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ago 2008 | itaucultural.org.br 13 ITAÚ CULTURAL O olhar em fragmentos

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ITAÚ CULTURAL

O olhar em fragmentos

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sumário

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ITAÚ CULTURAL

A construção do olhar Como a consciência visual é desenvolvida na arte

Os lados de foraO que o cinema não mostra em seus enquadramentos

Uma multidão de NarcisosA força da imagem no mundo contemporâneo

Os mistérios da fotografiaEm entrevista, Boris Kossoy fala sobre a compreensão da imagem

Domingo de LuzParque da Luz e seus personagens são tema de fotorreportagem

Fotografe as estrelasBailarinas cegas e fotógrafos surdos e suas diferentes formas de olhar

Continuum on-lineO conteúdo exclusivo da revista na internet

Área livreA primeira frase de um clássico da literatura sob a visão de um ilustrador

A percepção que vem do olhar

O que nos distingue uns dos outros? Talvez seja a nossa capacidade de compreensão e de criatividade – virtudes que são conseqüência da percepção. Perceber é saber ver – filmes, paisagens, fotografias, obras de arte, cenas, passagens, percursos cotidianos – sem precisar usar uma só palavra. Por isso mesmo, falar sobre o olhar é dirigir-se “à sensibilidade de cada um”, como certa vez escreveu a artista plástica Fayga Ostrower (�9�0-�00�). Ela falava de experiências artísticas e do quanto pode ser sensual o ato de perceber.

Com o título O olhar em fragmentos, esta edição de Continuum Itaú Cultural traz matérias sobre a construção – ou melhor, a desconstrução – do olhar nas artes vi-suais e de que forma as escolhas de enquadramentos no cinema sugerem o nosso

entendimento sobre os filmes. A ques-tão de como nos mostramos ao mundo também é tema de uma reportagem que aborda o narcisismo contemporâneo. Coreografias desenvolvidas por um gru-po de bailarinas cegas mostram que ver pode estar muito além dos olhos. Assim como o trabalho feito por fotógrafos sur-dos, que revela o quanto a audição está contida no sentido da visão.

A fotografia também está presente na fotorreportagem que expõe um dia de do-mingo no Parque da Luz, em São Paulo. A entrevista do mês traz o pioneiro em

pesquisa sobre fotografia no país Boris Kossoy, que desvendou alguns dos milagres da imagem fotográfica. Na Área livre, a primeira frase do livro

Memórias Póstumas de Brás Cubas aparece sob a perspectiva de um ilustrador. Enquanto na versão virtual da revista estão

disponíveis obras de outros ilustradores baseadas no clássico de Machado de Assis.

13 ago �008

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Tiragem 30 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected] Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Cia de Foto, Luiza Fagá, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Patricia Patrício Agradecimentos Fernanda Bianchini, Hilton Lacerda, Jorge Bodanzky, REC Produtores

capa | imagem: Humberto Pimentel

ISSN �98�-8084 Matrícula 55.08� (dezembro de �007)

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As imagens das páginas 4 e 7 estão sob licença do Creative Commons Attribution �.5

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A construção do olharAs múltiplas formas de uma única questão: a criação da consciência visual

Por Patrícia Patrício

Olhar, contemplar, passa por momentos sutis: percebemos os objetos (ou paisagens), os interpretamos e classificamos num determinado contexto, para, quem sabe, por fim, recriarmos aquilo que vimos. Isso se dá o tempo todo sem que percebamos, embora o exercício de despertar o olhar, em especial para as artes visuais, seja uma questão pertinente para artistas e teóricos.

Desenvolver nossa mirada depende da família, de educadores, da sociedade, do contato com o mundo e com a arte. Ou seja: “Não se institui a formação do olhar, ela começa no momento em que passamos a enxergar. O padrão estético se constrói com base no que se vê”, defende Denise Grinspum, gerente-geral do Instituto Arte na Escola, em São Paulo, e especialista em arte-educação.

Perspectiva semelhante tem o curador Paulo Sergio Duarte: “Não existe fórmula de educação do olhar. O importante é exercitar a suspensão dos preconceitos, saber que não tenho os hábitos de ler, ouvir e ver certas coisas. São os hábitos que me possuem. Se percebo essa submissão e procuro evitar as certezas que tenho, que não são minhas, mas que pertencem aos meus hábitos, posso abrir novos horizontes à percepção”.

Para tanto, ele ressalta a importância das visitas regulares a museus e galerias. “Ninguém diz que gosta de literatura e só lê um ou dois livros por ano, ou que gosta de música mas só escuta de vez em quando. A música está ao alcance da mão, no rádio, na prateleira de CDs. O livro também, pois fica na estante de casa. A obra de arte, para existir, necessita de contato com o espectador. Tenho de me deslocar ao museu, ao centro cultural; raramente a obra de arte está num canto da minha casa. Mas a repetição dessa experiência realizará a descoberta de um mundo de conhecimento.”

reportagem

Óleo sobre tela O Cão, de Francisco de Goya (�746-�8�8) | imagem: Creative Commons

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Num ponto de vista próximo ao de Duarte, Silvio Dworecki, artista plástico e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) in-dica que a apreciação dos trabalhos dos ar-tistas é fundamental. “Quem quer se expres-sar precisa de referências. Você pode dizer algo não só fazendo arte, mas também por meio do que observa e lembra em relação às obras que viu.” Dworecki relata os diversos procedimentos do olhar, com os quais cada um encontra sua maneira de ver o mundo: a leitura de obras de arte, o desenho de observação, de memória e do gesto são vi-vências importantes, afinal a percepção e a expressão formam um binômio coeso. Mas o regulador de todos esses procedimentos é a atenção: “O interesse pelo olhar, não pela obra nem pelo museu, mas, sim, em apreender o percebido”. O museu, segundo Dworecki, deve ser um espaço onde se dá a continuação do olhar. O grafite é um gran-de estimulador dessa percepção contínua, que não isola a arte do mundo.

Claudio Mubarac, gravurista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, diz que a formação do olhar tem a ver com uma espécie de gramática visual que cada um de nós desenvolve: “Todos nós temos o poder de pensar visualmente”. Também é importante entender os caminhos do trabalho do artista − técnicas, formas de ex-pressão − pois estão intimamente ligados ao pensamento visual. “Por meio do contato direto com a oficina e seus instrumentos, compreende-se melhor o artista”, diz ele, citando o exemplo de Leonardo da Vinci (�45�-�5�9), que no início de sua traje-tória usou a pena para desenhar, aban-donou-a na maturidade e mais tar-de a retomou. “A materialidade e a poética não se separam.”

