jogo do amor, transformada em caça, e, como em todo

jogo, os adversários estavam dispostos a ganhar dentro do jogo da cortesia amorosa.

Isolda usou todos os ardis possíveis e imagináveis para manter acesa a chama de

sua paixão inflamada, mesmo temendo que o marido ciumento descobrisse tudo sobre seu

gosto, o seu prazer prevalece. Moralidade e imoralidade se mesclam de modo que a heroína

opta por esse segundo ingrediente, pois os empecilhos externos dão lugar à realização dos

intentos internos, do coração, da paixão desenfreada que sente pelo amante fervoroso e

jovem. Cabe aqui duas perguntas: como se sabe, costumava-se casar as jovens com pessoas

bem mais velhas (a história do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda comprova

isso) na estrutura social da sociedade medieval; Béroul e Thomas não empregaram a intriga

do filtro como um mecanismo capaz de subverter e pôr a terra essa condição social a que

estavam submetidas as mulheres? Não pode ter sido uma forma encontrada para defender a

mulher diante das práticas ilícitas, uma vez que ela em estado de transe não podia responder

por suas atitudes de modo a se desvencilhar dessas amarras que a prendia, muitas vezes, a um

marido indesejado?

Escolham a resposta. De nossa parte o que podemos afirmar é que Isolda usava

de astúcia, ridicularizava o marido que se preocupava sobremaneira em vigiar a esposa.

Assim, a heroína da narrativa episódica representa um símbolo de independência, ainda que

literária, em um momento histórico em que toda a perversidade feminina era duramente

combatida; neste ponto ela se iguala à Heloísa.

Na visão de Duby, os ouvintes diante da narrativa cômica riam dos ardis

empregados pelos amantes para enganar o rei Marc, com certeza, não aplaudiam, não

tomavam partido de Isolda (era como se ela não fosse considerada uma heroína por cometer a

78 Ibidem, p. 93.

68

infidelidade), ao contrário aplaudiam os momentos imprevisíveis em que os amantes eram

flagrados em delito a fim de que eles fossem punidos pelos seus atos.

Tristão pensa como os homens casados, que a mulher é o símbolo da fragilidade,

do pecado original, tem uma irreprimível tendência a entregar-se ao prazer. Acredita que ela

arde de prazer e de desejo ao lado de seu tio Marc. Decide ter uma esposa para acalmar sua

inquietação interior, mas não consegue, pois sente o desejo lúbrico de possuir a dama que no

leito nupcial espera febrilmente a fim de ser possuída pelo amante. Com Isolda das Brancas

Mãos, sua esposa, não é feliz, uma vez que ela foi a responsável pela sua morte.

Enfim, no tocante aos apaixonados, aos dominados pelo desejo, desde os mais

voluptuosos aos mais perversos, Duby afirma:

Thomas retomou a lenda, ele procurou conciliar seu ensinamento com aquele dispensado por um outro gênero literário, a canção cortês, e harmonizar o amor selvagem, contraído como uma febre malsã pela absorção do “vinho com ervas”, com aquele amor que os trovadores celebravam. O filtro, para ele, era agora um símbolo e o desejo deixava de simples pulsão física. Thomas proclamava que a mulher não é apenas esse corpo que se quer ardentemente acariciar às escondidas, e que possuir um corpo não significa nada se não se possui também o coração. 79

A ópera de Wagner, o Romance de Tristão, focaliza uma outra acepção sobre a

narrativa tristanesca. Enquanto na obra original, o poeta narrava o desejo de uma ligação

amorosa inexorável e que o prendia à amante, tem-se na ópera a luz projetada sobre os feitos

militares do cavaleiro perfeito. Diante disso pode-se perguntar: o público não vibra mais com

essa segunda focalização da peripécia tristanesca?

3-Histórico medieval O século XII é considerado o século de ouro da literatura medieval, foi uma

época cuja floração lírica é indiscutível como fonte de todo o lirismo europeu dos séculos

posteriores. O Romantismo, no Brasil oitocentista, faz revivescer este mundo encantado, seja

na poesia (Iracema, um dos mais belos romances de nossa literatura brasileira, tem o ritmo e

a força de imagens próprios da poesia), seja na prosa. Joseph Bédier nos faz lembrar que foi

por esta época que surgiu a primeira canção de gesta, a primeira poesia lírica, a primeira

ogiva, o primeiro vitral – assunto tão bem abordado em O Drama Heloísa-Abelardo pelo seu

79 DUBY, Georges. As Damas do Século Doze, p. 96.

69

comentador: o padre Orlando Vilela –; encontramos ainda nesse período o primeiro drama

litúrgico e o primeiro torneio cavaleiresco, todas criações francesas. Nos dois hemisférios

franceses surgiram duas literaturas: no norte, a épica dos trouvères; no sul, a lírica dos

troubadours ambas escritas em ‘romanço’ como veículo da expressão literária do verbo épico

e lírico.

Neste universo literário duas situações distintas se configuram. Na região

setentrional, o momento literário é épico, guerreiro, faz da luta seu tema principal; na parte

meridional, a produção é de uma literatura sentimental, cortês e refinada, cuja temática

metamorfoseia as mulheres no santuário de sua inspiração. No sul, diferentemente, do norte,

há o individualismo com seus caracteres jurídicos pessoais e reais. O serviço amoroso, a

vassalagem amorosa na poesia do sul da França se era um empréstimo da estrutura feudal não

correspondia a uma realidade na sua real configuração. Disto, pode-se chegar a uma

evidência de que tal civilidade cavaleiresca era exclusiva da vida palaciana.

Deste comportamento, a poesia lírica ocitânica descobriu o Amor,

espiritualizando-o e fazendo dele o fulcro de sua inspiração. O grande tema da inspiração

lírica engendrada pelos artistas da palavra foi o amor cortês. Há assim o surgimento de uma

literatura erótica. Na sua interioridade, o amor não é um sentimento dominável cujos desejos

decretos são irrevogáveis. No amor cortês o amante se vê dividido entre o sofrimento advindo

da inacessibilidade de sua dama e a doce felicidade que o martírio passional lhe propicia. É a

cegueira irracional da paixão, o absoluto do amor fatal, da rede intrínseca dos graus de

vassalagem e da carga de erotismo de que o estrito convencionalismo do amor cortês é

permeado. Tristão e Isolda, e Iracema articulam-se deste ideal cavaleiresco, uma vez que se

percebe sob forma subjacente o amor carnal. A vassalagem amorosa em Iracema é uma

reminiscência da vida social feudal. Nas duas obras, as heroínas (Isolda e Iracema) buscam a

intensidade da paixão e não seu apaziguamento feliz, a vivacidade de suas paixões as afastam

das coisas criadas, sendo assim alcançam a morte voluntária na “endura”.

Por fim, na Idade Média, grande parte da produção literária era composta para ser

oralmente apresentada, uma vez que poucos sabiam ler ou escrever. O ‘fin amours’, como se

sabe, era uma forma de entretenimento da Corte e sua forma de expressão era multifacetária:

havia a representação circense, executada por jograis e trovadores que apresentavam sua arte

poética aos nobres. No Romantismo brasileiro, da mesma forma, a produção literária

oitocentista, amiúde, também é lida oralmente como fonte de divertimento para a burguesia

70

que emergia no seio da sociedade. O próprio Alencar em sua autobiografia corrobora esta

tese:

Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia, tão interessantes que eu era obrigado à repetição; compensavam esses excessos, as pausas, para dar lugar às expansões do auditório, o qual desfazia-se em recriminações contra algum mau personagem, ou acompanhava de seus votos e simpatias o herói perseguido. Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído do livro, lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa biblioteca. As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos momentos depois não puderam conter s soluços que rompiam ao seio. Com a voz afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas, eu também, cerrando ao peito o livro aberto, disparei em prantos e respondia com palavras de consolo às lamentações de minha mãe e suas amigas80.

80 ALENCAR, José de. Como e Porque sou Romancista. Adaptação Ortográfica de arquivo Pereira. São Paulo: Fontes, 1990, pp. 27-28.

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Segundo Capítulo

1– Tristão e Isolda: vista geral do problema

Misterioso amor – é o caso de pensar – quese conforma com as leis que o condenam, a fim de melhor se conservar! De onde pode vir essa preferência pelo que entrava a paixão, pelo que impede a “felicidade”dos amantes, os separa e os martiriza?

(Denis de Rougemont)

Como o mito de Tristão e Isolda81 possui inúmeras versões, diferentemente

datadas, e requer uma enorme erudição – que não temos, e porque teríamos de remontar a

uma área da História ensombrada por denso mistério e incerteza de contornos –, optamos por

trabalhar com a versão: Romance Tristão e Isolda - obra reproduzida por Joseph Bédier em

forma de prosa. A obra ora apresentada é dividida em dezenove capítulos a saber:

CAPÍTULOS: I – A Infância de Tristão. Surge no primeiro capítulo a figura do rei Marc, um dos protagonistas do episódio romanesco. Relata-se aqui a origem de Tristão, sua orfandade, os cuidados de seu pai adotivo Governal que lhe ensina as artes da guerra, seu seqüestro para terras distantes, sua apresentação ao rei Marc. II – O Morholt da Irlanda. Mostra o momento em que Tristão salva os cornualhense das garras do gigante Morholt. É gravemente ferido e salvo pelas ervas preparada por uma bela jovem. Dá-se nesse capítulo o primeiro encontro entre aqueles que mais tarde viveriam e morreriam um pelo outro.

81 CALVET, J. Manuel illustré d’histoire de la littérature française “Principaux romans bretóns. Les romans bretóns se présentant sous quatre formes principales: Tristan et Yseult qui est une oeuvre antérieure par ses éléments à la formation définitive de la legenda arthurienne, mais finira par s’y rattacher; les nouvelles de Marie de France, les romans de Chrétien de Troyes, les rédations en prose de Robert de Boron et de ses successeurs. (...) La legenda de Tristan et Yseult a été racontée par deux poètes anglo-normands, Thomas vers 1170 et Béroul vers 1190. Il n’en reste que de larges fragments (M. Joseph Bédier a publié une adaptation moderne ou il reúnit très adroitement ces fragments: Tristan et Yseult, 1990). p. 31.

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III – Em Busca da Bela dos Cabelos de Ouro. Aqui o rei é pressionado por seus súditos, os barões, a se casar. Dá-se a busca daquela que possui os fios de cabelo de ouro. Mostra-se uma aventura inacreditável de Tristão: sua luta contra o dragão de falaremos mais adiante. Tristão cumpre a promessa e traz consigo Isolda ao reino de seu Marc.. IV – O Filtro. O tema principal desse capítulo centraliza-se no Filtro preparado pela mãe de Isolda, uma grande feiticeira a fim de unir o rei e Isolda através de meios mágicos. O ardil não deu certo conforme se verá no seu devido tempo. V – Brangien Entregue aos Servos. Brangien, a serva de Isolda, sabe dos amores do par romântico. Tenta-se matar Brangien para que o segredo não fosse descoberto por todos. A serviçal engana seus inquisidores e escapa da morte. Isolda, arrepende de ter dado ordem para assassiná-la, ambas pedem perdão uma à outra. VI –O Grande Pinheiro. Narra-se aqui uma das artimanhas preparadas pelos inimigos de Tristão e Isolda, os barões do rei Marc. Estes enviam um vidente ao rei que os amantes se encontrariam abaixo de um pinheiro. O casal é surpreendido pelo rei mas, Tristão ardilosamente consegue enganar o tio: Tristão percebendo que o rei os ouvia de um dos galhos do grande pinheiro, forja um pedido de clemência a Isolda: pede-lhe que o leve até a Corte do rei para que ele possa provar sua inocência. O ardil dá certo. VII O Anão Frocin. Novas tentativas de denúncia de adultério contra Tristão. O anão Frocin mostra ao rei uma forma de revelar e desvendar o mistério. Finalmente, o rei toma conhecimento da traição do sobrinho. Tristão e Isolda são condenados à morte na fogueira. VIII – O Salto da Capela. Tristão é conduzido pelos algozes à morte na fogueira. No entanto, Tristão os engana e foge, o rei ao tomar ciência do fato resolve apressar a sentença de Isolda: no momento da execução um leproso convence o rei de que a morte seria um castigo simples àquela que o traíra: ela deveria ser entregue a uma horda de leprosos. Tristão os derrota, salva Isolda e juntos fogem para uma mata. IX – A Floresta de Morois. O par romântico passa a viver na floresta, a força do amor sobrepondo-se a tudo. Tristão é admoestado pelo sire Ogrin a retratar-se de seu ato. Nega-se a aceitar a condição de pecador alegando não ter domínio sobre seus atos como ficará demonstrado mais à frente quando trato do episódio do Filtro. Em tempo: o rei os surpreende novamente no meio da floresta, quando ambos dormiam separados por uma espada: o monarca subentende tal atitude como um ato de respeito e para mostrar aos amantes que ali esteve, troca sua espada pela de Tristão e troca também o anel que Isolda usava. Ao acordar o casal toma conhecimento de que o rei estivera ali e teve compaixão e benevolência deles, não os dizimando. X – O Eremita Ogrin. Dá-se nesse capítulo o momento em que o par decide separar-se fisicamente. Tristão pede ao eremita que escreva uma carta ao rei pedindo para perdoá-lo e aceitar Isolda de regresso.

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XI – O Vau Arriscado.O rei aceita o pedido de clemência do sobrinho e pede em carta que Tristão traga Isolda. Tristão parte para o castelo do rei, mas antes de tudo, entre eles é criado um pacto. Este é um dos momentos de maior efervescência amorosa entre os dois; a heroína oferece a Tristão seu anel e fica estabelecido que quando ele quisesse tornar a vê-la deveria enviar junto com o anel o seu pedido. XII - O julgamento pelo Ferro em Brasa. Isolda retorna às terras de Marc. Reiniciam-se novas desavenças. Dá-se o julgamento pelo ferro em brasa. Isolda deveria segurar sem macular sua mão um ferro em brasa para provar sua inocência. Os barões não contavam que a inteligência de Isolda trabalhava a seu favor: antes de sair da nau, deixa-se cair e é amparada por Tristão que está disfarçado de mendigo. No momento do juramento, Isolda afirma publicamente que só fora tocada, apenas, por dois homens em toda a sua vida: seu esposo e o pobre homem que a segurara, anulando, assim, qualquer possibilidade de ser incriminada. XIII – A Voz do Rouxinol. Permanece as investidas de Tristão durante as noites. É o átimo da partida de Tristão. São arquitetados mais planos para eliminar o par romântico. Isolda convence-o a partir e assim acontece. XIV – O Guizo Maravilhoso. Tristão deixa sua amada e parte às terras do duque Gilain. Este possuía um cão mágico que consolava Tristão em seus momentos de agonia. Para ganhá-lo de presente deverá vencer o gigante Urgan que atormenta as terras do rei. Vencedor da batalha maravilhosa, ganha o cão o envia a sua amante para que ele a aliviasse de sua separação. XV – Isolda das Brancas Mãos. Em mais uma de suas aventuras Tristão recebe o reconhecimento, é exaltado por ter mostrado bravura e heroísmo. Recebe a filha do duque para desposá-la. Tristão diz à sua esposa, Isolda das Brancas Mãos, que durante um ano não poderia tocar ou beijar outra mulher: era um ardil para manter sua fidelidade para com Isolda, a Loura. XVI – Kardelin O cunhado de Tristão Kardelin descobre que sua irmã é ainda moça e considera esse fato uma ofensa, mas conversando com Tristão o compreende e ajuda Tristão a não mais suportar a dor ocasionada pela ausência de sua verdadeira amada. XVII – Dinas de Lidan. Dá-se nesse capítulo a reaproximação dos heróis. Os três, Tristão Governal e Kaherlin partem rumo às Cornualhas. Tristão pede a Dinas de Lidan para levar a mensagem à rainha e confia-lhe o anel de jaspe verde. XVIII – Tristão Louco. Momento de desfecho da história. Tristão trava uma de suas últimas batalhas. Ferido, decide rever Isolda, a Loura. É a cena da vela branca e preta da qual retornarei a falar mais a frente. XIX - A Morte. Cena final de ciúme (despeito), amor e morte. Da mesma forma em que foram criados, o par romântico desaparece para dar origem àquilo que conhecemos como o grande mito da literatura ocidental. O rei Marc ao saber da morte dos amantes os enterra um ao lado do outro como

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forma de respeito ao inefável amor entre os jovens e, por três vezes82, sobre a sepultura de Tristão nasceu um espinheiro e seus ramos encontravam a sepultura de Isolda, durante três vezes os ramos foram cortados e por três vezes tornaram a nascer impulsionados pela força de um verdadeiro amor.

O Romance Tristão e Isolda é uma canção de gesta e está agrupada em um dos

três ciclos da literatura ocidental da Idade Média européia: 1) Ciclo Francês – obra principal

Chanson de Roland; 2) Ciclo Bretão, ou do rei Arthur – Romance da Távola Redonda e seus

cavaleiros como protagonistas, Lendas de Tristão e Isolda e 3) Ciclo Antigo – Romance de

Alexandre em torno de Carlos Magno e Os Doze Pares de França. Embora a matéria

cavaleiresca seja dividida dessa forma Moisés, diz que:

(...) em se tratando da Literatura Portuguesa, essa divisão não tem cabimento, pois só o ciclo arturiano deixou marcas vivas de sua passagem em Portugal e que os demais ciclos foram conhecidos e exerceram influência, mas apenas na poesia do tempo, visto que não se conhece em vernáculo nenhuma novela de tema carolíngio ou clássico.83

É uma narrativa de ação onde existe a pluralidade dramática, isto é, a ação em si

vale mais que a arquetipificação da personagem: os feitos heróicos de caráter extremamente

inverossímil e a presentificação do elemento maravilhoso84 parecem superar qualquer coisa,

cada mudança ou passagem repentina de um estado a outro, cada célula dramática concorre

para a organização plena da prosa poética. Pode-se dizer que é uma obra mais de

entretenimento em que prevalece a inverosimilhança: proliferam na narrativa gigantes,

dragões, poções mágicas, curas milagrosas, feitos impossíveis. Porém, são encontrados

elementos do romance de personagem na caracterização de Tristão como o típico cavaleiro da

82FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica Uma estrutura trina repete-se em muitos casos de estória romanesca – na freqüência, por exemplo, com que o herói de bom êxito é um terceiro filho, ou o terceiro a empreender a busca, ou tem êxito na terceira tentativa. Mostra-se mais diretamente no ritmo de três dias de morte, desaparecimento e ressurreição que se encontra no mito de Átis e de outros deuses que morrem e foi incorporado em nossa Páscoa. São Paulo: Cultrix, p. 186. 83 MOISÉS, Massaud. A criação literária. 13ª Ed. São Paulo: Cultrix, 1987, p. 27. 84 GOFF, Jacques le. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. O maravilhoso está profundamente ligado a esta procura da identidade individual e coletiva do cavaleiro idealizado. O fato de as provas de o cavaleiro passarem por toda uma série de maravilhas – maravilhas que ajudam (como certos objetos mágicos) ou maravilhas que é preciso combater (como os monstros) – levou Erick Kohler a escrever que a própria aventura, representada pela valentia, pela procura da identidade por parte do cavaleiro da corte, é em última análise ela própria uma maravilha. p. 21.

75

época, e Isolda como o estereótipo da beleza feminina, contudo as características de narrativa

de ação são dominantes.

A narrativa é considerada uma novela. As novelas se compõem de pequenos

núcleos dramáticos de começo, meio e fim, e cada uma de suas unidades não são autônomas,

pois sua realização se dá pela densidade ou corporificação com o conjunto e se assim não

fosse não haveria razão de ser. Além da pluralidade dramática tem-se também a

sucessividade, células dramáticas, que se dispõem linearmente mas não formam

compartimentos estanques. No tocante às novelas de cavalaria, Moisés propõe :

Assim, nas novelas de cavalaria, observa-se o entrelaçamento sistemático e complexo de ‘aventuras’; os cavaleiros, por morte ou temporário afastamento, cedem lugar a outros, que vão protagonizar as suas ‘aventuras’, os quais por sua vez, são substituídos por terceiros, e assim por diante. A novela vai-se formando, portanto, da agregação de unidades permanentemente abertas.85

Suas personagens só poderiam ser planas: o que nós esperamos das aventuras e

peripécias de Tristão durante suas investidas contra gigantes cobradores de donzelas virgens e

os dragões famigerados? Que ele os vença! É claro! Temos em nossa estrutura imaginária a

predisposição para torcer pelo herói e não pelo vilão ou vice-versa. Isso prova-nos que o

personagem deve ser construído a partir de uma única idéia ou qualidade. Segundo Moisés

os heróis “apresentam duas dimensões (altura, largura), ou seja, carecem de profundidade:

definidas em poucas palavras, a sua personalidade não reserva surpresa, e a ação que

praticam apenas confirma a impressão de personagens estáticas, infensas a evolução”86. É

dessa forma que podemos visualizar um Tristão com uma personalidade bem definida em

todo o plot da obra: sempre fiel, honesto, bravo, sincero, guerreiro, comedido, enfim, o

estereótipo do herói. É o modelo de cavaleiro cortês e no contexto de uma sociedade feudal

representa o cumprimento dos mais altos ideais cavaleirescos.

O poema é narrado em terceira pessoa por um narrador-observador que, no

processo de reconstrução do texto original, descreve todos os recantos físicos e psíquicos do

herói, é um transmissor dos fatos e acontecimentos no transcorrer da ação, do movimento ou

do tempo. O cenário espacial em que ocorrem as aventuras do herói gira em torno dos

castelos, dos rios, dos bosques e das florestas, ora caçando animais, ora prestando socorro a

85 MOISÉS, Massaud. Idem, p. 363. 86 Ibidem, p. 398.

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uma donzela ameaçada por algum tipo de infortúnio, como se pode depreender do diálogo a

seguir entre o herói e uma jovem:

- Dizei-me, senhora, de onde vem essa voz que ouvi? Não mo oculteis. - Certamente, sire, vo-lo direi sem mentira. Vem de um bicho feroz e o mais horrendo que possa existir no mundo. A cada dia, desce de sua caverna e detém-se numa das portas da cidade. Ninguém pode sair de lá, sem entregar ao dragão uma jovem donzela; e, logo que a tem entre as garras ele a devora em menos tempo do que leva para rezar um pai-nosso. - Senhora – disse Tristão – , não zombeis de mim, mas dizei-me se seria possível a um homem nascido de mãe matá-lo em combate. - Ao certo, belo e doce sire, não sei; o que garantem é que vinte cavaleiros já tentaram a sorte; pois o rei da Irlanda proclamou por sua voz de arauto que daria sua filha Isolda, a loura, a quem matasse o monstro, mas o monstro devorou a todos.87

Nesta passagem podemos visualizar os três estádios do espelho de que fala

Northrop Frye. Como se sabe, o primeiro estádio é representado pelo agón ou conflito inicial:

Tristão toma conhecimento, por meio da donzela desesperada, de que o dragão estava

assolando o vilarejo. Este é o estádio da jornada perigosa e das aventuras menores. É a

preparação ideológica para o segundo estádio, pathos: a luta crucial entre o herói e seu

adversário; é o momento em que um dos dois deve morrer. No fragmento apresentado, o

herói vence o monstro cruel e, como prova da veracidade do ato cometido, corta a língua do

dragão para apresentá-la ao rei e obter o reconhecimento, isto é, a exaltação de herói. Em

outras palavras: a recognição de que o herói provou ser herói realmente.

O reconhecimento do herói é o prêmio recebido por ter derrotado o monstro:

recebe a mão da filha do rei em casamento pelo ato heróico, cumpre-se a promessa que fora

feita a todos os valentes cavaleiros que tentaram derrotar o dragão mas que não tiveram a

mesma felicidade ou sorte. Esse reconhecimento corresponde ao terceiro estádio

anagnórisis. Esse instante na narrativa está em conformidade com a teoria da estória

romanesca definida por Frye:

A forma básica da estória romanesca é o tema da morte do dragão, exemplificado pelas estórias de São Jorge e de Perseu. (...) Uma terra governada por um velho rei desamparado é desolada por um monstro do mar, ao qual uma pessoa jovem atrás de outra é oferecida para ser devorada, até que cai a filha rei: neste ponto o herói chega, mata o dragão, casa com a moça e sucede no reino. 88

87 FRYE, Northrop. O Romance de Tristão e Isolda.In: Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 20. 88 ___________. Idem., p. 187.

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A narrativa de Tristão e Isolda tem contornos próprios, mas se aproxima, pelo

seu conteúdo simbólico, à estrutura defendida por Frye. Tristão mata o dragão, ganha a mão

de Isolda em casamento, contudo irá oferecê-la para o seu tio; afinal de contas era esse seu

objetivo: buscar a bela dos cabelos dourados para o rei Marc. Agindo assim, demonstraria seu

juramento de lealdade perante o rei Marc. Porém, no desdobramento desse episódio, a

narrativa ganha novos rumos e Tristão passa a vivenciar uma problematização vertiginosa:

não conseguirá se desvencilhar dos grilhões amorosos que o unem à bela princesa Isolda, e

isto será a causa de sua perdição.

Partindo-se do pressuposto de que a estória romanesca é de base dialética, ou

argumentativa, em que todas as mudanças repentinas de situação se processam entre o

conflito central entre o herói e o inimigo, os valores do leitor, nesse contexto, estão

intimamente ligados ao herói. Dessa forma, o herói desempenha metaforicamente a mesma

função que desempenha o Messias Mítico Libertador, cujos poderes provêm de um mundo

superior (apocalíptico89), contra um inimigo de poderes demoníacos90, provenientes, por sua

vez, de um mundo inferior.

Do ponto de vista estrutural, pode-se notar que o tempo da narrativa é

predominantemente cronológico, uma vez que todos os acontecimentos episódicos têm a

estrutura tradicional de começo, meio e fim. É narrada a origem dos pais do protagonista, seu

nascimento, crescimento, a educação recebida, o reencontro com seu tio, suas várias

aventuras, o estado de enamoramento, sua função cavaleiresca e estado de submissão em

relação à dama eleita, bem como a conseqüência acarretada pela sua morte: a posterior morte

da heroína. Do ponto de vista literário, o enredo denota a totalidade das causas e dos efeitos

que se organizam no curso da narrativa e tudo gira em torno de única temática: o amor

idealizado, impossível de ser conquistado porque uma intriga não permite sua consumação; o

protagonista, porém, é capaz de todo e qualquer sacrifício na busca do objeto de seu desejo.

89 ___________. Imagens Apocalípticas. O mundo apocalíptico, o céu da religião, apresenta, em primeiro lugar, as categorias da realidade com as formas do desejo humano, tais como indicadas pelas formas que assume com o trabalho da civilização humana. p. 142 . 90 __________. Teoria do Sentido Arquetípico (2) Imagens Demoníacas. Oposta ao simbolismo apocalíptico é a representação do mundo que o desejo rejeita completamente: o mundo do pesadelo e do bode expiatório, da cativeiro e confusão; o mundo como é antes que a imaginação humana comece a trabalhar nele e antes que qualquer imagem do desejo humano como a cidade ou o jardim tenha sido solidamente estabelecido; o mundo, também, do trabalho pervertido ou desolado, de ruínas e catacumbas, instrumentos de tortura e monumentos de insensatez. E assim como as imagens apocalípticas da poesia associam estreitamente a um céu religioso, assim seu avesso dialético une-se intimamente a um inferno existencial, p. 148.

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É dessa forma que Tristão, mesmo ferido por uma espada envenenada, pede a seu

fiel amigo Kaderlin que vá buscar sua amada Isolda em seu castelo. Diz ao servo para içar na

nau, durante a viagem, uma vela branca, caso traga sua amada na embarcação e, caso

contrário, que erga uma vela preta. Note-se que o herói está prestes a morrer, dias e dias

aguarda o retorno da embarcação, até que um dia, muito doente, não pode esperar na praia

para ver a embarcação tão esperada. Neste ínterim, Isolda das Brancas Mãos, sua esposa,

enciumada e dominada pelo ódio, apressa-se para a traição que funcionará como desfecho da

narrativa: quando a nau finalmente retorna, ela diz a Tristão que a embarcação chegou.

Tristão estremece e lhe pergunta:

- Amiga bela, estais certa de que é a sua nau? Ora, dizei-me como é a vela? - Vi-a muito bem, abriram-na e levantaram muito alto, pois há pouco vento. Ficai sabendo que a vela é preta. Tristão virou-se para a parede e disse: - Não posso reter minha vida por mais tempo. Disse três vezes: “Isolda, amiga!” Na quarta vez, entregou sua alma a Deus. 91

Após esse acontecimento, já próximo ao epílogo e fechamento da trama,

Isolda (sua esposa), enlouquecida pelo fato desencadeado, “dava grandes gritos sobre o

cadáver”. A outra Isolda entrou em sua alcova e lhe disse:

- Senhora, levantai-vos e deixai-me que me aproxime. Tenho mais direito de chorar do que vós, acreditai-me. Amei-o mais. Ela voltou-se para o Oriente e orou a Deus. Em seguida, descobriu um pouco o corpo, estendeu-se junto dele, em todo o cumprimento do seu amigo, beijou-o na boca e no rosto e o abraçou apertado: corpo contra corpo, boca contra boca, assim ela entregou sua alma. Morreu junto dele, de dor por seu amigo.

Isolda, chegando tarde para salvar seu amor, entrega-lhe sua vida num abraço

final. Um milagre acompanha sua morte: duas árvores cresceram de seus túmulos e

91 DUBY, Georges. In: As Damas do Século Doze. Isolda das Brancas Mãos, frustrada, ciumenta, enganadora como são todas as mulheres, precipita o esposo inútil na morte por uma mentira. Tristão é morto por sua mulher, como naquele tempo muitos homens casados temiam sê-lo, por essa esposa inquieta, insatisfeita em toda noite vinha para sua cama. O sucesso da lenda deve-se ao fato de associar a crítica à apologia: mesmo exaltando em Isolda os encantos dos amores furtivos, denuncia o que há freqüentemente de nocivo nas esposas, e desse modo responde à ansiedade latente que atormentava não apenas os maridos mas todos os homens, confrontados com o mistério da sexualidade feminina. pp. 94-95.

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entrelaçaram seus galhos a fim de que não pudessem de forma alguma ser separados ou

divididos. A partir daqui já se antevê a sublimação e a deformidade que se coadunam dentro

do discurso da retórica trovadoresca e, especificamente, no discurso de Tristão e Isolda.

Infinitamente distante de acontecer no plano real: a morte dos heróis ocorre pela mais simples

e banal condição, a de que a ausência do outro passa a ser fator gerador dessa morte

voluntária que, via de regra, obedece plenamente às regras impostas pelo amor cortês.

A essa sublimação Lacan chama vacúolo, isto é, aquilo que o homem demanda,

em relação ao qual nada pode fazer senão demandar, é ser privado de alguma coisa real.

Nesse contexto, a pessoa amada é transformada numa função simbólica, e segundo Lacan “a

criação da poesia consiste em colocar, segundo o modo de sublimação próprio à arte, um

objeto que eu chamaria de enlouquecedor, um parceiro desumano”92. Pode-se dizer que

houve o triunfo da morte (o obstáculo desejado) sobre a vida. A esse respeito Rougemont, ao

analisar O Amor e o Ocidente, explicita:

Assim, essa preferência ao obstáculo desejado era a afirmação da morte, um passo em direção à Morte! Mas uma morte de amor, uma morte voluntária, depois de uma série de provas que purificarão Tristão; uma morte que seja uma transfiguração e não um acaso brutal. Portanto, trata-se sempre de conduzir a fatalidade exterior a uma fatalidade interior, livremente assumida pelos amantes: é a redenção de seu destino que eles alcançavam ao morrerem por amor; é uma vingança contra o filtro93.

Schopenhauer pensava ser a realidade essencial ou absoluta uma vontade cega e

irrequieta, isto é, “o querer viver”; daí concluindo ser a vida um mal, pois “o querer viver”

implica uma necessidade, e toda necessidade traz consigo a dor. Então, para o pensador, viver

é sinônimo de sofrimento: a morte é uma fuga sábia da angustiante realidade. Essas idéias de

Schopenhauer refletem com profundidade o estado de angústia do sujeito da enunciação, ou o

“eu-poemático”.

A morte fingida decorrente de uma situação amorosa está presente na voz do eu-

lírico que, insatisfeito por não viver a intensidade de seu estado amoroso e também por não

poder completar-se no outro, através de uma irremediável separação, cansa-se da busca de

sua totalidade perdida. Carotenuto, afirma:

92 Idem. P., 187. 93 Ibidem, p.. 34.

80

Uma pessoa atenta e sensível sempre consegue perceber se seu interlocutor se encontra em uma situação amorosa porque quem está imerso nessa dimensão tem uma tendência particular: a inclinação a considerar o objeto amado como fonte de felicidade infinita.94

O interlocutor encontra-se, amiúde, em estado de enamoramento, mas se não há

uma correspondência íntima com a pessoa amada resta-lhe apenas com a morte a viver

atormentado pelo desgosto provocado pela distância: a morte serve-lhe como alívio para suas

tensões interiores. Enfim, morre-se no imaginário. Flerta-se com a morte.

Ocorre, portanto, a morte poética, motivo derradeiro para conter o sofrimento da

alma do eu-lírico. Não se pode esquecer que esse tipo de experiência só tem significação e é

eficaz enquanto se insere sobre um profundo senso de solidão e desligamento do objeto

amado; se não se vivencia tal quadro de inquietação interior, o poeta lírico é incapaz de

estruturar essa modalidade de pensamento. Disso conclui-se que o individualismo do

sentimento poético torna o poeta lírico escravo do subjetivismo, instância psíquica do

imaginário do sujeito.

Nota-se no fragmento analisado a ideologia do “morrer de amor”. Antes de

adentrarmos na problemática do filtro, elemento do “agón” inicial, vejamos como Carotenuto,

define esse estado de espírito do eu-lírico (o morrer de amor) em termos psicanalíticos:

Falamos do “desejo de viver deixando de viver” e do “desejo de morrer sem deixar de viver e”, por conseguinte, encontramo-nos dentro de uma dicotomia básica, que na realidade exprime toda a nossa brutalidade: a violência da morte e a própria dureza da vida, que estão no fundo de nossa capacidade de “sentir” o erotismo. Na presença dessas vivências de morte e de vida que podem emergir na dimensão amorosa, o que se fende em primeiro lugar é a própria subjetividade, mas é justamente a diminuição dela que permite experimentar o sentido de uma união profunda.95

Conclusivamente, a morte romanesca é uma morte voluntária, trágica, carregada

de heroísmo e sacrifício, honra, patriotismo. É um fim em si mesmo, uma realização

suprema, um triunfo dos ideais nobres, das paixões incontroláveis e do amor puro dos heróis

e heroínas sobre as imperfeições e injustiças do mundo. A intensidade da vida interior dos

protagonistas, cuja sina é a incompreensão e o sofrimento nas mãos de homens comuns,

sublima-se pela morte, alcançando a pureza de espírito que lhes é negada na vida terrena. Só

94 CAROTENUTO, Aldo. Idem, p. 34. 95 Idem, p. 109.

81

assim podem realizar-se, tornando-se símbolos de virtude e bravura para gerações futuras,

mitos que passam a atuar na esfera do inconsciente coletivo dos homens. A tragédia, a

desgraça e o infortúnio são, portanto, elementos vitais do episódio romanesco e dos dramas

humanos envolvendo lutas de almas sensíveis em se adaptar à realidade mesquinha e

coibidora.

Em Tristão e Isolda, o amor dos protagonistas nutre-se de obstáculos a ele

impostos, isto é, as dificuldades encontradas para a realização deste amor impossível tornam-

se a própria razão de ser. Na ausência de obstáculos externos, Tristão e Isolda criam suas

próprias dificuldades, mantendo assim, acesa a chama de sua paixão nos sucessivos

reencontros e separações. No final da narrativa os amantes procuram a morte como única

forma de redenção e vingança contra a paixão avassaladora que acaba por se transformar em

uma espécie de autoflagelo, de penitência. O autor conduz a ação da narrativa episódica para

este final trágico, em que o par romântico realiza seus intentos amorosos na morte que,

inconscientemente, sempre desejaram e que representa para eles o sinal de igual na equação

da vida, espelho de Narciso.

Por outro lado Tristão e Isolda parece encenar um problema de gestão da

sociedade, a tarefa de bem governar. Visto sob esta perspectiva, o gesto de Tristão quando

desonra o rei Marc pode ser considerado uma descortesia. Note-se que Tristão entrega Isolda

ao rei Marc porque está ligado a ele pela fidelidade de cavaleiro. Assim o romance traz

consigo uma série de contradições enigmáticas, quando nos deparamos com esta primeira

questão – a descortesia – nossa desconfiança cresce e logo descobre outros enigmas. Neste

sentido, os valores morais e sociais feudais ficam relegados para um segundo plano em que

Rougemont explica da seguinte forma: “(...) Ora, em Tristão, os barões denunciam Isolda

perante o rei Marcos: por conseguinte deveriam ser considerados “fiéis” e leais. Se todavia

foram tratados pelo autor como traidores, isto se deve evidentemente a um outro código que

só pode ser o código da cavalaria do Midi. A decisão das cortes de amor de Gosconha é

bastante conhecida: traidor será aquele que revelar os segredos do amor cortês”96.

Desta forma, o enredo não se estrutura dentro de uma trama lógica, pois, em torno

de um amor individual ou anti-social, a lealdade e a fidelidade, assim como o amor e a traição

são apenas as determinações positivas ou negativas de uma concepção bem elaborada do

governo terrestre. Pensando assim, o termo ‘cortês’ deve ser lido no seu sentido etimológico,

96 ROUGEMONT, Denis de. O Amor e o Ocidente. In: Cavalaria contra o casamento, p. 29.

82

isto é, relativo à corte, ou ao tecido social em que se desdobra a obra literária e não aos

princípios básicos norteadores da convenção literária que lhe impõe uma significação

diferenciada conforme a crítica literária de Rougemont. Ainda de saída: o mundo da

provação cavaleiresca é um mundo de aventuras, um mundo criado e preparado par a

provação do cavaleiro. Quanto à auto-representação nas suas formas de vida e nas suas

concepções ideais e a intenção própria do romance cortês Auerbach afirma:

Uma tal idealização leva para muito longe da imitação do real. No romance cortês, cala-se acerca do funcional, do historicamente verdadeiro sobre a classe social e, ainda que destas obras possa ser obtida uma pletora de pormenores da história da cultura, referentes aos costumes e, em geral, às formas exteriores de vida, não é possível obter espécie alguma de visão em profundidade da realidade da época, nem no que se refere à classe dos cavaleiros.97

Neste sentido, a tese de Auerbach está em concordância com a de outros grandes

estudiosos do século da cortesia como Segismundo Spina, Georges Duby, Denis de

Rougemont, Jacques le Goff, Natália Correa, Marc Block e Georges Bataille, para não citar

outros que fomentam em seus estudos a mesma tese: a incompreensibilidade entre os fatos

reais e os fatos ficcionais que remontam a Idade Média européia. Acredita-se: os históricos

documentais do período chegaram até nós através dos tempos de forma explicitamente

distorcida e, certamente, não constituem uma realidade no sentido lato da palavra.

2 - Filtro: indutor do conflito amoroso

O sentido real da paixão é de tal modo assustador e inconfessável que os que a vivem não podem tomar consciência de seu objetivo, e os que pretendem descrevê-la em sua espantosa violência têm de recorrer à linguagem enganadora dos símbolos.

(Denis de Rougemont)

A definição de filtro é uma beberagem que se supunha despertar o amor ou

qualquer outra paixão na pessoa a que era propinada ou ministrada. Pela distinção sugere-se

que o filtro podia ter uma função benévola ou malévola. Nesta segunda classe, estamos a ver

as implicações e situações desagradáveis provocadas por sua atuação no sujeito lírico – 97 AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. In: A saída do cavaleiro cortês. São Paulo: Perspectiva, 1971, p.29

83

vítima de sua manifestação no organismo (psiquismo). Pela ação mágica do filtro – segundo

os relatos dos estudiosos desta vertente da inserção da narrativa do ‘maravilhoso’ na literatura

– dois indivíduos sem vínculos amorosos acabavam-se entrelaçando entre si de tal sorte que

ambos passavam a formar um único corpo, tornavam-se unos, a partir daí, passavam a

vivenciar a mesma casuística amorosa independentemente de obstáculos ou óbices exteriores

a eles impostos. A partir de sua ingestão no organismo já não havia mais a possibilidade de

recuarem, nem tampouco escapar das armadilhas por ele preparadas. As considerações gerais

são no sentido de se reconhecer que com a interpolação do filtro os valores morais passam

por um processo de transfiguração: o mal é vivenciado como se fosse um bem, o elemento

desagregador que provoca a queda de outrem é visto com novos olhos, como uma espécie de

cegueira.

Com a inversão dos valores morais transfiguram-se também, os valores

individuais. Cada um busca para si aquilo que melhor lhe convém desvinculando-se, por

conseguinte, por meio deste comportamento, das regras de boa conduta instituídas pelo meio

social. A máxima popular “antes só do que mal acompanhado” não cabe aqui. Antes seria o

contrário: é preferível estar mal acompanhado do que estar só. Porque uma parte faltante

precisa se completar na outra.

Todos os antecedentes comprovam que a inserção de um filtro muda

drasticamente o sentido ou curso natural das coisas. Podemos citar, por exemplo, o célebre

romance shakespearino Romeu e Julieta. Aqui, como se sabe, a heroína após tomar a bebida

que duraria um certo período, vê , quando acorda, o fruto de seus amores – Romeu – morto,

em seguida suicida-se; é o final trágico promovido pela bebida. O tempo nos poderia servir

de argumentação, pois o filtro tem um certo período de efeito, um período curto. Curta

também é a temporalidade vivida por aqueles submetidos a ele. As várias versões do

Romance Tristão e Isolda – precursor da tragédia de Shakespeare – também têm uma curta

duração e o período de felicidade do par romântico fora curto também.

O lugar nos dirá que a experiência do filtro é atemporal e que sua retórica

simbólica ultrapassou a barreira do tempo, chegando até o Romantismo brasileiro, mais

especificamente em Iracema, sob a forma de uma bebida de Tupã – ritualística consagrada

aos costumes guerreiros de nossos antepassados indígenas. Podemos recorrer a outros fatos

históricos ou lendários que se apliquem à matéria e chegaremos à conclusão de que a inserção

de uma bebida é sempre desencadeadora de uma experiência negativa que conduz ao erro e à

84

subversão. Vamos escolher aqui o que nos pode servir para o assunto dado: o gerador de um

conflito amoroso.

O capítulo “Filtro” é um dos mais importantes da narrativa de toda a obra, pois o

filtro amoroso representa o surgimento da problematização, do conflito iminente entre os

protagonistas, da peripécia e, por extensão, elemento causador de toda a história de amor, da

morte e da loucura dos amantes enamorados Tristão e Isolda. Antecipando um dos objetos de

nossa tese: Assim como em Tristão e Isolda, em Iracema é a bebida de Tupã a causa de toda

história de amor, da morte e loucura da heroína indianista. Eis um esboço do objeto vindo à

tona:

Isolda é conduzida às terras do rei Marc para lá ser desposada por ele. A mãe de Isolda, uma grande feiticeira, para garantir que o rei Marc amasse cegamente sua filha prepara uma poção mágica, um filtro, para que eles bebessem e que a partir daí ficassem profundamente apaixonados um pelo outro. Confiou à serva Brangien que a bebida deveria ser tomada pelos noivos na noite de núpcias: aos olhos da mãe de Isolda o futuro de ambos já estava selado; contudo, o destino pregou-lhe uma peça: na viagem para as terras do rei Marc, a serva descuidou-se por um momento, e Tristão e Isolda, juntos, embriagaram-se com a bebida e apaixonaram-se imediatamente. Isolda, conforme a promessa de Tristão, casou-se com o rei Marc, mas na noite de núpcias, Brangien foi quem se entregou sexualmente ao rei, pois temia que o rei matasse Isolda se descobrisse que ela não era mais virgem. Neste ínterim, Isolda, temendo ser denunciada ao rei por Brangien, mandou-a com dois servos à floresta a fim de buscar ervas, mas os servos levaram-na para a morte. Todavia, quando chegaram na parte mais inacessível da floresta, não tiveram coragem de matá-la, então, amarraram-na em uma árvore e mataram um petit chien, cortando-lhe a língua para levarem para Isolda como prova do crime. Chegando ao castelo, entregaram a língua a Isolda, que arrependida pediu que trouxessem Brangien de volta. Os carrascos confessaram não tê-la matado, trouxeram-na de volta e ambas de joelhos pedindo perdão se abraçaram jurando lealdade, uma à outra. (“O Filtro e Brangien entregue aos servos”).98

A poção mágica – típica do imaginário maravilhoso dos contos de fada – é o

temário presente no capítulo: como poderia uma poção mágica exercer influência à

consumação de um fato só porque alguém assim o deseja em prol de seu bem-estar e de suas

98 DUBY, Georges. Idem. “O poder masculino se sentia impotente diante dos sortilégios, dos filtros que debilitam ou então curam, acendem o desejo ou extinguem-no. Detinha-se à porta do quarto onde os filhos eram concebidos, postos no mundo, os doentes cuidados, os defuntos lavados, onde sob o império da mulher, no mais privado, estendia-se o domínio tenebroso do prazer sexual, da reprodução e da morte”. p. 91

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próprias conveniências? É a metaforização da linguagem posta em prática para vida dar ao

episódio poético-amoroso, e sobretudo, o da retórica cavalheiresca. Aqui a poesia ultrapassa

as fronteiras da criação de uma parcela do mundo vivido ou vivenciado, no real ou no

imaginário e expresso no trabalho de linguagem. É o confronto totalizador entre os dois

jovens que se entregaram a todos os arrebatamentos e casuística da paixão amorosa e

intensamente marcada pelo sentimento do outro. O par amoroso torna-se prisioneiro do

amor, do amor do corpo e do coração, no entanto a situação dos amantes é apaixonadamente

contraditória:

Eles se amam, mas não se amam (são vítimas de uma poção mágica, sofrem tautologicamente a paixão, confessam-se mas não querem curar-se, nem buscam o perdão). Sentem-se arrebatados para além do bem e do mal numa espécie de transcendência das nossas condições comuns, num absoluto indizível incompatível com as leis do mundo, mas que eles sentem como mais real que este mundo.99

Denis de Rougemont em O Amor e o Ocidente adverte que “a magia persuade

sem dar explicações, até mesmo porque exclui qualquer explicação. E a retórica

cavalheiresca, como, aliás, toda retórica, é o meio de fazer passar por ‘naturais’ as mais

obscuras proposições. Máscara ideal”100. O capítulo bem que poderia se chamar ‘magia e

iluminação’ uma vez que a linguagem está revestida da função simbólica: através de uma

imagem há uma recuperação de algo interdito no mundo real, isto é, Tristão, por prêmio,

após matar o dragão, já havia ganhado a mão de Isolda por ordem do rei, seu pai.

Concomitantemente a esse fato, Isolda enamora-se dele e se decepciona ao saber que não

seria desposada pelo herói. Em outras palavras: já havia claros indícios de que ambos não

deveriam ficar juntos, isto é, os amantes nasceram para não serem felizes; porém, um

juramento de honra de Tristão (apresentar ao tio aquela a quem pertencia os fios de ouro

do cabelo101 que a andorinha tinha trago em seu bico para que ele a desposasse) feito para o

99 CARDOSO, Sérgio & Outros. Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Companhia das Letras, p.210. 100 ROUGEMONT, Denis. Idem. p. 39. 101 BÉDIER, Joseph. O Romance de Tristão e Isolda. Tradução: Luis Cláudio de Castro e Costa. Nesse trecho Bédier, não sei se foi sua intenção, nos apresenta um das convenções literárias dos textos da lírica trovadoresca: a mulher branca, cabelos louros e olhos azuis. José de Alencar no romance O Guarani constrói uma personagem, Ceci a heroína, que tem esse perfil de construção da mulher medieval. Peri, o herói da prosa indianista de Alencar, desempenha na tessitura da obra a mesma função que desempenha Tristão, isto é, é vassalo amoroso, fiel, segue as regras da cortesia, está disposto a morrer em nome de sua amada: e não são poucas as vezes que ele arrisca sua vida em nome de Cecília, a heroína, no enredo do romance. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

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rei Marc o impedia de ficar com Isolda: era o juramento de fidelidade e o vínculo existente

entre o senhor e o vassalo. Tristão não poderia, em hipótese alguma, agir de forma contrária,

mas seu destino já estava selado, é como se já soubéssemos o final da história: não cumpriria

o juramento.

O juramento representa a interdição, a poção mágica, a volta à condição anterior,

isto é, o amor em segredo de Tristão com Isolda, uma obediência à convenção literária do

código cortês já que o rei Marc se deu por convencido de que jamais havia sido traído pelo

sobrinho, embora, haja um capítulo intitulado O Grande Pinheiro102, em que o rei demonstra

desconfiança, mas, Isolda usa um ardil para que o rei não descubra que ela se encontrava

secretamente com Tristão: Marcos ‘engole a isca’, perdoa o sobrinho, e ameaça o anão Frocin

– gerador da trama contra o herói. Analisando mais detidamente a arquitetura desse capítulo

podemos chegar à seguinte evidência: a presença da discrição – uma das tônicas da lírica

trovadoresca – é seguida à risca. Amante (o terceiro do triângulo amoroso) e amada fazem o

jogo sem que o marido descubra. Não podemos nos esquecer que uma das regras do jogo era

exatamente deixar permanecer em segredo o amor que o amante sentia pela amada, era o

código de honra.

Segundo Rougemont, o Filtro representa nada mais nada menos que o álibi da

paixão, é o que estaria permitindo aos amantes infelizes dizerem um para o outro que eles não

são os responsáveis pelo que foi desencadeado: não é a influência de uma livre vontade a

ação desencadeadora dessa fatalidade enganadora.

Todos os seus atos são orientados para o destino mortal que amam com uma espécie de ardilosa determinação, com uma astúcia infalível, tanto mais que pode furtar-se ao julgamento. Nossas ações menos calculadas, por vezes, as mais eficiente.103

Estão, dessa forma, para sempre mergulhados no abismo sem que isso represente

para eles tentativa de explorar uma tática de redenção: é um itinerário de duas almas

condenadas ao sacrifício da paixão fatal imbuída de caráter moral e espelho de Narciso que se

desdobra na alma dos parceiros ideais. A respeito desses episódios e histórias, Duby adverte

102 Idem. Esse capítulo revela o momento em que os quatro biltres da corte, inimigos em potencial de Tristão e que seriam todos assassinados posteriormente, souberam a verdade dos seus belos amores. Levam a notícia ao rei para que Tristão seja condenado à morte. O rei pede a Tristão para deixar o castelo por causa da trama arquitetada. 103 ROUGEMONT, Denis de. Idem, p. 38.