O mito da redoma

Quando o artista cria, ele pensa no olhar de seu público? Silvio Dworecki nota que “exis-te o mito de uma arte pura na qual o artis-ta ficaria numa redoma e seria um pecado preocupar-se com o público”. Para ele, “isso é uma balela”. Porque, segundo diz, ele vive no seu tempo e suas condições dependem da relação com o mundo material. Como, por exemplo, Goya (�746-�8�8), pintor da corte espanhola que não abandonava sua visão crítica: “Nas pinturas ele fala dos sobe-ranos, mas nas gravuras tem uma liberdade mais profunda”.

A vida do artista não explica sua obra, po-rém existe uma relação entre as duas. “Mes-mo os pintores das cavernas não pintaram apenas para si, mas para desenvolver rituais. Há muitas obras contemporâneas que con-vidam à participação do público, que pode interagir com elas. Mas às vezes só é permi-tido observar e, mesmo assim, o olhar ga-rante a participação.”

O que é um olhar “educado”?

“É aquele que desconfia de si próprio. A interação e a convivência contínuas com a arte fazem emergir esse olhar treinado. Um pouco de sensibilidade e alguma leitu-ra para conhecer a história da arte ajudam muito”, pondera o curador Paulo Sergio Duarte. “Olhar ‘educado’ é quando a pessoa tem alta exposição à arte, seja com a famí-lia, que a acompanhou em visitas a museus, seja na escola, com educadores que a esti-mularam”, afirma Denise Grinspum.

Claudio Mubarac não gosta da expressão. “Defendo uma formação integral, que traz as artes visuais para o cotidiano. Assim, o olhar ‘educado’ seria conseqüência de uma for-mação de fato.” Silvio Dworecki acompanha o questionamento de Mubarac: “Você pode conversar com pessoas simples que desco-nhecem a produção artística, mas têm uma cultura que permite conhecer o mundo à sua volta. “O olhar ‘educado’ é aquele que de-senvolveu a atenção para o mundo”.

E como desconstruir o olhar em relação à arte contemporânea, que leva a manifes-tações do tipo “este monte de objetos de-sarrumados não é arte” ou “meu filho faria igual”? Denise Grinspum diz que a “descons-trução não é do olhar, mas da atitude. Não é fácil fruir a arte contemporânea, é preciso trabalhar experiências sensoriais, construir um novo arcabouço para compreender a arte contemporânea. O que precisamos desconstruir é o preconceito”.

Uma saída para desformatar uma visão pre-conceituosa, nas palavras de Claudio Muba-rac, é “despreocupar-se em decidir se uma obra é arte”. Ele brinca, contando a história de Adão no Paraíso: “Ele pega um galho para desenhar na areia. A serpente vê o desenho e diz ‘muito bonito, mas não é arte’. Então, como não cair num erro de julgamento?”. Mubarac indica um caminho: “Parar de ex-plicar e conviver com o mundo por meio da arte como forma de conhecimento, retirando-a do caráter ornamental. A arte não é a cereja do bolo, é o fermento”.

A tão comum rejei-ção a obras abstratas e con-ceituais se dá, no entender de Silvio Dworecki, porque “o primeiro preconceito incutido nas pessoas é o da semelhança”. Quer dizer, a arte deveria retratar fielmente seres e objetos do mun-do. “Os artistas vêm lutando desde o final do século XIX pela liberdade de formas, co-res e proporções, mas esse conceito ainda não chegou ao cidadão comum”, reclama Dworecki. Talvez isso se dê porque a maio-ria das imagens que recebemos na internet, na TV e no cinema são de matriz fotográfi-ca, com a ilusão tridimensional trazida pela perspectiva. “Desde a Renascença fomos acostumados com o olhar da câmera”, diz Claudio Mubarac. “O público deve entender que instalações e performances são formas de arte que estão no território da mágica.” Para completar, Dworecki ressalta que saber um pouco de história da arte é fundamen-tal para desenvolver uma compreensão dos trabalhos de artistas contemporâneos. Afi-nal, como lembra Mubarac, “a arte contem-porânea não está desligada da história da arte, vive em diálogo, numa teia complexa”. E essa teia tece os fios do nosso olhar.

Estudo de desenho como caricatura Cabeças Grotescas, de Leonardo da Vinci (�45�-�5�9) | imagem: Creative Commons

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Os lados de foraDa filmagem à exibição, os limites de um filme estão muito além da tela

Por Luiza Fagá

“A moldura, o quadro caíram há muitos anos. Como a boa pintura, o bom cinema vai além do que é visível. Está sendo feito pela cabeça do outro.” A frase é de Cao Guimarães, artista plástico e cineasta, diretor (e também fotógrafo) dos filmes A Alma do Osso (�004) e Andarilho (�006). Marcelo Gomes, diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus (�005), concorda. “O desafio é trabalhar com o subjetivo, instigar a imaginação do espectador para o que ele não vê”, o que permite “diferentes camadas de interpretação do filme”.

No cinema, a questão do extraquadro – o que não é enquadrado pela câmera – é, em primeira análise, simples. Isso porque a alusão ao espaço não-visível é uma das suas características fundamentais. Mesmo os enquadramentos menos pretensiosos recortam uma porção limitada do espaço físico e, geralmente, partes incompletas de elementos entram em quadro. A visão de uma parte sugere, por uma relação lógica, o restante, expandindo seu limite.

Há outras técnicas básicas que permitem o mesmo efeito, como o som e os movimentos de câmera. Se ouvimos passos ou o barulho de uma porta que se abre, sabemos que há alguém entrando no ambiente em que se passa o filme – ainda que não possamos ver essa pessoa. Os movimentos de câmera e a montagem de planos distintos compondo a mesma cena, por sua vez, permitem que sejam captados diferentes recortes de um mesmo espaço físico. O espectador é responsável por encaixar as diversas partes, formando uma idéia de espaço tridimensional completo. Em maior ou menor grau, portanto, o cinema depende da sua percepção para que o quadro se expanda e, assim, se complete.

reportagem

A questão do espaço exterior à tela se torna complexa no trabalho de cineastas que le-vam ao limite a importância do extraquadro para a compreensão da obra, exigindo que os espectadores sejam ativos, já que aquilo que não se vê não pode ser aferido por meio de uma simples relação lógica. Nesses casos, o espaço não-visível é inserido na obra de maneira mais determinante, pois depende da relação sensível e intelectual do observa-dor com o filme a que ele está assistindo.

Um exemplo de diretor que adota a segunda maneira de interagir com o espaço exterior ao enquadramento é Cao Guimarães, para quem as boas obras audiovisuais seriam apenas “sugestões” a ser livremente “comple-tadas na cabeça do outro. Isso é da ordem do incontrolável”. Para ele, essa impossibili-dade de determinar os infinitos filmes que serão feitos por cada um é a característica mais instigante do cinema – e da arte em geral. “O filme habita esse limite entre o que se vê e o que não”, diz. Em sua obra, Guima-rães propõe tamanha fragmentação do tem-po-espaço que a ligação entre as seqüências fica a cargo do espectador. São, portanto, fil-mes abertos, que, se exibidos a um público passivo, não adquirem sentido.

Marcelo Gomes compartilha

a opinião do colega. “O filme não acaba na tela, acaba na cabe-

ça de quem assistiu a ele”, diz. Na sua filmografia, um exemplo que depende

muito da participação ativa do público é o documentário Sertão de Acrílico Azul Pis-

cina (�004), co-dirigido com Karim Aïnouz. O filme aborda a coexistência do arcaico e do contemporâneo no sertão nordestino, “mas em momento nenhum isso é dito”, explica Gomes. Para chegar a essa com-preensão, é necessário que o espectador interprete cada uma das imagens exibidas – que vão desde cerimônias religiosas até barraquinhas de produtos made in China –, as contextualize e as correlacione por apro-ximação ou oposição. Não há entrevistas ou depoimentos que analisem e interpretem a situação representada. Além disso, há algu-mas imagens que beiram a abstração – a in-formação visual necessária para a compre-ensão do objeto está fora do quadro. Nesses casos, a imagem só pode ser compreendida por meio do repertório de cada um: uma madeira pode representar o arcaico, o plás-tico, o contemporâneo.

Os bastidores da produção Iracema, uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna| imagens: Wolf Gauer

Por trás das câmeras do documentário Sertão de Acrílico Azul Piscina, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes | imagem: Heloísa Passos

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Jorge Bodanzky, que dirigiu (com Orlando Senna) e fotografou o emblemático Irace-ma, uma Transa Amazônica (�976), diz que “o bom diretor é aquele que coloca mais coisas no enquadramento. Não só aquilo que a câmera enquadra, mas o que está no entorno, que também influencia. É uma for-ma interessante de fazer cinema, mostrar o invisível”. Segundo ele, para tornar visível o que não se vê “não existe fórmula nem tabela. É a sua experiência que vai dizer se aquilo que você está mostrando, além do que está mostrando, trará para o especta-dor outras sensações”.

Luis Abramo, diretor de fotografia de Proibi-do Proibir (�006), dirigido por Jorge Durán, diz que, cada vez mais, o cinema está “indu-zindo a leitura para fora do quadro”. “O de-safio da ficção passa por aí: tentar mostrar aquele momento que não foi filmado, a pa-lavra que não foi dita”, afirma. Na fotografia, segundo ele, essa preocupação se expressa por meio do desfoque do assunto principal, de quadros mais escuros, de personagens localizados nos cantos da tela, entre outras técnicas. Essa experimentação é possível sobretudo (e ganha força) no formato cur-ta-metragem, que permite mais ousadia por parte dos autores.

Um olho no peixe e outro no gato

Abramo também foi diretor de fotografia de vários curtas-metragens documentais. Como se Morre no Cinema (�00�), de Luela-ne Loiola, é um deles. Para Abramo, docu-mentário e ficção adotam posturas opostas em relação ao extraquadro. “A ficção induz a um espaço fora do quadro que não existe. No documentário, esse fora de quadro real-mente existe, então tentamos inserir o maior número possível de informações dentro do quadro.” Bodanzky concorda e acha que na hora de filmar um documentário o exterior tem importância especial. Isso porque “tudo influi. A luz, o som... A luz vem de fora, não vem do que está sendo filmado. As interfe-rências podem ser utilizadas ou não, podem tanto atrapalhar quanto ajudar. O bom do-cumentarista é aquele que incorpora os fatos que estão acontecendo diante dele dentro daquilo que está fil-mando”, afirma.

No documentário, portanto, o espaço externo

ao quadro é importante não só na exibição do produto final, quando

o espectador interpreta (e, em alguns casos, reinventa) a obra, mas também du-

rante a filmagem, quando o diretor decide, entre infinitas possibilidades, qual será o recorte que fará da realidade. “Como docu-mentarista você parte do real, das coisas que observa, que estão acontecendo, e interpre-ta com a câmera. O espaço fora do quadro é muito importante. No documentário você capta uma realidade e a transforma com a câmera. A premissa é o real, o que está em torno. É de onde você parte”, diz Bodanzky.

É comum, inclusive, que fotógrafos de docu-mentário filmem com os dois olhos abertos, atentos à situação que se desenrola dentro dos limites do quadro, mas sem perder de vista o entorno. “Cameraman que não filma com os olhos abertos tropeça no cabo”, brin-ca Bodanzky, que opera a câmera em seus fil-mes. Para Marcelo Gomes, apenas dois olhos não bastam, o ideal seria que o documenta-rista tivesse um terceiro olho: “Às vezes o que está acontecendo atrás de você é mais con-tundente para contar uma história”.

Abramo diz que, com a atenção dividida entre o que acontece dentro e fora do es-paço de captação da câmera, muitas vezes são perdidas cenas que seriam ótimas para o filme, mas não se deve cair no erro de supervalorizar o exterior em relação à cena que está em curso dentro do quadro. “É im-portante dar ao que está sendo filmado um momento de vivência, dar ao quadro seu tempo”, afirma. Bodanzky completa: “Tudo é um risco. Nessa forma de fazer cinema, se deixando levar pelo improviso, você está ar-riscando. Mas é um risco calculado”. “Filmar um documentário é estar à procura do re-corte perfeito”, completa Marcelo Gomes.