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que são formas ou mecanismos para fazer com que o homem possa lançar um novo olhar

sobre a vida e acrescenta:

As mais fascinantes falavam do amor, mas de um amor selvagem, indomável, amor louco. Ou melhor, do desejo louco, essa força misteriosa que atrai reciprocamente um homem e uma mulher tomados de uma sede inextinguível de se fundirem um no outro. Um impulso torrencial e tão poderoso tão avesso a qualquer controle que, como as mortes inexplicáveis que se explicavam com naturalidade pela intervenção de uma poção mágica, parecia brotar acidentalmente, cegamente, graças a um sortilégio. No centro dessas histórias figuravam assim o filtro, as misturas, “o vinho com ervas”, preparados segundo receitas cujo segredo as mulheres transmitem uma às outras. Se por acaso se vier a beber dessa poção, fica-se prisioneiro dela. Contra sua força nada é capaz enquanto suas virtudes não tiverem se evaporado. Mostrar os efeitos nefastos de um desejo nascido dessa maneira, e portanto ingovernável, destinava-se a alimentar, na sociedade cortês salutares reflexões sobre a ordem e a desordem, e em especial sobre essa perturbação cuja causa são as turbulências da sexualidade. 104

Temos, ainda José Miguel Wisnik em Os Sentidos da Paixão, referindo-se ao

filtro diz:

Parece-me que a questão da duração do efeito do filtro, seja qual for a história (aqui o comentarista faz uma alusão às várias versões da lenda) e a causa de sua inserção no romance, faz jus a uma percepção da paixão como curva, como um transporte que descreve um arco que declina, como febre de ressonância narcísica que arrefece: este é o momento delicado em que os amantes, colocados pela flutuação das vontades da imperfeição do outro (que implica a própria), é cessado o mágico encanto dado pela potência divina do entusiasmo (etimologicamente: endeusamento) passional, ou se desiludem, ou convertem a paixão numa relação amorosa baseada na aceitação do limite e da carência. Mas uma aceitação continuada e amorosa da imperfeição do outro e da própria imperfeição configura casamento, fugindo ao anseio de ilimitado que marca no romance as figuras da paixão. 105

Sem dúvida a inserção dos símbolos da narrativa maravilhosa são resíduos de

mitologias esquecíveis e torna seus elementos incompreensíveis enquanto símbolos arcaicos.

Não tem sentido em si mesmos, mas enquanto estruturação e parte integrante do quebra-

cabeça semântico estão investidos de um sentido preciso pela trama lógica do texto.

104 DUBY, Georges. Idem. p. 96. 105 WISNIK, José Miguel. Os Sentidos da Paixão. p. 204.

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É nessas constelações particulares que se enchem de sentido: sua coerência, assegurada por remissões e ecos em um e outro trecho da narrativa, leva a omitirem-se hipóteses quanto mensagem ideológica de que provavelmente esse romance foi portador.106

A partir destas considerações sobre o erotismo e a transgressão, elementos que

permeiam a instituição do filtro na configuração adjacente de uma relação amorosa já

podemos estabelecer um paralelo entre Tristão e Isolda e O Drama Heloísa-Abelardo, pois

ambos se nutrem do mesmo néctar embriagador: a casuística amorosa, sendo que esta

representa a configuração e encarnação de um amor real, destituído de toda a retórica e

refinamento do amor-cortês e, aquele, exatamente o inverso, move-se pela paixão

avassaladora do modelo cavaleiresco – retórica da lírica trovadoresca.

Conclusivamente: a lenda é um fato fictício, o drama uma história real, segundo

os relatos e pesquisas empreendidas neste âmbito por Georges Duby em As Damas do Século

Doze e, em especial, O Drama Heloísa-Abelardo do Padre Vilela já citados anteriormente.

No entanto, sabemos que Isolda se apaixona de maneira profunda por Tristão e

vice-versa. Contudo, a paixão que se desencadeia entre eles é, notoriamente, marcada pelo

trabalho de invenção cavaleiresca impregnada pelo seu criador. O autor movido por uma

intenção única cria um episódio romanesco cheio de peripécias sempre obedecendo ao

convencionalismo que a linguagem poética requer; busca nesse empreendimento ideológico-

literário a transformação da personagem em mito do amor causador da morte ou amor sem

retorno (non payé retou), e, por extensão, cria uma concepção de amor inatingível, apropria-

se do elemento “maravilhoso” para dar vida à narrativa poética.

A paixão entre Tristão e Isolda é mascarada por uma retórica que está dividida

entre a ação e a intenção. Tristão não tem a intenção de amar Isolda devido ao juramento de

fidelidade proposto a seu tio Marc, porém, no plano da ação, como foi demonstrado, é isto o

que acontece. Isolda não tem a intenção de amar Tristão ao descobrir que ele havia

assassinado seu tio, o gigante Morholt, mas, no plano da ação – comovida pelas palavras de

Tristão e posteriormente com a interferência e sobreposição do “filtro” na trama – apaixona-

se perdidamente e passa a viver em função de Tristão. Por extensão: Tristão não tem a

intenção de trair o tio, mas no plano da ação é isso o que acontece. Desta forma, para que ele

fosse absolvido de qualquer punição e destituído de qualquer sentimento de culpa, foi

necessário que o filtro realizasse função mais simbólica: dir-se-ia que alguém não pode 106 Tristão de Béroul, p. 86.

89

assumir nenhuma culpabilidade não estando em sã consciência e dono de seus atos. Os três

fragmentos abaixo retirados d’O Romance Tristão e Isolda comprovam respectivamente

nossa proposição:

Fragmento A:

Senhores, matei o Morholt, mas atravessei o mar para vos oferecer uma bela compensação. Para resgatar o mal feito, coloquei o meu corpo em perigo de morte e livrei-vos do mostro, e foi assim que conquistei Isolda, a Loura, a Bela. Tendo-a conquistado, leva-la-ei, pois, na minha nau. Mas, para que as terras da Irlanda e das Cornualhas não se espalhem mais o ódio, mas sim o amor, sabei que o rei Marc, meu caro senhor, irá desposá-la. Eis aqui cem cavaleiros de alta linhagem, prontos a jurar sobre as relíquias dos santos que o rei Marc vos manda vir paz e amor, que seu desejo é venerar Isolda como sua cara mulher desposada, e que todos os homens das Cornualhas servi-la-ão como sua senhora e sua rainha. (p. 2) Fragmento B:

Ouço palavras maravilhosas. Por que o assassino do Morholt quis conquistar-me? Ah! Sem dúvida, como o Morholt tinha outrora tentado arrebatar em sua nau as donzelas das Cornualhas, por tua vez, em belas represálias, fizeste esta jactância de carregar como tua serva aquela que o Morholt prezava entre as donzelas. (p. 25) Fragmento C: Filha, (a mãe dando ordem a Brangien, a serva de Isolda) deves acompanhar Isolda ao país do rei Marc, e tu a amas com amor fiel. Pega então esta jarra de vinho e não esqueças as minhas palavras. Esconde-a de tal maneira que nenhum olho a veja e nenhum lábio dela se aproxime. Ma quando chegarem a noite de núpcias e o instante em que se deixam os esposos, verterás este vinho com ervas em uma taça e da-la-ás para que esvaziem juntos, o rei Marc e a rainha Isolda.. Nesse instante Brangien entrou e viu-os a se olharem em silêncio, como se estivessem desvairados, arrebatados. (pp. 29-30)107

3 -Curto mas curioso

Machado de Assis quando escreveu O Alienista, conto que satiriza a ciência no

Brasil do século XIX, se apropria de uma imagem semelhante a esta que estamos

descrevendo. No seu texto há um diálogo entre Simão Bacamarte, o protagonista da história,

e um padre. Este, inquirindo o especialista em doenças mentais sobre as patologias tenta

descobrir o motivo pelo qual se originam as enfermidades psicológicas e se os enfermos são

donos de seus atos. O alienista diz que não, os despossuídos de consciência não são donos de

seus atos, não podem, portanto, assumir coisa alguma.

E o que isso tem a ver com Tristão e Isolda?

107 BÉDIER, Joseph. O Romance de Tristão e Isolda. 2ª. Edição. Tradução: Luis Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

90

A resposta é simples: Tristão e Isolda não podem ser recriminados porque não

têm consciência de seus atos, visto que o filtro os absolve de qualquer condenação, é

desculpa e álibi:

(...) desculpa e álibi que só podem enganar aquele que queira ser enganado, porque nisso tem interesse, figura de retórica romanesca, e a esse título aceitáveis, mas que seria bastante absurdo confundir com verdades psicológicas.108

Em Machado, os “supostos” psicopatas – sua desculpa e álibi – também não

podem ser recriminados, pois lhes falta, segundo o consagrado médico, a capacidade de

diferenciar o que é certo e o que é errado: a consciência. Enfim, em ambos os casos não se

têm a intenção de errar, mas no plano da ação, é isso o que ocorre.

Há no episódio poético medieval uma semelhança edipiana. Tristão e Isolda,

sob o ponto de vista psicanalítico, tal qual Édipo faziam uma coisa acreditando estar fazendo

outra. Foram governados por uma força, no mito, o destino, que os empurrava

deliberadamente em um sentido não desejado e fora do controle. Édipo foge do destino

implacável profetizado pelo oráculo, mas quando mais se afasta do perigo mais se aproxima

dele. A história de Tristão e de Isolda parece dizer a mesma coisa: são governados pelo não

sabido, pelo inconsciente. Talvez, seja este o fator ou um dos fatores, que os absolve de

qualquer recriminação imposta pelo Superego. No entanto, as aventuras de Tristão e de Isolda

parecem indicar mais a gravidade do perigo a que estão expostos os amantes quando se

entregam aos prazeres dilaceradores do amor e à força incontrolada da magia do que

propriamente um elogio à paixão amorosa que os envolve desde o momento em que seus

olhos se fecharam para a realidade de toda a história dolorosa que daí se derivou. A

proporção correta de tamanho que este exemplo dimensiona o imenso espaço disponível para

o inconsciente.

Disso deduz-se que aquilo que sabiam sobre eles era bem menor do que o não

sabido – era a ponta do iceberg – estava abaixo da consciência. Esta porção significativa do

psiquismo é que governa de fato a trajetória existencial concreta e real. É nesta porção do

psiquismo em que se travam as batalhas definitivas das emoções, imagens, sensações,

prazeres. Nesta região onde se define a existência, o acesso é precário e o controle é nenhum.

Nesta função edípica estão as correntes que empurram a vida muitas vezes em direções 108 ROUGEMONT, Georges. O Amor e o Ocidente, p. 281.

91

absolutamente imprevistas. Da mesma forma em empurrou Édipo de encontro a um drama de

amor e ódio em visão freudiana – no relacionamento com seus pais – também empurraram os

amantes Tristão e Isolda: não sabiam da fatalidade e do caminho tortuoso que os conduziam

neste mar do inconsciente.

Neste sentido, mergulhar na história de Tristão e de Isolda é o mesmo que

mergulhar nas profundezas da irracionalidade sem entender exatamente sua rota nas

intrincadas malhas da história amorosa. O drama vivenciado por estas personagens em todo o

seu complexo e não apenas no lance sentimental que colheu os amantes tragicamente e os

imortalizou na subjetiva visão romanesca, é filão que decorre da lavra trovadoresca. Assim o

amaneirado refinamento das cortes de amor sem retorno propalado pelos poetas trovadores da

Idade Média européia ocidental já era uma forma, talvez, inconsciente até por eles mesmos,

da concepção da rede significativa da função edípica formulada séculos mais tarde por

Sigmund Freud. Por conseguinte, a narrativa dos amantes apaixonados, sua estrutura

corrente, os amores proibidos ou contrariados, a realidade se encarrega de lhes compor

episódios romanescos e lances ardentes: o cenário e a reconstrução de uma época sinalizam

para a mesma problematização: o amor não é bem amor e o ódio não é exatamente ódio.

4-Paralelo entre Tristão e Isolda e O Drama Heloísa-Abelardo

A lenda de Isolda como já foi dito é de origem Céltica, contudo foi retomada,

cultivada, revivida e enriquecida pelos poetas medievais. Carrega consigo a fatalidade da

paixão109. Já O Drama Heloísa-Abelardo nada tem de lendário, trata-se de um fato histórico,

daí não ser necessário inventá-la pelas artimanhas da imaginação romanesca. Diferentemente

de Tristão e Isolda, o drama não significa a fatalidade, mas sim a encarnação desta. Embora

os episódios unam as idades, se fazem de modo inverso. A poesia do amor cortês se fez

carne, de certa forma em Abelardo, a ‘estória’ se fez história: a máxima da lírica cortês em

ver o fim do amor no próprio amor, essa concepção semântica da vida, agora, deixa de ter

sentido.

109 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. In: A Família. “A Primeira forma de amor sexual aparecida na história, o amor sexual como paixão, e paixão possível para qualquer homem (pelo menos das classes dominantes), como paixão que é a forma superior de atracção sexual (o que constitui precisamente seu caráter específico ), essa primeira forma, o amor cavalheiresco da Idade Média, não foi, de modo algum, amor conjugal. Longe disso, na sua forma clássica, entre os provençais, voga todo o pano para o adultério, que é cantado pelos seus poetas”. 4ª Edição. tradução de H. Chaves. Lisboa: Editorial Presença Ltda, 1980, p. 92.

92

Como se estabelece a dicotomia intenção/ação em Heloisa-Abelardo?

Antes de qualquer coisa: é bom dizer que a paixão entre Abelardo e Heloísa

seguiu um curso natural: ambos se encontram, se enamoram, passam a vivenciar um

problemático quadro amoroso. Ambos cometem a falta: ele, sendo um padre – e um dos

grandes representantes da patrística da Idade Média européia – não podia enamorar-se dela,

segundo os códices morais da época que condenava e confinava os homens de Deus ao

claustro dos mosteiros. Ela sabendo disso deveria permanecer à deriva, mas não é isso o que

acontece, infringe até as últimas conseqüências o interdito, semelhantemente ao que acontece

com Tristão e Isolda ao tomarem o filtro, rompe com o dogma eclesiástico-social. De quem é

culpa desse ato consciente? Deles mesmos. Aqui o filtro dá lugar à razão, sentido lógico das

coisas.

A pena pelo crime cometido por Tristão e Isolda foi a morte literária e voluntária.

A pena pelo crime cometido por Abelardo foi a emasculação, a de Heloísa, sua ida para o

convento, conforme orientação do marido. Ambos não só tiveram a intenção de se

entregarem um ao outro bem como acionaram o ato ao seu bel-prazer e à consumação do ato

amoroso mesmo tendo consciência de tudo aquilo que ocorreria pela transgressão. Em

relação à dicotomia ação/intenção Duby110 em, As Damas do Século Doze, afirma,

categoricamente, “em conformidade com a filosofia de Abelardo, para quem a falta não está

no ato mas na intenção, que os pecados mais tenazes não são os do corpo mas os do espírito,

que mesmo na continência mais rigorosa se permanece culpado se não se consegue vencer o

próprio desejo, se não se expulsa do espírito o pesar dos prazeres recusados”.

Isso que é apresentado por Duby nos faz chegar a uma primeira evidência: a de

que a emasculação de Abelardo não o destituiu do pecado original uma vez que mesmo nessa

nova condição de vida continua ainda enamorado por Heloísa, o que explica a longa

correspondência mantida por eles após a funesta e brutal emasculação comandada pelo tio de

Heloísa, Fulbert.

Como romance Tristão e Isolda representa a fatalidade da paixão, Heloísa-

Abelardo, a encarnação da paixão. Por quê? Em Tristão e Isolda percebe-se como lição de

moral que o amor proibido e paixão violenta rompem com a sacralidade do corpo tanto no

plano físico como no das idéias, o preço dessa paixão é a morte – etapa final do idílio

amoroso existente entre eles. Contudo, depreende-se que este fim decoroso é um transporte

110 DUBY, Georges. Idem, p. 70.

93

espiritual que sobrevoa a realidade física e uma via de salvação, tópica do morrer de amor.

Em Heloísa-Abelardo ocorre uma imagem paradoxal e indubitavelmente oposta: a separação

ocasionada pela paixão existente entre eles aumentou mais ainda o vínculo amoroso e disso

chegamos a uma outra evidência: quando se ama com todo o corpo e toda a alma nada mais

faz a diferença, os aparelhos proibitivos externos deixam de exercer influência direta na

manifestação dos desejos e dos pensamentos daquele que ama. Conclusivamente, poderíamos

pensar assim: as leis foram criadas para não ser cumpridas. A diferença não está na

manutenção e sim na ruptura dos valores, o qual funciona como aparelho controlador do

superego que castra o indivíduo e limita seu campo de atuação e lhe restringe as ações

individuais e subjetivas.

As contradições entre estes dois opostos confirmam tudo o que se tem

documentado pela historiografia contemporânea sobre a estrutura e o funcionamento da

sociedade da Idade Média. Sob o ponto de vista histórico, já sabemos que à mulher estava

destinado um papel particular na estrutura social medieval, inferior ao homem era objeto de

discriminação devido à sua nativa tendência à perversidade, como bem afirma Duby em seus

estudos sob a condição da mulher nesse tipo de sociedade. No caso de Heloísa-Abelardo, a

narrativa reflete bem essa condição social a qual a mulher estava submetida. Mesmo

pertencendo a uma camada social superior, não ficou livre, por ser fraca e não poder escapar

sozinha à perdição, da represália que o meio exigia na época: fora obrigada a tornar-se uma

“esposa do senhor”: “ao tornar-se freira, ela se tornou esposa do Senhor, marido perfeito, e

mais, perfeito amante”.111 (“Abelardo é o servidor dele. Portanto, doravante, ela domina seu

esposo terrestre. É sua “dama”. E a oração que ele lhe dita para que ela recite diariamente

celebra a conjugalidade”. (Acredite quem quiser!)

Isso confirma os pressupostos teóricos e estudos feitos nesse campo e corrobora o

fato de que as mulheres não tinham o direito de escolher seu marido, principalmente, sendo

este, um clérigo, um representante de Deus aqui na Terra. Por outro lado, revela também que

a Abelardo é imposta uma pena muito maior: desvirilizado, ele mantém ainda o instinto inato

da sexualidade e nada pode fazer a não ser viver em mundo de contemplação platônica, afinal

a vida (sociedade) roubara-lhe o que ele tinha de mais “sagrado” com o simples intuito da

manutenção da ordem perante a Instituição eclesiástica e suas grotescas leis impostas pelo

celibato.

111 Idem, p. 66.

94

Sob o ponto de vista literário, à mulher que corrompe e transgride o elemento

proibitivo, nas penas do poeta cabe-lhe um destino semelhante ao propalado pela sociedade:

não uma morte para as relações com o mundo circundante, mas sim a morte definitiva, isto é,

apaga-se para sempre aquele empecilho literário com finalidades puramente cavaleirescas e

retóricas. Ao apagar, ao dar sumiço à personagem, o autor nada mais faz do que transferir

para o campo da literatura o dogma social que condena a mulher pelos seus atos imperfeitos e

desmoralizantes. Pode-se dizer que a partir do momento em que Isolda toma conhecimento da

morte de Tristão e passa sofrer em função disso, o ato simboliza metaforicamente que ela

deveria pagar por aquilo que ela fizera, ainda que inconscientemente e no sentido

escriturístico: não se tornar a esposa do rei Marc e transformar-se em uma verdadeira rainha.

Abelardo foi vítima do meio em que vivia e as circunstâncias favoreceram seu

contato em meio às mulheres. “Abelardo tinha tudo para encantar as mulheres e, como disse a

própria Heloísa, conquistar de chofre o coração de todas elas. Além disso, vivia

habitualmente cercado por um sem-número de mulheres da nobreza e da aristocracia

urbana”112. Se em Tristão e Isolda temos a imagem de uma relação amorosa, em primeira

instância, desinteressada, em Heloísa-Abelardo temos o contrário. Três nódoas percorrem os

caminhos de Abelardo: o orgulho, o dinheiro e a luxúria, as três colunas do vício. Orgulho

por que não cria haver outro filósofo como ele; dinheiro, que conseguiu dos discípulos de sua

cátedra; luxúria, fruto destes dois elementos. Então, podemos afirmar sem medo de errar, que

desde o princípio o amor de Abelardo por Heloísa foi sobrecarregado de sedução, seduziu

Heloísa impulsionado pela libido, acreditava que a aluna era uma presa fácil, visto que ela

demonstrava possuir inteligência e amar as letras: começa então a subornar com fins

sediciosos.

Heloísa constrange-se diante de Abelardo mas reconhece que ele é dotado de

irresistível poder de sedução. Abelardo era movido pela luxúria, Heloísa pelo amor, submete-

se a ele. Nas suas cartas afirma que seus desejos eram os dele, e que os prazeres que

procurava satisfazer era os dele e não os dela. Contudo, deixa-se seduzir, resiste mas entrega-

se a ele, deixa a paixão desenfreada conduzir seu corpo. No entanto, esta conduta do herói e

heroína da vida real foge às regras do amor-cortês e da concepção romântica, porque nestas

convenções idealizantes a arte amatória consistia em ver o fim ou o fruto do amor no

próprio amor, e em segredo.

112 O Drama Heloísa-Abelardo, p. 65.

95

Para corroborar a tese: Abelardo não segue o código da cortesia da lírica porque

declara-nos seus versos, publicamente, o nome da dama amada rompendo frontalmente com

um dos preceitos fundamentais e mais acentuados da cortesia da época: a discrição, o

segredo, o mistério, no amor. Feria, dessa forma, a disposição afetiva do tato e da delicadeza

prescrita formalmente pelo código cortês. Desaparece a instituição ocitânica que previa as

ternas ligações à sombra do mistério.

Há a queda da inacessibilidade da dama dos amores do cavaleiro, aquilo que

enobrece e tipifica o amor. Abelardo deixa de ser herói quando se apaixona, seduz e deixa-se

seduzir por Heloísa, entra em franca decadência, abandona tudo para viver o tormento da

encarnação passional. A história de Abelardo em relação à de Tristão e Isolda, portanto, do

ponto de vista conceptual, deixa de ser uma forma idealista do amor sensual para

transformar-se em uma fonte de amor total, real, destituído de qualquer função, idealizante e

platônica: vive-se a carga erótica em seu mais alto grau da concupiscência. Enfim, sua

história de amor, morte, intriga, misticismo e luta religiosa são conteúdos intrínsecos da

função narcísica, isto, elementos constituintes da sua vontade, de seu ego.

Estas duas formas de amor, se bem que inseridas e projetadas sobre o mesmo

objeto, refletem duas concepções intrínsecas da paixão amorosa e, ambas convergem no

encanto único como um meio de resgate da identidade e da busca pela realização dos desejos

manifestos no universo anímico do ser humano, o qual preocupado com a consumação das

pulsões primeiras fica cego para os empecilhos e interditos exteriores, sofrendo com isso

todas as conseqüências advindas da vontade. E estas formas de manifestações do desejo no

terreno amoroso ultrapassam a barreira do tempo.

O sagrado e o profano, a ortodoxia e a heresia se debatem em seus bastidores; a constelação contraditória desses temas e as desconstelações a que os movimentos ambivalentes da narrativa nos convidam fazem ver o seu anacronismo (mas arquetípico) à luz de uma surpreendente atualidade. 113

Por fim, a Europa em suas árduas questões da história das Letras e dos costumes

ocidentais não conheceu poesia mais retórica do que a poesia provençal, por sua inspiração

tem uma fonte em um sistema fixo de leys d’amours. Nenhuma outra forma de manifestação

literária foi mais exaltante e fervorosa e o que ela exalta é o amor fora do casamento, visto

113 CARDOSO, Sérgio & Outros. Os Sentidos da Paixão: p. 196.

96

que este nada significa do que a união dos corpos, contrapondo-se sobremaneira ao Amor.

“Eros” supremo, movimento anímico cuja força luminosa está situada para lá de todo amor

nesta vida. Tanto Tristão e Isolda quanto O Drama Heloísa-Abelardo, parecem alimentar-se

desta concepção de união amorosa entre os corpos obcecados pela satisfação dos prazeres da

carne. Amor e lucidez definem Heloísa historicamente pelo menos e dentro de uma

justificativa racional; amor e inconsciência definem Isolda, pelo menos literariamente e

emanada da imaginação criadora do poeta lírico. Diante disto cabe aqui uma afirmação: a

lenda de Tristão e Isolda e O Drama Heloísa-Abelardo inscrevem-se em um contexto

ideológico e espiritual estranho ao do Cristianismo medieval.

Tristão e Isolda, este material céltico serviu como ponto de partida nas narrativas

francesas para uma reflexão sobre as relações entre os homens e as mulheres. Esta literatura

cortesã não regida pela moral cristã, a presença de Deus nela é ínfima, a cultura celta escapa

de uma censura da Igreja. O poder mágico do filtro pode ser, também, utilizado para

representar uma maneira hiperbólica do desejo sexual. Este desejo de uma mulher ou de um

homem, o olhar que um lança para o outro pode ser racionalizado em um filtro permitindo

pensar e representar o desejo, as exigências da luxúria e o erotismo que não tem nada a ver

com a sexualidade propriamente dita. Disto evidencia-se que a inserção no filtro dentro da

narrativa permite que se reconte uma história de amor utilizando o filtro para contornar a

moral ambiente: para refletir o lugar que pode se apropriar ao desejo. Da mesma forma são

inseridos na narrativa, dragões, gigantes, etc.

O amor cortês é uma representação literária do amor, o filtro representa a

obsessão de os amantes saciarem o desejo – pai da fantasia, caso contrário eles

enfraqueceriam e poderiam morrer. Sob esta perspectiva, o fino amor não pode ter nestas

condições ascese, tampouco sublimação, sobretudo pela dominação da dama visto que seu

sofrimento é partilhado. Assim, o filtro é um poderoso elemento exterior: esta bebida de ervas

é uma maneira de externar o vínculo amoroso, é símbolo e poder de pensar a sexualidade

porque não podemos pensar em termos de inconsciência nem fisiologismo. Desta forma nós

podemos pensar a sexualidade de dois amantes que não são criminosos. Tristão e Isolda é

uma meditação sobre a sexualidade, um código encoberto, por meio de uma linguagem clara,

uma relação amorosa fora do casamento. Dentro da moral contemporânea nós não

deveríamos sofrer de prazer no casamento.

97

Terceiro Capítulo

1 -A fortuna crítica alencariana: Roberto Schwarz

Machado de Assis disse uma vez a Alencar, publicamente, que contra a conspiração do silêncio o ilustre escritor teria por si, um dia, a conspiração da posteridade. E ainda nisso foi profético o autor de Brás Cubas; o nome e a obra de Alencar pertencem indiscutivelmente à posteridade, mas a posteridade precisou e ainda precisa conspirar para valorizá-los.114

(Afrânio Coutinho)

Ao vencedor as batatas. Desde Franklin Távora, o Semprônio das “Cartas a

Cincinato”, prolongam-se os caprichos da crítica literária alencariana com suas modas e

instabilidades. A diferença entre o passado e o presente se apresenta no nível da experiência

histórica. Enquanto os primeiros e virulentos críticos falam mal do Alencar que subverte o

padrão ou cânon luso; os modernos, por sua vez, com o desenvolvimento do ensaísmo e da

crítica literária, ampliam seus limites de abordagem. A força da criação de Alencar torna-se

suspeita ao gosto, também, da Modernidade. Como bem assinala Haroldo de Campos em

“Uma Arqueologia de Vanguarda”: “Alguns espíritos tacanhos, contemporâneos ou pósteros,

acusaram o autor de Iracema de “plagiário” de modelos europeus115. A proposição é vazia de

conteúdo, para quem entenda a literatura como permanente diálogo intertextual, onde o

problema da “originalidade” não se reduz à mera resenha passiva de fontes e influências”116.

Quanto a esta questão polêmica levantada por Haroldo de Campos veja-se como

o crítico contemporâneo Roberto Schwarz define a empreitada alencariana, ao abordar em

seu estudo Ao Vencedor As Batatas, o tema da importação do romance e as suas contradições

114 COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 2ª Edição. Editora Brasil. Editorial Sul-Americana, 1968, pp. 249-250. 115 Idem. O romance romântico europeu, inicialmente, uma espécie de confissão pessoal, uma como que explosão da sensibilidade do indivíduo em face de sua nova circunstância histórica; até pela forma epistolar de que em alguns casos se revestem, foi uma confissão pública, subjetiva e apaixonada, na qual a observação da realidade tinha lugar mínimo ou nenhum lugar, a inspiração e os sentimentos pessoais ocupavam tudo, a exemplo de Wherther, La Nouvelle Héloise, Corinne e René. Foi pelo caminho desse extravasamento da vida interior que o Romantismo primeiramente se manifestou, para só depois preocupar-se com a criação do passado histórico e, daí, passar à sociedade contemporânea. p. 240. 116 http://www.usp.br/revistausp/nº 5/farol do texto.

98

na pena do escritor cearense. Faz uma análise minuciosa de um dos seus perfis de mulher,

Senhora. Inicia seu trabalho fazendo um retrospecto da forma de expressão literária no Brasil

do século XIX:

O romance existiu no Brasil, antes de haver romancistas brasileiros. Quando apareceram, foi natural que estes seguissem os modelos, bons e ruins, que a Europa já havia estabelecido em nossos hábitos de leitura. Observação banal, que no entanto é cheia de conseqüências: a nossa imaginação fixara-se numa forma cujos pressupostos, em razoável parte, não se encontravam no país, ou encontravam-se alterados. Seria a forma que não prestava – a mais ilustre do tempo – ou seria o país?117.

Para Schwarz adotar o romance era acatar a sua maneira de tratar ideologias. Os

grandes modelos proporcionariam o prestígio do modo geral e o desejo patriótico de dotar o

país de um melhoramento do espírito moderno, porém a imigração do romance de seu veio

realista iria por dificuldades, pois transferir para a sociedade brasileira especificidades do

romance europeu não combinava bem com nossos costumes, só se fosse em um nível de

pensamento e de imaginação. Dessa forma, o conjunto de idéias européias, faria com que

nosso ideário no plano literário seria modificado sem dúvida. Alencar deu respostas variadas

e muitas vezes profundas a esta situação: de Iracema a Macunaíma, pela inserção das

aventuras, o corpo geográfico, a toponímia índia e a História Branca. Do Grande Sertão:

Veredas a Til, nas façanhas de Jão Fera. Referindo-se à produção de Alencar, Schwarz diz:

Nossa iconografia imaginária , das mocinhas, dos índios, das florestas, deve aos seus livros muito da sua fixação social; e de modo mais geral, para não encompridar a lista, a desenvoltura inventiva e brasileirizante da prosa alencariana ainda agora é capaz de inspirar. Isso posto, é preciso reconhecer que a sua obra nunca é propriamente bem-sucedida, e que tem sempre um quê descalibrado, e bem pesada a palavra, de bobagem118.

Mais adiante reconhecendo nos pontos fracos, pontos fortes, em outras

perspectivas afirma:

Não são acidentais nem fruto da falta de talento, são pelo contrário prova de conseqüência. Assinalam os lugares em que o molde europeu,combinando-se à matéria local, de quem Alencar foi simpatizante ardoroso, produzia contra-senso. Pontos portanto que são críticos para a

117 SCHWARTZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas: forma literária e Processo social nos inícios do romance brasileiro. 5ª Edição. São Paulo: Duas Cidades Editora 34, 2001. p. 35. 118 Idem. p 39.

99

nossa literatura e vida, manifestando os desacordos objetivos – as incongruências de ideologia – que resultaram do transplante do romance e da cultura européia para cá. 119

O Romance de Alencar é uma imitação da imitação. A 2ª cópia disfarça mas não

por completo a natureza da primeira o que era para a literatura uma infelicidade e lhe acentua

a veia ornamental. Alencar trata como idéias sérias as idéias que entre nós são diferentes.

Herdamos com o romance, mas não só com ele, uma postura e dicção que não assentavam

nas circunstâncias locais e destoavam dela. “Para escapar aos acasos da paternidade, contudo,

é preciso substituir a contingência da origem geográfica pelos pressupostos ideológicos das

formas, estes sim atuais e indescartáveis. Mais precisamente, digamos que do conjunto mais

ou menos contingente de condições em que uma forma nasce, esta retém e reproduz algumas

– sem as quais não teria sentido – que passam a ser seu efeito literário, o seu efeito de

realidade”120. O que talvez Schwarz não tenha dado conta de computar em sua crítica

contundente é que a liberdade criadora consiste em que o artista pinte o mundo segundo lhe

revelam seus próprios olhos. A arte, assim, não poderia copiar o real porque entre este e

aquela há um olho que retrata a luz, transformando-a em imagem. Destarte, isto é

apropriação, é uma reconstrução da realidade literária avessa à realidade da ocularidade.

Em Senhora, diz, nota-se duas dicções: uma herdada do Realismo europeu, outra

aprisionada a uma oralidade familiar e localista. Foi o excessivo trabalho de apego aos

empréstimos formais e aos pressupostos o efeito negativo pois a importação inverte a

perspectiva. O rigorismo com que foi tecido Senhora, o desenrolar da história na produção do

conflito e os resultados deste deslocamento são as unidades um sistema um quanto

descabidas já que na decifração a verdade ostentando-se como um sistema cifrado desafia o

leitor contumaz a arrebatar-lhe o verdadeiro sentido.

Aurélia, heroína da narrativa, reconhecendo as adversidades pecuniárias de

Seixas propõe-lhe um casamento no escuro, nem mesmo chega a mencionar o nome da

proprietária do marido comprado de forma comercial e obedecendo a todos os princípios

próprios da compra e venda: “O Preço”, “Quitação”, “Posse”, “Resgate”. Para Schwarz este

rigorismo na condução do conflito, enredo e figura são de linhagem balzaquiana e “Aurélia é

da família férrea e absoluta dos vingadores, alquimistas,usurários, artistas ambiciosos., da

Comédia Humana; como eles, agarra-se a uma questão – dessas que haviam cativado a

119 Idem, p. 39. 120 Ibidem, p. 51.

100

imaginação do século – fora da qual a vida passa a lhe parecer vazia”121. Neste modelo de

narrativa condensa-se as ideologias de primeiro grau como a igualdade, a República, a força

redentora da ciência e da arte, o amor romântico, o mérito e carreira pessoal.

Neste sentido, ao fazer alusão o crítico tem razão, pois os heróis e heroínas

balzaquianos são burgueses e sua obra, mais propriamente, Ilusões Perdidas, nos permite

visualizar uma excelente radiografia do século XIX e da movimentação burguesa. Balzac

escreve em um século quando o espírito burguês encanta a sociedade mercantilizando as

relações humanas. O ambicioso Lucién de Rubempré, burguês decaído de uma província

francesa, parte com a amante para Paris a fim de dar uma guinada em sua situação financeira.

Diferente de Aurélia, personagem de Alencar, não sai de um mundo vulgarizado para um

mundo de grandeza. Já pertence à classe da burguesia emergente do século que valoriza o

descartável e o ordinário, e sua partida para a cidade grande se faz menos pelo fato de ele se

encontrar em dificuldades financeiras do que movido pelas leis da conveniência da sociedade

burguesa. Busca um nome, uma posição social que o faça equiparar-se ou adquirir mais poder

que o outro no clássico jogo da sociedade capitalista movida pelos ideais da Revolução

Francesa. Conhece a ascensão, a queda e de novo a ascensão. Em Ilusões Perdidas, há a

perda do valor estético-literário, pois é subjugado pelo poder econômico.

Em Balzac ser verdadeiro e sincero, mostrar-se você é, é motivo para ser

ridicularizado e desprezado. Aparentar o que não é, atuar na escuridão e não deixar que a luz

seja suficiente para tornar a obscuridade do ser inteligível ao outro é a fórmula para ser

respeitado, elogiado e bajulado. Tudo reside no princípio: dissimule. Pensando assim, a

heroína Aurélia se encaixa nos moldes da burguesia, pois passa a ter uma natureza intelectual

dotada da mesma conduta e mesma postura audaciosa do personagem Rubempré, porém, o

contexto brasileiro nega-lhe esta aproximação.

Aqui reside o problema. Esquadrinhando a importação do molde e sua

incorporação ao enredo verifica-se a inveracidade deste. Ele está em profundo desacordo com

o que a vida brasileira possibilitava. Quanto à ficção, as ideologias européias eram deslocadas

pelo mecanismo de nossa estrutura social, quanto à realidade. Para as personagens

secundárias responsáveis pela cor local o discurso universalizante de Aurélia transforma o

seu sentido, pois deixa de ter correspondência devido à ambigüidade do relato que acaba

prejudicando o efeito a atingir: convencer a todos de sua superposição.

121 Idem, p. 52.

101

As figuras submetidas ao seu “maquievalismo” na dança da engrenagem social,

os rapazes enojados pela venalidade passeiam livremente pelo romance de ficção realista e

eles não se deixam enganar pela moral e respondem à mesma moeda endurecendo seus

corações. Mais uma vez vem à tona a figura de Lucién de Rubempré: desprezado pela amante

por estar fora dos círculos aristocráticos, opta pela vingança, passa a desprezá-la no sentido

amplo da palavra. Desaparece, portanto, em Balzac, a figura do moço bom que aceita a

venalidade como se vê na figura de Seixas de Senhora.

Trata-se de uma situação básica do romance oitocentista: as veleidades amorosas e de posição social, propiciadas pela Revolução Francesa, chocam-se contra a desigualdade, que embora transformada continua um fato; é preciso adiá-la, calcular, instrumentalizar a si e aos outros... para afinal descobrir, quando a riqueza e o poder tiverem chegado, que não está mais inteiro o jovem esperançoso dos capítulos iniciais. 122

Eis os mecanismos do individualismo burguês com suas leis do capital onde o

valor-de-troca contrasta com o valor-de-uso através de um processo de alienação que marca

este novo contexto histórico. É o tempo em que na sociedade burguesa insurgem diferentes

formas de relacionamento social: os indivíduos se transformam em simples instrumentos para

a consecução de finalidades particulares e externas para a sua ascensão. E este

relacionamento social não aparece estampado nem tampouco figura como elemento

embrionário entre as duas capas de um livro. Dir-se-ia que o consumismo e a erotização são a

face da mesma moeda. As mercadorias substituem as relações entre as pessoas. Não só são

tratadas como mercadorias, que podem, portanto, ser compradas, vendidas, trocadas,

conforme o poder econômico, como as próprias mercadorias assumem características

humanas. Figura a inexistência do fator moral que determina o bem e o mal e o resultado. O

lema é: seja vitorioso, torne-se poderoso, rico e todos os seus atos indecorosos serão

esquecidos. O importante não é a prática ou o que você é, mais a imagem que fazem de sua

pessoa. Em suma: o homem da sociedade do século XIX não mais adora o Deus Verdadeiro,

mas o bezerro de ouro, leva-se em conta a propriedade.

No caso de Senhora, a venda do noivo no mercado matrimonial reflete aquela

pela qual o produtor aliena, como mercadoria, o objeto de seu trabalho. Este ‘perfil’

alencariano rompe não só com o processo de produção e o produto, como entre o produtor e o

consumidor. Seixas aceita ser tratado como mercadoria e acaba aceitando o papel que

122 Idem, p. 54.

102

Aurélia lhe impõe. Inconformada com sua sujeição, pede-lhe que volte a comportar-se como

um ser humano. Nesta contradição da heroína, Schwarz é duro na crítica.

Em termos de nosso problema: são fábulas que devem a sua força simbólica a um mundo que no Brasil não tivera lugar. Sua forma é a metáfora tácita da sociedade desmitologizada (entzaubert, na expressão de Max Weber) e mistificada que resulta da racionalidade burguesa, ou seja, da generalização da troca mercantil.123

Em Senhora, se bem que surjam os ingredientes do romance realista, a diferença

é total: há a coexistência de dois padrões de moralidade. Um que Schwarz considera como o

empréstimo à ficção balzaquiana, vincula-se ao círculo restrito da mocidade casadoira do

Rio. Outro que contraria a noção de amor, dinheiro, família, compostura e profissão não

aderem, no sentido absoluto, à ideologia burguesa. Este padrão de valores morais pertence ao

mundo patriarcal encarnado no avô124 de Aurélia de quem herda a fortuna. De modo real, a

diferença entre o tempo da pobreza e o da riqueza não é só cronológica, mas sobretudo

axiológica. Depreende-se que a qualidade de temporalidade passada é a do modo patriarcal de

organização social. Isto justifica que a fortuna e a riqueza do presente de Aurélia determina a

grandeza de sua conduta moral intensamente reacionária do patriarcalismo. Com base nestes

termos, creio possível pensar que a relação entre o cálculo e o capricho, elementos

caracterológicos da heroína como a técnica co relato, não refletem sua origem social,

considerando-se que a razão burguesa do pequeno Brasil da Corte Fluminense – que imitava

grotescamente a sociedade francesa brincando de emancipação – convivia com uma ordem na

qual a última palavra cabia ao dono do poder, fosse o co-autor da prole, o chefe de família ou

o Imperador.

Enfim, situações que o romance realista como as conveniências seriam tidas

como degradantes, em Senhora, adquire um tom de coisas da vida. Afina-se com as ilusões

individualistas de nosso universo social. A distância ideológica isola e absolutiza os valores

como a Arte, Moral, Ciência, Amor, Propriedade, também os valores econômicos quando os

separa do conjunto da vida social, tornando-os irracionais em substância aos indivíduos.

Assim, a irracionalidade proposta pela inversão representa um fisco à liberdade a qual se

123 Idem, p. 56. 124 PONTIERI, Regina Lúcia. A Voragem do Olhar. (...) “Aurélia herda do avô não só a determinação do caráter como o capricho das atitudes aparentemente sem lógica ou regidas por uma lógica que só ela conhece. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 148.

103

paga um preço alto pela existência. Em síntese: crê-se em Senhora, a ordem clássica do

mundo burguês é metamorfoseada em princípio formal. Suas personagens implicam uma

ordem inteiramente diversa. Conforme Schwartz, Alencar, no plano artístico, não completa a

superioridade dos valores burgueses com a crítica da ordem do favor de quem é amigo. A

forma se reduz e restringe-se na sua vigência uma vez que a matéria impregnada diverge e

destoa daquilo que circula nos meios sociais. O revezamento de pressupostos incompatíveis

quebra a espinha à ficção.

Do ponto para onde as coisas convergem a ficção realista de Alencar é frágil; no

entanto, a sua fragilidade repete de maneira esclarecedora e bem ampla a dificuldade de nossa

vida ideológica, de que é efeito e a repetição dos moldes europeizantes de construção de

texto. Porém, é uma fragilidade de que se tira algum proveito não ocasional já que se trata de

literatura e não de juízo. Para Schwarz, os heróis alencarianos são revestidos de instabilidade,

considera-os de ‘exceção’ e ‘medíocres’, oscilam entre o opressivo e o familiar à moda

européia conforme as exigências do desenvolvimento dramático. “Assim, Aurélia, que vive

no absoluto mais exaltado – lasciva como uma salamandra, cantando árias da Norma em voz

bramida e esmagando o mundo “como um réptil venenoso” – pergunta à Dona Firmina se é

mais bonita que Amaralzinha, sua companheira de festas; logo adiante, para sublinhar-lhe a

lucidez, elogiam-se seus conhecimentos de aritmética”. Por falar em titânico e familiar,

Pontieri, em A Voragem do Olhar, remete à seguinte verdade:

Em Senhora existe, além da separação entre passado e presente como cronologias distantes, uma separação entre a temporalidade sagrada por oposição à temporalidade profana. Há certa correspondência entre o presente da riqueza e atemporalidade profana, por um lado; e o passado pobre e a temporalidade sagrada, por outro. Não se trata de temporalidade estrita. De tal modo que, na cronologia do passado da pobreza, Aurélia é obrigada profanar sua pessoa ao abrir a janela dando-se em espetáculo aos olhares ardentes dos cortejadores. Da mesma forma, no presente da riqueza, que é o tempo da profanação do sentimento, irrompem os momentos de sonho – aqueles em que Aurélia vive com o amado ideal – e que recuperam no presente a sacralidade do amor imaginado pela moça. 125

Retomando o fio. As ideologias européias não iam bem com o Brasil, não se

ajustavam aos mecanismos de nossa organização social, e em especial, A Corte Fluminense,

onde figuram os entretenimentos e os passeios públicos da senhora Aurélia. A ficção em

125 Idem, p. 149.

104

Senhora fica prejudicada porque aquilo que está em posição elevada, em prejuízo da

grandeza almejada, é a relação de suporte de segundo plano, que diminui a solidez do conflito

central, sacudindo-o e, minimizando seu merecimento e intenção principal visto que oscila no

terreno da relativização. Não está em consonância com a realidade da vida brasileira.

Alencar, preocupado com o mérito da semelhança, desconsidera de modo acrítico a diferença

nacional em consonância com a realidade européia, disto resulta a falta de autenticidade de

nossa literatura. Enquanto Schwarz encara a importação como defeito de composição,

Alencar vê como um acerto de imitação. Reconhece na produção literária alencariana o valor

mimético, reconhecendo-lhes os germes formais, para ele o obstáculo na construção pode

assumir um acerto imitativo, o que dá a seu texto naquilo que concerne ao assunto

pertinência artística considerando-se a matéria a ser formada e a de reflexão.

Alencar é avesso à contradição entre a forma de manifestação da produção

artística dos dois mundos, entretanto, a insere no veio mundano do qual faz parte. Adere,

assim, de forma oposta aos princípios de “nosso paternalismo esclarecido”. Onde estaria a

lógica da combinação proparoxítona e verdadeira? Exteriorizando os valores de sua classe

revela a conciliação do clientelismo e ideologia liberal. Mais uma vez nos deparamos com a

dicotomia patriarcalismo e burguesia. De outra forma: Alencar impregna os valores daquilo

que é patriarcal quando insere seus heróis e heroínas dentro de um contexto burguês,

ocasionando, desta sorte, uma incoerência literária. Absorve o molde com vigor e sem

reelaboração pertinaz, é a profunda contradição, diria Machado de Assis. Assim a matéria

convencional fica sem verossimilhança enquanto que a integridade física fica sem

importância. O resultado é o desequilíbrio que surge em querer conciliar o que não é nosso às

nossas Letras, se bem que tenha validade imitativa e o “cunho nacional”, assunto de que se

ocupa boa parte de sua obra.

A realidade na ótica alencariana é de segundo grau. Da precária fusão entre a

realidade européia e matéria local resulta o engraçado e incompreensível. O defeito formal da

mesma forma que os elementos que são seus ingredientes é a desgraça do primeiro.

Em abstrato seria o seguinte: se o efeito desencontrado é um dado inicial e previsto da construção, deveria dimensionar e qualificar os elementos que o produzem, além de lhes redefinir as relações. Deveria relativizar a pretensão enfática do temário europeu, retirar ao temário localista a inocência da marginalidade, e dar sentido ao cálculo e cômico aos

105

desníveis narrativos, que assinalam o desencontro dos postulados reunidos no livro. 126

Na narrativa, a saída do percalço seria modificar o efeito de arquitetura fraturada

por transformações substanciais da matéria escrita.

A força do impasse formal é o resultado da inclusão acrítica de uma combinação,

no plano das idéias, normal no minúsculo Brasil da Corte Fluminense do século XIX: a

literatura moderna é submetida à realista através da repetição das ideologias, as quais

caracteriza a vida nacional. Pode-se dizer que é um efeito consciente e aceito, uma forma de

relativizar o convívio. Em nossas Letras, as ideologias européias têm um quê de

impropriedade entre nós, nossa matéria só obtém densidade significativa no plano dos

conteúdos quando abdicamos a forma européia de que estávamos revestidos. Neste sentido,

precisaríamos encontrar uma forma específica e apropriada para nossa matéria local.

Precisaríamos encontrar a matéria-prima necessária, sem que, esta fosse degradada de um

universo formal, ou seja, para lapidar um romance verdadeiro é preciso que sua matéria seja

verdadeira.

O resultado desta operação é o seu caráter mimético. No entanto, Senhora,

ultrapassa anos-luz pela exigência lógica do mimetismo histórico quando trago à luz a rede

intrínseca que o molda. O espaço fluminense visto como critério nacionalista e imitativo

transporta a matéria literária para um espaço transatlântico sem a menor dúvida. Destarte, o

romance só atinge ares de originalidade sem a interferência externa e que se ajuste com

regularidade à marca de nosso nascente sistema capitalista O cunho nacionalista autêntico

revela o tamanho de nossa sociedade e dá uma visão não diminuída de nossa burguesia que

tanto nos marcou e que ainda nos marca. O defeito mais evidente em Senhora a que se refere

Schwarz é seu epílogo açucarado: se o final fosse diferente o livro não seria melhor, o

desfecho não é de origem da nossa literatura brasileira.

Porém, crendo que a melhor contribuição de Alencar a formação de nosso

romance está nos pontos fortes se analisado de forma isolada. Quanto ao assunto, a compra

de um marido se molda ao enredo, como também reflete no sistema metafórico da obra. Em

Senhora, Alencar toca mais diretamente na questão da consciência individual em face do

dinheiro. “E as próprias imagens do estilo manifestam a mineralização da personalidade,

tocada pela desumanização capitalista, até que a dialética romântica do amor recupere a sua

126 Idem, pp. 72-73.

106

normalidade convencional. No conjunto, como no pormenor e cada parte, os mesmos

princípios estruturais enformam a matéria”127. É a tentativa alencariana de expor o

pensamento da sociedade burguesa: a contradição entre obter a riqueza e a de preservar as

disponibilidades para a vida do espírito. A venda da alma ao Diabo, nos mitos medievais

como instrumento de alienação da consciência, dá lugar à prostituição da inteligência ou do

sentimento. É uma forma de remediar tudo com fins de carreirismo político em uns casos,

casamento com herdeira rica, em outros.

Aurélia considera o mundo que a cerca sob a ocularidade do capital intuitizando,

assim, pagar as humilhações pela ‘leia de Talião’. Sente na pele a mesma pena quando é

exposta aos mesmos óculos, sofre todas a sorte de desconforto: “lividez marmórea”, “os

lábios congelados”, “as faces jaspeadas”, etc. Efeitos colaterais da dialética moral do dinheiro

e do mal que faz às pessoas, em especial, àquelas burguesas que enfeitavam os salões do

século XIX. Desta forma, o dinheiro recalca os sentimentos naturais, o desprezo e a recusa

formam um todo erotizado confrontando-se com a vida tradicional. Visto sob este prisma, o

dinheiro é destruidor porque separa a sensualidade da vida familiar.

A formalidade com que Alencar desenvolve o assunto em seu romance em vez de

suprimir fortalece a dualidade analisada e coloca no centro da tessitura de Senhora a

coisificação burguesa das relações sociais. A mulher e o homem se defrontam em um plano

de igualdade – uma das ideologias da revolução burguesa – e dotados da mesma capacidade

de amadurecimento interior. Enfim, mesmo discordando, com alguns aspectos apresentados

por Schwarz, acredito ser Senhora um excelente estudo psicológico para a compreensão do

pensamento da burguesia carioca do século XIX. Quanto à crítica virulenta de Schwarz,

penso, ser de natureza um tanto quanto narcisista e, que deixou de observar um elemento

importante na tessitura de Senhora: a questão da intertextualidade. Ora, sabendo-se que um

texto pode ser subvertido por diferentes maneiras na tarefa de reconstrução, há de crer-se que

o senhor Roberto Schwarz, preocupado sobremaneira com a questão da forma e do assunto

do livro tenha dado um passo em falso ao desconsiderar as relações intertextuais e dado a

entender de maneira explícita que Alencar é um autor de valor secundário. Certamente, para o

crítico não será de fato escritor de cabeceira,nem para absorver uma vocação do leitor. Se

Alencar estivesse vivo agora com certeza o execraria, mas como não está eu o advogarei

defendendo o exemplar mais perfeito da prosa poética da ficção brasileira: Iracema.