Para Cao Guimarães, o ideal é “potencializar a atenção no quadro e saber mais ou menos o que o rodeia”. Segundo ele, o processo de recorte e interpretação da realidade que se dá durante a filmagem de um documentá-rio exige “atenção e delicadeza para a con-templação da verdade e, dentro desse caos, saber detectar o que é mais útil para o filme. É uma relação intuitiva e visual com a reali-dade”. A essência da obra, para ele, está no processo de construção. “Um filme não é so-bre um objeto fílmico, mas sobre o encontro entre você e o outro. Neste abismo que se forma está o filme.”

Frame do filme Andarilho, de Cao Guimarães | imagem: divulgação

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Uma multidão de NarcisosO reflexo que nem sempre corresponde à realidade

Por Mariana Sgarioni

Narciso era um rapaz belo, imponente, majestoso – e indiferente ao amor. Quando nasceu, seus pais, Céfiso e Liríope, receberam a profecia de que ele só teria vida longa caso nunca visse o próprio rosto. Muitas moças se apaixonaram por Narciso, mas ele não se interessou por nenhuma. Tornou-se um adolescente arrogante e desdenhoso. Até o dia em que, ao rejeitar uma ninfa, foi castigado pela deusa da justiça. Ele voltava de uma caçada e, ávido por água, foi até o lago. Viu sua imagem refletida e ficou enfeitiçado, encantado por si mesmo. Apaixonou-se pela própria imagem e ali ficou até sua morte, uma vez que não conseguiu consumar esse amor. Quando procuraram seu corpo, encontraram apenas uma flor amarela, solitária, linda e estéril: o narciso.

Essa história da mitologia grega é triste, sim. Mas basta olhar ao redor para perceber que ela traz uma importante reflexão sobre fenômenos bastante atuais. A imagem que aprisiona; a necessidade de construir e mostrar essa imagem não como ela realmente é, mas, sim, como gostaríamos que ela fosse. Essas são questões que não param de martelar na cabeça de quem pensa a sociedade contemporânea. Estão refletidas nas artes plásticas, na fotografia, na literatura, na televisão. Na internet, basta ver a infinidade de páginas de relacionamento em que os usuários fazem questão de devassar sua intimidade e a alheia, blogs, fotologs e afins que expõem vidas e imagens que parecem ter sido preciosamente esculpidas para agradar.

reportagem

O papel do outro

Parece que nossa maior preocupação é a maneira como queremos aparecer para o mundo. O olhar do outro está cada dia mais presente – às vezes, em detrimento do nosso próprio olhar. Só que esse outro não precisa ser necessariamente ruim. Ele faz parte de nós, é indissociável na formação da nossa per-sonalidade. Desde crianças, somos formados por quem está fora, por quem está ao nosso redor. Ninguém nasce com uma personalida-de pronta, vinda de fábrica. Precisamos dos outros. “As sinapses cerebrais são construídas por meio das relações externas. Sem interação com o outro, não há personalidade”, afirma Benito Damasceno, neurologista e professor de neuropsicologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Quando crianças, interagimos o tempo todo. Não apenas com pais, mas também com amigos, familiares, vi-zinhos, empregados, professores, conhecidos. Todas essas pessoas colocam sua sementinha ali, no que será a nossa personalidade.

Se nós fo-mos moldados pelos

outros, realmente fica difícil le-var uma vida sem nos lembrarmos

que eles existem. É verdade. Uma vida sem o outro é impossível, dizem os cien-

tistas. O que inquieta nos dias de hoje é o excesso de preocupação com a construção daquilo que não somos. Não se trata de eli-minar o olhar externo e, sim, de perceber que uma imagem “manipulada” nem sem-pre é sinônimo de sucesso. “O problema é que se você faz questão de vender algo que não é, corre o risco de ser desmasca-rado. E isso acontece invariavelmente, cedo ou tarde”, diz Alexandre Sadeh, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas, em São Paulo, e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP).

Um bom exemplo é o romance O Retrato de Dorian Gray (Civilização Brasileira, �000), de Oscar Wilde. Após se deparar com a própria imagem em uma tela, Dorian se entristece ao compreender que a pintura será eterna-mente jovem, bela, inocente, enquanto seu corpo, sua face, sua alma reais envelhecerão. “Eu irei ficando velho, feio, horrível. Mas este retrato se conservará eternamente jovem. Nele, nunca serei mais idoso do que neste dia de junho... Se fosse o contrário! Se eu pu-desse ser sempre moço, se o quadro enve-lhecesse!... Por isso, por esse milagre eu daria tudo! Daria até a alma!” O desejo de Dorian se realiza, mas isso não significa que ele viva fe-liz desde então – muito pelo contrário. Como dizia Wilde, “ser espectador da nossa própria vida é fugir dos sentimentos dela”.

A personalidade surge por meio da interação com os outros | imagens: Cia de Foto

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Belos retratos

Assim como o personagem Dorian, do livro de Wilde, a maioria das pessoas também sente atração – para não dizer necessidade – por ter sua figura estampada em algum lugar. Seja em obras de arte, fotografias, si-tes na internet, seja até mesmo em moedas, como faziam os reis. “É o narcisismo inerente ao ser humano. Com a imagem representa-da ali, a pessoa será lembrada para sempre. Trata-se de um reconhecimento eterno”, diz Alexandre Sadeh. Essa representação deve ser, em geral, a mais bela possível – ou a que os outros pensam ser bela. Mas, por que a beleza? “A aparência é a parte mais pública de alguém. É o nosso sacramento, o ego visí-vel que o mundo presume ser o ego invisível, interior. Essa suposição talvez não seja justa, nem corresponda à maneira como o melhor dos mundos morais se conduz. Mas não dei-xa de ser verdadeira”, explica Nancy Etcoff, psicóloga, professora da Escola de Medicina de Harvard (Estados Unidos) e autora do livro A Lei do Mais Belo (Objetiva, �999).

Com a intenção de questionar justamen-te esse culto narcisista ao mais belo, a fo-tógrafa e artista plástica Helga Stein usa recursos digitais em suas obras para ma-nipular fotografias – a maioria composta de auto-retratos. Sua criação envolve con-traste, deformação, reforço de maquiagem, tudo com base em uma mesma matriz. Ela usa referências de pessoas famosas como Madonna, Cher, Maitê Proença, Marlene Dietrich. Dali saem humanos perfeitos e imperfeitos por natureza.

Outra artista que costumava usar o pró-prio corpo como referência a seu trabalho, em que parte dialogava justamente com o que é ser belo, era a americana Francesca Woodman. Em fotografias, vídeos e perfor-mances, mostrava fragmentos desorde-nados da própria vida. Tudo em preto-e-branco e de uma maneira poética, por vezes desfocada, em alusão a sonhos.

Embora fizes-se questão de registrar sua rotina e sua aparente confu-são mental, Francesca poucas vezes retratava seu rosto. Muito menos situa-ções glamourosas. Em profunda depres-são, ela se suicidou, atirando-se da janela de seu prédio, em �98�, aos �� anos. É um fim trágico, extremo, mas que talvez possa ser explicado pelas veias do narcisismo. “Somos bombardeados diariamente por produtos e situações que não podemos alcançar. Todos querem ter um carrão que sobe montanhas e desce rios para parecerem bonitos e fortes como o sujeito da propaganda. Mas isso não basta, porque logo aparecem outras neces-sidades e surgem frustrações reais e mais profundas”, diz o psicólogo Ailton Amélio da Silva, da Universidade de São Paulo (USP). “Essa compulsão é um distúrbio que a socie-dade muitas vezes não enxerga. Ou pior: ela valoriza”, alerta.

O psicanalista Contardo Calligaris também defende essa teoria em um de seus artigos. Segundo ele, a compulsão por ter coisas é o que se pode chamar de narcisismo con-temporâneo. “Narciso vive no país das ma-ravilhas, diante de uma imensa vitrina de objetos que nos prometem o seguinte: ao alcançá-los, ganharemos o amor, a admi-ração e (por que não) a inveja de todos. E alcançá-los é fácil − basta comprar: chocola-tes, relógios, charutos ou pacotes de férias”, escreve. “Quem precisa de amores incertos com pessoas de verdade ou de objetos ‘transicionais’ que as representem? Os obje-tos de consumo são a melhor escolha; sobre eles temos um controle absoluto.”

No mito de Narciso conta-se que, depois da morte do rapaz, as ninfas perguntaram ao lago por que ele chorava tanto. O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse: “Eu cho-ro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo. Choro por ele porque todas as vezes em que se deitava sobre mi-nhas margens eu podia ver, no fundo de seus olhos, a minha própria beleza refletida”.

Narcisismo e reconhecimento: a necessidade de ter a si próprio eternizado em fotos, sites e até moedas | imagens: Cia de Foto

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Os mistérios da fotografia

Por Mariana Lacerda

Toda imagem fotográfica guarda uma, duas, três... inúmeras narrativas. Esse é o pensamento que permeia toda a obra de Boris Kossoy, paulista, fotógrafo, professor, cientista social e pioneiro ao traçar uma história para a fotografia brasileira. É dele, por exemplo, o célebre livro Hercule Florence: a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil (Edusp, �ª edição em �007), onde conta outra versão para a história da invenção do daguerreótipo – a primeira técnica para “impressão da luz”, anunciada na França, em �8�9, e atribuída ao francês Louis Daguerre. Também assina o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: Fotógrafos e Ofício da Fotografia no Brasil 1833-1910 (Instituto Moreira Salles, �00�). Com mais de 40 anos de trajetória profissional, Kossoy esteve à frente de curadorias e hoje é membro do conselho da coleção Pirelli-Masp de fotografia. Seu portfólio inclui imagens nas coleções permanentes do Museu de Arte Moderna, em Nova York, e na Biblioteca Nacional de Paris. Ao longo do tempo, contudo, um único sentimento atravessa todas as suas realizações: a opção pelo fantástico existente em imagens que retratam gestos simples, como uma foto de família e um olhar contido nela.

entrevistaParalelo à sua trajetória de historiador da fotografia, existe um trabalho de fo-tógrafo. O que veio antes?

Antes da fotografia veio o olhar de criança. Uma das fotos da minha última exposição [na Pinacoteca de São Paulo, em �007, na qual Boris Kossoy refez os seus 40 anos de percurso pela fotografia] era a de um mato capoeira. Percebi que em muitas fotos mi-nhas aparece aquele matinho sujo, assim como surge também a imagem do meu alter ego − que é o doutor Américo, aquele senhor pequenininho. Acho que são exem-plos da persistência do olhar. Ou seja, um olhar carregado daquilo que vai sendo co-locado dentro do caleidoscópio, esse que a gente carrega em cima do pescoço. Essas imagens vão se fundindo e se repetindo ao longo de minha vida.

E como passam a ganhar significado?

A imagem é diabolicamente divina. Essa é uma conclusão extra-religiosa que faço em relação à fotografia. Porque ela tem um significado para um, e revela algo diferente para outro. Além dos significados que tive-ram para o próprio autor da imagem. Toda fotografia é um mundo à parte, que eu cha-mo de “mundos paralelos”. Esse foi o nome de uma exposição que fiz em �998 na Bienal de Fotografia de Curitiba, em que dei uma volta para retornar à infância. Aquele mati-nho, por exemplo, era o olhar das primei-ras imagens de que me lembro. Descobri

isso muito tempo depois de fotografá-lo em situações distintas. Como também

descobri uma cadeia de outros te-mas que têm relação com meu

olhar de criança.

Então você vê a fotografia como uma fer-ramenta de autoconhecimento?

Sem dúvida. Porque fotografamos ou cria-mos aquilo que somos, mas às vezes de-mora muito tempo para descobrirmos o que somos. A vida inteira eu trabalhei com imagens. Tudo começou com a arquitetura, que ajuda a desenvolver muitíssimo a ima-ginação espacial. Pensar em arquitetura sig-nifica imaginar objetos em três dimensões. Eu me apaixonei pela história da fotografia porque visualizava seus personagens e ce-nários dentro dessa espacialidade. Não era algo abstrato. Não era um número, uma data, como o ano de �49�, por exemplo. Eu imaginava as pessoas, sua coreografia, sabia que eram homens e mulheres, não tinham rabos, não tinham chifres. Porque normal-mente as pessoas do presente pensam nas do passado como sendo extraterrestres. E, no entanto, os indivíduos do passado têm seduções, vontades, fome e desejos muito semelhantes aos nossos. Claro, mudam as roupagens, as conversas, em função do co-nhecimento da época. Mas os personagens são os mesmos. E me interessa muito pensar nesse passado não só no tempo como no espaço. Quando transfiro o olhar sobre qual-quer tema antigo para o dia de hoje, estou trabalhando com o envio de um fragmento de mundo, que eu tenho chamado de “mun-do portátil”, para o caixãozinho dele, onde permanecerá na eternidade. Chamo isso de “eterno retângulo”.