127 Idem, p. 78.

107

No mesmo estudo em que critica Senhora, Schwarz cita em uma grande nota de

rodapé considerações a respeito de Iracema, objeto de minha tese. Dentre outras, afirma que

o retrato informativo e propagandístico de Iracema é inverossímil à realidade e à elite

brasileiras, ora moldada por insurgências do espírito de um mundo cujo progresso ditava as

regras do pensamento de nova civilização. Isto é: enquanto matéria de paisagem Iracema

denota nosso patriotismo já que uma literatura afinada com a modernidade exigia a

consagração e nossa terra, que por outro lado, muitos acreditavam rude. Entretanto, os nomes

dos índios, o ufanismo, os acidentes geográficos, nostalgia e cartão-postal soam como veio

humorístico. É a “mentirada gentil” de que trataram nossos primeiros Modernistas, entre eles

Mário de Andrade.

Seja como for, minha intenção ao enfocar Iracema não é fazer uma leitura sob a

ótica schwarziana, tecendo considerações obre a influência interna e externa (matéria local e

a importada) na configuração da obra, ao contrário, para mim, são assuntos secundários. Meu

intuito é revelar o Alencar estudioso das leis do coração, que soube transportar em seu texto

indianista para as terras brasílicas a mesma visão vertiginosa do amor movido pela paixão

violenta, arrebatadora, de que se nutre Tristão e Isolda, e redimensionar o mito do amor

impossível ao inseri-lo em um contexto brasileiro, e sobretudo, em uma narrativa onde os

protagonistas não residem mais em castelos aristocráticos, local onde se desenvolve toda a

mise-en-scène retórica do amor-cortês: o som puro das harpas é substituído pelo canto dos

pássaros, pelo canto da jandaia que orquestra o canto afinado com Iracema. Os palácios

luxuosos dão lugar à exuberante flora brasileira, revestida com a verdura de nossas matas; os

bosques onde se dão os encontros e desencontros entre o casal Tristão e Isolda é substituído

pelo bosque consagrado à sacerdotisa de Tupã; o suco-filtro-engano para saciar a sede do par

romântico em Tristão e Isolda toma a forma em Iracema de um ritual sagrado, crença

fossilizada do tipo indígena de que entorpecidos pelo fel do licor mágico (elemento que

promoverá a fuga da realidade) entrariam em contato com entidades antepassadas e

sobrenaturais segundo a ritualística antropológica de nossos ascendentes indígenas.

Nenhum texto se produz no vazio ou se origina do nada, sustenta-se de outros. O

conhecimento das relações entre os textos é um poderoso recurso de produção e apreensão

dos significados, formas e conteúdos. Ao elaborar Iracema, Alencar, recorre ao texto da

idade Média com o intuito de uma reflexão, a releitura entre outras coisas. Bom, partindo-se

do pressuposto teórico de que ocorre intertextualidade quando há relações de um texto com

108

outros textos previamente existentes ou produzidos, a crítica schwarziana também se faz

intertextual pois se alimenta dos ingredientes do modelo original para tecer seu ponto de vista

em relação à Iracema e à suas inverossimilhanças. O tema do amor-cortês da lírica medieval

se reencontra em Iracema, adquirindo peculiaridades intrínsecas. Esquadrinhando Iracema

observa-se que se fala do mesmo amor impossível de Tristão e Isolda; fala-se do mesmo

sentimento que aproxima dois amantes movidos pelo mesmo desejo de completude no terreno

das relações amorosas: o objeto amado é atingível pela proximidade física, mas inatingível no

plano da realização devido às forças das circunstâncias que estruturam o enredo. Há a mesma

submissão, o mesmo final decoroso, mesmo final trágico.

Assim, não criticaremos Iracema pelos defeitos mil apontados por Schwarz, mas

pelo trabalho de reconstrução que Alencar deu ao original, das distorções, das transferências

caracterológicas da relação entre o texto medievo e seu precursor. Até diria que a retórica da

influência substitui a teoria da imaginação e a mentira substitui o mito como princípio

estrutural demarcando o espaço literário brasileiro em um horizonte de sobre determinação.

Diz ainda o sr. Roberto Schwarz que Alencar era um plagiador e isto, no seu

modo de ver, constituía, por extensão, uma espécie de excesso e que a tinta de sua palheta

dispunha, por certo, de tinta em abundância para este fim. Eu, em particular, ao contrário,

creio que Alencar era um homem de todos os excessos e possuidor de uma palheta

riquíssima. Foi um exímio intelectual que galgou o difícil caminho para tornar-se o autor de

maior expressividade da época romântica. Sua vasta produção literária o fez adquirir o

respeito e a consideração de seus contemporâneos, tornou-se às duras penas – mesmo diante

da crítica temporal – intelectualmente bem comportado.

A tessitura de Iracema prova esta tese. Nas primeiras linhas que abre o romance

percebe-se muita inteligência para tirar o fio da meada para dar vida ao maior romance da

prosa poética indianista brasileira de que se tem notícia no período, sem contudo cair em um

pedantismo vulgar. A linguagem em Iracema deixa transparecer o ajuste de sua

personalidade escolhida para vencer. Tal qual um Bilac, limpa, corta, lima e alteia sem visar

ao menor pretexto a alusões maliciosas. Em nenhum momento o escritor nordestino deixa de

transparecer sua imarcescível erudição e não é difícil perceber seu desejo intrínseco de

brilhar.

Nota-se em Iracema um esforço artesanal de artista desejoso de dar à sua

expressão a maior justeza, de expressar exatamente aquilo que quer e em vista de um

109

determinado propósito. Assim, diferentemente do que muitos pensam a seu respeito, há na

sua obra a presença de um profissional apaixonado pela sua profissão. Em O Guarani – fruto

de suas primeiras imprecações indianistas – já se revela o grande Alencar e dá mostras de

como sua empreitada na vertente indianista caminha a passos longos em busca de uma

independência e reconhecimento ( o que consegui com a publicação de O Guarani )

estilístico. Em Iracema, há o aprimoramento ainda maior destas tendências de bom escritor.

Na Lenda do Ceará fica, sempre que lida uma segunda vez, o essencial exposto com mais

força, mais caráter e, sobretudo, mais elegância. Ademais, este romance de Alencar serviu de

argumento para uma resenha crítica de Machado de Assis em “Crônicas Escolhidas” (s/d.).

Em uma das mais belas críticas da época o escritor carioca e membro fundador da Academia

Brasileira de Letras dá mostras de per si que a performance alencariana foi altissonante.

Se Machado de Assis elogiou o Alencar indianista, cumpre-nos a modéstia de

não darmos muita importância à crítica moderna compenetrada na sua argüição no complexo

e problemático assunto referente à falta de mimese e à importação do romance em Alencar.

2 - Antônio Cândido: “Os Três Alencares”

Para Antônio Cândido, de um modo geral, a função da literatura está ligada à

complexidade de sua natureza, que explica inclusive o seu papel contraditório (talvez

humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces:

ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; ela é uma forma de

expressão, isto é, manifesta emoções e visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; ela é

uma forma de conhecimento, inclusive, como incorporação difusa e inconsciente. Vejamos

como Antônio Cândido em Os três Alencares encara o projeto e a trajetória alencariana.

Segundo o crítico, o desejo de escrever romances veio por duas etapas a José de

Alencar: por influência de escritores franceses desejou escrever um livro que fosse um

“poema da vida real”; viajando pelo Ceará sente “o impulso de cantar sua terra natal”. Toda a

sua obra será variação e enriquecimento de duas posições iniciais: “a complication

sentimentale, tenuamente esboçada em Cinco Minutos e A Viuvinha, e a idealização heróica

d’O Guarani”128 (este último me serviu como ponto de partida para escrever minha

128 CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Paulus, 1994, p. 221.

110

Dissertação de Mestrado Sob o signo do amor cortês: a poesia lírica trovadoresca e O

Guarani, de José de Alencar). Para Antônio Cândido a trajetória alencariana denota

capacidade de fabulação e segurança narrativa que até hoje nos prendem.“Basta, com efeito

atentar para a sua glória junto aos leitores – certamente a mais sólida de nossa literatura –

para nos certificarmos de que há, pelo menos, dois Alencares em que se desdobrou nesses

noventa anos de admiração: o Alencar dos rapazes, heróico, altissonante; o Alencar das

mocinhas, gracioso, às vezes pelintra, outras, quase trágico”129. Bem adverso é o 3º Alencar –

criador de mulheres cândidas e de moços impecavelmente bons, que dançam aos olhos do

leitor uma branda quadrilha, ao compasso do dever e da consciência, mais fortes do que a

paixão.

A produção alencariana significa nas nossas letras, em nosso Romantismo, o

advento do herói que a poesia não conseguira criar na epopéia neoclássica. “Esta força de

Alencar – o único escritor de nossa literatura a criar um mito heróico, o de Peri – tornou-se

suspeito ao gosto do nosso século. Não será de fato escritor para a cabeceira, nem para

absorver uma vocação de leitor; mas não aceitar este seu lado épico, não ter vibrado com ele,

é prova de imaginação pedestre ou ressentimento de tudo o que em nós, mesmo adultos,

permanece verde e flexível”130. Antônio Cândido rebate a crítica e afirma que Alencar fixou

um dos mais caros modelos da sensibilidade brasileira: o do índio ideal, o que dá a um país

de mestiços o álibi duma raça heróica, e a uma nação de história curta, a profundidade do

tempo lendário: é a aspiração de heroísmo e o desejo eterno de submeter a realidade ao ideal;

uma vez embalado, o sonho voa célere sem dar satisfações à vida, a que se prende pelo fio

tênue, embora necessário, da verossimilhança literária131.

Mais importante do que os ambientes são as relações humanas que estuda em

função deles. Em Alencar “o movimento narrativo ganha força graças aos problemas de

desnivelamento nas posições sociais, que vão afetar a própria afetividade das

129 Idem, p. 222. 130 Idem, p. 224. 131 Quanto ao aspecto da verossimilhança convém ler, Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz. Neste livro de crítica à Senhora, o ensaísta critica veementemente José de Alencar por considerar que ele não se preocupou muito com a verossimilhança dos lances impossíveis de heroísmo, ou com o adocicado dos discursores de amor e de salão. Para ele, há, na trama de José de Alencar uma influência de caráter balzaquiano, uma mancha confusa, um quadro de incoerência que torna a trama (dentro de um Brasil patriarcal) inverossímil com a “realidade local”. Sem dúvida, para Schwarz, aquele desejo de refinada elegância mundana, que a presença da mulher burguesa condiciona no romance “de salão” do século XIX, trata-se de matéria importada e não condiz com o cenário brasileiro oitocentista.

111

personagens”132. Na visão de Antônio Cândido, a produção alencariana dentro da sociedade

brasileira aparece como campo de concorrência pela felicidade e o bem-estar. A capacidade

de observação levou o romancista a discernir o conflito da condição econômica e social com

a virtude das leis da paixão. Assim, atenuou o mais possível as conseqüências do conflito.

“Esta diferença de condições sociais é uma das molas da ficção de Alencar, correspondendo,

no terreno psicológico, uma diferença de disposições e comportamentos, que é a essência de

seu processo narrativo”133. Em sua narrativa Alencar parece mais senhor das suas

capacidades criadoras nas situações mais dramaticamente contraditórias. A este desnível de

situação vem juntar-se outro: o presente e o passado como elementos condutores da narrativa

e critério de revelação psicológica dos personagens. Em termos da presente análise, a

produção de José de Alencar reduz a uma dialética do passado e do presente cujo desfecho,

em alguns romances como Lucíola, por exemplo, é a redenção final.

Ao passarmos os olhos nos vinte e um romances de José de Alencar

verificaremos a desarmonia, o contraste de uma situação, duma pessoa, ou dum sentimento

normal e tido por isso como bom, com uma situação, pessoa ou sentimento discordante. Por

exemplo: perversidade de Loredano dinamiza o enredo de O Guarani: sem ele não haveria

drama. Em Senhora, a compra do ex-noivo é psicologicamente um profundo recurso de

análise. A forma refinada desse sentimento da discordância é certa preocupação com o desvio

fisiológico ou psíquico, o que dá músculo e relevo à narrativa. Percebe-se em Alencar a

percepção complexa do mal, do anormal ou do recalque, como obstáculo à perfeição e como

elemento na conduta humana. Em síntese: a narrativa revela ora um mundo em que o homem

deseja um lugar de paz, prazer e felicidade, ora mostra um mundo abominado e repelido pelo

desejo do homem, um lugar de cativeiro, dor e confusão.

Porém a força do romancista José de Alencar é vasta e ampla e a sua galeria de

tipos pode ser subdividida em três classes: “os inteiriços, os rotativos e os simultâneos”.

Podemos ver os inteiriços das figuras de D. Antonio de Mariz e Peri, de O Guarani; os

rotativos (que passam do bem para o mal) João Fera, de Til e Diva, de feia e meiga a bonita e

má. Os simultâneos podem ser muito bem representados por Fernando Seixas de Senhora e

Guida, de Sonhos d’ouro. “Por entender-se da poesia ao realismo quotidiano, e da visão

heróica a observação da realidade, a sua obra tem a amplitude que tem, fazendo dele o nosso

132 CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira, p. 226. 133 Idem, p. 228.

112

pequeno Balzac”134. A força de Alencar fica provada por ainda estimarmos os seus livros

apesar de certa carga de "açucaramento" que perpetua até os dias de hoje. Os seus diálogos

denotam a tendência para a idealização. Muitas peripécias em suas tramas notadamente de

caráter balzaquiano revelam ter poucas raízes na realidade e como afirma Antônio Candido

parece uma espécie de convenção literária calcada nas crônicas sociais do tempo.

O trabalho de visualização artística de José de Alencar compõe uma atmosfera

de cores, formas e brilhos para celebrar a poesia americana. A poesia e a verdade da sua

linguagem permitiram-lhe adaptar-se a uma longa escala de assuntos e ambientes, do mato ao

salão elegante, da desenfreada peripécia ao refinamento da análise. Assim, como bem

assevera Antônio Cândido ao final da análise de Os três Alencares:

A sua arte literária é, portanto, mais consciente e bem armada do que suporíamos à primeira vista. Parecendo um escritor de conjuntos, de largos traços atirados com certa desordem, a leitura mais discriminada de sua obra revela, pelo contrário, que o desenvoltura aparente recobre um trabalho esclarecido dos detalhes, e a sua inspiração, longe de confirmar-se soberana, é contrabalançada de boa reflexão crítica135

Por outro lado, Franklin Távora136 (na polêmica oitocentista a textos teóricos

alencarianos) acusava Alencar de excesso de idealismo, de imagens137, e pouco conhecimento

empírico da realidade que retratava. Segundo Antônio Cândido, esta polêmica teve

importância, na época, por dois motivos. Primeiro, porque as observações de Távora seriam a

primeiro sinal, no Brasil, de apelo ao sentido documentário das obras que abordam o

presente. Segundo, porque o fato teria motivado Alencar a escrever, no prefácio de Sonhos

d’Ouro uma importante reflexão sobre sua obra. Nesse texto, o romancista argumenta que o

retrato das condições locais não é a única via para uma literatura nacional e reconhece a

134 Idem, p. 232. 135 Idem, p. 235. 136 PINTO, Maria Cecília de Moraes. A Vida Selvagem. “A publicação d’A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves Dias, em 1856, deu lugar ao movimento polêmico mais importante de nosso Romantismo, geralmente tão acomodado e sem bulha. O poema fora impresso à custa do Imperador, como obra suprema de um poeta que representava por assim dizer a literatura nacional; talvez em parte por causa disso, José de Alencar desceu à arena, aproveitando para manifestar a sus concepção de literatura e a sua posição em face das correntes nacionalistas”. Formação da literatura brasileira, p. 362. 137 A crítica sempre censurou, em Alencar, as demasias da imagem. Mas há imagens e imagens. Como definir uma palavra tão vaga que, segundo Bruneau, convém ao estilos dos “modernos”, ou seja, dos autores posteriores a 1830? Para Lausberg, a imagem é a representação dos objetos no espírito, na alma e designa de modo específico a metáfora e a similitude. Outra, em se tratando de Alencar, o termo refere-se, sobretudo a comparações. Não que as metáforas estejam ausentes dos textos indianistas, mas seguramente não constituem, no caso, um de seus núcleos elementares. São Paulo: ANNABLUME Editora, 1995, pp. 148-149.

113

investigação social, psicológica e dos costumes contemporâneos como tarefa primordial do

romancista.

Franklin Távora critica José de Alencar por não ter cumprido um programa que

não propusera, de não estar à altura da realidade que pinta, por falta de vigor e de informação.

Vê em Iracema erros históricos, fantasias sintáticas, impropriedades etnográficas, negando ao

autor o direito à imaginação: o estilo não é nacional (como também o afirma Roberto

Schwarz ao analisar Senhora), não corresponde ao espírito de uma literatura brasileira.

Provavelmente, “tais ataques tenham feito Alencar a refletir sobre o sentido da própria obra e

tentar uma espécie de justificativa, que não restringisse o seu valor nacional aos livros

nacionalistas”138. Quanto às fantasias sintáticas de que fala Franklin Távora, veja-se como

Afrânio Coutinho advoga em favor de José de Alencar:

Alencar, na linha do nacionalismo lingüístico de base lexical, não pretende defender um nacionalismo lingüístico de base estrutural. Assim procede, não porque não tenha potencial para isso, mas porque, condicionado naturalmente pelos fatores de ordem literária, quer também uma língua portuguesa com estilo brasileiro. Não tinha consciência de que, historicamente, a existência de uma língua tinha de ser manifestação formal de uma gramática.139

Antônio Cândido termina por afirmar que José de Alencar “não escreveu mais

do que dois ou três romances, ou melhor, nada mais fez, nos vinte e um publicados, do que

retomar alguns temas básicos, que experimentou e enriqueceu, com admirável consciência

estética, a partir do compromisso com a fama, assumido em - O Guarani.

3 - Alfredo Bosi: “Dialética da colonização”

Se procurarmos uma crítica viva, empenhando a personalidade de José de Alencar

e revelando sua preocupação literária mais exigente no tocante ao “indianismo”, só a

encontraremos em alguns críticos da Modernidade com o calibre de Alfredo Bosi. José de

Alencar, embora apaixonado pelo nacionalismo literário não lhe faltou outros rumos da vasta

produção para análise minuciosa e senso de valores da ficção: estrutura, enredo, diálogo e

linguagem. Pode-se dizer que a eficácia de José de Alencar está ligada à sua complexidade

138 Idem, p. 367. 139 COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil:Introdução Geral. 2ª Edição. Ed. Brasil. Editorial Sul-Americana, 1968, p. 348.

114

interior, vivida como aceitação dos contrastes que a animam. Para a história literária interessa

compreender a participação de José de Alencar no movimento romântico da literatura

brasileira para compreender-lhe a teoria literária e o desenvolvimento de sua obra – mais

especificamente a produção indianista de que fala Alfredo Bosi em Dialética da colonização.

Para o crítico:

Sondar uma possível gênese dos modos que assumiu entre nós o nativismo romântico decerto concorre para entender as formas opostas de tratar o destino das populações conquistadas. E junto com a perspectiva ideológica, fruindo embora de um apreciável grau de liberdade poética, vão-se traçando os respectivos esquemas de representação. O poético supera (conservando) o ideológico, não o suprime. 140

Para Bosi a imaginação histórica edifica mitos que ajuda a compreender mais o

presente do que o passado a que eles se referem. O indianismo brasileiro afina-se pelo

diapasão europeu da romantização das origens nacionais: é o retorno ao passado histórico.

No caso brasileiro, um dos veios de nosso romantismo, também se mostrou receoso de qualquer tipo de mudança social, parecendo esgotar os seus sentimentos de rebeldia ao jugo colonial nas comoções políticas de independência.141

Em termos de uma literatura em busca de compleição idealizadora a figura do

índio como bon sauvage acabou compondo, segundo Alfredo Bosi, o nosso imaginário mais

conservador. Cumpre observar que este imaginário conservador custou caro a José de

Alencar, pois ele desceu à arena, aproveitando para manifestar a sua concepção de literatura e

a sua posição em face das correntes nacionalistas (sua briga com o Imperador, Gonçalves de

Magalhães e críticos da época são exemplos do preço caro que pagara pela linha de trabalho

assumido em sua carreira literária).

A crítica oitocentista acreditava dogmaticamente que o índio deveria ocupar no

imaginário pós-colonial o lugar que lhe conferia: o papel de rebelde. Todavia, isto não se

passou na ficção alencariana mais significativa. O índio de Alencar entra em comunhão com

o colonizador, diferentemente do nativo por excelência em face do invasor português como

reza a cartilha da colonização brasileira. Peri é vassalo fiel de dom Antônio de Mariz, recebe

140 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. 2ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1993a. p. 185. 141 Idem, p. 176.

115

o batismo católico com a mudança do nome (a conversão acompanhada de mudança de

nome, ocorre com o índio Poti, de Iracema, como Antônio Felipe Camarão), é servo

fidelíssimo de Ceci a quem livra da morte certeira na batalha contra os aimorés. Assim, em O

Guarani, vê-se o indianismo em escala mais moderada, misturando heroísmo,

sentimentalismo e realidade histórica. Contudo, segundo Alfredo Bosi, José de Alencar se

contradiz no trabalho de idealização dos índios inimigos de dom Antônio de Mariz,

classificando-os “pelos epítetos de bárbaros, horrendos, satânicos, carniceiros, sinistros,

sedentos de vingança, ferozes, diabólicos.”142

Em O Guarani e em Iracema, os índios se entregam aos brancos

incondicionalmente, implicando sacrifício e abandono à tribo de origem: uma partida sem

retorno. “O risco de sofrimento e de morte é aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação,

como se a sua atitude devota para com o branco representasse o cumprimento de um destino,

que Alencar apresenta em termos heróicos e idílicos”143. Nestes romances – aliás fundadores

do romance nacional – a figura do índio surge como belo, forte e livre em contradição com a

figura do índio real – o subjugado pelo colonizador branco durante o processo de

colonização. Isto não impede que a linguagem narrativa alencariana acione, em altos vôos, a

tecla da poesia – o que é fato tão comum na tarefa de criação literária: a beleza da prosa lírica

aciona passos mais altos do que a representação do dado empírico que a crônica realista

busca.

O mito se faz aquém e além da cadeia narrativa verossímil. Aquém: não requer

teste de verificação; além, o valor de um texto mítico transcende o seu horizonte factual. Sob

o ponto de vista literário, o mito produzido segundo uma semântica analógica representa uma

expressão romanesca, uma imagem poética. Neste sentido, José de Alencar submete os pólos

nativo-invasor a um tratamento antidialético pelo qual se neutralizam as oposições reais, de

forma que o indianismo não constitui um universo próprio. O valor que José de Alencar dá ao

índio, a beleza, o heroísmo e a naturalidade não conferem com o processo colonizador. A

crítica da época o acusou de criador de um selvagem falso. “Augusto Meyer, em um estudo

que dedicou a Alencar, tudo remete ao conceito de tenuidade brasileira para dar conta desses

e de outros singulares descompassos de nossa cultura romântica”144.

142 Idem, p. 178. 143 Idem, p. 179. 144 Idem, p. 181.

116

“O quadro de um Brasil-Colônia criado à imagem e semelhança da comunidade

feudal européia parece quase em estado puro no Guarani de Alencar”145. No romance a

natureza brasileira é posta em serviço do nobre conquistador: o lusitano. O princípio que tudo

rege é o que faz a natureza subordinar-se a comunidade fidalga, à nobreza. A dissociação

entre sociedade feudal e ambiente primitivo, na obra, é a única fonte de tensão capaz de gerar

um dissídio no interior da obra. Uma marca do indianismo alencariano n’O Guarani, é a

inclusão do selvagem na esfera de nobreza na qual cabe o sentimento de devoção absoluta.

Para Alfredo Bosi, tal sistema de relações sociais não reproduz com fidelidade o índio

subjugado pelo europeu colonizador: o uso e os costumes do mercenário não podem ser os do

castelão (não enlaça o nobre indígena). Como bem assinala Alfredo Bosi (1992: p. 193) ao

final de seu ensaio, Dialética da Colonização:

A oscilação de Alencar, proposta no começo destas linhas, entre a sua perspectiva histórica e um romantismo selvagem, pré-social, resolve-se, enfim, pelo segundo pólo, o primitivo natural é ainda mais remoto, mais puro, logo mais romântico que a simples evocação dos tempos antigos.146

4 - Haroldo de Campos: “Uma arqueologia de vanguarda”

Segundo Haroldo de Campos “Em metalinguagem e outras metas: Iracema,

uma arqueologia de vanguarda”, se fizermos uma leitura do espaço romanesco sob um

enfoque dialógico-bakhtiniano reconhecedor da coexistência de fenômenos anacrônicos na

literatura, então, Iracema surgirá como uma opção na série literária não-preexcluída pelo

fatalismo linear-evolutivo da escatologia hegelo-lukacsiana do romance como forma

“agônica”. O poeta reconhece que a produção alencariana foi marcada pela influência da

“escola francesa” de maneira global – assim como tantos outros críticos contemporâneos ou

não. Se não lhe era dado encontrar uma forma brasileira par o romance da “desilusão”

enquanto epopéia burguesa do mundo desprovido de sentido, outro foi o seu caminho: seu

espaço de liberdade abriu-se seguindo a linha de menor resistência do ideológico.

Alfredo Bosi em A Dialética da Colonização fala da dicotomia entre o ideológico

e a liberdade de expressão para relativizar o projeto de José de Alencar e argumenta que a

crítica oitocentista o acusava de plagiário e criador de uma literatura inverossímil para o 145 Idem, p. 187. 146 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. 2ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1993a., p, 193.

117

Brasil da época, o que lhe permitiu exercer sua factividade romanesca: “O recuo

arqueográfico para a pré-história do romance burguês, para aquém da épica, para o fundo

ritual do mito e da lenda, a pré-história folclórica do romanesco, UR-EPOS”147. Nesta volta

imaginária às origens havia um conteúdo concreto: o problema de fundar uma língua literária

nacional. A criação de uma nova forma de expressão representava para José de Alencar a

liberdade – o espírito de liberdade em confronto dom o purismo vernacular português.

Esta iniciativa, para Haroldo de Campos, lhe custou pesadas críticas na época

principalmente de Pinheiro Chagas que encarava a produção indianista alencariana como uma

“revolução-filológica” irresistível e fatal. Assim, o posicionamento de José de Alencar era

uma reivindicação de liberdade de invenção; o escritor cearense recusava-se a ver na

gramática lusa um cânon imutável – a que o romancista deveria se submeter rigorosamente.

De sorte que José de Alencar defendia o processo de transformação das línguas por que

passaram todas elas sob a ação dos poetas e prosadores: defendia o caldeamento polilíngue

como forma de vivificação do português do Brasil. Para José de Alencar o estrangeiro

(referindo-se à influência da cultura não-local) é um veículo de novas idéias e um elemento

da civilização nacional.

No tocante ao hibridismo e à operação tradutora, Haroldo de Campos interpreta

Bakhtin dizendo que assim como a prosa romanesca européia deu-se através de um processo

de tradução livre (transformação das obras de outrem pelo dialogismo-polifônico), nos novos

tempos, a floração do romance também está sujeito à decomposição dos sistemas verbais,

ideológicos e estáveis. Iracema articula-se para a pré-história do epos como um mito de

origem e no plano do significado (quanto à forma de expressão e conteúdo) se deixa

atravessar de polifonismo, na acepção bakhtiniana. “a intervenção da linguagem ‘em estado

selvagem’ apresentada como programa para uma tomada de consciência crítica do fazer

poético brasileiro, rompe o estatuto do “monologismo épico’148. Nesse plano, José de

Alencar encarava com estranheza o português canônico da ex-metrópole. Foi um defensor da

língua tupi encarando-a como em estado de primeiridade icônica autoral. Sob o ponto de vista

semiótico, no tocante à questão da primeiridade, Santaella , diz que:

O sentimento como qualidade é, portanto, aquilo que dá sabor, tom, matiz à nossa consciência imediata, mas é também paradoxalmente justo aquilo que

147 In: http:://www.usp.br/revistausp/n5/fharoldotexto.html, p. 2. 148 Idem, p. 5.

118

se oculta ao nosso pensamento, porque para pensar precisamos no deslocar no tempo, deslocamento que nos coloca fora do sentimento mesmo que tentamos capturar. A consciência na sua imediaticidade, é tão tenra que não podemos sequer tocá-la sem estragá-la.149

Para Alencar, no universo da consciência, o romancista deve traduzir em sua

língua as idéias dos índios, pois o conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a

nacionalidade da literatura. Assim seu tupi resultou de uma enxertia heteroglóssica do

português: seu indianismo representou, para nós, o “poema ossiânico” que nos faltava a

iniciar em decorrência da repressividade da cultura colonizadora.

Da metáfora fônica ao estilo de períodos destacados José de Alencar, ao inventar

o tupi, encontrou na sua prosódia não só a sonoridade vocálica, mas também a língua plástica

e sensorial. Este trabalho fônico correspondia à idéia do “estilo” como “arte plástica”. “É a

defesa da escritura assindética, principio da sublevação da paratáxis contra a hipotáxis, no

plano de informação estética, que começa a esboçar-se com o Alencar tupinista”150. Na

concepção de Haroldo de Campos, José de Alencar joga com as palavras indígenas, seus

valores sonoros e seu conteúdo metafórico como forma de eufonia de expressividade. Neste

sentido dá-nos a entender que para José de Alencar a literatura pode ser encarada como

permanente diálogo intertextual onde o problema da originalidade não se reduz à mera

resenha passiva das fontes e influências. Assim a forma semiótica do tupi levaria José de

Alencar à transgressão hibridizante do português canônico de forma que a tarefa do poeta

prosador é tornar este discurso já povoado pelas intenções sociais de outrem, o elemento

primordial de seu fazer, obrigando-o a servir a suas novas intenções.

Neste sentido, romancizar pelo tupinismo a língua portuguesa do Brasil não

significa subjugar para impor um cânone estranho aos dominados, pois o próprio romance

está privado deste cânone: trata-se, na verdade, de liberá-lo de tudo o que é convencional e

amorfo impedindo sua evolução na história literária. Daí a influência do romance na releitura

do processo evolutivo da própria literatura como objeto e instrumento de representação.

149 SANTAELLA, Lúcia. Texto: Palavras de Crítica. Tendências no Estudo de Literatura (org. José Luis Jobim) São Paulo: 1992, pp, 57-58. 150 Idem, p. 8.

119

Quarto Capítulo

1- Iracema: apresentação geral

O amor é a necessidade de um ser, que faz com que prefiramos tudo suportar a renunciar a ver-lhe o rosto, ouvir-lhe a voz e tocar-lhe a mão.

(André Maurois) Como foi dito na introdução, este estudo é a complementação da pesquisa que

comecei a empreender na minha Dissertação de Mestrado nos idos da década passada. Temos

agora, nesta segunda fase, por objetivo, a observação e investigação cautelosa das relações de

vassalagem amorosa entre a heroína e o herói, diferindo, portanto, quanto ao aspecto da

tematização do que foi abordado na parte primeira desses estudos. Lá, era o homem que

rendia a vassalagem à mulher suposta e ardentemente amada; aqui, ocorre o contrário: é a

mulher que se transforma em ‘vassala amorosa’ da figura masculina, é Iracema que presta o

preito amoroso a Martim, seu par romântico em quase todos os momentos da narrativa. Digo

‘quase’ porque em determinadas situações, quando analisamos detidamente as peripécias ou

desdobramentos da história, há uma nítida inversão de papéis (e para fins de análises

intertextuais também estudaremos essa outra face), contudo isso não constitui a regra e sim a

exceção.

Para o desenvolvimento deste tema recortaremos fragmentos do episódio poético

Tristão e Isolda para contrastar com Iracema, escrita em uma época de notórias

transformações sociais, políticas e econômicas. No capítulo posterior exporemos com mais

teor isso que vimos falando até aqui, estando de acordo desde já com Laurrent Jenny, que

dentre outras coisas, nos diz:

Só se apreende o sentido e a estrutura duma obra literária se a relacionarmos com os seus arquétipos – por sua vez abstraídos de longa série de textos, de que assim se constituem, por assim dizer, a constante. Esses arquétipos, provenientes de outros “gestos literários”, codificam as formas de uso dessa linguagem secundária que é a literatura. 151

151 JENNY, Laurent. Estratégia da Forma: In: Poétique número 27. Coimbra: Almedina, 1979, p. 5.

120

José de Alencar ao compor Iracema não demonstrou indecisão alguma no tocante

ao fato de se apropriar o máximo possível do processo de exploração do vocabulário indígena

na construção do seu texto indianista, aproveitando todos os recursos dos quais poderia tirar

proveito, tais como a sonorização e seu conteúdo metafórico e simbólico. Em face disso,

procurou, valendo-se do conjunto das relações abstratas que forma um todo integrado e

subjacente, apropriar-se dos elementos sintáticos fundamentais da Língua Portuguesa com

suas eufonias, as formas significativas e as formas resultantes da atuação de elementos ou

situações exteriores sobre os sentidos que esta produz.

Antes de tudo: Iracema não é um poema aonde o amor apareça em episódio, é uma pastoral tupi, como a de Dáfnis, como a de Paulo e Virgínia, como a de Átala, juntando aos ingênuos processos da imaginação meridional todas as acritudes (aspereza, desabrimento) que o talento pode colher na flora e na fauna brasileira. 152

Alencar rompe as cadeias canônicas lusitano-européias e a nova língua se impõe

enriquecendo-se de novas palavras e modos diversos de locução. Sendo a língua instrumento

do espírito não a pode permanecer estacionária. Já que nós adotamos novas idéias e costumes,

mudando nossos hábitos e tendências, seria difícil conservar o modo de dizer e reconhecer de

forma passiva a superioridade do cânon português como veículo de comunicação entre os

povos ‘tidos’ como civilizado em comparação a nós. Desta forma, a língua indígena reduzia

seu caráter de importância, sua superioridade só se fez no mundo diminuto das tribos

remanescentes e interessava apenas à poesia e à História. Fazia-se necessário reverter o

quadro e assumir uma atitude ativa e revolucionariamente corajosa. E assim faz Alencar,

rompendo com o paradigma português. Para Alencar assim como a língua é a nacionalidade

do pensamento, por conseqüência disso, a língua pura, nobre e rica seria o espelho-reflexo de

uma raça inteligente e ilustrada.

A intenção de Alencar foi, em termos literários, traduzir o mais proximamente

possível o espírito da língua dos aborígenes. Segundo Soares Amora – crítico da

Modernidade – o projeto alencariano está mais próximo da estética literária do que da

ciência da linguagem e o que interessa é que o egrégio escritor conseguiu dar vida ao seu

empreendimento e suas intenções poéticas na sua totalização, respondendo, dessa forma, às

suas expectativas de enaltecer o espírito nativista do elemento indígena. Para Haroldo de

152 JÚNIOR, Araripe. Teoria, Crítica e História Literária. Rio de Janeiro: Edusp, 1978, p. 87.

121

Campos153, em “Uma Arqueologia de Vanguarda”, Alencar “conseguiu nesse

empreendimento literário a forma do tupi esteticamente idealizado como língua adâmica, que

o elevaria à transgressão hibridizante do Português canônico”.

Em termos de tessitura ideológico-redacional, a obra Iracema constrói-se sob a

forma de um hibridismo e de uma operação tradutora que revela na sua interioridade o recuo

arqueográfico para a pré-história do romance-burguês. Na visão de Haroldo de campos154,

Alencar “elegendo o “cronótopo” fabular de raiz folclórica, Iracema recua para a pré-história

do epos: articula-se como um “mito de origem”, exposto do ponto de vista estrutural, em

termos de reconto simbólico de aventuras, e matizado de momentos idílico-pastorais”. A

título de informação é bom que se saiba que o mito de origem nacional como o é Iracema,

por exemplo, acontece em literaturas diferentes, sendo apresentado de formas variadas com

valores próprios de seus contextos situacionais. No tocante aos mitos de origem e mitos

cosmogônicos Eliade, afirma:

Toda história mítica que relata a origem de alguma coisa pressupõe e prolonga a cosmogonia. Do ponto de vista da estrutura, os mitos de origem homologam-se ao mito cosmogônico. Sendo a criação do Mundo a criação por excelência, a cosmogonia torna-se modelo exemplar para toda a espécie de criação (...) Todo mito de origem conta e justifica uma “situação nova” – nova no sentido de que não existia desde o início do Mundo. Os mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogônico: eles contam como o mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido.155

Levando-se em consideração que a antropologia interpreta o mito como sendo

capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepção existencial e as relações

que o cerca, Iracema assume uma função mítica de origem porque representa em nossas

letras e na estrutura antropológica do pensamento literário a suplantação de um tabu

histórico: a de que o elemento indígena é bruto por natureza, não lhe cabendo, ao índio,

alternativa a não ser aceitar essa prerrogativa imposta pela classe social dominante na época,

altamente conservadora e discriminatória. Em Iracema, a sugestão mítica é difusa e

significativa: cumprindo o destino que escolheu, a virgem indígena simboliza a Terra, a mãe

arquetípica que retorna ao silêncio, após a floração e eclosão dos frutos primeiros

153 CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem & Outras Metas. 4ª Edição, São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 137. 154 Idem, p. 131. 155 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 5ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 1998, pp. 25-26.

122

Ao incorporar a forma mítica na sua personagem, Alencar, desvencilha-se do

grilhão histórico e implanta definitivamente um novo paradigma de pensamento, transferindo

à heroína o papel fundamental de ruptura a esse dogma da seita histórica. Pode-se dizer, a

partir destas observações iniciais, que o escritor cearense conseguiu através da quebra do

tabu, romper com o tradicional e impôs na figura mítica da heroína Iracema, a realização de

seu grande empreendimento ideológico: dar vida a sua personagem fazendo-lhe ocupar uma

posição de destaque dentro da literatura romântica. Deu-lhe a força que ela necessitava para

se firmar enquanto elemento transformador de uma realidade histórico-dogmática presente há

muito tempo na estrutura da realidade nacional brasileira.

Nesse ponto, Everaldo Rocha156 ao analisar “O Labirinto dos Mitos” define com

muito teor e propriedade isso que vimos falando: “O mito é uma narrativa. É um discurso,

uma fala. É uma forma das sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus

paradoxos, dúvidas e inquietações. Pode ser visto como uma possibilidade de se refletir sobre

a existência, o cosmos, as situações de “estar no mundo” ou as relações sociais”. Explicam e

exprimem na sua contextualização as diversas noções sobre as forças da natureza e sobre as

atitudes dos homens diante dessas forças, nos diferentes períodos de sua vida cultural, social

e econômica.

“Toda história mítica que relata a origem de alguma coisa pressupõe e prolonga a

cosmogonia. Do ponto de vista da estrutura, os mitos de origem homologam-se ao mito

cosmogônico. Sendo a criação do Mundo a criação por excelência, a cosmogonia torna-se o

modelo exemplar para toda espécie de “criação”157. Ora, considerando-se a cosmogonia como

um sistema hipotético de formação do universo, podemos definir a função mítica de Iracema

como a re(criação) de um outro universo (o universo das relações sociais brasileiras)

marcado pela presença, ainda que em termos literários, de mudanças no campo ideológico

e antropológico158, ainda que os historiadores – movidos por um senso autocrático – não

acabem reconhecendo essa verdade, como podemos perceber ao ler os estudos críticos que

eles fizeram a respeito da formação, cultura e modo de vida do elemento indígena. Maria

156 ROCHA, Everaldo. O Labirinto dos Mitos. p. 7. 157 Idem, p. 25. 158 Note bem: esta forma mítica está plenamente de acordo com as ideologias propaladas pela escola romântica no sentido de que o artista da palavra vê na personagem (nesse caso o índio) não um retrato de espelho do que ele é mas sim a imagem idealizada do que ele deveria ser, talvez seja nesse ponto que surja a pugna entre literatos, como é o caso de Alencar e dos historiadores, que contestam essa ultra-idealização, essa deformação que transforma um ser em outro.

123

Cecília de Moraes Pinto em A Vida Selvagem, discorrendo a respeito da vida indígena

relata:

Finalmente, para tornar mais evidente esse caráter complementar do pensamento selvagem, formule-se uma proporção: a palavra exótica está para a linguagem do índio, assim como os cantos, mitos e costumes para a narrativa. Da analogia entre duas relações, chega-se à seguinte conclusão: a linguagem do índio se reduz à medida do autor/narrador, sempre preocupado com um problema moral ou filosófico, e a narrativa se baseia no conflito das personagens que vivem tempestades interiores e se destroem mutuamente em um mundo primitivo. Encantamento do negativo e ilusão do desejo, eis a fórmula que orienta o discurso e a história, mas na qual a cultura selvagem entra como acessório. 159

Sob o ponto de vista literário, importa-nos nesse estudo o fato de que Iracema

representa o mito da índia independente que trocou todos os valores tribais pelo amor de um

homem branco, o qual foi causa de adição e subtração: adição porque foi partícipe no

nascimento de um terceiro elemento étnico brasileiro; subtração, porque Iracema perde sua

identidade e vínculos tribais e acabou pagando caro pela desobediência, o preço foi a morte.

Iracema intui, enquanto símbolo, o fim de sua raça, na previsão da própria morte. Não podia

trair impunemente sua fé, certamente, o castigo acompanharia a transgressão: representante

da raça autóctone devia desaparecer, após o nascimento do primeiro brasileiro – Moacir, o

filho da dor. Sob a vertente antropológica, representa o mito das origens, das sagas e da

epopéia indianista. Como bem assinala Maria Cecília de Moraes pinto em A Vida Selvagem:

Com efeito, definido o mito como uma história sagrada, que aconteceu nos tempos fabulosos do início e admitindo que, na ontologia primitiva, um ato só é real ao imitar ou repetir um arquétipo, a grandeza do selvagem só adquire, em Alencar, seu verdadeiro sentido quando lembra os ancestrais paradigmáticos. Evidentemente o mito, o tempo mítico, está aqui contaminado pela dimensão histórica. Essa ambigüidade nada tem de imprevisível na escritura cuja finalidade era mostrar o branco aderindo à cultura primitiva, mas conservando-se, inevitavelmente, dentro da civilização.160

Mircea Eliade em “A Estrutura dos Mitos” relata que é difícil encontrar uma

definição para o mito e suas funções em todas as sociedades tradicionais e arcaicas por tratar-

159 Eliade, Mircea. Idem, p, 98. 160 Idem, pp. 101-102.

124

se uma realidade cultural extremamente complexa e pelo fato de poder ser abordada por meio

de perspectivas múltiplas e complementares. Tentaremos, assim, dentro destes limites,

formular uma definição do mito em Iracema. Iracema enquadra-se nos moldes do mito de

origem da jovem nação brasileira. Da unificação rácica de duas etnias, o elemento indígena e

o branco europeu, nasce, segundo Alencar, o mameluco, primeira miscigenação ocorrida nas

terras brasílicas para dar origem a uma nova nação: a raça brasileira. Neste mito de origem

alencariano não falta qualidades de idealização para o bugre das terras brasileiras. Este mito

casa-se perfeitamente com a teoria do bom selvagem de Rousseau, pois o índio está inserido

em um meio natural e em perfeito estado de equilíbrio em suas relações com o mundo

exterior. Verifica-se nesse mito de origem o emprego da epifania como processo de

conscientização do narrador-autor. Isto é: há um instante de revelação que desencadeia

dentro de si um fluxo de consciência nacionalista que o faz no seu interior a enxergar,

criticamente, o índio como o sujeito principal, ator principal no cenário brasileiro.

Observa-se no desfecho da lenda uma ambigüidade que se subdivide em

primitivismo nacionalista e transplantação cultural quando se dá o batismo de Martim no

capítulo 20 e o batismo católico de Poti no capítulo 23. Para Alencar a cultura e o Deus do

branco são colocados como superiores aos dos indígenas. A cerimônia de batismo de Martim

é episódica e superficial, não havendo nenhuma transformação básica em Martim, o que não

ocorre com Poti.

Esses átimos de epifania são dilacerantes e dão origem à ruptura de valores, a

questionamentos antropológicos existenciais, permitindo, por conseguinte, a aproximação de

realidades opostas, tais como nascimento e morte, amor e ódio, matar ou morrer por amor,

seduzir e ser seduzido. Iracema reúne todos esses ingredientes na sua configuração, é o

nascimento da jovem nação brasileira que se faz diante de um quadro marcado notadamente

por adversidades e ao mesmo tempo é a perda e a morte dos valores naturais. Cabe aqui

confirmar que o processo de colonização européia contribuiu enormemente para a

desconstrução, a perda de sua identidade e autonomia do elemento indígena.

Enfim, quando se investiga os mitos que envolvem as relações entre os sexos no

mundo Ocidental nos deparamos, quando trago à luz a problemática do amor, casamento e

adultério com o precursor medieval Tristão e Isolda. Tudo está revestido de uma história,

mesmo diante de uma contradição platônica das idéias o amor não pode ser visto como um

sentimento único e universalizante, mudam-se os tempos, mudam-se as formas de amar, isto

125

quer dizer que o espírito moderno já se acostumou com este tipo de análise. A história de

amor e Ocidente transcende a pura realidade ao buscar a gênese de determinados fenômenos

e suas circunvoluções e sinuosidades ao longo das épocas. Rougemont tenta desmistificar o

mito de Tristão. A idéia da inconcretude amorosa interditada pelas leis divinas e humanas, a

idéia de completude após a morte dos amantes deixa em aberto o paradoxo da paixão, a qual

é responsável pelo desvario total e a perda de si mesmo. Rougemont esquivando-se da idéia

de visualizar no mito de Tristão a alegoria fulminante e avassaladora da paixão tenta entender

de maneira lógica os motivos que levam os homens a desejar aquilo que será a causa de sua

própria destruição. Para ele, o amor impossível liga-se aos códigos da fidelidade da sociedade

cavaleiresca a qual transforma o real desejo em sonho idealizado; neste sentido o amor só tem

sentido quando nega a si mesmo por completo.

2 - Alencar sob o signo do amor cortês

Antes de descrevermos a obra Iracema na sua totalidade, para fins

metodológicos segue-se sinopse da narrativa. A obra é dividida em trinta e três capítulos

distribuídos estruturalmente da seguinte forma:

Capítulos:

1º - descrição da costa cearense e apresentação do herói da lenda do Ceará, Martim, 2º - Apresentação da heroína da história, Iracema, a virgem dos lábios de mel e seu encontro com Martim em meio à selva. 3º - Martim é apresentado a Araquém e abrigado em sua tribo como hóspede especial. 4º - Aqui é relatado que Iracema é detentora do segredo de Jurema, isto é, a erva de Tupã. 5º - Martim fica impressionado com a beleza da virgem indígena, ela o leva para o bosque sagrado. O herói é entorpecido e possui Iracema. 6º - Iracema se transforma em vassala amorosa de Martim. 7º - Aqui é apresentado o amigo de Poti. Primeiros indícios da guerra entre as tribos inimigas: tabajaras e pitiguaras. 8º - Iracema deseja que o estrangeiro parta de sua tribo. 9º - Narra-se a partida de Martim sob a proteção de Caubi, irmão de Iracema. 10º - Aqui é descrito a cena em que Martim é surpreendido, na mata, por Irapuã. A heroína salva o guerreiro branco e fortalece seus laços com ele.

126

11º - A cena da vingança de Irapuã. Araquém defende Martim. 12º - Poti intercede com um ardil no socorro e salvação de seu amigo de tribo. 13º - Iracema oferece a bebida de Tupã aos guerreiros tabajaras e facilita a fuga de Martim. 14º - Continuação do ritual de guerra. 15º - momento em que Araquém desconfia do envolvimento de sua filha com o guerreiro branco e, em especial, instante em que a indígena dá a bebida de tupã a Martim e por conseguinte entrega-se a ele. 16º - Cena em que ao guerreiros se entorpecem com o licor sagrado preparado por Iracema e passam a viver os mais altissonantes delírios provenientes de seu efeito devastador. Iracema leva Martim até se irmão Poti. 17ª - Iracema diz a Martim que não pode separar-se dele porque agora é sua esposa e que ela traíra o segredo da jurema. Fogem para as terras dos pitiguaras, onde não se sentem protegidos. Ao amanhecer os tabajaras procuram-nos pelas florestas. 18º - Pitiguaras e Tabajaras se enfrentam. Há um confronto entre Martim e Irapuã, Iracema interfere no combate e abate o chefe dos tabajaras, depois, chora envergonhada, por ver derramado o sangue de seus irmãos. Esta é uma das cenas de maior idealização e glorificação da índia brasileira. 19º - Poti volta da perseguição ao inimigo e fica feliz ao ver Martim, Poti entrega a Martim o cão Japi, para que o acompanhe e mostra a Martim o lugar onde nascera. Os três retornam ao campo dos pitiguaras. 20º - Martim e Iracema estavam nas terras dos pitiguara, a heroína sente-se entristecida por estar pisando nas terras do inimigo do seu povo. Os três partem daquelas terras. 21º - Os três chegam ás margens da praia povoada pela tribo dos pescadores da nação pitiguara e viajam de jangada pelo Mocoripe por três dias Na margem do rio escolhem um lugar e levantam uma cabana. 22º - Poti fala sobre Batuireté, seu avô. Seguiram Poti e Martim até a cabana do velho guerreiro. Ao chegaram lá acham que o velho está dormindo e não o perturbam, porém, Poti toca o velho percebe que ele está morto. 23º - Iracema banha-se feliz na lagoa de Porangaba. Os irmão de tribo foram caçar e quando retornam Iracema conta a Martim que está grávida. 24º - Martim passa por uma cerimônia indígena para tornar-se um guerreiro vermelhe ganha o nome de Coatiabo. 25º - Martim sente saudades de sua pátria. Um guerreiro pitiguara aproxima-se de Poti e diz-lhe que sua tribo está sendo ameaçada pela tribo do guerreiro irapuã. Martim e Poti partem para defender seu povo. 26º - Os dois irmão de tribo saem para guerrear e deixam Iracema sozinha que fica na cabana chorando. A companheira de Iracema, a jandaia, faz-lhe companhia na sua solidão. 27º- Depois de alguns dias ausentes na guerra Martim e Poti retornam, os pitiguaras saem vitoriosos. Mais uma vez Martim passa a sentir saudades de sua terra natal: Poti e Iracema percebem. A heroína chora entristecida. 28º - Há uma discussão entre o par romântico porque Iracema acusa o guerreiro branco de Ter saudades de sua noiva e de sua pátria. Ela lhe diz que morrerá após dar a luz ao filho. Martim a abraça. 29º - Os guaraciabas, inimigos dos pitiguaras, chegam às praias “para a guerra de vingança: eles foram derrotados como os tabajaras...”. Os

127

pitiguaras vencem de novo. Iracema dá luz sozinha a um filho, na beira do rio. 30º - A índia guerreira estava na cabana com seu filho quando recebe a visita amistosa de Caubi, seu irmão. Este contempla o filho de Iracema e deseja esperar por Martim para saber onde está a alegria e o sorriso de Iracema que definha pouco-a-pouco vítima de uma desilusão avassaladora e não tem mais vontade de viver diante da distância do marido. 31º - Caubi parte e deixa Iracema com seu filho. Ela percebe que seu leite secara e mergulha em imensa tristeza e melancolia: é o prenúncio de sua morte. 32º - Martim volta da batalha e a encontra muito fraca, mas ainda com forças suficiente para apresentar-lhe o filho da dor Moacir. O guerreiro branco abraça pela última vez sua amada, em seguida Iracema morre, confirmando dessa forma o que dizia a lenda de tupã. Mais adiante quero argumentar uma possibilidade hipotética sobre o porquê Martim não morre como dizia a lenda... 33º - Martim parte com o filho e o cão Japi. Tempos depois Martim retorna à terra de Iracema e funda o Mairi dos cristão. Como o disse José de Alencar: Tudo passa sobre a terra.