Retrato do Dr. Américo (�97�), da série Viagem pelo Fantástico | imagem: Boris Kossoy

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O que é o “eterno retângulo”?

É um pequeno ensaio que estou escreven-do, uma teoria nova que tenho pensado. Não sei se nova ou velha, mas algo em que tenho refletido muito. Quando você olha o passado com base no presente, repenti-namente você já não é mais aquele, você é passado. Não acredito no desaparecimento. Creio que fragmentos de nossas vidas so-bram em diferentes lugares: eles observam, viram matéria, viram poeira, entram no con-creto de um prédio. São minipartículas de um piso, ou estão na trama de um tecido. E que olhar é esse? Ele existe em uma par-tícula nossa, nessa poeira. O propósito do olhar é se abrir e por isso ele persiste na eternidade. Tudo se transforma e nada se perde, não é isso? Talvez algumas pessoas pensem ser uma viagem o que estou tentando dizer, “o cara está para lá de Bagdá”. Mas tudo bem, criação é justamente o ato de viajar.

De que forma esse pensamento está pre-sente em sua obra fotográfica?

Bom, se você andasse nas três salas da mi-nha última exposição, iria perceber que exis-tem fotografias em que alguns bichos vol-tam. Existe um lobo numa fonte no México, e outros bichos, demônios, que reaparecem, vão se repetindo. Não sou terapeuta. Mas, se repetimos temas, é porque aquilo diz algo sobre você mesmo. E isso está na fotografia. Poucos anos atrás descobri uma foto que é uma contraluz da Avenida São João, feita quando eu tinha �4 anos. Reencontrei-a e chorei de emoção. Nem lembrava que ela existia. Sabia que tinha feito fotos quando era garoto, mas não recordava delas. Encon-trei essa imagem junto ao negativo. Eu me deslumbrei. Olhando aquela contraluz, per-cebi que fui um menino muito metido por fotografar dessa maneira. Levei um susto ao me dar conta de que, quando fotografava aquela cena, olhava para o ano de �955, que, para mim, já é outra encarnação. Ficou claro o porquê de me dedicar à história, à ciência e à arte. E também do porquê de me dedicar à ficção e à “realidade”. “Realidade” sempre entre aspas porque realidade e ficção estão muito próximas.

Como “realidade” e ficção se sobrepõem?

Eu acredito, sim, que a ficção é parte ineren-te da realidade, sempre. E também é parte inerente da fotografia por natureza. Por mais “documental” que seja a fotografia, existe um dado de ficção em sua construção. Porque ela não é a representação do espaço feito na película, pois não é possível, na fantasia que estou inventando, retirar uma película do acontecimento fotografado, colá-la sobre o suporte e dizer: isso aconteceu. Não, isso não existe. O que acontece é uma mediação. E nem vou falar em enquadramento, filme, filtro, pós-produção, no que foi escrito em-baixo, ou no que foi modificado no compu-tador. Quero refletir no fato da construção da perspectiva daquela imagem, ou seja, uma ficção, um sistema de representação visual. Que foi genial e é até hoje porque para a re-presentação figurativa ainda não achamos coisa melhor do que a fotografia, embora ela seja ficcional, um teatro. Como também são os documentários, já que são montados e editados. Porque você está trazendo uma coisa do espaço para o plano. Você tem uma tradução de dimensões. A perspectiva não deixa de ser algo ideológico.

Imagem e memória se confundem?

Penso que a imagem guarda um fragmento de memória que nenhum outro sistema de representação consegue igualar. O cinema, talvez, claro. Se bem que a imagem fotográ-fica me fascina mais porque ela é um foto-grama apenas, sem antes nem depois, é di-ferente dos filmes, que são movimento, algo que a fotografia não consegue ser. Em com-pensação, ela tem a cena congelada. E você pode ficar horas e horas olhando para uma imagem e voltar a ela daqui a dez anos. Mas a sua interpretação sobre a mesma cena será outra, pois você já não é a mesma pessoa.

A Noiva (1) (�970), da série Viagem pelo Fantástico | imagem: Boris Kossoy

Avenida São João (�955), da série Primeiras Fotos | imagem: Boris Kossoy

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O Maestro (�970), da série Viagem pelo Fantástico | imagem: Boris Kossoy

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Quando você reencontrou a foto da Ave-nida São João, de 1955, ela lhe respon-deu o porquê da sua dedicação, ao longo dos anos, à história da fotografia?

Não respondeu, mas confirmou muita coisa. Ela é uma perspectiva interessante da Ave-nida São João. E me liga com uma situação urbana em que já me vi e que me fascinava. Para mim essa avenida era o nosso ponto de referência, o cinema estava ali, tudo estava ali. E me deu prazer ver o lugar de que eu gostava quando tinha aquela idade. Isso tem tudo a ver com a história, com a minha his-tória pessoal, embora a história coletiva tam-bém me emocione muito.

Motivo pelo qual você se dedicou à histó-ria da fotografia?

Existem muitos porquês, mas o problema é que, quando começamos a racionalizar demais sobre nossos fatos do passado, ter-minamos por reconstruí-los fazendo com que as coisas se encaixem de forma interes-sante. Ninguém escapa dessa armadilha. O perigo maior é racionalizar para buscar en-caixes perfeitos. Eu fazia fotografia, gostava de história, fazia muito estúdio e retrato, fui um bom retratista. Além disso, a questão da

imagem sempre fez parte da minha vida, desde pequeno. Mas a história da fotografia foi um interesse forte que surgiu de uma via direta que é a seguinte: eu me surpreendia com a ausência de uma reflexão sobre ela. Depois, eu me surpreendia com a ausência de uma história da fotografia brasileira. Fora um ou outro ensaio, como o do Gilberto Fer-rez, neto do Marc Ferrez (�84�-�9��), escri-to na década de �940 para uma revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico NacionaI (Iphan), não havia uma incursão histórica sobre a fotografia brasileira. Meu começo no estudo da história coincide mui-to com o que eu buscava como método para trabalhar com história e com imagem. Os meus livros teóricos nasceram em função disso. Eram perguntas para as quais eu não tinha respostas. E, no meio disso, aconteceu um fenômeno: entrei numa rua e dei de cara com uma história a ser revelada, que foi o episódio Hercule Florence (�804-�879). Essa história tem �5 anos e durante muito tempo fiquei estigmatizado por conta dela, embora sempre tenha tido tantas coisas para dizer. O que me fascina nas reflexões teóricas é a explicação de conceitos e métodos no tra-balho prático, pensar em até que ponto os conceitos expressam algo que tenha uma natureza definitiva, que possam ser pensa-dos e aplicados de forma universal.

Que virem partículas, por exemplo?

Sim, que seja eterno, verdadeiro. Não é uma ciência exata. Só a constatação de que existem fatos que se repetem. Era a busca disso que me interessava. Minhas reflexões teóricas buscam a construção do olhar com base em um conceito que chamo “proces-so de construção de realidade”. Que talvez esteja em um dos meus livros: Os Tempos da Fotografia – O Efêmero e o Perpétuo (Ate-liê Editorial, �007). Porque na fotografia nós construímos realidades. Quando observo o registro da minha mãe falecida há �0 anos, construo uma realidade, tenho lembranças dela. Qualquer imagem que a gente olhe e que diga respeito à nossa vida e família, a outro tempo, a amigos etc. é assim. Mas, quando você não conhece quem está na fotografia, também constrói uma história, uma outra realidade. E, quando busca recu-perar histórias do passado por meio da fo-tografia e pesquisa profundamente aquele contexto da imagem, percebe que existe algo a mais que está ali e que não está nos livros. Tem coisas que estão conosco, que são nossa percepção. Mas tem coisas que estão além da fotografia, que moram no invisível da imagem, nos fatos que le-varam alguém num determinado dia a fotografar tal cenário, com tais pessoas.

Que histórias se escondem atrás das ima-gens? Esse foi outro conceito que trabalhei, que trata do oculto na imagem. Fotografia é aparência, é organização da aparência. Para entender a foto, saio do nível da aparência e vou buscar camadas mais profundas, quan-do, então, compreendo certos códigos, olha-res que estão ali. Quanto mais você conhece a história, mais entende a imagem. Mas há histórias particulares. E são por essas que mais me interesso, as histórias dos pequenos fatos, como um gesto, um olhar.

Veja trabalhos de Boris Kossoy no sitewww.boriskossoy.com.

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Domingo de Luz

Um dia no Parque da Luz, centro histórico de São Paulo. É o tema sugerido pelo roteirista Hilton Lacerda para esta reportagem fotográfica

Por Cia de Foto

fotorreportagem

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Fotografe as estrelasBailarinas cegas e fotógrafos surdos apresentam suas diferentes formas de olhar

Por André Seiti e Micheliny Verunschk

O silêncio talvez seja mais sinal de timidez do que de concentração. Nenhuma palavra enquanto vestem as sapatilhas e armam cuidadosamente os coques no cabelo. O salão repleto de fotografias na parede é iluminado por uma luz cinza, típica de uma manhã de inverno paulista, que atravessa as janelas. Em outro canto da sala, lembranças de nomes ilustres que já passaram pelo local e deixaram sua assinatura impressa em um tapume. O chão negro, de linóleo, abafa os passos das três bailarinas que, em fileira, iniciam uma série de movimentos com o pescoço, os braços e as pernas, para aquecer. Tudo o que o leitor acabou de visualizar não foi visto pelas bailarinas da Associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, projeto voltado a deficientes visuais, criado há �4 anos.

Cegas, elas repetem incansavelmente o plié, o elevé e outros passos do balé clássico. Em meio à música cuja melodia é demarcada por um piano, a voz da professora Daniela Sanchez dita a ordem dos movimentos a ser executada. Ao notar alguma dificuldade, logo intervém, aplicando um método criado pela bailarina, fisioterapeuta e fundadora do projeto, Fernanda Bianchini, em que o tato é essencial para a educação corporal. É exatamente o que ocorre quando a aluna Verônica Batista, que perdeu a visão ainda criança, não consegue realizar com precisão uma seqüência de passos; Daniela, além de tocá-la, também é tocada durante a demonstração do movimento para que Verônica o reproduza corretamente. “Elas possuem as mesmas dificuldades que as bailarinas videntes [que enxergam] têm”, afirma a professora.

Para Fabiana Croccia, que ainda está em período de readaptação por ter perdido a visão recentemente, a maior dificuldade que sente é uma das mais comuns no balé: manter o equilíbrio. Mas nem sempre elas recebem o mesmo tratamento que outras bailarinas. Gisele Dantas, que está há três anos no balé, diz que muitas vezes o público as aplaude mais pelo fato de serem cegas do que propriamente pelo talento que possuem. “Às vezes, as pessoas pensam ‘coitadinhas, elas são cegas’, então batem palmas por qualquer coisa”, explica. “ Gosto quando sentimos que somos reconhecidas não pelo que somos, mas sim pela qualidade de nosso trabalho.”

Antes de qualquer apresentação, as bailarinas fazem um rigoroso reconhecimento do palco para ter a exata noção espacial do ambiente. Verônica é a mais preocupada em não errar. “Fico sempre pensando nos passos, para fazer do jeito certo.” Já Fabiana procura apagar tudo de sua mente durante as apresentações. “Se a gente fica pensando muito, acaba errando”, conta. Apesar de, às vezes, os erros acontecerem, o balé para as dançarinas cegas parece estar acima de qualquer classificação de certo ou errado. Segundo Gisele, que aponta uma tendência de os cegos olharem para baixo, “o balé ensina a não olhar para as minhoquinhas, e, sim, para as estrelas”.

reportagem

Mais luz!

Agora, imagine um mundo onde a visão fosse o sentido da comunicação por exce-lência. Num mundo como esse, o olhar se configuraria como uma outra voz, um senti-do articulado entre a atenção e a percepção, com possibilidades e habilidades inúmeras, mas também com restrições. Nesse mundo, fechar os olhos seria o equivalente a mergu-lhar num oceano profundo e sem sons. Nes-se mundo, fechar os olhos poderia ser igual a perder a voz.