A cena descrita no 32º capítulo é muito curiosa dentro de nossa pesquisa acerca

da intertextualidade: em Tristão e Isolda é a heroína que abraça o herói e em seguida

morre161; em Iracema é o oposto. Nos dois casos as heroínas foram vitimadas pelo infortúnio

de uma bebida tida como mágica. A diferença reside em que Isolda bebera o filtro e a

heroína brasileira não.

Do ponto de vista antropológico, este rito tribal que põe em cena a bebida de

tupã, reflete na sua totalização um dos grandes costumes dos ascendentes indígenas

brasileiros. Segundo os historiadores, quando embriagados pela bebida ou pelo fumo,

acreditavam os aborígenes que poderiam entrar em contato com os seus antepassados. Para

os jovens guerreiros quando o chefe espiritual e o temporal, pajé e cacique respectivamente,

estavam em estado de elevação, para eles, o que diziam representavam, ‘na verdade’, vozes

proféticas e manifestações do além. Não é nosso intuito neste ponto adentrar em questões de

conteúdo místico-antropológico, mas vale algumas palavras.

Do ponto de vista psicanalítico, isso não representa nada mais nada menos do que

a manifestação de uma segunda personalidade estimulada pelo poder desinibidor da droga a

que estão submetidos. Isto destrói conclusões aéreas de fundo mítico que procura retratar na

sua interiorização um desejo do indivíduo ou grupo: “o herói, sonha tremendas lutas e

161 Estou aqui considerando, é claro, uma das versões da estória de Tristão e Isolda, mais especificamente, a versão tornada em prosa por Bédier: O romance Tristão e Isolda. Nesta versão, quem morre primeiro é o herói e não a heroína, em oposição à outra versão.

128

horríveis combates, de que sai vencedor, cheio de glória e fama. O velho renasce na prole

numerosa, e como o tronco seco, donde rebenta nova e robusta sebe, ainda cobre-se de

flores”. (p. 42) E mais adiante; “ todos sentem a felicidade tão viva e contínua, que no espaço

da noite cuidam viver muitas noites. As bocas murmuram: o gesto fala; e o pajé, que tudo

escuta e vê, colhe o segredo no íntimo d’alma”. (idem).

“Aonde vai a afouta jangada, que deixa rápida a vaga impetuosa para que o barco

aventureiro manso resvale à flor das águas. Aonde vai como branca alcione buscando o

rochedo pátrio nas solidões do oceano?... o pai desventurado toma o filho órfão de mãe, e

arreda-se da praia cearense”. (Iracema: p. 11) Com estas palavras Alencar inicia a tessitura de

sua obra indianista. Na verdade, esta introdução é uma referência direta ao epílogo da obra: o

momento em que o elemento colonizador e sua prole, Moacir o filho da dor e um cão rafeiro,

abandonam a terra brasileira após a morte da heroína que empresta o nome à obra. É o grande

momento da consagração das duas etnias, o branco e o índio, gerando uma terceira, fruto da

miscigenação rácica: o mameluco. Alencar nessa descrição quer nos chamar, em primeiro

plano, a atenção aos motivos que causaram a partida dos “três entes que respiram sobre o

frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora”. Há no primeiro capítulo uma espécie de

invocação às musas nacionais, a natureza. Aqui o narrador se afasta de modo discreto da

narrativa e só reaparece em certas observações. No epílogo, tornamos a reencontrá-lo,

relatando os últimos acontecimentos e oferecendo suas conclusões. Enfim, o narrador se

desloca e a palavra selvagem adquire maior amplitude, transformando-se na condição

primeira do real em sua totalidade.

O romance Iracema, subtitulado Lenda do Ceará, conta a história da casuística

amorosa entre uma índia tabajara e Martim, primeiro colonizador português do Ceará.

Concomitantemente ao episódio romanesco, há um assunto secundário que é a história da

fundação do Estado cearense e o ódio manifesto entre duas tribos indígenas: os tabajaras e os

pitiguaras. Estes habitavam a região litorânea desde o Parnaíba até o Rio Grande do Norte,

eram, historicamente falando, aliados dos portugueses; aqueles, viviam na região do agreste e

povoavam a serra Ibiapaba , e eram aliados dos franceses. Segundo Cavalcante Proença, José

de Alencar utilizou algumas personagens reais como Martim Soares Moreno e o índio Poti

que mais tarde, adotariam o nome cristão de Felipe Camarão; porém, cercou-os de uma

atmosfera e de um lirismo próprio da evasão romântica. A sextilha do poeta Capistrano de

Abreu resume em poucas palavras isso que vimos falando:

129

Martins Soares Moreno de cavalheiresco ardor, por amor à índia formosa, virgem de morena cor fundou a pátria ditosa da liberdade e do amor.

Iracema é uma heroína romântica, legítima representante do bem, é dotada

exclusivamente de qualidade como coragem, honra, inteligência, poder de sedução, tornando-

se assim o símbolo da heroína nacional, expressão de consciência e de valores coletivos. A

índia, nesse contexto, é encarada como elemento básico da sensibilidade patriótica. O

indianismo brasileiro na sua forma mais lídima e reputada encontrou em Gonçalves Dias e

em José de Alencar os representantes do mais alto quilate nesse empreendimento romântico-

literário. Como bem assinala Antônio Cândido, em Formação da Literatura Brasileira,

referindo-se ao Indianismo brasileiro:

“as suas origens são óbvias: busca do específico brasileiro, já orientada neste sentido (com meia consciência do problema) pelos poemas de Durão e Basílio e as metamorfoses de Diniz, além de uma crescente utilização alegórica do aborígine na comemoração plástica e poética”. 162

A virgem indiana é filha de Araquém, pajé da tribo tabajara, e deve manter-se

virgem, não pode ser serva do estrangeiro porque é considerada uma sacerdotisa de Tupã. Há

na fala de Iracema, ao longo da narrativa, uma contradição que ela mesma se encarregará de

criar a ruptura: diz que não poderá tornar-se serva do elemento colonizador por razões tribais,

contudo a trama assume outros contornos, conforme pode ser observado em suas ações após

enamorar-se por Martim. É ela quem prepara a bebida de Tupã, poderosíssimo alucinógeno,

capaz de provocar apocalípticas alucinações para quem a ingerisse. Um dia, Iracema

encontra, na floresta, Martim, que se perdera de Poti, seu fiel amigo, com quem havia saído

para caçar e agora andava errante pelo território dos inimigos. A jovem índia o leva para a

cabana de seu pai, que abriga o guerreiro estrangeiro. Para o velho pajé indígena o hóspede é

sagrado: “- Bem-vindo sejas. O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém. Os tabajaras têm

mil guerreiros para defendê-lo, e as mulheres sem conta para servi-lo. Dize, e todos te

obedecerão”. O encontro dos dois jovens é marcado por uma idealização no seu grau mais

162 CÂNDIDO, Antônio. Idem, p. 18.

130

elevado, constituindo por assim dizer, uma anamorfose163 também no seu mais alto grau de

elevação simbólica:

Além, muito além daquela serra, que azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque com seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena corria o sertão e as matas do ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. 164

Nesse trecho pode-se observar com riquezas de detalhes a deformidade da

realidade pura. A heroína, em meio à natureza exuberante e indômita, é superior a tudo o que

a rodeia. Para atingir esse padrão estético da linguagem José de Alencar utiliza a metáfora165,

pois ela é um dos meios mais importantes para a criação de denominações de complexos de

representações para os quais ainda não existem ainda designações adequadas. Procura sempre

empregar dois elementos de significação para criar um terceiro diferente e de força

expressiva muito maior, isto é um ‘tropo’, que consiste em dizer que uma coisa é outra em

virtude de qualquer semelhança notada pelo espírito ou um traço característico. Assim o

cabelo, o sorriso, seu hálito, sua rapidez são representações lingüísticas do plano real, a coisa

ou o objeto em si; a asa da graúna, o favo da jati, a baunilha do bosque, e a ema selvagem

representam o plano da imaginação ou o poético, isto é, aquilo que o emissor percebeu,

alguma relação intrínseca com a coisa real.

Desta forma o resultado metafórico que se opera através dessa anamorfose é a

sugestão de que a heroína, a imagem sugere isso, é superior a todos os elemento que

compõem a natureza: o a asa do pássaro de coloração negra, luzidia é inferior, o mel, o olor

da baunilha, a ligeireza da ema, idem. Enfim, toda a natureza lhe rende homenagem pois ela

representa o próprio espírito harmonioso da floresta. E isso é metáfora.

A partir do momento em que uma metáfora deriva seu efeito da descrição das coisas ou dos acontecimentos em torno de vida e de movimento, fica aberto o caminho para a personificação. A representação em forma

163 Anamorfose. Imagem disforme, que vista a distância por certos espelhos, parece regular: arte de representar essa imagem. (Aurélio Buarque de Hollanda) 164 Idem, p. 12. 165 GARCIA, Othon G. Comunicação em Prosa Moderna.

131

humana de coisas incorpóreas ou inanimadas é a essência de toda formação mítica e de quase toda poesia.166

José de Alencar deixa clara a ruptura nessa harmoniosa relação da heroína com o

seu meio quando apresenta Martim. A virgem silvícola temerosa com a estranha aparição do

guerreiro branco, no meio da floresta, desfere-lhe uma flecha. Martim em sinal de submissão

não reage ao ataque porque “o moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a

mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais da alma que da ferida”167. Nesta cena, a

indígena a quebra flecha da paz, compadece do gesto do gentil cavalheiro, cura a chaga do

guerreiro desconhecido e se transforma em sua vassala amorosa. Pode-se dizer que toda a

intriga romanesca desencadear-se-á ao longo da narrativa começa a partir desse encontro

imprevisto com o elemento colonizador. A atitude religiosa de Martim representada em seu

gesto e na cruz da espada se explica como herança cultural do Catolicismo, base sólida de

formação da sociedade européia e uma das tônicas do movimento romântico.

Em O Guarani, da mesma forma, Alencar, nos mostra com nitidez a influência

da religiosidade na formação do caráter da personagem Peri. Na cena final (momento em

o pilar dos Marizes ia ser invadido pelos índios Aimorés) Dom Antônio de Mariz, pai de

Ceci, batiza Peri, o herói natural, transformando-o em cristão, para que ele pudesse salvar

sua filha de uma morte certeira em virtude do iminente ataque da tribo inimiga, que queriam

cobrar a honra perdida através da “lei de talião”. No tocante a Peri percebe-se que o índio

passa por uma espécie de "embranquecimento", isto é, incorpora os valores da cultura do

homem branco. Não é demais nem inoportuno afirmar que uma das grandes preocupações

dos europeus durante o processo de colonização brasileira era a catequização do índio.

Alencar, na sua vertente literária, explica à moda romanesca a sedimentação desse processo

vital em linguagem poética e desviada dos parâmetros da ideologia geral. Ao comentar

Romantismo e Religião, Guinsburg, adverte:

Bem longe de ser considerada como um fim em si, a arte romântica sempre pretende ser o grande meio de aperfeiçoamento do homem, a grande educadora da Humanidade. O fim último é a Unidade ou o Absoluto. Realizar com plenitude o homem é uma tarefa que transcende a arte e que transcende também, em última análise o próprio homem, pois é fazer em que ele alcance o Absoluto. Daí a atmosfera vagamente que envolve todo o

166 HIUZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo Como Elemento da Cultura. 5ª Edição. são Paulo: Perspectiva, 2004. p. 151. 167 ALENCAR, José Martiniano de. Idem, p. 13.

132

Romantismo, terminando por conduzir, inevitavelmente, ao problema da religião.168

Iracema deixa-se enganar e favorece voluntariamente à quebra da

normalidade, cede aos conflitos e às intrigas. Suas forças são por fim subjugadas por um

poder muito maior: a força do amor. É a mulher que ama, perdoa, chora, ri, enfim, tudo

suporta para ouvir a voz ou mesmo tocar a mão do ser amado. Por trás de decisões duras

oculta o amor, que vê além da aparência. Em muitos casos, para preservar o amor e os

melhores sentimentos, é necessário adotar posturas severas e tomar decisões muito duras e até

certo ponto inesperadas. Na visão crítica de Machado de Assis, ao referir-se à entrega de

Iracema a Martim, afirma que:

Casta, reservada, na missão sagrada que lhe impõe a religião do seu país, nem por isso Iracema resiste à invasão de um sentimento novo para ela, e que transforma a vestal em mulher. Não resiste nem indaga; desde que os olhos de Martim se trocaram com os seus, a moça curvou a cabeça àquela doce escravidão. Se o amante a abandonasse, a selvagem iria morrer de desgosto e de saudade, no fundo do bosque, mas não oporia ao volúvel mancebo nem uma súplica ou ameaça. Pronta a sacrificar-se por ele, não pediria a mínima compensação do sacrifício.169

Mais adiante Machado de Assis referindo-se à obra Iracema reitera:

O livro do Sr. José de Alencar, que é um poema em prosa, não é destinado a cantar lutas heróicas, nem cabos de guerra; se há aí algum episódio, nesse sentido, se alguma vez troa a pocema da guerra, nem por isso o livro deixa de ser exclusivamente voltado à história tocante de uma virgem indiana, dos seus amores, dos seus infortúnio. 170

O modelo de triângulo parece fundamental na experiência sentimental, a tal ponto

que, nos raros casos em que não existe esse terceiro elemento que se intromete na relação a

dois somos obrigados a imaginá-lo. “O terceiro” é de tal forma necessário à nossa imaginação

que, quando não existe na realidade, ele é inventado em nível de fantasia”171. Assim como

n’O Guarani, em Iracema, há também uma triangulação amorosa. Vejamos como Alencar

define a triangulação em O Guarani e as três diferentes formas de amor inerentes às

personagens que prestam vassalagem à heroína Ceci. Em relação a Loredano, uma das faces

do triângulo:

168 GUINSBURG, J. O Romantismo. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 107. 169 ASSIS, Machado. Obras Ilustradas de Machado de Assis. Crítica Literária. São Paulo: Ed.Linográfica Ltda, s/d. p. 155. 170 Ibidem, p. 154. 171 CAROTENUTO, Aldo. Eros e Pathos: Amor e Sofrimento, : p. 118.

133

A1 - Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era um desejo ardente, uma sede de gozo , uma febre que lhe requeimava o sangue: o instinto brutal dessa natureza vigorosa era ainda aumentado pela impossibilidade moral que a sua condição criava, pela barreira que se elevava entre ele, pobre colono, e a filha de D. Antônio de Mariz , rico fidalgo de solar e brasão.172

Em relação a Álvaro:

B2 – Em Álvaro, o cavalheiro dedicado e cortês, o sentimento era uma feição nobre e pura, cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração, e do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores daquele tempo de crença e lealdade. ( p.39-b)173

Em relação a Peri:

C3 -Em Peri o sentimento era um culto , espécie de idolatria fanática , na qual não entrava um só pensamento de egoísmo, amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação , mas para dedicar-se inteiramente a ela para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente realizado. (p.39-c) 174

O ex-frade carmelita desejava Cecília como o caçador deseja a caça, era um

sentimento incontido de posse, a aquisição de um tesouro precioso disputado por muitos. Ele

é a pura representação do anti-herói, seu amor descortês, insincero, profano e impuro e seu

discurso durante a narrativa aborda friamente os aspectos secretos da vida sexual,

desvendados por sua atitude libertina, sugere a frigidez amorosa, a impotência, enfim deleita-

se perante o desenvolvimento da trama com o escândalo da inversão. Sua fala é estranha e

estrangeira e se expressa com sotaque italiano furtivamente através de anexins como bem

elucida Sant’Anna ao analisar o sistema de sujeitos em sua “Análise estrutural de Romances

Brasileiros”.

Álvaro, em relação a Ceci rendia-lhe a vassalagem amorosa, era atencioso,

sofria calado e não provocava a sanha (não incorria no desagrado da bem-amada). A fala

de Álvaro é cortês e bem cuidada, externando sua fidalguia. Porém, ao descobrir que Cecília

não o amava vai se processando no interior do aventureiro um sentimento crescente de 172 OLIVEIRA, Leni Lourenço de. Sob signo do “amor Cortês”: a poesia lírica trovadoresca e o Guarani de José de Alencar. Fragmentos retirados e analisados do referido trabalho de pesquisa. Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2000. 173 Idem. 174 Ibidem.

134

inquietação que tem a sua culminância com a declaração de amor proferida por Isabel. A

partir desse momento , ele muda aos poucos seu modo de ser e de agir. Primeiramente queria

permanecer casto e leal ao juramento que fizera a D. Antônio de Mariz, entretanto uma voz

interior muito mais forte ia operando em seu caráter digno e fiel uma mudança, uma

revolução que ele mesmo talvez não acreditasse que estivesse acontecendo consigo.

Para o silvícola, Cecília é a manifestação e representação de Nossa Senhora,

a Virgem Santíssima, que deve ser venerada. O bugre lhe salvara a vida uma vez e viria a

salvá-la novamente quando é narrada a cena da grande inundação. Diferentemente de Álvaro

que desejava a mão de Cecília, bem como de Loredano que pretendia destruir a família de

D. Antônio de Mariz e raptar-lhe a filha; Peri, representa uma oposição a esses dois tipos de

amores , seu amor por Cecília não está condicionado a nenhuma circunstância ou a qualquer

tipo de benefício e favoritismo, dir-se-ia que o índio Goitacá doa-se sem nenhum interesse,

aliás, o único interesse dele é satisfação de todos os desejos de sua nobre senhora como bem

ilustra essa passagem:

(...) “escuta, Peri é o filho do sol, e renegava o sol se ele queimasse a pele alva de Ceci. Peri ama o vento, e odiava o vento se ele arrancasse um fio de ouro de Ceci. Peri gosta de ver o céu: e não levantava a vista, se ele fosse mais azul que os olhos de Ceci”175.

A partir dessas três formas individuais de amores poderíamos representar

esquematicamente da seguinte maneira os estados de tensão do sujeito enamorado na sua

relação, causa-conseqüência, apoiada nos pressupostos de Barthes:

Loredano » Amor transbordante176 » Amor não concretizado no plano físico nem das idéias: sem transmissão ou reprodução. Álvaro » Amor por indução177 » Amor concretizado ( em relação à Isabel ) no plano das idéias mas não no físico. Peri » Amor verdade178 » Amor concretiza-se no plano das idéias e dá margens a outras interpretações.

175 ALENCAR, José Martiniano de. O Guarani, p. 90. 176 BARTHES, Roland. O sujeito coloca, obstinadamente, o voto e a possibilidade de uma satisfação plena do desejo implicado na relação amorosa (?) e de um sucesso sem falhas e como eterno dessa relação : imagem paradisíaca do Bem-Supremo, a dar e a receber, p.282. 177 Idem. O Ser amado é desejado porque um “outro” ou “outros” mostraram ao sujeito que ele é desejável: por mais especial que seja, o desejo amoroso é descoberto por indução, p.193. 178 Idem. Todo episódio de linguagem ligado à “sensação de verdade” que o sujeito apaixonado experimenta quando pensa em seu amor, seja porque ele acredita ser o único a ver no objeto amado”na sua verdade” , seja

135

Em Iracema a triangulação atinge o mesmo grau de tensão que se desenvolve

nesse pequeno esboço que traçamos d’O Guarani. Irapuã, chefe dos tabajaras, amava Iracema

que amava Martim que não sabia direito se amava Iracema ou não como fica evidenciado no

desenlace dos acontecimentos, e em especial, da provável noiva que o espera em terras

distantes. Instigado por Iracema sobre a presença de uma outra mulher Martim responde-lhe:

“Ela não é mais doce que Iracema, a virgem dos lábios de mel, nem mais formosa!

Murmurou o estrangeiro” (p.19) Mais adiante Alencar descreve uma outra cena em Martim

demonstra estar dividido entre o amor da virgem indiana e de outra mulher: “Martim se

embala docemente: e como a alva da rede que vai e vem, sua vontade oscila de um a outro

pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos afetos: aqui lhe sorri a virgem morena dos

ardentes amores (p.39).

O fato de Martim estar envolvido por Iracema provoca o ciúme no rival da

triangulação amorosa, Irapuã, que em decorrência disso, jura matá-lo a fim de eliminar

definitivamente o inimigo em potencial. Irapuã era o chefe dos tabajaras e amava Iracema, ao

perceber o amor dos dois o ódio179 o cega, a ponto de fazê-lo entrar na cabana do grande

chefe Araquém para desafiar o estrangeiro. O pajé evoca o trovão ameaçando o chefe

tabajaras que não sente medo, sai da cabana vencido mas com o coração cheio de ódio.

Enquanto isso, enfrentando muitos perigos e obstáculos Poti, irmão de armas descobre o

paradeiro de Martim. Poti e Iracema cônscios do sentimento de vingança do chefe tabajara

planejam a fuga do herói. O plano foi posto em prática. Enquanto os índios tabajaras

dormiam, após terem recebido os mistérios da jurema das mãos de Iracema. Vitoriosos em

seu empreendimento fogem para terras distantes.

Findo estes acontecimentos, grosso modo, começa efetivamente o drama de

Iracema. Como o próprio Alencar sugere ao relatar o momento exato em que a aborígine se

entrega a Martim: “numa cena de simplicidade, uma cena idílica e envolvente a índia entrega-

se” a Martim que narcotizado pelo fel do licor entorpecente que bebera, perde a noção do

porque ele define a especialidade de sua própria exigência como uma verdade sobre a qual não pode fazer concessão, p. 291 179 “Amor e ódio. E estes dois aspectos são os pólos que se resolve o mundo. Eles são os que enfeitam ou descompõem, eles o que pintam ou despintam os objetos, dando e tirando a seu arbítrio a cor, a figura, a medida e ainda o mesmo ser e substância, sem outra distinção ou juízo que aborrece o amor. Se os olhos vêem com amor, o corvo é branco; se com ódio, o cisne é negro; se com amor o demônio é formoso; se com ódio, o anjo é feio, o pigmeu gigante, se com ódio, o gigante é pigmeu”. “Sermão da quinta quarta-feira”, apud Mário Gonçalves, p. 214.

136

tempo e do espaço chegando mesmo a acreditar que tudo o que fizera ou vivera não passara

de um sonho provocado pela bebida inebriante (é nesse ponto que ocorre o desvirginamento

da índia tabajara). A virgem indiana de Tupã conspurca a interdição da tribo e se deixa

possuir pelo elemento colonizador. Porém, a profecia tem uma função essencial e não

determina nenhuma atitude, inversamente, mostra que apesar de conhecer o destino futuro

não se ergue contra ela e a heroína continua a agir como se nada tivesse acontecido, Iracema

fica imobilizado pela fixidez da contemplação dos acontecimentos vindouros.

Há proibição de se tocar em Iracema. O gesto transgressor seria punido com a

morte. Martim só procura Iracema sobre os efeitos da droga. Martim não tem o corpo de

Iracema em seus braços, tem apenas a sua imagem. A virgindade de Iracema é justificada

pela sua situação dentro da taba, onde ocupa o lugar de sacerdotisa de Tupã. Qualquer atitude

dela para se unir a Martim transgride os valores tabajaras. Mas o amor se revela mais forte e a

postura de Iracema é, desde o início, de desobediência. O licor de jurema é a droga que

servirá como intermédio, isto é, que servirá para derrubar as barreiras entre os dois,

remetendo a relação para o nível do inconsciente. Drogado, Martim desrespeita o código de

conduta cavalheiresca e cristã, pois o licor da jurema acaba amortecendo essa exigência.

Iracema deixa definitivamente o lar, os irmãos, sua cultura, sua posição diante da tribo.

Nesse ínterim, trava-se uma batalha sangrenta entre pitiguaras e tabajaras. Estes

últimos são derrotados com a ajuda de Iracema. Depois de ter abandonado a taba dos

tabajaras, agora em seu novo lar, com seu amante (que não morre como dizia a lenda), na sua

nova morada há tempos de felicidade. Espera um filho e seus problemas se multiplicam

quando começa a surgir as primeiras inquietações de seu jovem esposo que sente saudades de

sua terra natal. Tudo entristecia Iracema. Martim passa muito tempo em meio a combates e

caçadas, distante de sua esposa que começa a padecer. Segundo Alencar para Martim, “o

amigo Poti e a esposa não bastavam mais à sua existência cheia de grandes desejos e nobres

ambições”. Enquanto Martim guerreia Moacir nasce, a índia está á beira da morte. Iracema

entrega o filho a Martim , deleita-se na rede e morre, consumida pela dor incontida. Martim e

Poti enterram-na ao pé do coqueiro, à beira do rio. Segundo Poti ‘”quando o vento do mar

soprar nas folhas Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos”. Segundo

Alencar, o cajueiro floresce quatro vezes depois que Martim partiu da praia do Ceará levando

no frágil barco o filho e o cão fiel.

137

Antônio Amora, em estudo crítico sobre Átala e Iracema nos adverte: “dizer que

Iracema é, no seu gênero, uma obra-prima , impõe (tal a responsabilidade dessa

afirmação) se demonstre em que sentido o é, e com essa demonstração temos de afirmar , de

um lado a originalidade desse romance em face às suas fontes ; de outro , suas qualidades

estéticas”. Sem rodeios: para o comentador da obra Iracema é de fundo plagiário de Átala180,

de Chateaubriand.

Iracema e Átala têm vários pontos de semelhanças: nas duas obras estão em jogo

o Novo Mundo e a civilização européia; nas duas obras são duas jovens virgens vítimas de

uma sociedade civilizada. Há a mesma atitude mental dos dois escritores quanto ao tema, a

relação de verossimilhança das personagens, suas ações e seus dramas; ambas tematizam os

costumes indígenas e tratam-se de romances históricos. A tese dos dois romances é o homem

em estado natural. Além disso, há o desenvolvimento da relação entre dois jovens fortemente

potencializados pelo amor mostrando, outrossim, nessa faceta semelhanças no enredo.

Em relação ao drama que se desenvolve: são duas índias virgens dotadas de raros

e incomuns atributos de bondade e de sedução gentil. Amora ao fazer uma análise

comparativa dos dois romances diz ainda que é evidente a filiação dos dois romances no que

se refere ao tratamento estilístico da fábula, e que Alencar, preso ao paradigma181 de

Chateaubriand acabou por atentar-se em flagrante caso de imitação (seria contrafação

realmente?). Comentando a influência de Chateaubriand em Alencar, Maria Cecília de

Moraes Pinto, complementa:

Em Alencar, a posição do narrador ainda revela a visão externa. Entretanto, há uma tentativa para que sua relação com o mundo selvagem se traduza em movimento inverso. É que, cada vez mais, de romance para romance, o branco abandona seus preconceitos para aderir a outra mentalidade. Essa coincidência, observável em planos diferentes em Iracema e Ubirajara, já se prepara n’O Guarani. Ela dissimula, porém,

180 Et, effectivement, dans Atala, oeuvre qui répond parfaitement à cette définitio [L1’écrivain original n’est pas celui qui n’imité] et qui n’a jamais été recommencée, Chateaubrinad, mettant em oeuvre l’ample moison d’impressions et d’images qu’il avait rapportée d’Amérique, les a exploitées pour vivifier la matière pesante et incolore de sés prédecesseurs qui tous, W. Bartram excepté, étaient dénués de sensibilité poetique. Il a mis dans son roman la syntèse de son expérience humaine et de sa pensée, ou plutôt de ses pensées sucessives, la philosophique et la chrétienne; ces qui ne va pas sans certaines contradictions parfois, mais la contradiction fut, dans ses livres comme dans la vie, un élément essentiel de as riche personnalité. CHATEAUBRIAND, François-René. Les Aventures du Dernier Abencérage. Paris: Éditions Garnier Frères, 1962, p. 21. 181 Em seu Roteiro das Grandes literaturas (A literatura Brasileira ),Volume II - O Romantismo , Antônio Amora (1967), faz um estudo minucioso a respeito dessas duas obras da literatura mundial; nesse estudo procurou-se selecionar apenas os alimentos mais importantes para poder contrastá-los de modo com Iracema visto que ambos tratam-se romances indianistas cuja temática é mesma: o idílio amoroso.

138

uma fissura de base que repousa no raciocínio apriorístico da aceitação de um selvagem atento à beleza dos fenômenos naturais. Ora, essa perspectiva trai um pensamento civilizado. 182

Se se trata de uma imitação fraudulenta não nos importa em hipótese alguma. O

mais importante é que ele respeitou com rigor e técnica os princípios da imitação artística e

“realizou uma obra original na sua essencialidade, exigentemente verossímil nos caracteres,

no enredo e no drama e primorosa expressão literária”, afirma Amora.

Essa expressão literária de José de Alencar no que tange à sua produção

indianista mostra-nos seu papel decisivo de criação dum mundo poético digno de apologias e

capacidade de retratar o indianismo não só como passado místico, mítico e lendário, mas

também como passado histórico à maneira da Idade Média. Em “Os Três Alencares”,

Candido, relata-nos que sua obra representa ou significa no nosso Romantismo a criação do

herói que a poesia não pôde criar na epopéia neoclássica. Procurando sempre preservar a

altivez dos heróis no desenvolvimento das ações das personagens Alencar tornou-se o único

escritor brasileiro a criar o mito heróico, o de Peri – protagonista da obra analisada na

primeira deste trabalho e intitulada “Sob o Signo do Amor Cortês: A Lírica Trovadoresca e a

Prosa Indianista de José de Alencar”.

De um modo geral, passando a vista na sua produção notamos que ela apresenta-

nos caráter preponderante do passado como elemento da narrativa e critério de revelação

psicológica dos personagens; a partir disso concluímos que para o Romantismo indivíduos e

povos são feitos ou compostos da substância do que acontecem antes, ou seja, “os mortos

persistem nos vivos , exprimem esse profundo desejo de ancorar o destino do homem na

fuga do tempo”, afirma Comte183.

Sendo Alencar um homem que viveu durante o período romântico era de se

esperar que ele se apoiasse e se alicerçasse nessa nova de expressão e decididamente assim

o faz: ao fazer uma leitura análise de seus três romances indianistas verificamos essa

descronologização do tempo presente e a predominância da extemporaneidade. O Guarani

remete-nos ao tempo da formação do Brasil-Colônia; em Ubirajara ele nos leva a visualizar

fatos e acontecimentos que precedem a chegada do homem branco, isto é, os portugueses: é

182 PINTO, Maria Cecília de Moraes, A Vida Selvagem, p. 109. 183 CÂNDIDO, Antônio. “Os Três Alencares”-Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Edusp, 1985, p. 230.

139

uma suposta época histórica pré-cabraliana. Em Iracema, nosso objeto de estudo

intersemiótico, é diacrônico como se pode verificar no desenrolar da narrativa.

Cabe-nos dizer que, ao situar na história, na teoria, no espaço e no tempo as

idéias diretrizes de Iracema sentimos uma espécie de saudosismo ao percorrer suas páginas,

sente-se uma espécie de volta ao passado, ao túnel do tempo: se vivermos tão intensamente

pela visão, audição, tato e olfato todas as sensações possíveis e imagináveis teremos a

agradável impressão de estarmos em meio a esse cenário descrito com extrema elegância e

garbo. Porém, essas peculiaridades de construção literária não são empregadas apenas em

seus romances indianistas: também há essa presentificação em seus romances de outras

modalidades estéticas de construção.

Ao falarmos da questão do flashback184 é lícito concluir que Alencar se apropria

dessa técnica de teorização literária, exatamente, para dar continuidade a um outro texto, ou

seja, aproveita-se de um quadro presente (neste caso representado pela sua acumulação de

conhecimento e sua cultura geral) comparando-o com outro do passado; surge da fusão

desses dois um novo texto, fruto dessa relação de intertextualidade. Contudo, é escusado

dizer, não é apenas Alencar quem se apropria do trabalho de descronologização como recurso

para desenvolver uma linguagem literária determinada. Se fôssemos fazer uma enumeração

chegaríamos a uma lista vastíssima de outros autores que se utilizam a mesma temática.

Em relação à Iracema qual foi o princípio de construção criado por Alencar?

Em Iracema, ele usou sua imaginação criadora e fez um espécie de mapeamento

do Brasil-Colônia com seus indígenas, filhos da terra, e do branco europeu que influenciou

bastante, durante o processo de colonização, os indígenas, ora catequizando, ora

escravizando-os, interferindo sobremaneira e modificando seus costumes, conjunto de

crenças bem como maneira de viver como a história nos explica à luz de constatações e

provas verídicas: da junção dessas duas raças “A Lenda do Ceará,” descrita por Alencar,

oferece aos cearenses o sentimento de formação histórica de seu estado e a consciência das

virtudes herdadas delas: do índio, a valentia, a hospitalidade e a dedicação sem limites de

afeição; do português, o amor à família, a fé cristã, o zelo da honra e nobreza de

sentimentos, o amor à família e o saudosismo.

184 Em Iracema o tempo que marca a narrativa no seu prólogo é o flashback. O texto abre pelo fim, no 1º capítulo, já está morta a heroína, Martim e o cão rafeiro partem com sua jangada das terras cearenses. No 32º é narrado a morte de Iracema: “o doce lábio emudeceu para sempre; o último lampejo despediu-se dos olhos baços”. No 33º capítulo é-nos narrada o momento em que Martim retorna para fundar o Ceará; “muitos guerreiros de sua raça acompanham o chefe branco para a fundação do mairi dos cristãos.

140

Foi dito acima que Iracema apresenta uma leitura diacrônica dos

acontecimentos narrados. Porém enquanto estrutura e organização textual seu tempo é

cronológico, porque todo a narrativa (exceto na introdução ou primeiro capítulo quando

Alencar narra as cenas finais do romance) configura-se do tradicional começo meio e fim,

obedecendo à mesma configuração organizacional de Tristão e Isolda. Na lenda, são narrados

todos os conflitos por que passa a protagonista, seu envolvimento com Martim, a briga

acirrada entre as duas tribos inimigas, sua morada com Martim, sua decadência – decorrente

do distanciamento do esposo – o reencontro com o irmão Caubi e, finalmente, sua morte.

Trata-se de um romance de ação pois o enredo ocupa lugar predominante no

corpo de toda obra; nele a ênfase é posta nos acontecimentos, nos episódios conforme nossos

anseios, não com o nosso conhecimento. As personagens dependem do enredo e nada podem

fazer para modificá-lo pelo fato de não terem vida própria. Nesses tipos de romance, “em

certos casos, cada episódio acaba valendo de per si, à semelhança do processo utilizado na

novela, pois a história não cresce até o fim, como a buscar uma solução para o conflito nas

primeiras páginas.

Suas personagens são planas e estáticas e estão à mercê dos acontecimentos

criados pela imaginação adormecida e difluente do romancista. Iracema é do começo ao

epílogo a mesma: entrega-se a Martim durante toda o desenvolvimento da intriga; Martim,

por sua vez, também é plano: envolve-se com Iracema, assume a responsabilidade pelo ato,

foge com a protagonista, provoca a angústia em Iracema, a qual causará sua morte. As outras

personagens menos importantes na configuração do episódio romanesco apresentam a mesma

estrutura. Em Iracema as personagens podem ser tidas como planas ou bidimensionais

porque são destituídas de profundidade: cada uma faz ou realiza exatamente aquilo que

gostaríamos que ela realizasse. São caracterizadas por apenas uma qualidade ou defeito,

faculdade ou característica como afirma, Moisés.

O foco narrativo dá-se em terceira pessoa e um narrador onisciente que parece

conhecer as atitudes de suas personagem microscopicamente, porém afasta-se

consideravelmente da narrativa para dar motricidade e vida do episódio indígena. É

considerado um episódio romanesco na medida em que a linguagem apropria-se dos ideais de

idealização e ultravalorização das várias situações conflituosas no desenvolvimento do

enredo. Ainda que nos fundamentemos na inexistência, em termos estruturais, dos elementos

do ‘maravilhoso’ (é o vinho de Tupã que permite a posse de Iracema, além disso temos

141

também a presença dos deuses indígenas representando as forças da natureza), típico do

episódio romanesco, por outro lado, verifica-se anamorfoses, distorções de imagens, isto é,

as personagens passam por um processo de deformidade romântica, o que, grosso modo,

acabam fazendo com elas desempenhem as mesmas funções fantasiosas e idealizadoras e

quase sempre inverossímeis.

Em suma, como bem assinala Moisés, “o romance de ação é, assim, sempre

superficial como psicologia e verdade humana, podendo cair logo no inverossímil, no

sobrenatural, no terror, no fantástico, etc. Obra mais de entretenimento, considera as

personagens criaturas estáticas, à mercê dos acontecimentos criados pela imaginação,

difluente do romancista”185. Opõe-se ao romance de personagem porque neste o romance não

põe ênfase no personagem, mas sim sobre os protagonistas.

Neste caso, como a ênfase é posta sobre a personagem, a ação e os figurantes em

cena passam a ocupar um papel secundário. Centrando-se, na árdua tarefa de criação, na

personagem, através dela o romancista pinta a sociedade ou o grupo social em que ele se

enquadra. Desse modo, o protagonista não é senão um fato concorrente à composição dum

clima moral ou social: muitas vezes ele é a própria encarnação de um problema socialmente

encarado por um determinado grupo. Iracema quanto Tristão e Isolda possuem as mesmas

características, pois ambos são romances de ação e ambos se diferenciam do romance de

personagem visto que a preocupação na construção do enredo não é a criação de arquétipos,

tópica comum nos romances de personagem.

Iracema é revestida de todos os atributos que se pode esperar de uma heroína, foi

capaz de sacrificar, tornou-se mártir de si mesma em nome do amor que sentiu pelo guerreiro

branco. Sua doação se deu por completo e esta doação a transformou em um símbolo de

mulher independente sob o enfoque tribal. As forças interiores que moviam o cosmo amoroso

de Iracema foram capazes de desvencilhá-la de todo e qualquer grilhão que a amarrava aos

óbices interditos exteriores, a capacidade de se submeter ao suplício a eleva à condição de

autêntica heroína romântica, visto que o que se espera de uma heroína é exatamente esta

capacidade interior de provocar emoções, de se livrar dos dogmas, dar vazão à força de seu

intelecto, a capacidade de assumir responsabilidades mesmo que estas a sufoquem sejam

capazes de destruí-la. Como bem assinala Antônio Cândido, em Formação da Literatura

Brasileira:

185 MOISÉS, Massaud. A Criação Literária, p. 189.

142

Iracema, em 65, brota, no limite da poesia, como o exemplar mais perfeito da prosa poética na ficção romântica realizando o ideal tão acariciado de integrar a expressão literária numa ordem mais plena de evocação plástica e musical. Música figurativa, ao gosto do tempo e do meio. 186

Quanto à temática Iracema se aproxima da concepção romântica européia – a

mulher-anjo, virgem, delicada, bela, que se sacrifica pelo homem por quem se aproxima e

pelo enredo podemos perceber que é um livro no qual há um argumento histórico, a

colonização do Ceará, presente na caracterização dos personagens: Martim Soares Moreno,

colonizador português que se alia aos pitiguaras através de Poti, Antônio Felipe Camarão.

Em síntese, A Lenda do Ceará é uma narrativa que relata os feitos gloriosos da

heroína Iracema, segundo da livro da tríade indianista alencariana. O primeiro foi O Guarani

– que serviu de base para a elaboração da minha Dissertação de Mestrado –, o último foi

Ubirajara. As três produções encerram motivos e razões bem específicos, contudo, nos três a

figura da mulher passeia livremente pelas páginas das obras de capa a capa. E este passeio

feminino não é uma exclusividade dos romances indianistas de Alencar. Em todas as suas

outras produções, seja regionalista, seja histórica, seja urbana ou rural, percebem-se o

mesmo tratamento dispensado à mulheres.

Em todas elas há uma temática constante: o tema da vassalagem amorosa,

princípio motor de composição da lírica medieval européia, retrabalhada e reaproveitada por

José de Alencar em um momento histórico em que não existia no Brasil donzelas

encasteladas, nem tampouco cavaleiros dispostos a prestar-lhe a corte amorosa em busca da

simples satisfação psicológica, o simples ato de vê-la já servia de motivo para que ele

obtivesse a tão merecida “joy” ou alegria suprema.

Alencar substitui os castelos medievais pelos belos bosques das florestas

brasileiras, e substitui os cavaleiros medievais por outros tipos de heróis: sertanejos, jovens

dedicados, e índios embranquecidos pelos valores dos ‘homens civilizados’, índias – como é

o caso de Iracema – disposta à perda da liberdade em nome do amor proibido e da

vassalagem como veremos adiante.

186 CÂNDIDO, Antônio. Idem, p. 222.

143

3 – Figuras da vassalagem

A cortesia está ligada à emergência e à constituição de uma língua vernácula à

elaboração das línguas vulgares escritas. Trata-se de um mito fundador associado a figuras

simbólicas (Tristão e Isolda e O Rei Arthur enquadram-se neste mito fundador) cuja eficácia

ainda é grande nas sociedades pós-industriais do Ocidente. Que saberíamos da cortesia e do

amor-cortês, senão através das obras literárias, poéticas e sobretudo romanescas? Sabe-se que

uma sociedade de que se quer participar julga, avalia, comenta, glorifica ou rejeita, mas

também conta, lê, encomenda, produz obras literárias em questão. É uma ética profana que

atravessa os séculos e dá ensejo a inúmeros estudos importantes. A partir do momento em

que se reescreve a cortesia medieval européia a língua fornece ou inventa uma linguagem

própria, uma metalinguagem, uma retórica e inclusive uma poética. Como bem assevera

Monique Brossard:

La vie est notre seule possession,notre unique royaume. Personnene peut nous la voler. Celui que tentera de se l’aproprier n’obtiendra dans ses mains que des cendres; car la richesse d’une vie ne réside pas dans un corps moribond mais dans une âme, un esprit, un souflfle. Et, cet souffle, nous devons le protéger contre le l’envie et la haine, por engendrer l’espoir. Car la vie n’a de sens que l’amour des autres. 187

É impossível negar que esta espessura da história pois boa parte das condutas

morais sofrem influência por este tipo de emergência na literatura. Este fenômeno social e

cultural medieval tal qual a fênix mitológica ressurge de suas próprias cinzas como

paradigma para evocar as noções, dos contextos nos quais ela aparece. Reaparece no

imaginário contemporâneo por meio da semiótica da cultura e de sua sintaxe combinatória

das intersemioses. Na Idade Média o serviço de cortesia era típico da sociedade feudal e isso

não significava outra coisa senão o acesso ao domínio senhorial e também à vassalagem. No

período oitocentista brasileiro, a vassalagem amorosa, o amor, a traição e a morte deixam de

aparecer nos bosques encastelados medievalescos. Estes ingredientes romanescos ressurgem

em Iracema, em meio às matas brasílicas do Novo-Mundo com outra roupagem.

187 Chienne de vie, je t’aime, p. 7.

144

No âmbito da literatura, a palavra ‘vassalagem’ tem um significado análogo ao da

sociedade de servidão. Da mesma forma que o vassalo, ao amante, são impostas certas

obrigações as quais são conhecidas, neste contexto, como ‘vassalagem amorosa’ – obediência

e submissão à senhora, geralmente, pertencente à corte. A partir do instante em que jurava

obediência e lealdade o cavaleiro-cortês não era mais dono de si, pois passava a ter uma

dedicação plena (sob o enfoque poético) e exclusiva à dama eleita. A vassalagem amorosa foi

criada como uma estratégia militar, segundo uma retórica cristã. Sabe-se que os homens

voltavam embrutecidos das guerras e não respeitavam as mulheres; desta forma, a

vassalagem surgiu como uma maneira de refrear essa brutalidade e de valorizar a figura

feminina.

Havia no ambiente aristocrático – local onde se dava esta relação de vassalagem

– um código de cortesia, os mandamentos da atitude cortês, e respeitá-los era a obrigação

maior do amante apaixonado. Uma das obrigações do cavaleiro era a manutenção discreta do

segredo para que o amor do amante pela amada não fosse descoberto. O amante deveria

dirigir-se à dama eleita para a homenagem apropriando-se de um “senhal” o qual marcava,

convencionalmente, o serviço de cortesia. Este procedimento evitaria que o marido

percebesse o que se passava ao redor de si. Manter essa discrição era o código de honra do

verdadeiro amante.

Diante da dicotomia apresentada, pode-se dizer que existia na estrutura das

relações de cortesia uma transferência dos valores morais e ideológicos da sociedade feudal

de modo que a mulher, alvo maior cobiçado pelo cavaleiro-amante, passava a ter,

idealisticamente, a mesma supremacia hierárquica do senhor feudal, no tocante ao valor de

sua voz; neste momento, pela força do dote, a mulher era considerada socialmente superior, o

que contraria sobremaneira algumas peculiaridades históricas da época, levando-se em

consideração a forma como estava estruturada a sociedade medieval e o papel que estava

destinado à mulher em meio à conjuntura política, econômica e social do período. Este

quadro de sentimentalidade ocidental da temática do amor-cortês e o porquê de sua

deflagração revolucionária, no seio de uma sociedade teocrática, foram, sem dúvida, uma

tendência individualista que canalizava a fervorosa religiosidade para um verdadeiro culto

prestado à mulher.

No âmbito literário, a vassalagem amorosa, foi marcada notadamente pela

convenção e temática da não correspondência amorosa. Pertencente à corte, a dama eleita

145

para o preito amoroso não podia manter um relacionamento (será?)188 de convivência

amorosa com membros sociais de estirpe inferior. Este procedimento parece focalizar, via de

regra, exatamente o tipo de estrutura social do Feudalismo, com suas castas sociais

hierarquicamente bem definidas. Além disso, é bom ressaltar que a mulher reverenciada era

casada, o que constituía um obstáculo ainda maior para a consumação destes amores ilícitos.

Portanto, a imagem idealizada da mulher representava para o amante apaixonado o bem-

maior: a satisfação plena dos sentidos. Atingir este estado de elevação espiritual constituía a

joy ou alegria suprema. Mas, ama-se do pescoço para cima e o deleite reside nesta

contemplação da mulher amada.

Dentro do jogo amoroso, a insinceridade na relação de vassalagem provocaria um

distanciamento entre os amantes a ponto de eles se mostrarem incapazes de sentir admiração

um pelo outro. Esquadrinhando o serviço de cortesia verifica-se que esta atitude constituía

um fato destituído de todo fervor amoroso – razão maior do objeto do desejo –, era

prenúncio da decadência, do estado de enamoramento e a negação da aspiração luminosa do

desejo total de “Eros”, pois “Eros cria as conexões, as ligações entre as diversas dimensões

psicológicas, dando vida a uma essência nova, conferindo significado, interioridade e

sacralidade à experiência erótica”189. Neste sentido, o amante estando distante da amada,

como o amor é vida que ascende a degraus superiores, longe de sua função idealizadora, o par

amoroso passava a compartilhar um sentimento de culpa, de privação.

Por outro lado, a vassalagem sincera e verdadeira pode ser considerada uma

maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso àquele do qual é impossível se livrar,

visto que nada o substitui. É também salvação, é a vontade exacerbada de manutenção da

pulsão amorosa que salva a alma presa, salva o amante inútil, salva o momento que deve ser

vivido em toda a sua plenitude, pois faz com que os sentimentos deixem de permanecer vagos

e sufocantes. Busca-se a realização das pulsões primeiras, que emergem de uma vontade

desenfreada manifesta na interioridade do eu-lírico do amante: se o amante, no jogo amoroso,

não mantivesse acesa a flama de sua paixão nada faria sentido nem teria razão de ser. Enfim,

188 Analisando o adultério sob o aspecto ético da cortesia e das condições gerais da vida do século XII, Lafitte-Houssat diz, com rara intuição: “As homenagens que ela podia receber não despertavam nenhum ciúme ao marido, que até se lisonjeava disso e nem pensava em proibi-las. Ao marido a pessoa e a fidelidade material, ao amante a alma e a vida espiritual. Evidentemente nós temos dificuldade hoje de compreender que a virtude de uma mulher consistia no direito de não amar o seu marido e no dever de amar um outro homem” . Troubadours et Cours d’Amour, p. 109. A Lírica Trovadoresca: p. 125. 189CAROTENUTO, Aldo. Eros e Pathos: Amor e Sofrimento., p. 102.

146

é a vassalagem que se transforma em fonte de sofrimento, “ pathos ”, pois o ponto mais alto

do processo sentimental situa-se antes de a dama atender aos reclamos do apaixonado.

Verifiquemos as relações de vassalagem amorosa, amor, traição e morte a partir

de processos intersemióticos em Iracema, de José de Alencar e Tristão e Isolda, adaptação de

Joseph Bédier – digno continuador daqueles que tentaram verter, no leve cristal de nossa

língua, o néctar embriagador pelo qual os amantes das Cornualhas outrora saboreavam o

amor e a morte. Por meio da hiper e da intertextualidade defenderei a proposição de que em

ambas as obras há a presentificação da não correspondência amorosa no relacionamento entre

os pares românticos – motivo primeiro que gera toda a rede de intrigas ao longo das duas

narrativas.

Isolda e Iracema se apaixonaram pelo para romântico antes de Tristão e Martim

serem submetidos ao efeito, respectivamente, do filtro mágico e da bebida de tupã. No

segundo capítulo de Iracema José de Alencar nos apresenta o momento em que a heroína

desfere uma flechada no guerreiro estranho que tinha nas faces o branco das areias que

bordam o mar e nos olhos o azul triste das águas profundas. Estas cenas iniciais narradas por

Alencar revelam uma heroína fascinada pela figura daquele que mudaria a trajetória de todos

os acontecimentos de sua vida. Em Tristão e Isolda o momento exato de enamoramento de

Isolda, a Loura, se dá quando a heroína do episódio romanesco se encanta com a figura do

jovem cavaleiro Tristão após este ter vencido um dragão em batalha descomunal. Isto nos

leva à evidência de que a inserção das bebidas mágicas na configuração da trama romântica

das duas obras nada mais faz do que, no tocante ao enredo, dar vitalidade ou confirmar uma

situação conflituosa cujo itinerário já se antevê.

Há nestas duas cenas narradas por Bédier e Alencar a presentificação dos

principais ingredientes da vassalagem amorosa a que as duas heroínas prestarão aos heróis ao

longo do enredo e desdobramento das narrativas. Tristão após vencer o dragão (o rei havia

prometido que daria a mão de sua filha em casamento para aquele que vencesse o dragão)

adoece e é tratado por Isolda que se decepciona ao saber que não seria desposada pelo herói.

Iracema após desferir a flechada no guerreiro desconhecido arrepende-se do ato (seria por

causa da atitude cortês de Martim de não revidar à afronta e pelo fato de ele ter aprendido em

sua religião que a mulher era símbolo de amor e de ternura?), e “a mão rápida ferira, estancou

mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida:

147

deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada”190 – símbolo tribal entre os

indígenas e maneira simbólica de estabelecerem a paz entre os guerreiros inimigos.

As duas heroínas tratam das chagas dos heróis vitimados por peculiaridades

oriundas a cada peripécia e situação conflituosa das obras justapostas. Percebe-se no

desdobramento das duas narrativas um comprometimento das duas heroínas em relação aos

pares românticos: Isolda se deixa ser conduzida à Cornualha onde seria desposada pelo tio de

Tristão, o rei Marc; Iracema conduz o guerreiro branco à taba dos tabajaras para que ele

fosse apresentado e em seguida hóspede de Araquém – pai de Iracema. Pode-se dizer que o

comprometimento das duas heroínas favoreceu a aproximação entre eles, se considerarmos

que a convivência reforça os laços de amizade e, por conseguinte, gera intimidade. Uma vez

íntimos, só restou para as duas heroínas esperar que o tempo se encarregasse de uni-las

definitivamente aos heróis. E o tempo se encarregou de criar os subterfúgios necessários para

a efetivação do enlace amoroso entre elas. Em Tristão e Isolda, o tempo corresponde ao

momento em que herói e heroína tomam o filtro mágico preparado pela mãe de Isolda; em

Iracema, “quando a virgem [...], trazia numa folha gotas de verde e estranho licor vazadas da

igaçaba, que ela tirara do seio da terra. Apresentou ao guerreiro a taça agreste”191. Era a

bebida de jurema do bosque sagrado de Tupã.