Numa sala de paredes repletas de fotos, Tatiana Martins conta como é viver num universo assim, e explica que a fotografia é o modo mais eficiente que possui para ex-pressar seus sentimentos e fazer com que os outros compreendam a sua percepção da realidade. Com uma preocupação estética apurada, apresenta um universo luminoso e eloqüente que emerge das sombras como que para dizer: estou presente.

Tatiana não ouve. Perdeu a audição ainda

criança devido à seqüela de uma meningite e tudo o que relata, com

entusiasmo, é mediado por um intér-prete. Ela é uma das jovens aprendizes

do Fotolibras, projeto sediado no Recife, que tem entre seus objetivos ampliar a expressão da comunidade surda por meio da fotografia. Da manipulação da imagem à apropriação da técnica, busca integrar e promover a auto-estima de jovens que não ouvem e que têm muito a dizer, e, sobretu-do, muito a ensinar.

Para Mateus Sá, fotógrafo e um dos professo-res de Tatiana, o olhar dela surpreende pela maturidade, como se a garota fosse uma pro-fissional experiente. “Ela mergulha na luz, na composição, brinca com isso”, diz Sá. “Tam-bém tenta retratar a convivência com os ami-gos surdos. De qualquer forma, mostra que a procura pelo conhecimento e a pesquisa es-tética fazem parte do seu trabalho”, completa.

O balé como forma de olhar para cima | imagem: Cia de Foto

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Via de mão dupla

Muitos ouvintes não fazem idéia da impor-tância do sentido da visão para o surdo. Toda a comunicação é realizada, essencialmente, por imagens, seja por meio da língua brasi-leira de sinais (Libras, língua oficialmente re-conhecida em território brasileiro), seja pela datilologia, alfabeto manual popularmente conhecido como alfabeto surdo. Os ouvin-tes nem sempre imaginam que, na realida-de, o surdo tem grande dificuldade em ler o português. Ora, para ler em qualquer língua a memória auditiva é um recurso quase in-dispensável. Quando nunca se ouviu nada antes, ler pode ser uma tarefa homérica. Foi esse um dos desafios enfrentados pelos três professores do projeto. Um deles, Edu-ardo Queiroga, conta que, no início, chega-ram mesmo a planejar aulas com cartazes e outros recursos em que a língua portu-guesa era a protagonista. “Não tardou para que percebêssemos que o entendimento pela imagem fluía melhor, era mais rápido e mais direto”, explica. “Descobrimos, na práti-ca, que a fotografia poderia ser meio e pre-texto para a comunicação, e um dos resulta-dos indiretos disso tem sido o aumento do diálogo em casa, entre os jovens surdos e os familiares ouvintes.”

Vládia Lima, também professora do projeto, é contundente. “O olho cumpre mais fun-ções para o surdo do que para o ouvinte. Para o surdo, o olho é também o ouvido, e é preponderante no relacionamento in-terpessoal. Um ouvinte pode acompanhar uma palestra inteira de olhos baixos ou fe-chados. Pode saber que um carro vem atrás dele, mesmo sem se virar”, explica. “O surdo perde a informação logo que o contato vi-sual é cortado. Assim, muitas vezes, o olhar precisa ser regido por uma objetividade, por uma edição, por uma priorização.” Para ela, é possível que um surdo, por estar muito concentrado em algo, não perceba o que

acontece ao lado. “O olhar é crucial na co-municação. É importantíssimo. Mas isso

também pode ser responsável por uma dispersão. Parece parado-

xal?”, desafia Vládia.

De acor-do com André Luis Le-mos, aluno do projeto, o “olhar da máquina” possibilita a expressão de sua própria subjetividade, além de ensinar como enxergar as coisas sob dife-rentes perspectivas. Para Lemos, que nasceu surdo, esse aprendizado tem também outra face. Ao se apropriar desse conhecimento, ele pode ensinar a outros jovens surdos tanto os aspectos técnicos do trabalho com a fotogra-fia como refinar o diálogo sobre impressões, sensações, percepções. Não por acaso, ele e Tatiana são também agentes multiplicadores e se preparam para, em breve, monitorar no-vas turmas em formação.

Esse papel multiplicador, para Vládia, é essen-cial, pois possibilita uma comunicação mais direta e objetiva entre alunos e professores, tornando a presença do intérprete menos crucial. Sem ainda dominar a Libras e sem dispensar o trabalho do intérprete, os três professores acabaram por desenvolver uma forma alternativa de comunicação agregan-do fotografias, gestos, mímicas, um pouco de Libras e um pouco de alfabeto gestual. “Tudo isso foi uma construção e um aprendi-zado mútuo, uma via de mão dupla em que todos são professores e aprendizes.”

Saiba mais sobre os grupos em www.ciafernandabianchini.org.br e www.fotolibras.org

O autor desta imagem só pôde obedecer a dois dos três pedidos da placa | imagem: Williams Francisco/Fotolibras

Um retrato do Recife sob a ótica de um fotógrafo surdo | imagem: Márcio Campelo

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Na internet, em www.itaucultural.org.br/revista, o leitor encontra matérias exclusivas e conteúdo audiovisual ligados à questão do olhar.

De olho no cinema. Confira artigos assinados pelos cineastas Philippe Barcinski, diretor do longa-metragem Não Por Acaso, de �007, e José Mojica Marins (foto), que se diz fascinado pelos olhos e lança neste mês seu novo filme, Encarnação do Demônio, retorno de Zé do Caixão ao cinema.

on-line

ON-LINE

De olho na literatura. Cinco ilustradores transformaram em imagem a primeira frase do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. O trabalho de Eduardo Burger está nas páginas seguintes. As outras ilustrações, feitas por Carolina Rivello, Hare Lanz, Joana Lira e Juliana Russo, podem ser conferidas na revista on-line.

De olho nas artes plásticas. O pintor, escultor e gravurista mexicano Felipe Ehrenberg representou em traços seu olhar sobre a modelo e atriz Cris Ferrantini. Assista, em vídeo exclusivo da Continuum on-line, ao encontro do artista com a modelo.

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A primeira frase de Memórias Póstumas de Brás Cubas sob o ponto de vista do ilustrador Hare Lanz

José Mojica Marins: fascinação por olhos | imagem: Cia de Foto

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O olhar na literatura

“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.”

Em homenagem ao centenário de morte de Machado de Assis, o ilustrador Eduardo Burger dá forma à primeira frase do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (Ática, �8ª edição, �006).

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