A partir destes acontecimentos que norteiam as duas narrativas a jovem rainha

das Cornualha e a virgem das matas brasileiras transformam-se, efetivamente, em vassalas

amorosas dos heróis e passam a viver a amarga alegria e a angústia sem fim da paixão pela

qual estavam desvairadas e arrebatadas. Em suma, as duas heroínas são movidas pela mesma

idéia fixa: a paixão É isso o que precisa ser examinado a seguir: a vassalagem amorosa.

É isso o que precisa ser examinado a seguir: a vassalagem amorosa

Os fios do enredo que enredam a paixão do amor ao ódio, do medo à esperança,

passa pela glória, inveja, amizade e liberdade. Por meio da paixão pode-se pensar idéia e

corpo não como uma relação de comando e obediência, mas como uma expressão recíproca e

autônoma. Quando se experimenta e se reconhece as particularidades das paixões abre-se

espaço à invenção do saber, e os nossos saberes que correspondem às experiências efetivas.

Pode-se dizer no tocante à subjetividade e à livre expressão dos sentimentos interiorizados

no eu que a paixão é provocada pela presença ou imagem de algo que nos leva a reagir,

geralmente, de improviso e isto prova que o eu vive sob dependência permanente do outro. 190 ALENCAR, José Martiniano de. Iracema. 16ª Edição. São Paulo. Editora Ática, 1995, p. 16. 191 Idem, p. 24.

148

No centro da paixão está o desejo que por sua natureza é infinito, mas a maioria

passa a vida toda tentando saciá-lo. Portanto, a paixão – se bem que racional – é incontrolável

e, “seria difícil um discurso pretender controlar a paixão e modular sua força, pois ela é

sempre o sintoma de uma doença e não de uma reação inevitável a uma emoção. Nada se faz

enquanto não se impossibilita a alma de senti-las. A sabedoria é uma cirurgia das paixões”192.

Sob o ponto de vista psicanalítico, a especificidade da paixão como parte da totalidade do eu

determinando e influenciando seu comportamento tem suas raízes nas pulsões cuja natureza o

próprio eu ignora. Visto sob esta perspectiva, a paixão poderia ser considerada um elemento

estranho ao sujeito, de sorte que não se poderia integrá-la às nossas vidas, mas,

ortodoxamente, o sujeito apaixonado está preso às suas mordaças.

Tanto a produção poética medieval – Tristão e Isolda – quanto a indianista –

Iracema – em primeira instância, se sustêm basilar no tocante à vassalagem, em torno do

problema da triangulação amorosa e das conseqüências oriundas desta situação

desencadeadora de um conflito que atinge o seu clímax com a morte das personagens que

vivem o drama de vida e morte.

Em Tristão e Isolda duas personagens masculinas concorrem ao amor da

heroína: Tristão e o rei Marc. Em Iracema, Martim e Irapuã. A primeira evidência que

tiramos desta hipótese lançada é a de que a ‘queda’ de Tristão e Isolda e ‘Iracema’ se fez em

decorrência do mesmo contexto situacional: o rompimento com a interdição. Estes dois

momentos representam o surgimento do conflito inicial, o agón. Poderíamos esquematizar o

problema que a situação suscita da seguinte maneira: Em Tristão e Isolda, a inserção do

filtro’ é o gerador da intriga amorosa; em Iracema, a bebida de Tupã.

Em relação à Iracema, mais especificamente ao episódio de sua entrega

incondicional a Martim, após este ter ingerido a bebida de Tupã, Alencar, reconduz os

mecanismos ideológicos de expressão poética do poema medieval do século XII: o

surgimento de uma relação amorosa impossível de ser realizada porque fatores externos (o

interdito: emanado, psicanaliticamente, do Superego) impedem sua concretização. Martim

entorpecido pelo efeito do licor mágico rompe com o dogma tribal inconscientemente: houve

a quebra de um determinado juízo de valor: a virgem tabajara não devia ser tocada, mas foi,

sob circunstâncias inesperadas. Em Tristão e Isolda, a mesma quebra ocorre: dir-se-ia que a

magia do filtro – elemento gerador da intriga da lenda – cegara o herói para a realidade ao

192 LEBRUN, Gerard. Os Sentidos da Paixão. In: “O conceito da paixão”. (s/ ref). p. 26.

149

seu redor. Pode-se dizer que em um estado de sã consciência seria praticamente inadmissível

para Tristão negligenciar a obediência que se esperava de um cavaleiro de alto valor, um

barão, isto seria deslealdade e feria os princípios morais pré-estabelecidos pelos códigos da

cortesia. Então, houve a necessidade de se criar uma forma de livrá-lo de incorrer em

deslealdade, ao mesmo tempo em que suas ações não seriam tidas como pérfidas perante o rei

Marc a quem ele devia obediência.

É aqui que o filtro apresenta sua função mais sutil e simbólica, afinal de contas,

após sua ingestão, os desejos de Tristão não são mais comandados pela razão e por uma

vontade própria e decorosa. Seus atos passam no jogo intrínseco das representações uma

conseqüência irrefutável de um estado de inconsciência; assim a magia do filtro o absolve de

qualquer sentença. O filtro representa na simbólica poética o elemento conciliador do desejo

manifesto de o herói possuir a dama, o mecanismo capaz de fazer com que as duas partes se

encontrem novamente e passem a formar um único corpo. Dir-se-ia que há, nessa ação de

deslocamento, uma tendência indubitável a considerar o prazer individual e imediato como a

finalidade básica para a vida e para a consumação do ato amoroso. “Tristão se fez prisioneiro

de um delírio em face do qual empalideceram toda sabedoria, toda “verdade” e a própria

vida. Está além de nossa felicidade, de nossos sofrimentos. Ele se lança ao instante supremo

em que o prazer total é perecer193.

No desdobramento da narrativa episódica, o estado de tensão provocado pela

proibição cria uma situação de desequilíbrio entre os protagonistas. Superada esta fase, volta-

se ao estado de equilíbrio e normalidade anterior, ou seja, herói e heroína assumem o controle

da situação e passam a vivenciar a casuística amorosa em toda a sua plenitude. Mas, esta

normalidade é contraditória, pois ela equivale, efetivamente, a uma luta maior que se

desenvolverá entre os atores da intriga desencadeada. Corresponde, na estória romanesca,

segundo Northrop Frye em Anatomia da Crítica, ao pathos, isto é, a luta da morte. Adeus

moralidades, adeus juízos-de-valor, adeus superego, adeus proibições. Dir-se-ia que quando

se está envolvido em uma situação de amor, fica-se cego a tudo o que nos rodeia. Tristão e

Isolda e Martim e Iracema estão cegos para o mundo, estão absorvidos um pelo outro, vivem

o apogeu do amor e passam a servir um ao outro ‘de corpo e alma’, entregam-se ao amor de

tal maneira que sobrepujam a tudo e a todos: estão vivendo o amor da morte, símbolo da

capacidade individual de ultrapassar os limites impostos pelo meio e pelas convenções. Em

193 ROUGEMONT, Denis de. O Amor e o Ocidente. In: “O Filtro”, p. 40.

150

ambos os casos paixão quer dizer sofrimento, preponderância do destino sobre a pessoa livre

e responsável. Ama-se mais o amor do que o objeto do amor: ama-se a paixão por si mesma.

Ora, tanto Isolda quanto Martim, tanto Tristão quanto Iracema – após o

surgimento da força arrebatadora do amor – têm plena consciência das conseqüências

nefastas da relação ilícita oriunda da insubordinação, contudo, o que mais lhes interessa, no

âmbito da evasão de seus sentimentos, é o encontro com o elemento gerador do problema, é

ele que vai dar vida às suas vidas, é ele que vai dar continuidade à situação inicial e

proporcionar-lhes a busca da realização dos seus desejos mais recônditos em torno de um

amor recíproco e infeliz. A ruptura do interdito se dá porque as obrigações morais impostas a

eles compõem um complexo emaranhado de deveres que conspiram para assassinar as

atitudes individuais que a alma anseia praticar. Diante disto, o que fazer? Não há fórmula,

heróis e heroínas, para situação tão às cegas, agem ao bel-prazer e sofrem os efeitos

irrevogáveis de seus atos.

É assim que Isolda é afastada, definitivamente, do consórcio amoroso com Marc,

o homem a quem ela não amava; é dessa forma que Iracema se desvencilha dos grilhões

mitológicos de sua tribo. É desta forma que Tristão passa a dedicar-se totalmente à sua

amada; é dessa forma que Martim, mesmo sabendo dos riscos iminentes a que estaria sujeito,

conduz Iracema para outras plagas e passa a vivenciar uma realidade avessa àquela que se

esperava vivenciar. No caso de Iracema, se se respeitasse às interdições do dogma tribal não

haveria o desenvolvimento de sua relação amorosa. Grosso modo: se não houvesse a ruptura

não haveria o desenvolvimento, em termos literários, do episódio romanesco em Iracema e do

poético em Tristão e Isolda. Para os dois pares românticos o amor atinge um estado de

intensificação constante. Na visão de Millan194, “tão idealizado é o amado que para o amante

ele não tem nenhum defeito, o que quer que se diga, mesmo se tratando de um absurdo. O ser

amado é invariavelmente belo. O que no outro poderia ser um feio, naquele é uma forma de

encanto pessoal”. Há de crer-se que ambas heroínas suportam os defeitos do outro, pois eles

lhes proporcionam bem-estar, parece aumentar mais ainda o amor que sentem um pelo outro,

contudo nas duas histórias, em primeiro plano, há as marcas intrínsecas da impossibilidade da

realização do amor em toda a sua plenitude: decorrência das armadilhas do destino

inexaurível e implacável.

194 MILAN, Betty. E o que é o amor? Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 25.

151

Gostaria de chamar atenção para o terceiro estádio do episódio romanesco,

anagnórisis, o reconhecimento do herói ou da heroína. A morte dos heróis e heroínas tem no

contexto situacional das obras justapostas um final decoroso, isto é, morre-se por amor e em

nome do amor: morrer por amor representa para eles a glória maior não conseguida em vida.

Iracema morre de desgosto pela ausência constante de Martim; Tristão morre, também, de

desgosto, ao saber que seu fiel amigo Khardelin conduzia uma vela preta em sua nau, ardil

arquitetado por Isolda das Brancas Mãos – esposa de Tristão – como já se disse195. Isolda, a

loura, transtornada ao saber da morte do amado, “entrega a sua alma a Deus”.

Diante destas observações podemos chegar a uma outra evidência: a de que a

ausência definitiva do objeto do desejo passa a ser uma fonte de infinita tristeza para aquele

que ama. Não podendo suportar a parte faltante do seu ser o amante entra em um profundo

estado de melancolia ocasionado pela parte ausente e tudo deixa de ter sentido e a única

solução para livrar-se da tortura é o abandono de si mesmo, a morte voluntária funciona como

fuga da realidade crua demais para ser vivida. Em outras palavras: os amantes são feitos para

se separar em decorrência de situações diversas que desencadeiam entre eles o amor infeliz e

frustra invariavelmente a promessa de um happy end. É o amor-paixão desejoso de uma

felicidade que ele próprio afasta. Dir-se-ia que sendo o amor do amor, quer o impossível e a

saída é a morte. À luz do dia prefere a noite e a ela se entregam os amantes.

A ausência do amado é uma lufada de aniquilamento para o ser amado, o fato é

consciente e o sujeito sabe que sofre. Para Barthes196, “a lufada de abismo pode vir de uma

mágoa, mas também de uma fusão: morremos juntos de tanto amar: morte aberta, por

diluição etérea, morte fechada do túmulo comum”. Não podendo seguir o progresso da

paixão, satisfazer o amor implica, neste contexto, acabá-lo enquanto idéia e sentimento.

Rougemont, em O Amor e o Ocidente, fazendo alusão à questão do Amor da Morte, diz-nos

que a morte decorosa é uma das vitórias do amor-cortês sobre a tradição celta que afirmava o

orgulho de viver. Para o crítico é uma forma de purificação espontânea e ativa do desejo. É a

vitória da paixão sobre o desejo: êxito da morte em relação à vida. Em relação ao desejo veja-

se, o que diz, Carotenuto:

Se o desejo é por definição insatisfeito, quando amamos tornamos a experimentar de modo bastante vivo o sentimento da solidão. Em nós há um impulso para a totalidade, um andar para a perfeição, a ponto de, em certas

195 Para elucidar melhor este parágrafo, convém ler em Tristão e Isolda o capítulo intitulado “O Vau Arriscado”. 196 BARTHES, Roland. Idem. p. 24.

152

pessoas, por exemplo, os místicos, o amor ideal se dirigir a Deus e não às coisas terrenas. A essas conclusões chegamos com tristeza, porque é claro que nessas coisas tendemos a nos iludir, e é também justo que seja assim; mas de fato, a dimensão amorosa que atravessamos é sempre uma experiência de ausência, e a ausência tem a ver com a saudade.197

Nota-se, tanto na produção medieval quanto na oitocentista, que os heróis e

heroínas são movidos por um sentimento saudosista de solidão. Em Tristão e Isolda, é a

distância da mulher amada a causa do sentimento desolador em Tristão; em Iracema, é o

oposto: são as ausências intermitentes de Martim, suas idas e vindas, sempre envolvido em

guerras e abandonando constantemente sua amada, a causa do sentimento saudosista e de

solidão da heroína. Nos dois casos, a ausência do objeto amado provoca no eu-lírico um

estado de inquietação marcado pela privação do outro. Quanto ao sentimento de afastamento

Barthes afirma que é “todo episódio de linguagem que põe em cena a ausência do objeto

amado – quaisquer que sejam a causa e a duração e tende a transformar essa ausência em

prova de abandono”198.

Como é movido o desejo? Há uma movimentação voltada à manifestação das

pulsões mais secretas do amante apaixonado. É a deflagração do amor assumindo uma das

formas mais possessivas: surge o sentimento que predispõe os amantes a desejarem o bem

recíproco do parceiro, é o sentimento de dedicação absoluta de um ser ao outro. É um

momento em que o homem e mulher vivem um conflito amoroso decorrente da capacidade

infinita que os subterrâneos da alma emanam no imaginário. É o momento em que os

idealismos advindos do universo interior formam um mundo encantado em que os apelos da

imaginação se opõe ao mundo racional, é onde os projetos irrealizáveis percorrem um

itinerário sem nenhum empecilho; enfim, é o surgimento da força maior que envolve o ser: o

amor. A vitalidade que se experimenta quando ama decorre da nova disposição para a busca

suscitada e alimentada pelo desejo e que para manter viva uma experiência amorosa depende

da possibilidade de dividir como o outro o enriquecimento interior que brota da relação.

Erich Fromm,no seu livro Análise do Homem nos adverte que o amor autêntico

tem suas raízes na produtividade e pode chamar-se aproximadamente amor produtivo: “sua

essência é a mesma quer se trate de amor materno, quer de nosso amor pelos nossos

semelhantes, quer do amor erótico entre dois indivíduos”.199Para o historiador, uma relação

197 CAROTENUTO, Aldo. Idem. p. 24. 198 Idem, p. 52. 199 FROMM, Erich. Análise do homem. 7ª Edição. Rio do Janeiro: Zahar, 1970. p. 90.

153

amorosa não pode ser composta com uma parte faltante, deve haver a reciprocidade para a

perfeita conjunção amorosa, para haver a completude na ligação entre os indivíduos que se

predispõem a colocar a lei do amor acima de qualquer coisa.

Longe de qualquer invenção idealizante, pode-se dizer que a falta é originária das

condições da existência humana: 1- necessidade de um relacionamento visto que se sente só,

isolado, sente por si só que perdem suas ligações de interdependência com o meio em que

subsiste e, isolado dessa natureza não está instrumentalizado para enfrentar com dignidade as

relações humanas que lhe asseguram o cuidado mútuo e a compreensão; 2 – há no ser

humano uma necessidade de transcendência, algo que o diferencie, uma necessidade de

realizar sua capacidade de refletir, imaginar, criar. A ausência dessas necessidades o leva ao

desespero. O amor e o ódio são, por assim dizer, as respostas que o homem tem de superar na

sua natureza animal. Em terceiro lugar, falta-lhe segurança por não poder fazer parte

integrante de uma situação favorável. Não havendo a concretização dessa necessidade,

faltam-lhe a fraternidade e a solidariedade para lhe proporcionar a satisfação e a felicidade

que estão plenamente ligadas. O amor é subordinado à união simbólica dos opostos –

coincidentia contrariorum e – uma pulsão fundamental do ser, a libido, que impele toda

existência a se realizar na ação.

Sabe-se que as pulsões são pressões que dirigem um organismo para fins

particulares seja nos animais inferiores, tal qual no homem. Pulsões são forças ejetoras que

conduzem, incitam as pessoas a uma ação, à realização de um desejo, e esse tipo de pulsão

pode ser composto de quatro componentes: uma fonte, uma finalidade, uma pressão, um

objeto. A fonte pode ser a parte de um corpo ou todo ele. A finalidade é a redução da

necessidade, isto é, a satisfação do desejo no momento em que se deseja. A pressão é a

quantidade de energia dispendida para a obtenção da satisfação ou gratificação da pulsão. O

objeto pode ser qualquer coisa que permeia a ação e permite a finalidade original, algo que

busca reduzir a tensão. Segundo Freud, o modelo comportamental normal e saudável tem a

finalidade de reduzir a tensão a níveis aceitáveis e as tensões são resolvidas pela volta do

corpo ao nível de equilíbrio que existia antes da necessidade emergir.

Como estes quatro elementos constituintes de uma personalidade se desenvolvem

nas obras que estamos analisando?

A entrega incondicional de Isolda e Iracema representa a própria reação inicial

de busca dos dois heróis: Tristão e Martim. Em certo momento as heroínas passam a desejar

154

profundamente seus amantes. A vontade impulsivo-amorosa, sua libido e energia agressiva

têm uma fonte de energia em separado: o fato de se saber que existe um terceiro

(respectivamente rei Marc e Irapuã) fazendo parte da intriga amorosa. Esta condição passa a

ser causa de uma atividade demoníaca interiorizada pelo ego; todas as normas sociais

introjetadas em seus mundos interiores passam por um estado de tensão quão grande que

culmina com o desequilíbrio.

A finalidade é reduzir a necessidade até que nenhuma ação seja necessária. Na

prática poderíamos chegar à seguinte hipótese: os heróis sentem uma necessidade crescente

(ainda que inconsciente) pela posse do corpo das heroínas, tornando cada vez maior essa

necessidade eles passam a ter plena consciência de que precisam realmente possuir a mulher

desejada não importa a que preço. Enquanto o desejo não for satisfeito torna-se muito

pronunciado esse estado de tensão interior: aumentada a tensão, pronuncia-se a pressão ou

energia disponível para a realização material do desejo. Sabendo-se que sujeito e objeto (sob

condições normais) não estão em concordância entre si é praticamente impossível o

relacionamento entre amante e ser amado por meio de uma ação ou compensação, a

intensidade e qualidade do amor – esses dois elementos básicos que podem ser considerados

caracterizadores da expansão da alma – inexistem. Deve-se encontrar uma forma para a

promoção e realização do desejo: o filtro e a bebida de Tupã representam simbolicamente a

plenitude deste desejo manifesto. Quero agora aqui chamar a tenção para esta outra hipótese.

A bebida de Tupã representa a mesma função simbólica do filtro. Já dissemos, há

pouco, que o filtro e a bebida de Tupã representam no emaranhado das representações

simbólicas o desvio da conduta que faz vir à tona a situação de enamoramento dos pares

românticos. Mais: O filtro e a bebida de Tupã fazem com que heróis e heroínas coloquem em

xeque a realidade ou empecilho exteriores. O filtro e a bebida de Tupã desempenham uma

outra função simbólica no plano do imaginário: é o elemento condutor da morte das

personagens. Assim, o amor do para romântico pervertido por uma situação inesperada, ao

invés de ser o centro unificador buscado, torna-se princípio de divisão e de morte. Deixa de

ser sinônimo de aproximação e união entre as partes. Mesmo diante da adversidade, nota-se

no universo anímico das personagens uma forte carga de erotismo desencadeada pelo desejo

e, nesse contexto, por detrás da transgressão, há uma força contrária interessada na não

realização da plena relação amorosa. Como bem observa Chevalier200: dois entes, que se

200 Dicionário de Símbolos, p. 49.

155

entregam e se abandonam, reencontram-se um no outro, mas elevados a um grau superior de

ser, se a doação tiver sido completa e não apenas limitada a um certo nível de sua pessoa

que é, na maioria das vezes, carnal.

Momento em que os heróis são submetidos aos efeitos das bebidas mágicas. Isso

se dá diferentemente em Iracema e em Tristão e Isolda. Comecemos por José de Alencar.

(...) – Vai e torna com o vinho de Tupã. Quando Iracema foi de volta, já o pajé não estava na cabana, tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia oculto sob a carioba de algodão entretecida de penas. Martim lho arrebatou das mãos, e libou as gotas do verde201 e amargo licor. Agora podia viver com Iracema e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar o veneno no seio da virgem. O gozo era a vida, pois o sentia mais forte e intenso; o mal era sonho e ilusão, que da virgem não possuía senão a imagem. Iracema afastara-se, opressa e suspirosa. Abriram-se os braços do guerreiro adormecido e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente. A juriti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as asas e voa a aconchegar-se ao tépido ninho. Assim a virgem do sertão aninhou-se nos braços do guerreiro. Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivo rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do sol, em suas faces acendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor. A jandaia fugira ao romper da alva, e para não tornar mais à cabana. Vendo Martim a virgem unida a seu coração, cuidou que o sonho continuava; cerrou os olhos para torná-los a abrir (p. 89).

Este fragmento do 6º capítulo precisa com riqueza de detalhes o instante em que

Iracema se entrega ao ato sexual com Martim. E se transforma finalmente em sua esposa.

Deixa de ser sacerdotisa de Tupã. Entrelaça-se no drama amor/morte, deste momento em

diante sofrerá tudo para ficar ao lado de seu dono e senhor. “Aliás, a imagem de dependência

se configura na identificação de Iracema é enrediça que entrelaça o tronco robusto ao termo

pâmpano da baunilha que enlaça o rijo galho do angico”202. Há uma cena em que por uma

comparação desta natureza Iracema anuncia sua morte:

201 Segundo Jean Chevalier (2002: p. 942) “O verde conserva um caráter estranho e complexo, que provém da sua polaridade dupla: o verde do broto e o verde do mofo, a vida e a morte. É a imagem das profundezas e do destino”. Sem dúvida essa definição do símbolo se aplica bem ao episódio que estamos descrevendo visto que o licor sagrado representa no plano do imaginário o elemento de vida que confere força à paixão amorosa, mas que também é gerador da morte. 202 PINTO, Maria Cecília de Moraes. A Vida Selvagem, p. 140.

156

Não vêem teus olhos lá o formoso jacarandá que vai subindo as nuvens? A seus pés ainda está seca a raiz da murta frondosa, que todos os invernos se cobre de rama e bago vermelhos para abraçar o tronco irmão. Se ela não morresse, o jacarandá não teria o sol para crescer tão alto. Iracema é a folha escura que faz sombra em tua alma; deve cair, para que a alegria alumie teu seio. 203

A previsibilidade do final trágico repetidas vezes presente ao longo da narrativa

evidencia a distância entre o branco e a índia. Para o elemento europeu, Iracema é, assim

como a frondosa oiticica, uma sombra em sua vida e a causa, se bem que parcial, de sua

melancolia e desajuste interior; a ausência de Iracema há de significar luz e liberdade para ele

se levarmos em consideração que ele tem os olhos voltados para uma suposta noiva. Por

outro lado, inversamente, o guerreiro branco significa para ela claridade e alegria, embora ela

tenha plena consciência de que sofrerá o maior dos martírios em seu nome. O sofrimento

corporal e moral infligidos a ela pela desobediência e violação da lei, o desejo que na

concepção freudiana é um dos pólos do conflito defensivo, a perda gradativa do objeto

amado, justificam a morte de Iracema, que não chega a ser trágica, porém é profundamente

triste. Tal qual as plantas a que se assemelha a ex-virgem de Tupã não perde a vida de súbito.

Vai murchando e se extinguindo aos poucos. Contudo, Iracema que não pode compartilhar a

maternidade de Moacir concebido nos tempos felizes e nascido nos dias de abandono: pelo

seu sacrifício, preço amargo e inevitável da civilização, duas etnias se integram: “- quando

teu filho deixar o seio de Iracema, ela morrerá, como o abati depois que deu fruto. Então o

guerreiro brando não terá mais quem o prenda na terra estrangeira”204.

Em Iracema, doçura e desobediência se transformam em rebelião quando a

heroína se vê abandonada pelo homem amado. Nesta obra, dominada pela representação de

uma estrutura tribal, a sociedade é imperfeita e não sai vencedora diante da transgressão da

jovem heroína: aqui não se anula a transgressão. O sentimento amoroso vai defini-la e ela só

existirá neste plano. Misto de fauna e flora, Iracema, a título de comparação e enquanto

personagem delineada, não possui a nitidez de contornos de Peri de O Guarani; no entanto,

não se volatiliza na secura nominal de um Ubirajara, herói que tal qual Iracema empresta o

nome à obra, que ultrapassando o universo ficcional encarna a idéia pura do índio.

Em Tristão e Isolda as coisas mudam.

203 ALENCAR, José Martiniano de. Iracema, pp. 76-77. 204 Idem, p. 76.

157

Certo dia, os ventos cessaram e as velas murcharam ao longo do mastro. Tristão mandou que acostassem em uma ilha, e, cansados do mar, os cem cavaleiros das Cornualhas e os marinheiros desceram à praia. Somente Isolda ficara na nau, com uma pequena serva. Tristão viera até a rainha e procurava acalmar seu coração. Como o sol brilhasse e estivessem com sede, pediram o que beber. A criança procurou alguma bebida, até que descobriu a jarra confiada a Brangien pela mãe de Isolda. – Achei vinho! – gritou ela para os dois. – Não, não era vinho: era paixão, era a amarga alegria e a angústia sem fim, e a morte. A criança encheu um canjirão e apresentou-o à sua senhora. Ela bebeu em longos goles, em seguida estendeu-o a Tristão que o esvaziou. Nesse instante, Brangien entrou e viu-os a se olharem em silêncio, como se estivessem desvairados, arrebatados. Viu diante deles a jarra quase vazia e o canjirão. Pegou a jarra, correu à polpa, jogou-o nas vagas do mar... (...) Novamente a nau navegava rumo a Tintagel. Parecia a Tristão que um espinheiro resistente, de agudos espinhos, de flores perfumadas, deitava suas raízes no sangue do seu coração e com fortes liames enlaçava ao belo corpo de Isolda seu corpo e todo o seu pensamento e todo o seu desejo.( pp. 30-31).

Neste fragmento Tristão e Isolda se apaixonam e passam a viver uma paixão

proibida. Conforme se observa neste átimo narrativo, ambos dirigiam-se para o castelo do

rei Marc onde Isolda seria entregue para ser desposada. Neste ínterim, após tomar a bebida

preparada pela mãe de Isolda, os dois deliciam-se do amor. No mesmo capítulo mais adiante:

Parecia a Tristão que um espinheiro resistente, de agudos espinhos, de flores perfumadas, deitava suas raízes no sangue do seu coração e com fortes liames enlaçava ao belo corpo de Isolda seu corpo e todo o seu pensamento e todo o seu desejo205.

Tristão transforma-se definitivamente em vassalo amoroso de Isolda. A partir

desta entrega, passam a vivenciar uma vertiginosa febre da paixão a qual será a causa de um

amor sem esperança. Dir-se-ia que o casal apaixonado bebeu a morte, pois é a poção que

causará seu infortúnio.

Sob esta perspectiva, convém esclarecer que Isolda não estava interessada em

casar-se compulsoriamente com um rei desconhecido em decorrência do juramento de honra

de Tristão feito ao tio Marc; todos os fatos nos levam a acreditar que ela estava apaixonada

por Tristão e se sentia preterida por ele que recusa o direito de desposá-la, direito este

conseguido à custa de sua batalha e por ele ter vencido o dragão que assolava a região em que

Isolda vivia. Sua mãe, notória feiticeira, percebendo o desânimo de Isolda se encarrega de

usar seus conhecimentos de magia e engendra o filtro a fim de que a paixão fervorosa de

205 BÉDIER, Joseph. O Romance Tristão e Isolda, pp. 31-32.

158

Isolda por Tristão fosse transferida para o futuro marido, o rei Marc. O resultado é nefasto: o

veneno da paixão entre os dois jovens apaixonados emerge de seus universos interiores e o

erótico passa a se nutrir desta peripécia cuja itinerária final era a transgressão. Assim, o

enlace matrimonial, objeto transgredido pelos amantes, tornou-se um óbice necessário para a

efetiva manifestação da paixão incontida. Pode-se dizer que os amantes cegos pela poder do

filtro passam a vivenciar em toda a plenitude a paixão proibida: optam, ainda que

inconscientemente, pela morte – espécie de refrigério para o alívio de todas as tensões

interiores e exteriores:

A mútua entrega se dá na iminência de chegarem à terra onde serão recebidos pelo rei Marcos, e onde tudo se apronta para o casamento. A longa fase que se segue, no romance, joga-se entre o casamento oficial, a paixão clandestina e as intrigas dos barões do rei (conforme já dissemos), que se esforçam para surpreender os amantes e denunciá-los ( o que nunca consegue de todo, permanecendo o rei numa espécie de ponto cego para o segredo – evidente da paixão 206.

Fechado os olhos para a realidade herói e heroína dão adeus a todas as

circunstâncias exteriores que os impediam de ficar juntos, mas este ficar juntos é simbólico,

porque na verdade os caminhos que juntos passarão a seguir os afastarão cada vez mais um

do outro. Após o perjúrio, Tristão usa de todos os estratagemas possíveis e imagináveis para

ficar ao lado de Isolda. Em todos os instantes em que estão juntos e que passam a ser

perseguidos ora pelo rei Marc ora pelos barões através de malogradas tentativas de denúncia

intenta-se um ardil para absolvê-los de quaisquer responsabilidades. Contudo, o caminho vai

se tornando cada vez mais estreito para eles, vai convergindo para um final trágico em que a

paixão amorosa percorre um itinerário sem retorno.

Vista desta forma, a cultura cavaleiresca representa uma exaltação do amor. Há

uma correspondência precisa entre a vida vivida e vida sonhada, entre a vivência cotidiana e

o imaginário fantástico. Tais dualidades nos ajudam a compreender a base da organização do

mito cavaleiresco. Fantasia e realidade passeiam juntas pelo mesmo bosque intelectual do

poeta admitindo-se que esta é uma forma encontrada para mascarar a realidade por meio de

um artifício onde o sagrado e o profano, ortodoxo e heresia dão mobilidade à imaginação

criadora do autor.

Por fim, neste fragmento são narradas, por Bédier, as cenas que impulsionarão

toda a narrativa. É o encontro com o inevitável, instante em que herói e heroína transformam- 206 CARDOSO, Sérgio & Outros. O Sentidos da Paixão, p. 201.

159

se efetivamente em servos um do outro, seus olhos se fecham para a realidade e passam a

vivenciar os caprichos do destino implacável que destruirão suas vidas. Passam a ser movidos

pelo mesmo desejo, a linguagem deixa de refletir as flutuações da fronteira com o verossímil

e passa a ser comandada pela estrutura do absurdo e do inverossímil. O casal passa a viver na

‘escuridão’, assume o ato e o fascínio pela interdição:

Os amantes se abraçaram. Em seus belos corpos fremiam o desejo e a vida. Tristão disse: - Que venha pois a morte! E quando caiu a noite, dentro da nau que saltava mais rápido rumo à terra do rei Marc, ligados para sempre, abandonaram-se ao amor (p. 32).

Diante destas ações que norteiam a narrativa pode-se dizer, sem muito receio de

contradição efetiva, que antes de os heróis serem submetidos aos efeitos das bebidas, suas

visões em torno do amor eram visões sacralizadoras, de contenção e até de certa forma

“ágape”, destituídas de erotismo. É como se o culto às heroínas representasse apenas o

exercício de um desejo pela imagem, pelo desenho, pela figuração; procurava-se elevá-las ao

mais alto grau da perfeição sem contudo tirar proveito disso. E isso que vimos falando está

dentro das convenções do amor cortês: ama-se a imagem idealizada do objeto amado e não o

ser propriamente dito. É uma paixão hermenêutica, de difícil compreensão. Tanto a magia e

retórica cavalheiresca quanto o prosaico oitocentista estão revestidos de uma linguagem

sobrecarregada de material simbólico. Como afirma Rougemont:

A paixão proibida, o amor inconfessável criam para si um sistema de símbolos, uma linguagem hieroglífica, cuja chave a consciência não tem. Linguagem ambígua por essência, pois “trai”, no duplo sentido da palavra, o que quer dizer sem o dizer.207

As circunstâncias como se dão a entrega voluntária de heróis e heroínas no

tocante ao filtro e à bebida de tupã, têm características peculiares. Vejamos isso de perto.

Em Tristão e Isolda, herói e heroína passam a amar-se a partir do instante em que

são submetidos aos efeitos do filtro. Um detalhe que não se pode esquecer é o fato de que

eles tomaram o filtro por um equívoco e, é em virtude dessa fatalidade que todos os seus atos

convergem para o destino mortal e pena impostas pela quebra da interdição. Em Iracema,

apenas Martim rompe o interdito, vítima de ‘forças ocultas e oníricas’208. Seu álibi é a

207 ROUGEMONT, Denis de. O Amor e o Ocidente. pp. 38-39 208 FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. In”: O material dos sonhos – a memória nos sonhos. Tradução: Walderedo Ismael Oliveira. Para Freud, “todo o material que compõe o conteúdo de um sonho é derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi reproduzido ou lembrado no sonho – ao menos isso

160

própria situação de inconsciência. Poder-se-ia dizer, por extensão, que tal como o filtro a

bebida de tupã representa simbolicamente o elemento que advogará a favor de seus atos, pois

suas ações deixaram de ser calculadas propositalmente tal qual ocorre com Tristão e Isolda

quando tomam conhecimento que estarão unidos um ao outro com um itinerário comum: um

passo em direção à morte.

Em Iracema, não fora preciso que a bebida ou um filtro lhe alterasse a tendência

natural para apropriar-se do objeto dos seus desejos. Somos levados a acreditar na hipótese de

que Iracema induziu, seduziu o guerreiro para a teia amorosa, tinha plena consciência daquilo

que estava fazendo ao passo que o elemento colonizador, vitimado por uma alucinação,

tornou-se efetivamente seu par amoroso em um momento de inconsciência. Ao longo da

narrativa, quando visualizamos mais de perto o desenrolar dos acontecimentos episódicos,

dá-nos a impressão de que a união de Martim com Iracema se fez mais por uma questão de

honra do que de amor propriamente dito. Descoberto que Iracema havia rompido com Tupã,

já que não poderia mais viver em paz com os seus irmãos da tribo, só lhe restou uma

alternativa: levá-la consigo para longe e assumir a paternidade; porém, mesmo assumindo a

paternidade, não assume integralmente o enlace matrimonial como o desfecho da narrativa

mostra claramente.

Em Iracema a interferência da bebida de Tupã tem uma função simbólica, é

causadora de morte, tal qual acontece com Tristão e Isolda. Porém, morre apenas a heroína.

Mas sua morte, representa nascimento, visto que o fruto de seu amor viria a dar origem,

como já dissemos, ao terceiro elemento rácico da sociedade brasileira. Longe de ser uma

catástrofe romântica, a morte da heroína, abre, por outro lado, espaço para o desenvolvimento

da retórica do mito – herança do amor provençal – que Alencar rearranja para atribuir-lhe

uma função simbólica em nossas letras: a tentativa de ruptura com o segmentos da elite que

via no índio o símbolo da crueldade, porém Alencar cria-lhe uma identificação ao brio

nacional atribuindo-lhe valores às das figuras mitológicas.

Nas duas obras é a mulher quem oferece a bebida inebriante às personagens. Em

Tristão e Isolda, por engano, a serva de Isolda oferece-lhe a bebida, em Iracema, não houve o

engano: a virgem indígena oferece a Martim a bebida de Tupã sabendo perfeitamente o que

podemos considerar como fato indiscutível. Mas seria um erro supor que uma ligação dessa natureza entre o conteúdo de um sonho e a realidade esteja destinada a vir a luz facilmente, como resultado imediato da comparação entre ambos. É preciso, pelo contrário, procurar diligentemente a ligação, e em inúmeros casos ela pode permanecer oculta por muito tempo. Rio de Janeiro: Imago, 1999. pp. 31.

161

estava fazendo e, por conseguinte, o choque que esta atitude desencadearia no decorrer da

intriga. Se levarmos em consideração os estudos de Duby sobre as mulheres da Idade Média,

constataremos que isso tem muito a ver. Por quê? Ora, sabe-se que a mulher era vista então

de modo bastante negativo, destituir o homem, a figura masculina, da responsabilidade do ato

errado ou ilícito passa então a ser o código de honra da sociedade marcada, como é notório,

por um patriarcalismo desenfreado. Note-se que o século XIX foi, também, uma época

histórica marcada por um forte patriarcalismo. Nele houve também a discriminação contra a

figura feminina e que pode ser observado não só nos estudos de Duby sobre as mulheres do

período oitocentista, mas também na observação das figuras femininas dos bons romances de

nossa literatura romântica.

Na vida diária da mulher a tendência ao erro esbarra na realidade social e

cultural, que impede através das normas, costumes e instituições, etc., a realização do

desejado prazer por vias normais. Daí a necessidade de ela buscar a consumação do seu

desejo desvinculado das amarras do superego. E isso já foi demonstrado anteriormente

quando foi dito que Iracema não podia corromper ao rito sagrado de Tupã, nem Tristão

poderia se desvencilhar das amarras do juramento de lealdade que fizera ao rei Marc de trazer

a possuidora dos fios de ouro, Isolda, a loura.

Quanto à configuração conceitual do amor, em Tristão e Isolda e em Iracema,

não figura o sentido do amor desinteressado e doador, afastado da sensualidade e da paixão –

“ágape”. Nos dois casos nota-se o abandono do corpo físico em favor dos sentimentos mais

castos, nos dois casos a opção dos pares românticos, suas decisões alteram o curso de suas

vidas; em ambos os casos, o amor nasce do sentimento, mas destina-se a transcendê-lo; nos

dois casos o amor-vassalo, mesmo se tratando de dois textos de épocas diferentes, a

construção do conceito do amor permite reconhecer traços que se repetem, atributos que se

renovam e mudanças que se deslocam o local social que lhe é conferido. Nos dois casos, o

tema do amor tem sido um veículo capaz de demonstrar os percursos e a maneira pela qual se

elaboram e se estabelecem um modo de percepção de interioridade do indivíduo, suas

limitações, suas forças e seu destino.

Nos dois textos, lendo as obras como um todo, o movimento de erotização e do

prazer são suplantados pelo desejo do outro. Tanto na lírica medieval quanto no episódio

romanesco o desejo se contrapõe ao prazer como lugar de embate. Em ambos os casos tanto o

homem como a mulher são os principais destinatários do discurso amoroso. Disto conclui-se

162

que se deve à lírica original oferecer ao desejo uma concretude singular, uma consciência

sensível e ideal, cujo espelho se projeta em toda a lírica ocidental para legitimação da

intensidade amorosa.

Em síntese, nas duas obras a paixão pode ser definida como um sentimento ou

emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se, por conseguinte, à lucidez e à

razão. Sendo uma fixação pelo outro, por uma pessoa, uma idéia ou uma coisa, a paixão se

distingue de outros sentimentos por sua força, sua intensidade, sua exclusividade. Assim,

heróis e heroínas apaixonados prodigalizam todo tempo para não deixar de honrar seus

compromissos amorosos – tópica da cortesia. O caráter passivo dos amantes apaixonados

domina a própria vida fazendo-a percorrer outros itinerários que, todavia, não percorreriam

em estado de lucidez como demonstra Alencar e Bédier no enredo e desenlace da situação

conflituosa entre os pares românticos.

Há nos dois textos a presentificação do narcisismo como elemento delimitador da

subjetividade do eu-lírico; assim que os amantes trocam olhares a imagem do outro se

interioriza em seus universos anímicos, o outro passa a ser feito a imagem de si mesmo, a

partir daí não importa mais o que é Céu e o que Terra, o que está acima e o que está abaixo,

o que está à direita e o que está à esquerda, tudo se se enraíza na busca do mesmo objetivo: o

desejo de compartilhar o sentimento mútuo com a mesma intensidade e vivacidade; o sujeito

e o objeto se mesclam e adquirem a qualidade de uno. Adquirem o mesmo discurso amoroso

e têm plena consciência de que um se completa no outro. Iracema ama Martim com a mesma

força com que Isolda ama Tristão.

Não podemos nos esquecer que no caso de Tristão e Isolda há uma constante

expansão e reciprocidade da capacidade infinita de amar ab imo pectore (do fundo do

coração, com toda a afeição); ortodoxamente, em Iracema, há uma espécie de afeto e respeito

(em relação à atitude de Martim de pensar em outra) do que de um amor verdadeiramente

sincero e produtivo. Sabe-se que uma suposta noiva o espera incansavelmente em terras

longínquas, como este amor não pode ser realizado no plano da concreticidade ele transfere

por deslocamento este amor que sente para a virgem indígena como um mecanismo psíquico

de compensação do objeto ausente e distante de si, o que não ocorre com Tristão em relação

ao seu relacionamento com Isolda.

No episódio poético medieval há alguns desencontros entre o herói e a heroína,

principalmente quando aquele percebe que há maquinações empreendidas pelos barões a fim

163

de incriminá-lo pelo amor proibido e por incorrer em deslealdade para com o rei. No entanto,

este desencontro é temporário; Tristão tenta, inicialmente, transferir o desejo amoroso

casando-se com Isolda das Brancas Mãos, mas não consegue consumar sua relação com ela.

O episódio descrito no 13º capítulo (Isolda das Brancas Mãos) corrobora isto que estamos

argumentando: no capítulo narrado por Bédier, Tristão cria um ardil para que a paixão com

Isolda a Loura não fosse corrompida e para que ele permanecesse fiel ao primeiro amor,

conforme será exposto mais adiante, quando trato da questão da virgindade e da sedução.

Enfim, em Tristão e Isolda dois corações sofrem juntos as desventuras de um amor

impossível à custa de qualquer sacrifício, estão sob um sentimento muito forte e toda

existência ainda é pouca para o aperfeiçoamento da ligação amorosa que requerem, há um

abyssus abyssum invocat, isto é, um abismo atrai outro, um erro, um engano, atrai outro,

provoca outro, ocasiona outro, porém com a complacência de ambos; em Iracema, um

coração sozinho tem que sofrer por dois devido à incompletude de uma parte faltante.

Nota-se em Iracema e em Isolda um crescendo mórbido. Opera-se nas

personagens o triunfo do niilismo porque para elas a desordem do mundo não é apenas

resultado dos valores morais e sociais, mas da força do destino que de maneira definitiva

mata o sentido das coisas e instaura a descrença total em tudo. Repentinamente a luz amorosa

jorrou sobre os olhos desatentos das heroínas, despertadas de seu torpor, reconheceram os

sentimentos que as queimavam, fazendo-as esquecer todos os princípios morais: eram as

grandezas e misérias de uma nova situação que acabavam por transformá-las em duas

mulheres frias e calculistas. Sem dúvida estas atitudes as fariam a cair de forma irremediável.

Iracema doa amor sem sentir a perda deste sentimento, no silêncio sabe doar e nas

tribulações jamais pensa em receber, seu amor não quer honras nem medalhas por seus feitos,

antes os recusa, pois não teria onde guardar. Ama como um todo e não a parte apenas, ama

verdadeiramente e compreende as falhas do parceiro e não dá importância a esta desarmonia,

valoriza a essência da personalidade do amante. A heroína indígena ama, sobretudo, a

felicidade do parceiro. O gozo e o deleite do outro lhe promove a resignação. Neste

desprendimento, ama sem ser amada, ama sem pedir amor. Iracema ama com uma paixão

inteiramente estranha, um rapto indefinido da razão e do sentido natural. Há alguns claros

indícios no decorrer da narrativa que revela um Martim não muito afeito à correspondência

amorosa. Foge da taba onde habita Iracema. Já nos faz antever, este fato, que o guerreiro

estrangeiro não leva muito a sério o primeiro relacionamento em terras estrangeiras e de seu

164

envolvimento com a virgem indígena. Iracema nota o ato. O fragmento a seguir corrobora

isto a mostra condescendente com a partida e a indiferença de Martim:

Iracema parou em face do guerreiro: - É a presença de Iracema que perturba a serenidade no rosto do estrangeiro? Martim pousou brandos olhos na face da virgem: - Não, filha de Araquém: tua presença alegra, como a luz da manhã. Foi a lembrança da pátria que trouxe a saudade ao coração presságio. - Uma noiva o espera? O forasteiro desviou os olhos. Iracema dobrou a cabeça sobre a espádua, como a tenra palma da carnaúba, quando a chuva peneira na várzea. - Ela não é mais doce do que Iracema, a virgem dos lábios de mel, nem mais formosa! - murmurou o estrangeiro. - A flor da mata é mais formosa quando tem rama que a abrigue, e tronco onde se enlace. Iracema não vive na n’alma de um guerreiro: nunca sentiu a frescura do seu sorriso. Emudeceram ambos, com os olhos no chão, escutando a palpitação dos seios que batiam opressos. A virgem falou enfim: - A alegria voltará logo à alma do guerreiro branco; porque Iracema quer que ele veja antes da noite a noiva que o espera. Martim sorriu do ingênuo desejo da filha do pajé (pp. 23-24 ).

Esta visão sacralizadora do amor em Iracema nos ajuda a penetrar no conteúdo da

tópica literária do amor chamado cortês. É a presentificação do inferno das relações

amorosas. Tal qual na lírica cortês, em Iracema, o amor é inacessível, dir-se-ia que a heroína

opta pelo flerte – posição de distanciamento do objeto amado – em lugar do amor impossível

cujo obstáculo poderia ser removido; na impossibilidade disto tudo precisa ser administrado.

E é isto o que ocorre: Iracema administra a situação constrangedora. É como se a heroína

procurasse no outro, causador de seu infortúnio, algo que ele não poderia oferecer a ela, e

assim o amor não se consuma.

Da mesma forma que nas relações de cortesia da Idade Média, Iracema encontra-

se encastelada, à distância, em uma posição defendida. No fundo, o que ela movimenta como

bem mostra Lacan é a busca do “não-real”209. Tanto Iracema quanto Isolda são arrebatadas

pela mesma paixão, a qual é provocada pela presença ou imagem do objeto amado, é o

motivo que as levam a assumir uma posição de passividade e dependência permanente do

outro. Sob um ponto de vista aristotélico, o efeito desta paixão lesa seria a variação do juízo e

de que se seguem o sofrimento e o prazer – “Eros e Pathos”. Ambas fazem do amor e da

morte, do desejo e do aniquilamento a razão do viver. Então, a dor, o sofrimento, a inquietude 209 Seminário 7, O amor Cortês - em anamorfose.

165

fazem com que as heroínas encarem o drama existencial sem medo e que encarem a vida

como uma luta renhida, tomada a consciência da morte e da precariedade do destino humano,

não se acomodam com o fantasma da infelicidade; quanto mais indagam sobre a situação,

mais se inquietam em um permanente círculo vicioso.

O amor é indissociável, apresenta-se como um enigma e nunca se deixa decifrar

inteiramente. Indômito, o amor se impõe à revelia, colocando-as em uma posição de objeto –

não obstante, assumindo a si mesmas podem se tornar sujeito. Eis a visão de Millan em, O

que é o amor:

O amor é uma promessa que não se cumpre e só por o ignorarmos acreditamos nas suas juras, entregando-nos a elas como se do sentimento ou da vida pudesse dar ou ter garantias. Indissociável do ódio, o amor é ainda de um outra paixão, a paixão tão humana da ignorância”210.

Dizer isto, então, é afirmar que estamos fadados à insatisfação e não à felicidade;

assim, retomando a visão de “Eros” da Antiguidade, amor é sinônimo de sofrimento.

Iracema vê no amante o único capaz de refletir a si mesma, conferindo a ela uma

unidade que é um bem, não renuncia sem dor este privilégio. Iracema tal qual Penélope chega

a justificar uma vida inteira de espera e castidade aos princípios preestabelecidos pelo código

tribalístico de sua comunidade indígena. A partir de seu enamoramento, amor e paz

inexistem. Isto nos leva a acreditar que o amor – de compleição narcísica – suporta a

diferença: diante do desejo por Martim que a contraria, opta por ceder. Suporta a dor da

perfídia para evitar o aborrecimento dele, o desagrado – tópica da lírica da cortesia, que torna

o amante velado e discreto. Este comportamento revela Iracema não sujeito brigas; para ela o

amor não é sinônimo de guerra, opta pela reconciliação da parte faltante e do pronto

desvanecimento de diferenças aparentemente profundas. Assim, em decorrência do

narcisismo, o mesmo amor que ocasiona a quebra e ruptura, também, proporciona um

passageiro bem-estar.

Em suma, em Tristão e Isolda e em Iracema, há a presentificação de um lirismo

erótico-amoroso, marcado por uma dimensão entre idealizada e carnalizada da figura

feminina. Em ambos os casos o amor é sinal de sofrimento, sentimento este que está

associado necessariamente ao eu-lírico para dar vazão ao intento amoroso; nos dois casos

210 MILAN, Betty. Idem. p. 19.

166

sofrer por amor é uma questão da individualidade das personagens, é um assomo de

contrariedade que se desencadeará com a morte – final decoroso na pena do escritor.

Vejamos a questão da virgindade em Tristão e Isolda e Iracema.

A sedução é um estado psicológico que nos permite captar aspectos da

personalidade que de outra forma permaneceriam desconhecidos, é a outra face de nossa

personalidade, a que aflora nas grandes crises, nas grandes experiências. É como uma

experiência de ser levado para fora da rota enquanto se entra em conjunto com alguns

aspectos da própria personalidade de cuja existência nunca se havia suspeitado. Assim, torna-

se fácil entender a sedução em Iracema e os aspectos delinqüências de sua conduta

irrefreável. Ao seduzir Martim, Iracema renunciou a própria subjetividade para se tornar um

objeto, no momento em que o amante se coloca diante dela se tornou importante para sua

vida, para aprender a se conhecer, o que jamais aconteceria em outras situações, o outro

passou a ser algo que ativou seu mundo sob o estímulo de suas necessidades.

A sedução fê-la descobrir que o dogma tribal vedava sua individualidade e, por

conseguinte, recalcava-lhe o desejo. Para Carotenuto, a sedução é uma espécie de droga, de

veneno que, apropriando-se de nós, só nos deixa quando chegamos ao fundo, quando

percorremos tal experiência e a conseguimos metabolizar. “Somente assim nos encontramos

com as partes que representam a dimensão de que nos envergonhamos, que nunca pomos à

luz”211. Iracema se revela na sua totalidade e complexidade neste momento específico de sua

vida, não podendo se defender e nem se calar a não ser fazendo apelo à sua totalidade

psicológica se libertando das amarras que a acorrentavam junto à sua tribo. Em suma, a

heroína põe à mostra duas qualidades intrínsecas à sua personalidade passível de provocar a

admiração no outro: a sedução e a virgindade.

Temos nossos próprios sentimentos relativos à valorização da virgindade e o

estado de intocável da mulher. A sociedade medieval e a oitocentista também os tinham. O

que se pode depreender deste fato incontestável é que ainda hoje a questão é polêmica e

complexa. Não é nossa intenção defender uma tese sobre o objeto ‘virgindade’ mas vale

algumas considerações que são importantes para o nosso estudo, Lacan diz:

Seja quem for o primeiro a satisfazer o desejo de amor de uma virgem, longa e penosamente refreado, e que ao fazê-lo vence as resistências que nelas foram criadas através das influências de seu meio e de sua educação,

211 CAROTENUTO, Aldo. Idem,. 69.

167

este será, o homem que a prenderá num relacionamento duradouro, possibilidade esta que jamais oferecerá a qualquer outro homem212.

A temática da virgindade está implicitamente presente na casuística amorosa dos

heróis e heroínas de Tristão e Isolda e Iracema. Há nos dois textos a presentificação da

essência da monogamia, porém de maneira diferente da apresentada por Lacan. Em TI a

heroína antes de ser desposada pelo rei Marc, nas circunstâncias em que toma o filtro, se

entrega às delicias sensuais do primeiro amor – o amor do barão-cavaleiro-Tristão. Deflorada

(sem jamais ter engravidado) Isolda, ao que consta, não entregou seu corpo ao marido legal.

Ao contrário, para mascarar sua desvirginização e infidelidade pede à sua serva Brangien que

a substitua na noite de núpcias, o que é um verdadeiro atentado contra a ordem lógica da

razão (vide cap.V – Brangien entregue aos servos). Ao entregar-se a Tristão Isolda adquire

um grau de dependência total em relação a ele. Tal dependência ocorre até a perda de toda

vontade pessoal e ao submeter-se aos maiores sacrifícios ao lado do amante. Esta

dependência foi absolutamente necessária para a duração do período de enamoramento e para

a manutenção do relacionamento amoroso. Não há referências textuais atestando que Isolda

se entregara ao amor de Marc, nem tampouco descrições pormenorizadas demonstrando uma

possível relação erótica entre eles. Diante disto, é possível lançar mão da hipótese de que

Isolda após perder a virgindade para Tristão permaneceu casta ao primeiro amor, conforme a

tese de Lacan. Tornou uma mulher fácil para o rei Marc, porém de uma profundade

inacessível sob o ponto de vista do relacionamento erótico-carnal.

O fato é que o alto valor que os pretendentes atribuem à manutenção eterna do

primeiro amor permite-nos visualizar perante esta atitude um direito à posse exclusiva do

corpo do outro, o que reforça a essência monogâmica, o monopólio do corpo primeiro. Esta

experiência criou para ambos um estado de sujeição que garantiu que a posse permanecesse

imperturbada e que ambos fossem capazes de resistir a novas tentações e tentações

secundárias. Prova disto é o episódio em que Tristão se casa com Isolda das Brancas Mãos.

Conforme a fala de Tristão, ele não poderia tocar o corpo de mulher alguma durante um ano,

o que pode plenamente ser observado pela passagem a seguir:

- Caro senhor, por acaso vos ofendi em alguma coisa? Por que não me dais nenhum beijo sequer? Dizei-mo para que eu reconheça minha falta e venha a expiá-la, se puder.

212 LACAN, Jacques. O Amor em Anamorfose. p,201.

168

- Amiga, disse Tristão -, não por zangueis, mas fiz uma promessa.Tempos atrás, num outro país, combati um dragão e ia perecer, quando me lembrei da Mãe de Deus. Prometi-lhe então que, uma vez livre do monstro por sua intercessão, se um dia eu viesse a me casar, durante todo um ano abster-me-ia de abraçar e de beijar minha esposa. (p. 110)

É possível acreditar que a antonomásia “a virgem dos lábios de mel” é uma

metáfora que Alencar utiliza para chamar-nos a atenção de que a virgindade de Iracema é

parte integrante da totalidade de sua vida sexual. De acordo com esta concepção, o tabu da

virgindade de Iracema se aproxima por metonímia ao tabu da jovem nação brasileira,

sobrepujada pelo elemento branco durante o processo de colonização do território brasileiro,

local aprazível, paradisíaco, intocável. O fato é que Iracema era virgem até que Martim a

deflorasse. Após romper o hímen da virgem indígena deveria morrer, mas não morreu

conforme já foi dito. Deflorada Iracema torna-se escrava de sua amor – prisioneira do

primeiro e único amor. Já não é dono de si, perde parte de sua individualidade. A heroína

resistira a todas as investidas do grande chefe Irapuã para ficar ao lado do guerreiro branco. A

verdade é que Iracema usou a sedução, a capacidade infinita de atrair a admiração e provocar

sensações arrebatadoras no universo interior do outro. A esta altura de nossa argumentação

deveríamos nos perguntar:

- Se o momento histórico em que Alencar engendrou Iracema foi um período

notoriamente marcado por um intenso patriarcalismo, um momento em que a voz feminina se

silenciava diante dos homens e onde a independência da mulher era um sonho utópico para

aquelas mulheres não que atiravam flechas como aquelas que passeavam livremente pelas

páginas dos romances literários, a mulher real, que motivo levou Alencar a criar esta índia

independente, visto que por aproximação ela representava a nação brasileira?

Fruto intrínseco da ideologia romântica, o artista da palavra, Alencar, ao que tudo

indica vê a mulher não como ela é, mas como ele gostaria que ela fosse. Além de Alencar

reunir em sua heroína indianista todos os ingredientes de bravura e poderes épicos impõe-lhe

uma condição de virgem a fim de, grosso modo, sugerir que a mulher também tem suas

próprias vontades e ela pode perfeitamente de per si tomar suas decisões, independentemente

da incompatibilidade com a realidade exterior, e localizada fora do sonho. Sob esta

perspectiva, o texto oitocentista assim como o medieval, são difíceis de se compreender,

sobretudo, as proposições retóricas das obras romanescas em contraposição à realidade

histórica. Estamos diante de literaturas que tornam a realidade mais complexa.

169

A binômia, casamento - adultério representou no discurso apologético cristão da

Idade Média ocidental uma contrafação e uma contrariedade. A Igreja, como se sabe, era o

principal agente ideológico e mantenedor dos poderes temporal e espiritual, condenava às

duras penas quaisquer práticas comportamentalistas que ferissem seus dogmas e preceitos

preestabelecidos, entre eles a própria questão do casamento, um dos sete sacramentos

instituídos pela Santa Madre Igreja Católica para a salvação dos homens. Neste sentido, o

romance Tristão e Isolda desempenha um papel ímpar, seja por apostar no rompimento com

os rígidos códigos eclesiásticos, seja pela oposição à tendência natural e contraproducente à

maneira geral de se pensar. A despeito deste tipo de comportamento e de seu envolvimento

nas discussões literárias da época, boa parte dos estudos críticos que visam a esclarecer os

elementos identificadores da singularidade deste aspecto comportamentalista, adotam

critérios de interpretação que proporcionam para a compreensão deste dualismo sistêmico,

modalidades de explicações baseadas em um conjunto de temáticas de ordem técnica, cuja

interiorização provoca profunda alteração da hierarquia tradicional dos estilos de

representação.

Há os que defendem a tese, tal como O Seminário 7 de Lacan, de que o amor

cortês era em suma um exercício poético, uma maneira de jogar com um certo número de

temas de convenção idealizante, que não podia ter nenhum correspondente concreto real. A

prática do amor-cortês era um procedimento ou mecanismo literário com fins de moralização

e a contenção das pulsões mais arraigadas dos jovens cavaleiros que voltavam embrutecidos

das guerras.

Esta convenção social, sob o ponto de vista jurídico, revela uma piramidalização

do sistema feudal e é certo que o poder dos reis e os aparelhos do Estado da Idade Média

européia constituíram como condição de possibilidade o enraizamento nos comportamentos,

nos corpos e nas relações de poder local. Assim, a linguagem amorosa tal como ela se define

na literatura cortesã no Ocidente não é uma linguagem jurídica, no entanto, ela fala do poder

o tempo todo, pois recorre às relações de dominação e servidão. Para Foucault, Duby “liga o

aparecimento da literatura cortesã à existência, na sociedade medieval, dos juvenes: os

juvenes eram jovens, descendentes que não tinham direito à herança e que deveriam viver à

margem da sucessão genealógica linear característica do sistema feudal”213. Os jovens eram

um excesso turbulento produzido pelo modo de transmissão do poder e da propriedade, diante 213 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 12ª Ed. Organização, Introdução e Revisão técnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, p. 251.

170

disso, a literatura cortesã era uma espécie de combate fictício entre os juvenes, o senhor e o

rei objetivando a mulher apropriada. Como bem assinala Foucault214:

No intervalo das guerras, no lazer das longas noites de inverno, tecia-se em torno da mulher estas relações cortesãs, que no fundo são o inverso das relações de poder, pois se trata sempre de um cavaleiro chegando em um castelo para roubar a mulher do senhor da região. Havia portanto uma instabilidade, um desenfreamento tolerado, produzido pelas próprias instituições e que originaram este combate real-fictício que se encontra nos temas cortesãos. É uma comédia em torno das relações de poder, que funciona pelos interstícios do poder, mas que não é uma verdadeira relação de poder.

Até agora quisemos demonstrar que, sob o enfoque jurídico, o serviço de cortesia,

liga-se, de certa forma, a uma relação de poder, contudo, a convenção própria deste período

não explica, segundo Spina, por que a mulher retratada na pena do cauto escritor não era a

mesma que trabalhava e gerenciava a domus, nem tampouco explica por que estas mulheres

buscavam o amor fora da vida conjugal. A contradição é tão gritante que chega a ofuscar o

trabalho do pesquisador medievalista que se vê dividido entre o real e a fantasia, o lógico e o

absurdo, o racional e o irracional, entre o sagrado e o profano com suas ortodoxias e heresias.

No caso do amor chamado cortês215, mesmo que não se tenham dados biográficos relevantes,

pode-se dizer com muita convicção que existiu uma influência decisiva dos cátaros (v.

apêndice 2) sobre a lírica provençal.

No sul da França, instala-se um Cristianismo herético que propagou um ideal de

pureza e castidade, havia uma mística em torno de Maria, a mulher intocável e inacessível.

Na sua contextualização esta mística idealizava a figura feminina e impunha-lhe uma rejeição

ao amor físico por considerá-lo impuro e pecaminoso. Esta idealização da mulher pode ser

vista como uma mística religiosa. Na concepção de Denis de Rougemont, esta sublimação do

desejo era um indicador do ideal de pureza daqueles que aguardam ser redimidos de seus

pecados e tencionavam alcançar a glorificação e redenção eternos. Pensando assim, o

desdobramento da história de Tristão e Isolda e as impossibilidades marcadas pelo destino,

nos levam a crer na hipótese de que eles tencionam celebrar o amor na eternidade da morte, o

214 Idem, p. 251. 215PAZ, Octávio. A Dupla chama: amor e erotismo. O ‘amor cortês’ seria inexplicável sem a evolução da condição feminina. Essa mudança afetou sobretudo as mulheres da nobreza, que gozavam de maior liberdade que suas avós nos séculos obscuros. Várias circunstâncias favoreceram essa evolução. Uma foi a ordem religiosa: o cristianismo outorgara à mulher uma dignidade desconhecida no paganismo. 5ª Edição. Tradução: Wladir Dupont. São Paulo: Editora Siciliano, 2001,p. 62.

171

que, seria um prato cheio para o divã de Freud, onde as personagens se deitam, mas também

se amam.

Quando se valorizava o relacionamento em torno do amor estritamente espiritual

em contraposição ao amor carnalizado, conseguia-se como prêmio o livramento da morte

inexorável dos amantes. Contudo, a coisa não é tão simples assim. Quando Rougemont

discute a relação entre “Eros” e “Ágape” apresenta-nos conclusões extremamente

contraditórias. Para ele, é no amor erótico-paganista que se obtém a união imaterial dos

amantes; entretanto, a tradição teológica é “ágape” e o redentor desta morte, é ela que incita

a viver não mais pelas pulsões naturais do sentido, mas pelos sentimentos espirituais mais

fervorosos, a mais extrema obediência a Deus.

Herdamos do mito pagão – considerando-se Tristão e Isolda como um modelo

fundamental de amor impossível – apenas a romantização e a idealização do adultério,

principalmente na lírica romântica brasileira do século XIX. Temos uma crescente

predisposição intimamente ligada a esta lírica romântica a dissociar a paixão do casamento.

Este tipo de ideário que preconiza a paixão amorosa como algo que deve ser procurado fora

do casamento, que preconiza a idéia de que inexiste felicidade no matrimônio, mas tão

somente rotina, acabou por influenciar, por extensão, outros setores da arte como a música e

o teatro. Tanto este quanto aquela passam também a se alimentar em seu conteúdo semântico-

lingüístico da tópica do relacionamento-amoroso-proibitivo.

Restringindo a argumentação amor, casamento e adultério à Iracema e sobre esta

conveniência em obter a felicidade desvinculado do casamento lanço mãos de uma nova

hipótese.

Já sabemos que Martim casa-se com Iracema após saber da sacerdotisa de Tupã

que ela havia se engravidado. Não há no enredo de Iracema uma descrição firme e precisa;

aliás, não há descrição alguma de uma ritualística unindo o par romântico pelas leis do

sagrado matrimônio, nem véu nem grinalda, nem discursos apologéticos, nada, nada, nada.

Bom, o que nos interessa é que eles, no discurso alencariano, são casados e rumam pelas leis

do coração pelos caminhos de sua própria destruição. Destruição em seu sentido lato, apenas

da heroína, conforme visualizamos no decorrer da trama. Cabe aqui uma pergunta ao

problema apresentado:

- Martim traiu Iracema?

172

Depende do ângulo sob o qual encaramos o problema e de sua significação. Se

restringíssemos o problema para o plano teológico – o que não é nossa intenção pois estamos

analisando o amor “Eros” e não o “Ágape” – chegaríamos à evidência de que ele cometeu,

sim, o adultério, pelo menos no plano da intenção psicológica pois a sua própria consciência

o acusa. Há ensinamentos do Texto Bíblico do Novo Testamento que nos adverte que o

adultério não precisa se consumido na carnalidade para ser considerado como tal, se apenas o

pensamos mentalmente já o cometemos (Mateus 5: 28). O herói alencariano tem sempre os

olhos voltados para uma suposta noiva que deixara em outras terras, longe destas que agora

habita nas praias cearenses ao lado de sua esposa Iracema. Visto sob esta ótica, pode-se dizer

que Martim encontra sua felicidade fora do casamento. O pior é que tudo se faz com o

assentimento de Iracema: a heroína sabe da existência de uma outra pessoa, mas nem por

isso o abandona, convive com o problema, somatiza com este outro infortúnio aquele que lhe

despojara do título de guardiã de Tupã. A fim de não defender uma outra tese limito-me a

finalizar esta argumentação neste ponto.

Iracema não se dá o direito de amar um outro homem tal como acontece com

Isolda, e a partir disto podemos perceber que a relação amorosa entre o par romântico Tristão

e Isolda e Martim e Iracema e a temática do amor, casamento e adultério tem peculiaridades

intrínsecas. Há no texto tristanesco a temática do amor-adúltero e a difícil relação entre o

amor e o casamento. Tentar entender o amor é o mesmo que penetrar nos mais profundos

segredos da natureza e de nosso ser, dir-se-ia. A verdade é que adúltero ou não o

envolvimento passional é algo que nos transporta para além de nós mesmos, para uma

dimensão mística, mágica, um estado de entorpecimento em que tendemos à perda total de

nossa identidade as origem lógica das coisas. As razões dos arrebatamentos amorosos são

emblemas demoníacos ou divinos que podem matar – como mata em Tristão e Isolda e em

Iracema – mas que também possui na sua forma singular o poder de nos manter vivos.

4 -O mito

Pode-se dizer que a lenda de Tristão e Isolda representa um tipo de relação social

entre o homem e a mulher de um determinado grupo histórico que é a elite social dos séculos

XII e XIII. Embora tenha se dissolvido há muito tempo atrás, as leis deste grupo são ainda

contemporâneas: são ainda profanadas e renegadas pelos nossos códigos oficiais. Reaparece

173

sob uma forma mítica como uma espécie de tipo primitivo dos nossos mais complexos

tormentos. Demasiados mitos, como o é a lenda de Tristão e Isolda, manifestam entre nós

uma força demasiado incontestável. Neste sentido, o mito permite apreender certos tipos de

relações constantes e destacá-las da confusão das aparências cotidianas. O mito, de certa

forma, traduz as regras de conduta de um grupo social ou religioso e apresenta-se como a

expressão anônima de realidades coletivas. Dir-se-ia que os mortos encarnam nos vivos:

Al eine und sin si Lange tot, ir suezer name der lebet iedoch und sol ir tot der werlde noch ze guote langue und iemer leben...hie mite so lebet ir beider tot wir lesen ir leben, wir lesen ir tot und ist uns daz sueze alse bror216.

O mito nos influencia involuntariamente: é exatamente pelo fato de nós nos

influenciarmos por algo que não desejamos, que torna uma história, um fato ou uma

personagem um mito. A importância do mito está no fato vital que ele simboliza. A princípio,

este fato dever ser obscuro caso contrário ele não seria mito: é o segredo e o anonimato o que

lhe conferem significado na rede intricada das relações que se estabelecem dentro de um

determinado grupo social. “Não há mito enquanto for lícito manter-se dentro das evidências e

exprimi-las duma maneira manifesta ou directa”217.

Para nós, o mito inexiste nas verdades científicas, todavia, quando ele exprime

um fato obscuro como é o caso de uma paixão ligada à morte com fins destrutivos para

aqueles que a ele se abandonam com todas as suas forças, aí sim, para nós, o mito tem muito

sentido. “É que nós queremos salvar esta paixão e queremos bem a essa infelicidade,

enquanto as nossas morais oficiais e a nossa razão a condenam”218. Assim vive-se, pela

imaginação, a obscuridade do mito da paixão, sem, contudo, ter ciência clara dele. Não é só a

natureza da sociedade, mas o próprio ardor da paixão sombria, que exige uma confissão

mascarada. Sabe-se que o mito surgiu no século XII no sentido de uma ordenação social e

moral para controlar os impulsos destruidores que a Igreja tanto atacava.

O mito de Tristão e Isolda pode ser encarado como uma forma de expressão das

satisfações simbólicas que perpetua até nossos dias, de natureza obscura, que causa terror ou

ideal, exalta ou encanta. Quando um sistema de comunicação e linguagem (como é o mito) 216 SCHIMIDT, Jean-Claude & LEVI, Giovanni. História dos jovens 1: da Antiguidade à Era Moderna, “Ainda que tenham morrido há muito, seus nomes encantadores continuam a viver, e a morte deles viverá ainda por mais tempo, para sempre, para o bem do mundo cortês [...] leremos a vida e a morte deles, e para nós isto será mais benigno como o pão”. p, 142. 217 ROUGEMONT, Denis de. O Amor e o Ocidente, p. 18. 218 Idem, p. 18.

174

abandona sua forma primitiva (e permite inúmeras possibilidades de prolongamento de seus

significados) ele passa a se tornar perigoso: “os mitos caídos tornam-se venenosos como as

verdades mortas...”.

Morto, ele reaparece com uma nova vestimenta, mas não deixa de transparecer

sua matéria primitiva que é a exigência mítica a que ele correspondia em um determinado

período histórico e suas condições de funcionamento. É isso o que procuraremos visualizar

pela analise comparativa entre Tristão e Isolda e Iracema.

Não são poucas as vezes que o amor-paixão tem sido ligado à morte e quase

sempre esta torrente inesgotável de emoções vividas acaba terminando em morte. A lenda de

Tristão e Isolda é celta e faz parte de uma tradição mítico-simbólica da Irlanda e da Escócia

que se destacou por séculos enriquecendo-se de inúmeros elementos que a imortalizou. Na

sua essência, a lenda de Tristão faz sobressair sua face transgressora e subversiva

evidenciando a força selvagem da paixão. O amor tem concedido aos amantes a ilusão de

serem jogadores quando são apenas peças. O amor-paixão é capaz de revelar as delícias do

céu e as torturas do inferno dando cor a um mundo até então inexpressivo. O beginning deste

processo consiste em uma atração entre dois personagens – dois seres vivos – e, tem sido

iluminada pelas histórias de amor contidas nas lendas que podem ser mais bem

compreendidas no estudo do comportamento amoroso encontrado nos mitos.

Procuremos discernir.

Se nós fôssemos mudos no sentido lato da palavra – no plano da linguagem –

estaríamos uma tanto quanto descomprometidos com o mundo do outro; entretanto, no

oposto, comprometemo-nos muito e sofremos com isto. Não há o que questionar, pois é pela

linguagem que o outro se altera, quando ele nos diz alguma coisa, ou uma palavra diferente,

passamos a ouvir como um rugido ameaçador todo um outro mundo, um mundo que até então

não nos pertencia, é o mundo do outro com toda a sua arquitetura e configuração. Assim, a

palavra pode ser interpretada, por metáfora, como uma substância química operadora das

mais violentas alterações no eu-lírico. Quanto a isto Barthes afirma:

O outro tantas vezes retido no casulo do meu próprio discurso, faz ouvir, por uma palavra que lhe escapa, as linguagens que ele pode pedir emprestado, e que, por conseguinte, outros lhe emprestaram219.

219 BARTHES, Roland. Fragmentos de Um Discurso Amoroso, p. 40.

175

É a linguagem que se encarrega da criação do mito, pois o mito é revestido de

uma linguagem. Os relatos de Barthes se encaixam perfeitamente aos pares românticos

Tristão e Isolda e Martim e Iracema, afinal, foi pela emissão da palavra que todo o idílio

amoroso se fez.

Quando comparamos os romances Tristão e Isolda e Iracema por meio de uma

ótica romântica e retórica de construção literária, não é necessário ter o olho clínico para

perceber neles as mesmas peculiaridades textuais. Verifica-se que ambos se realizam dentro

de um universo espacial também específico, as duas obras são uma verdadeira alegoria

corporificada pela tensão passional entre dois amantes apaixonados que fazem da gramática

amorosa a razão de ser e existir. São dois universos mitopoéticos que apesar de ser uma

instância mediadora, uma cabeça bifronte, na vertente histórica estes mitos refletem

contradições reais.

Assim, o mito alencariano, por exemplo, reúne sob a imagem comum do herói, o colonizador – representado por Martim – tido como generoso feudatário e o colonizado – através de Iracema – visto ao mesmo tempo, como súdito fiel e bom selvagem220.

Na outra parte da moeda que contempla a invenção, o mito traz consigo signos

produzidos em conformidade a uma semântica analógica, sendo, portanto, um processo

figural caracterizado pela expressão romanesca e a imagem poética. Diante desta dicotomia,

quando o mito alcança qualidade estética ele resiste a integrar-se nesta ou naquela ideologia

porque o conceito do mito estabelece e restabelece uma cadeia de causas e efeitos, de

motivações, de intenções, o conceito está repleto de uma situação.

O mito é uma fala, mas não uma fala qualquer, são necessárias condições

especiais para que a linguagem se transforme em mito. Ele é um sistema de comunicação, é

uma linguagem, é um modo de significação, uma forma. Para compreendê-lo como forma

faz-se necessário estabelecer seus limites e suas condições de funcionamento dentro de um

determinado meio social. Pode ser julgado por um discurso e estar envolvido em uma

investida de complacências literárias (como é o caso TI e I), de imagens. É uma história que

transforma o real em discurso, comanda a vida e a morte da linguagem mítica. A história

mítica formada por mensagens tem múltiplos meios de representação: escrita, oralidade...

Para Barthes:

220 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, p. 180.

176

As matérias-primas do mito, quer sejam representativas, quer gráficas, pressupõem uma consciência significativa, e é por isto que se pode racionar sobre eles independentemente da sua matéria. Esta, porém, não é diferente: a imagem certamente é mais imperativa do que a escrita, impõe a significação de uma só vez, sem analisá-la, sem dispersá-la221.

Enfim, a imagem transforma-se em uma escrita quando ela é significativa.

Tanto Tristão e Isolda quanto Iracema, trazem a imagem significativa do mito do

amor impossível, difícil de se lidar, destoa de uma plena harmonização. As duas obras

carregam consigo as marcas míticas do amor chamado cortês, sem levar em consideração os

deslizamentos que o deformou no curso dos séculos. O picante nos dois casos vem do perigo

afrontado, o próprio coração do esquema é o perigo que circundam heróis e heroínas. Em

ambos os casos a justa amorosa opõe parceiros desiguais, um dos quais, por natureza, está

destinado a cair: pela natureza física, pelas leis naturais da sexualidade, das proibições;

porém todas as transferências imaginárias do corpo do corpo para o coração não chegam a

dissimular. Em ambos os casos a procura da satisfação se efetua pelos caminhos mais curtos,

não faz desvios e não adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo

exterior, isto é, as personagens não percorrem o caminho do princípio da realidade, livram-se

das amarras do superego para a realização do desejo narcísico caracterizado por uma pulsão

que é um fator de motricidade que faz o organismo tender para um objetivo cuja meta é

superior ao estado de tensão reinante na fonte pulsional. Acresce que a causa da angústia

interior constitui para o sujeito uma ameaça real.

No caso de Iracema, como se sabe, a inoculação da bebida de Tupã foi o

obstáculo exterior que prescreveu sua liberdade e fê-la colocar em xeque o dogma da tribo,

fê-la romper seu contrato como sacerdotisa e priorizar às duras penas a realização de seu

desejo narcísico: sua entrega incondicional ao amante português. Porém, esta desobediência

focalizada no plano simbólico não representa apresenta uma ruptura com padrões culturais,

costumes e tradições preestabelecidas. Representa, psicanaliticamente, o desvio da conduta,

uma fuga da realidade – uma das tônicas da literatura romântica que convenciona que a

liberdade individual contrapõe-se à coletiva.

Dentro desta linha de raciocínio, pode-se dizer que o desejo narcísico da heroína

Iracema percorre o mesmo itinerário do desejo de Isolda. Em Tristão e Isolda, há também a

ruptura: os valores sociais e convencionais da estrutura da sociedade feudal são sobrepujados

221 BARTHES, Roland. Mitologia. p.132.

177

pelo desejo narcísico das personagens míticas. A intensa busca pelo prazer dos sentidos

condiciona os amantes a viver uma vida avessa àquela esperada para se viver. Nas duas obras

o desejo, o impulso do corpo, o amor sensual “Eros” são causas de perturbação e desordem.

Palavra e desejo, uma coisa leva a outra, em uma relação de causa-efeito. A partir da palavra

vêem-se submetidos a um desejo do outro, surpreende-se em flagrante delito de inflação de si

mesmo, causando uma perturbação e efervescência interior.

Em Iracema, a ruptura com os princípios de ordem estabelecida agrava-se pelo

fato de estar a heroína condenada ao celibato religioso. O crime torna-se ainda maior se for

levado em consideração que de um lado há o branco inimigo e amado e de outro, o ato

proibido para uma virgem de Tupã. Sob esta perspectiva, a heroína desafia duas tradições:

uma profana, outra sagrada. Entretanto, seu erro não lhe causa nenhum rasgo interno, nenhum

dilaceramento visto que para ela a realização efetiva, a concretização de seu intento amoroso

é menos uma transgressão da lei do que um ato inevitável e irreversível no qual se

compromete a alma. “No nível moral, é difícil encontrar para Iracema virtude ou fatos

desligados de sua vida amorosa: ternura, generosidade, ciúme, agressividade, só têm sentido

por causa das suas relações com Martim”222.

Contraditoriamente, parece haver no texto tristanesco uma representação

simbólica do pecado original. No texto bíblico mostra-se o homem como um fiel cavaleiro de

Deus, resiste às tentações de Satã quando este procura desviá-lo da conduta correta, dá

mostras de dever manter-se fiel ao Senhor da mesma forma que o bom vassalo deve manter-

se fiel ao suserano. Satã seduz Adão sem obter sucesso, ao seduzir Eva tenta romper, Satã, o

grau de hierarquização reinante no Paraíso para estabelecer entre o homem e a mulher e vice-

versa, assim como Deus e o homem a idéia de igualdade, de desordem, o caos. Eva conduziu

Adão ao pecado, o Supremo Criador do Universo, assumindo uma postura feudalística os

expulsa do Paraíso assim como um senhor feudal tinha o direito de punir os vassalos perante

a quebra dos rígidos códigos do pacto social entre eles. Deus confisca o feudo (Jardim do

Éden) de Adão; este culpa a mulher porque fora induzido ao erro.

Essa idéia de culpabilidade feminina reflete e parece confirmar a idéia de

inferioridade feminina. Tal qual o texto bíblico, a mulher medieval, em contraposição ao

homem, bom vassalo que conseguia resistir ao mal, revela a parte débil e fraca da natureza

humana. No entanto, o ideal da cortesia, valor integrado do novo código de nobreza colocou

222 PINTO, Maria Cecília de Moraes. A Vida Selvagem, p. 60.

178

a mulher em evidência por razões arquetipicamente idealizantes223. A ultravalorização

estimulavam uma transferência dos desejos carnais para os desejos do coração, assim, o

distanciamento do corpo da mulher proporcionava controle ao jovem que aprendia a dominar

suas pulsões e seu corpo, assumindo com isso seu próprio valor. Isso na concepção da lírica

trovadoresca e em especial dos cantares de amor e de amigo. Em Tristão e Isolda e em

Iracema, é a presença do corpo físico que desperta o desejo pulsional dos heróis e heroínas, e

é esta mesma aproximação que do corpo bruto que impulsionará os maiores arrebatamentos

no terreno amoroso.

Tristão é uma imagem especular de Isolda, uma promessa de amor que vence o

tempo, nenhum deles é desmemoriado e cada um supõe a memória de todos os outros; seu

amor condena à morte, condição do amor eterno e objeto perdido, ora se mostra narcísico, ora

inexistente, ora sem vínculo com a morte, ora necessariamente cúmplice da solidão. A

imagem pessoal do par romântico, diante das adversidades, se altera, o invólucro da devoção

se rasga, por conseguinte, um turbilhão de tremores reveste suas próprias linguagens no

terreno amoroso.

O mito do amor impossível em Tristão e Isolda se eterniza em Iracema, a

impossibilidade da consagração amorosa obedece a uma espécie de infortúnio ou sortilégio,

um final trágico do qual não se tem escapatória, todas as tentativas de superação do problema

inicial não têm sua concretude pois o mal não deve vencer o bem. Neste sentido, a dicotomia

superposta revela na sua interioridade valores consagrados do mundo real, aquele que figura

distante das páginas romanceadas e afastados anos-luz da mente adormecida do artista da

palavra. Porém, dizer que Iracema é um mito de um amor também impossível requer, de

nossa parte, um pouco mais de argumentação. Na sua essencialidade, o romance traz outras

marcas como a transgressão, a qual tem uma relação sensível com a questão do desejo que

não pode reduzir sua função quando aflora do universo interior e emana sua dimensão de

necessidades particulares. De nossa parte e tentando justificar o comportamento de nossos

heróis e heroínas das obras justapostas: por que bradar contra as paixões se ela é a única

coisa bela que há sobre a terra, a origem do heroísmo, do entusiasmo, da poesia, da música,

das artes, enfim, de tudo que existe?

223 Particularmente obrigo-me a não acreditar em uma suposta valorização da mulher por dois motivos específicos: primeiro porque era apenas um grupo particular de mulheres, mormente, composto por damas, foi posto em evidência; em segundo porque enfatizava a imagem e não a mulher. A dama não era personificada e sim estilizada, tornou-se um delírio da mente adormecida do poeta.

179

Dir-se-ia que é a poeticidade da linguagem parte da deformidade da imagem

recriando-a.

Tristão e Isolda, Iracema e Martim: no exato momento em que os pares

românticos se encontraram pela primeira vez, sentiram-se invadidos pelo mesmo

encantamento, era como um murmúrio da alma, profundo, contínuo, que dominava o das

vozes. Surpreendidos e admirados por aquela nova suavidade, não pensavam em descrever a

sensação ou descobrir-lhe a causa. As felicidades ou infelicidades futuras foram entorpecidas

na sua languidez sem mesmo que eles se importassem com aquilo que haveria de acontecer

em suas curtas vidas, nem o horizonte que não enxergavam ainda. Arrebatados pela mesma

paixão imarcescível, inviolável, que brotara no universo interior, os amantes passaram a viver

uma vida de glória e desventuras do amor impossível, um amor sobrecarregado de erotismo e

contenção, reciprocidade e idolatria, de dedicação e entrega; enfim de amor e sofrimento;

“Eros” e “Pathos”.

A extraordinária imaginação prosaico-poética é observada no mínimo fragmento

de Iracema. Desde a primeira até a última página, visualiza-se a morte e o desejo de morrer –

temas que eternizam o mito de Tristão e Isolda. A emissão e a recepção são lugares culturais

de transformações e trocas simbólicas em que a enunciação se faz ouvir com a particularidade

de um padrão simbólico que dramatiza determinado posicionamento poético quanto aos

assuntos do tempo. Além disso, nota-se a expressão de um estado de espírito, espécie de

disposição anímica do artista da palavra que se abandonando à sua inspiração e sem

qualquer vestígio de intencionalidade, não se dá ao trabalho de reprodução de nenhum fato;

dir-se-ia que ele apresenta os sentimentos íntimos do sujeito em um mundo atemporal.

O amor é o tema que não se encerra nem se exaure apesar de permanentemente

retomado, permanece inconcluso, aberto sempre à possibilidade de novas variações. Isto nos

permite afirmar que as respectivas linguagens que falam do amor e com que o amor se fala,

nada de conclusivo aconteceu ainda no mundo. Um discurso remete a outro discurso, que

remete a outro em uma seqüência fragmentada de inúmeras mediatizações a partir de um

inalcançável ponto inicial. Tudo reside no seguinte: a forma como a situação dramática é

construída e como o tema do amor é introduzido na sua essencialidade. A partir disto

podemos dizer que a fundamentação do amor delirante mergulha no mito e na forma como

ele fala ou se apresenta enquanto linguagem.

180

Esquadrinhando o tema do amor impossível verifica-se que o jogo amoroso tem

sido um veículo capaz de nos mostrar os percursos e a maneira pela qual se elaboram e se

estabelecem um modo de percepção da interioridade do indivíduo, suas limitações, sua força

e seu destino. O amor como experiência de um mundo plenamente dotado de sentido não é

estranho para nós, por meio dele conhecemos uma ampliação e nossos limites até a sua

dissolução em uma ordem em que e espaço e o tempo adquirem novo valor. Assume para nós

um caráter de sociabilidade cuja dimensão é estritamente pessoal e intransferível. O amor é

capaz de perceber e suscitar as mais intensas representações que nossa alma pode imaginar. O

mesmo amor que palpita em nossos corações esteve sempre presente em todos os momentos

da vida humana. Pode-se dizer que a perda da capacidade de amar equivale à nossa

desaparição no indiferenciado mundo dos duplos desalmados.

E assim ocorre com Tristão e Isolda e com Martim e Iracema; estes não suportam

mais a tensão interior provocada pela impossibilidade de o amor triunfar na sua totalização,

aqueles, da mesma maneira, enfrentam toda a sorte de adversidades que os impedem também

de manter um relacionamento seguro e duradouro, vivem o minuto como se ele fosse a

própria eternidade. Em ambos os casos o amor se projeta na transgressão do desejo, sentem

prazer de desejar, prazer de experimentar um ‘desprazer’: valorização sexual dos estados

preliminares do ato do amor. O que reside nos dois mitos é que em Tristão e Isolda tal qual a

Arte Amatória de Ovídio há um atentado ao pudor e à moral pública, isto é, uma incitação

profanação amorosa.

Em Iracema figura mais narcisismo da inacessibilidade do objeto, presente

fisicamente, mas repetidas vezes como a narrativa deixa entrever, distante do eu-lírico da

heroína apaixonada que depois de se entregar o fio de sua castidade vê suas esperanças

perdidas ao descobrir que jamais conseguirá obter o amor de Martim. A perda do objeto

amado da heroína provoca-lhe uma sublimação, transfere para outras vias o objeto do amor

onde poderá expandir-se: é o caso, por exemplo, de Iracema dizer a Martim que após o

nascimento de seu filho, o que figura como um mecanismo de defesa e transferência em lugar

do desafeto que recebia ao saber que o guerreiro branco sentia saudades de sua terra natal

(vide cap. 28 de Iracema).

A tradição ocidental criou uma imagem do homem como um amante volúvel,

mais preocupado com as tentações da carne que com o culto às emoções elevadas. Em que

medida essa imagem é real? Desde que a literatura existe, o amor do homem pela mulher tem

181

sido um dos temas mais constantes. Os manuscritos da Antiguidade grega estão repletos do

amor que sábios, poetas, deuses e semideuses da época dedicaram às suas eleitas. Grandes

paixões masculinas foram descritas em prosa e em verso, em uma escala que vai do burlesco

das histórias do italiano Boccaccio aos amores infelizes dos românticos descabelados como

Vitor Hugo. Encontra seu espaço na literatura brasileira romântica por meio de Iracema.

A singular análise de Iracema, narrativa rica em episódios, que tem a agudeza

melodiosa e um demasiado tom sentimental com situações turbulentas e diálogos pomposos

entre o herói e a heroína, que dá a conhecer através de uma imagem latente a trama intensa,

apaixonante e o desesperado amor de Iracema apresenta, na sua contextualização, os mesmos

ingredientes ideológicos do serviço de cortesia da lírica medieval, só que às avessas. Na lírica

de amor, por exemplo, o homem coloca-se em uma posição de vassalagem, é servo fiel da

mulher amada e a coloca em posição elevadíssima; porém, este amor sublimado é

impraticável porque a mulher reverenciada é casada, o que torna o amor impossível e

estreitam, diminuem, as relações entre o sujeito e o objeto. Só resta ao amante manter este

amor em segredo: e isto é fato.

O relacionamento se dá às avessas porque é Iracema quem se encarrega da tarefa

cortês do preito amoroso, de serva fiel e de boa vassala amorosa de Martim. Não falta à

heroína o senso de justiça, fidelidade e paixão – a tríplice vestimenta com que se reveste o

amor verdadeiro. O secreto, o que brota no chão, ocultando suas raízes, inacessível a qualquer

explicação racional – fruto do ideário da cortesia – que está a serviço do aperfeiçoamento do

ideal do cavaleiro cai em terra. A heroína não esconde seus amores pelo jovem guerreiro, da

mesma forma, que Isolda se apaixona por Tristão transformando-se, também, em vassala

amorosa do herói. Iracema e Isolda são duas vassalas amorosas, amam corajosamente mesmo

diante do perigo; o amor das heroínas é conhecido por todos; nem por isso elas deixam de

amar seus amantes, tampouco se importam com as conseqüências fatídicas provindas deste

amor exposto a céu aberto. Nos dois casos há a criação de um mundo mágico no qual os

desencontros e os perigos fantásticos – criação original do romance cortês – vão ao encontro

das jovens heroínas. Em ambos os casos a série de aventuras perigosas passa a ocupar a

posição de uma determinação do destino, de uma verificação gradativa do estado de eleição,

de escolha pelo perigo, de provação.

Sabe-se que o mundo da provação cavaleiresca era um mundo de aventuras, nada

além do que pertence a aventuras. Paralelamente, o terreno amoroso passa a ser uma extensão

182

deste mundo exterior e, com suas peculiaridades, esta sujeito aos mesmos estigmas, desígnios

e problematizações gerais. Assim como a ética feudal pressupunha em seu sistema de

representação as idéias de valentia, fidelidade e respeito mútuo; da mesma forma,

movimentos literários que surgiram mais tarde – como é o caso do Romantismo – retomaram

este ideal que deixa de ser uma exclusividade da classe dos cavaleiros, e em especial da lírica

provençal. Como bem afirma Auerbach:

Mas justamente por estar afastado da realidade, este ideal deixou-se adaptar, como tal, a qualquer espécie de situação, pelo menos enquanto existiram classes dominantes. Assim o ideal cavalheiresco sobreviveu a todas as catástrofes que feriram o feudalismo no decorrer dos séculos224.

A heroína da prosa poética alencariana e Isolda, heroína do episódio poético

medieval, carregam consigo (no papel que assumem como personagens e ao papel que a

linguagem lhe reserva) as marcas do ideário da organização da sociedade feudo-vassálica: são

valentes, honrosas, fiéis, possuem na formação de caráter a respeitabilidade mútua, pelo

menos em relação ao amante eleito para o preito amoroso. Diante disto, as duas heroínas

justapostas podem ser consideradas como duas cavaleiras que adotaram e transformaram o

ideal cortês, para elas a idéia de ser nobre tornou-se cada vez mais pessoal, pois descobriram

que para serem nobres, grandes e importantes não deveriam procurar nada na realidade

comum. Tudo se resumiria assim: seja fiel e respeitosa ao amante do seu coração, ao que lhe

agrada e tudo estará bem; apesar dos empecilhos que o destino implacável lhe reserva mais

adiante. Estas observações preliminares nos permitem situar nos autores em pauta o problema

que a pesquisa suscita e traz à tona: as heroínas podem ser consideradas realmente duas

vassalas amorosas?

Analisemos a proposição através de excertos de ambos os textos. Tomemos

inicialmente, este excerto de Iracema.

A sombra de Iracema não esconderá para sempre o estrangeiro à vingança de Irapuã. Vil é o guerreiro, que se deixa proteger por uma mulher. Dizendo essas palavras, o chefe desapareceu entre as árvores. A virgem sempre alerta volveu para o cristão adormecido; e velou o resto da noite a seu lado. As emoções recentes, que agitaram sua alma, a abriram ainda mais a doce afeição, que iam filtrando nela os olhos do estrangeiro.225

224 AUERBACH, Erich. Mimesis. In: “A saída do cavaleiro cortês”, p. 117. 225 ALENCAR, José Martiniano de. Idem, p. 25.

183

O amor é o tema deste fragmento. Martim é ameaçado de morte por Irapuã que

enciumado e movido por um sentimento de vingança está disposto a matar o concorrente pelo

amor da virgem indígena. Esta ao ser surpreendida pelo guerreiro toma a iniciativa em defesa

do amante e se transforma efetivamente em sua vassala amorosa. Desafia o irmão de tribo e

vencedora na batalha do coração assume o controle da situação e passa a servir e proteger

com todo anelo e dedicação àquele que lhe roubara a flor do corpo. Como afirma o próprio

Alencar referindo-se a este estado de enamoramento de Iracema: “desejava abrigá-lo contra

todo o perigo, recolhê-lo em si com em asilo impenetrável”. Há um discurso machista

revelado na fala de Irapuã que denota uma estrutura da sociedade patriarcal oitocentista: “vil

é o guerreiro que se deixa proteger por uma mulher”. É a discriminação contra a figura

feminina. Como não é nosso objeto de proposição o estudo desta relação de cunho social

contentamo-nos com o pressuposto teórico de que a subjetividade literária é um elemento

estrutural da linguagem romântica e, o autor vale-se disso para a tessitura e construção da

semântica textual.

Vencido o coração pelas palavras da virgem tabajara, o guerreiro parte e deixa o

par romântico em seu idílio amoroso. Vasconcelos, comentando Catulo, em O Cancioneiro

Geral diz que, “a excessiva influência dos instintos amorosos sobre o indivíduo é danoso

porque o torna dependente de outra pessoa. Sob o domínio da paixão o homem perde sua

autarcia, avilta-se, escraviza-se, aliena-se”226. Pensando desta forma, um dos efeitos nefastos

da paixão avassaladora é que a vida do ser apaixonado decorre da vontade do outro. É a

dependência que se transforma em vassalagem, é o fator da transgressão erótica que conduz à

perda da identidade e à despersonalização. Neste contexto, o amor passa a ser fonte de

sofrimento (pathos). À mercê das vicissitudes da aventura erótica e dos caprichos doados ao

ser amado, Iracema demonstra a mais extrema alegria e contentamento no papel de servidão à

qual se sujeita.

Porém, é esta atitude altruísta e profundamente sincera da heroína que a

conduzirá à sua perdição e à do ente amado. É o momento em que ocorre a glorificação e

apoteose amorosas, instante em que a indígena e o guerreiro branco fizeram, ainda que

inconsciente pela parte de Martim, um pacto de vida ou morte. Iracema salva a vida do

guerreiro branco ao protegê-lo das garras do furioso Irapuã, pagara o ato com sua própria

vida, já que não é mais dona de si, transforma-se em vassala amorosa de Martim, não é mais 226 CATULO. O Cancioneiro de Lésbia. Tradução: Paulo Sérgio de Vasconcellos. São Paulo: Hucitec, pp. 24-25.

184

sacerdotisa de Tupã. Alencar além de dar um intenso colorido à paixão que ligou o destino do

herói e da heroína imprime ao episódio romanesco um ritmo pulsante em que os

acontecimentos e feitos heróicos de Iracema atingem o mais alto grau de idealização

romântica. Assume a idealização do outro e desta postura lírico-literária, ao assumir o

discurso retórico para descrever as façanhas da protagonista da trama romanesca, acaba

quebrando o código medieval que consagrava ao poeta-trovador o direito inalienável de

principal possuidor do discurso retórico da eloqüência e principal idealizador da figura

feminina, aquele que deveria consagrar o objeto amado através do elogio, aquele que deveria

sofrer a coita do amor obedecendo a todas as fases que a verdadeira vassalagem amorosa

exigia do vassalo velado.

Alencar rompe com esta tradição medievalista porque interioriza no seu discurso

idealista a contextualização deste procedimento do panegírico. Nesta postura literária notam-

se alguns aspectos no envoltório da mulher idealizada; a mulher idealizada é decalcada na

figura angelical, pura e ideal. Em Iracema e em Tristão e Isolda o direito inalienável de

exclusividade desaparece e passa a possuir outras configurações. Em Alencar e em Bédier

tanto o narrador quanto as personagens se dão direito de exercitar o elemento emocional para

dar continuidade às suas falas. Vê-se neste contexto, uma grande inovação discursiva e é

inegável que no plano das sensações e subjetivismo o Romantismo reflete larga vantagem

sobre o lirismo presentificado em Tristão e Isolda.

Enfim, nos dois textos, a trama é envolvida do mundano e do profano, a beleza

comovente e a tragédia impiedosa desencadeada no universo apaixonado dos amantes

fervorosos que desafiam as leis dos bons costumes através de um irresistível e permanente

fascínio pelas leis do perigo e do amor sem retorno. Discorrendo sobre este estado

aproximação entre os amantes, Carotenuto, afirma:

Diante do amado o amante experimenta um sentimento incrível de plenitude e, simultaneamente, tem a impressão de ter vivido até aquele momento um estado de privação: a sua presença é fonte de bem-estar que parece ter possibilidades inexauríveis. A experiência parece dizer-nos que é a proximidade que provoca a perturbação: alguém ou alguma coisa para qual o olhar se dirige nos cativa227.

Tomemos agora, um excerto de Tristão e Isolda:

227 CAROTENUTO, Aldo. Eros e Pathos: Amor e Sofrimento, p. 29.

185

Isolda amava-o. No entanto, queria odiá-lo: ele não a tinha desdenhado de modo tão objeto. Queria odiá-lo e não podia irritada em seu coração contra essa ternura mais que ódio. (p. 26) (...) No terceiro dia, como Tristão viesse para a tenda erguida na coberta da nau, onde Isolda estava sentada, ela viu-o aproximar-se e lhe disse humildemente: - Rainha – disse Tristão -, por que me chama senhor? Não sou eu, ao contrário, vosso homem de lígio e vosso vassalo, para vos reverenciar, vos servir e vos amar como minha rainha e senhora? Isolda respondeu: - Não, tu o sabes; sabes que é meu senhor e meu amo! Sabes que tua força me domina e que sou tua serva! Ah! Por que não avivei faz pouco tempo as chagas do trovador ferido! Por que não deixei perecer no capinzal do pântano o matador do monstro? Por que, quando estava no banho, não vibrei sobre ele o golpe da espada já no ar! Ai de mim! Então eu não sabia o que hoje sei (pp. 31-32).

A paixão avassaladora que aproxima os dois amantes das Cornualhas é o tema

principal deste recorte. Observa-se aqui, também tal como no fragmento de Iracema, o papel

de subserviência do eu-lírico feminino diante do amado: “Não, tu o sabes; sabes que é meu

senhor e meu amo! Sabes que tua força me domina e que sou tua serva!”. O objeto do desejo

da heroína oferece uma certa resistência à sua vassalagem, mas persuadido pela figura do

outro cede ao amor: “... por que me chamar de senhor? Não sou eu, ao contrário, vosso

homem de lígio e vosso vassalo, para vos reverenciar, vos servir e vos amar como minha

rainha e minha senhora?”. Já submetida ao papel de servidão amorosa a heroína reconhece

que está apaixonada por Tristão como se pode depreender deste outro fragmento conto no

capítulo do ‘Filtro’:

-Isolda, que é então que sabeis hoje? Que é então que vos atormenta? - Ah! Tudo o que sei me atormenta, e este mar, e meu corpo, e minha vida! Passou o braço no ombro de Tristão. Lágrimas apagaram o brilho dos seus olhos, seus lábios tremeram. Ele repetiu: - Amiga, que é então que vos atormenta? - Ela respondeu: - O amor por vós. Então ele pousou seus lábios sobre os dela. (p. 32)

O amor é assim mesmo: um sentimento estranho que brota dentro de nós, vem à

tona, nos faz sentir diferentes, nos faz rir, nos emociona, nos faz chorar e não raro, nos torna

escravo dele. Quando amamos alguém, todos os nossos compromissos que para nós pareciam

inadiáveis são relegados para um segundo plano, deixam de ter prioridade, pois os

compromissos diante da força arrebatadora do amor se desfaz assim como se desfaz um

186

castelo de areia sugado pelas ondas. O amor é capaz de todos os sacrifícios, através dele

sentimos uma atração fatal pelo perigo que ele desencadeia, todas as normas de boa conduta

social perdem seu sentido quando estamos envolvidos em sua atmosfera. É isso o que

pressentimos na fala das personagens Tristão e Isolda. “Eros” está ligado à configuração

singular, a uma emancipação do eu. Há uma movimentação voltada ao princípio inato do

prazer e à busca constante, desenfreada para a satisfação deste desejo. Assim, pode-se dizer

que o narcisismo erótico é tão agressor que ele vai muito além da busca do prazer interno do

sujeito enamorado. Para atingir o estado de sublimação o “eu” busca também a realização do

desejo do “outro”.

Nestes fragmentos vemos Isolda se doando a Tristão a fim de manter o

relacionamento entre eles. Embora haja uma certa tentativa de rejeitar a vassalagem da

heroína, falou mais forte a voz do coração e efetivamente, o herói cede ao impulso da heroína

acata a vassalagem. Dir-se-ia que a proibição de ver a amante e a sensação de sua presença

significam a renúncia do espírito e da consciência em face do desejo e da imaginação

exaltados pela confissão amorosa e sincera de Isolda. Neste sentido, há uma manifesto

simbolismo do amor erótico. O par romântico não esconde mais o desejo de posse e passa a

cultuar o amor em toda a sua plenitude, mesmo diante dos percalços iminentes. Nos dois

trechos selecionados as heroínas se enamoram pelos heróis. São elas que rendem a

vassalagem, sofrem pelo amado, mas eles não estão fisicamente distante delas tal qual

ocorre, a título de comparação, na lírica trovadoresca e, em especial, nos cantares de amor e

de amigo. No trabalho de reconstrução textual José de Alencar subverte a convenção literária.

Isolda reconhece que está contagiada por Tristão e não esconde sua condição de

submissão em relação ao ser amado. Em Iracema, nota-se que após ter defendido Martim da

fúria cega de Irapuã, o crescimento gradativo de seu vínculo amoroso com o guerreiro

pitiguara, há um estado de turbulência no fundo de sua alma; o estado de enamoramento

atinge degraus superiores e a imagem do ser amado provoca-lhe a mais profunda abnegação.

Sente que está aprisionada na armadilha da paixão, não nega que Martim está provocando

uma grande mudança em seu interior. Os últimos acontecimentos “abriram ainda mais a doce

afeição, que iam filtrando nela os olhos do estrangeiro”.

Em Tristão e Isolda, a heroína declarava veementemente que não desejava ter

conhecido Tristão a fim de evitar a tensão amorosa que estava se operando nela; em Iracema,

ao longo da narrativa, a heroína se desconsola ao saber que o amado pensa em outra, o que

187

lhe provoca ciúme e este é um dos fatores que desencadeiam o seu lento definhar. Contudo, a

heroína permanece indiferente perante a ‘suposta’ infidelidade do amante, não se mostra

disposta a desclassificar a honra pessoal de Martim, mesmo sofrendo os dissabores da

situação constrangedora.

O comportamento demonstrado por Iracema em relação ao ser amado estrutura-se

no convencionalismo da lírica medieval, isto é, há a manutenção da humildade que

caracteriza a verdadeira condição do amante. Como se sabe, na lírica, a humildade é símbolo

de platonismo e de irrealização da intenção no terreno amoroso. Em Iracema, esta condição

se repete, quer dizer, há uma ultra-idealização voltada ao amante e, como fica provado, este

amor não tem sua realização. Analisando-se sua situação segundo um critério psicológico e

sentimental chegamos à seguinte evidência: primeira – há uma confissão sincera de paixão

amorosa; segunda – há uma expressão de alegria suprema que o amor proporciona; terceira –

a heroína se coloca em posição paciente em sua missão amorosa a cumprir: há uma

submissão inteiriça do seu coração, aceita o papel servidão.

Sob o ponto de vista psicanalítico, a vassalagem presentificada é de caráter

erótico, busca-se a realização dos desejos pulsionais da libido. Poderíamos interpretar o

desejo amoroso significando um poder geral de unificação e de conexão. A topologia do

erotismo é visível: o desejo ardente de um objeto par saciar a sede decorrente da paixão

amorosa. O objeto “enquanto correlativo do amor (ou o ódio), trata-se então da relação da

pessoa total, ou da instância do ego, como um objeto visado também como totalidade

(pessoa, entidade, ideal, etc.)”228. Há um movimento voltado para as pulsões as quais,

segundo Freud, consiste em uma espécie de pressão ou força que faz com que o psiquismo

passe a tender a um objetivo e, originário de uma fonte de excitação corporal, o objetivo do

movimento é suprimir o estado de tensão reinado na fonte pulsional: o desejo de posse do ser

amado.

Em Tristão e Isolda e em Iracema percebe-se a presentificação da materialidade

amorosa, amante a amado estão a tal ponto juntos entre si que é visível a demasiada afetação,

principalmente levando-se em consideração que ambos nos sugerem a admitir que se

tornaram prisioneiros do amor. Não há dúvida que o amor atinge um grau elevado de

concretização e é revestido de um caráter e atmosfera erótica sui generis. Iracema é uma

228 LAPLANCHE e PONTALIS. Dicionário de Psicanálise. Tradução: Pedro Tamen. 4 Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 321.

188

vassala amorosa de Martim. Resta-nos provar em que medida esta vassalagem se aproxima

do ideal da cortesia medieval.

Um dos mecanismos ideológicos do amor-cortês, como se sabe, é o preito do

amante à mulher em conformidade a um código preestabelecido: ao dirigir-se à dama, o

cavaleiro deveria ser leal e manter a discrição codificada – mola-propulsora que lança o

amante na busca da alegria suprema e à auto-realização de seus desejos; atingir este estado de

enamoramento constituía o bem maior. Ora, em Iracema, esta tópica é retomada na

configuração da trama vivenciada pelo par romântico. Só que às avessas. O discurso retórico

masculino da lírica é agora substituído elo discurso ou fala da mulher. Há, portanto, um

processo de transferência ou deslocamento. Com mais clareza: a voz do eu-lírico, a voz do

homem, encontra agora no discurso da heroína, no conjunto de suas ações a mesma ideologia

simbólica. Seu amor pelo guerreiro branco obedece ao mesmo padrão de fundamentação da

poesia retórica das leis do amor. Martim torna-se inacessível na medida em que o amor de

Iracema por ele não atingirá a tão desejada plenitude. Esclarecendo: Martim a acolhe, mas

percebe que no fundo não a ama, o que resultará na incorrespondência, pois se afasta dela e

provoca o ciúme – motivo da separação entre as duas partes – como se pode depreender das

passagens a seguir:

A – Por que, disse ela, o estrangeiro abandona a cabana hospedeira sem levar o presente de volta? Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dos tabajaras? (p. 16) B - Ninguém fez mal ao teu hóspede, filha de Araquém. Era o desejo de ver seus amigos que o afasta do campo dos tabajaras. Não levava o presente de volta; mas leva em sua alma a lembrança de Iracema. (idem) C – Se a presença de Iracema estivesse n’alma do estrangeiro, ela não o deixaria partir. O vento não leva a areia da várzea, quando a areia bebe a água da chuva (idem).

Há na relação entre herói e heroína tal como ocorre em Tristão e Isolda um

movimento relativo à ação e intenção. Iracema não tem a intenção de romper com o dogma

tribal de Tupã: “Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da

jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã”. (p. 16). Porém,

a sua negação representa a própria afirmação. No plano da ação é isto o que acontece,

entrega-se a Martim, acaba unindo-se a ele por uma fatalidade passional, tem plena

consciência de que este amor é fonte de sofrimento e morte. Por outro lado, Martim, tem a

intenção de ampará-la, após tomar conhecimento de sua queda, mas no plano da ação não é

isso o que ocorre.

189

Iracema vê sua felicidade perdida “a mãe desgraçada, esposa infeliz que viu

um dia o esposo, e só chegou a vê-lo de novo, quando a morte já voltava para ela seus olhos

lânguidos e tristes, e de verdade”229. Na narrativa episódica de Tristão e Isolda há um

paralelo a traçar em relação a isso. Isolda, a loura, também ameaçada de infortúnio, vê sua

felicidade perdida. Isto ocorre no momento em que Tristão a leva ao rei Marc para que fosse

desposada. Esta observação já nos leva a uma outra hipótese: a de que Isolda amava Tristão

mesmo antes de ter sido submetida ao trágico incidente do ‘filtro’, e o medo de perdê-lo

muito a afligia. De sorte que Iracema, também, passa a amar Martim, independentemente do

instante em que ela se entrega quando este está sob o efeito da bebida sagrada de Tupã.

Martim percebe a intensidade do amor do outro – Iracema – mas não

encontrando em si mesmo nenhuma correspondência a esse amor ele – o objeto – olha para

aquece sentimento apenas com benevolência, sem que a grandiloqüente noção de absoluto

lhe aflore à cabeça. Todavia, a emoção amorosa da heroína-Iracema se preenche por inteiro

dando-lhe a impressão de que não existe mais possibilidade de amor além dela. Assim, o

objeto de seu amor que por razões pessoais não se sente por ela preenchido considera-o

insuficiente e aquém do amor absoluto.

Iracema ama sem ser amada, busca uma simetria com o outro, não encontra, de

sorte que dentro de si opera-se profundas modificações por que há um empecilho na rota de

sua conquista amorosa: a falta de reciprocidade. Isto ocorre porque no seu amor o que se

exige – lê-se nas entrelinhas – é mais do que o paralelismo, é a superposição, a reciprocidade

plena: mesmo assim ama Martim: é o amor da morte. Tais considerações nos levam a crer,

em termos literários, que um grande amor, diferentemente da vida real, pode existir sem

resposta: o amante, como é o caso de Iracema, suspira na sombra frondosa da oiticica, se

acaba em paixão em meio à fauna e flora exuberantes sem que o objeto de seus sonhos lhe

dirija mais do que um olhar nos raros instantes em que estão juntos.

Iracema não suplica, com uma divina resignação a heroína se sujeita a todas as

adversidades e espera em sua nova morada pelo pior: sabe que a ausência do esposo será a

causa primeira de sua morte. E é isto que ocorre. Em Tristão e Isolda, quando a heroína toma

conhecimento de que será desposada por outro homem, não vê no ato de Tristão uma ameaça

direta da morte em função do amor que sentia por ele. Dir-se-ia que o que mais a afligia e que

a ameaça maior que sentia era a nova vida que deveria constituir nos braços de um homem 229 ASSIS, Machado. Obras Ilustradas de Machado de Assis. Crítica Literária. São Paulo: Editora Linográfica Ltda. p. 156, s./d.

190

que ela não havia escolhido. Pode-se concluir, através deste fato, que seu infortúnio e

felicidades perdidas ligam-se à condição de ela não ter voz própria para reagir diante desta

imposição que está perfeitamente de acordo com a estrutura da sociedade feudal ocidental: é-

lhe negado o direito de escolha do objeto de seus amores, nesse caso, o sujeito com quem já

se identifica e por quem se perde. Quanto a esta escolha de objeto, Bataille explicita:

A escolha de um objeto depende sempre dos gostos pessoais de cada qual. Mesmo quando recai sobre a mulher que teria sido escolhida pela maior parte dos homens, o que intervém não é uma qualidade objectiva dessa mulher, mas, freqüentemente, um aspecto inalcançável da sua personalidade. Se ela não atingisse nosso íntimo, provavelmente nada haveria a forçar-nos a preferência230.

A causa da morte de Iracema foi Martim, a de Tristão, Isolda. Em Iracema foi

o homem a causa da morte da mulher sob circunstâncias peculiares; em Tristão e Isolda, foi a

mulher a causa da morte do herói incrustada de um ciúme doentio. Por que nas duas obras

literárias justapostas ocorre este final indecoroso?

Pode-se afirmar, do ponto de vista literário, que tudo não passa de uma farsa

para dar vida à intriga, uma manobra do autor movido por funções idealizantes e, por

extensão, pedagógico-educacionais, como se depreende do objetivo das narrativas do amor-

cortês. Disto deduz-se o seguinte: a literatura medieval era executada como um instrumento

de entretenimento e ao mesmo tempo de moralização para a contenção dos ânimos arraigados

dos jovens que viviam agregados na Corte. Vista como símbolo do pecado o crime cometido

pela mulher parece servir como uma punição irrevogável para a superação de sua natureza

pérfida; então, esperava-se que por catarse este final trágico fosse encarado como um fim

decoroso, já que se esperava também que este modelo de conduta e suas implicações

servissem de exemplo a outros.

Pensando assim, no episódio romanesco medievo usa-se a literatura como um

instrumento de denúncia social, denuncia o castigo que é imposto à mulher quando esta se

apropria de algo ilícito e condenatório. Ou seja: não se deve confiar nas mulheres que não

sabem temperar seus desejos mais recônditos. Então, se deve incriminá-la para que possa

responder pelos seus atos. É um final indecoroso que trem uma razão de ser no mundo das

relações sociais, pois moraliza, serve de exemplo, instrui os outros a não agirem da mesma

230 BAITALLE, Georges. O Erotismo, o Proibido e a Transgressão, p. 28.

191

forma que ela. Em Iracema, o final indecoroso está ligado a que elemento normalizador da

conduta social?

Iracema, embora remeta a um episódio histórico-lendário do século XII, foi

escrito no século XIX. Neste período, o conceito de sociedade é outro. Já se sabe que o

Romantismo na sua contextualização tem como ponto de partida a reelaboração dos valores

da alta Idade Média ocidental, com suas idéias, matérias, assuntos e ideais. Parece-nos que

Alencar culpa a heroína com a intenção primeira de mostrar que ela também deve pagar pelos

seus atos, transgrediu o interdito, deve pagar, e paga caro pela sua transgressão. Se

analisarmos a morte de Iracema sob uma ótica histórica dá-nos a impressão de que com a

morte da heroína, a supremacia da raça superior se eleva e atinge sua plenitude, quer dizer, o

colonizar destrói a cultura bugre e se impõe efetivamente como elemento dominador.

Iracema é culpada por contrapor-se à interdição, a lenda dizia que quem

conhecesse o segredo da bebida de Tupã morreria. A verdade é que Iracema morre, e Martim

não. Isso nos permite reforçar a hipótese de que já fizemos alusão: apenas aquele que

transgride conscientemente o interdito deve morrer. Martim não rompera em sã consciência

com a proibição, portanto, ele não deveria morrer por dois motivos: e primeiro lugar porque

não agiu conscientemente, em segundo, porque, não sei se é válido fazer esta assertiva,

representa o dono da terra. A morte convencional, tópica consagrada do artista da palavra, no

texto indianista de Alencar é uma adequação do ideário da convenção social medieval; nela,

Alencar faz, por assim dizer, um reaproveitamento do código da cortesia o qual é moldado

aos anseios da educação sentimental romântica do século XIX, tentando com isto, uma

profunda tendência popular de identificar no folclore o índio aos sentimentos nativistas.

A morte convencional e voluntária “tornou-se um tema comum a quase todo o

Romantismo, revestindo-se de maior ou menor grau de lirismo, ora remetendo a uma visão

mais ingênua, ora uma visão de crueldade quase demoníaca, como se pode ler em Byron”231.

E um fato emerge disto: estas idéias, ideais e tematização não percorrem apenas as páginas

prosaicas de Iracema, pode-se, também, visualizar este tema em maior ou menor intensidade

em outras de suas produções literárias.

A temática é presentificada em O Guarani, na triangulação amorosa

Álvaro/Peri/Loredano/Cecília e Álvaro/Isabel; em O Gaúcho, Manuel Canho suicida-se

devido à traição e incorrespondência amorosa: precipita-se no abismo enlaçado à amante que

231 CITELLI, Adilson. O Romantismo. 3ª Edição. São Paulo: Editora Ática, , 1993, p. 78.

192

lhe roubaram; em Encarnação, Hermano vive o dilema amor-morte; em A Viuvinha, atinge-

se magnitude quando utiliza a convenção da morte para ilustrar nas entrelinhas que o dinheiro

é essencial à felicidade – reflexo da concepção burguesa. Em Lucíola, a protagonista morre

no desdobramento da narrativa há o caráter emblemático de que o sacramento promoverá a

redenção das almas errantes; em Senhora, a morte de uns é a elevação social e econômica de

outros e ao mesmo tempo outros elementos entram em conta: móveis, imóveis, negócios e

esperanças; a classe e a beleza fazem parte dos termos da troca; as aparências, valorizadas

pela individualização do corpo, constituem uma arma da sedução feminina.

Na Literatura Brasileira temos ainda, O Seminarista, de Bernardo Guimarães,

cujo enredo tem como foco o caso de um jovem seminarista que renunciando ao sacerdócio,

suicida-se pelo amor de Margarida, seu amor de infância; em Inocência, de Visconde De

Taunay, a heroína que dá nome ao romance morre em decorrência de um amor interditado

pelas leis da família e pensamentos patriarcalizantes. Na Literatura Portuguesa, temos o caso

clássico de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, onde Amélia opta pela morte à

ausência do amado; na Literatura Francesa, a clássica história da Dama das Camélias, de

Dumas; na Literatura Inglesa shakespearina temos Romeu e Julieta que simboliza no

imaginário europeu o binômio Amor-Morte, Hamlet, Otelo. Estes são apenas alguns

exemplos.

Retomando o fio. Na prosa alencariana e no episódio tristanesco a morte é física e

os amantes apaixonados, o “eu” e o “outro”, podem realmente dar cabo de suas vidas em

uma condição não mais de fingimento e dramaticidade, as quais (na voz do narrador) são

apresentadas sem rodeio. Aqui são narradas as circunstâncias, os motivos, os conflitos

generalizados, as experiências de amores insatisfeitos que desencadeiam o final trágico, as

razões pelas quais os protagonistas são levados a optar pela morte voluntária, capricho do

“eu”. Em Alencar a perda do objeto amoroso deve ser vivida até o fundo como um episódio

e primeira grandeza, o que reforça a tese romântica de que a morte tem uma espécie de

dignidade moral, de heroísmo, é um fim decoroso encontrado na pena do cauto escritor com o

objetivo de reatar a normalidade das coisas e transmitir a idéia de que a morte encerra todas

as adversidades temporais e sofrimentos interiores, é enfim fuga e salvação.

O eu-lírico se regozija em sofrer calado, sozinho, enfim, vive-se um clima de

isolamento psicológico, um amor velado que deve ser visto na prática como o requinte de um

refinamento de cortesia. Em Tristão e Isolda e em Iracema, o amor não é um sinônimo de

193

guerra nem tática e estratégia para atingir e surpreender o outro no campo das relações

sentimentais. O amor não provoca nenhum tipo de desavença, procura evitar a ruptura e leva

à submissão. Nas duas obras a convenção da morte literária assume especificidades

intrínsecas. A morte está associada diretamente a uma relação de vassalagem entre os vários

sujeitos apaixonados, quando a servidão não tem mais uma razão de ser, busca-se uma forma

de fugir da realidade, satisfazer o amor implica acabá-lo enquanto idéia e sentimento. Neste

enfoque, se a morte é como uma passagem daqui para outro lugar, e se é verdade, que todos

os mortos si se reúnem, pode-se imaginar maior bem para aqueles que vivem em estado de

angústia permanente no mundo temporal. Rougemont na crítica ao capítulo “Desposar

Isolda”, por Bédier, define com as seguintes palavras o morrer de amor de Tristão:

Para Tristão, Isolda não era mais que um símbolo de Desejo luminoso: o seu além era a morte divinizante, libertadora dos laços terrestres. Era portanto preciso que Isolda fosse a impossível, porque todo o amor possível reduz-nos os seus laços, reduz-nos anos limites do espaço e do tempo sem os quais não há criaturas – ao passo que o único Fim do amor infinito só pode ser o divino: Deus, a nossa idéia de Deus, o Eu Deificado232.

Em Iracema, a morte da heroína ganha novos contornos: sua morte não só servirá

como alívio para todas as tensões interiores como também propiciará a Martim a realização

de um desejo manifesto em seu eu-lírico: o retorno aos braços de uma suposta noiva que o

esperava, embora Alencar, durante a narrativa da Lenda do Ceará, não nos narre na tessitura

da trama este episódio que podemos, entretanto, subentender. Conclusivamente: na

concepção alencariana há a presentificação da morte enquanto um sintoma desencadeado por

motivos interiores. Ponderando sobre a questão da morte Carotenuto afirma:

Pode-se também matar, e não é por acaso que inúmeras tragédias estejam ligadas ao amor: chega-se a matar reciprocamente quando a paixão não pode ser levada adiante e, aliás, sabemos muito bem, que o suicídio como sinete de uma contrariedade sentimental sofrida não surgiu nem declinou com o advento do Romantismo233

. A morte voluntária pode ser focalizada sob o enfoque psicanalítico como um tipo

de suicídio, é uma manifestação interior do desejo narcísico. Quando o obstáculo exterior

veda a realização de uma vontade manifesta do sujeito, através de impedimentos, o sujeito

experimenta um sentimento de perda ou culpa. Perda porque o objeto do desejo de uma forma

232 ROUGEMONT, Denis de. O Amor e o Ocidente, p. 255. 233CAROTENUTO, Aldo. Eros e Pathos: Amor e Sofrimento,, p. 45.

194

ou outra lhe é negado; culpa, porque sente que foi responsável pela ruptura da interdição

externa. Estes dois tipos de sentimentos interiorizados no indivíduo provocam a completa

desintegração da pessoa que ama. Há uma pugna entre a interioridade e a exterioridade. Esta

(na complexa trindade humana concebida por Freud – o Id, Ego e o Superego – esta última

representa a consciência moral constituída pelos valores e restrições éticas aceitos pela

sociedade) quase sempre é vencida por aquela uma vez que o sujeito torna-se escravo de seu

Ego e a passa a ter a predisposição para não aceitar de bom grado as imposições, já que elas

tiram, roubam e limitam aquilo que se tem de mais importante e voluntário: a liberdade

individual que proporciona o direito inalienável de escolha.

Sob esta ótica, este universo caótico pode ser lido como os percursos simbólicos

do ‘Bem’ e do ‘Mal’, as fronteiras sociais apagam os desejos internos do indivíduo e os

papéis se invertem. A partir do desmoronamento da unidade interior sobrepujada pelas leis e

convenções do mundo exterior, busca-se uma válvula de escape, uma saída, a transgressão

propriamente dita. Durante seus percursos através dos espaços simbólicos os transgressores

adquirem múltiplas aparências, dentre elas inserem-se em um conceito de uma vida social à

deriva do padrão normal. A abertura das trajetórias transgressionais está de acordo com

aquilo que conhecemos como desobediência a qual joga dramática e egocentricamente com a

operacionalização da vontade insatisfeita, da efetuação de um princípio real do desejo.

Como se sabe, diz o axioma popular, “as leis foram criadas para não serem

cumpridas”. No caso da morte voluntária, esta definição ainda que simplista, ultrapassa o

universo, atinge as regiões subterrâneas do não-eu. As fronteiras do inconsciente criam suas

próprias leis, suas próprias determinações, dir-se-ia que é um mundo à parte, uma dimensão

paralela do indivíduo cuja motricidade tem um campo de atuação próprio e marcado

profundamente pela independência e que o mal de quase todos nós é que preferimos ser

arruinados pelo elogio a ser salvo pela crítica. E Tristão e Isolda e Martim e Iracema não são

diferentes: optam pelo elogio à loucura em detrimento à salvação pela manutenção da ordem.

Se acreditarmos ser a loucura a capacidade infinita de se fazer sempre as mesmas coisas e

esperar por resultados diferentes, certamente, podemos afirmar que nossos heróis e heroínas

são, por assim dizer, loucos, loucos por uma paixão emanada do eu que encontra sua válvula

de escape na insanidade comportamentalista para adquirir espiritualidade e transcendência no

terreno da transgressão.

195

A maior glória dos amantes apaixonados não reside no fato de eles terem ‘caído’,

mas sim reconhecerem que pode se herói tanto quem ganha quanto quem sucumbe, mas a

glorificação e apoteose maior está no não abandonar o combate, a libertação das amarras

exteriores é gozo que dá vida e a força do amor é a poesia dos sentidos.

O sentimento de culpa experimentado por Iracema é análogo ao de Isolda: o

rompimento com um código ou dogma preestabelecido. Em Tristão e Isolda uma princesa no

desvario de sua loucura amorosa abandona o rei e a corte e os serviçais e passa a levar uma

vida errante da mesma forma que Iracema abandona sua tribo, sua família e seus irmãos para

viver uma vida curta e tumultuada. Acresce-se que em ambos os casos heróis e heroínas

foram ‘felizes’ apenas por um curto espaço de tempo. Precisando o tempo: em Tristão e

Isolda durante o tempo da instituição e duração do filtro mágico (sem entrar no mérito da

duração exata, pois as várias versões de Tristão e Isolda se contradizem e datam tempos

diferentes de atuação do filtro influenciando na vida e na decisão dos amantes).

Em Iracema aproximadamente um ano: vai desde o primeiro encontro com o

guerreiro branco até o nascimento de Moacir – o filho da dor – até sua posterior morte,

quando o esposo regressa da viagem. Diante de um quadro tempestuoso as duas personagens

femininas experimentam o sentimento de perda ou privação. Desde o instante em que Isolda

soube que seria desposada por outro, experimenta a sensação inoportuna de que o revés de

sua ligação amorosa com Tristão encontrava-se ameaçada por um infortúnio sem precedente

e que ocasionaria, por conseguinte, mudanças repentinas na conjuntura da trama arquitetada

pelo enredo.

Há no desenvolvimento da narrativa poética e da prosa indianista no tocante à

atuação das personagens, uma pulsão de morte nos dois textos. As atividades interiores das

personagens tendem para a redução completa das tensões, reconduz a si mesmo para o estado

inorgânico. Se bem que, introjetadas, no âmago as pulsões de morte das heroínas seriam

dirigidas para o espaço exterior, manifesta-se sob a forma de agressão ou de destruição. Pela

descrição pormenorizada das heroínas a pulsão de morte é uma saída ou fuga de uma situação

insuportável, suportada durante demasiado tempo. Eis aqui mais uma vez a tópica da morte

voluntária em função do amor. Morre-se pela mais simples condição. Nota-se uma vontade

de querer se suicidar no terreno amoroso por uma causa frívola, à toa. Barthes comentando

as idéias de suicídio o âmbito amoroso afirma:

196

A mínima mágoa me dá vontade de me suicidar: pensando bem, o suicídio amoroso não tem motivo. A idéia é frívola: é uma idéia fácil, simples espécie de álgebra rápida de que preciso nesse momento do meu discurso; não lhe dou nenhuma consistência substancial, não prevejo o cenário pesado, as conseqüências triviais da morte: mal sei que me suicidarei. É uma frase, apenas uma frase que acaricio sombriamente, mas da qual vou me afastar por uma coisa também á toa...234.

Vista desta forma, a morte voluntária do eu-lírico em uma efusão de

contrariedade e sentimentalismo tem um valor psicológico, pois liberta das forças negativas e

regressivas, ela desmaterializa e libera as forças de ascensão do espírito arrebatado pela

paixão amorosa não correspondida; dá-nos a impressão que ela o abate apenas no plano

material mas o enaltece no plano espiritual. Mais uma vez vemos a dicotomia sagrado e

profano no discurso do eu-lírico. Pressente-se, ainda, no discurso das heroínas um estado de

êxtase, uma comoção da alma revestida de um amor autêntico, porém, desprovido da efetiva

e constante reciprocidade do outro: Martim alterna os amores de Iracema pelas viagens em

busca de lutas e aventuras; Tristão, ausenta-se da amante, casa-se com outra Isolda, Isolda, a

loura, só torna a vê-lo de novo quando este já é cadáver. Acresce que ela, ao lado do corpo

do amante, balbucia as palavras finais e em seguida também morre. Iracema morre quando

Martim retorna e o herói parte das terras cearenses com um cão rafeiro, e Moacir – o filho da

dor.

O nome Tristão de origem celta – assimilado pela tradição – é uma referência ao

seu nascimento, as tristezas de Branca flor, sua mãe, ao gerá-lo; é também, uma referência

simbólica de todas as tristezas que o destino lhe prepara: suas andanças, sua perfídia e seus

enamoramento por Isolda. Pensando assim lanço mãos de uma possível evidência: Moacir, o

filho da dor, passa a representar simbolicamente não os futuros sofrimentos da heroína que

morre na história e que permanece imortalizada e viva na História, mas, as tristezas

nacionais, as quais, Alencar, talvez, por ser escravista, não faz alusão no desdobramento de

sua prosa indianista235.

Por que?

234 BARTHES, Roland. Fragmentos de Um Discurso Amoroso, p. 273. 235 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização Esta nossa afirmativa renderia um bom capítulo uma vez que Alencar defende veementemente a posição do elemento aborígine, advogando a seu favor como bom advogado que ele era, em contraposição com sua posição escravagista, autoritária. Dá-nos a entender que o escritor cearense trata-os – o índio e o escravo – de modo discriminatório, desvalorizando este e enaltecendo aquele como podemos observar nos ensaios de Alfredo Bosi na Dialética da Colonização, bem como na Formação da Literatura Brasileira de Antônio Candido.

197

Moacir nasce sob o signo da dependência: é o primeiro brasileiro nascido da

miscigenação de duas raças: o branco e o índio. Este sofrerá todas as amarguras impostas por

aquele: perda da tradição, a perda da identidade, a escravização, o jugo colonialista, a

servidão. Os contornos da situação de Moacir assumem uma outra configuração e um outro

enfoque. Se em Tristão tem-se a presentificação da profecia de que o herói seria infeliz em

todos os seus empreendimentos futuros, isto remete a uma questão pertinente à sua

individualidade, sua vida particular, não implicaria seus atos em prejuízo a toda uma

coletividade: o filho da dor, por transferência remete à configuração e organização social e

política brasileira, ao vinculo estreito com os donos do poder da sociedade em formação.

Conclusão: se o símbolo em Tristão e Isolda significa independência para continuar agindo

ao bel-prazer, em Iracema; o símbolo passa a significar dependência e remissão de

individualidade já que o elemento colonizador da nascente sociedade brasileira dita as regras

ao elemento dominado, este passa a sofrer uma dor muito mais expansiva – no sentido

ideológico – pois lhe fora subtraído o poder de decisão.

Prova disto é o papel de servidão pelo qual fora submetido o índio brasileiro

durante o processo de colonização do território brasileiro. Não uma servidão controlada e

efêmera, mas sim uma longa gestação que se prolonga até nossos dias. No tocante à Iracema,

e, levando-se em consideração que a lenda, neste contexto é claro, traz à tona um fato real,

observa-se que o brasileiro sofreu às duras penas as tristezas impostas pela dominação

imperialista do colonizador, em especial do povo português. Não são poucas as rebeliões,

insurreições e tentativas de independência havidas no Brasil até surgir os primeiros sintomas

desta emancipação na terceira década do século XIX promovida pelo então Imperador D.

Pedro I; independência esta mascarada pelos ideais de uma revolução burguesa que se

desenvolvia no velho mundo europeu, alavancada por duas grandes revoluções e que, por

extensão, fazia-se sentir, aqui também em nosso berço esplêndido.

Da mesma forma que a jovem nação brasileira se vê subtraída, submetida pelas

forças das armas e quase inteiramente destruída pelo jugo europeu; a heroína Iracema se vê

subtraída também diante do novo modo de viver ao lado do colonizador; contudo, o amor de

Iracema tende a colocar-se acima de tudo, de uma religião deformada miticamente pelas

mãos dos indígenas tabajaras e seus cúmplices sacerdotes de Tupã. No final, a heroína,

conforme vimos, enfrentou um dilema e que foi causa de sua autodestruição. Sua morte pode

representar o fim de uma cultura, e o nascimento de Moacir o surgimento de outra, não

198

autóctone e impositória. Como todos os homens o selvagem não atinge a plenitude neste

Novo-Mundo, a busca da felicidade vai a duas direções: a procura do prazer sensual – o

“Eros” supremo, o prazer sensual em todas as suas gradações leva ao tédio – o que se verifica

de capa a capa em Iracema. Segundo: à morte encontra-se sob o disfarce de profunda solidão,

seja por um impulso destruidor, não racional e contínuo.

Assim como Iracema foi a grande vassala amorosa de Martim no desdobrar da

trama narrativa alencariana, o Brasil também, por sua vez, foi o grande vassalo do povo

português: a leitura de Iracema nos remete a uma leitura desta natureza e nos leva a crer que o

problema, se bem que em menor grau, existiu e ainda existe, seja politicamente, seja

lingüisticamente236.

Em síntese, Iracema para tornar-se vassala amorosa infringiu um código tribal

porque se sentira atraída pelo jovem de gênese européia. Naquele Jardim do Éden brasílico

onde a fauna e a flora mostravam-se abundantes em sua magnificência. A virgem tabajara se

entrega a Martim, o bosque de Tupã serviu de ninho para a realização de seu intento amoroso.

Amou Martim desde o momento em que lhe desferira uma flechada fatídica – a flecha

também é um símbolo do amor – porque se sentia aprisionada e escravizada pelas duras leis

da tribo-mãe que a castrava, não lhe dava a liberdade de poder gozar das delícias do amor,

sua personalidade reduzia-se à simples condição de sacerdotisa de Tupã. O resultado da

transgressão nós já o sabemos: ela fora infligida pela cassação do título e teve de abandonar

seus irmãos de tribo, a partir daí sua vida não seria mais a mesma: amou, sofreu e morreu

movida pelo desejo transgressor, foi vassala até na hora de sua morte.

A violência do amor evoca as profundezas do sentimento de onde vem o inaudito

que nós mesmos não conhecemos. Assim é a condição mútua das heroínas Iracema e Isolda.

O amor delas não é mais demonia reprimida e sim paixão arrebatadora. Para ambas, o amor e

a morte, qualquer idéia mais ou menos propícia lhes basta. As duas jovens desejam aqueles a

quem amam, os prazeres do amor em nenhum momento se desvanecem e a dor e o prazer

surgem em uníssono e seus lábios não deixam escapar aquilo que está na ponta da língua: a

disposição anímica é apenas um momento, um curto prelúdio a que se segue o desencanto ou

236 Sabe-se que a língua portuguesa somente no final do século XVI começou a sofrer alguma influência no elemento indígena do país. O número de portugueses aqui aportados, a escassa vida social iniciada nos primeiros anos, somente depois com a divisão do país em capitanias, com o estabelecimento dos governadores gerais pôde ter alguma organização. Quer isto dizer que no território nacional houve, também, uma escravidão lingüística.

199

uma nova tonalidade na realidade por elas vividas. Este curto período corresponde em Tristão

e Isolda à duração do efeito do filtro e em Iracema ao nascimento de Moacir. Nos dois casos

há um toque inicial de alegria e coragem graças á infinita capacidade individual, à

contemplação evocativa especular. O que unifica estes momentos líricos não é o interdito,

mas a satisfação do eu por seu reencontro com a totalidade à luz da superfície e um estado

anímico sujeito a modificações interiores.

É a singularidade da mesma disposição interior que ressoa através do novo, da

transgressão. Nos dois casos percebe-se uma sobrecarga de lirismo na mão que manuseia a

pena – ambos os autores se impregnam pela manifestação lingüística de essência puramente

ideal na configuração da plástica feminina.

A idéia de “dentro” e “fora” provém da imagem de uma representação de câmara escura, com que se figura a essência do homem: a alma habita o corpo e permite entrar o mundo exterior através dos sentidos, principalmente através dos sentidos, principalmente através dos olhos por onde penetram as imagens237.

Staiger afirma ainda238: “para o poeta lírico não existe uma substância, mas

apenas acidente, nada que perdure (---), apenas coisas passageiras”. Para ele, uma mulher

não tem “corpo”, nada resistente, nada de contornos. Tem talvez um brilho nos olhos e seios

que o confundem, mas não tem um busto no sentido de uma forma plástica e nenhuma

fisionomia marcante. É a linguagem que vai modelando e remodelando sua visão através

dela através de imagens e imbuídos de estabelecer as relações de espaço e de tempo, visões

estas fixas como toda história do amor no Ocidente não se cansa de relatar pela vasta

produção literária em derredor da intrincada relação amorosa entre os pares amorosos que

passeiam livremente pelas páginas dos romances e dos episódios poéticos como é o caso, por

exemplo, de Tristão e Isolda. Podemos chamar a isso de saltos de imaginação, como temos

a predisposição para falar, em relação à linguagem, de saltos gramaticais.

No entanto, parafraseando Staiger, dir-se-ia que tais séries de atividades em prol

de determinados fins são saltos apenas para a intenção e para o espírito pensante, uma vez

que a alma dá saltos. Fatos distanciados nela estão juntos como se manifestaram. Ela não

necessita de membros de ligação já que todas as partes estão imersas no clima ou na

237 STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. 3 Edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 57-58. 238 Idem, p. 45.

200

disposição anímica lírica. Portanto, o lirismo manifesta-se como arte de solidão às quais só

podem ser receptadas por pessoas que vivenciam e interiorizam o estado de solidão:

A canção de amor, em que o poeta dirige-se à amada com um íntimo você, terá que ser imbuído aqui. Um você lírico só é possível quando amada e poeta formam um coração e uma alma. O lamento do amor não correspondido diz um “você”. Que o eu sabe não terá eco”239.

É hora de explicarmos o conceito fundamental da disposição anímica em busca

do amor proibido em Tristão e Isolda e em Iracema. A disposição não é nada que exista

dentro de nós, na disposição estamos fora. A disposição toma consciência do mundo que nos

cerca de maneira direta melhor que qualquer intuição ou qualquer esforço de compreensão.

Iracema e Isolda estão expostas aos mesmos encantos, inebriadas e angustiadas de

amor; no espaço e no tempo acham-se frente a ela, estão presos, sujeito e objeto, um-no-

outro. Todo o sentimento do seu íntimo, seus estados mais recônditos e profundos estão

entrelaçados de maneira – se bem que maior tristeza em Iracema do que em Isolda –

completa. Ambas começam a desfalecer quando este estado de disposição anímica é

ameaçada sobre a precipitação e surgimento de um fato novo que desencadeia mudanças

bruscas em seus comportamentos: Iracema descobre que Martim ama outra; Isolda, vê sua

sorte perdida nas mãos de um homem a quem não desejava, o rei Marc. Nos dois casos a

alma transforma-se, perde a serenidade imperturbável em Deus como o desdobramento das

duas narrativas corrobora (v. resumo das duas obras). Iracema morre, Isolda, idem. Em

ambos os casos a alma funde-se irremediavelmente na paisagem, a paisagem na alma. De

todos os lados acena já agora o tema mais inesgotável da poesia lírica: a fonte irradiadora do

amor.

Não é um amor qualquer: simbolicamente os amantes tornam-se um, eleva-se a

sensibilidade dos corpos. Em Tristão e Isolda, nas cenas finais da narrativa de Bédier,

naquele abraço derradeiro entre o espinheiro derradeiro que unem Tristão e Isolda passam a

ser apenas um. Há, todavia, outros tipos de amor que não se completam na morte. Um

exemplo:

Fala Gottfried Keller no final da novela Romeu e Julieta na Aldeia, em que os amantes abandonam o mundo que lhe é hostil, confiam-se à corrente que passa e sucumbem abraçados. A morte e este tipo de amor estão intimamente relacionados como a destruição da pessoa”240.

239 Idem, p. 49. 240 Idem, p. 67.

201

O que não é o caso do tipo de morte e de amor presentificado em Tristão e

Isolda. E em Iracema?

Em Iracema, amor e morte podem ser considerados, provavelmente, como

símbolos da libertação das amarras, das correntes que limitavam sua individualidade, assunto

do qual já discorremos. Há na heroína uma disposição anímica amorosa, a resistência e

empecilhos exteriores não dissipam o um-no-outro e isto cria uma situação de confronto: no

murmúrio das florestas brasílicas, harmonizada com o ambiente natural, a heroína de modo

determinado e fugaz finaliza seu intento primeiro: entrega-se ao guerreiro de origem

européia. Neste contexto, ‘perde’ parte de sua individualidade e funde-se no outro, seu

sentimento passa a concentrar-se nesta nova disposição anímica. Por conseguinte, o amor é

símbolo de violência, pois castra e impõe-lhe uma pena capital. Assim, o mundo das

aparências de Iracema torna-se um mundo passageiro, está envolvida em um clima lírico,

entretanto quebra-se o encantamento pela sua própria intencionalidade. Como bem assinala

Staiger: “a disposição anímica é intimamente individual e só pode unir pessoas igualmente

dispostas; não pode formar nenhuma comunidade no sentido lato da palavra”241. Em outras

palavras: só existe responsabilidade onde existe um objeto de responsabilidade.

Em Tristão e Isolda, o objeto não mascara – após a influência do filtro e a toda

sucessividade dramática decorrente dele – sua responsabilidade, antes a aceita como um

destino inevitável. Em Iracema, o objeto amado mascara sua responsabilidade – após ingerir

a bebida e mais tarde descobrir que Iracema estava grávida – , antes o seu amor pode ser

considerado mais afeição do que amor propriamente dito. Todavia, nos dois casos o amor

das heroínas e a carga de lirismo que ele comporta consigo, sua dedicação plena e exclusiva

ao objeto amoroso não mascara quaisquer responsabilidades: entregam-se totalmente “de

corpo e alma” aos amantes como se isto representasse para elas um exercício de ascese e

elevação espiritual, como se as transportasse para o plano da glória maior: a suprema

realização do desejo. É disto que fala Rougemont em “O Amor Recíproco Infeliz”: a

fatalidade da paixão e o lirismo amoroso é causa de dor e sofrimento.

Paixão quer dizer sofrimento, preponderância do destino sobre o sujeito

supostamente livre e responsável. A paixão dissimula o gosto pela morte:

241 Idem, p. 73.

202

Por que o homem do Ocidente quer sofrer essa paixão que o fere e que toda sua razão condena? Por que é que esse amor cujo fulgor não pode ser senão o suicídio? É porque ele se conhece e se põe à prova sob a acção de ameaças vitais, no sofrimento e no limiar da morte242.

Em Tristão e Isolda e em Iracema que deste recupera o caráter idealizante

percebe-se claramente uma preferência pela desgraça. Esta desgraça reveste-se sob o estigma

irônico de uma deliciosa tristeza. Retorno ao que já foi dito: o amor feliz não tem história na

literatura ocidental. E isto se deixa transparecer em Iracema: a infelicidade da heroína baseia-

se em uma falsa reciprocidade, máscara de um explícito narcisismo, ama por si só, não a

partir do outro. Porém, a falta do outro é motivo de profunda tristeza e isto certamente

significa para ela a morte, provoca o desejo de soçobrar em um naufrágio particular. E é isto

o que ocorre com a heroína alencariana e com Isolda no episódio romanesco reconstruído por

Bédier: nos dois casos a morte é um aguilhão da sensualidade, o desejo no seu sentido estrito.

Em Tristão e Isolda e em Iracema, heróis e heroínas renunciando a própria

soberania, a liberdade escolhe a escravidão, a fatalidade se transforma em escolha voluntária,

a alma é corpo e o corpo é alma; porém nos dois casos, esta autonegação traz a grande

contrapartida, a aceitação do outro sob a presença da dupla chama: o amor e o erotismo.

Diante disso, afora o que se perde no terreno das proibições exteriores, nota-se que o amor é

sempre uma paixão dolorosa, apesar disso, digna de ser vivida e em si mesma desejável: o

amor é o desejo de completude e assim corresponde a uma necessidade humana e a busca da

metade perdida.

Dito isto lanço mão de uma evidência que não dá espaço para uma contra-

argumentação: todo relacionamento amoroso interdito – por melhor que sejam as intenções

do amante e da pessoa amada, o “eu” e o “outro” –, tem sempre um final infeliz. No âmbito

das relações amorosas existentes no enredo da vasta multiplicidade de narrativas literárias

produzidas desde a Antiguidade até a Modernidade, percebe-se que a afirmação é

insofismável e apresenta características de universalização. Em Tristão e Isolda e em

Iracema, não é diferente: neles temos a manifestação de uma relação amorosa interdita

sinalizada pelo livre-arbítrio dos atores da cena, embora a ficção e farsa literárias impostas

pela pena dos escritores das obras em pauta, em seus vôos de imaginação, criem os

subterfúgios romanescos para tentar nos provar que o sofrimento do amor irrealizável

vivenciado pelos heróis e heroínas nas peripécias tem um final decoroso: são vítimas de

242 ROUGEMONT, Denis de. O Amor e o Ocidente, p. 44.

203

filtros mágicos e de beberagens sagradas que tornam os personagens cegos para a realidade

circundante, com isso os autores advogam seus atos e os absolvem, pelo poder mágico da

linguagem, do veredicto condenatório.

Em TI em Iracema houve a ruptura com o interdito; todavia, sob o ponto de

vista moral e das operações do Superego, esta transgressão não impediu que os pares

românticos fossem, por algum tempo, felizes antes de sofrerem a pena implacável do destino

trágico e infeliz. O relacionamento amoroso dos heróis e heroínas caminha para um único

itinerário: a morte implacável e a separação definitiva, destruição total do relacionamento.

A vassalagem amorosa que Iracema e Isolda presta aos heróis Martim e Tristão é

um tributo pago com a intenção de traduzir in praesentia um aspecto do vínculo amoroso que

as une a eles de forma imprescindível. É uma maneira de elas demonstrarem que a paixão

arrebatadora deve não apenas conformar-se com a simples contemplação da figura do objeto

do desejo, mas também provar como uma enorme câmera escura amplificadora, na qual a

relação amorosa se torna muito maior quando dedicação e vassalagem agregam-se à imagem

do outro atine o amor dimensões incalculáveis.

A paixão amorosa é a primeira grande experiência que se faz presente no episódio

romanesco Tristão e Isolda para a criação de um vínculo amoroso entre herói e heroína,

dirigindo para si mesmos toda a trajetória que juntos percorreriam. Foram os iniciadores, os

ensaiadores, os experimentadores de uma das mais amplas, profundas e graves empresas que

se acharam em suas mãos. O ato dos atores do episódio poético medieval se eterniza em

Iracema impelidos pela vibração da liberdade de criação do autor, cumprindo um feito ritual

que atravessou os séculos: o desejo de amar o “outro” a qualquer preço, mesmo que o

pagamento deste preço seja a servidão ou a morte.

A vassalagem vista como um papel de servidão é capaz de nos emocionar

suavemente a nossa sensibilidade, dando a volúpia do sonho e da harmonia, fazendo-nos

pensar em coisas vagas e transparentes, mas iluminada e ampla como a satisfação e a

plenitude do amor, dando-nos uma visão de uma realidade mais altaneira e mais perfeita,

transportando-nos para um mundo maior, onde, amiúde, se aclara todo o mistério e se desfaz

toda a sombra e onde a própria sujeição se justifica como revelação ou pressentimento de

uma volúpia sagrada, a qual se manifesta por meio de um erotismo capaz de suscitar as mais

verdadeiras representações no terreno amoroso.

204

Como cativo, a primeira virtude da vassalagem é a resignação, que é quase

fatalista, é a sobriedade levada ao extremo. As heroínas abandonam o lar e as provisões que

levam (o desejo de servidão) apenas bastam para o primeiro percurso da jornada sem volta,

daí por diante, entregues a ventura, tudo é enigmático e desconhecido. Não estariam as

heroínas livres do infortúnio de se tornarem escravas-vassalas dos heróis da urdidura

romanesca? A experiência nos ensina que a força do amor é, um singular, um constrangedor

espetáculo, há de se crer que todas as mudanças – quase sempre inevitáveis – são tristes

quando significam não apenas novas folhagens ou florações, mas a grande mudança do

essencial, da alma, e transmutação do que deveria ser permanente em nós.

Nada dura para sempre. A ação coerciva do filtro e da bebida de Tupã

propuseram às heroínas a destruir materialmente o formidável aparelho da escravidão,

arrebatando as vassalas do amor ao poder das forças controladoras exteriores: o interdito.

Toda a movimentação se fez por meio de uma forte carga de erotismo. Quanto a esta carga

de erotismo em Tristão e Isolda que o levam à morte Paz diz:

Nos amores de Tristão e Isolda os elementos mágicos – a poção que bebem inadvertidamente os amantes – contribuem poderosamente para realçar as forças irracionais do erotismo. Vítimas destes poderes, os amantes não têm outra saída senão a morte. A oposição entre essa visão negra da paixão e da ‘cortesia’, que a vê como um processo purificador que nos leva à iluminação, constitui a essência do mistério do amor. Dupla fascinação diante da vida e da morte, o amor é queda e vôo, escolha e submissão243.

Em Tristão e Isolda o final trágico das personagens é decoroso: é a morte de

amor das personagens descobrindo aquilo que deve bastar, mesmo sabendo que nada jamais

bastará para vencer a força arrebatadora do amor que os uniam. Para o par romântico a morte

voluntária não foi apenas um sinal de igual na equação da vida; no contentamento de sua

penosa força está sempre na margem de onde acabou de emergir, pois ele é infinito mesmo

após a morte. Esta morte precisa ser examinada sob um ponto de vista filosófico e silogístico

para corroborar a hipótese de que a morte é a pena capital para transgride as leis implacáveis

do interdito.

Raciocínio dedutivo em Iracema. Premissa maior: quem descobrisse o segredo

da bebida de Tupã deveria morrer. Premissa menor: Martim descobriu o segredo da bebida

de Tupã. Conclusão: logo, Martim deveria morrer. Em Tristão e Isolda. Premissa maior:

quem tomasse o filtro mágico se apaixonaria perdidamente pelo parceiro ou parceira. 243 PAZ, Octávio. A Dupla Chama: Amor e Erotismo, p. 88.

205

Premissa menor: Tristão e Isolda tomaram o filtro mágico. Logo, Tristão e Isolda se

apaixonaram. Isto é fato.

Há nos dois raciocínios dedutivos dos textos justapostas uma diferença na

conclusão – fato que diferenciará um texto do outro quanto à estruturação do enredo. Os dois

textos têm uma premissa maior, uma menor e uma conclusão. Os dois obedecem a uma

lógica e ambos partem de uma situação geral para uma situação específica pertinente ao

destino implacável dos protagonistas. Porém, em Iracema, a conclusão não vale para a

particularidade do herói, apenas para a particularidade da heroína. É isto o que deve ser

examinado. Algumas perguntas pertinentes ao problema apresentado devem ser feitas: em

relação à Iracema, por que aquele que descobrisse o segredo da bebida de Tupã deveria

morrer? Qual o real significado da bebida de Tupã? Por que Martim não morre conforme

previa a maldição?

Já sabemos que a bebida de Tupã, dentro da ritualística tribal tabajara,

representava um código de conduta social que amortizava os ânimos dos mais bravos

guerreiros. Todos os guerreiros da tribo tabajara respeitavam este rito, não há no

desenvolvimento da intriga de Alencar nenhuma marca intrínseca de desobediência praticada

pelos guerreiros contra o rito perpetuado pelo pajé Araquém – pai de Iracema. Visto sob esta

ótica, a bebida de Tupã pode ser considerada como um tabu, um objeto de caráter sagrado,

entredizendo qualquer contato com sua significação. Por ser uma instituição que atribui

vínculo com o rito, sua quebra só podia ser recompensada com a pena capital, a morte; assim

romper com o interdito equivalia a romper com a tradição e os costumes imorredouros da

tribo. O guerreiro branco não morre porque Além disso, há o tabu: Iracema é intocável e não

deveria se expor a nenhuma mácula em vida, o preço pela sua desobediência foi morte, por

meio de um sortilégio. O homem que expressa sua admiração pela amada prestando-lhe a

vassalagem amorosa é o motivo comum que servirá de base para a sustentação da análise

intersemiótica do excerto do romance Tristão e Isolda e de Iracema.

5 – Papéis masculinos Como já tivemos oportunidade de relatar, as relações de vassalagem amorosa são

uma transferência dos valores sociais da sociedade feudo-vassálica européia medieval. Tal

relação de reciprocidade entre o suserano e o vassalo colocava este em uma condição diversa

daquele. O próprio comportamento dos indivíduos e os valores socialmente aceitos, por meio

206

de uma relação de dupla-troca, estava intimamente ligados a uma relação de serventia e

dependência. De sorte que o vassalo ocupava uma posição inferior, de submissão em relação

ao suserano. Esta mesma relação pode ser observada no desenvolvimento episódico de

Tristão e Isolda e Iracema.

Bem explicita Denis de Rougemont:

As penas do amor sempre envolvem profundamente a pessoa inteira, como uma ferida aberta na própria carne. A sensação psicológica de união, de fundamental na própria existência, como uma parte de si mesmo. Com isso o enamorado fica exposto, além de outras coisas, às faltas, às distâncias, à perda244.

Tristão e Martim fazem a corte às heroínas da mesma forma que o serviçal da

sociedade feudal presta serviços ao senhor feudal, porém interpolados à zona do discurso

amoroso ou ‘amor cortês’. Nele, a situação amorosa é representada, metaforicamente, por

meio da relação de dependência que, na hierarquia feudal, associa senhor e vassalo. A mulher

é alçada à posição de senhora e o amor é encarado como uma relação física e espiritual (o

amor dito cortês – fruto da poesia provençal – nasceu em uma sociedade profundamente

cristã, porém, em muitos pontos essenciais o amor cortês se afasta dos dogmas da igreja e até

mesmo se opõe a eles) em que o amante se apresenta como vassalo (servidor) da dona.

Assim, o ‘amor cortês’ glorificava a figura feminina, transformando-a no bem supremo, mas

fazia do homem um vassalo, um servidor obediente, humilhado muitas vezes à mercê dos

desejos e caprichos da dama. A concretização deste amor era a principal demanda, mas em

princípio o homem se propunha a uma servidão voluntária calcada no serviço amoroso, era o

amor devotado e sincero que lhe conferia valor moral e social. É isto o que precisa ser

examinado em Tristão e Isolda e em Iracema.

Examine-se um fragmento de Iracema: Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida do arco pariu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida.

244 ROUGEMONT, Denis de. Eros e Pathos: Amor e Sofrimento, p. 91.

207

O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida;deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada245. O guerreiro falou: - Quebras comigo a flecha da paz? - Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? - Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus. - Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema (pp. 15-16).

Nesse recorte dá-se o primeiro encontro entre as duas raças ou etnias, o homem

branco civilizado e o índio primitivo. O grau de civilidade do elemento de gênese européia é

representado pela espada com o símbolo da cruz expressando a religiosidade: “de primeiro

ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada”; o primitivismo indígena é decodificado pelo

uso do arco e da flecha: “A flecha no arco partiu”. Além dos traços da religiosidade nota-se

também uma breve descrição das características físicas e culturais da raça superior: “Tem nas

faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas.

Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo”. Há ainda o encontro entre ‘aquilo’ que

é desconhecido fundindo-se com o místico tribal: “Diante dela está um guerreiro estranho, se

é guerreiro e não algum mau espírito da floresta”. Em suma: há o choque entre duas culturas

distintas, uma superior e uma inferior. Esta, idealizada na pena do egrégio mestre cearense,

submeter-se-á àquela conforme fica provado ao longo da intriga.

Já se sabe que uma das características do período romântico é a ultra-

idealização da figura feminina. Alencar encarrega Martim de revelar esse traço da escola

romântica: “O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de

ternura e de amor. Sofreu mais da’alma que da ferida”. Além do enaltecimento da mulher,

concomitantemente há um rápido indício de primeiros amores de Martim por Iracema que

Alencar intimida-se a reconhecer, ou talvez, finge não saber o comportamento da personagem

que ele mesmo idealizou com a tinta de sua pena: “O sentimento que ele pôs nos olhos e no

rosto, não o sei eu”. O sentimento amoroso parece, de início, ser recíproco, uma vez que

Iracema arrependera-se do ato praticado: “A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e

compassiva o sangue que gotejava”.

245 ALENCAR, José de . Iracema. p. 13.

208

Aparecem alguns símbolos da cultura indígena como, por exemplo, o ato de

quebrar a flecha em duas partes dando uma para o inimigo e ficando a outra consigo em sinal

de amizade e paz entre eles. Mais adiante na narrativa há um diálogo entre o herói e a

heroína e por intermédio dele pode-se se chagar a ma outra evidência: Alencar criou um

europeu bilíngüe capaz de conversar de igual por igual com a virgem indiana que

demonstrara estranheza ao vê-lo conversar consigo em seu língua indígena. Quanto ao ato de

quebrar a flecha e ao domínio da língua o próprio Alencar, afirma:

Quebrar a flecha: era entre os indígenas a maneira simbólica de estabelecerem a paz entre as diversas tribos, ou mesmo entre dois guerreiros. Desde já advertimos que não se estranhe a maneira por que o estrangeiro se exprime falando com os selvagens; ao seu perfeito conhecimento dos usos e língua dos indígenas, e sobretudo a ter-se conformado com eles a ponto de deixar os trajes europeus e pintar-se, deveu Martim Soares Moreno a influência que adquiriu entre os índios do Ceará.246

Interpelado por Iracema sobre sua origem, o europeu diz-lhe que as terras que

pertencem aos pitiguaras já pertenceram aos tabajaras: “Venho das terras que teus irmãos já

possuíram e hoje têm os meus”. Em uma atitude de hospitalidade a virgem das florestas

deseja boas-vindas ao guerreiro estrangeiro nas terras dos tabajaras e na cabana de Araquém,

seu pai. Nesse segundo capítulo aparece algumas imagens que nortearão toda a narrativa: os

primeiros momentos do envolvimento entre a virgem indiana com Martim e a plena

aquiescência do pai de Iracema no relacionamento entre ambos. Em nenhum momento

Alencar transporta para o discurso de Araquém alguma contrariedade em relação ao encontro

entre os dois jovens, se bem que mais adiante, capítulo quinze, Araquém parece adivinhar o

triste presságio de sua filha e de sua tribo:

No recanto escuro o velho Pajé, imerso em funda contemplação e alheio às cousas deste mundo, soltou um gemido doloroso. Pressentia o coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto presságio para a raça de seus filhos, que assim ecoou n’alma de Araquém? (p. 45).

Mas nada faz para impedir o sortilégio.Veja-se agora um fragmento de Tristão e

Isolda:

Certo dia, os ventos cessaram e as velas murcharam ao longo do mastro. Tristão mandou que acostassem em uma ilha, e, cansados do mar, os cem

246 Idem, p. 16.

209

cavaleiros das Cornualhas e os marinheiros desceram à praia. Somente Isolda ficara na nau, com uma pequena serva. Tristão viera até a rainha e procurava acalmar seu coração. Como o sol brilhasse e estivesse com sede, pediram o que beber. A criança procurou alguma bebida, até que descobriu a jarra confiada a brangien pela mãe de Isolda. – Achei vinho! – gritou para os dois. – Não, não era vinho: era a paixão, era amarga alegria e a angústia sem fim, e morte. a criança encheu um canjirão e apresentou-o à sua senhora. Ela bebeu em longos goles, em seguida estendeu-o a Tristão, que o esvaziou (p. 30).247

Neste fragmento Tristão e Isolda se apaixonam e passam a viver uma paixão

proibida. Conforme pode ser observado ambos dirigiam-se para o castelo do rei Marc onde

Isolda seria entregue para ser desposada. Neste ínterim, tomada a bebida preparada pela mãe

de Isolda, os dois deliciam-se do amor. No mesmo capítulo mais adiante: “Parecia a Tristão

que um espinheiro resistente, de agudos espinhos, de flores perfumadas, deitava suas raízes

no sangue do seu coração e com fortes liames enlaçava ao belo corpo de Isolda seu corpo e

todo o seu pensamento e todo o seu desejo”. 248Tristão transforma-se definitivamente em

vassalo amoroso de Isolda. A partir desta entrega passam a vivenciar uma vertiginosa febre

da paixão a qual será a causa de um amor sem esperança. Dir-se-ia que o casal apaixonado

beberam a morte pois é a poção que causará as peripécias e o infortúnio deles.

Sob esta perspectiva convém esclarecer que Isolda não estava interessada em

casar-se compulsoriamente com um rei desconhecido em decorrência do juramento de honra

de Tristão feito ao tio Marc; todos os fatos nos levam a acreditar que ela se simpatizada e se

sentia preterida por Tristão que recusa o direito de desposá-la, direito este conseguido à custa

de sua batalha e por ter vencido o dragão que assolava a região em que Isolda vivia.. Sua

mãe, notória feiticeira, percebendo o desânimo de Isolda se encarrega de usar seus

conhecimentos de magia e engendra o filtro a fim de que esta paixão fervorosa de sua filha

fosse transferida para o futuro esposo. O resultado é nefasto: os venenos da paixão

deflagrados entre os dois jovens apaixonados emergem dos subterrâneos anímicos e o erótico

passa a se nutrir dessa oscilação constitutiva entre o desejo de transgressão. Desta forma, o

enlace matrimonial, objeto transgredido pelos amantes, tornou-se um obstáculo necessário

para a efetiva manifestação dos sentidos de sua paixão; dir-se-ia que os amantes se negam à

pura troca utilitária de prazeres e optam pela ‘morte’, espécie de refrigério para o alívio de

247 Ibidem, p. 30. 248 BÉDIER, Joseph. Idem.

210

todas as tensões proibitivas interiores e exteriores e solução imediatista para o problema da

paixão deflagrada entre eles:

A mútua entrega se dá na iminência de chegarem à terra onde serão recebidos pelo rei Marcos, e onde tudo se apronta para o casamento. A longa fase que se segue, no romance, joga-se entre o casamento oficial, a paixão clandestina e as intrigas dos barões do rei (conforme já dissemos), que se esforçam para surpreender os amantes e denunciá-los( o que nunca consegue de todo, permanecendo o rei numa espécie de ponto cego para o segredo – evidente da paixão 249.

Fechado os olhos para a realidade, dão adeus às circunstâncias exteriores que os

impediam de ficar juntos, mas este ficar juntos é simbólico, porque na verdade os caminhos

que juntos passarão a seguir os afastarão cada vez mais um do outro. Após o perjúrio Tristão

usa todos os estratagemas possíveis e imagináveis para ficar ao lado de Isolda. Em todos os

instantes em que estão juntos e que passam a ser perseguidos ora pelo rei Marc ora pelos

barões através de malogradas tentativas de denúncia, inventa-se um ardil para absolvê-los de

quaisquer responsabilidades. Contudo, o caminho vai se tornando cada vez mais estreito para

eles, vai convergindo para um final trágico onde a paixão amorosa percorre um itinerário sem

nenhum retorno.

Visto desta forma a cultura cavaleiresca representa uma exaltação do amor,

contudo, quem promove esta condição é o próprio homem. Há uma correspondência precisa

entre a vida vivida e a vida sonhada, entre a vivência cotidiana e o imaginário fantástico. Tais

dualidades nos ajudam a compreender a base da organização do mito cavaleiresco. Fantasia e

realidade passeiam juntas pelo mesmo bosque intelectual do poeta admitindo-se que esta é

uma forma encontrada para mascarar a realidade através de um artifício onde o sagrado e o

profano dão mobilidade à imaginação criadora do autor.

Tanto Martim quanto Tristão, embora transformados em vassalos amorosos de

Iracema e Isolda – em menor grau se compararmos a vassalagem prestada por Isolda e

Martim – amam sua amadas em graus diferenciáveis um do outro. Em Martim não se ama

produtivamente:

Amar produtivamente uma pessoa implica cuidar de e sentir-se responsável pela vida dela, não só por sua existência física como também pelo incremento e desenvolvimento de todos os seus poderes humanos. Amar produtivamente não se coaduma com passividade nem com a atitude de um

249 CARDOSO, Sérgio & Outros. O Sentidos da Paixão: p. 201.

211

mero observador face à vida da pessoa amada: implica esforço, cuidado e responsabilidade por seu desenvolvimento250.

Já se vê que esta definição do ‘amar’ de Eric Fromm não se aplica ao texto

alencariano pois amar, neste caso, significa relacionar-se com sua essência humana,

compartilhar com ela o mesmo sentimento, o amor divorciado da completude interior do

‘outro’ só pode ser superficial e acidental na medida em que o objeto amado permanece

alheio aos sentimentos do amante. É uma forma de amor sem esperança e destituído do

desvelo e da responsabilidade, elementos primeiros do engrandecimento interior do ser

amado. Amor sem esperança que torna cego o amante em face do ser amado.

É uma história de amor, não um amor comum, mas um amor, até certo ponto,

absurdo e sem retorno, cheio de dor e de mágoa. A vida a dois transforma-se em uma

trajetória sem rumo. E um amor sem esperança não tem outro refúgio senão a morte, dir-se-

ia, parafraseando o próprio José de Alencar. Pode-se até dizer que não é amor, já que este

pode ser assim descrito:

É a pulsão fundamental do ser, a libido, que impele toda existência a se realizar na ação. É ele quem atualiza as virtualidades do ser. Mas esta passagem ao ato não se produz senão pelo contato com o outro, por uma série de trocas materiais, sensíveis, espirituais, que são igualmente choques. O amor tende a vencer esses antagonismos, a assimilar forças diferentes integrando-se em uma mesma unidade251.

Desprovido dessa mútua relação o amor torna-se incipiente e superficial, deixa de

ter razão de ser, os pólos não se unem, ao contrário, distanciam-se devido à força contrária

que impulsiona em direção oposta.

A relação de Martim com a virgem indígena não encerra uma dimensão de

profundidade, embora de primeiro ímpeto o amante, iludido pela imagem da futura amante

fique arrebatado e lhe faz a corte. Só que neste caso a corte não é fingida, é verdadeira.

Amante e ser amado encontram-se frente-a-frente e passam a dedicar-se um ao outro em uma

relação de reciprocidade e produtividade. O amor espiritual de caráter platônico fica para

segundo plano uma vez que há um contato físico entre eles, isto é, amante e ser amado

trocam olhares, depois se apaixonam e acabam se entregando um ao outro, dir-se-ia em

linguagem popularizada.

250 FROMM, Erich. Análise do Homem, p. 92.

251 CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. p. 46.

212

Difere o texto oitocentista do medieval, no sentido de que este relata um amor

impossível na sua contextualização, mas sobrecarregado da produtividade: amado e amante

se coadunam entre si, a balança do interdito não oscila nem para uma lado nem para o outro,

ambos possuem o mesmo grau de intensificação na gramática amorosa do coração. Não é um

amor que toma a parte pelo todo, como acontece em Iracema, pois seria um erro

fundamental no amor que uma parte se tome pelo todo, o que ocorre com o texto da lírica

medieval seria exatamente o todo pelo todo que resultada em nada sobre nada, quer dizer,

quanto maior a possibilidade de o amor triunfar, maior possibilidade ele tem de voltar à

estaca zero.

Em Iracema, Martim e a virgem indiana dialogam entre si e demonstram

diretamente um para o outro seu desvelo e seus amores. O encontro dos dois em um ambiente

idílico revela-nos a proximidade entre os dois, é o amor, distante, superficial e não

correspondido – que marca a ideologia dos cantares de amor – dá lugar a uma relação de

dupla troca, isto é, passam a doar-se um para o outro sem que a atmosfera do sonho e do

platonismo interfira no jogo amoroso, isto é, os sentidos da paixão são manifestos em num

plano realístico, da mesma forma que em Tristão e Isolda. Não há, portanto, nos dois recortes,

um discurso de ausência amorosa. Passa-se a viver em toda completude a sacralidade do

corpo a fim de que possam dar vazão à produtividade amorosa, ao contato corpóreo. Nesse

sentido Carotenuto, afirma: A experiência do contato dos corpos é ainda mais profunda e necessária do que a alimentação. O tocar e o acariciar representam modos primários e essenciais de conhecer e amar. Com a carícia eu’formo’ o corpo, sigo e descubro os seus limites, restituindo-o à sua carne; regenero-o e me deixo regenerar. Naturalmente, há a tentativa de descobrir o ser amado revelando, através do contato, o seu segredo. O aspecto mais significativo de uma relação está justamente nessa inexaurível possibilidade de ser, que dificilmente deixa transparecer sua dimensão mais profunda.252

Estas palavras de Carotenuto contrapõem em muito a diferença do texto

alencariano em relação ao texto medieval. Em Iracema, o sentimento compartilhado pelos

dois amantes permite que ambos se conheçam e saibam o que o outro pensa, Iracema

descobre que o guerreiro branco tem um outra pessoa em sua vida, descobre-lhe este

segredo; Martim descobre que a virgem bugre é detentora do segredo da bebida de Tupã,

motivo primordial da injunção entre eles. O que cada um pensa é relatado pelo seu próprio

252 CAROTENUTO, Aldo. Eros e Pathos. p. 82.

213

discurso, enquanto que no texto medieval o sentimento da mulher é revelado pelo discurso do

amante. Nem por isto a índia se afasta de Martim, ao contrário, parece aproximar-se mais

ainda dele. Já em Tristão e Isolda o nobre cavaleiro medieval não pode recusar a aventura e o

desejo, desejo este que se impõe pelo encantamento mágico que dá vida à sensualidade e a

satisfação ao amor-destino.

Para Tristão, a vassalagem torna-se um veículo de perfeição moral do fiel

cavalheiro: a rendição total (uma forma de cativeiro) e a esperança de uma recompensa, de

uma correspondência por parte do objeto amado. Há o medo de que tudo resulte em prejuízo

das suas esperanças: a morte como inflexibilidade da mulher. Há um desejo ardente de um

objeto inatingível (mesmo diante da proximidade diante da pessoa amada) enriquecendo a

sintomatologia passional. Para Tristão o amor vem de um ato da vontade, uma prisão que se

procura, uma arte cujo exercício aperfeiçoa o homem. Há uma luta contra o interdito

(proibição). Com relação a esta proibição Carotenuto (1994: p. 107) afirma que “a proibição

externa e a inibição se desencontram com a coação: de um lado esses elementos tenderiam a

paralisar-nos, do outro uma espécie de imperativo interior nos estimula a viver tal

experiência”.

Este enfoque de Carotenuto explica por que a dimensão sexual pode ser

intransferível entre duas pessoas e o vínculo erótico se torna predominante para acelerar a

vassalagem: o orgulho desse sentimento não se contenta com as amarraduras do Superego, ao

contrário, subverte-lhe, a sintomatologia passional – fenômeno típico de quem ama vai a

busca do objeto do desejo, manifesta o desejo de corresponder-lhe, de demonstrar compaixão,

a submissão e a capitulação completa do seu coração. Se Rolando não pensa na Bela Aude –

sua noiva – Tristão, contrariamente, vive sem esquecer Isolda, embora o herói continue

sensual sob o efeito da magia é também responsável por seus atos e desventuras.

Não se pode dizer o mesmo de Martim em sua relação amorosa com Iracema: foi

servo fiel quando viu a virgem tabajara pela primeira vez (“o sentimento que ele pôs nos

olhos e no rosto não sei eu...”), todavia, o desenlace dos acontecimentos futuros amorteceu o

serviço de cortesia e subserviência inicial. “E esta é uma das características fundamentais da

experiência amorosa: O sentido do eterno de repente é obrigado a entrar de acordo com a

caducidade”253.

253 Idem. p . 127.

214

Mesmo Martim não prestando a vassalagem amorosa na mesma proporção e

intensidade que Iracema e do desespero do incompreendido (Martim não se sente responsável

pela desgraça de Iracema: inicialmente, para ele, o contato amoroso era apenas o fruto onírico

de uma fantasia estimulada pelas gotas entorpecentes da bebida mágica) se aliou à virgem de

Tupã (ex-virgem de Tupã) para render-lhe a Corte. Talvez esta Corte fosse uma estratégia ou

até uma própria forma de consultar a inteligência: tentativa de viver o poder que a posse

plena do amor exerce no espírito do amante a ponto de restaurar-lhe o equilíbrio inicial: é

uma declaração de que o drama amoroso transcende a própria paixão que teve por Iracema

nos primórdios dos acontecimentos que movimentam a trama alencariana.

Percebe-se que na vassalagem de Martim – comparada com o grau de vassalagem

de Tristão – certa dose de insinceridade devido ao drama de uma angústia passional, do amor

frustrado e irremediavelmente perdido (uma suposta noiva na terra natal o espera e isto lhe

fervilha a mente). Este fato nos permite admitir a possibilidade de que a vassalagem de

Martim é uma vassalagem fingida, mais voltada para a superação e reparação de um erro (o

fato de ele ter engravidado Iracema) do que o de assumir a responsabilidade pelo ato

praticado. Diferente de Tristão que, mesmo diante das maiores adversidades, tem sempre os

olhos voltados para Isolda e a intenção primeira de saciar-lhe a vontade de coração: o preito

sincero e destituído de insinceridade.

A configuração de um sentimento amoroso, as condutas que ele inspira revelam

ao mesmo tempo os sonhos eróticos e as tensões que a sociedade atravessa de modo que os

modelos imaginários e práticas sociais sofrem uma permanente evolução. As incitações aos

discursos em torno da realidade das condutas afloram em todos os sentidos sobre o caminho

do imaginário. Em torno da sexualidade, por exemplo, há uma verdadeira explosão

discursiva; os padrões de longa duração como é o caso da cultura da cortesia mostram-se

sólidos e continuam a equacionar os sentimentos. O amor cortesão e seus procedimentos de

deliberação conforme enfoca Duby em “A educação sentimental e o convívio tradicional”

pesam sobre os amantes do século XIX. A reflexão sobre a índole das paixões – a existência

de duas naturezas sexuais: erotismo e sexualidade – e os perigos dos excessos psicológicos

configuram as condutas amorosas.

Nas relações amorosas há duas espécies de amor: aquele que é belo e aquele que

não o é. O amor verdadeiro é aquele que nada mais é do que sua aparência. Uma comporta

virtude, amizade, pudor, franqueza e estabilidade; o outro comporta o excesso, o ódio,

215

impudor e infidelidade. Um cuida do amado e não evita ser visto com aquele a quem ama.

Tanto Tristão e Isolda quanto Iracema são compostos por esta massa de aparências, prestam

a vassalagem à dama eleita seguindo alguns códigos preestabelecidos: nos dois romances os

jovens se encontram, se afastam e se reencontram novamente em uma constante rede de

intrigas que culmina com o desfecho final, que é a separação definitiva do par amoroso

através da presença da morte.

A transgressão, o castigo e a redenção são exemplos constitutivos da concepção

ocidental do amor. Essa tricotomia está presente no par Tristão e Isolda e em Martim e

Iracema. O amor é atração para uma única pessoa, para um único corpo, uma alma; o

erotismo, aceitação. O sentimento amoroso pertence a todos os tempos e lugares: em sua

forma mais simples não é senão uma troca de uma pessoa por outra: o território do amor é

um espaço imantado pelo encontro de duas pessoas. O amor cortês, na sua essencialidade, é

um saber dos sentidos, uma atração sensual refinada pela cortesia. Assim, a existência de uma

imensa literatura cujo tema é o amor é uma prova da universidade do sentimento amoroso.

Pode-se dizer que, o lirismo amoroso da literatura cortesã o sexo é a raiz, o erotismo é o talo,

e o amor, a flor. Os frutos do amor são intangíveis: este é um de seus enigmas.

“No Ocidente o amor é um destino livremente escolhido; quero dizer, por mais poderosa que seja a influência da predestinação – o exemplo mais conhecido é a poção mágica que bebem Tristão e Isolda – , para que o destino se cumpra é necessária a cumplicidade dos amantes. O amor é um só nó no qual se amarram, indissoluvelmente, destino e liberdade”254.

Por fim, assim como há na Idade Média, um conjunto de relações que repousam

sobre indivíduos que se subordinam mutuamente – marca intrínseca do Feudalismo; no

campo da literatura, como vimos, há uma transferência simbólica destas formas de relações

sociais direcionadas para um serviço de cortesia amorosa cujo principal itinerário é a mulher.

Nestas relações, o homem, idealisticamente, se transforma como que um prisioneiro dela; a

partir daí qualquer serviço vassálico para o amante apaixonado era uma obrigação pois ele se

transformara em um serviçal da dama eleita para o preito e a vassalagem amorosa. Assim

como o contrato vassálico entre o suserano e o vassalo era moralmente consolidado através

de cerimônias; na literatura, a homenagem, ato pelo qual o vassalo se declara submisso ao

senhor, se transforma em um verdadeiro código de honra.

254 Idem, p. 39.

216

Esta idealização do contrato social dos valores sociais da idade Média reaparece

em Iracema sob uma outra perspectiva. Alencar rompe o cânon primeiro que se desenvolveu

por meio da forma poética e transforma o assunto no período oitocentista da literatura

brasileira sob a forma de prosa: contudo não deixou de lançar mão do ingrediente primeiro de

constituição deste tipo de literatura: a ultravalorização da mulher – tida como o centro da

literatura de cortesia. A semiótica da cultura permitiu-lhe este vôo no espaço-tempo para a

criação de Iracema que na sua essência nada mais é do que uma vassala amorosa de Martim e

este – em menor grau – um vassalo seu: tal qual ocorre com o episódio poético medieval

Tristão e Isolda.

217

Conclusão

Nosso objeto de investigação foi a cultura do amor-cortês e suas relações com o

Romantismo brasileiro255, mais especificamente com Iracema, de José de Alencar. Os

medievalistas não se cansam de repetir que as relações de cortesia – empréstimo da estrutura

da sociedade feudo-vassálica –, no seu conjunto ideológico, eram totalmente incompatíveis

com a realidade histórica do período. Como se sabe, o ideal da cortesia amorosa propunha,

como elemento imperativo, na sua conjuntura convencional, a presentificação da triangulação

amorosa. Quer isto dizer que no jogo amoroso além do homem e da mulher, existia um

terceiro cuja função simbólica era a criação do desequilíbrio e as mudanças repentinas da

situação romanesca, era a causa da perturbação da ordem inicial instaurada, conforme

pudemos constatar por meio da análise comparativa entre O Romance Tristão e Isolda e

Iracema.

A literatura parece, conclusivamente, uma matéria por demais díspar de um

espelho da realidade histórica, porque não reproduz na sua essencialidade as estruturas e as

situações reais. Assim, a literatura tem suas próprias peculiaridade. Pela intertextualidade –

um dos instrumentos da literatura comparada – joga-se com as virtualidades de uma

contemporaneidade que, apreendendo o passado, prefacia perspectivas novas. A tentativa da

busca de um ideal ausente inscreve-se, portanto, em uma ação futura que realiza em um

futuro em gestação no tempo presente e que na incorporação promete insuflar uma nova vida

aos valores do passado.

Todas as histórias de amor de nossa literatura carregam traços distintivos do amor

cortês na sua essência. “Algumas idéias e convenções desapareceram, como a de ser casada a

dama e pertencer à nobreza ou de serem de sexo distinto os apaixonados. O resto permanece,

esse conjunto de condições e qualidades estéticas que distinguem o amor das outras paixões:

255 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. In: Etos e Eros: nossos românticos. Como em toda a parte, os românticos brasileiros trataram de abandonar o convencionalismo clássico, tudo quanto pretendia fazer de nossa natureza tropical uma pobre e ridícula caricatura das paisagens arcádicas. Fixando sua preferência no pessoal e no instintivo, esse movimento poderia ter um papel mais poderoso – e até certo ponto o teve. Não precisou, para isso, descer aos fundos obscuros da existência, bastou-lhe contentar-se em ser espontâneo. Não nos trouxe, é certo, nada de verdadeiramente novo: o pessimismo, o morrer de amores a até certo ponto a sentimentalidade lacrimosa que ostenta constituem traços característicos da tradição lírica que nos veio da metrópole. Há mesmo do que alarmar nesse alastramento de uma sensibilidade feminina, deliqüescente, linfática, num momento em que, mal acordados para a vida de nação independente, todas as nossas energias deveriam concertar-se para se opor um anteparo aos estímulos negadores. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 163.

218

atração/escolha, liberdade/submissão, fidelidade/traição, alma/corpo”256. Extraordinária é a

continuidade de nossa idéia do amor, não suas variações. Em todos eles há a presentificação

de heróis e heroínas subtraídos por este sentimento, estranho, fatal e uma livre escolha. A

continuidade de nossa idéia do amor espera sua história: a variedade de formas em que se

manifesta espera uma enciclopédia.

Uma das funções da literatura é a representação das paixões; o tema amoroso tem

sido o tema central dos homens e das mulheres do Ocidente em nossas obras literárias. O

arquétipo do amor cortês mudou muito no tocante a cada tipo ou variante da paixão amorosa,

pois cada poeta ou romancista tem suas narração própria do amor, embora repita sempre suas

figuras.. Assim, podemos concluir – sem enumerar a vasta quantidade de obras produzidas

durante estes nove séculos do amor cortês: a história das literaturas européias e americanas é

a história das metamorfoses do amor. Podemos resumir cinco traços distintivos do amor em

apenas três: a fatalidade; exclusividade que é amor a uma só pessoa [conforme a tese de

Lacan em O Amor em Anamorfose]; a atração que é fatalidade livremente assumida, e a

pessoa, que é corpo e alma. A liberdade escolhe a servidão, a fatalidade se transforma em

escolha voluntária; a alma é corpo, o corpo é alma: assim, o amor é uma das respostas que o

homem investe para olhar de frente a morte: no amor tudo é dois e tudo tende a ser um como

bem salienta o discurso cristão acerca do casamento.

Procurou-se evidenciar as tensões originadas nas múltiplas relações entre o texto

medieval e o texto oitocentista (uma das perguntas da pesquisa), por meio da verificação do

preito amoroso dos amantes apaixonados e o final trágico por que heróis e heroínas se

sujeitaram. É na construção estética, nas formas específicas de manifestação do texto literário

que nasce uma nova idéia e onde se estabelece uma rede de relações instituídas por elementos

concretos, coisas do mundo. Por isso, cada obra engendra de maneira verdadeira um certo

número de valores universalizantes. Estes possuem o estatuto de realidade conceitual pela

razão unívoca de apresentar na sua interiorização e estruturação um posicionamento, procura

retratar uma situação. Em Tristão e Isolda e em Iracema o amor ocupa crescentemente o

lugar central na trama e não menos importante o imaginário das camadas sociais dominantes.

Nas duas obras justapostas, a cristalização do desejo amoroso permite vislumbrar no objeto

amado todas as qualidades e perfeições, independentemente da periodização em que o

sentimento e preito amoroso insurgem.

256 Idem, p. 94.

219

A vassalagem amorosa presente no texto romântico de caráter indianista do

século XIX teve sua origem na Idade Média, mais especificamente, foi herança ideológica da

lírica de cortesia européia. Isto é fato. Tanto neste quanto naquele há a idealização da heroína

e do herói. Restringindo esta tese a Iracema pôde-se verificar que a vassalagem e a

idealização feminina têm tonalidades díspares em comparação com o texto medievo Tristão e

Isolda. Neste, a vassalagem transcrita nos textos literários é uma transferência dos valores

idealizantes da estrutura da sociedade feudal. No Brasil do século XIX, cenário em que

Alencar teceu Iracema, não existiu Feudalismo, então, neste panorama, a vassalagem não

foi uma transferência dos valores estruturais da sociedade oitocentista (patriarcal e

escravagista – o próprio Alencar foi um defensor da escravidão conforme atesta Antônio

Cândido em Formação da Literatura Brasileira), pelos menos se a enxergarmos como à

medieval. Se nos perguntássemos sobre o porquê desta relação de vassalagem neste período

não encontraríamos uma resposta plausível que se justificasse de per si.

Se na Idade Média a vassalagem era um código de conduta moral do bom

cavaleiro perante seu senhor, no plano político, e perante a senhora, no plano literário,

seguindo certos preceitos preestabelecidos pelas leis do fine amours, não se pode dizer o

mesmo de Iracema, já que, no período de sua elaboração, não havia lei alguma de cortesia

amorosa. Ao contrário, o que se afigurava a céu aberto no âmbito literário eram algumas

formas de liberdade de expressão – fruto das ideologias e pensamentos oriundos da

revolução burguesa. Revolução esta que parece não ter sido implantada no Brasil na sua

totalidade, porque não era aplicada aos membros da sociedade marginal, a escravizada pelo

jugo do capital, e em especial, à mulher, uma das principais vítimas da sociedade patriarcal.

A verdade é que a mulher romântica é-nos apresentada por valores medievais

dentro de uma sociedade mercantil. Isto representa sem dúvida uma ambigüidade e ao mesmo

um dilema. Ambigüidade porque a sociedade pode ser vista como liberal para a Corte e os

novos ricos, e monárquica para as subclasses. Dilema porque compreender o século do

Romantismo é tão difícil quanto as proposições das atitudes descritas por meio de poemas e

obras romanescas da era medieval quando em contraste com a realidade histórica, quando em

contraste com o quadro da política brasileira do século XIX. Assim, o artista da palavra

retratava o relacionamento amoroso do par apaixonado deixando para segundo plano os

valores fundamentais da sociedade, aquilo que era ideológico: a fuga do ideológico lhe

permitiu, como um mecanismo de defesa, a liberdade de expressão.

220

Isto comprova mais uma vez a tese da falsa mimese e profunda inverossimilhança

textual. Cria-se uma extrarrealidade adversa àquela que se vive cotidianamente – marca

intrínseca da literatura de ficção e sobretudo de evasão. Neste sentido, José de Alencar, em

seu projeto de difusão nacionalista e de enaltecimento da raça indígena, como pôde ser visto

no capítulo sobre a fortuna crítica alencariana a respeito do Indianismo, (mais

especificamente A Dialética da Colonização, de Alfredo Bosi) cometeu um grande erro: não

conseguiu dar vida orgânica e efetiva a seu grande empreendimento literário. A crítica

acirrada ao produto idealizado de Iracema tal Sigmund Freud o colocou no divã de seu

gabinete de trabalho a fim de questionar o valor textual próprio do seu trabalho.

A força do amor em Alencar atinge degraus superiores, o amor como símbolo da

vitalidade decorre de uma ação singular: a sua capacidade infinita de proporcionar o

engrandecimento e a expansão anímica dos personagens nas páginas do seu romance

indianista. Em Iracema, este amor encontra seu ‘nirvana’ quando Iracema se entrega ao amor

proibido, causa de sua morte conforme previa a maldição tribal. Dir-se-ia que seu amor não

tendo uma realização no plano terrestre-temporal lhe promoverá a realização no plano

espiritual. Este assassinato lingüístico é espelho reflexo da tópica do lirismo cortês. Isto

perpetua o mito do amor impossível e nos faz chegar à evidência de que o paradigma do

amor, casamento e adultério encontram sua recepção no período romântico se bem que de

forma fragmentária.

Se na lírica cortês o sujeito tende a encontrar a felicidade fora do casamento, o

que concretiza o adultério; na prosa romântica é apenas o amor, conseqüentemente, o

casamento que faz sentido. A temática do adultério não é presentificada em Iracema. Neste

sentido, o texto medieval difere do oitocentista, não obstante, alguns temas sobre a

prostituição em Lucíola contradigam esta tese.

Poder-se-ia pensar que a triangulação amorosa Martim/Iracema/Irapuã – no

tocante à trama – não tem muita razão de ser no seu sentido lato. De fato, parece que

Alencar insere Irapuã na intriga amorosa apenas com a intenção idealizante de dar vida ao

episódio romanesco. O guerreiro tabajara não é o preferido de Iracema, mesmo que este se

julgue merecedor dela. Assim, o surgimento do terceiro na triangulação amorosa funciona

somente como elemento capaz de comprovar que o amor de Iracema não se desviará da

trajetória que tem de cumprir: provar que os entraves são apenas caminhos secundários para

a concretização de seus intentos mais internalizados, a completa servidão ao amante e

221

marido. Neste plano, seu amor se iguala ao de Isolda, porém com uma sutil diferença: é o

terceiro elemento do triângulo – o intruso Tristão – que arrebata os suspiros da jovem

enamorada, desperta-lhe a paixão imarcescível.

Nas duas obras justapostas, os fios do silêncio que enredam a paixão variam do

amor ao ódio, do medo à esperança, passando pela glória, inveja, ciúme, amizade e liberdade.

Por meio da paixão pode-se pensar idéia e corpo não como uma relação de comando e

obediência, mas como uma expressão recíproca e autônoma. Percebe-se no desenvolvimento

dos dois textos, que quando se experimenta e quando se reconhecem as particularidades das

paixões abre-se espaço para a invenção do saber e a novos saberes que correspondem às

experiências afetivas. A paixão é provocada pela presença ou imagem de algo que leva os

protagonistas a reagir de improviso e, isto nos leva a evidência de que o ‘eu’ vive

permanentemente sob a dependência do ‘outro’.

No centro da paixão está o desejo narcísico que, por sua natureza, é irrealizável e

as personagens passam o tempo todo (a vida toda) tentando saciá-lo para que haja uma

diminuição um abrandamento da intempérie sentimental interiorizado no âmago do sujeito

apaixonado. Portanto, poderíamos dizer que a paixão – se bem que racional – é incontrolável

e, seria um absurdo pretender controlar a paixão e modular sua força, pois ela é sempre o

sintoma de uma doença e não de uma reação inevitável a uma emoção. Nada se faz enquanto

não se impossibilitou a alma de senti-las. Sob o ponto de vista psicanalítico, “a especificidade

da paixão como parte integrante da totalidade do ‘eu’ determinado eu comportamento tem

suas raízes nas pulsões cuja natureza o próprio ‘eu’ “ignora”257. Visto sob esta perspectiva, a

paixão poderia ser considerada um elemento estranho ao sujeito, de sorte que não se poderia

integrá-lo às nossas vidas, mas, ortodoxamente, o sujeito apaixonado está preso às suas

mordaças – como é o caso dos heróis e heroínas de Tristão e Isolda e de Iracema.

Onde se verificou uma similitude na arquitetura e organização dos textos

justapostos, vemos também os elementos que os diferenciam na intrincada rede de recepção.

Assim, em Iracema, José de Alencar recupera o mito do amor impossível – temática pioneira

em Tristão e Isolda – incorporando-lhe por acumulação o tema do mito da jovem nação

brasileira. Para isto, recorreu a fatos históricos e lendários, à cultura indígena e ao processo

de lusitanização do Brasil. Iracema não é só um romance ficcionalizado, é também um

testemunho presente do processo de colonização e das problematizações por ela geradas: o

257 LEBRUN, Gerard. Os Sentidos da Paixão. “In”: o conceito da paixão. p. 26.

222

domínio da língua autóctone, a desculturação do povo primitivo – o índio. Talvez o romance

indianista de Alencar – Iracema – tivesse mais sensibilidade poética se o autor se

encarregasse apenas da narrativa ficcional em detrimento aos episódios históricos. Isto,

provavelmente, pouparia muita crítica de comentadores cujo dogma é falar mal, não importa

a que preço.

Assim, se encontramos um Antônio Cândido preocupado apenas com a análise

da fortuna literária alencariana, descompromissadamente, o mesmo não podemos dizer dos

críticos Antônio Soares Amora e Roberto Schwarz – dois ferrenhos críticos do escritor

cearense. Este, tal como um promotor público o acusava de importador do romance

europeizante; aquele de plagiador de Atala, de Chateaubriand. Tais considerações dos dois

críticos, a meu ver, poderiam ainda colocar em xeque a legitimidade e mérito do trabalho do

prosador Alencar. Já Alfredo Bosi e Haroldo de Campos não são assim tão severos em suas

análises e apreciações, pois ambos procuram adequar seus verbos literários entoando a

conjugação da importância do produto literário alencariano dentro do Romantismo brasileiro.

Supõe-se, contudo, que tanto a crítica, surgida no Brasil em seu momento oitocentista, quanto

a da Modernidade devam acrescer algo de importante a José de Alencar na medida em que

relata, negativa ou positivamente, sua vasta produção literária.

Ao tecer Iracema, Alencar, nada mais fez do que, aquilo que fazem os grandes

poetas e prosadores: ele avançou a idéia de que os poetas de todas as eras contribuíram para

um único “Grande Poema”, como quer Harold Bloom258. Quer isto dizer que nesta angústia

de influência “os poetas mortos constituem precisamente a medida da evolução do

conhecimento de seus sucessores, esse conhecimento ainda é criação de sucessores, uma

criação dos vivos para os mortos”259. A encarnação da tópica do amor impossível em Tristão

e Isolda é invocada em Iracema, porém, Alencar – não sei se consciente ou

inconscientemente – com sua visão oitocentista do texto medievo, recusou a remoer apenas o

acontecido no nível do mito e, então, a sua tarefa que a de recolher tudo o que resta dá novos

contornos ao mito do amor cortesão, impondo-lhe, grosso modo, novos rumos: herói e

heroína não mais mantêm uma relação amorosa de dupla-troca, de reciprocidade uma: marca

intrínseca de um final indecoroso.

258 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia. Tradução e Apresentação de Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991. 259 Idem, p. 49.

223

O registro literário influi de modo inequívoco sobre a movimentação da trama,

dando-lhe os contornos de que ele acha necessário para a criação de um conflito, sem o qual

não haveria o desenvolvimento pleno da intriga, o lirismo que é a expressão da própria alma,

a representação ativa dela. Neste sentido, estão presentes fatores sociológicos, pois está em

jogo a crucial questão da liberdade de expressão, de sorte que, a literatura tem uma função

social, visto ser ela uma atividade tipicamente humana, e o homem é um ser naturalmente

social. Assim, a literatura não pode deixar de ter um aspecto acentuadamente social. Dir-se-ia

que este societismo literário se manifesta de modo direto e indireto. O artista da palavra, sob

o ponto de vista literário, vive em sociedade, e o problema social é sempre um dos primeiros

a se apresentar em seu esforço criador que se manifesta por meio da linguagem que segundo

Hjelmslev é “o instrumento ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas

emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e

é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana”260.

A linguagem da cortesia é constituída por um sistema de signos próprios,

convencionais, não-arbitrários: é resultado – dentro do processo comunicacional – da

pré(elaboração) de idéias, valores, sentimentos de uma classe dominante da sociedade

européia da Idade Média. Por não ser estática, a linguagem da cortesia atravessou os séculos

e influenciou não só o romântico José de Alencar, mas tantos outros que vieram depois dele.

Finalizo este estudo com a frase final do episódio romanesco Iracema:

- “Tudo passa sobre a Terra”.

260 CHAUÍ, Marilena. Filosofia. 7ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2004, p. 71.

224

Apêndices

1: O Drama Heloisa-Abelardo

Teólogo261 e filósofo, era filho de um lorde de Pallet na “Brittany South of the

Loire”. Entre os anos de 1094 e 1106 ele estudou lógica em “Loches” e em Paris sob a

supervisão de Roscelin Guillaume de Champeaux e ensinou e em “Melun” e em “Corbeil”.

Depois de um ou dois anos na Bretanha ele retornou à escola de Guillaume, mas as violentas

polêmicas com seu mestre, que o forçava a mudar sua visão em pontos conflitantes, tornou

sua estadia em Paris difícil. Ele voltou novamente para Melun mas retornou rapidamente a

paris como um professor no “Mont Ste. Geneviève. Depois de alguns intervalos na Bretanha

ele assistiu Anselm na escola teológica ( 1114 ), mas alienou seus mestres pela inflexibilidade

crítica de sua erudição e voltou para Paris como professor de lógica e teologia em “Notre-

Dame”. Fulbert, um cônego de lá, o encorajou a ser professor de sua sobrinha Heloisa. O

amor de Abelardo por Heloísa resultou no nascimento de um filho e de um casamento

secreto. Fulbert vingou-se dele emasculando-o, por conseguinte Heloísa tornou-se uma freira

e Abelardo um monge de “Saint Denis”. Neste monastério ele tornou-se impopular e seu

... Theologician and philosopher, was the son of the lord of Pallet in Brittany south of the Loire. Between c. 1094 and c. 1106 he studied logic at Loches and in Paris under Roscelin na Guillaume de Champeaux and taught it at Melun and at Corbeil. After one or two years in Brittany he returned to Guillaume’s School; but the violent polemicss with his master, whom he forced to change views on the nature of universals, made his stay in Paris difficult. He went again to Melun but he was soon back in Paris as a teacher on the Mont Ste. Geneviève. After another interval in Brittany he attented Anselm of Laon’s theological school ( c. 1114 ), but alienated his masters by sharp criticism of their scholarship and went back to Paris as a teacher of logic and theology at Notre-dame. Fulbert, a canon there, entrusted him with the education of his brilliant niece Heloise. Abelard’s love for her led the birth of a child and to a secret marriage; Fulbert took his revenge by having Abelard emasculated; whereupon Heloise became a nun and Abelard a monk ( c. 1118 ). In te monastery of Saint Denis, he made himself unpopular by denouncing the worldliness prevailing there; and his success as a theologician prompted other theologicians to probe his views on the Trinity. ( ... )

As a philosopher Abelard excelled of the nature of abstraction and in search for the source of responsability in human actions. His inquires into the problem of universals, far from cristallizing in a moderate nominalism or intellectalism, ranged from a critical survey of the opinions ot other philosophers to an analysis of the functions – logical and grammatical hymn– of universal words, to a research into various levels of knowlegde and to a metaphisical discussion on the similarities of things and on the relationship between God and university in created things.

( ... ) Abelard’s extant works may be divided among five group... The letters comprise his autobiography

down (Historia calamitatum), five letters to Heloise, a letter to ST. Bernard and six other letters. The poetical compositions comprise s, sequences and the Ad Astrolalabium filium. A New Suvey of universal Knowledge. Encyclopaedia Britannica, Inc. USA: pp. 226-227. Vol. 24.

225

sucesso com um teólogo levaram sem demora outros teólogos a proibirem seus pontos de

vista em torno da Trindade.

Como filósofo excedeu na erudição abstracionista e na busca pela fonte ou raiz da

responsabilidade nas ações humanas. Suas indagações em torno dos problemas universais,

distante de se cristalizar numa nominalização moderada ou intelectualismo estendeu-se a uma

pesquisa crítica das opiniões de outros filósofos para um análise – lógica e gramatical – de

palavras universais, para uma pesquisa dentro dos vários níveis do conhecimento e para uma

discussão metafísica sobre a similaridade das coisas e para um relacionamento entre Deus e

universalidade na criação das coisas.

Os trabalhos existentes de Abelardo podem ser divididos em cinco grupos. As

missivas compreendem sua autobiografia e cinco cartas a Heloísa, uma carta a São Bernardo

e seis outras cartas. As composições poéticas compreendem hinos, encadeamentos lógicos e a

“Ad Astrolabium Filium”.

2: O Catarismo O ‘amor cortês’ floresce na mesma época e na mesma região geográfica em que

aparece e se estende a heresia cátara. Devido às suas pregações igualitárias e à pureza e

integridade dos costumes de seus bispos, o catarismo conquistou rapidamente uma vasta

audiência popular. Sua teologia impressionou os letrados, a burguesia e a nobreza. Suas

críticas à Igreja Romana alentaram uma população cansada dos abusos do clero e das

instruções dos enviados papais. A ambição dos grandes senhores, que desejavam se apoderar

dos bens da Igreja e se sentiam ameaçados pela monarquia francesa, favoreceu também a

nova fé. Por último, um sentimento coletivo que não sei se devo chamar nacionalista: o

orgulho e a consciência de compartilhar uma língua, costumes e cultura. Um sentimento

difuso mas poderoso: o de pertencer a uma comunidade, a Occitânia, o país da língua de

oc,rival do país de língua de oil. Duas sociedades, duas sensibilidades que haviam se

cristalizado em duas maneiras de dizer oui ( sim ), essa partícula que nos define não pelo que

negamos, mas sim pelo que afirmamos e somos. Ao se enraizar na Occitânia, a religião cátara

se identificou com a língua e a cultura do país. Muitos dos grandes senhores e damas que

protegeram os trovadores tinham simpatia por estas doutrinas. Embora houvesse trovadores

cátaros – e nenhum deles escreveu poesias amorosas – é natural uma certa relação entre o

226

‘amor cortês’ e a crença dos cátaros. Mas não contentes com essa verdade inócua, Denis de

Rougemont foi mais longe: acreditou que os poetas provençais tinham se inspirado na

doutrina cátara e que dela vinham suas idéias básicas. De dedução e dedução, chegou a

afirmar que o amor ocidental era uma heresia – e uma heresia que não sabia ser uma heresia.

A idéia de Rougemont é sedutora e confesso que durante algum tempo conquistou, sem

reticências, minha adesão. Depois não concordei e explico por quê.

Mais que uma heresia, o catarismo foi uma religião, pois sua crença fundamental

é um dualismo que opõe à fé cristã em todas as suas modalidades – da católica romana à

bizantina. Suas origens estão na Pérsia, berço das religiões dualistas. Os cátaros professavam

não só a coexistência de dois princípios – a luz e as trevas – , mas também, em sua versão

mais extrema, a dos albigenses, a das duas criações. Como várias seitas gnósticas dos

primeiros séculos, acreditavam que a Terra era criação de um demiurgo perverso ( Satã ) e

que a matéria era, em si mesma, má. Acreditavam também na transmigração das almas,

condenavam a violência, eram vegetarianos, pregavam a castidade a reprodução era pecado)

, não condenavam o suicídio [talvez neste ponto da argumentação de Octávio Paz, possa-se

aceitar o pressuposto teórico da morte voluntária, poética, com que se revestiu o serviço de

cortesia, como um mecanismo ideológico baseado na doutrina cátara] e dividiam sua Igreja

em ‘perfeitos’ e simples crentes. O crescimento da Igreja catara no sul da França e ao norte

da Itália é um fenômeno assombroso, inexplicável: o dualismo é nossa resposta espontânea

aos horrores e às injustiças da Terra. Deus não pode ser o criador de um mundo sujeito ao

acidente, ao tempo, à dor e à morte; só um demônio pode ter criado uma Terra manchada de

sangue e regida pela injustiça.

Nenhuma destas crenças tem a menor afinidade com as do ‘amor cortês’. Na

verdade, deve-se dizer o contrário: há oposição entre elas. O catarismo condena a matéria e

essa condenação alcança todo o amor profano. Por isso o casamento era visto como um

pecado: gerar filhos era propagar o pecado, continuar a obra do demiurgo Satã. Tolerava-se o

casamento, para o crente comum, como pis aller, um mal necessário. O ‘fin amors’ o condena

também, mas uma razão diametralmente oposta: era um vínculo contraído, quase sempre sem

a vontade da mulher, por razões de interesse material, político ou familiar. Por esta razão

exaltava as relações fora do matrimônio, sob a condição de que não tivessem inspiradas pela

mera lascívia e fossem consagradas pelo amor. O cátaro considerava o amor, incluindo o

227

mais puro, porque amarrava a alma à matéria: o primeiro mandamento da ‘cortesia’ era o

amor a um corpo belo. O que era santo para os poetas era pecado para os cátaros. 262

3: Tristan et Iseult “Tristan, neveu du roi de Cornouailles, a délivré le pays d’un monstre, le

Morhout. Il est envoyé en Irlande chercher la blonde Yseult qui doit devenir la femme de son

oncle. En route, les deux jeunes gens boivent par erreur um philtre qui était destine à unir

Marc et Yseult d’un amour sans fin. Aussi, ils sont pris l’un pour autre d’une passion

coupable et fatale dont le roman raconte lês péripéties dramatiques. Le dénouement imaginé

par Thomas est célèbre: Tristan a quitté la cour de son oncle et a épousé la fille du duc de

Bretagne, Yseult aux blanches mains. Mais, il ne peut oublier l’autre Yseult. Blessé

dangereusement dans une combat par une épée empoisonnée, il se pourra guérir que s’il est

soigné par la blonde Yseult. Il envoie son beau-frère Kaherlin la chercher. Elle consent à

venir. Il est entendu que si Kaherlin amène Yseult, il arborera à son bateau une voile blanche,

sinon, une voile noire. La barque est en vue. Tristan sur son lit de douleur s’enquiert de la

couleur de la voile. La voile est blanche, mais Yseult aux blanche mains, poussée par la

jalousie, déclara qu’elle voit une voile noir. Tristan désespéré expire. Yseult la blonde arrive

bientôt après er muert de douleurt”263

262 PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. 5ª edição. Tradução: Waldir Dupont. São Paulo: Editora Siciliano, pp. 77-79. 263 CALVET, J. Manuel illustré d’histoire de la littérature française, pp. 31-32.

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